BatalhaColiseuanalise AraujoJunior 2022
BatalhaColiseuanalise AraujoJunior 2022
BatalhaColiseuanalise AraujoJunior 2022
NATAL/RN
2022
ADALBERTO ALMEIDA DE ARAÚJO JÚNIOR
NATAL/RN
2022
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
Sistema de Bibliotecas – SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte.
UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
RN/UF/
AGRADECIMENTOS
Realizar esta pesquisa de mestrado foi, sem sombra de dúvidas, o maior desafio da
minha vida. Porém, ouso dizer que também foi o mais prazeroso. Todos os empecilhos,
mudanças de rota, trabalhos e retrabalhos foram essenciais para eu poder me dar conta do quão
grandioso é esse universo que me propus a pesquisar e o quão pequeno sou diante disso tudo.
No entanto, também me fez pensar sobre a grandiosidade das pessoas que integram esse
universo, dado que, não fosse o trabalho coletivo, a generosidade e a compaixão de muitos, o
hip-hop certamente não seria o que é hoje. Da mesma forma que este trabalho não seria o que
se tornou, não fosse a colaboração das inúmeras pessoas que cruzaram meu caminho durante
essa jornada. Portanto, nada mais justo do que agradecê-las.
Gostaria de começar pela minha mãe, minha primeira professora, dona Maria Gorete de
Lima. Sou eternamente grato pelo incentivo que ela sempre me deu e por me mostrar, desde os
meus primeiros anos de minha vida, o valor inestimável da educação. Foi ela quem primeiro
me mostrou que o estudo abre portas, e foi através dele que trilhei o meu caminho até aqui.
Espero continuar galgando este caminho, com o mesmo afinco e dedicação, para poder
continuar te dando orgulho e te fazendo feliz, o que, consequentemente, resulta também na
minha felicidade. Te amo, mãe.
Ao meu orientador, professor Itamar de Morais Nobre, no qual enxergo uma figura
paterna na academia. Agradeço por estar comigo desde a graduação, sempre com muito
cuidado, carinho e atenção. Me fascina sua maneira de lidar com seus alunos, valorizando o
afeto, o amor e mostrando sempre uma grande disposição, não só para ensinar, mas também
para aprender. Aprendemos muito juntos nesses últimos anos e espero honrar seus
ensinamentos e perpetuá-los em busca de uma universidade mais justa, igualitária e humanista.
Obrigado pela confiança e por nunca ter soltado minha mão, mesmo nos momentos mais
difíceis.
Ao meu coorientador Carlos Guerra Júnior, por me aceitar de braços abertos como aluno
e me aproximar do magnífico mundo do hip-hop, através da ciência e da vivência, sempre me
mostrando o que há de melhor nas produções acadêmicas e fonográficas desse maravilhoso
universo. Minha pesquisa deu um salto depois que nos conhecemos e sinto que, desde então,
adquiri um forte aliado para a vida, sejas nas ruas, nos palcos ou nas salas de aula. Vida longa,
MC Mossoró!
Aos meus colegas de mestrado da turma de 2019 do PPgEM/UFRN, em especial:
Alexandre Cunha, Jadeanny Arruda, Laís di Lauro, Luciana Mendes, Marília Diógenes, Renata
Luz Passos, Janaína Lima, Jonathan Costa e Tatiana Diniz. Agradeço pelas trocas, conversas,
leituras compartilhadas, cafés e o apoio que encontrei em vocês durante essa caminhada. Sem
essa companhia a jornada acadêmica seria muito mais monótona e solitária.
Agradeço também às minhas irmãs de orientação que, mesmo não estudando na mesma
turma, sempre estiveram dispostas a ajudar no que quer que fosse, independente das
dificuldades: Alice Andrade, Andrielle Mendes, Beatriz Paiva, Cledivânia Alves, Emanuele
Bazílio e Sarah Fontenelle. Vocês são mulheres incríveis, inspiradoras e de muita garra. Sou
imensamente grato pelo apoio e companhia.
Aos demais professores do PPgEM/UFRN, pelo incentivo e dedicação ao programa, em
especial: Denise Carvalho dos Santos Rodrigues, Juciano de Sousa Lacerda e Josenildo Soares
Bezerra. A vocês, minha gratidão e admiração.
À secretaria do PPgEM/UFRN, em especial, Ana Comissário e Jamal Singh, pelo
empenho em resolver as burocracias que permeiam uma pós-graduação em uma instituição
pública de ensino.
Aos professores que integram o grupo de pesquisa Rede Folkcom, pelo incentivo em
pesquisar esta área da comunicação tão maravilhosa, em especial: Antônio Hohlfeldt, Maria
Érica e Protásio Cezar dos Santos.
À professora Thífani Postali, pelas orientações e direcionamentos no meu exame de
qualificação.
Aos queridos amigos Aldecy Júnior, Huorge Karajan, Yara Costa e Kleyton Souza, que
tanto contribuíram para a realização desta pesquisa.
Em especial, à minha amiga Lívia Nobre que, desde a concepção do pré-projeto, sempre
se dispôs a ajudar, ouvir, acolher a fazer os apontamentos necessários para que eu pudesse
sempre melhorar como pesquisador e também como pessoa. Tenho certeza que você terá um
futuro brilhante na ciência.
À minha psicóloga, Lorena Leão, que esteve comigo desde o início dessa difícil, porém
emocionante, jornada. Obrigado por manter meus pés no chão.
E, finalmente, à UFRN que, há mais de dez anos, tem sido minha segunda casa,
fornecendo todo o suporte necessário para o cumprimento desta árdua tarefa. Em especial, aos
meus colegas servidores, lotados na Secretaria de Educação à Distância (SEDIS/UFRN), onde
também trabalham: Fabíola Barreto, Mauricio Oliveira, Maria Carmem e Camila Gonçalves,
cujo apoio foi de suma importância para que eu chegasse até aqui.
A todos vocês, e a mim mesmo, por não ter desistido no meio do caminho, minha eterna
gratidão.
RESUMO
Social and discursive practices in rap battles (rhythm and poetry) in the university environment are
investigated, considering the case of the Batalha do Coliseu, at the Central Campus of the Federal
University of Rio Grande do Norte (UFRN), in Natal (RN). To develop this work, we used
bibliographic research, observation, application of semi-structured interviews and questionnaires,
as well as discourse analysis and an adaptation of symbolic cartography, a method of data
interpretation proposed by the Portuguese sociologist Boaventura de Sousa Santos (2002), to
represent, through an analytical-descriptive map, the spaces, subjects, practices and discourses
predominant in this type of cultural manifestation. From the results obtained, we observed that rap
battles can be considered forms of counter-hegemonic popular communication, given the link
observed between rap music and social issues and the struggles against different forms of
oppression. Furthermore, it was also noticed the need for a deeper understanding of the discussions
raised by this research, considering the communication processes that constitute the marginalized
popular groups of society, understanding their communicative practices as cultural manifestations
of popular resistance.
Keywords: rap battles; counter-hegemony; decoloniality.
LISTA DE SIGLAS
DJ: Disco-jóquei;
Figura 1: Homem anda sobre os escombros do bairro do Bronx, Nova Iorque. ..................... 17
Figura 3: Exemplo de bloc party, festa com aparelhagem de som em quadra do Bronx. ....... 19
Figura 8: Flyer de apresentação de Grandmaster Flash & The Furious Five no clube Twin City
Roller Rink, 10/9/81. ................................................................................................................ 25
Figura 9: Homenagem do Google à rapper brasileira Dina Di, falecida em 2010. ................ 33
Figura 10: Capa do disco “Straight outta Compton”, lançado em 1988 pelo grupo NWA. ... 35
Figura 11: “Polícia faz demonstração de força em show de rap", diz título do Detroit Free Press
em 8/8/89. ................................................................................................................................. 36
Figura 12: Capa do disco Sobrevivendo no inferno, lançado em 1997 pelo grupo Racionais
MC’s. ........................................................................................................................................ 40
Figura 13: Publicidade do Mano a Mano, podcast apresentado pelo rapper Mano Brown na
plataforma Spotify. .................................................................................................................... 45
Figura 14: Rapper MCK segura a Constituição de Angola em videoclipe da música “Violência
Simbólica”. ............................................................................................................................... 50
Figura 15: Exemplo de “chave” da Batalha do Santa Cruz (São Paulo/SP). .......................... 59
Figura 16: Cena do filme “8 mile”, na qual B. Rabbit enfrenta Papa Doc. ............................ 64
Figura 21: Vista para o anfiteatro e prédios do Setor II e Instituto Internacional de Física. . 103
Figura 23: Vista para o anfiteatro, prédios e caixa d’água do Setor II. ................................. 104
Figura 33: Percentual de respostas sobre frequência na Batalha do Coliseu. ....................... 113
Figura 34: Percentual de respostas sobre frequência em outras batalhas de rap................... 113
Figura 35: Percentual de respostas sobre vínculo estudantil com a UFRN. .......................... 114
Figura 40: Encartes das primeiras edições da Batalha do Coliseu ........................................ 120
Figura 47: Jurados explicando as regras da Batalha do Coliseu no CCDM/UFRN. ............. 125
Figura 48: Seletiva estadual para a fase regional do Duelo de MCs Nacional. ..................... 127
Figura 49: Participação de MCs que frequentam a Batalha do Coliseu na seletiva. ............. 127
Figura 50: Apresentação de grupo musical na seletiva estadual do Duelo de MCs. ............. 128
Figura 52: Apresentação de grupo musical no retorno da Batalha do Coliseu. .................... 129
Figura 53: Batalha do Coliseu com estrutura de som, tenda e iluminação adequados. ......... 130
Figura 54: Vista do público para o palco da Batalha do Coliseu. ......................................... 148
Figura 55: Foto do vencedor com a “chave” do dia no corredor do Setor II para se abrigar da
chuva....................................................................................................................................... 148
Figura 56: Detalhe da chave do dia nas mãos do MC vencedor. ........................................... 149
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Batalhas de rap do RN com datas das seletivas para as batalhas filiadas à CDB. .. 65
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12
2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO SOBRE O RAP ......................................................... 15
2.1 O movimento cultural hip-hop....................................................................................... 16
2.2 Rap: um desdobramento do hip-hop .............................................................................. 27
2.2.1 Mainstream, underground e outras tendências no rap .......................................... 28
2.2.2 Identidade feminina no rap .................................................................................... 31
2.3 O rap e as mídias ........................................................................................................... 34
2.3.1 Definindo as bases da relação: o rap na mídia ..................................................... 35
2.3.2 Representações do rap na mídia brasileira ........................................................... 37
2.3.3 O rap no contexto das novas mídias ...................................................................... 43
2.4 Rap e educação formal ................................................................................................... 47
2.5 Batalhas de rap .............................................................................................................. 56
3 APROXIMAÇÕES TEÓRICAS ........................................................................................ 67
3.1 Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados ................................................. 69
3.2 Linhas abissais e ecologia de saberes ............................................................................ 70
3.3 Culturas híbridas e choques culturais ............................................................................ 75
3.4 Capital cultural ............................................................................................................... 78
3.5 O estranho na sociedade pós-moderna........................................................................... 80
4 CAMINHOS METODOLÓGICOS ................................................................................... 83
4.1 Observação sistemática .................................................................................................. 86
4.2 Entrevistas semiestruturadas e questionário .................................................................. 89
4.3 Análise do discurso ........................................................................................................ 91
4.4 Cartografia simbólica ..................................................................................................... 94
5 BATALHA DO COLISEU .................................................................................................. 98
5.1 Espaços de realização das atividades ........................................................................... 100
5.1.1 Anfiteatro do Setor II (Coliseu) ............................................................................ 100
5.1.2 Centro de Convivência Djalma Marinho (CCDM) .............................................. 105
5.1.2 Estacionamento da Praça Cívica (UFRN)........................................................... 107
5.2 Perfil socioeconômico dos agentes participantes......................................................... 108
5.3 Práticas sociais realizadas nos espaços ........................................................................ 117
5.4 Construções narrativas nos discursos predominantes .................................................. 130
CONSIDERAÇÕES ............................................................................................................. 151
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 154
12
1 INTRODUÇÃO
Rap é uma expressão do inglês, "rhythm and poetry" e pode ser traduzida como “ritmo
e poesia”. De acordo com a socióloga estadunidense Tricia Rose (1996), o rap é uma forma de
expressão musical originária do movimento cultural hip-hop e combina narrativas orais e
rimadas com batidas eletrônicas rítmicas. O etnomusicólogo estadunidense Emmett G. Price III
(2006), por sua vez, destaca o papel do elemento MC nos eventos que originaram o movimento
hip-hop. De acordo com Price (2006), a princípio, os MCs se reservavam à tarefa de animar o
público que frequentava os bailes de hip-hop, atuando como “mestres de cerimônia”, daí a
origem da sigla. No entanto, o autor ressalta que o papel dos MCs foi gradativamente adquirindo
destaque, ao passo que começaram a elaborar rimas e criar uma conexão mais intrínseca com o
público, que passou a despertar mais o interesse por esse tipo de interação. Nesse contexto, DJs
(disco-jóqueis) e MCs (mestres de cerimônia) passaram a produzir músicas juntos, dando
origem ao que hoje conhecemos como rap (PRICE, 2006).
O presente trabalho tem como objetivo principal investigar as batalhas de rap como
formas de comunicação popular de caráter contra-hegemônico. Considerando suas motivações
e ideologias políticas, como um movimento que gera práticas comunicacionais que vão contra
os processos históricos de dominação social. Para isso, propomos uma adaptação da
“cartografia simbólica”, uma teoria do próprio sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos (2002), a fim de elaborar um mapa analítico-descritivo capaz de cartografar as práticas
socioculturais e discursivas provenientes das atividades realizadas pela Batalha do Coliseu, bem
como suas interações com o meio ao qual está inserido, uma vez que se trata de uma
manifestação cultural que acontece dentro do ambiente universitário.
Para alcançar o objetivo principal proposto acima, foram definidos como objetivos
específicos necessários a esta pesquisa: contextualizar historicamente o rap, considerando seu
caráter sociocultural, bem como sua relação com as mídias e o ensino formal; discutir conceitos
que viabilizem uma compreensão acerca dos aspectos socioculturais inerentes ao rap e à
realização de batalhas de rap; e analisar sistematicamente as implicações socioculturais da
13
O primeiro capítulo deste trabalho faz uma breve contextualização sobre a historicidade
do rap, considerando os aspectos sociais e políticos vinculados ao hip-hop, movimento cultural
que deu origem ao estilo musical. Para isso realizamos pesquisas bibliográficas para reunir
dados acerca da origem do movimento cultural hip-hop, bem como o contexto social em que
surgiu, suas principais formas de expressão e os primeiros grupos de rap que começaram a
surgir. Logo após, falamos sobre o rap e suas principais tendências de distribuição, seguido de
uma breve análise sobre a representatividade feminina no rap. Em seguida, abordamos a relação
do rap com as mídias, considerando suas representações, e com as instituições de ensino formal,
identificando dificuldades, mas também iniciativas em direção ao estreitamente dessa relação.
Por fim, caracterizamos o fenômeno social que define o objeto de estudo da nossa pesquisa, as
batalhas de rap, classificando suas formas de realização e práticas em comum, seguido de uma
breve contextualização com a realização de batalhas de rap na cidade de Natal (RN).
das “hibridações culturais” e Homi Bhabha (1998) para tratar dos “choques culturais”,
fenômenos identificados no contexto estudado por esta pesquisa. Por fim, no campo da
sociologia, são discutas as teorias do “capital cultural” e do “estranho” na sociedade pós-
moderna, dos sociólogos Pierre Bourdieu (1998) e Zygmunt Bauman (1998), respectivamente,
buscando relacioná-las com as interações sociais observadas na Batalha do Coliseu.
(Afrika Bambaataa)
Neste capítulo, será feita uma breve contextualização sobre o rap, compreendendo sua
origem, difusão e integração com projetos e iniciativas de mobilização social. Sendo o rap um
desdobramento do hip-hop, abordaremos o contexto social em que o hip-hop e, por conseguinte,
o rap surgiram e se popularizaram, bem como suas relações com a indústria cultural e as mídias
de massa. Também serão apresentados exemplos de iniciativas integrativas entre práticas do
rap e metodologias tradicionais de educação formal, para então discutir o que são e como se
caracterizam as batalhas de rap.
No segundo subcapítulo, iremos nos ater ao rap, uma das formas de expressão do hip-
hop, utilizando como referências, os textos dos professores universitários David Toop (2000),
Mickey Hess (2007) e Adam Bradlay & Andrew DuBois (2010); da antropóloga Jaqueline Lima
Santos (2019), os(as) historiadores(as) Micael Herschmann (2005) e Maria Aparecida da Silva
(1999), as sociólogas Gayatri Spivak (2010) e Patricia Hill Collins (2006), etnomusicóloga
Kyra Gaunt (2003), bem como as contribuições da comunicóloga Thífani Postali (2020), e da
socióloga Denise Carvalho dos Santos Rodrigues (2017). No terceiro subcapítulo, traremos a
discussão sobre o rap através da perspectiva das mídias e suas relações. Para a construção deste
subcapítulo nos baseamos em autores como os professores universitários Francisco Carlos
16
Guerra de Mendonça Júnior (2014, 2020) e S. Craig Watkins (2005), além dos(as) já
supracitados(as) autores(as) Guimarães (1999), Rose (1994) e Herschmann (2005).
O quarto subcapítulo será dedicado a uma análise da utilização do rap como instrumento
de educação formal e sua relação com as instituições e espaços de ensino. Para tanto, somamos
as ontribuições dos autores já citados, elucidações de outros autores, como o professor
estadunidense James Braxton Peterson (2016), o jornalista brasileiro Marcos Antonio Zibordi
(2015) e o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1989). No quinto e último subcapítulo, focamos
especificamente nas batalhas de rap, buscando compreender suas origens e adaptações, através
da discussão de textos como os do antropólogo brasileiro Ricardo Indig Taperman (2011), a
professora de letras Rôssi Alves (2013) e a arquiteta e urbanista potiguar Sarah Esli de Lima
Souza (2019). Através do cruzamento dessas fontes com notícias jornalísticas e outras
informações reunidas com buscas realizadas em páginas na internet e consultas pessoais a
figuras relevantes no cenário hip-hop local, foi possível traçar um breve apanhado sobre a
atuação de batalhas de rap no estado do Rio Grande do Norte e, mais especificamente, na cidade
de Natal, capital do estado.
De acordo com o sociólogo brasileiro José Carlos Gomes da Silva (1999), o hip-hop
surgiu como um movimento artístico-político entre jovens afro-americanos e caribenhos que
viviam nos guetos em meio ao cenário de violência, desemprego e conflitos entre gangues que
assolavam os bairros periféricos da metrópole nova-iorquina naquela época. Nesse contexto,
Silva (1999) destaca a existência de gangues e as chamadas “posses” como principais formas
de convivência entre os jovens da periferia. No entanto, o autor pontua que, enquanto as
gangues promoviam violência no bairro e guerras entre grupos rivais, realizando assaltos e
17
É nesse plano mais particular, relativo ao bairro, que os jovens se estruturam mediante
as festas de rua, as crews ou posses. As posses constituíram-se como espaço próprio
pelo qual os jovens passaram não apenas a produzir arte, mas a apoiar-se mutuamente.
Diante da desagregação de instituições tradicionais, como a família, e a falência dos
programas sociais de apoio, as posses consolidaram-se no contexto do movimento
hip-hop como uma espécie de “família forjada” pela qual os jovens passaram a discutir
os seus próprios problemas e a promover alternativas no plano da arte. No contexto
norte-americano as posses constituem-se como o oposto às gangues, que são também
grupos juvenis de apoio, que, não obstante, promoviam a violência entre os iguais
(SILVA, 1999, p.27, grifo do autor).
(p. 87). De acordo com a autora, o grafite possui uma intenção de protesto que o difere das
pichações, pois seus desenhos “revelam dor, exaltação do grupo, repúdio a uma forma de
opressão” (ANDRADE, 1999, p. 87). Além de assinarem seus nomes artísticos – ou tags – a
autora ressalta que os grafiteiros também se expressam por meios de letreiros e painéis
elaborados nas paredes da cidade e superfícies do metrô, colorindo a paisagem urbana com
mensagens de otimismo e nomes de grupos 1. Na figura a seguir, exemplos de grafites no metrô
de Nova Iorque, com mensagens como “do the right thing!” e “justice is adequate!” – traduzidas
como “faça a coisa certa!” e “justiça é adequado!”, respectivamente – e referências a crews
como os Cold Crush Brothers, do Bronx (Figura 2).
1
DICING with death: the original New York graffiti artists – in pictures. The Guardian, Londres, 5 set. 2014.
Disponível em: <https://www.theguardian.com/artanddesign/gallery/2014/sep/05/original-new-york-graffiti-
artists-in-pictures>. Acesso em 25 fev. 2022.
2
Um exemplo de música com break beat é “Give it Up or Turn it a Loose” (aos 4:57) de James Brown
(GEORGE, 2004).
19
Figura 3: Exemplo de bloc party, festa com aparelhagem de som em quadra do Bronx.
Fonte: Henry Chalfant, 1984.
A break dance, ou dança break, de acordo com Andrade (1999), tem seus movimentos
robóticos e acrobáticos inspirados no “corpo debilitado dos soldados que voltavam da Guerra
do Vietnã” (p. 87) e no movimento das hélices dos helicópteros utilizados no conflito. Segundo
a autora, o objetivo era “mostrar o descontentamento dos jovens com relação à guerra”
(ANDRADE, 1999. p. 87). No ambiente das festas, os b-boys e b-girls se revezavam,
disputando uns com os outros, nos espaços abertos no meio da multidão, chamados de cyphers,
para realizar suas performances provocativas 5 (Figura 4).
3
KOOL Herc "Merry-Go-Round" technique. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (4 min.). Publicado pelo canal
GoodStuff79. Disponível em: <https://youtu.be/7qwml-F7zKQ>. Acesso em 5 mar. 2022.
4
ALTMAN, M. Hoje na História: 1973 - Hip hop surge durante festa no Bronx, em Nova York. Opera Mundi,
São Paulo, 11 ago. 2021. Disponível em: <https://operamundi.uol.com.br/hoje-na-historia/37403/hoje-na-
historia-1973-hip-hop-surge-durante-festa-no-bronx-em-nova-york>. Acesso em 27 fev. 2022.
5
GEORGE, C. Exploring the birth of the b-boy in 70s New York. Vice, Londres, 26 nov. 2018. Disponível em:
<https://i-d.vice.com/en_uk/article/ev3v4z/exploring-the-birth-of-the-b-boy-in-70s-new-york>. Acesso em 25
fev. 2022.
20
Por outro lado, conforme constatamos em George (2004), a origem dos movimentos da
dança break pode estar relacionada também às gangues, que apostavam dinheiro em disputas
de um tipo de dança chamada Good Foot 6, inspirada em James Brow, renomado artista da
música negra norte-americana. De acordo com o autor, as festas de Kool Herc, com suas
aparelhagens inspiradas nos sound systems jamaicanos, atraiu o interesse de jovens como
Grandmaster Flash (Joseph Saddler) e Afrika Bambaataa (Kevin Donovan) (Figura 5). Segundo
George (2004), Grandmaster Flash era um jovem interessado em discos e circuitos de áudio
que, não só conseguiu replicar, como aperfeiçoou a técnica de Kool Herc, consagrando-se como
DJ 7. Já Afrika Bambaataa era um ex-integrante de gangues que, inspirado nas block parties de
Kool Herc, passou a promover encontros de grupos voltados para disputas de música, dança e
grafite (GEORGE, 2004).
6
GOOD Foot Dance / James Brown. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (1m43s). Publicado pelo canal '00s Grits &
Soul. Disponível em: <https://youtu.be/hRl5r83B_zI>. Acesso em 5 mar. 2022.
7
GRANDMASTER Flash – Wildstyle. [S. l.: s. n.], 2010. 1 vídeo (2m4s). Publicado pelo canal Roland.
Disponível em: <https://youtu.be/JHIsNQ3eh2g>. Acesso em 6 mar. 2022.
21
8
HISTORY: Afrika Bambaataa forms Universal Zulu Nation, Backyard Opera, 11 out. 2020. Disponível em:
<https://www.backyardopera.com/music-17/2020/10/11/history-afrika-bambaataa-forms-universal-zulu-nation-
587wp>. Acesso em 27 fev. 2022.
22
No Brasil, os ganhadores de pau, que vendiam água nas ruas de Salvador, utilizando-
se do canto-falado em que o MC (mestre-de-cerimônia) conduzia o grupo. Nos EUA,
houve os escravos das fazendas de algodão no sul do país, os griots, que também se
utilizavam desse estilo de cantar. É um exemplo básico da transcendência negra: não
importa onde estejam seus descendentes, há referências e culturas de origem africana
que permanecem por gerações (ANDRADE, 1999, p. 87).
O jornalista brasileiro Marcos Antônio Zibordi (2015) explica que, apesar de ter surgido
a partir da iniciativa de DJs como Kool Herc e Afrika Bambaataa, o papel dos DJs acabou
9
DIEC, J. Afrika Bambaataa raps on early hip-hop. Cornell Chronicle, Ithaca, 29 nov. 2012. Disponível em:
<https://news.cornell.edu/stories/2012/11/afrika-bambaataa-raps-early-hip-hop-history>. Acesso em 5 mar.
2022.
23
ficando em segundo plano em relação aos MCs, limitando-se a reproduzir os discos que
tocavam nas festas. No entanto, o autor observa que logo os DJs passaram a ter mais relevância
no movimento à medida que começaram a produzir sons próprios e explorar novas estéticas nas
suas produções musicais.
Até então meros discotecários, os DJs passam a fazer experimentações como acelerar
e retardar a rotação dos discos ou provocar ruídos pela fricção da agulha. Compõem
a partir de colagens de trechos instrumentais fortemente rítmicos, novo método de
selecionar um fragmento do vinil, de preferência sem a voz do cantor, e repeti-lo
diversas vezes, criando outra narrativa sonora a embalar os dançarinos que
acompanhavam essas sequências feitas de pedaços, de cortes, ou de breaks: eram os
break boys, ou b. boys, com a designação feminina de b. girls (o nome da dança
defendido pelos praticantes da cultura é especificamente breaking) (ZIBORDI, 2015,
p. 21, grifo do autor).
Segundo o jornalista Mark Skillz (2014), um dos DJs que começou a se destacar nesse
cenário foi o DJ Hollywood que, inspirado nos DJs de rádio, que falavam enquanto a música
era tocada, passou a elaborar rimas que eram faladas durante a reprodução de seus discos. O DJ
Hollywood se considera um forte influenciador, pois considera que ninguém antes dele integrou
o microfone ao toca-discos da maneira que ele fez, apesar de reconhecer que existiram rappers
na música antes dele. O único reconhecimento público pelas contribuições do DJ Hollywood
para o rap foi através do prêmio “Hip-Hop Honors”, do canal VH1, concedido em 2005. De
uma forma geral, muitas vezes o DJ Hollywood deixa de ser citado em contextualizações
históricas sobre o rap. Isso pelo motivo de muitos pioneiros do movimento o considerarem um
DJ de disco music e não necessariamente de hip-hop 10.
É o caso dos próprios DJs Kool Herc, Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash, conforme
podemos verificar em George (2004). Embora exista uma discussão sobre quem foram os
primeiros rappers no movimento hip-hop, os DJs precursores do movimento compartilham da
mesma visão sobre o DJ Hollywood: que ele era um DJ mais voltado para o disco. De acordo
com o DJ Grandmaster Flash (apud GEORGE, 2004), as primeiras pessoas que ele viu falar ao
microfone durante as músicas e entreter o público, não necessariamente sincronizados com a
batida, foram nas festas de Kool Herc, como por exemplo Coke La Rock (Figura 7), que muitas
vezes atuava como MC em discotecagens do próprio Kool Herc. Segundo o DJ Kool Herc,
10
SKILLZ, M. DJ Hollywood: The Original King of New York. Cuepoint, 19 nov. 2014. Disponível em
<https://medium.com/cuepoint/DJ-hollywood-the-original-king-of-new-york-41b131b966ee>. Acesso em 5 mar.
2022.
24
frases e gírias comuns utilizadas entre os moradores do bairro eram faladas ao microfone, como
se estivesse falando com um amigo no meio da plateia (GEORGE, 2004).
Price (2006) considera que, com sua globalização, o hip-hop se tornou o movimento
negro mais importante do mundo, por expandir a causa negra globalmente, mesclando arte e
consciência política adaptando-se às questões de cada localidade. Isso vai ao encontro do
pensamento de Rose (1994) que, por sua vez, destaca que o rap levanta uma série de questões
sobre cultura e música popular, pois aborda uma série de problemas sociais, culturais e políticos
da sociedade contemporânea. De acordo com Rose (1994), as formas de expressão e linguagens
desenvolvidas no hip-hop construíram um imaginário discursivo e simbólico capaz de dialogar
com as grandes massas sobre as dinâmicas sociais, positivas e negativas, vividas pelas
comunidades negras nas periferias dos grandes centros urbanos.
Devido à atitude e estilo bastante distintos adotados pelos hip-hoppers, não demorou
muito para que o mercado da moda também se apropriasse desses elementos para lucrar. Os
agasalhos, bonés, tênis, bermudas largas, camisetas com frases ou estampas de líderes e músicos
negros, que facilmente identificam os integrantes do movimento em qualquer lugar do mundo,
logo viraram tendência também entre jovens não negros e de classe média, que passaram a se
identificar e se expressar através dos elementos culturais do hip-hop (GUIMARÃES. 1999). De
acordo com Stevenson (2012, p. 244), “não foi só a linguagem que fez parte do estabelecimento
da cultura hip-hop, mas também um código de vestuário dotado de padrões que significavam
pertencimento ao grupo”.
11
Um neologismo a partir do termo em inglês understanding, que significa compreensão ou entendimento.
Bambaata subverteu o prefixo under (sub, por baixo), substituindo-o por over (sobre, por cima).
27
lucro como objetivo final algo necessariamente ruim, o DJ considerava a busca excessiva por
esse lucro como um fator determinante para a desvirtuação do movimento para com seus
objetivos originais (PRICE, 2006).
Nesse subcapítulo pudemos nos familiarizar com o contexto social crítico no qual o
movimento cultural hip-hop surgiu e como suas formas de expressão, principalmente o rap,
apresentam relações com as tradições dos povos negros escravizados e trazidos para as
Américas, fazendo dessa cultura negra parte importante de um imaginário social de ligação na
diáspora. Pudemos compreender também aspectos relacionados aos objetivos do movimento
que, através de suas mobilizações e instituições, buscava promover união, cultura e
conscientização entre os jovens negros e menos favorecidos das periferias. Também citamos
agentes importantes no processo de constituição do movimento, como os DJs Kool Herc, Afrika
Bambaataa e Grandmaster Flash. Vimos também que existe uma discussão sobre quem foi o
primeiro rapper no movimento hip-hop e a contribuição do DJ Hollywood nesse processo,
apesar de os DJs citados anteriormente ressaltarem que este último se trata de um DJ de disco
music, portanto, não o consideram um integrante do hip-hop, apesar de reconhecerem seu
talento e trabalho com as rimas. Isso dá indícios de que, apesar de ser um movimento com
objetivos bem definidos, o hip-hop também apresenta suas ambiguidades, conforme veremos
mais detalhadamente no próximo subcapítulo.
De acordo com Price (2006), foi a partir da décadas de 1980 e 1990 que as gravadoras
começaram a se interessar pelo rap, mais do que pelos demais elementos do hip-hop, o que deu
início a um dos debates mais predominantes até hoje no movimento: entre os que defendem o
rap underground como forma de expressão que carrega a verdadeira essência do movimento e
os que se integram ao mercado mainstream do entretenimento e da indústria cultural, assinando
com grandes gravadoras, fechando contratos de publicidade, fazendo aparições em meios como
televisão, rádio e revistas. Segundo o autor, as gravadoras passaram a dar mais destaque aos
MCs – em detrimento de outros artistas do movimento, como DJs, grafiteiros e breakers em
suas produções, o que ficou mais evidente com o surgimento do gangsta rap, onde figuras como
b-boys, b-girls e grafiteiros são menos visibilizadas, apesar de popularizar o papel da produção
musical dos DJs.
De acordo com Rose (1994), o estilo gangsta rap surgiu em Los Angeles, na Costa
Oeste dos Estados Unidos, popularizado inicialmente pelo rapper Ice-T e caracterizado por
narrar as experiências e fantasias relacionadas ao cotidiano dos jovens negros e pobres dos
subúrbios da cidade, evidenciando a violência e os conflitos entre gangues, o que acabou
encorajando o surgimento de outros artistas como Ice Cube, Too Short, Dr. Dre, Ezy-E, Snoop
Dogg e grupos como NWA, Compton’s Most Wanted, WC and the Maad Circle, South Central
Cartel. Em um contexto geral, Rose (1994) considera que as articulações muitas vezes
contraditórias do rap não indicam uma falta de clareza intelectual no movimento, uma vez que
essas divergências são naturais em processos dialéticos que oferecem mais de um ponto de vista
social, cultural ou político.
O debate sobre mainstream e underground também levanta questões sobre a noção que
os rappers têm do hip-hop enquanto movimento e a necessidade de uma coerência da
29
integridade, postura e autobiografia dos artistas com os ideais do movimento. Segundo o autor,
muitas letras questionam tanto a estrutura da indústria fonográfica e a própria carreira de
rapper, quanto a noção do que é “hip-hop de verdade” e “MCs de verdade” (p. 22). Segundo o
autor, criou-se também uma tensão comercial entre os termos hip-hop e rap, em que o termo
hip-hop pode compreender toda uma cultura que vai além da música, incluindo também as artes
do grafite e da dança break, ou até mesmo um estilo de vida, apesar de alguns MCs usarem o
termo “hip-hop music” ou apenas “hip-hop” para se referirem à música rap. O autor ressalta
que, em algumas letras, tanto o termo rap pode ser usado para se referir a músicas comerciais,
quanto o termo hip-hop pode ser usado para se referir a músicas autênticas, ao mesmo tempo
que alguns artistas fazem questão da distinção entre rappers e MCs ou MCs “de verdade”
(HESS, 2007, p. 23).
não fazerem grandes críticas às instituições e o regime vigente de Angola, tratam de temas
sociais ao abordar suas trajetórias individuais, narrando momentos de pobreza e sofrimento
vivenciados, bem como o acesso a bens de consumo proporcionado por suas carreiras,
ressaltando sua própria ascensão social. Os futuristas, segundo a autora, são os artistas mais
focados em questões subjetivas e suas inserções no mundo, buscando, através de reflexões sobre
suas constituições enquanto sujeitos e a apresentação de um olhar crítico sobre o contexto em
que vivem, propor perspectivas para o futuro e utilizar a produção musical e artística como uma
forma de “transcender”. Nesse segmento a autora cita os artistas Kool Klever e Keita Mayanda.
Tricia Rose (1994) segue o mesmo pensamento ao considerar que o rap reflete o
machismo da sociedade, visto na baixa representatividade feminina no movimento,
principalmente em seu início, e na objetificação sexual das mulheres nas letras das músicas. A
autora afirma que as letras presentes no rap mainstream nos Estados Unidos sustentam um
discurso sexista ao mesmo tempo que isso é negado pelos rappers, que afirmam tratar as
mulheres de acordo com seus padrões e valores morais. Por isso, ela lamenta o fato de esse
discurso ser aceito, pois explora e controla a sexualidade feminina. Além disso, a autora
considera que o rap mainstream trata as mulheres como inferiores, naturalizando sua pouca
ocupação dos espaços sociais. Já os homens são tidos como líderes naturais e provento das
famílias, reforçando o patriarcado.
com Collins (2006), que estudou o feminismo negro no contexto do hip-hop, apesar de ser um
movimento bastante heterogêneo, com bastante divergências entre mensagens, algumas
mulheres negras conseguiram utilizar a popularização do movimento para reivindicar suas
demandas e politizar outras mulheres negras, que talvez não teriam outra forma de conhecer o
feminismo, além do rap.
nasceu em 1986, quando rappers femininas como Rose MC, Rubia e Sharylaine já estavam em
atividade no Brasil. Quando questionada sobre o ocorrido, Sharylaine lamenta, apesar de
reconhecer a relevância do trabalho da rapper curitibana: “Falamos tanto da invisibilidade da
mulher, aí você tem um apagamento histórico de mulheres que fizeram com que essa cultura
acontecesse. […] É inegável que Karol transcendeu os espaços limites que representantes
femininas sobretudo negras tenham alçado e ou alcançado, e neste sentido ela também figura
como um divisor de águas” 12.
Em 2022, o Google do Brasil fez uma homenagem a Dina Di que, assim como
Sharylaine, é reconhecida como uma das pioneiras do rap. O texto que acompanha a publicação
ressalta esse pioneirismo da rapper, exaltando seu papel na criação do grupo Visão de Rua –
que ganhou Prêmio Hutúz em 2000 e 2001 como melhor grupo feminino, consagrando a artista
como “Rainha do Rap Nacional” – além de sua contribuição para a reflexão sobre as duras
realidades do sistema carcerário feminino no país. O texto destaca também que, após ter
cumprido pena em regime de reclusão, a artista “visitou prisões para compartilhar sua música
com mulheres encarceradas para inspirar uma transformação positiva e dar aos detidos
esperança de um futuro melhor” 13. A rapper, que faria 46 anos em 2022, faleceu no dia 20 de
março de 2010, aos 34 anos, em condições precárias de saúde, devido a uma infecção hospitalar
que contraiu semanas antes, ao dar à luz sua filha Aline 14.
Neste subcapítulo vimos que os primeiros grupos de rap, que surgiram a partir da junção
de DJs e MCs desenvolveram técnicas para performar suas músicas em apresentações ao vivo,
12
CARVALHO, I. Contra a invisibilidade histórica, Sharylaine rebate ‘pioneirismo’ de Karol Conká. Brasil de
Fato, São Paulo, 14 fev. 2021. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/02/14/contra-a-
invisibilidade-historica-sharylaine-rebate-pioneirismo-de-karol-conka>. Acesso em 4 mar. 2022.
13
46º aniversário de Dina Di. Google, 19 fev. 2022. Disponível em: <https://www.google.com/doodles/dina-dis-
46th-birthday>. Acesso em 4 mar. 2022.
14
GOOGLE faz homenagem à Dina Di, pioneira do hip-hop brasileiro que faria 46 anos. Isto É, São Paulo, 19
fev. 2022. Disponível em: <https://istoe.com.br/google-faz-homenagem-a-dina-di-pioneira-do-hip-hop-
brasileiro-que-faria-46-anos/>. Acesso em 4 mar. 2022.
34
Neste subcapítulo iremos focar na relação que o rap desenvolveu com as mídias
enquanto estabelecia sua rede de difusão, além de buscar identificar quais tensionamentos
perpassam essa relação. Conforme observa a socióloga brasileira Maria Eduarda Araújo
Guimarães (1999), inicialmente o rap mostrou-se um produto aparentemente pouco atraente
para o mercado de bens culturais, devido à sua origem periférica e a violência presente em letras
de músicas. Com efeito, por muito tempo, a mídia simplesmente ignorou ou restringiu-se a citar
o rap apenas para enaltecer seu caráter violento, alegando que os grupos musicais
disseminavam o gangsterismo. Não é por acaso que, segundo relata a autora, no decorrer de seu
processo de difusão, o rap encontrou inúmeras dificuldades, exigindo de seus participantes
trilhar caminhos alternativos para distribuição de suas produções fonográficas, como a criação
de selos independentes, divulgação de músicas em rádios piratas e comunitárias, produção de
fanzines sobre rap, além da articulação de um circuito alternativo de distribuição de discos em
lojas e galerias dos centros das cidades.
35
Nos Estados Unidos, Tricia Rose (1994) relata que no final da década de 1980 os artistas
e grupos de rap começaram a gerar uma série de reações adversas entre as instituições de
segurança pública, como a polícia, a exemplo do caso relacionado à música “Fuck tha police!”,
lançada em 1988 pelo grupo de gangsta rap da cidade de Compton, Califórnia, NWA – Niggas
With Attitude, traduzido como “Negros Com Atitude” – que foi uma das que mais gerou
comoção entre as autoridades. Na letra, presente na segunda faixa do disco Straight Outta
Compton (Figura 10), o grupo ofende a polícia e responsabiliza seus agentes pela opressão e
morte da população negra.
Foda-se a polícia!
Diretamente do submundo
Um jovem negro se dá mal porque é marrom
E não de outra cor, assim pensa a polícia
Eles têm a autoridade pra matar uma minoria
[...]
(tradução nossa).
Figura 10: Capa do disco “Straight outta Compton”, lançado em 1988 pelo grupo NWA.
Fonte: Amazon, s.d.
36
De acordo com Rose (1994), a letra dessa música chamou a atenção das autoridades,
em especial o oficial Milt Ahlerich, diretor assistente do FBI – sigla do Departamento Federal
de Investigação dos Estados Unidos – que publicou uma carta oficial do departamento
vinculando o aumento nos casos de violência à música do grupo e alegando preocupação com
o incentivo à violência e desrespeito aos policiais que letras como essa supostamente
propagavam. Segundo a autora, o pronunciamento do oficial do FBI gerou comoção entre as
autoridades e recebeu o apoio dos demais agentes de lei, resultando em perseguição ao grupo e
até mesmo a censura da música em cidades como Detroit, onde uma apresentação dos rappers
chegou a ser interrompida em 1989 após eles cantarem os primeiros versos da letra 15. O caso
repercutiu na mídia após ser noticiado pela imprensa local que relatou o tumulto e
consequências geradas pelo uso da força adotado pela polícia (Figura 11). Segundo consta em
Rose (1994), o objetivo dos policiais era mostrar para as “crianças” que não se pode dizer “foda-
se a polícia” em Detroit.
Figura 11: “Polícia faz demonstração de força em show de rap", diz título do Detroit Free Press em 8/8/89.
Fonte: John Collier, s.d.
15
MARSH, D; POLLACK, P. Wanted for Attitude: The FBI Hates This Band. The Village Voice, Nova Iorque,
10 out. 1989. Disponível em: <https://www.villagevoice.com/2020/09/02/crackdown-on-culture-the-fbi-hates-
this-band/>. Acesso em 17 mar. 2022.
37
Já no Brasil, Maria Eduarda Guimarães (1999) afirma que o rap chegou não muito
tempo depois de seu surgimento nos Estados Unidos, trazido pelo pernambucano, radicado em
São Paulo, Nelson Triunfo, o “Nelsão”. Segundo relata a autora, Nelsão teve contato e se
interessou pela black music norte-americana e formou o grupo de dançarinos Funk & Cia. que,
posteriormente passou a dançar break e acabou levando o ritmo do hip-hop para lugares como
a Praça da Sé e a Estação São Bento do Metrô em São Paulo. O primeiro programa de rádio
brasileiro, destaca a autora, foi o Rap Brasil, que surgiu no início dos anos 1980 na rádio
Metropolitana FM, apresentado pelo Dr. Rap. Apesar disso, conforme podemos verificar em
Guimarães (1999), as mesmas condições de resistência foram oferecidas ao rap aqui no Brasil,
tal qual nos Estados Unidos, presumidamente devido ao seu caráter periférico e a questão da
violência abordada nas letras das músicas. Segundo a visão da autora, “por ser um discurso
sobre a vida dos excluídos das periferias não há como não fazer referência à violência intrínseca
a esta” (GUIMARÃES, 1999, p. 40).
com a Folha de São Paulo 16, os rappers foram levados para o 3º Distrito Policial de Santa
Ifigênia, região central da cidade, onde prestaram depoimentos e foram liberados em seguida.
A polícia, que já havia interrompido o show do grupo MRN – Movimento e Ritmo Negro – no
mesmo dia, justificou a ação alegando que as letras incitavam o crime e a violência. Na música
Eles não sabem nada, do grupo MRN, os rappers questionam a inteligência dos agentes de
segurança pública e alegam que suas ações são movidas por sentimentos de maldade, referindo-
se aos agentes como “raça” que “não sabe o que é viver”, além de insultá-los de “filhas da puta”
(sic).
[...]
Gente dessa raça não sabe o que é viver
A maldade forra seus sentimentos
A bondade deles é atirar daqui ou de lá
Filhas da puta, pá, pá, pá!
[...]
Homem na estrada
(Racionais MC’s, 1993, faixa 5)
[...]
Tiram sua liberdade, família e moral
Mesmo longe do sistema carcerário
Te chamarão para sempre de ex-presidiário
Não confio na polícia, raça do caralho!!!
[...]
16
POLÍCIA prende grupos de rap durante show. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1994. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/11/28/brasil/23.html>. Acesso em 28 fev. 2022.
39
17
RAPPERS enfrentam a polícia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 dez. 1994. Caderno B, p. 1.
18
‘SOBREVIVENDO no inferno’, dos Racionais MC's, completa dez anos. G1, São Paulo, 5 nov. 2007.
Disponível em: <https://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL169176-7085,00.html>. Acesso em 18 mar.
2022.
19
RACIONAIS fazem ‘sociologia’ da periferia. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 nov. 1997, p. D4.
40
Figura 12: Capa do disco Sobrevivendo no inferno, lançado em 1997 pelo grupo Racionais MC’s.
Fonte: Amazon, s.d.
20
A DESCONTRAÇÃO dos cariocas invade a programação da MTV. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 ago.
1991. Disponível em: <https://www.tv-pesquisa.com.puc-rio.br/>. Acesso em 18 mar. 2022.
21
MANOS e Minas. TV Cultura, São Paulo. Disponível em:
<https://cultura.uol.com.br/programas/manoseminas/>. Acesso em 18 mar. 2022.
41
garrafa?” 22. Mesmo assim, basta uma breve busca na internet para constatar que, apesar das
declarações, o grupo chegou a se apresentar pelo menos uma vez no Programa Livre, do SBT 23.
Isso porque, conforme observa Guimarães (1999), se apresentar nas casas noturnas, nos
clubes dos bairros de classe média e demais ambientes fora do circuito da periferia acabou se
transformando em mais uma maneira de os rappers ganharem dinheiro. Muitas vezes cobrando
até mais caro do que o valor normalmente negociado para apresentações realizadas nos bairros
de periferia. O rapper Mano Brown, também dos Racionais, justifica: “Os boyzinhos não
gostam de mim, gostam da minha música, então, que paguem mais caro” 24. O relato do MC
pode ser complementado pela visão de seu companheiro de grupo KL Jay, que comenta:
[...] na periferia a gente toca com prazer porque estamos ao lado do nosso povo. Eles
entendem o que os Racionais falam nas letras. [...]. Para se apresentar em festivais
comerciais cobramos três vezes mais do que estamos acostumados para tocar nesse
festival. Vamos lá, pegamos o dinheiro, tocamos e voltamos para a periferia. Os
playboys têm que pagar mesmo. Eles devem muito para nós, pretos. Foram na África
e escravizaram nosso povo que enriqueceu a Europa e a América. Estamos apenas
cobrando, legalmente, esse dinheiro (grifo do autor) 25.
Para Guimarães (1999), além de uma forma de ganhar dinheiro, tal postura é
compreendida também como uma atitude ética e política, visto que tocar na periferia é uma
forma de dialogar com os excluídos, enquanto tocar em outras áreas é uma maneira de transmitir
a realidade do gueto para outros setores da sociedade. A autora observa que, apesar de grande
parte do público considerar que apresentações de grupos de rap em áreas nobres contribuam
para que os brancos enxerguem com outros olhos a realidade da juventude negra, alguns
rappers discordam, como é o caso de Mano Brown, que declara: “O povo dos Jardins só ouve
Racionais porque o som é bom, mas ninguém pensa nas letras”. E reitera: “Não acredito na
integração. Foram 400 anos de racismo e exploração. Não serão quatro anos de rap que irão
mudar as coisas 26”.
22
REZENDE, M. Racionais MC’s dizendo ‘Não’ aos programas de auditório e à maior TV do país, grupo de rap
paulistano caminha para o 2º disco de ouro do mais recente CD, dá show para 10 mil pessoas, prepara entrada na
MTV e vai virar filme em 98. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 dez. 1997, caderno 4, p. 1.
23
RACIONAIS "Fim De Semana No Parque" No Programa Livre Do SBT Vídeo Raríssimo [1994]. [S. l.: s. n.],
2021. 1 vídeo (7m20s). Publicado pelo canal Vídeos Raros Do Rap Nacional. Disponível em:
<https://youtu.be/BUn9Ku9zQ7o>. Acesso em 18 mar. 2022.
24
DOS brancos eu só quero o dinheiro. Revista Veja, São Paulo, 8 jun. 1994.
25
Jornal da Tarde, São Paulo, 4 ago. 1998, p. 8C.
26
VOZ do subúrbio. Isto É, São Paulo, 25 mai. 1994, p. 47.
42
brasileiros à Rede Globo de Televisão. Em seu estudo, o pesquisador aponta que essa rejeição
à mídia se intensificou devido ao racismo histórico observado nas grandes mídias, tornando-se
notória quando o rapper Mano Brown rejeitou um convite para participar de uma entrevista na
Rede Globo em 1999. O autor observa que apesar de vários rappers hoje em dia já aceitarem
participar de programas de televisão em grandes emissoras como a Globo, alguns mantiveram
sua postura de recusa. A exemplo disso, o autor cita os casos dos membros do Racionais MCs
Ice Blue, KL Jay e Edi Rock, que após terem criticado as redes de televisão, posteriormente
foram à Globo, com exceção de Mano Brown, apesar de este último ter aceitado participar de
outros programas e ser capa da revista Rolling Stones 27. Por outro lado, o autor também cita os
exemplos dos rappers GOG, que chegou a rejeitar seis convites da emissora, e Marechal que
foi à Globo, no entanto com o intuito de criticá-la ao vivo (MENDONÇA JÚNIOR, 2014).
Dando continuidade aos seus estudos, Mendonça Júnior (2020) ressalta que Eduardo
Taddeo não aceita entrevistas em quaisquer canais de televisão desde o ano 2000, devido ao
episódio em que o videoclipe da música Isso aqui é uma guerra do grupo Facção Central foi
censurado após ação movida pelo promotor de justiça do Ministério Público Carlos Cardoso 28.
Segundo relata Mendonça Júnior (2020), o Facção Central foi a diversos programas de televisão
e explicou que o videoclipe retrata a realidade de muitos na periferia, que geralmente não têm
alternativa senão aderir ao crime para garantir a própria sobrevivência, de forma que o objetivo
do grupo era alertar esse problema à sociedade e não incentivar a prática de novos crimes. O
27
CARAMANTE, A. Eminência Parda. Rolling Stones, São Paulo, 11 jan. 2010. Disponível em:
<https://rollingstone.uol.com.br/edicao/39/mano-brown-eminencia-parda/>. Acesso em 16 mar. 2022.
28
CARVALHO, L. M. O bagulho é doido, tá ligado? Entre o crime e a indústria cultural, a viagem dos rappers
do Facção Central ao coração do Brasil. Piauí, São Paulo, 10 jul. 2007. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-bagulho-e-doido-ta-ligado/>. Acesso em 1 mar. 2022.
43
autor destaca que os integrantes do Facção Central consideram que a repercussão do caso na
mídia contribuiu para a imagem de criminalização vinculada ao grupo, o que fez Eduardo
Taddeo desenvolver uma aversão aos principais veículos de comunicação do Brasil, acusando-
os de incentivar a violência urbana e contribuir com estereótipos dados aos moradores das
periferias, passando a não mais aceitar convites para entrevistas em grandes emissoras pelo
resto de sua carreira. Embora seja considerado um ícone da intervenção social e da luta por
direitos, Eduardo Taddeo considera incongruente julgar um outro periférico por falar o que
deseja, por isso não questiona quem não assume a mesma postura que ele, observa o
pesquisador (MENDONÇA JÚNIOR, 2020).
Do ponto de vista do consumo nesse novo cenário, o gerente do Centro Regional para o
Desenvolvimento de Estudos sobre a Sociedade da Informação (Cetic.br), Alexandre Barbosa,
observa que o Brasil passou de uma situação em que os usuários de internet faziam download
de músicas e vídeos em um passado recente para hoje fazerem esse consumo de forma online,
através de plataformas de streaming como YouTube, Netflix e Spotify. Pelo menos é o que indica
a pesquisa realizada em 2019 pelo órgão, vinculado ao CGI.br – Comitê Gestor da Internet no
Brasil – que aponta que, entre os usuários de internet entrevistados, 74% assistiram a
programas, filmes, vídeos ou séries e 72% ouviram música online em 2019 29. O consumo de
29
CONSUMO de vídeo e áudio online cresce no Brasil, aponta pesquisa. Época Negócios, Rio de Janeiro, 31
mai. 2020. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2020/05/consumo-de-video-e-audio-
online-cresce-no-brasil-aponta-pesquisa.html>. Acesso em 23 mar. 2022.
44
música rap por meios dessas plataformas também tem crescido e conquistado lugar de destaque
dentre os gêneros musicais mais ouvidos em plataformas como o Spotify desde 2017, quando
chegou a ultrapassar o rock como gênero musical mais ouvido nos Estados Unidos, país de
origem do gênero 30.
Os rappers, por sua vez, aparentam reagir de maneiras distintas, de acordo com suas
convicções pessoais, ao surgimento dessas novas tecnologias de comunicação. Mendonça
Júnior (2014) observa que o rapper GOG, por exemplo, não é muito adepto à tecnologia, usando
muito pouco o aparelho celular e comumente trocando o número pessoal de contato. No entanto,
o autor destaca que o artista utiliza seu perfil nas redes sociais Instagram, YouTube e
Facebook 31 para expressar suas opiniões oficiais. Segundo o autor, o rapper acredita em uma
periferia da internet, onde a música possa ser compartilhada de maneira gratuita e livre de
anúncios pagos (MENDONÇA JÚNIOR, 2014).
Já o rapper Mano Brown – que deu início a essa rejeição à mídia no país após sua recusa
ao convite da Globo em 1999 – aparenta ter seguido um caminho diferente, passando a
apresentar um podcast próprio na plataforma de streaming de áudio Spotify, o Mano a Mano
(Figura 13). O referido podcast teve o episódio mais ouvido da plataforma no Brasil em 2021,
na ocasião em que recebeu como convidado o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva 32. O
rapper também acabou concedendo entrevistas a outros programas no mesmo formato, como o
Podpah 33 em 2022, podcast transmitido através da plataforma de streaming de vídeo YouTube.
O referido programa recebe costumeiramente artistas de rap para conceder entrevistas,
inclusive já havia recebido outros integrantes do Racionais MCs anteriormente, como Ice Blue 34
e Edi Rock 35, com exceção apenas de KL Jay, que ainda não participou do programa.
30
RAP supera o rock e o pop como gênero musical mais popular nos EUA, O Globo, Rio de Janeiro, 4 jan.
2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/musica/rap-supera-rock-o-pop-como-genero-musical-
mais-popular-nos-eua-22253134>. Acesso em 13 jul. 2019.
31
Perfil de GOG no Facebook. Disponível em: <https://www.Facebook.com/gogpoeta/>. Acesso em 23 mar.
2022.
32
ENTREVISTA de Lula a Mano Brown é o podcast mais ouvido no Spotify em 2021. Carta Capital, 1 dez.
2021. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/entrevista-de-lula-a-mano-brown-e-o-
podcast-mais-ouvido-no-Spotify-em-2021/>. Acesso em 16 mar. 2022.
33
MANO Brown - Podpah #351 [S. l.: s. n.], 2022. 1 vídeo (2h53m57s). Publicado pelo canal Podpah.
Disponível em: <https://youtu.be/aahyLNH4PrE>. Acesso em 23 mar. 2022.
34
ICE Blue - Podpah #91 [S. l.: s. n.], 2021. 1 vídeo (4h1m15s). Publicado pelo canal Podpah. Disponível em:
<https://youtu.be/0eEC42Lotfg>. Acesso em 23 mar. 2022.
35
EDI Rock - Podpah #227 [S. l.: s. n.], 2021. 1 vídeo (2h58m42s). Publicado pelo canal Podpah. Disponível
em: <https://youtu.be/aahyLNH4PrE>. Acesso em 23 mar. 2022.
45
Figura 13: Publicidade do Mano a Mano, podcast apresentado pelo rapper Mano Brown na plataforma Spotify.
Fonte: Colletivo (arte) e Pedro Dimitrow (foto), 2021.
Aparentemente o podcast é um formato que apresenta uma visível ascensão nos hábitos
de consumo de conteúdo entre os usuários de internet brasileiros. De acordo com a
“Podpesquisa Produtor 2020/2021” 36, realizada pela Associação Brasileira de Podcasters
(Abpod), cerca de 70,3% dos produtores de podcasts entrevistados iniciaram suas atividades a
partir de 2018. A estimativa da associação é de que hoje exista um público de aproximadamente
34,6 milhões de ouvintes no Brasil, país que segundo aponta o relatório internacional “State of
the Podcast Universe” 37, publicado pela Voxnest, ocupa o quinto lugar no ranking de países
onde a produção de podcasts mais cresceu desde 2020. Em uma rápida “navegada” por entre as
listas de recomendações de plataformas de streaming de música como Spotify que, segundo a
Abpod, é utilizado por cerca de 87,2% dos ouvintes de podcast, não é muito difícil encontrar
sugestões de produções do gênero, que muitas vezes se assemelha a um programa de rádio ou
de entrevistas, abordando temas sérios como direito e ciência ou simplesmente para debater
trivialidades ou contar histórias com um teor de “conversa de bar”. Alguns, geralmente os
transmitidos ao vivo em plataformas de streaming de vídeo como o YouTube, regularmente
recebem artistas de rap para conceder entrevistas, já outros são exclusivamente dedicados ao
assunto, como é o caso do RAP, falando, que em 2022 recebeu o DJ do grupo Racionais MC’s,
KL Jay 38.
36
LOURES, A; CASTRO, F. Nas ondas do áudio: 8% dos brasileiros ouvem podcast e tendência só cresce.
Exame, São Paulo, 13 abril 2021. Disponível em: <https://exame.com/bussola/nas-ondas-do-audio-8-dos-
brasileiros-ouvem-podcast-e-tendencia-so-cresce/>. Acesso em 23 mar. 2022.
37
2020 Mid-Year Podcast Industry Report. Voxnest, 30 jul. 2020. Disponível em:
<https://blog.voxnest.com/2020-mid-year-podcast-industry-report/>. Acesso em 23 mar. 2022.
38
KL Jay | Programa RAP, falando: Ep. 01, Temp. 02 [S. l.: s. n.], 2022. 1 vídeo (3h04m23s). Publicado pelo
canal RAP, falando. Disponível em: <https://youtu.be/aahyLNH4PrE>. Acesso em 23 mar. 2022.
46
Sabe-se, porém, que isso representa apenas uma das formas de difusão e consumo de
músicas de rap e conteúdos relacionados, uma vez que o estilo também se utiliza de formas
alternativas de divulgação fora do eixo das mídias tradicionais, conforme vimos anteriormente.
Não obstante, as reflexões feitas a partir dos tópicos elucidados nesse subcapítulo levantaram
questões acerca da relação que alguns artistas de rap desenvolveram com as mídias ao longo
do tempo. Questões como: o que motiva essa relação por vezes conflituosa? Qual a razão do
conflito? Esse conflito é tensionado por interesses de ambos os lados, visando o benefício
próprio? Ou é uma relação que se dá a partir de uma identificação genuína ou gerada a partir de
um sentimento de pertencimento? É difícil saber ao certo, pois trata-se de uma relação complexa
que envolve uma série de agentes e instituições que compreendem um recorte do tecido social
que vem se desenvolvendo há algumas décadas. O que certamente indica a necessidade de um
aprofundamento teórico quanto a essas questões.
No entanto, a partir das bibliografias aqui trazidas, foi possível observar, por exemplo,
que as opiniões dos artistas de rap podem variar, chegando até mesmo a serem antagônicas.
Como vimos, alguns tiveram repulsa aos veículos de comunicação em um primeiro momento,
mesmo que tenham mudado de ideia ao longo de suas carreiras, enquanto outros optaram por
manter seus posicionamentos, mesmo não cobrando tal postura de outros artistas. Vimos
também que, enquanto alguns rappers podem defender uma postura contrária à indústria
fonográfica e as grandes gravadoras, mesmo que também mudem de opinião com o tempo,
outros podem apresentar pensamentos semelhantes, divergentes ou até mesmo radicalmente
opostos. Isso, no entanto, não significa dizer falta clareza intelectual ao movimento pois, como
vimos, trata-se e um movimento expressa uma diversidade de opiniões e pontos de vista.
Por outro lado, percebeu-se que a mídia também teve suas movimentações nessa
relação, inicialmente ignorando ou criminalizando artistas de rap através de matérias
jornalísticas muitas vezes tendenciosas, resultando em casos de censura, mas logo mudando a
postura a partir do momento que o rap começou a se consolidar como um gênero musical
lucrativo. De todo modo, tanto os aspectos aqui discutidos, quanto os questionamentos gerados
a partir dessa discussão, se somam às reflexões que buscam compreender como o rap dialoga
com as estruturas de poder que geralmente são alvos de críticas em suas letras, como o Estado
– cujos interesses são ocasionalmente defendidos pela polícia – e a mídia. Além disso, outra
instituição tradicional que também é alvo de críticas nas letras de rap é o ensino formal, cuja
relação iremos abordar com mais detalhes no subcapítulo a seguir.
47
De volta ao contexto das posses que, como vimos, tiveram papel fundamental no
desenvolvimento do movimento hip-hop, Silva (1999), considera que uma iniciativa exitosa no
quesito integração entre cultura hip-hop e educação no Brasil foi o Projeto Rappers, realizado
a partir de 1991 pela organização não-governamental (ONG) Instituto da Mulher Negra
Geledés, fundada em 1988 “com o objetivo de combater a discriminação racial e de gênero na
sociedade brasileira e desenvolver propostas de políticas públicas que promovam a equidade de
gênero e raça” (p. 93). A partir da atuação desse projeto:
Andrade (1999) destaca a ação da Posse Hausa 39, de São Bernardo do Campo, região
metropolitana de São Paulo, cujas atividades a autora acompanhou entre 1994 e 1996 e
constatou que suas ações podem ser consideradas tanto culturais quanto pedagógicas, pois
envolvem desde a elaboração de letras ou grafites e realização de eventos artísticos ou culturais
à produção de panfletos biográficos sobre personalidades negras e organização de movimentos
de rua. Nessas ações “os rappers se tornam sujeitos da História” (ANDRADE, 1999, p. 91).
Sobre os processos criativos e dialógicos promovidos no ambiente da posse, a autora relata:
O termo “violência simbólica” utilizado pela autora, retratado como algo a ser superado
pelos jovens negros e periféricos, remete à teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu.
Segundo Bourdieu (1989), esse tipo de violência ocorre quando há uma imposição cultural, por
meio de símbolos e signos culturais, de uma classe dominante a uma classe dominada. De
39
POSSE Hausa - Banzo Bantu - Campanário - Anos 90 - Hip-hop - Velha Escola [S. l.: s. n.], 2014. 1 vídeo
(20m43s). Publicado pelo canal Honerê Al-amin Oadq. Disponível em: <https://youtu.be/aahyLNH4PrE>.
Acesso em 26 mar. 2022.
49
acordo com o sociólogo, a violência simbólica se sustenta nas estruturas sociais e normas do
mundo civilizado fazendo com que, de certa forma, a classe oprimida reconheça essa violência
como legítima. Tal consentimento ocorre porque essa imposição é compreendida pelo oprimido
como uma não violência, por entender que certas autoridades são funcionais para a sociedade
e, portanto, devem ser respeitadas. Os espaços e instituições onde a violência simbólica
normalmente se manifesta são a mídia, a religião, a arte, o sistema de ensino escolar e a família.
Desse modo, a violência simbólica atua no campo das subjetividades impondo padrões para
garantir a unidade do sistema e prevenir a formação de células de resistência (BOURDIEU,
1989). Esse mesmo tipo de violência é retratada em uma música lançada em 2018 pelo rapper
angolano MCK, intitulada “Violência simbólica”, cuja letra propõe uma análise da conjuntura
sociopolítica de Angola, tendo como referência o conceito homônimo do sociólogo francês.
Vejamos o seguinte trecho:
Violência simbólica
(MCK, 2018, faixa 6)
De acordo com Mendonça Júnior (2020), que analisou o conteúdo das letras de MCK
em sua pesquisa, o rapper indica na letra dessa música os espaços onde a violência simbólica
se manifesta em Angola. Segundo observa o autor, MCK acredita que os veículos de
comunicação atuam conforme os interesses do Movimento Popular de Libertação de Angola
(MPLA), assim como as escolas que, como sugere a letra, ensinam de acordo com a cartilha do
partido. O rapper defende a ideia de que as opiniões daqueles que possuem formação acadêmica
em seu país são geralmente reproduzidas a favor do partido, visando algum benefício próprio
em troca, como cargos privilegiados setores ligados direta ou indiretamente à administração
pública (MENDONÇA JÚNIOR, 2020).
50
Outro caso analisado por Mendonça Júnior (2020) é o do rapper português, filho de
cabo-verdianos, Chullage, que também critica em suas músicas o academicismo elitista e o
sistema midiático português. De acordo com o autor, tal crítica voltada principalmente aos
elitistas reformistas que não conseguem dialogar com os grupos e lutas populares abordados
em seus estudos, tornando-os meros objetos de pesquisa inanimados. Para o artista, o que
acontece nesses casos é uma apropriação, pois quando os saberes populares são convidados
para dialogar nos ambientes formais de educação, há uma perspectiva de que tais saberes sejam
forçadamente enquadrados nos formatos padrões de conhecimento adotados pelas instituições
de ensino. Segundo Mendonça Júnior (2020), tal postura crítica adotada por Chullage dificultou
inclusive no desenvolvimento da sua pesquisa, uma vez que o artista tende a rejeitar convites
para participar de entrevistas e atividades acadêmicas em instituições formais de ensino
superior, conforme podemos constatar no trecho a seguir:
Ademais, Mendonça Júnior (2020) constata em sua pesquisa que tal postura adotada por
Chullage, semelhantemente a outros artistas de rap, se dá ao fato de que tais artistas acreditam
que sua música se destina, principalmente, à população preta e periférica, aos chamados
40
MCK - Violência simbólica [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (3m55s). Publicado pelo canal Canal da Diferencial.
Disponível em: https://youtu.be/DmddT9lCaYw. Acesso em 29 mar. 2022.
51
intelectuais orgânicos e não aos intelectuais pós-modernos, elitistas e reformistas. Uma postura
semelhante quanto a essa relação também pode ser observada no grupo de rap brasileiro Gíria
Vermelha. Na letra da música “Homens de cátedras”, lançada em 2015 pelo grupo maranhense,
os artistas demonstram sua insatisfação com os acadêmicos elitistas e seus discursos de difícil
compreensão que, segundo a visão dos rappers, pouco dialoga com os sujeitos que vivem a
realidade social que estudam.
Homens de cátedras
(Gíria Vermelha, 2015, faixa 6)
[...]
Catedrático, emblemático
Cheio de palavras-chaves
Pra distorcer a realidade
Engana até Mestre dos Magos
Indecifrável, enigmático
Escreve linhas e artigos
Depois junta tudo isso
Num combate ao comunismo
Fala, fala, fala muito
Contra todo socialismo
Diz que a foice e o martelo
Está morto e destruído
Que seus sonhos não valeram
Que a vida é mesmo assim
Que o Capital venceu
Com o fim do Muro de Berlim
Pessimista pra igualdade
Otimista pra miséria
Publica livros e mais livros
De autoria pós-moderna
Que não há classe, que não há raça
Que a exploração feita em massa
É produto do discurso
De nossa mente e linguagem
Fragmentado, descentrado
Homem de múltiplas faces
Não é branco, não é negro
Vai ver que se chama de mulato
Mas não vive na miséria
Nunca viu uma favela
Nunca viu preto com fome
A não ser em sua tela
HD digital high definition
Chama pobreza de contingência do destino
Mas veja só, saca só, tamo aqui
Não faço rap pra intelectual curtir
[…]
52
Além disso, estudos relacionados ao hip-hop e seus elementos ainda enfrentam certa
dificuldade em serem aceitos como conhecimento científico nas universidades. Apesar disso, o
hip-hop aparenta ter feito avanços em conquistar cada vez mais os espaços das instituições de
ensino. Em suas aulas na Duke University, Mark Anthony Neal costuma utilizar músicas do
rapper Jay-Z para discutir temas como racismo, crime, pobreza, misoginia e até mesmo
linguística em suas aulas. Segundo o professor, o fato de os alunos já conhecerem previamente
as letras das músicas facilita a compreensão das teorias e reflexões relacionadas a elas. Além
disso, em 2002, a Universidade de Harvard criou o Hip Hop Archive, com o objetivo de
catalogar livros, teses, álbuns, vídeos e demais materiais relacionados ao hip-hop 43. A iniciativa
também financia pesquisas sobre o tema, que carece de dados sobre a história do movimento 44.
Também foi na Universidade de Harvard que o aluno Obasi Shaw ganhou um título de honra
ao apresentar um álbum de rap inédito com músicas autorais como forma de obtenção do título
de licenciatura em Língua e Literatura Inglesa, ao invés do tradicional método monográfico de
entrega de trabalho de conclusão de curso 45.
43
MISSION. Hip Hop Archive, Boston. Disponível em: <http://hiphoparchive.org/about/mission/. Acesso em 21
fev. 2022>.
44
SUPPORT Hari. Hip Hop Archive, Boston. Disponível em: <http://hiphoparchive.org/about/support-hari/>.
Acesso em 21 fev. 2022.
45
ALUNO de Harvard ganha título de honra com álbum de rap entregue como tese. O Globo, Rio de Janeiro, 22
mai. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/aluno-de-harvard-ganha-titulo-de-honra-
com-album-de-rap-entregue-como-tese-21373321>. Acesso em 9 ago. 2022.
54
46
CORNELL Hip Hop Collection. Cornell University Library, Ithaca. Disponível em:
<http://rmc.library.cornell.edu/hiphop/>. Acesso em 21 fev. 2022.
47
FST 2012: Boaventura de Sousa Santos vira rapper em ensaio de hip-hop baseado em sua obra [S. l.: s. n.],
2012. 1 vídeo (1m48s). Publicado pelo canal FSTematico2012. Disponível em: <https://youtu.be/xciJlb4aVmI>.
Acesso em 9 ago. 2022.
48
AULA Magistral #5 ‘A arte e as Epistemologias do Sul: as linguagens da libertação’ [S. l.: s. n.], 2018. 1
vídeo (1h15m5s). Publicado pelo canal Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Disponível
em: <https://youtu.be/7y_W6UWnIXk>. Acesso em 9 ago. 2022.
55
mais sua atenção para o conteúdo que está sendo ministrado, resultando em uma maior imersão
e envolvimento dos alunos nos processos de ensino e aprendizagem.
No Brasil, apesar de ainda modestos, também é possível notar avanços do hip-hop rumo
à ocupação de espaços nas instituições formais de ensino. Em 2015, o professor de jornalismo
Marcos Antonio Zibordi realizou um estudo sobre a produção acadêmica relacionada ao hip-
hop e seus elementos no contexto das principais universidades públicas do estado de São Paulo.
Zibordi (2015), que consultou repositórios da Universidade de São Paulo (USP), da
Universidade Estadual Paulista em Franca (UNESP) e da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), catalogou cerca de 110 trabalhos produzidos sobre hip-hop, rap e grafite. Já em
2021, a professora de antropologia da UNICAMP Jaqueline Santos organizou um ciclo de
palestras sobre pesquisas relacionadas ao hip-hop, intitulado “Seminários Internacionais de
Pesquisa: Hip Hop em Trânsito”, que colocou pesquisadores da área, nacionais e internacionais,
para debater sobre o tema em diversas sessões 49. Foi também na UNICAMP que foi criado o
“1º Arquivo Brasileiro de Hip-hop”, a partir de uma doação voluntária do acervo pessoal hip-
hopper e antropólogo paulistano King Nino Brown 50. Em Brasília, a Batalha da Escada, uma
batalha de rap que, assim como a Batalha do Coliseu, acontece dentro do ambiente
universitário, acabou se tornando uma disciplina integrante da grade curricular da Faculdade de
Comunicação na Universidade de Brasília (UnB) 51. A Batalha da Escada também é organizada
por alunos da UnB e, antes de se tornar disciplina, foi transformada em projeto de extensão, sob
a orientação da professora de jornalismo Márcia Marques.
49
SEMINÁRIOS Internacionais de Pesquisa | Hip Hop em Trânsito. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Campinas, 9 ago. 2021. Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/ifch/noticias-
eventos/programa-sociologia/seminarios-internacionais-pesquisa-hip-hop-transito-lancamento>. Acesso em 9
ago. 2022.
50
UNICAMP inaugura primeiro arquivo brasileiro de Hip-hop. Hora Campinas, Campinas, 12 nov. 2022.
Disponível em: <https://horacampinas.com.br/unicamp-inaugura-primeiro-arquivo-brasileiro-de-hip-hop/>.
Acesso em 9 ago. 2022.
51
BABU, D. Batalha de MCs será tema de disciplina da Universidade de Brasília. Correio Braziliense, Brasília,
26 jul. 2019. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-
arte/2019/07/26/interna_diversao_arte,773833/batalha-da-escada-se-torna-disciplina-da-unb.shtml>. Acesso em
9 mar. 2022.
56
relacionassem de alguma forma com as discussões debatidas no texto, que o hip-hop tem feito
consideráveis avanços para estreitar cada vez mais sua relação com a educação formal, apesar
da constante represália sofrida por parte da comunidade acadêmica. Vimos também que esse
contexto gera uma postura de repulsa em artistas de rap que, por sua vez, criticam o sistema de
ensino formal e, muitas vezes, se recusam a participar de atividades integrativas por não
apoiarem tais metodologias. No entanto, é possível ver iniciativas de integração do hip-hop com
disciplinas acadêmicas em universidades internacionais e também no Brasil, onde não só
existem iniciativas no tocante ao incentivo dos chamados “Hip Hop Studies”, que são os
estudos acadêmicos relacionados à cultura hip-hop em geral, como também foi possível
identificar iniciativas relacionadas diretamente a batalhas de rap, como foi o caso da já citada
Batalha da Escada, o exemplo que mais se aproxima do nosso objeto de estudo, a Batalha do
Coliseu, pelo fato de ser uma batalha de rap que acontece dentro do ambiente universitário. No
subcapítulo seguinte, abordaremos especificamente as batalhas de rap, suas características e
diferentes categorias, bem como uma breve contextualização sobre a ocorrência desse tipo de
evento no estado do Rio Grande do Norte, finalizando o capítulo.
O antropólogo brasileiro Ricardo Indig Taperman (2011) aponta ser possível observar
o aspecto de rivalidade presente nas diversas formas de expressão oriundas do hip-hop, como
nas disputas por visibilidade na paisagem urbana existentes no grafite, as “firulas” técnicas
executadas pelos DJs, os campeonatos de break e também os duelos de MCs. De acordo com a
professora de letras Rôssi Alves (2013), autora do livro “Rio de rimas”, que aborda o contexto
57
das batalhas e rap no Rio de Janeiro, esses duelos, também chamados de batalhas de rap,
batalhas de rima ou batalhas de freestyle, acontecem geralmente na rua, em encontros realizados
por grupos de hip-hoppers.
Por outro lado, conforme observa o musicólogo estadunidense Elijah Wald, a origem
das batalhas de rimas pode remeter a um período muito anterior ao surgimento rap em si. Em
seu livro “The dozens: A history of Rap’s Mama”, publicado em 2012 pela Oxford University
Press, Wald (2012) explica que o jogo “the dozens”, uma forma de interação social que remete
às tradições verbais oriunda das cerimônias ritualísticas africanas, caracterizado como um duelo
verbal de piadas ofensivas e rimadas que se popularizou entre os negros americanos na primeira
metade do século XX, acabou influenciando inúmeros artistas e músicos da cultura popular
afro-americana. De acordo com o autor, no referido jogo, cujo gatilho geralmente é iniciado
com a interjeição “yo’ mama”, poderia ser de cunho agressivo, ofensivo, sagaz, brutal,
engraçado, estúpido, violento, psicologicamente intrigante, deliberadamente enganoso ou, até
mesmo, apresentar todas essas formas em uma única performance. Sendo permitido ofender
não só o seu adversário, como também amigos, parentes e membros da família, o que pode ser
facilmente percebido pelo jargão da brincadeira, que comumente inicia o ataque ao mencionar
a mãe do outro indivíduo. Apesar de considerar incertas as respostas acerca das origens do jogo,
Wald (2012) explica que as buscas por essas explicações remetem desde a versos cerimoniais
oriundo das igrejas latinas medievais, passando pelas plantações escravistas da região sul dos
Estados Unidos, até performances de jovens delinquentes e músicos do Mississipi a artistas da
música negra norte-americana como Chuck Berry.
A partir dessas duas abordagens sobre a historicidade das batalhas de rap, é possível
perceber que este tipo de manifestação cultural, assim como o hip-hop em si, surge em um
contexto urbano, no entanto, apesar de suas linguagens e características serem moldadas pelo
contexto em que surgem, suas origens remetem a tradições mais antigas, em sua maioria,
oriundas do continente africano. Assim como a batida rítmica e a tradição da oralidade presentes
no hip-hop como um todo, as batalhas e rap também carregam essa tradição da oralidade e
também da rítmica, ao considerarmos a métrica da fala necessária para a construção das rimas.
Tais características remetem à cultura africana trazidas pelos negros escravizados para as
Américas no processo de diáspora iniciado com a escravização dos povos africanos durante a
colonização do continente americano. No entanto, essas tradições foram se adaptando e sendo
moldadas aos contextos nas quais se inseriam, trazendo elementos da cultura popular urbana e
58
da globalização ao longo dos anos. Por essa razão, é possível identificar uma série de
performances culturais que podem ser entendidas como batalhas de rimas, a exemplo dos duelos
de embolada, de coco e de poesia tradicionais do Nordeste brasileiro, assim como diversos
outros exemplos que podem ser citados ao buscarmos diferentes tradições culturais ligadas ao
ritmo e à rima ao redor do mundo. No entanto, para alcançar os objetivos deste trabalho, iremos
nos ater especificamente às batalhas de rap, no contexto do hip-hop.
As batalhas de rap podem ser definidas como disputas entre MCs organizadas em duelos
de rimas improvisadas, também chamadas de freestyle ou apenas “free”. Apesar de centradas
na disputa entre rappers, as batalhas também podem incluir outras atrações como apresentações
de MCs e grupos de rap, bem como apresentações e batalhas de DJs, de dança e também de
poesia. Existem mais de um tipo de batalhas de rap, sendo a mais comum a batalha de sangue,
que propõe a vitória da melhor rima, permitindo inclusive que os adversários se agridam
verbalmente. É comum, quando o MC responsável pela apresentação da batalha pergunta: “O
que vocês querem ver?” A plateia responder prontamente: “Sangue!”. Com o objetivo de
“esculachar” o oponente, os rappers geralmente constroem suas rimas a partir de características
pessoais ou físicas e até mesmo “segredos” de seus adversários. Quanto mais ousada for a
performance do rapper, mais chance ele tem de ganhar, apesar de o público não aceitar qualquer
tipo de ofensa, como xingamentos mútuos e direcionados a terceiros (ALVES, 2013).
Os participantes têm 45 segundos cada para proferir seus ataques. A decisão de quem
começa é feita por meio de sorteio, geralmente par ou ímpar. O segundo a rimar tem a vantagem
de pensar no que vai dizer durante a performance do primeiro, embora seja ele que dê início ao
segundo round, o que, por sua vez, permite que o primeiro pense na devida resposta. “Rimar
sobre o que o adversário disse, utilizando-se das afirmações dele, é uma estratégia muito
valorizada pelo público – é a articulação da resposta de um MC ao ataque do outro que ajuda
muito a definir o vitorioso” (ALVES. 2013, p. 28).
Apesar das definições que geralmente se aplicam a boa parte das batalhas de rap
conhecidas, existem diversos tipos e formatos de batalhas de rap ao redor do mundo, com suas
próprias regras e formas de organização. Em Angola, por exemplo, existe a batalha conhecida
como Reis do Rompimento Primeira Liga (RRPL) 52, na qual os duelos são definidos com dias
de antecedência, permitindo assim que os rappers estudem seus adversários e preparem seus
ataques baseando-se nas características de seus adversários. Logicamente, as rimas não são
feitas de improviso, mas escritas e decoradas pelos seus autores e recitadas na hora, sem o
acompanhamento de alguma batida eletrônica, se assemelhando mais ao formato das
apresentações e batalhas de slam 53, o que necessariamente das batalhas de freestyle
propriamente ditas, no contexto do hip-hop, com rimas improvisadas e acompanhamento
musical.
52
#RRPL Apresenta Salomão Rei VS Hidra "Final da 7 Temporada" Ep 32 [S. l.: s. n.], 2021. 1 vídeo
(1h5m21s). Publicado pelo canal Reis do RompimentoTV. Disponível em: <https://youtu.be/Rv5PbMscbss>.
Acesso em 10 ago. 2022.
53
O poetry slam é uma batalha de poesia falada, na qual cada participante deve apresentar em aproximadamente
três minutos uma poesia inédita e autoral sem o auxílio de adereços de cena ou acompanhamento musical
(FREITAS, 2020).
54
#FMSESPAÑA Jornada 5 Temporada 5 - #FMS22 | Urban Roosters [S. l.: s. n.], 2022. 1 vídeo (5h42m45s).
Publicado pelo canal Urban Roosters. Disponível em: <https://youtu.be/kB2gmiCvl50>. Acesso em 10 ago.
2022.
55
#FMSARGENTINA Jornada 3 Temporada 4 - #FMS22 | Urban Roosters [S. l.: s. n.], 2022. 1 vídeo
(5h38m45s). Publicado pelo canal Urban Roosters. Disponível em: https://youtu.be/_-DxRpFt8Z8. Acesso em
10 ago. 2022.
56
RED Bull Batalla: Official Event Page. Red Bull. Disponível em: <https://www.redbull.com/br-pt/event-
series/red-bull-batalla>. Acesso em 10 ago. 2022.
61
como a música. Já no Brasil, o evento mais conhecido de batalhas de rap é o Duelo de MCs 57,
originário de Belo Horizonte/MG. Anualmente ocorre o Duelo de MCs Nacional, que reúne
rappers de todas as regiões do Brasil, indicados através de seletivas regionais devidamente
organizadas e cadastradas no evento. O coletivo Família de Rua se articula com os coletivos
regionais e estaduais para garantir a lisura das fases seletivas, que definem os MCs que
representarão seus estados na grande final.
LICKETY
57
Organizado pelo coletivo Família de Rua, o Duelo de MCs ocorre desde 2007 no viaduto Santa Tereza em
Belo Horizonte (MG), realizando anualmente o Duelo de MCs Nacional, que geralmente acontece no mês de
dezembro, atraindo rappers de todo o país, previamente selecionados nas batalhas devidamente cadastradas nos
coletivos de rap de seus respectivos estados. A Batalha do Coliseu, por exemplo, é integrada ao Coletivo das
Batalhas do Rio Grande do Norte, cujo perfil pode ser acessado na rede social Instagram através do link
disponível em: <https://www.Instagram.com/cooperativadasbatalhasdorn/>. Acesso em 29 ago. 2022.
62
Em outra batalha, dessa vez contra o rapper Lotto, B. Rabbit também é atacado pelo seu
adversário devido à cor da sua pele, enfatizando uma narrativa de não pertencimento:
LOTTO
Além de ser branco, B. Rabbit também se torna alvo de chacotas por morar em um
trailer com a mãe solteira e ser pobre, precisando trabalhar para ajudar com as despesas da
família, enquanto o grupo composto por alguns dos MCs que o enfrentaram é liderado por um
MC muito respeitado na cidade, com pinta de traficante, que sempre aparece trajado em roupas
de grife e a bordo de carros caros. Seu nome é Papa Doc. O clímax do filme se dá justamente
na batalha de B. Rabbit com Papa Doc que, para a surpresa de todos, tem seu maior segredo
revelado pelas rimas de seu adversário, tornando-se o cerne para o ataque de B. Rabbit a Papa
Doc. O segredo é que, apesar de ser negro e sustentar uma aparência de gangster, Papa Doc
vem de um contexto familiar muito mais confortável do que B. Rabbit, tendo estudado em
escola particular e sempre convivido em um ambiente familiar saudável, ao contrário de B.
Rabbit, que além das dificuldades financeiras sempre presentes em sua vida, também teve que
enfrentar o abandono paternal e a violência doméstica do atual companheiro de sua mãe, que
constantemente coloca a sua vida, da sua mãe e da sua pequena irmã em risco.
B. RABBIT
[…]
Nesses versos é possível perceber uma postura muito comum nas batalhas de rap:
quando o MC assume a postura de mais durão, alegando ter passado por mais dificuldades,
logo, sendo melhor que seu adversário. Essa foi a principal arma utilizada no ataque de B.
Rabbit a Papa Doc pois, apesar de ser menos respeitado na cena rap da cidade e aparentar menos
ser um artista bem-sucedido, o rapper branco interpretado por Eminem provou seu valor ao
mostrar ser mais “casca grossa” que seu adversário, merecendo assim o respeito da plateia e a
vitória naquela batalha. No entanto, iremos nos aprofundar mais nos discursos utilizados nas
rimas em batalhas de rap no capítulo analítico, considerando especificamente o contexto da
Batalha do Coliseu.
64
Figura 16: Cena do filme “8 mile”, na qual B. Rabbit enfrenta Papa Doc.
Fonte: IMDB, 2002.
A arquiteta e urbanista potiguar Sarah Esli de Lima Souza (2019), que investigou a
apropriação dos espaços públicos por batalhas de rap em Natal, aponta que o primeiro evento
desse tipo na cidade aconteceu em 2005. No mesmo ano, alguns hip-hoppers já haviam pensado
em realizar um evento dessa natureza no período próximo às festividades de Reis, em janeiro,
dando origem ao Som de Reis. O projeto, pensado inicialmente para ocorrer somente no mês
de janeiro, logo ganhou força e passou a acontecer no início de todos os meses na Praça André
de Alburquerque, localizada no bairro Cidade Alta, Zona Leste da cidade. Por ser conhecida
58
MENDONÇA, J. Confira os vencedores da 16ª Edição do Prêmio Hangar de Música. Potiguar Notícias,
Natal, 4 dez. 2018. Disponível em: <http://www.potiguarnoticias.com.br/noticias/39916/confira-os-vencedores-
da-16a-edicao-do-premio-hangar-de-musica>. Acesso em 16 jul. 2019.
59
SHOWS, espetáculos infantis e dança na Agenda Cultural do fim de semana. Prefeitura do Natal, Natal, 21
jul. 2017. Disponível em: <https://www.natal.rn.gov.br/news/post/26526>. Acesso em 21 fev. 2022.
65
popularmente com Praça Vermelha, logo o evento se tornou a Batalha da Vermelha, dando
origem às batalhas de rap em Natal. Logo, outros espaços também foram sendo apropriados
para a realização de batalhas de rap, como a pista de skate e estacionamento do Supermercado
Nordestão, localizados no conjunto Santa Catarina, bairro Potengi, Zona Norte da cidade, e o
ginásio do bairro Cidade da Esperança, na Zona Leste (SOUZA, 2019). Ao longo da realização
dessa pesquisa, registramos a atividade de mais batalhas na cidade de Natal e nas cidades
metropolitanas e do interior, às quais foram dispostas na tabela a seguir (Tabela 1), que indica
os nomes das batalhas, seguidos do local e data de realização das seletivas estaduais para as
batalhas cadastradas na Cooperativa de Batalhas do RN. As batalhas não cadastradas e sem data
marcada para seletiva estadual de 2022 estão indicadas com um asterisco (*), seguido apenas
do dia e horário de realização corriqueiros.
Tabela 1: Batalhas de rap do RN com datas das seletivas para as batalhas filiadas à CDB.
Batalha do Coreto Pça. Des. Celso Sales (S. J. do Mipibu) 20/08 15h30
Batalha dos Pitbulls* Rua Serra do Mel, 8055 (Natal) Sextas 18h30
66
Com isso, finalizamos a contextualização histórica proposta por este capítulo. Buscamos
abordar apenas os elementos necessários para uma melhor compreensão sobre o movimento
hip-hop, suas raízes culturais e suas ligações com questões sociais como racismo, sexismo,
colonialismo e outras formas de opressão. Tal abordagem visou uma contextualização modesta,
no entanto suficiente para discussão do tema, visto que o objetivo deste trabalho não é,
necessariamente, propor uma análise da historicidade do rap. No próximo capítulo, iniciaremos
a etapa teórica deste trabalho, que busca elencar conceitos e referenciais teóricos que auxiliem
na compreensão dos fenômenos socioculturais intrínsecos às práticas sociais e comunicativas
relacionadas à realização de batalhas de rap.
67
3 APROXIMAÇÕES TEÓRICAS
No primeiro subcapítulo, será discutido com as batalhas de rap podem, a partir de suas
características, ser compreendidas como uma forma de comunicação específica comum entre
os grupos sociais marginalizados, a folkcomunicação. Este conceito teórico, considerado
pioneiro nos estudos em comunicação no Brasil, foi apresentado pelo jornalista e pesquisador
pernambucano Luiz Beltrão (1971). Trata-se de um conceito fundamental para entender que
tipo de comunicação ocorre nas batalhas de rap e quem são seus agentes. Entendemos que os
processos de comunicação existentes nas batalhas podem ser caracterizados como formas de
folkcomunicação (BELTRÃO, 1971), pois se dão fora dos meios hegemônicos de comunicação
de massa, envolvendo setores e sujeitos considerados marginalizados pela sociedade, devido às
suas origens populares e periféricas.
da integração das mais diversas fontes do saber. Acreditamos que a concepção de “linhas
abissais” (SANTOS, 2007) define as divisões invisíveis presentes nas cidades que separam os
espaços periféricos e segregados, de onde muitos dos participantes da Batalha do Coliseu se
deslocam, para espaços de poder, como a universidade pública, local de realização da Batalha,
gerando interações sociais que são passíveis de integração, mas também de atrito. Ademais, o
conceito de “ecologia de saberes” (SANTOS, 2007) surge como uma proposta de integração
dos diferentes saberes oriundos dos diferentes setores da sociedade separados por essas linhas
abissais.
pode ter sido um fator determinante para a ocorrência dos conflitos observados durante a
realização dos eventos.
Quando o hip-hop surgiu e se popularizou nos Estados Unidos, na década de 1970, aqui
no Brasil, o jornalista brasileiro Luiz Beltrão já havia nos apresentado sua teoria da
folkcomunicação, primeira teoria da comunicação midiática genuinamente brasileira.
Defendida em 1967 na Universidade de Brasília, sua tese de doutoramento, intitulada,
“Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e
expressão de ideias”, outorgou-lhe o primeiro título de Doutor em Comunicação por
universidade brasileira (MELO, 2008). Apesar das diferenças temporais e geográficas
observadas entre esses dois temas, e porque não dizer, objetos de estudo, é possível estabelecer
relações entre eles, a partir das características que definem os processos de folkcomunicação.
popular tudo que se refere ao povo, aqueles que não utilizam os meios formais de comunicação.
Segundo Beltrão (1971; 2001), os sujeitos que integram os grupos marginalizados da sociedade
possuem papel fundamental na mediação dos discursos que circulam entre si. Por isso, suas
práticas também demandam atenção dos estudos na área de comunicação midiática.
Sousa Santos (2007) argumenta que o modelo colonial de exclusão radical, cujas linhas
abissais separavam a sociedade civil das regiões em estado de natureza, permanece até hoje no
pensamento e nas práticas modernas, separando o mundo humano do subumano. Para o autor,
a divisão gerada pelo pensamento abissal submete indivíduos do “outro lado da linha” a
condições indignas de negação de direitos, além de invisibilizar seus saberes e culturas, uma
vez que “o olhar hegemônico, localizado na sociedade civil, deixa de ver e declara efetivamente
como não-existente o estado de natureza” (p. 74). Para o autor, isso explica as desigualdades
sociais acentuadas pela globalização e a visão eurocêntrica ocidental predominante no
pensamento tradicional hegemônico, sustentados por três principais formas de dominação: o
colonialismo, o capitalismo e o heteropatriarcado. As linhas abissais também estão presentes
na arquitetura urbana, dividindo as cidades em zonas consideradas desenvolvidas e
subdesenvolvidas, centrais e periféricas. Em contraponto a essa realidade, Sousa Santos (2007)
propõe um pensamento pós-abissal, cuja principal premissa busca uma “ecologia de saberes”.
De acordo com Sousa Santos (2007), um pensamento “pós-abissal” para uma “ecologia
de saberes” baseia-se no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos, bem
como a sua incompletude. A “ecologia de saberes” (SANTOS, 2007) sugere uma “co-presença”
radical e integração de conhecimentos científicos e não-científicos, através de uma relação
dinâmica e sustentável, sem comprometer dos diferentes saberes, valorizando sempre o
72
princípio da prudência, que visa dar preferência às formas de conhecimento que garantem uma
maior participação dos grupos sociais envolvidos nos processos em questão. Na “ecologia de
saberes”, cruzam-se conhecimentos e ignorâncias para um uso contra-hegemônico da ciência,
ilustra Sousa Santos (2007), ao citar o exemplo da preservação da biodiversidade possibilitada
por conhecimentos de origem camponesa e indígena, ameaçados justamente pela crescente
intervenção da ciência moderna.
Uma dessas aproximações propostas por Sousa Santos foi como o rapper e geógrafo
brasileiro Renan Lélis Gomes, conhecido no meio hip-hop como Renan Inquérito. Para Gomes
(2012), apesar de ter surgido como forma de entretenimento, o hip-hop se tornou marcante
principalmente pelo seu caráter político. O autor explica que isso se deu pela similaridade entre
as condições sociais precárias sofridas nos bairros periféricos onde o movimento surgiu com a
realidade vivida nos diversos outros lugares por onde se espalhou (GOMES, 2012). O rapper-
geógrafo é um entusiasta do pensamento pós-abissal e da ecologia de saberes, e produziu uma
faixa, com participação de Boaventura de Sousa Santos, intitulada “Linha Abissal” 60, na qual
explica o conceito apresentado pelo sociólogo português.
Linha Abissal
(Renan Inquérito, 2018)
[...]
Vivemos separados no mesmo quintal
uma Linha Abissal
A divisão é tão profunda é tão desigual
uma Linha Abissal
Não posso aceitar que seja tão normal
essa Linha Abissal
60
INQUÉRITO e Boaventura de Sousa Santos | Linha Abissal [S. l.: s. n.], 2021. 1 vídeo (3m44s). Publicado
pelo canal Renan Inquérito. Disponível em: <https://youtu.be/AlHnMgu_Hys>. Acesso em 4 fev. 2022
73
Linha Abissal
Um mundo metropolitano e outro colonial
Linha Abissal
Que põe direitos humanos pra secar no varal
Linha Abissal
Que faz o navio negreiro parecer tão atual
Linha Abissal
[...]
Trata-se da segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia urbana
dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas selvagens são as zonas do
estado de natureza hobbesiano, as zonas de guerra civil interna existentes em muitas
megacidades em todo o Sul global. As zonas civilizadas são as zonas do contrato
social, e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defenderem,
transformam-se em castelos neofeudais, os enclaves fortificados que caracterizam as
novas formas de segregação urbana (cidades privadas ou condomínios fechados). A
divisão entre zonas selvagens e civilizadas está se transformando em um critério geral
de sociabilidade, em um novo espaço-tempo hegemônico que perpassa todas as
relações sociais, econômicas, políticas e culturais e que por isso é comum aos âmbitos
estatal e não-estatal (SANTOS, 2007, p. 90).
Ecologia de Saberes
(Boaventura de Sousa Santos & Renan Inquérito, 2021)
[...]
Longe das citações tradicionais e seus dizeres
Vem pra uma ecologia de saberes
Cruzar conhecimentos e ignorâncias
É a infância do saber
Não senhor
Para Canclini (2019), esse atraso não só evidenciou diferenças econômicas e sociais,
como também simbólicas entre países da América Latina e do Norte global. Sustentando
tensionamentos e dualidades construídas pelo pensamento hegemônico que distingue
subdesenvolvido e desenvolvido, arcaico e moderno, primitivo e civilizado, popular e erudito,
local e global, o que é inerente à sociedade e o que é exterior. Canclini (2019) observa que os
países latino-americanos são resultado da sedimentação, justaposição e entrecruzamento de
tradições indígenas, do hispanismo colonial católico, bem como das ações políticas educativas
e comunicacionais modernas (p. 73). O autor discorre:
Para Canclini (2019), não restam dúvidas de que a expansão urbana é uma das causas
que intensificaram a hibridação cultural. Segundo o autor, países latino-americanos que, no
começo do século tinham aproximadamente 10% de sua população nas cidades, hoje
concentram cerca de 60% a 70% nas aglomerações urbanas. Canclini (2019), no entanto,
destaca que o conceito de “sociedade urbana” não se opõe taxativamente ao “mundo rural”,
uma vez que o predomínio das relações de heterogeneidade sobre homogeneidade, ou o
contrário, não são atribuíveis apenas à concentração populacional das cidades. De acordo com
o autor:
Com o avanço das tecnologias e dos meios de comunicação de massa, países latino-
americanos passaram a consumir produtos culturais importados da Europa e Estados Unidos,
através do rádio, televisão, indústria fonográfica e cinema, favorecendo a hibridação de
culturas. Isso porque, fatores como a implementação de uma indústria midiática, e por
conseguinte uma indústria cultural, também podem ser observados nos processos de hibridação,
gerando uma cadeia de produção em massa de produtos culturais para atender às demandas do
mercado e da indústria. Nesse contexto, destaca-se o papel da mídia, em meio a essas
transformações socioculturais, ao se tornarem um grande agente mediador ou até mesmo
substituto das interações coletivas, onde a participação dos grupos populares relaciona-se cada
vez mais com uma “democracia audiovisual”, em que a realidade é produzida pelas imagens da
televisão (CANCLINI, 2019).
De acordo com Canclini (2019), a pós-modernidade deve ser entendida não como uma
etapa que se estabeleceu após a consolidação do mundo moderno, mas como uma oportunidade
77
de problematizar os vínculos errôneos por ele estabelecidos com as contradições que buscou
excluir para se disseminar. O autor difere modernidade/pós-modernidade de modernização, à
qual ele compreende como um processo de evolução sociocultural, tecnológica e científica, sem
vínculo direto com uma época específica ou a um recorte temporal. Canclini identifica, na
modernidade, dois processos de desarticulação cultural, diferentes entre si, porém
complementares: o descolecionamento e a desterritorialização. O primeiro, busca a recusa da
produção de bens culturais colecionáveis, desconstituindo a caracterização de “grandes obras”
como cultas ou eruditas e a restrição popular aos bens produzidos por uma comunidade
específica. Já o segundo busca descontruir antagonismos produzidos por ideias hegemônicas:
colonizador/colonizado e nacionalista/cosmopolita.
Nesse sentido, Bhabha (1998) argumenta que a interação cultural se torna um problema
quando as culturas que interagem entre si apresentam práticas muito distintas, gerando um
choque cultural, o que pode ocasionar má interpretação ou apropriação indevida de significados
associados a ambas as culturas. Segundo o autor, “a cultura só emerge como um problema, ou
problemática, no ponto em que há uma perda de significado na contestação e articulação da
78
vida cotidiana entre classes, gêneros, raças, nações” (BHABHA, 1998, p.63). O que Bhabha
propõe é ampliar o debate sobre as diferentes formas de interações culturais, considerando o
que impede ou causa as más interpretações sobre as práticas e símbolos oriundos de cada
cultura. O autor ressalta que, apesar de bem-intencionadas, muitas das iniciativas nesse sentido
tendem a superficializar o debate, evidenciando estereótipos e preconceitos criados a partir de
tais interações culturais, tornando tais debates recorrentemente moralistas.
De acordo com Pierre Bourdieu (1998), o capital cultural se apresenta em três principais
formas, os estados incorporado, objetivado e institucionalizado. No estado incorporado, o
capital cultural se manifesta através de conhecimentos e habilidades inerentes ao sujeito,
79
enquanto que, no estado objetivado, sob a forma de bens culturais (livros, quadros, dicionários,
instrumentos e máquinas, etc.). Já no estado institucionalizado, o capital cultural, se encontra
na forma de certificações escolares que, supostamente, atestam sua garantia, conferindo a ele
propriedades inteiramente originais (BOURDIEU, 1998).
Em seu estado fundamental, o capital cultural, segundo Bourdieu (1998), está ligado ao
corpo, o que pressupõe sua incorporação. Nesse sentido, sua acumulação exige um investimento
pessoal, para que se torne parte integrante do indivíduo, pago com aquilo que se tem de mais
pessoal, seu tempo. Logo, o acúmulo de capital cultural incorporado depende diretamente da
quantidade de tempo livre que o indivíduo tem disponível para investir, uma vez que não pode
ser transmitido instantaneamente. Bourdieu pontua, a necessidade de concepção dessa ideia de
propriedade, a partir da impossibilidade de se compreender tal fenômeno puramente pela lógica
econômica, apesar de o acúmulo de capital cultural estar diretamente relacionada ao acúmulo
de capital financeiro.
A economia das grandes coleções de pintura ou das grandes fundações culturais, assim
como a economia da assistência, da generosidade e dos donativos, repousam sobre
propriedades do capital cultural, das quais os economistas não conseguem dar conta.
Com efeito, o economicismo deixa escapar, por definição, a alquimia propriamente
social pela qual o capital econômico se transforma em capital simbólico, capital
denegado ou, mais exatamente, não reconhecido. Ela ignora, paradoxalmente, a lógica
propriamente simbólica da distinção que assegura, por acréscimo, benefícios materiais
e simbólicos aos detentores de um forte capital cultural que retira, da sua posição na
estrutura da distribuição do capital cultural, um valor de raridade (este valor de
raridade tem por princípio, em última análise, o fato de que nem todos os agentes têm
meios econômicos e culturais para prolongar os estudos dos filhos além do mínimo
necessário à reprodução da força de trabalho menos valorizada em um dado momento
histórico) (BOURDIEU. 1998, p. 75-76).
acumulação inicial (tempo que pode ser avaliado como tempo em que se deixa de
ganhar) (BOURDIEU. 1998, p. 76).
No estado objetivado, o capital cultural, de acordo com Bourdieu (1998) pode ser
transmitido tão facilmente quanto o capital econômico. Sendo transmissível somente sua
propriedade jurídica e não o que constitui a sua condição de apropriação específica. O autor
explica que, para adquirir máquinas, é necessário somente capital financeiro, no entanto, para
operá-las, conforme sua utilização específica, é preciso dispor de capital cultural incorporado.
A mesma lógica pode ser aplicada para bens culturais: a mera posse de um capital cultural
objetivado (como obras de arte, quadros e esculturas), não implica na posse do capital cultural
incorporado necessário para apreciar e interpretar tais obras. Bourdieu evidencia que o capital
cultural objetivado se manifesta de forma material e simbólica sob a condição de ser apropriado
por agentes “e utilizado como arma e objeto nas lutas que se travam no campo da produção
cultural [...] e, para além desses, nos campos das classes sociais onde os agentes obtêm
benefícios proporcionais ao domínio que possuem desse capital objetivado” (BOURDIEU,
1998, p. 78).
61
Heterofobia: ressentimento da diferença (BAUMAN, 1998).
81
Bauman (1998) argumenta que a razão para isso pode residir no fato de os judeus
representarem um ideal não nacional em meio a um cenário mundial de surgimento e
crescimento de nações cada vez mais desenvolvidas ou em desenvolvimento. Nesse contexto,
os povos judeus, devido à sua própria dispersão e onipresença territoriais, passaram a
representar um “inimigo interno” comum entra as nações, uma vez que suas fronteiras eram
estreitas demais para serem definidas e os horizontes curtos demais para se ver além deles. De
acordo com Bauman (1998):
Os judeus eram não somente diversos de qualquer outra nação; eram também
diferentes de quaisquer outros estrangeiros. Em suma, eles minavam a própria
diferença entre hóspedes e hospedeiros, entre nativo e estrangeiro. E à medida que a
nacionalidade se tornava a base suprema da autoconstituição do grupo, eles vinham
minar a mais básica das diferenças: aquela entre “nós” e “eles”. (p. 49)
Nesse contexto, o indivíduo judeu era visto como o estranho, o estrangeiro, em outras
palavras, o indivíduo que não se encaixa no modelo de cidadão estabelecido pelo estado para
integrar uma nação unificada e homogênea. Segundo Bauman (1998, p. 24), “todas as
sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de
estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável”. Por não se adequar aos padrões
morais, estéticos ou cognitivos, o estranho é, para Bauman, um ser considerado indesejável e
incômodo para o conjunto da sociedade, devendo, portanto, ser excluído dela. Apesar disso, o
sociólogo compreende que essa uniformização era uma concepção do estado, para desumanizar
os diferentes e condená-los à subserviência. De acordo com o autor:
De acordo com Bauman (1998), o objetivo dessa estratégia era expulsar os estranhos
para além das fronteiras e da jurisdição do estado ou, em última ocasião, eliminá-los
fisicamente. Bauman compreende que a imposição de um padrão social e a concepção do
estranho que não se adapta a esse padrão foi um processo crucial no estabelecimento da ordem
e de ideais unificadores como estado e nação. No entanto, isso ocasionou uma política de
“aniquilação cultural e física dos estranhos e do diferente” (p. 26), na qual os sujeitos que não
se adaptassem eram considerados anomalias a se aniquilar. Para Bauman, os estranhos não
precisavam ser vistos como uma ameaça a ser enfrentada permanentemente, e que isso nem
seria necessário “enquanto a vida moderna continuasse nas mãos de um estado bastante
ambicioso e bem-dotado para prosseguir na tarefa” (p.26). O conceito de estranho de Bauman
(1998) pode ser complementado pela visão de Santos (2002), acerca das linhas abissais, uma
vez que os sujeitos considerados estranhos são aqueles que perpassam os limites sociais a si
permitidos moralmente, passando a integrar espaços antes não ocupados por seus semelhantes,
gerando um processo de “outrificação” do sujeito.
83
4 CAMINHOS METODOLÓGICOS
Pode-se definir pesquisa como o procedimento racional e sistemático que tem como
objetivo proporcionar respostas aos problemas que são propostos. A pesquisa é
requerida quando não se dispõe de informação suficiente para responder ao problema,
ou então quando a informação disponível se encontra em tal estado de desordem que
não possa ser adequadamente relacionada ao problema (p. 17).
Quanto à natureza da pesquisa, Gil (1989) destaca que existem dois principais tipos de
pesquisa, segundo sua finalidade: a pesquisa pura e a pesquisa aplicada. Segundo o autor, a
pesquisa pura visa contribuir com os estudos científicos realizados sobre um determinado
84
Neste sentido, o método utilizado é o observacional que, de acordo com Gil (1989),
apesar de ser visto como primitivo, possibilita um maior nível de precisão nas ciências sociais.
O autor explica que, diferente de métodos como o experimental, no qual o cientista toma
providências para que algo ocorra, para então analisar o que se segue, no método observacional
o cientista apenas observa algo que já acontece ou aconteceu. Gil (1989) esclarece que, apesar
de existirem estudos que se concentram apenas no método observacional, outros utilizam-no
juntamente com outros métodos, sendo o mais comum. Segundo o autor, “pode-se afirmar com
85
muita segurança que qualquer investigação em ciências sociais deve valer-se, em mais de um
momento, de procedimentos observacionais” (GIL, 1989, p. 35).
Para o educador brasileiro Paulo Freire (1982), o objetivo das ciências sociais é
investigar os fenômenos da realidade concreta. No entanto, o autor considera que a realidade
concreta não se resume a um conjunto de informações e fatos sobre um determinado contexto,
cuja veracidade nos importa constatar. Ela é a soma de todas essas informações e fatos com a
percepção dos sujeitos nela envolvidos, ou seja, na relação dialética entre objetividades e
subjetividades. De acordo com Freire (1982), se uma pesquisa tem por objetivo resolver uma
86
Se, pelo contrário, a minha opção é libertadora, se a realidade se dá a mim não como
algo parado, imobilizado, posto aí, mas na relação dinâmica entre objetividade e
subjetividade, não posso reduzir os grupos populares a meros objetos de minha
pesquisa. Simplesmente, não posso conhecer a realidade de que participam a não ser
com eles como sujeitos também deste conhecimento que, sendo para eles, um
conhecimento do conhecimento anterior (o que se dá no nível de sua experiência
quotidiana) se torna um novo conhecimento. Se me interessa conhecer os modos de
pensar e os níveis de percepção do real dos grupos populares estes grupos não podem
ser meras incidências de meu estudo. Dizer que a participação direta, a ingerência dos
grupos populares no processo de pesquisa altera a “pureza” dos resultados implica na
defesa da redução daqueles grupos a puros objetos de ação pesquisadora de que, em
consequência, os únicos sujeitos são os pesquisadores profissionais. Na perspectiva
libertadora em que me situo, pelo contrário, a pesquisa, como ato de conhecimento,
tem como sujeitos cognoscentes, de um lado, os pesquisadores profissionais; de outro,
os grupos populares e, como abjeto a ser desvelado, a realidade concreta (FREIRE,
1982, p. 35).
Nesta pesquisa, propomos uma análise sobre os processos comunicativos que ocorrem
em batalhas de rap e como o espaço de realização afeta as práticas discursivas. Para isso,
passamos a observar e registrar eventos da Batalha do Coliseu, que ocorre no campus
universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, nos períodos entre 9
de março e 26 de outubro de 2019, antes da pandemia de COVID-19, e de 12 de março a 10 de
maio de 2022, após o retorno das atividades acadêmicas presenciais no referido Campus. Nesse
87
62
Durante o período de observação, utilizamos dois aparelhos smartphones. Em um primeiro momento
utilizamos um modelo Motorola G6 Play, com câmera de 16 megapixels, rodando sistema operacional Android
versão 9 e posteriormente passamos para um modelo Redmi Note 8, com câmera de 48 megapixels, rodando o
sistema operacional Android versão 10.
88
analisar os discursos dos MCs que frequentaram a batalha durante o período de observação,
passamos a registrar os duelos por completo, para posteriormente selecionar e transcrever as
rimas necessárias para construção das análises. Para ilustrar como se deu essa intensificação
nos registros durante a observação sistemática, elaboramos o seguinte gráfico (Figura 17):
Neste trabalho, utilizamos a análise do discurso como método para tratamento dos dados
colhidos durante a fase de observação exploratória da pesquisa. Optamos por seguir a linha da
escola francesa da análise do discurso, nos baseando em autores como Jean Jacques Courtine
(2014) e Michel Pêcheux (2014). Para o filósofo francês Michel Pêcheux (2014), a análise do
discurso tece uma relação com o materialismo histórico, a linguística e a teoria do sujeito. De
acordo com o autor, o materialismo histórico compreende os processos de formação social, a
linguística diz respeito à análise dos processos de enunciação, enquanto a teoria do sujeito visa
compreender as subjetividades, bem como a relação que o sujeito cria com o simbólico. Já o
linguista francês Jean Jacques Courtine (2014) defende que a análise do discurso aborda a
textualização do político, visando interpretar politicamente o que é materializado nos textos,
através de uma decodificação de seus sentidos, símbolos políticos e as relações de poder neles
inerentes. Para o autor, devido ao fato de o texto se tratar de uma construção política, a análise
crítica do discurso também acaba por ser uma análise política.
92
De acordo com a linguista brasileira Eni Orlandi (2000), a escola francesa da análise do
discurso difere da corrente de influência inglesa pois compreende, de um modo geral, o sujeito
como um reprodutor de construções discursivas a partir de suas próprias ideologias, enquanto
a escola inglesa foca mais nas questões intralinguísticas entre o nível sintático e semântico do
discurso, buscando compreender as implicações sociais geradas a partir da reprodução de um
discurso. Orlandi (2000) explica que a análise do discurso busca uma reflexão não só sobre a
linguagem, mas também sobre o sujeito, a história e a ideologia. Neste sentido, o discurso é
visto não somente a partir do sentido morfológico das construções frasais, pois também são
considerados os contextos em que determinados discursos são inseridos, bem como suas razões,
objetivos e possíveis consequências acerca dos conteúdos abordados.
Consideramos como mais adequada para os fins deste trabalho, a visão da corrente de
influência francesa da análise do discurso, pois pretende-se compreender também os sujeitos
emissores desses discursos, bem como os contextos históricos e políticos nos quais estão
inseridos. O intuito do presente trabalho é compreender os discursos e práticas sociais
comunicativas referentes aos indivíduos que frequentam batalhas de rap, tomando com
referência a Batalha do Coliseu. Sendo assim, todos os discursos analisados compartilham de
uma mesma linguagem, que é a música rap, bem como compactuam da mesma ideologia, que
é utilizar esta expressão musical como uma forma de ativismo político e contra-hegemônico.
Além disso, existem também semelhanças históricas ligadas ao passado colonial comum entre
esses indivíduos e à homogeneização de bens e costumes causados pela globalização e
potencializados pela midiatização. Existem também diferenças relacionadas às realidades
pessoais diversas vivenciadas pelos sujeitos, trazendo seus pontos de vistas particulares na
construção de seus discursos, assim como um diálogo com os saberes locais, resultando em
produtos culturais híbridos, de acordo com a visão de Canclini (2019) e Homi Bhabha (1998).
Conforme já foi elucidado, o presente trabalho tem como pergunta principal: “De que
maneira as batalhas de rap podem ser vistas como uma forma de comunicação contra
hegemônica?”. Por este motivo, seguindo o modelo de análise do discurso sugerido por Orlandi
(2000), o corpus da análise será a linguagem, que no caso é a música rap, utilizada como forma
de expressão artística e política no contexto das batalhas de rap, considerando o caso dos artistas
que se expressam nos encontros da Batalha do Coliseu, que acontece no Campus Central da
UFRN, em Natal (RN). Nesse contexto, visamos identificar os sentidos e simbolismos presentes
no discurso considerando a perspectiva do emissor, portanto vale ressaltar que muitas vezes os
artistas tentam convencer a plateia que a sua visão sobre determinada questão ou problema
93
condiz com a verdadeira realidade. Isso porque, de acordo com o linguista brasileiro Roberto
Carlos da Silva Borges (2012), a construção de um discurso implica também a construção de
uma “imagem de si”, ou ethos, no qual o sujeito projeta a maneira como quer que esse discurso
seja percebido, tornando-o uma ferramenta para obtenção de uma maior adesão social a esta
imagem projetada. Segundo o autor, “o ethos está ligado àquilo que o sujeito quer parecer ser
e à imagem de si que esse sujeito cria por intermédio de seu discurso, com o objetivo de
conseguir adesão ao mesmo” (BORGES, 2012, p. 90).
Borges (2012) atenta para o fato que, ao se investigar um ethos discursivo, não podemos
nos ater somente aos elementos linguísticos do discurso, uma vez que a força dos elementos
não-linguísticos e/ou pré-discursivos podem afetar, tanto positiva quanto negativamente, a
eficácia do ethos que se deseja construir, afetando também o resultado da análise. Para o autor,
a análise daquilo que “parece ser” torna-se relevante, uma vez que as pistas discursivas
capturadas a partir dessa intenção podem também ser analisadas e nos levar a uma compreensão
mais ampla não só do discurso, mas também das estratégias criadas para se obter adesão às
ideias, posicionamentos e argumentações apresentadas no mesmo. Borges (2012) explica que a
criação do ethos está diretamente relacionada à mobilização de afetividade do interlocutor, uma
vez que esta é uma maneira de alcançar a compreensão do receptor. Tal compreensão pode ser
afetada por uma série de fatores, como as escolhas lexicais utilizadas pelo locutor ou até mesmo
o timbre da voz. Esses fatores muitas vezes podem fugir do controle do locutor, o que pode
resultar no sucesso ou fracasso da transmissão do discurso construído (BORGES, 2012).
Assim, o modelo de análise do discurso em que nos pautamos tem sua base teórica no
funcionamento do ato de comunicação, cujo sentido final é o resultado da relação de
intencionalidade entre as instâncias de produção e de recepção do ato de comunicação.
Logo, se a instância de recepção não estiver interessada na compreensão do que a
instância de produção realiza (não aderir a ele), o ato falha, perde seu sentido e o
contrato de comunicação está desfeito. A interpretabilidade (o sentido), então, está
sempre coadunada à intencionalidade dessas duas instâncias, constituindo-se,
portanto, como resultado de uma co-intencionalidade (produtor e receptor) (p. 92).
A partir das reflexões propostas por Borges (2012) sobre a intencionalidade no processo
comunicativo, quando trazidas para o contexto da Batalha do Coliseu, passamos a considerar a
seguinte reflexão: qual o ethos – ou ethé, no plural – são criados, de maneira consciente ou não,
pelos rappers para que se obtenha adesão dos demais indivíduos presentes na batalha aos seus
discursos? Além disso, quais elementos podemos destacar nesses discursos para compreender
as narrativas construídas nesses processos comunicativos e as práticas sociais que os rodeiam,
a partir de relações com as teorias das ciências sociais aqui articuladas. A partir do registro,
94
transcrição e análise dos discursos coletados durante a fase de observação, é possível analisar
o conteúdo dessas práticas comunicativas através do método de análise do discurso aqui
proposto.
Portanto, é necessário definir a escala de um mapa. Santos (2002) recomenda três níveis
principais de escala: grande, média e pequena. No entanto, devido às limitações literárias do
presente trabalho, iremos nos ater principalmente à grande escala, reduzindo nossas
observações ao contexto local, onde se manifestam os fenômenos aqui analisados. O mapa
analítico-descritivo da Batalha do Coliseu atende ao objetivo de explicar em escala detalhada
as características, condições e significados sobre o que é o rap, a partir do ponto de vista de
uma manifestação cultural folkcomunicacional, decolonial e contra-hegemônica. Na cartografia
simbólica, a escala não é numérica e sim subjetiva. Ela é oferecida a partir da dimensão espacial
e também das manifestações que ocorrem nesse recorte espacial onde, apesar da dimensão
espacial ser pequena, a dimensão simbólica é rica em detalhes sobre a manifestação em questão.
A projeção permite representar algo real em um mapa. Santos (2002) observa que o
globo terrestre, por exemplo, é originalmente redondo e de grandes proporções, tornando
inviável a representação exata em um mapa com medidas limitadas. No entanto, através do uso
de mecanismos controlados e pré-definidos de distorção, é possível ao cartógrafo redimensionar
a representação das proporções do ambiente e projetá-las na superfície plana de um mapa.
Segundo Santos (2002), cada projeção está sujeita a uma série de fatores, como os objetivos do
mapa, os dados coletados ou até mesmo a ideologia do próprio cartógrafo. A projeção será
usada aqui para representar a criação de canais populares de comunicação através da ocorrência
de batalhas de rap nos espaços de convívio do campus universitário da UFRN em Natal. No
entanto, apesar da utilização sistemática de elementos visuais e símbolos para elaborar nossa
análise, é preciso ressaltar a possibilidade de que o resultado interpretado não represente a
realidade com total precisão, visto que as projeções, conforme lembra Santos (2002), tendem a
enfatizar alguns aspectos locais em detrimento de outros.
Tratamos aqui dos caminhos percorridos para chegarmos ao formato aqui apresentado
de estratégia metodológica adotada para esta pesquisa. A escolha dessas técnicas e métodos
visaram otimizar a coleta e apuração dos dados, bem como a apresentação dos resultados,
considerando o contexto da nossa pesquisa. Tais ferramentas tornaram possível a construção
do capítulo a seguir, no qual serão apresentados, analisados e, quando possível, relacionados os
dados colhidos na pesquisa bibliográfica, observação sistemática, entrevistas e questionários
aplicados. No próximo capítulo, serão apresentados os resultados obtidos com esta pesquisa, de
maneira organizada e sistematizada em um mapa analítico-descritivo, de forma que a
compreensão da representação dos dados aqui apresentados se torne clara e de fácil
interpretação, tal qual um mapa visual geográfico.
98
5 BATALHA DO COLISEU
Milton Sales
Neste capítulo, discutiremos a Batalha do Coliseu, nos aspectos tocantes aos seus
espaços de realização, os agentes participantes, as práticas realizadas e os discursos
predominantes nesse contexto. Esses quatro principais eixos de análise dizem respeito aos
referenciais simbólicos que elencamos para a elaboração do mapa analítico-descritivo que este
trabalho se propõe a fazer. Isso porque, ao longo da pesquisa, identificamos tais referenciais
como essenciais para compreensão das práticas discursivas que ocorrem durante a realização
dos eventos promovidos pela Batalha do Coliseu nas intermediações do campus universitário
da UFRN em Natal (RN).
produzidas, o que nos despertou para o valor deste tipo de ferramenta na pesquisa em ciências
sociais.
Nesse sentido, optamos por dividir a apresentação dos dados seguidos de sua devida
análise em quatro subcapítulos dedicados a cada uma dessas categorias de referenciais
simbólicos. O primeiro subcapítulo é dedicado aos espaços de realização adotados pela Batalha
do Coliseu, considerando-os como espaços geográficos e simbólicos, contextualizando suas
relações espaciais e socioculturais com o meio em que estão inseridos e seu papel no
desempenhar das atividades promovidas pela batalha. Para construção deste subcapítulo,
utilizamos principalmente a pesquisa bibliográfica e documental, a fim de reunirmos o máximo
de informações possíveis acerca dos espaços estudados, bem como as visitas realizadas durante
a observação e à posteriori, para realizar capturas visuais dos espaços à luz do dia. O segundo
subcapítulo trata do perfil socioeconômico do público que frequenta a Batalha do Coliseu, a
partir de uma apresentação dos dados colhidos através de um questionário aplicado aos
seguidores do perfil da Batalha do Coliseu na rede social Instagram que frequentaram a batalha
durante o período de recorte temporal definido por esta pesquisa.
construirmos um corpus de análise sólido e passível de reflexão. Nessa parte, são evidenciadas
as questões da localidade, a partir da observação das práticas intrínsecas à Batalha do Coliseu
e como se dão as interações sociais e discursivas durante a realização de suas atividades. Por
fim, no quarto subcapítulo, analisamos as construções narrativas presentes nos discursos
predominantes na Batalha do Coliseu, relacionando os testemunhos das informantes voluntárias
consultadas em entrevistas com as práticas e discursos observados nos eventos que
participamos. Também buscamos relacionar os fenômenos e práticas sociais observadas com
as bibliografias trabalhadas nos capítulos anteriores, a fim de testarmos possíveis respostas para
a pergunta problema proposta no início deste trabalho.
Conforme pôde-se constatar nos registros oficiais, apesar de concebido ainda em 2010,
o projeto de construção da estrutura de 279,13m² em formato típico de anfiteatro, batizada pelos
estudantes da UFRN de Coliseu, só foi ser incluído no plano de obras da instituição 63 em 2016,
com previsão de término para maio de 2017. Segundo a assessoria de comunicação do Centro
de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA/UFRN), departamento responsável pela obra, o
objetivo do projeto era “viabilizar um espaço de convivência em que os alunos possam realizar
manifestações culturais, artísticas e políticas” 64. No entanto, apesar de prorrogado 65 o prazo de
63
ORÇAMENTO estimado: plano de obras 2016. SINFRA/UFRN, Natal, 18 out. 2016. Disponível em:
<https://infra.ufrn.br/docs/plano_obras_2016.pdf>. Acesso em 5/2/2022.
64
SOUSA, R. CCHLA da UFRN cria projeto de anfiteatro para o Setor II. Lab Comunica, Natal, 10 set. 2016.
Disponível em: <https://labcomunica.wordpress.com/2016/09/10/cchla-da-ufrn-cria-projeto-de-anfiteatro-para-o-
setor-ii/>. Acesso em 5 fev. 2022.
Acesso em 10/1/22.
65
DIÁRIO Oficial da União: Nº 110. BRASIL, 9 jun. 2017. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/progesp/wp-
content/uploads/2018/01/30-Retifica-AI-15-2017-DOU.pdf>. Acesso em 5/2/2022.
101
entrega para novembro de 2017, a obra, segundo o relato de alguns alunos, nunca chegou a ser
propriamente finalizada. Segue abaixo o projeto original do anfiteatro (Figura 18):
Além dessas dificuldades, muitas vezes as atividades são interrompidas por agentes de
segurança do campus, que exigem autorização para realização das atividades, mesmo que tais
acordos já tenham sido negociados com a diretoria do departamento. Em algumas das edições,
a Batalha do Coliseu teve encontros interrompidos pela segurança do campus, obrigando seus
participantes a migrarem para outro setor que não fosse próximo das salas de aula, como é o
caso do Centro de Convivência Djalma Marinho, que fica na região central do Campus Natal
da UFRN. Após iniciarmos o acompanhamento da Batalha do Coliseu em abril de 2019,
registramos apenas um encontro no seu espaço original de realização (Figura 20 a Figura 23).
Os demais encontros registrados naquele ano ocorreram Centro de Convivência Djalma
Marinho, devido aos problemas que a organização do evento ainda enfrentava quanto à
autorização para realização da batalha no Setor II e também para escapar das chuvas, que
geralmente ocorrem nesse período do ano em Natal. Devido à falta de tenda para proteger os
equipamentos da chuva e a impossibilidade de abrigar todos os participantes da plateia, os
encontros seguintes registrados em 2019 se deram no espaço do Centro de Convivência Djalma
Marinho.
103
Figura 20: Vista da arquibancada para o centro do palco e prédios do Setor II.
Fonte: Própria, 9/2/2022.
Figura 21: Vista para o anfiteatro e prédios do Setor II e Instituto Internacional de Física.
Fonte: Própria, 9/2/2022.
104
Figura 23: Vista para o anfiteatro, prédios e caixa d’água do Setor II.
Fonte: Própria, 9/2/2022.
105
Pereira e Nobre (2007) afirmam ainda que, após a discussão de algumas propostas, foi
concebido o projeto finalmente implantando, que consiste em uma grande plataforma coberta
sustentada por estruturas de concreto aparente, seguindo os princípios estéticos do brutalismo,
estilo arquitetônico predominante nos edifícios construídos no campus central da UFRN e
demais regiões da capital potiguar, principalmente entre as décadas de 1970 e 1980. Para Souza
Filho (2018), a escolha do local geográfico de construção do Centro de Convivência Djalma
Marinho (Figura 23) condiz com as intenções declaradas para construção da edificação em seu
projeto inicial, pois está situada em um “ponto central em relação aos setores de aula e
edificações representativas da administração e do saber” (SOUZA FILHO, 2018, p. 29).
106
haja uma compreensão do leitor quanto aos espaços que foram observados durante a pesquisa,
bem como sua localização, estrutura e uma breve contextualização histórica e sociocultural com
relação às atividades rotineiras do campus e seus usos durante a realização das práticas sociais
estudadas.
No início, eram só pessoas ali do setor II mesmo que passavam, ouviam e iam por
curiosidade ver o que estava acontecendo ali e acabavam ficando. Mas conforme a
Batalha foi ganhando nome e proporção começaram a aparecer pessoas de outros
setores. Tinha MC que cursava Educação Física, CeT e outros cursos de outros setores
da universidade e com o passar do tempo foram vindo pessoas também de fora da
UFRN, pessoas que às vezes não tinham nem ensino médio completo, pessoas que
normalmente não estariam ali ocupando aqueles espaços (INF-A, colaborador(a)
voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação verbal).
109
Entre os dias 30 de janeiro e 6 de fevereiro de 2022, foi solicitado aos seguidores dos
perfis da Batalha do Coliseu nas redes sociais digitais Instagram e Twitter, que respondessem,
em caráter colaborativo, o questionário supracitado. Para a aplicação online do questionário,
disponibilizou-se um link de acesso aos interessados, por meio da utilização da plataforma
Google Forms. Obteve-se uma amostra de 83 respondentes, número que representa
aproximadamente 83% do público de uma edição da Batalha do Coliseu 66. Os resultados
obtidos com a aplicação desse questionário representam, portanto, um grau de confiança de
95% e um erro amostral de 4%.
66
Dado variável. Estimamos que o público médio da Batalha do Coliseu é de aproximadamente 100 pessoas.
67
Acreditamos que esta resposta se deu em virtude das opções fornecidas pelo questionário que, conforme foi
posto pela pessoa entrevistada, reforça um pensamento binário sobre gênero, não considerando as pessoas que se
identificam como não-binárias. Apesar de nos basearmos nos moldes utilizados pelo IBGE, atentaremos para
questões como a que foi posta aqui por essa respondente em estudos futuros.
110
68
Desde o censo de 2000, o IBGE utiliza nas pesquisas sobre cor ou raça/etnia da população brasileira estas
cinco categorias.
111
Quanto à renda, de acordo com a classificação IBGE 69, 49,9% dos respondentes se
consideraram pertencentes à classe social E (renda familiar até R$ 2.424,00), 22,9%
responderam classe D (Renda familiar entre R$ 2.424,01 a R$ 4.848,00), 21,7% se
consideraram classe C (renda familiar entre R$ 4.848,01 a R$ 12.120,00) e 6% responderam
classe B (renda familiar entre R$ 12.120,01 e R$ 22.240,00). Nenhum dos respondentes
pertence à classe A (renda familiar acima de R$ 24.240,01). Em outras palavras, quase metade
do público da Batalha do Coliseu (49,4%) pertence à classe social mais baixa dentre as
alternativas disponíveis no questionário. Quanto à outra metade, boa parte é pertencente às
classes sociais C e D, somando 44,6% do público, além da pequena parcela de 6% dos mais
privilegiados nesse quesito, pertencentes à classe B, que goza de uma renda familiar de até R$
12.120,00 mensais.
69
Válido para 2022 (salário mínimo de R$ 1.212).
112
apresentados nos níveis mais baixos de escolaridade, não tendo nenhuma respondente afirmado
não haver concluído o Ensino Fundamental, apontam para um nível de escolaridade
considerado de moderado a alto, dentre o público da Batalha do Coliseu.
No que diz respeito a frequência de público, 44,6% afirmaram já ter comparecido mais
de 10 vezes na Batalha do Coliseu, 21,7% de 1 a 3 vezes, 18,2% de 3 a 5 vezes e 15,7%
responderam de 5 a 10 vezes. Aqui podemos atestar que as respondentes apresentam um
coeficiente de frequência considerado satisfatório para os fins desta pesquisa, tendo em vista
que mais da metade das pessoas afirmaram ter frequentado a Batalha do Coliseu mais de dez
vezes, ou de cinco a dez vezes, um número próximo à quantidade de dias acompanhados e
registrados durante a observação, que foram nove. Ademais, a fidelidade demonstrada ao
frequentar o evento mais de uma vez denota um certo nível de engajamento por parte do público,
que passa a participar mais ativamente dos processos.
práticas recorrentes em batalhas de rap, apesar de pouco mais de um terço desse público não
frequentar outras batalhas, além da Batalha do Coliseu.
Dentre os respondentes que colaboraram com a pesquisa, 71,1% afirmou possuir vínculo
estudantil formal com a UFRN, no período entre 2018 e 2019, enquanto 28,9% afirmou não
possuir qualquer vínculo estudantil com a instituição. A aplicação desse questionário
quantitativo possibilitou estimar um perfil socioeconômico do público que frequentou edições
da Batalha do Coliseu entre 2018 e 2019, bem como identificar de quais lugares da cidade esses
indivíduos se deslocam e seu vínculo com a instituição de ensino onde ocorriam os encontros.
Nota-se que há uma intersecção étnico-racial, de renda e moradia, na qual parte do público se
consideram brancos, possuem renda moderada e residem na Zona Sul de Natal, ao passo que
outra parte são pretos e pardos, de baixa renda e residem em outras regiões de Natal ou região
metropolitana. Esses e outros apontamentos serão explorados no relatório da pesquisa
qualitativa, após análise crítica das respostas para as entrevistas semiestruturadas, direcionadas
a organizadores e colaboradores da Batalha do Coliseu e das fotografias em vídeos produzidos
em campo. Os dados qualitativos são fundamentais para tornar inteligível as intersecções e
idiossincrasias dos discursos dos sujeitos envolvidos nas práticas. A seguir, uma sequência de
imagens que representa os agentes participantes da Batalha do Coliseu (Figura 36 a Figura 39).
115
Neste subcapítulo, delineamos o perfil social dos sujeitos que integram a plateia da
Batalha do Coliseu. A partir dos dados aqui colhidos e dispostos, torna-se possível cruzá-los
com os depoimentos das informantes e os fenômenos e conflitos observados durante os eventos,
levando em consideração os diferentes contextos sociais dos quais os sujeitos envolvidos nas
práticas analisadas são oriundos. No subcapítulo seguinte, abordaremos as práticas performadas
por tais sujeitos e como podemos identificar os significados e subjetividades gerados a partir
daí.
dos primeiros encartes para divulgação do evento e divulgado nas redes sociais (Figura 26)
foram produzidos de maneira independente, informando data, horário e local de realização, bem
como a premiação do evento naquela data. De acordo com os relatos colhidos nas entrevistas
semiestruturadas, desde seu primeiro dia de realização, dentre algumas outras questões sociais
e burocráticas, a Batalha do Coliseu também tem a chuva como um forte empecilho para sua
plena realização. Isso, ocasionalmente gerou interrupções de eventos e até mesmo
deslocamento do contingente para um local coberto, como os corredores do Setor II ou até
mesmo a cobertura do Centro de Convivência, que sediou algumas edições observadas da
Batalha do Coliseu, durante a pesquisa em tempos de chuva na capital potiguar.
Quando, por exemplo, a segurança chegou e tal, porque não podia ter gente fumando
maconha, que era uma coisa que eles sabiam, né? Tinha gente que vendia droga ali,
119
isso era fato. Mas eles sabiam de tudo isso. Até porque já tinha sido pego pessoas em
outros setores e, assim, eu sabia dessas coisas porque até hoje eu tenho uma relação
muito boa com o reitor da UFRN, tá entendendo? Tipo, a gente sentou para discutir
plano de segurança, plano de assistência estudantil, tudo isso. Como eu disse pra você
eu sempre fui uma pessoa de talvez, por conta até do meu curso, como eu me formei
em gestão (de políticas públicas), acho que a gente aprende muito isso de “oh, a
sociedade civil tem esse papel aqui”. Se ela não souber dialogar e mostrar projeto e
resultado, a instituição não vai tomar iniciativa, né? Não adianta só eu querer fazer
ato, ato, ato, ato contra reitoria, sendo que os números estão ali, o orçamento estava
ali, a gente já vinha de uma universidade. Em um processo onde o orçamento da
universidade já vinha sendo enxugado, então o que nos cabia, enquanto corpo
discente, não é simplesmente ir pra rua, não. Mas é dizer: “como é que a gente vai
contemplar o maior número de pessoas que realmente precisa”. Saca? Então, essa
relação sempre foi muito boa e é tanto que a gente chegou num diálogo onde a gente
quase conseguiu uma emenda parlamentar pra terminar a reforma do Coliseu. Porque
era de interesse do reitor investir nessas questões mais culturais e artísticas. Então foi
uma coisa que ele gostava bastante. Só que, por outro lado, tinha reclamação dos
professores do Setor II por conta do barulho e a questão das drogas, assim, que é algo
que, né? Não tinha muita explicação. Não tinha o que fazer. Realmente era
complicado. Aí, tipo, no dia que a segurança chegou lá, né? Eu, de imediato, liguei
pro reitor (INF-D, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação
verbal).
Foi com esse pensamento que comecei a frequentar os encontros da Batalha do Coliseu
nas noites de terça-feira, por volta das 20 horas, horário em que os jovens começavam a se
aglomerar no entorno das arquibancadas do anfiteatro do Setor II. São os participantes da
Batalha do Coliseu que aos poucos vão se cumprimentando com gestos e apertos de mão
característicos entre os integrantes do grupo cultural ali representado: o hip-hop. Antes da
batalha começar de fato, é comum que haja rodas de improviso, com MCs alternando turnos
para recitar suas rimas inventadas na hora ao som de alguém fazendo um beatbox, músicas
reproduzidas em aparelhos celulares ou até mesmo batidas de palmas ou no peito. A iluminação
do espaço é precária, portanto, alguns também usam seus aparelhos celulares para iluminar o
ambiente.
120
70
https://www.Instagram.com/batalhadocoliseu/
121
Dentre os jovens presentes, é possível perceber a atividade dos que fazem parte da
organização da batalha. São em parte estudantes do próprio departamento, ou de outros setores
da universidade. No entanto, jovens de fora da universidade que frequentam outras batalhas ou
simplesmente gostam de rap somam presença nos encontros, reunindo de 50 a 100 pessoas em
dia de menor quórum e chegando até 150 a 200 pessoas em dias de maior frequência em torno
das arquibancadas e bancos que existem espalhados pela área do setor de aulas (Figura 41).
É comum que, antes ou depois das batalhas, ocorra apresentações de grupos ou cantores
de rap, bem como apresentações de poesia (Figura 42). A Batalha do Coliseu segue o esquema
de chaves, tipo um “mata-mata”, em que o vencedor de uma chave enfrenta o vencedor de outra
chave, eliminando quem perde até sobrar apenas um vencedor da noite. Os duelos podem ser
temáticos, abordando temas pré-definidos 71, livres de tema ou até mesmo sem restrição alguma
quanto aos ataques ao seu oponente, sendo permitido até mesmo ofensas (como é o caso das
batalhas de sangue). A Batalha do Coliseu é normalmente de tema livre, com características de
uma batalha de sangue, apesar de o público normalmente não aceitar qualquer tipo de rima,
caso toque em assuntos delicados. Além disso, os participantes também concordam em não
ofender uns aos outros ou familiares em suas rimas.
Na Batalha do Coliseu, cada MC tem o mesmo tempo para improvisar suas rimas sobre
a batida que sai da caixa de som trazida por membros da organização que se revezam em tarefas
como reproduzir e pausar a música nos momentos oportunos, anotar os nomes dos participantes
em uma folha de caderno, indicando os vencedores até o final dos duelos, explicar as regras
para os participantes e mediar o encontro com o público (constantemente convocando a plateia
para “fazer barulho” para quem consideram ser o vencedor do duelo) e puxar uma série de
palavras de ordem, sendo as mais comuns: “se tu ama essa cultura como eu amo essa cultura
grita hip-hop! HIP-HOP!” (escrito conforme pronunciado); “Batalha do Coliseu, conscientiza
e fortalece. Conhece? CONHECE! Conhece? CONHECE!” e “Batalha do Coliseu, tem homem
e mulher na gangue. O que vocês querem ver? SANGUE!”. Nas palavras de ordem é possível
perceber adaptações de frases normalmente ditas em outras batalhas de diversas regiões do país,
trazendo elementos da cultura local como a gíria “conhece”, normalmente utilizada entre os
natalenses. Isso é um fenômeno que vai de encontro ao conceito de “hibridações culturais”
proposto por Nestor García Canclini (2019), pois trata-se de uma mistura de elementos globais
e locais em um mesmo contexto cultural.
71
Batalhas temáticas ou batalhas de conhecimento.
123
minoria dentre as pessoas participam dos duelos, reforçando os pensamentos de Rose (1994),
Collins (2006) e Postali (2020), em se tratando da baixa representatividade feminina no hip-
hop. Apesar disso, é possível observar a presença de mulheres, tanto na plateia, quanto na
organização da Batalha do Coliseu. A atuação das mulheres na organização da Batalha do
Coliseu geralmente se dá nas questões organizacionais da batalha, como realizar registros
(Figura 44) e atuar como mestres de cerimônia ao conduzir a plateia nos encontros. A presença
de homens é visualmente mais expressiva, não desconsiderando, porém, a participação do
público feminino nos encontros. Mesmo assim, durante todo o período de observação, só foi
possível presenciar mulheres duelando em duas ocasiões, na qual em uma, a MC também fazia
parte da organização da Batalha do Coliseu. A seguir, uma sequência de imagens da Batalha do
Coliseu acontecendo no Centro de Convivência Djalma Marinho (CCDM), na UFRN (Figura
43 a Figura 47):
Figura 43: Batalha do Coliseu acontecendo no Centro de Convivência Djalma Marinho (CCDM/UFRN).
Fonte: Própria, 30/4/2019.
124
Figura 48: Seletiva estadual para a fase regional do Duelo de MCs Nacional.
Fonte: Própria, 26/10/2019.
Apesar das atividades realizadas durante a pandemia, que também poderiam ser
utilizadas como objeto de estudo nesta ou em outras pesquisas semelhantes sobre o tema,
decidimos esperar a retomada das atividades presenciais da Batalha do Coliseu para dar
continuidade ao processo de observação sistematizada, utilizando os registros do diário de
campo e das fotografias e vídeos capturados com o aparelho celular. A sequência de imagens a
129
seguir representa o retorno das atividades da Batalha do Coliseu, em abril de 2022 (Figura 51 a
Figura 53):
Figura 53: Batalha do Coliseu com estrutura de som, tenda e iluminação adequados.
Fonte: Própria, 12/4/2022.
A Batalha do Coliseu enfrentou alguns percalços ao longo de sua trajetória, para que
pudesse manter suas atividades dentro das instalações do campus universitário da UFRN. Tanto
com relação à ocupação dos espaços na universidade e as implicações causadas por isso, quanto
com relação aos atritos causados pelos discursos utilizados por alguns MCs em suas rimas. Em
entrevista, a Informante-D relata que um dos primeiros episódios marcantes relacionados a este
segundo conflito, tem relação com falas consideradas homofóbicas e machistas proferidas por
algum MC em um duelo da Batalha do Coliseu, o que culminou na realização de uma Batalha
131
de Vogue, que também contou com rodas de conversa sobre conscientização em relação às
discussões sobre sexualidade e identidade de gênero
Tanto que teve um movimento, a Batalha de Vogue. A primeira batalha que aconteceu
em resposta a um episódio da Batalha do Coliseu, entendeu? E batalha de vogue
também é um movimento periférico e negro, né? […] A galera de Ciências Sociais
não se organizava em Centro Acadêmico, e tal, era um coletivo autônomo e tudo mais.
E aí, teve umas falas, nessa perspectiva aí, que eles consideraram LGBTfóbicas, as
machistas e tal, aí fizeram uma batalha de vogue (INF-D, colaborador(a) voluntário(a)
na Batalha do Coliseu, informação verbal).
De acordo com seus idealizadores, a Batalha do Coliseu se caracteriza como uma batalha
de sangue, na qual os temas são livres e são permitidos ataques mais incisivos aos seus
adversários, inclusive mencionando características físicas, pessoais, eventos do passado e até
mesmo segredos que, muitas vezes, parte do público não sabe, tornando-se um fator surpresa
durante o duelo. Em batalhas que acontecem na rua é comum que os ataques cheguem ao nível
de xingamentos pessoais entre os MCs, embora tal atitude não seja bem-vista em algumas
batalhas ou alguns tipos de batalhas como as temáticas e de conhecimento, nas quais são
predefinidos temas para as rimas e a desenvoltura dos MCs em construir uma boa narrativa
rimada sobre esse tema é que é avaliado, não sendo permitido ataques pessoais ao seu
adversário.
Apesar de, na Batalha do Coliseu, também ser possível ver os ataques típicos de uma
batalha de sangue, muitas vezes, tais ataques não são bem recebidos pela plateia, o que pode
acabar prejudicando o desempenho do MC, uma vez que é a plateia ou a comissão de jurados
previamente estabelecida que definem os vencedores de cada duelo. Em entrevista com uma
das informantes, foi explicitado o seguinte:
A Batalha do Coliseu é uma batalha de sangue, mas você não pode simplesmente ir lá
e falar qualquer besteira. Falar “pederastia” ou alguns insultos que, na minha opinião,
não cabem na batalha de MC. Eu acho que o MC tem que ter noção de diversos
assuntos, seja político ou qualquer que seja, e não só tentar ficando menosprezando o
MC que está batalhando com ele (INF-A, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do
Coliseu, informação verbal).
O termo “pederastia” é usado no contexto das batalhas de rap para se referir a rimas
com conteúdo ofensivo ou que contenha “baixaria”, como se fala popularmente. Segundo relata
a informante, a Batalha do Coliseu se configura como uma batalha de sangue, mas nem toda
rima é bem-vinda e principalmente bem-vista pelo público. A hipótese formulada é de que o
ambiente influencia nisso, uma vez que, por se tratar de uma batalha que acontece na
universidade – cujo público é majoritariamente formado por estudantes universitários,
132
principalmente das áreas das ciências humanas, que geralmente possuem posicionamentos
bastante incisivos sobre determinados assuntos, principalmente envolvendo desigualdade
social, violência, opressão, e questões associadas debates sobre raça e gênero – seus
participantes tendem a se adaptar àquele ambiente e, caso não haja uma adaptação, existe a
possibilidade de que ocorra um “choque cultural” (BHABHA, 1998). Ao ser questionado sobre
a possível influência do ambiente universitário sobre a forma como a Batalha do Coliseu
acontece, o informante relata:
O fato de ser na UFRN influencia por se tratar de um público que simplesmente não
aceita qualquer tipo de discurso de ódio, xingamentos ou falas pejorativas. E isso meio
que obriga o MC a estudar, se atualizar e a parar de rimar besteira (INF-A,
colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação verbal).
A razão para esta questão, como já elucidado, pode estar ligada diretamente ao local
onde a Batalha do Coliseu ocorre: o Campus Central da UFRN em Natal. Neste contexto, os
posicionamentos, as ideologias políticas e argumentos utilizados nos discursos podem ser
avaliados pela plateia presente, composta, em sua maioria, de estudantes universitários,
conforme foi apontado pelos dados obtidos nos questionários. Isso pode, de certa maneira,
influenciar a forma como os MCs e demais presentes na batalha se comunicam, uma vez que,
conforme argumenta Sousa Santos (2007), quando as estruturas tradicionais do saber se sentem
ameaçadas, colocam os demais saberes em cheque, subjugando-os. Em outro relato concedido
por informante, foram evidenciados os conflitos surgidos a partir dos choques causados pelos
discursos.
Tinha muito conflito, assim, com o pessoal, né? Que é a galera do Setor II, né?
Obviamente, pessoal de Ciências Sociais… E os MCs eram pessoas que não
estudavam na UFRN, né? A maioria tinha muito conflito da galera, tá entendendo?
Muito conflito, da galera que estava assistindo, com as coisas, que porque o pessoal
não estava entendendo que aquilo ali era uma batalha de sangue, aquilo ali era um
movimento de rua e que tipo ninguém ia sair dali fazendo de lacração, de não sei o
quê e tal, entendeu? Porque a galera não tinha acesso a esse tipo de discussão, né? Se,
para as próprias pessoas que estão dentro da universidade, é um debate ainda
complicado, né? Imagine pra quem nem terminou o Ensino Médio (INF-D,
colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação verbal).
Tais conflitos podem ser compreendidos pela teoria de “choques culturais” de Homi
Bhabha (1998), resultado das “hibridações culturais” (CANCLINI, 2019) decorrentes das
interações promovidas pela Batalha do Coliseu, no contexto do hip-hop. Uma informante
relatiou que houve ocasiões em que a Batalha do Coliseu quase encerrou suas atividades, devido
aos conflitos gerados pelos discursos utilizados por alguns MCs, principalmente os que vinham
de fora da universidade. Segundo foi relatado, esses MCs frequentavam outras batalhas da
133
cidade, que acontecem na rua e geralmente são menos restritivas quanto aos discursos adotados
pelos MCs, apesar de também haver batalhas que possuem regras bem definidas quanto a essas
questões. De acordo com a informante, os conflitos aconteciam mais diante de discursos de
ódio ou carregados de preconceito, principalmente os com cunho sexista, racista ou
homofóbico.
Teve esse choque de cultura, tá ligado? De tipo, a gente teve que conversar muito,
tanto com a plateia quanto com os MCs, tá ligado? Pra ter uma conscientização,
porque quando o cara falava assim uma coisa homofóbica, a galera gritava, tá ligado?
Tipo, não deixava a batalha terminar (INF-B, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha
do Coliseu, informação verbal).
Ainda segundo a informante, em algumas ocasiões a comoção foi tamanha que membros
da plateia começaram a intervir na batalha para impedir que algum determinado MC que estava
proferindo tais discursos pudesse rimar. Por essa razão, buscando uma maneira de solucionar
as consequências do “choque cultural” provocado entre parte da plateia e dos MCs que
frequentavam a Batalha do Coliseu, os organizadores estabeleceram as seguintes regras internas
para o evento:
a) Proibido qualquer tipo de discurso de ódio, seja racismo, homofobia ou o que quer
que seja. Em caso de descumprimento, o MC leva uma advertência. Com duas
advertências o MC é eliminado.
b) Proibido xingamentos, agressões ou palavras de baixo calão sem fundamento.
c) Proibido envolver terceiros (mãe, pai, amigo, etc).
De acordo com os informantes, esta formulação de regras visando a plena realização das
batalhas se sucedeu com a chegada de uma pessoa já reconhecida na cena de rap da cidade na
organização da Batalha do Coliseu. Procurado pelo autor desta dissertação, esta pessoa também
nos concedeu entrevista e relatou como foi sua chegada na organização do evento e como
enxergou e lidou com os conflitos que ali aconteciam, tornando-se mais uma informante desta
pesquisa. Quando perguntamos sobre sua visão acerca da relação MCs-organização-público que
havia se desenvolvido na Batalha do Coliseu até então, explica:
Para mim, o Coliseu sempre foi um espaço muito problemático em questão de batalha
de freestyle. Por quê? Porque quando você pega o contexto dos rimadores, é uma
galera que vive uma vida cotidiana e isso é o cidadão médio. O cidadão médio não
tem uma questão de problematização muito forte. Ao mesmo tempo, claro, não é pro
cara passar pano e dizer “pô o bicho mandou uma rima machista, não é pra mandar
uma ideia não”, tem que mandar um papo reto. Tem que mandar o papo reto. Só que
tipo o que eu problematizava muito é que no Coliseu, que era um espaço que pertence
aos estudantes universitários (INF-C, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do
Coliseu, informação verbal, grifo nosso).
134
De acordo com esta informante, o problema não necessariamente era o fato de haver
uma diferença cultural entre os MCs e parte dos indivíduos integrantes do público da Batalha
do Coliseu, e sim, o fato de não haver um diálogo propriamente dito entre essas três instâncias:
MCs, organização e público da batalha. Para a informante, não havia interesse dos alunos em
orientar os MCs sobre como construir mais cuidadosamente seus discursos para não ofender
ninguém, muito menos interesse dos MCs em moldar suas rimas para agradar um público que,
para eles, não se tratava de um público necessariamente interessado em rap ou hip-hop. Diante
dessa impossibilidade de diálogo, a informante relata que foi preciso intervir:
E aí teve até uma batalha que os bichos me chamaram. Na época eu estava até inscrito
e no dia eu decidi: “vou não”. E aí quando os caras me perguntaram porque não, eu
fui lá na frente. Mandei uma tese lá, aí teve até uma mina que me olhou e falou “meu
irmão, para com isso aí pelo amor de Deus, que eu vim pra ouvir rap”. Aí eu falei:
“então, o problema de vocês é não saber que isso aqui é rap, tá ligado? O maluco que
pegou uma passagem emprestada pro chegado pra vir pra cá hoje é rap. Eu aqui
falando sobre essas coisas que nos incomodam é rap. Tudo isso aqui é rap. O fato de
vocês não saberem disso prova que vocês não tão nem aí pro que a gente faz. Vocês
querem o pão e circo, vocês querem dar risada, ver o cara gastar com a cara um do
outro e a galera aqui compra a ideia e essa é uma ideia que eu não vou comprar”.
Peguei, pedi licença, agradeci e me sentei (INF-C, colaborador(a) voluntário(a) na
Batalha do Coliseu, informação verbal).
que eu achava um pouco incisiva demais, tinha como chegar e trocar uma ideia de
maneira diferente – mas querendo ou não a Batalha do Coliseu fez com que os MCs
parassem de rimar só pederastia justamente pelo público ser diferente do que o que a
gente encontra nas ruas fora da UFRN, um público que gritava e gostava de qualquer
tipo de rima. Lá não. Lá sempre foi mais puxado pro lado cultural, histórico e
consciente da parada (INF-A, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu,
informação verbal).
A partir dos testemunhos das informantes, pudemos constatar que houve um “choque
cultural” (BHABHA, 1998) entre as pessoas vindas de diferentes contextos sociais que se
reuniam na Batalha do Coliseu. Foi necessário que houvesse uma mediação, e porque não dizer,
um processo de conscientização coletiva para que se pudesse dar continuidade às atividades da
batalha. Do contrário, a ausência de diálogo entre os indivíduos pertencentes a cada uma das
instâncias que constituem uma batalha de rap – MCs, organização e público – acabariam por
dar fim às atividades da Batalha do Coliseu. No entanto, conforme relatam as testemunhas, aos
poucos foi sendo adotada uma consciência coletiva por parte dos participantes da Batalha, de
maneira que, posteriormente, os próprios MCs passaram a cobrar uma postura antes exigida
apenas por alguns membros da plateia.
Na Batalha da Cívica, por exemplo, dava a galera da rua mesmo, a galera que estudava
no Ulisses Teixeira, que estudava ali no Ateneu, entendeu? A galera das escolas
públicas, então era arriação, né? E se alguém ficasse falando palavrão e tal, tipo, falava
e depois continuava todo mundo amigo. Não tinha esse negócio de levar pro coração,
não tinha esse politicamente correto que tem dentro da universidade […]. Mas eu
percebi que, quando a galera que não era da universidade, mas colava nas batalhas,
começou a aparecer vendendo droga lá na batalha, a galera da universidade, alguns
grupos que estavam ali assistindo, começaram a dizer “ah não, legal, vou adotar aqui
o meu negro de estimação, meu MC de estimação” e aí passou a ser algo legal,
entendeu? E aí as boyzinhas já entendiam o lado dos caras. E aí, tipo assim, isso é o
retrato da hipocrisia na universidade, na verdade, porque as pessoas querem ser muito
corretas, né? As pessoas que estão ali dentro da universidade, estudando e tal, acham
que elas sabem o que é que rompe as desigualdades, mas elas estavam simplesmente
reproduzindo elas, tá entendendo? (INF-D, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha
do Coliseu, informação verbal).
que parte dessas pessoas que frequentam a universidade e acreditam saber o que rompe as
desigualdades, acabam por reproduzi-las, corroborando com o pensamento da socióloga indiana
Gayatri Spivak (2010). Ao ser questionada sobre suas impressões sobre o as possíveis razões
para o conflito entre participantes na Batalha do Coliseu, a Informante-C, por sua vez, propôs
a seguinte reflexão:
Durante nossa observação, foi possível presenciar uma ocasião em que um MC não
obteve uma boa reação da plateia, diante de suas escolhas discursivas, o que afetou diretamente
seu desempenho no duelo e, consequentemente, sua colocação na Batalha naquele dia, sendo
eliminado por uma maioria considerável de votantes a favor do MC adversário. Para elucidar
melhor a situação, segue uma transcrição das rimas improvisadas pelos MCs. O fato se deu no
dia 10 de maio de 2022.
137
APRESENTADOR(A)
MC-B
MC-C
MC-B
MC-C
MC-B
MC-C
MC-B
É, e aqui na literatura
Falei da tua cara, então peço até desculpa
Eu falo pra você, aqui no rap eu tenho um marco
Porque meti na tua cara uma flecha sem meu arco
MC-C
MC-B
MC-C
O que pude perceber nesta ocasião foi que, a princípio, o MC-B iniciou sua performance
de uma maneira não muito satisfatória, uma vez que, em seu primeiro ataque, ao se referir à
camisa da seleção de Portugal que o outro MC vestia, acabou rimando ouro com ouro e decoro
com decoro. Não obstante, o MC-C respondeu a este ataque falando que tal atitude de julgar
um indivíduo pela roupa seria algo esperado de um Policial Militar, sugerindo que o MC-B
estaria agindo com preconceito. Além disso, também respondeu a rima sobre simbiose
evidenciando que tal organismo é incapaz de sobreviver sem um hospedeiro. Na tentativa de
contra-atacar, o MC-B decidiu então deixar claro que sua rima não fazia referência
139
simplesmente à roupa de seu adversário, e sim, ao país de Portugal, que colonizou diversos
países, incluindo o Brasil. Porém o tiro “saiu pela culatra” quando ele finalizou sua rima
dizendo que “mataria” seu adversário “tipo um indígena”. O mal-estar causado entre os
presentes naquele momento foi perceptível. Alguns membros da plateia começaram a gritar
xingamentos contra o MC-B, enquanto o MC-C já desferia sua resposta, afirmando ser de etnia
indígena e, portanto, o fato de estar usando uma camiseta da seleção de Portugal poderia ser
interpretado como uma reintegração de posse.
Em seguida, o MC-B insistiu em atacar o MC-C afirmando que este não poderia ser
“filho de índio” por ser branco. Em meio a gritos de “cala a boca” e xingamentos vindos da
plateia contra o MC-B, o MC-C desmereceu a postura do seu adversário ao afirmar que o artista
não tinha conhecimento sobre o que é miscigenação e que esperava mais de um “MC tão
conceituado em Natal”. Sem saída, o MC-B não viu outra alternativa a não ser pedir desculpa
naquele exato momento, mas o seu desempenho naquele dia na batalha já estava arruinado.
Tanto as pessoas no público quanto os organizadores da batalha demonstraram extremo
desconforto perante suas rimas. Até eu, que estava ali observando, registrando tudo, tentando
me manter imparcial diante do que acontecia ali, me senti incomodado. Apesar de o pedido de
desculpas do MC-B parecer genuíno, não foi suficiente para convencer a plateia, que votou
contra ele nos dois rounds, eliminando-o em sua primeira batalha do dia.
Ainda sobre as rimas do primeiro round, o MC-B tentou manter-se na ofensiva, mas
talvez sua escolha de fazer uma analogia com arco e flecha depois de uma sequência de rimas
infelizes sobre indígenas e colonização não o favoreceu. Por outro lado, o MC-C pegou um
gancho no verso e que seu adversário disse trazer o marco do rap consigo e o atacou falando
que tal marco seria o goleiro Marcos do Palmeiras, em seguida fazendo a famigerada piada
sobre o time paulista Palmeiras não possuir título de campeão mundial no futebol. Após uma
tentativa não muito exitosa de resposta por parte do MC-B, que acabou rimando laia com laia,
o MC-C desferiu seu golpe final ao puxar um gancho ainda de sua última rima para evidenciar
a diferença existente entre os dois MCs que ali duelavam, afirmando que, enquanto seu
adversário seria o zumbi do Palmeiras, ele, por sua vez, era Zumbi dos Palmares. A meu ver,
ao ganhar esse round, o MC-C já havia ganhado o duelo. O segundo round aconteceu apenas
para cumprir a praxe. A plateia praticamente não deixou o MC-B rimar no segundo round,
xingando-o e gritando coisas contra ele, mandando-o ir embora, “vazar” dali. Posteriormente,
o MC se pronunciou em suas redes sociais, pediu desculpas pelas suas rimas, mas também
140
criticou a atitude de alguns membros da plateia, que mantiveram uma postura irredutível
enquanto o MC permaneceu no palco.
Se eu fosse falar da Batalha do Coliseu, eu acho que ela, em particular, sempre foi
uma coisa que ficou meio perdida, porque nunca foi esclarecido muito isso no início,
sabe? “O que vocês querem? Vocês querem uma batalha de sangue propriamente dita,
vocês querem uma batalha temática?” Porque dava pra fazer. “Vocês querem uma
batalha do conhecimento?” […]. Eu acho que o que a galera tentava se propor era ser
uma batalha de sangue. Mas eu não sei isso ficava tão esclarecido na relação com o
público. Porque um evento como uma batalha é uma relação tripla: é uma relação dos
MCs, público e organização. E se qualquer uma dessas coisas for ignorada a batalha
não anda direito. Se não há um diálogo com o público, a batalha não anda. Se não há
um diálogo com os MCs, a batalha não anda. Se não há um diálogo com a organização,
a batalha não anda (INF-C, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu,
informação verbal).
No entanto, apesar de tal processo de reconfiguração estrutural ter tomado início ainda
em 2018, ano que a Batalha do Coliseu iniciou suas atividades, os conflitos ainda persistem e
141
tendem a acontecer em uma edição ou outra. Observando esse fenômeno a partir dos
pensamentos elucidados no capítulo teórico desta dissertação, é possível afirmar que tais
conflitos persistem, pois quando o “estranho” (BAUMAN, 1998) atravessa a “linha abissal”
(SANTOS, 2002), há a possibilidade de ocorrer um “choque cultural” (BHABHA, 1998), em
meio a um processo de “hibridação cultural” (CANCLINI, 2019). Ou seja, retomando o
pensamento Sousa Santos (2002), podemos considerar que o MC, que comumente vem da
periferia e/ou frequenta outras batalhas da cidade que acontecem na rua, ao atravessar a “linha
abissal” (SANTOS, 2002) que corta o mapa urbano, dividindo-o em zonas consideradas
desenvolvidas e subdesenvolvidas, torna-se um “estranho” (BAUMAN, 1998), a partir do
momento que atravessa essas linhas abissais para ocupar um espaço de poder como a
universidade pública. Esse atravessamento também pode ser interpretado a partir de ótica da
teoria da folkcomunicação, de Luiz Beltrão (1971), uma vez que o MC pode ser enxergado
como um líder de opinião, ou um “líder folk”, que transita entre os espaços marginalizados e
não-marginalizados da sociedade, realizando uma tradução de seus discursos, de forma que
estes sejam compreendidos em ambas as esferas (BELTRÃO, 1971).
BT 73
72
Para preservar a identidade dos MCs, também substituí seus nomes ou vulgos por siglas identificadoras, tal
qual fizemos com as informantes que concederam entrevistas.
73
Quando o autor desta dissertação decidiu participar da Batalha do Coliseu, no dia 12 de abril de 2002, foi
perguntado qual seria seu “nome de MC” para colocar na chave. A resposta foi “BT”.
142
MC-A
BT
MC-A
Como imaginei que seria “amassado” pelo outro MC, decidi começar minha rima
cumprimentando-o, falando que era uma honra estar ali pela primeira vez e rimando logo com
ele. O ethos que escolhi adotar foi o da cortesia, talvez para tentar minimizar o ataque que vinha
a seguir. O que não foi efetivo, pois tomei um ataque muito forte e fui chamado de “MC com
transtorno bipolar” por primeiro cumprimentar os MCs e depois falar que ia destruí-los na rima.
Minha segunda chance surgiu quando o terceiro MC começou a rimar e vi que sua dicção não
era boa, dificultando muito a compreensão. Então planejei direcionar meu próximo ataque a
ele, zombando da sua má dicção e declarando que não tinha entendido nada que ele tinha falado,
usando, dessa vez, um ethos mais cômico, para ganhar a plateia através do riso.
BT
MC-A
BT
MC-A
BT
MC-A
BT
MC-A
BT
MC-A
BT
cenário artístico podem sofrer influência das relações estabelecidas com o público que frequenta
esses eventos, como sugere o próprio MC, ao final de sua apresentação. Segue a transcrição:
MC-D
MC-E
MC-D
MC-E
MC-D
MC-E
MC-D
MC-E
MC-D
MC-E
Figura 55: Foto do vencedor com a “chave” do dia no corredor do Setor II para se abrigar da chuva.
Fonte: Própria, 28/6/2022
149
A sequência de imagens exibida acima (Figura 54 a Figura 56) representa a última etapa
da nossa observação, que compreende o período de abril a junho de 2022, na qual
testemunhamos e registramos os eventos descritos anteriormente. O que pudemos observar, a
partir de uma análise dos dados colhidos, é que, apesar dos conflitos gerados pelos “choques
culturais” (BHABHA, 1998) promovidos entre os participantes da Batalha do Coliseu, dadas
as suas diferenças de contextos social, em um espaço de poder como a UFRN 74, a partir de uma
“ecologia de saberes” (SANTOS, 2007), é possível que os saberes oriundos desses diferentes
contextos sociais coexistam, em virtude da promoção do progresso social.
A incursão perpetrada pela Batalha do Coliseu, desde seu surgimento até o momento
em que se encerra a observação sistemática realizada nesta pesquisa, não se deu em linha reta.
O trajeto, como foi possível perceber, teve seus percalços. De acordo com a Informante-A,
apesar de ter sido alvo de críticas por parte dos hip-hoppers da cidade, e dos conflitos
protagonizados entre público, organização e MCs – ambos relacionados às implicações
74
Apesar de se tratar de uma instituição pública de ensino, consideramos a UFRN um espaço de poder na
sociedade, uma vez que o acesso a tais espaços se mostra a ser cada vez mais difícil em decorrência da falta de
políticas públicas que possibilitem o acesso de um maior número de indivíduos em condições sociais menos
favorecidas à educação superior pública de qualidade.
150
causadas pelo seu local de realização, a UFRN – a Batalha do Coliseu se manteve em atividade.
A informante argumenta que, se em um primeiro momento, a Batalha do Coliseu chegou a ser
criticada e não integrar a Cooperativa de Batalhas do RN, posteriormente, não só passou a
integrar o coletivo, como também chegou a sediar uma seletiva estadual para o Duelo Nacional
de MCs, reforçando seu valor no cenário artístico das batalha de rap.
A Batalha do Coliseu foi muito criticada no início por se tratar de uma batalha que
não acontecia em um ambiente que, para os outros organizadores e frequentadores de
batalhas, não era rua, não era quebrada. Eu sempre fui um cara que gostei de quebrar
paradigmas e acredito que o hip-hop tem que estar em todos os lugares. A princípio,
a gente tinha até ficado fora da Cooperativa de Batalhas do RN, mas a gente batalhou
e mostrou que a gente vem crescendo e indo bem, tanto é que o estadual de 2019 foi
feito na UFRN. A gente conseguiu o espaço lá no anfiteatro do campus e conseguimos
trazer o estadual, que era um evento exclusivamente das ruas, para dentro da
universidade (INF-A, colaborador(a) voluntário(a) na Batalha do Coliseu, informação
verbal).
CONSIDERAÇÕES
Para além da discussão sobre qual definição específica de categoria pode ser atribuída
à Batalha do Coliseu, o que foi possível perceber, através da observação, registros bem como a
análise dos registros e aplicação de entrevistas e questionários, foi ocorrência de uma
reconfiguração no formato habitual da Batalha do Coliseu em relação aos tipos de batalhas já
conhecidos. Devido ao seu local de realização não usual, um campus universitário de uma
instituição pública de ensino, em contrapartida às demais batalhas que geralmente acontecem
na rua, foi necessário fomentar um diálogo entre a organização da batalha, seu público e os
MCs que dela participavam, para que houvesse uma conscientização por parte dos indivíduos
de que havia ali um choque cultural que necessitava ser problematizado e superado para que a
batalha pudesse acontecer sem interrupções e de maneira plena. Neste contexto, as regras foram
definidas para evitar que discursos delicados sensibilizassem a plateia, gerando novos conflitos,
o que, por sua vez, fez com que os MCs passassem a construir mais cuidadosamente seus
discursos, tendo em vista evitar novos conflitos.
na métrica da batida e a forma contundente, muitas vezes até simbolicamente agressiva, que os
duelistas se dirigem um ao outro se assemelham em ambos os contextos. Para além das
diferenças externas percebidas entre estes dois grupos distintos de artistas – enquanto os MCs
portam microfones e rimam ao som de uma batida eletrônica potencializada por caixas de som
(quando não produzidas pela boca, o chamado beatbox), os repentistas embalam suas rimas
com batidas no pandeiro ou dedilhados na viola caipira – é possível, a partir de uma observação
mais criteriosa, perceber também semelhanças culturais que estes artistas possuem entre si.
Talvez a falta de conhecimento prévio aprofundado sobre o assunto tenha sido um fator
positivo no decorrer desta pesquisa, pois nos fez embarcar em uma jornada de observação com
um estado mental de “copo vazio”, pronto para apreciar e coletar informações acerca daquele
universo do qual eu pouco tinha conhecimento. Além disso, o fato de estar inserido no meio
estudado proporciona uma sensação de imersão mais profunda que alimenta o pesquisador com
informações para além do campo físico, do que pode ser observado, tocado ou ouvido. Tem a
ver com a sensação de estar lá e vibrar com a plateia, observar as rimas e votar junto, se sentir
parte de algo maior, que é o hip-hop. Mesmo sabendo que estamos ali fazendo ciência, colhendo
dados, observando detalhes e registrando o máximo que se pode para depois analisar o que foi
colhido através de uma lógica sistematizada e embasada teoricamente, é difícil não se deixar
envolver pela energia do momento. Me parece que é possível, nem que seja por um instante, o
pesquisador esquecer do seu papel isento e distante para querer fazer parte do fenômeno que
observa, assim como os outros indivíduos ali presentes. Se mesclar. Fazer parte do meio. Sentir
como é ser um deles. Então me surgiu o seguinte questionamento: até que ponto eu sou parte
do fenômeno que observo?
Por essa razão, consideramos que a resposta para a pergunta problema definida no início
dessa pesquisa não só foi respondida como também deu surgimento para novos
questionamentos, que por sua vez, necessitaram da combinação de diferentes técnicas de coleta
e análise de dados para se chegar às respostas para tais perguntas. Em um primeiro momento,
nos interessava apenas qual a influência do espaço de realização nas práticas discursivas dos
sujeitos participantes de batalhas de rap no ambiente universitário. No entanto, a busca pela
resposta desta pergunta problema, nos levou a uma série de pequenos questionamentos, tais
como: quais são as práticas discursivas que acontecem neste tipo de manifestação cultural?
Qual o perfil socioeconômico dos indivíduos participantes? Existe diferenças de contexto
social? Qual o motivo da necessidade de uma reformulação desses discursos? Como podemos
interpretar este fenômeno?
153
Por fim, consideramos que apesar de tortuoso, o caminho percorrido por esta pesquisa
foi exitoso, pois conseguimos observar e registrar os eventos do nosso objeto de estudo,
investigar suas origens e motivações político-ideológicas e relacioná-los com as teorias das
ciências sociais e da comunicação aqui articuladas. Dessa forma, consideramos que pudemos
compreender as batalhas de rap como formas de comunicação popular contra-hegemônica e
contribuir, de alguma forma, com os avanços dos estudos sobre rap no contexto das pesquisas
em comunicação midiática, bem como com o desenvolvimento das pesquisas em “Hip Hop
Studies” como um todo. O que se espera é que este trabalho também sirva de referências para
outras pesquisas, inspirando outros pesquisadores, impactando-os de alguma forma, visando
fomentar e estreitar cada vez mais a relação entre o hip-hop e seus elementos com as formas
tradicionais de educação formal.
154
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