Carvavais Da Abolição - Eric Brasil
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CARNAVAIS DA ABOLIO
Diabos e Cucumbis no Rio de Janeiro (1879-1888)
Niteri
2011
CARNAVAIS DA ABOLIO
Diabos e Cucumbis no Rio de Janeiro (1879-1888)
Niteri
2011
CARNAVAIS DA ABOLIO
Diabos e Cucumbis no Rio de Janeiro (1879-1888)
Aprovada em 23/03/2011
BANCA EXAMINADORA:
Agradecimentos
As pginas pretensamente carnavalescas que se seguem foram produzidas com
muitas horas de solido, sentimento comum durante uma pesquisa histrica. Entretanto,
mesmo com o silncio e o isolamento dos dias debruado sobre papis velhos ou das horas
quase interminveis diante da tela de um computador, esse trabalho no pode ser considerado
um bloco do Eu sozinho. Muito pelo contrrio, inmeros folies participaram de sua
confeco.
Durante os quatro anos e meio de minha graduao na Universidade Federal
Fluminense travei contatos e discusses animadas com muitos colegas e professores. Sem
dvida essa experincia foi fundamental para minha formao intelectual, profissional e
humana. Alm das aulas imprescindveis, as caminhadas entre o Terminal rodovirio e o
campus do Gragoat e os jantares no bandejo ocuparam lugar de destaque em minha
formao acadmica. Nesses momentos aulas, caminhadas e bandejo tive a oportunidade
de construir relacionamentos que ultrapassaram os limites do campus.
Muitos foram aqueles que de alguma forma contriburam para meu desenvolvimento
acadmico. Entretanto, preciso agradecer especialmente aos meus companheiros de todos os
perodos, do primeiro ao nono: Alexandre Reis camarada folio dos blocos cariocas, muito
mais animado e disposto do que eu; meu xar Eric Maia com quem compartilho muito mais
do que o nome, compartilho o gosto por discusses homricas, pela crtica constante e o
respeito incomensurvel por msica de qualidade; Matheus Serva e Camila Mendona
ambos companheiros de graduao e do mestrado, com os quais dividi as aflies do processo
seletivo, as incertezas da pesquisa, as dificuldades da redao e a ansiedade em produzir um
bom trabalho.
Agradeo tambm a todos os membros que passaram pelo projeto Jongos, Calangos
e Folias: memria e msica negra em comunidades rurais do Rio de Janeiro entre 2006 e
2008, que promoveram debates e produtos incrveis, onde encontrei amigos-historiadores que
com certeza ainda daro muito o que falar. Indubitavelmente a participao nesse projeto
serviu como um verdadeiro laboratrio do fazer histrico, onde eu pude viver na prtica o que
ser um historiador, com todas as suas responsabilidades polticas e sociais.
Sou profundamente grato s incrveis aulas e debates que marcaram estes anos de
graduao e curso de mestrado. Devo muito, especialmente, a duas brilhantes historiadoras:
Hebe Mattos e Martha Abreu. Com elas aprendi como fazer histria na prtica; como
pesquisar, ler fontes, fazer entrevistas, produzir material didtico e escrever histria. Ser
professor e historiador simultaneamente; pesquisar e ensinar ao mesmo tempo. Hebe Mattos,
com todo seu renome internacional, sempre se mostrou solcita a nos ajudar no que fosse
preciso, nos oferecendo seu olhar crtico e perspicaz. Foi atravs de meu trabalho como seu
bolsista que decide estudar a Histria Social da escravido, e tenho certeza que tomei a
deciso correta.
Martha Abreu esteve presente na minha formao desde o segundo perodo da
graduao, quando cursei Amrica II. Seu carisma e postura cativante, alm da dedicao e
coerncia acadmica, efetivamente reforaram nossa afinidade. Fui seu bolsista de iniciao
cientfica, recebi sua orientao na monografia de final de curso e, como no poderia ser
diferente, me tornei seu orientando de mestrado. S tenho a agradecer a toda confiana que
teve no meu trabalho.
Ao longo dos anos cursando o mestrado tive tambm o privilgio de receber auxlio
luxuoso de dois grandes historiadores, ambos por intermdio de Martha Abreu.
Primeiramente, agradeo s contribuies de Matthias Assuno minha pesquisa. Com sua
perspectiva atlntica, de pesquisador literalmente cosmopolita, Matthias abriu meus olhares
para outros carnavais, outras festas e outros problemas tericos. No poderia deixar de
demonstrar minha gratido professora Maria Clementina Pereira Cunha por toda simpatia e
presteza com que atendeu meus pedidos de ajuda. Com muita generosidade me enviou
informaes, dicas e mapas que com certeza tiveram grande impacto nesse trabalho.
Agradeo tambm aos professores Robert Slenes e Marcelo Bittencourt pelas indicaes
bibliogrficas sobre Histria da frica.
minha banca de qualificao, composta por Andrea Marzano e Leonardo Pereira,
s tenho a agradecer. Suas leituras atentas e detalhadas resultaram em crticas realmente
engrandecedoras. Novos olhares e possibilidades foram abertos a partir de suas contribuies,
e definitivamente tornaram essa dissertao mais consistente.
Aos funcionrios, bolsistas e professores do Laboratrio de Histria Oral e Imagem
(LABHOI) fica minha gratido pelos anos em que pude desfrutar de suas instalaes e
contribuies acadmicas. Dentre os seus membros, Camila Dias e Thiago Campos Pessoa
tornaram-se amigos especiais.
Resumo
O Carnaval uma festa plural, assim como o conceito Liberdade o . Sempre que
vivenciados, permitem variados significados, dependendo dos atores envolvidos e das
relaes sociais em jogo. A partir dessas premissas, essa dissertao pretende analisar a festa
carnavalesca carioca na ltima dcada de vigncia do regime escravista no Brasil. Neste
perodo e, sobretudo, nesse espao urbano, o Carnaval e a Liberdade foram disputados
intensamente por diversos grupos sociais. Nestas pginas iremos nos aproximar, num
primeiro momento, das percepes de jornalistas e de foras repressivas sobre a atuao da
populao negra nessa festa. Em seguida buscaremos maior aproximao com algumas
possibilidades de ao festiva da populao negra no carnaval durante os anos de maior
intensificao das lutas por liberdade e expanso dos seus limites. Atravs dos que se
fantasiavam de diabinhos e daqueles que participavam de Cucumbis procurei um maior
entendimento dos significados e estratgias que muitos homens e mulheres de cor construram
nos dias de carnaval da Corte s vsperas da abolio da escravido.
Palavras-chave: Carnaval, Abolio, Rio de Janeiro
Abstract
The Carnival is a plural festival as well as the concept of freedom. When they are
tested in practice, they allows multiple meanings, depending of actors and social relations
involved. From that point, this research intents to analyze the carnival festival of Rio de
Janeiro in the 1880s. In this decade and, mainly, on this urban space, the Carnival and the
Freedom were disputed intensely by many social groups. In these next pages we will
approximate, at first, of journalists and repressive forces perception of colored peoples
carnival action. Then, we will try to approximate with this colored peoples carnival action at
the time when the freedom struggle was intensified. Searching for better ways of
understanding the meanings and strategies built for black men and women during Rios
carnival, I looked for those who used diabinhos costume and those who participated of
Cucumbis group on the eve of slavery abolition. For the reason that they were a very
important expressions of individual and collective forms of carnival action.
Key-words: Carnival, Abolition, Rio de Janeiro.
Sumrio
Sumrio ................................................................................................................. 10
ndice de Ilustraes ............................................................................................... 11
ndice de Grficos ................................................................................................... 11
ndice de Mapas ..................................................................................................... 12
ndice de Tabelas .................................................................................................... 12
Lista de abreviaturas .............................................................................................. 12
Introduo ............................................................................................................. 13
I - Pginas Carnavalescas ........................................................................................ 28
Abolio e carnaval ................................................................................................................. 38
O Z-Povinho e suas vrias mscaras .................................................................................. 46
ndice de Ilustraes
FIGURA 1. DOMIN SEGURANDO PORTA VOZ. .................................................................................................................. 51
FIGURA 2. DANA DE VELHO......................................................................................................................................... 52
FIGURA 3. EDITAL DO CHEFE DE POLCIA DE 1883. ANGELO AGOSTINI. REVISTA ILUSTRADA 11/02/1883 - BN ....................... 74
FIGURA 4. FANTASIA DE DIABO.................................................................................................................................... 110
FIGURA 5. DIABINHO. ............................................................................................................................................... 110
FIGURA 6. MSCARA DE DIABO. I ................................................................................................................................ 110
FIGURA 7. CAPA DE O MALHO DIABINHO. 04/03/1905. ......................................................................................... 111
FIGURA 8. O DIABO NO RITUAL DE JUDAS, VISTO POR DEBRET........................................................................................... 115
FIGURA 9. O DIABO E O RITUAL DE JUDAS, VISTO POR DEBRET. ......................................................................................... 116
FIGURA 10. CAPA DA REVISTA ILUSTRADA. ESQUERDA, 31/01/1880 ............................................................................. 121
FIGURA 11. TYPOS E UNIFORMES DOS ANTIGOS NAGOAS E GUAYANUS. DESENHO DE CALIXTO. KOSMOS, 1906. BN .................. 134
FIGURA 12. DE VOLTA DO PARAGUAI - ANGELO AGOSTINI. A VIDA FLUMINENSE, 11/07/1870. BN ...................................... 148
FIGURA 13. JUNTO A UM Z PEREIRA DOIS DIABINHOS DANAM. REVISTA ILUSTRADA, N. 241, ANO 6, 1881 BN. ................... 152
FIGURA 14. DIABINHO NEGRO SENDO PRESO. FON-FON!, 25/02/1911 BN. ................................................................... 152
FIGURA 15. ANGELO AGOSTINI. REVISTA ILUSTRADA, N. 422 1885 - BN ........................................................................ 154
FIGURA 16. DETALHE DA PRANCHA DE DEBRET INTITULADA CONVOI FNEBRE DE NGRILLONS. ............................................ 155
FIGURA 17. DETALHE DA PRANCHA ENTERREMENT DUNE FEMME NGRE ........................................................................ 155
FIGURA 18. TRANSPORT DUN ENFANT BLANC, POUR TRE BABTIS A LGLISE. ................................................................. 156
FIGURA 19. BRULLEMENT DE LEFFIGIEDU JUDA. ......................................................................................................... 156
FIGURA 20. IMAGEM DO FINAL DO SCULO DE XVIII DE CONFRONTO ENTRE UM NEGRO FRANCS E UM INGLS NA ILHA CARIBENHA DA
DOMINCA. AGOSTINO BRUNIAS, 1779. ............................................................................................................... 158
FIGURA 21. DANA NUMA PLANTATION DA CAROLINA DO SUL, EUA, EM FINAIS DO SCULO XVIII. ......................................... 159
FIGURA 22. ANGELO AGOSTINI. O MEQUETREFE N. 401, ANO 12, 1886. BN .................................................................... 162
FIGURA 23. DETALHE DA ILUSTRAO DE ANGELO AGOSTINI REVISTA ILUSTRADA, N. 241, ANO 6, 1881. BN ........................... 164
FIGURA 24. CONVOI FNEBRE DUN FILS DE ROI NGRE.. ............................................................................................... 173
FIGURA 25. DETALHE DA ILUSTRAO DE DEBRET INTITULADA CONVOI FNEBRE DUN FILS DE ROI NGRE . ............................ 174
FIGURA 26. DETALHE DA ILUSTRAO DE DEBRET INTITULADA CONVOI FNEBRE DUN FILS DE ROI NGRE ............................... 174
FIGURA 27. DETALHE DA ILUSTRAO DE DEBRET INTITULADA CONVOI FNEBRE DUN FILS DE ROI NGRE ............................... 177
FIGURA 28. DETALHE - "VIME". .................................................................................................................................. 187
FIGURA 29. CUCUMBI FOTOGRAFADO POR CHRISTIANO JR NA RUA DA QUITANDA EM 1868. .................................................. 220
FIGURA 30. CUCUMBI FOTOGRAFADO POR CHRISTIANO JR NA RUA DA QUITANDA EM 1868. .................................................. 221
ndice de Grficos
GRFICO 1 ................................................................................................................................................................ 71
GRFICO 2 ................................................................................................................................................................ 72
GRFICO 3. PRESOS NO CARNAVAL POR COR (1879, 1881, 1883, 1885, 1887, 1888) CASA DE DETENO, LIVRO DE LIVRES.. 80
GRFICO 4. PRESOS NO CARNAVAL POR COR (1879, 1881, 1883, 1885, 1887, 1888). CASA DE DETENO, LIVRO DE LIVRES. .. 81
GRFICO 5. POPULAO TOTAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO - 1890.. .............................................................................. 82
GRFICO 6. COMPARAO: PRESOS NOS CARNAVAIS DE 179 E 1888 COM A POPULAO TOTAL (1890) ................................... 82
GRFICO 7. BRASILEIROS PRESOS NO CARNAVAL ............................................................................................................... 84
GRFICO 8. BRASILEIROS PRESOS NO CARNAVAL ............................................................................................................... 85
GRFICO 9. COMPARAO: BRASILEIROS PRESOS NOS CARNAVAIS DE 1879 E 1888 COM A POPULAO TOTAL (1890) ................ 86
GRFICO 10. COMPARAO: CARNAVAL 1879 - DURANTE E DEPOIS. .................................................................................. 87
GRFICO 11. COMPARAO: CARNAVAL 1881 - DURANTE E DEPOIS .................................................................................... 87
GRFICO 12. COMPARAO: CARNAVAL DE 1883 - DURANTE E DEPOIS. .............................................................................. 88
GRFICO 13. COMPARAO: CARNAVAL DE 1885 - DURANTE E DEPOIS ............................................................................... 88
GRFICO 14. COMPARAO: CARNAVAL DE 1887 - DURANTE E DEPOIS ............................................................................... 89
GRFICO 15. COMPARAO: CARNAVAL DE 1888 - DURANTE E DEPOIS ............................................................................... 89
GRFICO 16. HABITANTES DAS FREGUESIAS SEGUNDO O ALMANACK LAEMMERT (1872). ........................................................ 95
GRFICO 17. HABITANTES DAS FREGUESIAS SEGUNDO O CENSO DE 1890. ............................................................................ 95
GRFICO 18. PRESOS POR FREGUESIA NOS CARNAVAIS DOS ANOS 1879, 1881, 1883, 1885, 1887, 1888. ............................. 97
GRFICO 19. CAPOEIRAS PRESOS NO CARNAVAL (1879-1888) CASA DE DETENO DA CORTE, LIVRO DE LIVRES. ................... 136
ndice de Mapas
MAPA 1. FREGUESIAS CENTRAIS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (FINAL DO SCULO XIX). ........................................................ 92
MAPA 2. CORTIOS AO REDOR DA PRAA ONZE DE JUNHO NA FREGUESIA DE SANTANA. ........................................................ 100
MAPA 3. PARTE DAS FREGUESIAS DE SANTANA, SANTA RITA E SACRAMENTO. ...................................................................... 102
MAPA 4. O REINO DO CONGO E SEUS VIZINHOS NO SCULO XVI ....................................................................................... 194
MAPA 5. RUA DO OUVIDOR - REDAO DOS JORNAIS. ..................................................................................................... 204
ndice de Tabelas
TABELA 1. POPULAO DAS FREGUESIAS CENTRAIS DO MUNICPIO NEUTRO, 1879. .............................................................. 131
TABELA 2. RECORRNCIA DE CUCUMBIS NOS JORNAIS ...................................................................................................... 208
Lista de abreviaturas
AN Arquivo Nacional
AGCRJ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
APERJ Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro
BN Biblioteca Nacional
Introduo
Praa Quinze de Novembro, centro do Rio de Janeiro, 14 de fevereiro de 2010,
Domingo de Carnaval. s 10h da manh o local j estava lotado: fantasias, cerveja, beijos e
sorrisos. Depois de alguns minutos de burburinho indecifrvel, chegam at a praa os
primeiros sons de um repinique que liderava uma orquestra de bumbos, tamborins, caixas,
instrumentos de sopro e corda. Despontava o cordo vindo da Rua do Mercado, j arrastando
uma pequena multido que em alguns minutos iria se multiplicar na Praa Quinze, antes de
avanar lentamente pelas ruas centrais do Rio.
O cordo vem rompendo o mar de gente, quase todo fantasiado, que ansiosamente
tentava se aproximar ao mximo da banda. Diferentemente dos demais blocos e cordes, que
nos ltimos anos vm invadindo e transformando o carnaval de Rua do Rio de Janeiro no
maior do Brasil (ultrapassando o de Salvador, na Bahia1), esse cordo traz vrios estandartes
rodopiando no ar. Confetes, serpentinas, espumas e gua arremessadas inconsequentemente
para cima dificultavam minha tentativa de reconhecer as figuras homenageadas nas bandeiras
coloridas.
O primeiro estandarte levava o nome do cordo e uma imagem de So Sebastio,
padroeiro da cidade. Entre marchinhas antigas tocadas com muita qualidade e esmero vou
conseguindo distinguir outros baluartes embandeirados: Dona Ivone Lara, Xang da
Mangueira, Pixinguinha, Mestre Darcy do Jongo, Dorival Caymmi e Bob Marley, com seus
dreadlocks e sorriso inconfundvel.
Em contraste com os homenageados quase todos negros, do Rio, da Bahia, da
Jamaica os fantasiados que compartilhavam comigo daquela festa, no eram to coloridos
assim. ramos quase todos (folies e integrantes do cordo) bem mais claros do que os rostos
nos estandartes. No pretendo afirmar com isso que houvesse algum empecilho criado pelos
membros do cordo ou pela platia. Muito pelo contrrio, o clima (como podemos notar pelas
homenagens) era de intenso respeito e valorizao da importncia da populao negra para o
carnaval carioca e para a cultura brasileira de uma maneira geral.
No Carnaval de 2011 a cidade teve aproximadamente 5 milhes de folies pelas ruas da cidade.
http://www.rio.rj.gov.br/web/riotur/exibeconteudo?article-id=1615704
13
Entretanto, este cenrio atiava ainda mais minha curiosidade histrica. O povo
cantava e danava, eu refletia sobre quais os processos, ao longo de dcadas, fizeram com que
a imagem de protagonismo da populao negra fosse reconhecida como fundamental para o
carnaval das ruas, mas que ao mesmo tempo mantm boa parte dos descendentes dos mestres
do samba em posio subalterna em muitas outras esferas da sociedade. Nesse Domingo de
Carnaval, num dos blocos que reconhece e homenageia cones da cultura negra carioca,
brasileira, atlntica, encontramos a maioria dos negros vendendo gua ou catando latinhas
pelo cho do centro histrico do Rio de Janeiro.
Apesar da maior valorizao da cultura produzida por descendentes de escravos no
ltimo sculo, sobretudo aps a dcada de 1980, com as comemoraes do centenrio da
Abolio, a desigualdade sociocultural ainda se faz evidente no Brasil, inclusive no carnaval.
Os caminhos que levaram a essa aparente no incoerncia entre valorizao de aspectos da
cultura negra e manuteno de mecanismos de excluso social foram mltiplos e conflituosos,
desde a abolio da escravido, chegando at os dias de hoje.
Essa dissertao pretende analisar um momento crucial para os debates acerca da
construo de novas concepes de cidadania e liberdade na sociedade brasileira. Refiro-me a
ltima dcada de vigncia do sistema escravista no Brasil, a dcada de 1880. Esse perodo
marca a radicalizao e popularizao dos movimentos abolicionistas, sobretudo na cidade do
Rio de Janeiro, ento capital imperial. Nesse Rio de 1880 as ruas, os jornais, o parlamento,
muitos bares e cafs, senzalas, cortios e trapiches eram espaos onde os caminhos possveis
para a liberdade eram debatidos. Os possveis limites da liberdade eram testados por escravos.
Contudo, tambm libertos e homens livres experimentavam at onde as barreiras impostas
pela sociedade escravista aguentavam.
Concomitantemente, outro espao era disputado por inmeros sujeitos, no af de
conquistar mais autonomia e liberdade: o carnaval carioca na dcada de 1880 esteve
imiscudo aos debates, projetos e aes sociais mltiplas. Ocupou, dessa forma, um papel
central na expresso pblica de concepes da festa, da nao, de autonomia e liberdade.
Jornalistas, literatos, comerciantes, parlamentares, cientistas, policiais, religiosos
disputaram o carnaval e seus sentidos, cada qual com seus preceitos e projetos, mas todos
pensando essa festa como parte importante para se conceber a nao, que inevitavelmente
sofreria alteraes com a extino do trabalho escravo. Contudo, muitos outros agentes
14
elegeram o carnaval como espao para expressar aspiraes, crticas, rivalidades e alegrias:
imigrantes europeus, prostitutas, brancos e mestios pobres, escravos, libertos e negros livres.
O chamado Z-Povinho entrou na disputa pelo carnaval carioca com afinco, e para desgosto
de muitos membros das elites intelectuais, suas vises da festa eram bastante diversas.
Dentre o famigerado e temido Z-Povinho, a populao negra2 da Corte
desempenhou papel de destaque nos embates com autoridades e jornalistas. Eram alvos de
especulaes e projees (muitas vezes tenebrosas) acerca de qual seria o espao dos negros
na nao aps a abolio e, ao mesmo tempo, participavam intensamente do carnaval,
trazendo consigo prticas nem sempre valorizadas por jornalistas e autoridades policiais.
Portanto, acredito ser de grande valia para o conhecimento sobre o carnaval e sobre
o processo de abolio da escravido no Rio de Janeiro, buscar uma anlise mais prxima das
relaes conflituosas entre a populao negra com os projetos nacionais da imprensa e
tambm com a represso policial ao longo da dcada de 1880. Nessa pesquisa busquei tornar
mais inteligvel as lutas cotidianas entre diversos projetos de controle simblico da festa
carnavalesca, justamente no perodo em que se tornava smbolo nacional e em que a luta pela
libertao dos escravos ganhava mais fora e radicalismo.
Atores mltiplos sero trazidos tona com objetivo de enriquecer essa anlise, com
destaque para os membros da imprensa, atravs dos jornais, os representantes das foras
repressivas, atravs dos dados da Casa de Deteno da Corte e obviamente, a prpria
populao negra, num esforo mais rduo pois buscar na leitura das fontes suas vozes
trabalhoso, j que quase sempre foram silenciados por aqueles com poder de produzir
registros documentais desse passado.
Durante muito tempo, importantes vertentes historiogrficas focaram suas anlises
sobre os grandes personagens polticos3 ou buscaram entender as sociedades a partir de
grandes modelos explicativos, em sua maioria economicistas4. Os atores sociais foram ora
silenciados ora reduzidos aos sujeitos detentores dos meios para criar fontes escritas, ou as
chamadas fontes clssicas. H algumas dcadas os homens e mulheres que no detinham
esses meios ainda eram desprezados pelas principais correntes historiogrficas. Ou eram
O termo populao de cor era usado no perodo estudado para designar pretos, pardos e fulas, e muitas vezes
englobava tambm seus descendentes.
3
Histria poltica tradicional que centralizava a anlise na figura dos chamados grandes homens.
4
Marxistas tradicionais e estruturalistas, por exemplo.
15
LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-Histria. IN: Peter Burke (org.) A escrita de Histria: novas perspectivas.
So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. P. 134.
6
Apesar dos principais trabalhos de Thompson serem da dcada de 1950 e 1960, apenas nos anos 1970 suas
contribuies tornaram-se mais difundidas, ajudando a transformar e a sofisticar a pesquisa histrica a partir da
matriz marxista da qual o autor se originava. Ver A Formao da classe operria inglesa I A rvore da
Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
7 SHARPE, Jim. A Histria vista de baixo. IN: Peter Burke (org.) A escrita de Histria: novas perspectivas.
So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. P.42
8 THOMPSON. E. P. Folclore, Antropologia e Histria Social. IN: Antonio Luigi Negro & Sergio Silva
(orgs.) As peculiaridades dos Ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.
9
THOMPSON, E. P. Intervalo: a lgica histrica In: A Misria da Teoria ou um planetrio de erros. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1981.
10
Idem.
16
11
THOMPSON, E. P. O termo ausente: experincia In: A Misria da Teoria ou um planetrio de erros. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1981.
12 THOMPSON. E. P. Folclore, Antropologia e Histria Social. IN: Antonio Luigi Negro & Sergio Silva
(orgs.) op.cit. P. 243
13
GUTMAN, Herbert. The Black Family in Slavery and Freedom, 1750-1925. New York: Vintage Books,
1977.e GENOVESE, Eugene D. Roll, Jordan, Roll: The World the Slaves Made. New York: Pantheon Books,
1974.
14
CHALHOUB. Vises da Liberdade uma histria das ltimas dcadas da escravido na Corte. So Paulo:
Companhia das Letras, 1990. MACHADO, Maria Helena P. T. O Plano e o Pnico. Os Movimentos Sociais na
Dcada da Abolio. Editora UFRJ/EDUSP, Rio de Janeiro/So Paulo, 1994. MATTOS, Hebe Maria. Das
Cores do Silncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, sc. XIX). 1. ed. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. REIS, Joo & SILVA, Eduardo. Negociao e Conflito: a resistncia escrava
no Brasil escravista. So Paulo: Companhia das letras, 1989.
15
REIS, Joo & SILVA, Eduardo. Negociao e Conflito... op.cit..
17
Assim, o escravo deixava de ser uma coisa, bestializada pela violncia, e tornavase um sujeito histrico, apesar das limitaes impostas por sua situao totalmente
desfavorvel nesse regime16. Sua cultura passa a ser compreendida tambm como fonte e
caminho de entendimento de escolhas e opes, ainda que cerceadas por seus senhores, por
autoridades estatais ou religiosas. Jongo, maracatu, lundu passam a ser encarados como
problemas histricos relevantes, e no apenas como sobrevivncias registradas por
folcloristas, ou prticas atemporais apartadas de seus sentidos histricos especficos.
As portas abertas por Thompson e pelos autores da Histria Social da Escravido
possibilitaram novas perguntas e a formulao de novos problemas e objetos. A cultura pde
ser encarada como problema histrico to relevante quanto qualquer outro aspecto da vida, e
pde ser analisada em seu contexto socioeconmico, onde se levou em conta as inter-relaes
inevitveis entre essas esferas. Essa perspectiva, j comumente chamada de Histria Social da
Cultura, produziu pesquisas muito relevantes sobre diversos aspectos culturais da sociedade
brasileira, inclusive sobre o carnaval carioca.
Entretanto, a historiografia sobre o carnaval carioca ainda no se debruou de uma
forma completa sobre a relao entre prticas carnavalescas da populao negra do Rio de
Janeiro e o processo de abolio da escravido, com seus consequentes embates entre
diferentes
agentes
sociais.
Mesmo
com
perspectivas
diferentes,
algumas
obras
17
primeiro lugar, mostrar como por trs de uma mesma palavra se escondem vrias prticas e
formas de brincar o carnaval: o entrudo era um termo genrico que na segunda metade do
sculo XIX, era usado para designar todas as brincadeiras que se chocassem com um tipo de
carnaval comprometido com os projetos de civilizao para o Brasil, chamando ateno para a
historicidade dessas prticas.
Com uma narrativa envolvente, a autora demonstra como a formao das Grandes
Sociedades Carnavalescas trouxe consigo um programa para educar o povo sem
16
18
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do
sculo XIX. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2004.
19
ainda contempla o leitor com captulos onde analisa o desenvolvimento de outros carnavais,
que acabariam tendo influncia direta nas festas cariocas. So eles os carnavais de Paris e
Nice no sculo XIX, que serviriam de modelo para muitos prstitos no perodo.19
Estas pesquisas demonstram que possvel encarar o carnaval como um objeto de
estudos histrico e dentro de seu contexto, comportando inmeros conflitos, grupos sociais
diversos, projetos variados e mltiplos sentidos. Essa perspectiva conseguiu aprofundar a
crtica a uma noo de carnaval atemporal, onde a festa era entendida como um ritual
universal de inverso e/ou subverso, capaz de ser reconhecido em sociedades distantes no
espao e no tempo, mantendo esse mesmo sentido. Compartilhar essa abordagem impedia que
muitos pesquisadores levassem em considerao a historicidade, os conflitos locais e os
diferentes significados conferidos pelos sujeitos histricos em cada contexto.20
Obras como as de Maria Clementina Cunha e Leonardo Pereira desconstroem,
ainda, uma noo de linha evolutiva do carnaval carioca. Para uma historiografia tradicional,
o carnaval teria tido sua infncia com o entrudo (no perodo colonial), sua adolescncia com
os ranchos e cordes (final do Imprio e incio da Repblica), e sua maturidade com as
Escolas de Samba (a partir dos anos 1930).21 Essa evoluo linear traz consigo uma imagem
de caminho pacfico e retilneo pelo qual a festa estaria fadada a percorrer, at chegar ao pice
evolutivo, representado pelas Escolas de Samba. Essa anlise, marcada por uma viso
apriorstica do processo histrico (sabendo qual o resultado antes dele acontecer), impediu
que, durante dcadas, se encarasse o Carnaval como um objeto de estudos relevante e repleto
de possibilidades e conflitos internos. As disputas foram muitas at que uma ou outra forma
alcanasse espao de destaque; vrias alternativas foram derrotadas e silenciadas nesse
caminho, e ainda precisamos conhec-las melhor.
Portanto, aps ter os caminhos abertos por essas pesquisas, propus para essa
dissertao uma anlise mais detalhada de experincias da populao negra do Rio de Janeiro
no Carnaval e seus embates com outras presenas significativas na festa, destacadamente a
19
FERREIRA, Felipe. Inventando Carnavais: o surgimento do carnaval carioca no sculo XIX e outras
questes carnavalescas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005 (Col. Histria, Cultura e Idias, v.3). P.142-143.
20
Obras que expressam essa viso universalizante dos sentidos do carnaval: DAMATTA, Roberto. Carnavais,
malandros e heris. Rio de Janeiro: Zahar, 1982 & QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval Brasileiro: o
vivido e o mito. So Paulo: Brasiliense, 1992.
21
Esta viso foi consagrada pelo livro Histria do Carnaval carioca de Eneida de Moraes, que data de 1957.
MORAIS, Eneida de. Histria do Carnaval carioca. Rio de Janeiro: Record, 1987.
20
imprensa carioca e a represso policial. Mas como estabelecer contato com esses sujeitos
muitas vezes menosprezados pelas fontes (e mesmo por historiadores)?
A valorizao da histria vista de baixo, os questionamentos envolvendo a
experincia, a vivncia das pessoas comuns e a crise dos grandes modelos explicativos,
alm da reduo na escala de anlise, trouxeram tona reflexes importantes na Histria
Poltica, Econmica e tambm na Histria Cultural. Ao longo dos anos 1980, estas reflexes
dariam frutos importantes para o estudo do passado, como o conceito de Cultura Poltica.
O status acadmico do conceito de Cultura Poltica foi fruto da produo de dois
cientistas polticos estadunidenses: Almond e Verba. Suas pesquisas buscavam compreender
as origens dos sistemas polticos, sobretudo o democrtico, em meio ao contexto da Guerra
Fria22. Entre as dcadas de 1950 e 1960, sob influncias multidisciplinares (com importante
destaque para a psicologia), Almond e Verba conceituaram cultura poltica como a expresso
do sistema poltico de uma determinada sociedade nas percepes, sentimentos e avaliaes
da sua populao23.
Segundo esses autores, a utilizao da categoria cultura poltica propiciaria o
melhor entendimento dos sistemas polticos dos estados nacionais contemporneos. Por isso
entendiam e buscavam a caracterizao da cultura poltica nacional, assim como a
comparao entre elas. Essa perspectiva veio associada a uma tipologia entre as culturas
polticas. Podemos afirmar que tal tipologia estabelecia uma hierarquia entre as diferentes
culturas polticas nacionais. A cultura poltica cvica (com indivduos atuantes, conquistada
pelas democracias liberais) representava o modelo ideal, tendo como exemplo mximo a
cultura poltica dos Estados Unidos da Amrica. Abaixo dela vinha a cultura poltica de
sujeio (estados autoritrios, passividade e aceitao) e por fim a cultura poltica paroquial
(onde h pouca insero dos indivduos do sistema, marcante nas sociedades tradicionais).24
Ao longo dos anos 1980, a Histria Poltica tambm abrir espao para os debates e
renovaes produzidas a partir da incorporao de novas categorias: etnia, gnero, pacto,
negociao e a prpria categoria de cultura poltica.
22
MOTTA, Rodrigo Patto S. Desafios e possibilidades na apropriao de cultura poltica pela historiografia.
In: MOTTA, Rodrigo Patto S (Org.). Culturas polticas na histria: novos estudos. Belo Horizonte:
Argvmentvm, 2009, p. 13-37.
23
Apud, KUSCHNIR, Karina e CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimenses subjetivas da poltica: cultura
poltica e antropologia da poltica. Revista Estudos Histricos, vol. 13, n. 24, 1999, p. 227-250. P. 228.
24
DUTRA, Eliana R. de. Histria e culturas polticas definies, usos, genealogias. Varia Histria, n. 28,
2001, p. 13-28.
21
25
22
23
disse Ginzburg sobre as fontes30. Foi atravs delas que surgiram para mim como problema
histrico relevante figuras como os diabinhos e os Cucumbis.
Entre notcias policiais e editoriais sobre a festa apareciam constantemente fantasias
de diabinho, sempre criticadas e associadas violncia e degenerao do carnaval. Sua
presena parecia amedrontar jornalistas e ameaar famlias durante os dias de Momo.
Constantemente associados com capoeiras e crimes, os diabinhos apareciam muitas vezes nos
jornais adjetivados como escravos, pretos, pardos e crioulos, mais do que qualquer outra
fantasia. Esses folies endiabrados conquistaram espao nessa pesquisa, que lhe dedica um
captulo inteiro, a partir da imagem construda pela imprensa: capoeiras, violentos, crioulos,
desordeiros. Entretanto, tentaremos ultrapassar esses esteretipos no captulo Diabos
Encarnados.
Tambm foi por meio dos peridicos que os Cucumbis Carnavalescos despertaram
minha ateno. Esses grupos carnavalescos passaram, a partir de 1884, a aparecer anualmente
nos jornais, com mais fora e complexidade. No que inexistissem anteriormente, mas a
partir desse perodo que sua presena cada vez mais notada e desperta curiosidade da
imprensa. Eram vistos como grupos africanos no carnaval, contando e cantado histrias de
fricas em plena dcada de 1880. No poderia deixar de buscar maiores informaes e
possibilidades interpretativas acerca desses grupos de negros e negras que se fizeram
presentes nos ltimos carnavais antes da Abolio como veremos no captulo Cucumbis
Carnavalescos.
Visando ampliar o conjunto de relatos sobre esses antigos carnavais busquei os
textos de viajantes, memorialistas e folcloristas. O olhar estrangeiro e distante (comumente
preconceituoso) dos viajantes que passaram pelo Rio e viveram carnavais na dcada de 1880
foi de grande valia para essa pesquisa. Comumente pouco habituados com o funcionamento
da sociedade carioca, descreviam a festa sem muitas das limitaes culturais dos nacionais.
Pioneiros no registro de prticas culturais, memorialistas e folcloristas produziram
obras muito teis para qualquer pesquisador social da cultura. Apesar de suas obras serem
muitas vezes datadas e marcadas por preconceitos e esteretipos do passado, elas so muito
valiosas quando historicizamos seus autores, como j nos alertou Thompson.31
30
31
GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros verdadeiro, falso, fictcio. So Paulo: Companhia das letras, 2007.
THOMPSON. Folclore e antropologia... op. cit
24
Apesar da inestimvel ajuda da Professora Maria Clementina Pereira Cunha, no foi possvel encontrar esses
registros no Arquivo Nacional.
33
Processo j to bem analisado por CHALHOUB. op.cit. e CUNHA. op.cit.
25
Aps recolher, tratar e pensar sobre todas essas fontes e questes, restava
empreender a redao da dissertao. Em busca da melhor forma de transmitir os resultados
da pesquisa, estabeleci uma diviso em quatro captulos. O primeiro, chamado Pginas
Carnavalescas, tem como foco principal a relao da imprensa com o carnaval. Os debates
em torno do entrudo, da abolio da escravido e dos projetos modernizadores para a nao se
destacam, lado a lado com as representaes jornalsticas do carnaval do Z-Povinho, os
desqualificados folies cariocas.
No captulo dois, Prises Momescas dos Jornais Casa de Deteno, pretendi
empreender uma analise mais detalhada da represso sobre as prticas carnavalescas da
populao negra do Rio. Para tanto utilizei os registros de crimes e prises nos jornais, para,
num primeiro momento, mapear a imagem desses folies nas folhas dirias: suas fantasias,
cores, motivos. Em seguida, a partir das fontes do Arquivo Pblico do Estado do Rio de
Janeiro, os Livros de Registro da Casa de Deteno, busquei a represso policial ao longo da
dcada compreendida entre 1879 e 1888. Assim pude estabelecer padres, permanncias e
transformaes, alm de discutir questes relativas a questes raciais e diferentes espaos
festivos na cidade.
Em seguida, as pginas so tomadas pela figura dos Diabos Encarnados. Esse
captulo tem como objetivos principais: 1) entender o processo de criao de imagens e
esteretipos por parte da imprensa sobre a fantasia de diabinho, que genericamente foi
associada a imagens de violncia, crime e medo nos dias de carnaval; 2) pensar sobre a prtica
desses diabinhos por parte da populao negra da cidade, levando em conta os variados usos
dessa fantasia como caminho para uma atuao individual e autnoma na festa.
Para concluir, buscaremos entender a ao coletiva de sujeitos socialmente
reconhecidos como negros nos dias de carnaval. Os Cucumbis Carnavalescos nos
possibilitam pensar sobre a formao de grupos e identidades baseadas em imagens de fricas
e de um passado comum em meio aos carnavais da dcada de 1880.
Acredito que dessa forma foi possvel compor um quadro amplo dos carnavais
cariocas da dcada de 1880, capaz de levar em conta diferentes olhares sobre a festa e sobre
os processos sociais em curso. Imprensa, viajantes, folcloristas, polcia, diabinhos e Cucumbis
representam vrios caminhos de ao nesse cenrio conflituoso. Nas pginas que se seguem
26
eles ganham vida em busca de seus projetos, muito diferentes entre si, mas que compartilham
a urgncia de se debater autonomias e liberdades atravs do carnaval.
27
I - Pginas Carnavalescas
As ruas do municpio neutro, Corte do Imprio do Brasil, estavam diferentes. A viso
ainda pouco acostumada s peculiaridades de terras brasileiras fez o viajante norte-americano
se assustar com o cenrio do Rio de Janeiro nas primeiras semanas de maro de 1886. Frank
Vincent passaria 20 meses rodando a Amrica do Sul, passando pelas principais cidades do
continente.34
No Rio de Janeiro, participou da maior street scene da cidade: o carnaval.
Estandartes, bandeiras, lanternas coloridas e plantas vestiam as ruas para a festa. Seu olhar,
literalmente estrangeiro, pode nos fornecer importantes pistas e variadas questes do carnaval
das ruas do Rio na ltima dcada de vigncia da escravido no Brasil.
Na tera-feira de carnaval, 09 de maro de 1886, nosso visitante assiste passagem
da grande procisso do carnaval pela Rua do Ouvidor. Em suas palavras, era uma procisso
convencional com bandas militares cavalo, damas e cavaleiros do sculo XVII,
representaes de eventos polticos recentes e no chamou muito sua ateno. Apenas um
dos carros lhe pareceu digno de meno; este foi um grande sucesso nas ruas. O carro
representava uma montanha,
no topo da qual quatro negros estavam empenhados em cantar e jogar cartas. Dois senhores de
escravos se esforavam para escalar a montanha na perseguio aos negros, mas no momento em
que eles estavam prximos de alcanar o topo, as efgies de dois famosos abolicionistas saltavam
das profundezas, e os desbaratados senhores escorregavam mais uma vez para o p da
montanha35.
34
VINCENTE, Frank. Around and About South America: twenty months of quest and query. New York, D.
Appleton &Co. Sold by Keagan Paul, Trench, Trbner & Co, Ltd., London, 1890.
35
Idem. Traduo minha do original: Just then some unsavory disclosures had been made regarding the
treatment of slaves, and I remember a successful hit was that made by a hill, upon the top of which four negroes
were engage in singing and playing cards. Up this hill, two slave-owners were striving to climb in pursuit of the
negroes, but just as they were about to reach the summit, the effigies of two well-known abolitionists were shot
up out of the depths before them, and the discomfited owners slid back at once to the bottom of the hill. P.229.
28
Este carro de ideias36, intitulado Glria aos Abolicionistas, fechava o prstito dos
Democrticos. Na Revista Ilustrada este carro foi vangloriado e sua cena foi descrita assim:
Na Gazeta da Tarde, os versos que compunham essa aluso foram transcritos como
uma ode ao movimento abolicionista. Neles os democrticos se afirmam folies, mas que
tambm tm muito brio e coraes, e que por isso do turba, alm das desejadas
gargalhadas, cenas da sociedade que ainda quer tolher o passo liberdade. Assim narram a
situao:
36
Como eram chamados os carros alegricos das sociedades carnavalescas que traziam aluses polticas ou
crticas sociais s ruas. Ver CUNHA. Ecos Da Folia... op. cit.
37
Revista Ilustrada. Ano 11 n429 20 de maro de 1886. P6 Biblioteca Nacional.
38
29
Mas eis que surgem os intrpidos heris: Joaquim Nabuco e Jos do Patrocnio!
Eles obrigam os maus irmos (escravocratas), em nome do civismo, a se arriscarem nas
faces de um abismo. Esse carro evolui sob uma tempestade de aplausos, e os democrticos,
antevendo tal sucesso, concluem versando:
39
Idem.
VINCENT. Op. Cit. Negroes and mulattoes everywhere predominated. The childish delight and
extraordinary gayety of these participants, unprompted by liquor, and unflaggingly kept up all night, were
indoubtedly the most striking characteristic of this Rio Carnival. P. 30
40
30
31
modelos para a festa e a construo de imagens sobre o carnaval de rua e seus agentes,
genericamente chamados pela imprensa de Z-Povinho.
***
Para se compreender de forma mais abrangente o processo abolicionista e os projetos
para a nao que se enfrentavam no final do sculo XIX no Rio de Janeiro, ainda necessrio
o estudo mais atento sobre a atuao das elites intelectuais na festa que pretendiam eleger
como nacional e sua relao conflituosa com as prticas carnavalescas com predominncia de
escravos, libertos e negros livres.
O ponto de partida para esse captulo (e mesmo para essa dissertao) so os jornais
da cidade. Como diria o nostlgico Policarpo, personagem de Machado de Assis, narrador de
sua srie de crnicas BONS DIAS!,
Jornal antigo melhor que cemitrio, por esta razo que no cemitrio tudo est morto, enquanto
que no jornal est vivo tudo. Os letreiros sepulcrais, sobre montonos, so definitivos: aqui jaz,
aqui descansam, orai por eles! As letras impressas na gazeta antiga so variadas, as notcias
parecem recentes; a galera que sai, a romaria de amanh, uma explicao, um discurso, dois
agradecimentos, muitos elogios; a prpria vida em ao.43
Policarpo saudava os velhos tempos e velhos jornais, que para ele j no voltariam.
Mesmo assim sua inflamada defesa de jornais antigos nos ajuda a pensar como essas gazetas
estavam dialogando com os mais variados debates experimentados no dia-a-dia da cidade. Os
jornais da Corte na dcada de 1880 tiveram profunda ligao com o carnaval. Seja porque
muitos de seus autores eram membros das Grandes Sociedades Carnavalescas, seja porque
adquiriram grande prestgio e importncia na prpria legitimao da festa e de muitos
grupos44, os jornais so uma fonte riqussima para o estudo do carnaval.
Segundo Jos Murilo da Carvalho, o Imprio foi o perodo da histria brasileira em
que a imprensa foi mais livre [e] os jornalistas lutavam na linha de frente das batalhas
43
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortios e epidemias na Corte Imperial. So Paulo: Companhia das
Letras, 1996. P. 164-165
44
CUNHA. Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia... op.cit. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O
Carnaval das Letras. Op. cit.
32
Fica proibido o jogo do entrudo dentro do municpio: qualquer pessoa que jogar incorrer na
pena de 4$ a 12$000 rs, e no tendo com que satisfazer, sofrer de 2 a 8 dias de priso. Sendo
escravo sofrer 8 dias de cadeia, caso seu senhor o no mande castigar no calabouo com cem
aoites, devendo uns e outros infratores ser conduzidos pelas rondas policiais presena do juiz,
para os julgar vista das partes e testemunhos que presenciarem a infrao. As laranjinhas de
entrudo, que forem encontradas pelas ruas ou estradas, sero inutilizadas pelos encarregados das
rondas. Aos fiscais com seus guardas tambm fica pertencendo a execuo desta postura 47
Contudo, vinte anos depois, parecia urgente Cmara Municipal aprovar novas
especificaes sobre o combate ao entrudo. Assinado pelo presidente interino, Adolpho
Bezerra de Menezes, publicado o seguinte edital em 1875:
A disposio do 2 tit. 8 sec. 2 do cdigo de posturas, que probe o jogo do entrudo, fica
extensiva aos que lanarem sobre os transeuntes ou pessoas que se acharem as janelas de suas
casas, gua ou qualquer outro liquido, ainda que aromticos, por meio de seringas ou tubos; aos
45
CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da Ordem/Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2003.
46
Ver tambm CUNHA. Ecos da folia... op. cit.
47
Cdigo de posturas municipais 1854, Rio de Janeiro, Typ. 2 de dezembro. Biblioteca do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro.
33
que servirem-se para esses divertimentos de quaisquer ps; finalmente aos que atirarem para a
rua ou desta para as casas estalos fulminantes.48
48
34
Limo de borracha a 600rs., a dzia, nas casas da Cotia rua da Uruguaiana, n. 136 e da moura
rua da alfndega n. 121 A. [03/02/1882]
Carnaval. Grande emprio das bisnagas. Preos sem rival. 49 rua dos Ourives 49. [04/02/1882]
Bisnagas. Vende-se por atacado e varejo, pelo preo da fabrica. 87 rua da carioca 87.
[03/02/1882]
Grande emprio de bisnagas. Por atacado e a varejo. Importante sortimento de bisnagas para
todos os preos e com perfumes delicados, que no fazem mal aos olhos a nem estragaro os
vestidos. Largo de S. Francisco de Paula n. 14. [03/02/1882]
Bisnagas. Ainda restam mais de mil bisnagas para vender-se, rua dos Ourives, n. 115. Fazenda
mais bonita e mais perfeita que tem no mercado; s vendo-se [rasgado] [04/02/1882]
Bisnagas. Bisnagas. Novidade junto ao coreto da rua de Gonalves Dias vende-se por preos
admirveis, no Guimares barbeiro. Bisnagas. [04/02/1882]
1,000 dzias. Limes de cheiro. Vendem-se; na rua do hospcio n 145, sobrado. [04/02/1882]
Bisnagas, o que h de bom, rua do Ourives, charutaria do Madruga. Bisnagas. [06/-2/1882]49
Idem.
35
possibilitados pelos dias de Momo para muitos comerciantes. As mais variadas lojas se
revestiam de artefatos carnavalescos no apenas as mais chiques casas da Rua do Ouvidor,
mas tambm barbearias, charutarias e, aquelas com condies financeiras, recorriam s
folhas dirias para divulgar seus produtos. Por conseguinte, combater o entrudo pressupunha
se chocar tambm com interesses comerciais de grande parte da praa do Rio de Janeiro.
Por isso, quando em 1880, a Cmara Municipal aprovou a postura que impedia as
lojas comerciais de abrirem suas portas aos domingos e dias santificados, trinta e dois
comerciantes, com seus estabelecimentos situados todos na rea central da cidade, sendo a
maioria nas ruas da Uruguaiana, Alfndega, Ouvidor e Constituio, reivindicaram uma
licena especial para abrirem suas lojas no domingo de carnaval. Seu argumento era simples:
como em todos os anos passados, estes comerciantes encomendaram da Europa avultadas
quantidades de artigos para o carnaval, e por estes pagaram ao governo elevadssimos
direitos; como eles encomendaram os produtos antes da postura ser aprovada, sustentam que
no podem arcar com o prejuzo, visto que o Domingo de carnaval o dia de mais influncia
e nico no ano para a venda dos mesmos artigos.50
Os prprios comerciantes utilizam o argumento da importao de costumes e
instrumentos para civilizar a festa como justificativa para a permisso de seu trabalho no
Domingo. Obviamente grande parte das seringas, cera, mscaras, fantasias, estalos
fulminantes, confetes e serpentinas vendidos nessas lojas no vieram do outro lado do
Atlntico. Contudo, esses comerciantes se apropriam do discurso pedaggico e civilizador das
elites intelectuais para alcanar seu objetivo.
A postura sofreu tantos ataques e crticas que o vereador Gervacio Mancebo props o
seguinte na 39 sesso da Cmara, em 28/01/1880:
tendo a proposta sobre o fechamento das portas dado lugar a vrias reclamaes por parte do
comrcio, e a judiciosas observaes da imprensa, parecendo que no tem ela produzido as
vantagens e os bons resultados que a Illma. Cmara esperava, quando a elaborou; proponho que
se revertam todas as reclamaes e papis concernentes a esta questo ao Sr. Vereador Soares, a
50
36
fim de, revendo a referida postura, formul-la de acordo com os interesses do comrcio e da
populao desta cidade51
cpia do ofcio da Junta Central acerca da postura que manda fechar as portas dos
estabelecimentos comerciais nos domingos e dias santificados. Posta em discusso esta portaria,
o Sr. Vereador Joo Francisco Soares, apresentou a seguinte proposta:
Indico que, por parte desta cmara se oficie ao Sr. Ministro do imprio, propondo a suspenso
da execuo da postura sobre o fechamento das portas. Rio, 13 de fevereiro de 1880. Joo
Francisco Soares52
51
52
37
Abolio e carnaval
No desenvolvimento da imagem perigosa do entrudo e na exigncia constante de
sua extino, a imprensa ocupou papel de destaque. Usando argumentos cientficos (como por
exemplo, dizendo que a gua e as imundices ajudariam na propagao de epidemias de febre
amarela) e sociais (as classes perigosas)53, muitos jornalistas pediram a proibio do
entrudo e as autoridades policiais, muitas vezes afinadas com esse discurso, publicaram uma
srie de editais proibindo sua prtica e a cmara dos vereadores tentou impedir a difuso de
seus principais instrumentos (como vimos a pouco).
Mas no era o caso de simplesmente proibir o jogo popular. Segundo Cunha, estes
intelectuais possuam um programa de civilizar o Brasil que tambm passava por novas
formas de se brincar o carnaval: era preciso importar o Carnaval europeu para substituir o
entrudo. O carnaval, de inspirao veneziana, representaria o progresso, o novo, o moderno,
enquanto o entrudo representaria o atraso, o antigo, o colonial no cabia mais na sociedade
brasileira que esses grupos urbanos pretendiam criar.54
Percebemos aqui uma clara disputa pelo smbolo Carnaval: uma luta simblica para
impor a definio do mundo social, como diria Bourdieu55. Dominar o poder simblico era
fundamental nessa disputa, pois deter esses smbolos significava a chance de construir a
realidade a partir de seus interesses.
Por conseguinte, muitssimos contos e artigos de jornal foram publicados declarando
a morte do Entrudo, sua derrota frente ao Carnaval, a ridicularizao de suas formas e
daqueles que a praticavam56. Em contra partida vemos a crescente valorizao por parte dos
jornais das Grandes Sociedades Carnavalescas. Estes grupos, surgidos em meados do sculo
XIX, e que atingiram seu auge a partir de 1870, representavam e atuavam com base em
projetos modernizadores muito semelhantes aos defendidos por boa parte dos jornalistas e
literatos tambm pudera, muitos de seus membros eram jornalistas e literatos. Portanto,
importante analisarmos quais as inspiraes e modelos que pautavam a atuao social desses
jornalistas em finais do sculo XIX e que se estenderiam aos dias de carnaval.
***
53
38
57
39
cultura a fatores naturais, como o clima e a raa, colocando em segundo plano os conflitos
sociais, culturais e as singularidades histricas60.
Por conseguinte, a partir da dcada de 1870, principalmente, haver uma gradual
incorporao do negro e do escravo na literatura e na cultura. Entretanto, isso acontecer de
forma ambgua. Ao mesmo tempo em que se reconhece a participao do negro na construo
da nao e a defesa da emancipao por grande parte dos literatos, as vises racialistas e as
teorias de inferioridade das raas ganham espao. A partir de uma viso eurocntrica, muitos
intelectuais iro entender o elemento negro como causa dos problemas sociais enfrentados
pelo Brasil. Da o crescimento de muitas propostas de imigrao europeia para que, atravs da
miscigenao, aos poucos se embranquecesse a nao61. A presena negra no Brasil deveria
estar localizada em espaos determinados, geralmente no passado, tendo suas prticas
folclorizadas.62
A imprensa apresentar-se- como um dos espaos mais frteis para as discusses
acerca desses temas: progresso, civilizao, liberdade e nao, entre outros. Os textos
publicados na Gazeta de Notcias, na Gazeta da Tarde e na Revista Ilustrada, trazem a tona
essas discusses, colocando em destaque a questo do abolicionismo e qual o papel que
senhores, intelectuais e escravos deveriam assumir nesse processo. Nos dias de carnaval, esses
peridicos no furtar-se-o em expor seus projetos tambm para os rumos da festa nesse
contexto.
Esses trs rgos da imprensa carioca possuam estreitas relaes com os
movimentos abolicionistas, principalmente aqueles de vis mais moderado e legalista. A
Gazeta de Notcias foi a primeira grande folha diria a defender o abolicionismo. Havia sido
fundada em 1876 por Ferreira de Arajo, e representou correntes abolicionistas mais
moderadas, contudo, ainda publicava anncios de escravos fugidos, aluguel e venda de
60
VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: Histria cultural e polmicas literrias no Brasil, 1870-1914. So
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
61
Idem.
62
Essa postura de reconhecer a importncia do elemento negro para a cultura brasileira, mas que ao mesmo
tempo este elemento deveria ser entendido como pertencente ao tempo pretrito foi bem caracterstica de
intelectuais como Mello Moraes Filho. Ver ABREU, Martha. Imprio do Divino... op.cit
40
cativos, pois dependia de anunciantes.63 Segundo Nelson Werneck a Gazeta de Notcias era,
realmente, jornal barato, popular, liberal, vendido a 40 ris o exemplar64.
A Gazeta da Tarde, propriedade de Jos do Patrocnio a partir de 1882, abertamente
apresentava maior identificao com os abolicionistas atuantes na imprensa e na esfera
poltica65. Em sua redao havia sido fundada em 1883 a Confederao Abolicionista. Por
conta dessa afinidade ideolgica, no aceitava a publicao de anncios de escravos fugidos,
ou de aluguel ou venda de cativos.
A Revista Ilustrada era propriedade de Angelo Agostini, artista abolicionista
renomado no Rio de Janeiro. Fundada em 1876, a Revista Ilustrada atingiu logo grande
popularidade, e consegui manter sua independncia dos anunciantes, desfrutando de liberdade
significativa ao abordar temas polticos cruciais do imprio.66 A atuao de Agostini no
movimento abolicionista do Rio de Janeiro foi marcante, assim como as pginas de sua
revista. Segundo Balaban:
Abordava os temas mais srios pela via do humor e foi descrito por Jos do
Patrocnio como o poeta do lpis. O que lhe tornava poeta eram as musas por ele
cultuadas: justia, fraternidade e liberdade. Assim, no importava se o instrumento usado era
menos nobre para a poca (o lpis), culto a to elevadas musas garantia o lugar de Agostini
entre grandes cultores da arte potica, como afirmou Balaban.68 Por esse motivo suas
ilustraes estaro presentes como fontes nos diferentes captulos dessa dissertao.
63
MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados. A imprensa abolicionista do Rio de Janeiro.18801888. Tese de Doutorado, So Paulo, Universidade de So Paulo, 1991.
64
SODR, Nelson Werneck. Histria da Imprensa no Brasil. So Paulo: Mauad, 1994. P 257.
65
MACHADO, Humberto. Op.cit.
66
SODR. Op.cit. P. 249-252. BALABAN, Marcelo. O poeta do lpis: a trajetria de Angelo Agostini no Brasil
Imperial So Paulo e Rio de janeiro 1864 e 1888. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de
Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob orientao do
Prof. Dr. Sidney Chalhoub. 2005.
67
BALABAN. Op.cit. p. 6
68
BALABAN. Op.cit. P. 33
41
Apesar de obviamente apresentarem conflitos internos e diferenas entre si, esses trs
rgos da imprensa carioca possuam caractersticas ideolgicas bem prximas quelas
defendidas pelos principais abolicionistas atuantes na cidade do Rio. Se nos aproximarmos do
pensamento dos dois personagens protagonistas do carro de ideias que ilustrou o incio desse
captulo Joaquim Nabuco e Jos do Patrocnio , poderemos entender mais nitidamente essa
relao entre abolicionismos e imprensa e como isso se desdobrava nos dias de carnaval.
Joaquim Nabuco e Jos do Patrocnio foram os principais representantes de um
abolicionismo chamado por grande parte da historiografia de paternalista-reformista69, na
cidade do Rio de Janeiro. Segundo Ricardo Salles, defendiam uma ordem social psescravista que buscasse a constituio de uma cidadania democrtica com a incorporao de
ex-escravos e demais excludos70. E esse processo deveria ser controlado pelos membros mais
ilustres do movimento, atravs da imprensa e do parlamento.
A postura poltica de Nabuco esclarecedora nesse sentido. A escravido era uma
mancha que impedia o pas de se aproximar do progresso e da civilizao. Logo era um
ferrenho defensor da emancipao, contudo, acreditava que ela deveria vir atravs de uma lei
do Parlamento. Nabuco fazia sua propaganda abolicionista para os senhores, atravs da
tribuna parlamentar e atravs da imprensa, por meio de conferncias e comcios, mas jamais
incitou a revolta escrava. Defendia uma abolio dentro da ordem, coisa que os escravos no
estariam preparados para empreender71.
Seu projeto abolicionista possua um carter nitidamente pedaggico em dois
aspectos: 1) pretendia ensinar aos senhores a importncia da abolio para o crescimento do
Brasil; 2) ensinar aos escravos como se portar em sua nova condio de livres e cidados.
Essa postura paternalista fazer a abolio pelos escravos, pois esses eram incapazes,
precisavam de tutela, proteo e representao se associava ao carter reformista das
propostas de Nabuco. Ele pretendia transformar as relaes de trabalho rumo ao trabalho
livre; pretendia criar uma lei agrria para dividir terras improdutivas entre os ex-escravos;
incentivar a imigrao de europeus para que as tenses raciais fossem amenizadas. Todas
essas medidas visavam a transformao sem convulses sociais, sem revoltas ou
derramamento de sangue.
69
42
Essa postura era muito semelhante defendida por Jos do Patrocnio, que, apesar da
maior radicalizao empreendida por ele nos anos de 1887 e 1888 (atravs do apoio a fugas e
acoitamento de escravos), tinha na base de seu pensamento um processo de abolio gradual,
cautelosa e harmnica, preservando o controle social sobre o processo e tutelando os cativos
at alcanarem o trabalho livre.72
Contudo, como ressalta Ricardo Salles, apesar do carter legalista de grande parte do
movimento abolicionista, como no exemplo de Joaquim Nabuco e Jos do Patrocnio, nada
autoriza uma leitura [desse] abolicionismo como um movimento conservador, que estivesse
buscando se antecipar a uma temida revoluo popular. preciso lembrar que o
abolicionismo propunha a destruio de um regime secular e a construo de uma nova
sociedade, buscando incorporar a herana da parte excluda do velho mundo que se desfazia73.
Como fica evidente ainda nos dias de hoje, a viso de uma sociedade mais inclusiva,
com uma cidadania democrtica, que incorporasse os excludos foi derrotada por uma viso
de nao que reforou muitos produtos da escravido: o monoplio da terra, a excluso social
da maioria da populao e um mecanismo de mobilidade social excludente que possibilita a
ascenso de poucos74.
Mas esse futuro no era conhecido na dcada de 1880. Ali, em meio a todas essas
discusses, abolicionistas, elites intelectuais e escravos, libertos e negros livres iro se
encontrar nas ruas ao longo do carnaval carioca.
Ao ler os jornais nos dias de carnaval neste perodo, percebemos que houve outra
frente de atuao para os grupos que pretendiam modernizar o Brasil, aumentando a
velocidade do que eles entendiam como progresso: a festa carnavalesca se tornou palco de
projetos pedaggicos para ensinar o povo o que era Carnaval, mas tambm ensinar como
deveriam se portar na sociedade nos demais 362 dias do ano. Esses projetos se apresentam de
forma muito clara em duas frentes: os jornais e as Grandes Sociedades Carnavalescas.75
Os prstitos das Grandes Sociedades, inspirados no carnaval europeu, pretendiam
ensinar ao povo como brincar o carnaval: organizadamente, apenas assistindo ao desfile,
72
43
como plateia e no mais como atores, como j ressaltou Maria Clementina Cunha76.
possvel percebemos um paralelo interesse entre a postura das sociedades carnavalescas e de
muitos abolicionistas da Corte.
Ora, se Joaquim Nabuco e Jos do Patrocnio defendiam uma emancipao tutelada
pelos abolicionistas na imprensa e no Parlamento, as Grandes Sociedades Carnavalescas, em
consonncia com muitos jornalistas, pretendiam tutelar a forma de participao da populao
no Carnaval. O primeiro passo deveria ser a proibio do entrudo, prtica antiga, desordeira e
incompatvel com o carnaval moderno; o segundo passo deveria ser a transformao dos
folies em plateia das Grandes Sociedades. significativa a proximidade com o projeto
paternalista e reformista para a abolio defendido por abolicionistas como Nabuco.
Anualmente as Grandes Sociedades Carnavalescas colocavam nas ruas exemplos
prticos e visualmente significativos da representao carnavalesca dessa postura
abolicionista paternalista-reformista. A Gazeta da Tarde, no carnaval de 1883, prestou
homenagens a atitude dos Tenentes do Diabo. Essa sociedade esmolou em favor da liberdade
dos escravos77, e essa no era a primeira vez que demonstravam todo o seu humanitarismo.
No ano seguinte, a Gazeta da Tarde voltava a louvar os Tenentes do Diabo, pois
mostraram que o carnaval no era uma festa efmera ao distribuir algumas cartas de
liberdade a alguns pobres escravizados78. Depois, esses libertandos saram junto com a
Grande Sociedade desfilando sob aplausos e vivas. A prpria Confederao Abolicionista lhes
concedeu uma coroa de flores, entregue em plena rua do Ouvidor pelo prprio Joo Clapp,
presidente da Confederao Abolicionista, demonstrando publicamente a proximidade e
amizade cultivada pela organizao abolicionista mais importante da cidade e as sociedades
carnavalescas:
76
44
79
80
GT 27/02/1884 - BN
MACHADO. Palavras e brados... op.cit.
45
Como que num outro extremo desse conjunto de fontes, encontramos o Jornal do
Comrcio. Mantendo sua postura conservadora, mais alinhada aos grupos sociais
escravocratas, o Jornal do Comrcio praticamente ignorava as lutas pela liberdade no
carnaval e no Brasil. At os ltimos suspiros da escravido, se manteve publicando anncios
de compra, venda e aluguel de escravos, assim como recompensas para a captura de escravos
fugidos.81 Nos dias de carnaval, valorizava tambm as Grandes Sociedades, mas no
apresentava vnculos ideolgicos mais estreitos, justamente pela sua distncia dos ideais
abolicionistas. Logo, a prpria imprensa do perodo apresentava divergncias polticas e de
projetos de nao e de carnaval.
Entretanto, compartilhavam olhares estereotipados sobre a cultura negra, valorizando
padres ocidentais brancos. Mesmo queles que defendiam o fim da escravido raramente
escapavam de explicaes racializadas ou que pelo menos ajudavam a compor imagens de
inferioridade cultural para a populao negra. As tenses raciais estavam em debate tambm
nos dias de Momo: os negros fantasiados de diabinhos, os Cucumbis82, suas danas e cantos
deveriam se dissolver com o Carnaval europeizado, defendido e presunosamente propagado
pelas Grandes Sociedades Carnavalescas, com aval e divulgao de importantes veculos da
imprensa.
Idem ibidem.
Grupos formados por negros, que empreendiam um desfile coreografado nos dias do carnaval. Estes grupos
so vistos pelos jornalistas da poca como detentores de tradies africanas. interessante pensar nos
significados de participar de um grupo africano no Rio de Janeiro trinta anos aps o fim do trfico atlntico.
Ver captulo Cucumbis Carnavalescos.
82
46
83
CUNHA. Ecos... op.cit. e PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e
folia no Rio de Janeiro do sculo XIX. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2004.
84
ABREU, Martha Campos. O Imprio do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. So Paulo: Nova Fronteira, 1999.
85
Idem. P. 266
86
Idem. P. 267
47
87
DEBRET, Jean Babtiste. Viagem pitoresca e histrica ao Brasil. Belo Horizonte/So Paulo: Itatiaia/USP,
1989. P. 268
88
COARACY, Vivaldo. Memrias da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1965. P.336337.
89
Apud CUNHA. Ecos das folia... op. cit. p. 40
90
CHALHOUB. Vises da Liberdade uma histria das ltimas dcadas da escravido na Corte. So Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
91
Idem. ibidem
48
como a causa da liberdade avanara de forma irresistvel nas duas dcadas anteriores(...), e os
escravos agora pareciam mais ativos ou at capazes de levar a melhor no confronto com os
senhores (...) Os escravos, libertos e negros livres pobres da Corte haviam institudo um cidade
prpria, arredia e alternativa, ao longo de dcadas de luta contra a instituio da escravido (...)
Esta cidade negra se fez atravs de movimentos e racionalidades cujo sentido fundamental,
independentemente ou no das intenes dos sujeitos histricos, foi inviabilizar a continuidade da
(...) escravido na Corte(...) A formao da Cidade Negra o processo de luta dos negros no
sentido de instituir a poltica ou seja, a busca pela liberdade onde antes havia
fundamentalmente a rotina.95
92
Idem. Ibidem.
Idem. Ibidem, e PENNA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa imperial jurisconsultos, escravido e a lei de
1871. Campinas: Unicamp/Cecult, 2001.
94
SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A negregada instiuio Os capoeiras no Rio de Janeiro, 1850 1890.
Dissertao de mestrado apresentada ao Departamento de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
da Universidade Estadual de Campinas, 1993. Especialmente o captulo 3 e SALLES, Ricardo. Guerra do
Paraguai: escravido e cidadania na formao do exrcito. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990
95
CHALHOUB. Op.cit. p.152 e 185-186.
93
49
96
CARVALHO, Jos Murilo de. A poltica da Abolio: o Rei contra os bares IN: A Construo da
Ordem/Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. pp 291-328
97
MACHADO, Maria Helena. O plano e o pnico. Movimentos sociais na dcada da Abolio. Editora UFRJ
/ EDUSP. So Paulo, 1994.
98
Expresso utilizada por Sidney Chalhoub. Vises... Op.cit.
99
EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. 3 v.
50
Figura 1. Domin segurando porta voz. Ilustrao de A.D. In: EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu
tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. 3 v. P. 788.
Os princezes eram nada mais que imitaes de prncipes europeus, com coroas e
espadas de papelo. Muitas vezes faziam par com os velhos de cabea grande, animando suas
danas. A esses velhos de cabea grande era exigida uma prerrogativa: ser exmio danarino.
Estes se vestiam de velho aristocrata e colocavam cabeorra de papelo. Segurando em uma
mo uma luneta e noutra uma bengala, executavam passos complexos para delrio do pblico
(Figura 2). Segundo Luiz Edmundo:
Dana chula, sapateado de origem africana, mais dana de ps e de pernas que de tronco, uma
vez que o busto tem que se manter ereto, os brao movendo-se, apenas, para estabelecer o
equilbrio da figura. um exerccio diablico em que os ps ora resvalam, ora entrecruzam,
movimento agitado de pernas que se juntam e que se afastam, no raro caindo em desfalecimentos
procurados para fazer tombar o corpo, que deve estar sempre no seu prumo majestoso e senhoril.
51
Nesse jogo de membros inferiores, o velho est, com o bico do p, no lugar onde dana, figuras
espaventosas, que a gentalha da rua conhece e explica: linhas, letras, nomes, desenhos.100
Figura 2. Dana de velho. Ilustrao de Calixto. In: EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. 3 v. p.789.
100
101
52
associados por essas fontes a indivduos reconhecidos socialmente como negros. Apesar das
fantasias de domins serem timas para disfarar as identidades sociais e que geralmente os
velhos de cabea grande fossem capoeiras, os diabinhos receberam com muitssimo mais
frequncia adjetivos racializados e estavam majoritariamente aparecendo nos jornais
envolvidos em conflitos. Contudo, ambas as prticas no so uma novidade da dcada de
1880. Fantasias de diabinhos estiveram presentes em procisses religiosas ao longo do sculo
XIX e os Cucumbis aparecem recorrentemente em festas ainda no perodo colonial.
Entretanto, na dcada de 1880, a fantasia que aparece adjetivada com os termos
preto, pardo, crioulo e escravo a de diabo, tanto nos jornais pesquisados (Gazeta de
Notcias, Jornal do Comrcio e Gazeta da Tarde entre os anos de 1879 e 1888) quanto em
memorialistas e viajantes. Mesmo quando a condio racial no textualmente publicada, a
associao do diabo com prticas socialmente reconhecidas como negras comum como a
associao de diabos com capoeiras e a construo de uma imagem de violncia e perigo.
De forma ainda mais explcita os Cucumbis so retratados como grupos de pretos, e
diretamente ligados a prticas africanas. Eles conquistaram grande visibilidade na dcada da
abolio. No que antes eles no sassem no carnaval, mas a nova conjuntura poltico-cultural
permitiu que tivessem maior espao na imprensa, principal fonte para estud-los at o
momento.
Devemos nos perguntar quais os impactos da imagem que muitos literatos e
membros das Grandes Sociedades Carnavalescas defendiam e propagavam para o carnaval na
interpretao e atuao dessa populao negra na festa. Como ressalta Leonardo Pereira, tal
imagem defendia o carnaval como o tempo da loucura, da permissividade e da liberdade 102.
Entendendo a liberdade como um campo de conflitos103, podemos nos perguntar como
escravos, libertos e negros livres entenderam e utilizaram os dias de carnaval. As palavras de
Leonardo Pereira servem de inspirao para essa empreitada:
102
53
Mais do que cantar e danar ao som de tambores, eles faziam dos dias de Momo um momento de
completa liberdade dando um outro significado permissividade to alardeada pelos poetas e
romancistas que defendiam um outro modelo de carnaval.104
Logo, concordo com Martha Abreu, quando afirma que o carnaval, como tempo da
liberdade, se apresentou como um local atraente para as variadas prticas culturais
perseguidas e discriminadas no ltimo quartel do sculo XIX105. Acrescento que essas prticas
trouxeram consigo vises e discusses sobre a prpria liberdade e a participao na festa, e
consequentemente na nao brasileira.
Portanto, os debates que ocuparam as primeiras pginas dos jornais e os discursos
parlamentares e que apareciam cada vez mais na fala do trono, ou pautavam medidas
higienistas e posturas municipais, alm de estarem no alto de muitos carros das Grandes
Sociedades Carnavalescas, estavam presentes tambm nas senzalas e cortios, nos batuques e
irmandades. E na dcada de 1880, com mais fora do que nunca, podem ser visualizadas
atravs do carnaval, pelas diabruras de diabinhos encarnados e pelas danas e cantos de
negros moda africana dos Cucumbis.
As ruas do Rio tornaram-se, ento, palco de diversas frentes de tenses entre
concepes distintas de carnaval. Tenses essas inevitavelmente imbricadas em todas as
transformaes sociais em voga na dcada final da escravido. No captulo que se segue
iremos nos aproximar de uma das esferas de conflito que colocava frente a frente o brao
armado do Estado com a populao que praticava o carnaval de rua: analisaremos a represso
policial nos dias de carnaval.
104
54
55
excluso e controle social que no afetavam apenas os escravos ou libertos, mas tambm a
populao negra livre. Nos dias de carnaval tais conflitos eram potencializados e novas
formas e justificativas para se manter o controle e a ordem eram debatidas nas ruas. Nesse
contexto, como resposta a essa situao, muitos argumentos e aes tm como alvo a
participao da populao negra na sociedade carioca. Por vezes assumem um carter
racializado, sobretudo em situaes de conflito mais explcito, como veremos neste captulo
ao analisarmos as prises nos dias de carnaval.
Com a crescente inquietao da populao negra, a ineficcia cada vez maior do
paternalismo e a evidente fragilidade da autoridade senhorial frente seus escravos, a partir da
dcada de 1880, ganha fora um duplo movimento, nas palavras de Wlamyra Albuquerque.
De um lado discutia-se, com a extino da escravido, se caberia a todos o pleno exerccio da
liberdade, e por outro lado a tentativa por parte de ex-senhores e membros das classes
abastadas em conservar as prerrogativas senhoriais mesmo aps a abolio.109
O processo de racializao foi um dos produtos dessas discusses, principalmente
entre intelectuais e cientistas110. Entretanto, no podemos considerar que as ideias racialistas
tenham ganhado as ruas da mesma forma como foram produzidas nas mentes de muitos
cientistas coevos. A noo de inferioridade ou superioridade de uma raa sobre a outra
apresentou aspectos sutis e velados e com variaes significantes no cotidiano carioca. Ao
analisarmos os jornais do perodo, podemos ter uma noo de que nem sempre a raa
explicitamente era utilizada para justificar a represso ou a eliminao de certas prticas
carnavalescas.
Na segunda-feira de carnaval de 1878, o jornalista reclama da multido postada na
Rua do Ouvidor. Pois, os meios que a multido encontrou para se divertir eram lamentveis:
Toda aquela multido ali postada, no contente em interromper o trnsito, entretinha-se ainda em
provocar as pessoas que passavam, ora atacando-as, no com as inocentes bisnagas de gua
perfumada, mas com outros instrumentos de dimenses muito maiores e que geralmente tem
aplicaes muito diversas. (...)
109
56
Nem senhoras, nem crianas, nem velhos, eram respeitados pelos folies e que assim deram uma
prova de uma educao no por demais apurada. (...)
Esperamos que amanh no se repitam tais acontecimentos, indignos de uma cidade civilizada.
Entretanto parece-nos que o meio mais seguro de evitar estes verdadeiros desacatos no
consentir aglomerao de povo naquele lugar. Se justo que quem no tem janelas procure a rua
para ver os prstitos carnavalescos, no menos justo que as famlias possam transitar
livremente sem receio de serem desatendidas.111(grifos meus)
preciso diz-lo com franqueza, o que ante ontem presenciamos nesta cidade, que durante um
ano se presume com foros de civilizada, foi uma verdadeira vergonha, um inaudito escndalo!
111
57
Ficou demonstrado a evidncia que a nossa populao, que apenas sai uma vez ao ano, ou no se
diverte, ou, divertindo-se h de recorrer a meios reprovveis, que s causam o dano e a anarquia.
(...) O entrudo apresentou-se desptico, anrquico, imundo e desordeiro.112
Mais uma vez a populao retratada como incivilizada, que s se diverte de forma
reprovvel, causando dano e anarquia, sujeira e desordem. Estes mesmos adjetivos sero
recorrentemente utilizados pela imprensa, por autoridades, polticos e senhores para retratar
escravos fugidos, libertos que no pretendem se sujeitar antigas relaes de trabalho,
participantes de batuques, candombls e demais festas de matriz africana.113
Em 1878 e 1879, o jornalista da Gazeta de Notcias ops o Povo s Famlias. As
prticas do povo eram sujas, anrquicas, desordeiras. Por isso as autoridades deveriam
interferir para garantir o direito das famlias de transitarem livremente sem o receio de serem
desatendidas. Ou seja, o direito de ir e vir, to caro noo de cidadania e fundamental ao
conceito de liberdade, era atributo das famlias atributo naturalizado pela notcia , j o
povo deveria sofrer a represso estatal, para impedir que promovessem a desordem.
Os antagonistas dessa disputa foram estabelecidos de forma sutil: de um lado as
famlias da Rua do Ouvidor, que estavam diretamente ligadas s representaes das Grandes
Sociedades Carnavalescas. Do outro lado ficava o povo. Ora, se a liberdade no um atributo
natural do povo, afinal quem esse povo presente no carnaval? A cor dos indivduos no
explicitada, as crticas s suas prticas esto direcionadas mais ao mbito cultural e no a uma
naturalizao racializada das diferenas.
Se ainda no descobrimos quem o povo, j sabemos que, nas palavras do jornalista
da Gazeta de Notcias, O Z Povinho quase s tem uma manifestao no carnaval: o
diabinho encarnado.114 Tambm, atravs da viso de certos jornalistas, durante os dias de
carnaval, a fantasia mais comum entre os mais desqualificados pela imprensa (Z-Povinho)
a de diabinho. Antes de enfrentarmos essa figura diablica preciso discutirmos mais
detalhadamente tanto a relao da imprensa com esses sujeitos quanto a represso policial s
suas prticas.
112
58
aparecia ainda como um perigo maior, porque permitia, em um carnaval habituado a avulsas
aluses de anrquicos mascarados, a aglutinao de folies pobres (na maioria negros e
mestios, semelhana da populao da cidade) em uma brincadeira coletiva que se ampliava e
assumia timbres ameaadores para as elites temerosas. 117
115
59
Idem.
Digitalizei 995 fichas de presos nos dias de carnaval nos anos de 1879, 1881, 1883, 1885, 1887 e 1888. Mdia
de 166 por ano. Se acrescentarmos os 4 anos que deixei de fora levando em conta essa mdia, chegamos a mais
de 1500 presos.
119
60
essas 62 ocasies 48 delas eram relatos de eventos violentos e conflituosos (como crimes,
agresses, assassinatos) e em 12 delas temos referncias a pessoas de cor representadas em
carros de ideias das Grandes Sociedades Carnavalescas, alguns fantasiados e integrantes de
Cucumbis.
Ou seja, em praticamente 80% das vezes em que os jornalistas publicam a cor dos
indivduos, eles esto relatando uma ao violenta e/ou criminosa. Portanto, importante
notarmos que os jornalistas cariocas evitam racializar as suas crticas s prticas e formas do
carnaval das ruas, mantendo seus argumentos no campo da cultura, ressaltando a
incivilizao e a barbrie do povo, do Z-Povinho, por falta de acesso aos bens
culturais trazidos pelo progresso representados no carnaval pelas Grandes Sociedades
Carnavalescas de inspirao europeia.
Contudo, em alguns momentos a cor aflora nas linhas dos jornais, e justamente nos
momentos de conflito e violncia. nas pginas policiais que a racializao acontece. Mas
mesmo assim de forma sutil e velada, evitando colocar na cor a motivao perverso e
criminalidade.
Apesar da crescente racializao da escravido no sculo XIX, ela no serviu no
Brasil para justificar a condio de escravo abertamente. Segundo Hebe Mattos, a ideia de
raa era por demais explosiva no Brasil para servir a tal fim, principalmente em funo do
grande nmero de negros livres e mestios. Legalmente a justificativa da escravido se fez
atravs do arcabouo liberal, pelo direito propriedade.
E a prpria populao livre de cor reivindicava a igualdade com os demais cidados
livres, silenciando a prpria cor em muitos momentos, pois esta permanecia como marca de
discriminao mesmo aps a conquista da liberdade. Uma reivindicao de silenciamento
que se fazia, entretanto, de forma politizada e muitas vezes ameaadora120.
O temor de racializar a inferioridade ou a violncia parece ter feito com que os
jornalistas evitassem ao mximo colorir suas notcias, fazendo apenas em casos isolados. Mas
nem por isso devemos deixar de perceber que os termos preto, pardo, negro, crioulo e mulato
aparecem em esmagadora maioria em relatos de violncia e crimes (sem que nenhuma vez
aparea outras cores, como branca, por exemplo).
120
MATTOS, Hebe. Escravido e cidadania no Brasil monrquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2004.
P. 22.
61
A constncia desses termos e sua relao ou no com crimes e violncia nos jornais
tambm deve ser analisada. No Jornal do Comrcio e na Gazeta de Notcias encontrei 28
vezes a ocorrncia da cor (sem contar anncios de escravos) em cada um. No Jornal do
Comrcio, dos 28 registros, 23 eram pretos (seis escravos), dois pardos (um escravo), um
mulato e dois crioulos. Todos estavam envolvidos em algum tipo de ao violenta.
Na Gazeta de Notcias entre os 28 registros temos 13 pretos (dois escravos e um
liberto), seis pardos (dois escravos), sete crioulos (um escravo), uma mulata e um negro.
Alm de um equilbrio muito maior na utilizao dos termos, dez deles tratavam de
representaes de pessoas de cor em carros de ideias de Fenianos e Democrticos, fantasias de
escravos e artigos sobre formas de brincadeira carnavalescas (como o artigo de Mello Moraes
filho sobre os Cucumbis).
O cenrio apresentado pela Gazeta da Tarde bem diferente. Esse jornal, rgo
principal da imprensa ligado aos ideais abolicionistas, apresentou apenas seis ocasies onde
utilizou referencias a cor. Dentre eles nenhum era escravo, dois pretos, um pardo e trs
negros. Apenas um tratava de agresso fsica, outro era sobre um preto que se dizia livre que
foi encontrado ferido e os demais eram sobre carros de ideias das Grandes Sociedades
Carnavalescas.
As diferenas entre os trs jornais significativa. O Jornal do Comrcio, mais
conservador dos trs, muito mais alinhado posies escravistas, possui muito menos
nuances ao usar os termos preto, pardo e crioulo e s os utiliza quando fala de crimes. A
Gazeta de Notcias, primeiro grande jornal da Corte a defender o abolicionismo, mas sem
posturas radicais, j apresenta mais sutileza e variaes na utilizao desses termos. Tambm
os utiliza em outras situaes que no apenas a violncia, sobretudo quando se referem a
aes abolicionistas das Sociedades Carnavalescas. A posio da Gazeta da Tarde ainda
mais interessante. Esse jornal, pela sua pblica filiao abolicionista evita ao mximo utilizar
expresses racializadas. Utiliza um termo que no est presente no vocabulrio dos demais
(aparecendo na Gazeta de Notcias apenas no texto de Mello Moraes): negro. Usa a palavra
negro para se referir queles sujeitos de cor que participavam dos carros de ideias das Grandes
Sociedades Carnavalescas, geralmente ganhando cartas de alforria.
Essa diferena fica ainda mais ntida quando comparamos os relatos dessas trs
folhas dirias sobre um mesmo acontecimento. Podemos fazer isso utilizando o famigerado
62
Ontem no necrotrio, procedeu o Sr. Dr. Thomaz Coelho a autopsia no cadver do indivduo, que,
conforme noticiamos anteontem a tarde assassinado com um golpe de navalha na rua da Carioca.
O cadver de um homem pardo escuro de 22 a 25 anos de bigode fino e cavanhaque curto e
consta ser de um vendedor de balas.
No se podendo reconhecer a identidade do cadver, ordenou o Sr. Dr. Chefe de polcia, que
fosse fotografado.
Como autor do assassinato, foi ontem preso, em virtude de diligencias efetuadas pelo Dr. 3
Delegado, Adolpho Ferreira Nogueira, vulgo Mulatinho.
Interrogado sobre o fato, confessou, depois de alguma hesitao e com palavras interrompidas
pelo pranto, ser o autor do ferimento mortal, acrescentando t-lo praticado em sua defesa, sem
que entretanto explique qual a agresso praticada pela sua vtima, que, segundo diz, no
conhecia.
Nogueira tem apenas 18 anos de idade, de cor parda e cigarreiro. 122
121
122
CHALHOUB. Vises. Op.cit.. SOARES. Negregada. Op.cit. CUNHA. Vrios Zs.... Op. cit.
Gazeta de Notcias 17/02/1885 - BN
63
Assassinato
Os jornais de hoje contam o fato de ter sido assassinado, ontem s 6 horas da tarde, na rua da
Carioca, um pobre homem que, fantasiado marinheira, procurava, divertindo-se, esquecer
talvez, os tdios de sua existncia.
Entre os oh! e ah! dos Z-Pereiras passava ele tranqilo trazendo nos lbios a costumeira frase: Voc me conhece? quando repentinamente, de um bando que caminhava em direo oposta a
em que ia, saiu um indivduo, tambm fantasiado, e o acometeu dando-lhe um profundo golpe de
navalha que produziu-lhe quase a morte instantnea.
escusado dizer que o agressor teve tempo de fugir, e que o cadver da vtima foi transportado
para o necrotrio.124
O relato da Gazeta da Tarde omite as cores que os demais noticiam. No fala que o
pobre homem assassinado era um pardo escuro nem que o assassino era conhecido nas
ruas do Rio como Mulatinho. A notcia completamente desracializada, e o foco
transferido para a incompetncia policial que foi incapaz de proteger o folio infeliz e no
conseguiu prender o agressor. No dia seguinte, nenhuma notcia sobre o caso, enquanto
Gazeta de Notcias e Jornal do Comrcio divulgavam nome e cor do suposto assassino. O
jornal abolicionista mais importante do Rio pretende, dessa forma, no vincular o crime a uma
imagem racializada, silenciando a cor do suposto assassino e da vtima. Tal preocupao no
compartilhada pelos outros jornais analisados. A Gazeta da Tarde entende que publicar em
suas folhas o tom da pele de um assassino poderia reforar uma determinada atitude perante o
processo abolicionista e reforar uma imagem de violncia inerente aos escravos e
descendentes.
123
124
64
O termo preto aparece 39 das 62 vezes onde a cor registrada. Em apenas oito delas
o indivduo referido como escravo. Isso nos ajuda a argumentar que na dcada de 1880
preto se referia a cor da pela, e no era sinnimo de escravo (como parece ter sido em
perodos mais remotos da histria do Brasil). Neste momento preto se referia a uma
identificao racial do sujeito, no importando se era livre ou escravo.
A palavra pardo aparece sete vezes, sendo que em trs casos define escravos.
difcil saber especificamente as nuances desses termos, mas podemos inferir que o pardo
nesse perodo se referisse a indivduos descendentes de africanos, mas j com alguma
miscigenao. Entretanto, faziam parte da populao de cor, pois, como veremos mais
adiante, compartilhavam de outras caractersticas fsicas e culturais que tornavam difcil
separar essa populao dos pretos. Segundo o dicionrio de Macedo Soares pardo o mulato
escuro, mestio de mulato com negro125.
A prpria palavra mulato aparece apenas em dois casos, sendo uma vez referente a
uma mulata presente num maxixe e outra vez o apelido de Adolfo Ferreira Nogueira, vulgo
Mulatinho, suposto autor da navalhada que levou a morte o pardo desconhecido que vimos a
cima.
O termo negro tambm parece uma exceo naqueles tempos. Foi utilizado apenas
pela Gazeta da Tarde e na Gazeta de Notcias por Mello Moraes Filho em seus artigos sobre
o carnaval. No foi utilizado em referncia a atos violentos , mas sempre retratando fatos
culturais.
125
SOARES, Antonio Joaquim de Macedo. Dicionrio brasileiro da lngua portuguesa (1875-1888). Rio de
Janeiro: Instituto nacional do livro, 1955.
65
A palavra usada para definir a cor do sujeito que mais aparece depois de preto
crioulo. So nove referncias, sendo apenas um escravo. Esse termo precisa ser analisado com
mais calma, pois ao longo dos sculos assumiu significados muito diversos.
Na edio de 1813 do dicionrio de Moraes Silva, o verbete crioulo significa sm., o
escravo, que nasce em casa do senhor; o animal, cria, que nasce em nosso poder (...); que
nasce, se cria em casa; no comprado126
J no dicionrio de Macedo Soares, referente aos anos de 1875 e 1888, encontramos
no verbete crioulo as seguintes definies:
sm., 1 escravo negro nascido no Brasil; filho de pai e me negros. 2 por ext., negro ainda que
livre, nascido no Brasil. 3 escravo negro nascido em casa do seu senhor, cria da casa. 4 escravo
negro de mais de sete anos, que no mais se chama de cria. 5 animal que nasce no Brasil. 6
animal que nasce na fazenda de seu dono, cria do campo. 7 europeu de origem, nascido na
Amrica127
Ambos os autores apresentam como primeiro significado para crioulo o escravo que
nasce no Brasil e concordam com o significado ser corretamente utilizado para designar o
animal que nasce em posse do proprietrio. Entretanto, importante ressaltarmos o
alargamento dos usos desse termo nos setenta e cinco anos que separam essas obras. Para
Macedo Soares, no final do sculo XIX, o substantivo masculino crioulo havia rompido seus
limites sociais, atrelado condio escrava, e extrapolado seus significados at ser capaz de
caracterizar qualquer homem livre filho de pai e me negros.
Por isso no de se estranhar quando o Jornal do Comrcio identifica um preto
chamado Joo de Souza, fantasiado de diabinho como o agressor que proferiu diversas
navalhadas em outro preto de nome Quintino Jos Gonalves128, enquanto a Gazeta de
Notcias enxerga Joo e Quintino como crioulos. Nesse perodo de indefinio das fronteiras
sociais, os matizes de pele parecem tambm se indefinir na sociedade carioca.
126
SILVA, Anotnio de Moraes. Fac-Simile da Segunda edio (1813) do Dicionrio de Lngua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Lyto-typographia fluminense, 1922.
127
SOARES, Antonio Joaquim de Macedo. Dicionrio brasileiro da lngua portuguesa (1875-1888). Rio de
Janeiro: Instituto nacional do livro, 1955.
128
Jornal do Comrcio. 04/02/1883 - BN
66
Nas pginas no Jornal do Comrcio encontramos, mesmo com o avano das ideias
abolicionistas, relatos de fugas, compra, venda e aluguel de escravos, lada a lado com
anncios de procura de homens e mulheres livres para os mais variados servios na Corte.
Atravs desses anncios podemos ter uma breve noo da utilizao do termo crioulo na
dcada de 1880. Ele aparece designando escravo nascido no Brasil, mas tambm utilizado
para definir indivduos livres.
O Jornal do Comrcio de 21 de fevereiro de 1879 anuncia:
Fugiu da rua da Candelria n. 31, 2 andar, no dia 17 do corrente, a escrava Maria, crioula, de
35 anos presumveis, estatura regular, bem falante, com a cara bastante feia (...), constuma andar
pelos lados de S. Cristvo ou rua de S. Jos
(...)
Vende-se crioula retinta, de 17 anos, pea especial, perita no engomado de senhora (...) perfeita
mucama de sala.129
Estes dois anncios esto utilizando o termo crioulo para identificar que essas
escravas nasceram no Brasil. Entretanto importante notar que, o primeiro anncio ressalta a
cara bastante feia de Maria, enquanto o segundo complementado com o adjetivo retinto,
explicitando o tom de pele da escrava. Ainda neste nmero do Jornal, encontramos o seguinte
anncio de aluguel:
Aluga-se uma crioula livre, que lava, cozinha e engoma; na rua do Senhor dos Passos n. 17,
sobrado.130
67
Casa de Deteno. Em sua ficha, de nmero 813, consta que ele tinha cor preta, cabelos
carapinha, era trabalhador e morava na rua do Prncipe.132
Tito, capoeira acusado de dar a cacetada que iniciou a confuso envolvendo o pardo
desconhecido no caso de Adolpho Mulatinho, tratado como o crioulo Tito nos autos do
processo de acusao de Adolpho Mulatinho. Como se isso no bastasse para caracteriz-lo
completamente, uma testemunha acrescenta: [Tito era um] crioulo de cor preta.
Como podemos perceber o termo crioulo no representava apenas a condio de
escravo nascido no Brasil nem designava uma cor de pele especfica (mestia ou mais clara)
ao final do perodo escravista. Ele se referia de uma maneira geral a uma combinao entre
condio social (descendente de escravo) e ascendncia cultural africana de uma maneira
geral. Aparecia lado a lado com termos que caracterizavam e matizavam os tons de pele:
preto, pardo, retinto, fula. O termo crioulo servia como um termo genrico para englobar os
afrodescendentes que traziam na sua pele a marca da escravido.
Atravs da imprensa conseguimos ter uma percepo mais ntida das formas sutis da
utilizao de termos racializados para caracterizar sujeitos durante o carnaval. Vimos como h
variaes de abordagem entre os jornais e que a explicitao da condio racial s ocorria
eventualmente, mas quando estava presente se referia a situaes violentas e/ou criminosas,
onde a ao repressiva era necessria.
APERJ, Casa de Deteno, Livros de Matrcula de detentos livres e libertos: notao 39 (09/02 06/04/1885).
68
complexo universo social. Tais livros possuem informaes sucintas, porm muito teis para
nosso objetivo entender os mecanismos de represso nos carnavais da dcada de 1880 e
tentar compreender melhor alguns caminhos festivos trilhados pela populao negra133. Os
livros, conservados no Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro, esto divididos entre
livros de livres e de escravos.134
Em cada ficha de livres constam as seguintes informaes: nmero da ficha; data;
nome; nacionalidade e naturalidade; filiao; motivo da priso; autoridade que efetuou a
priso e a autoridade que remeteu casa; idade; estado civil; moradia; ocupao; altura; rosto;
cor; olhos; nariz; boca; lbios; barba; cabelos; semblante; roupa; destino e observaes. J nas
fichas de escravos h o registro da nao (ou se crioulo ou pardo) e do nome do senhor,
alm dos demais presentes na ficha de livres, com exceo da moradia.
Digitalizei 995 fichas, numa amostragem que englobou os dias de carnaval dos anos
de 1879, 1881, 1883, 1885, 1887 e 1888. Levei em conta da sexta-feira tera-feira de
carnaval, totalizando cinco dias por ano. Alm disso, contabilizei a cor, o motivo da priso, se
estrangeiro ou no, e se mulher ou no, dos vinte dias antes e vinte dias depois do perodo
carnavalesco. Infelizmente os livros de escravos para os meses de fevereiro e maro terminam
no ano de 1883, por isso nossa anlise ter como foco os livres de detentos livres.
Com este enorme banco de dados poderemos ter uma dimenso primeiramente
quantitativa da entrada de presos na Casa de Deteno nos dias de carnaval. Contudo, tais
informaes relacionadas com outras fontes (jornais, viajantes, memorialistas e processos
criminais) enriquecero qualitativamente nossa anlise.
Ao abrir os grandes e pesados livros, imaginava encontrar um elevado nmero de
registros de pessoas fantasiadas. Mas para minha surpresa, apenas no ano de 1883 seu nmero
significativo: 93 fichas de presos trajando roupa fantasia de um total de 258, ou seja,
36%. Nos anos seguintes temos apenas um preso fantasiado em 1885 (de um total de 118),
133
Infelizmente no foi possvel trabalhar com outras fontes policiais do final do imprio, pois elas no esto
organizadas. A documentao da movimentao das delegacias, por exemplo, no pude encontrar no Arquivo
Nacional. Apesar da ajuda da professora Maria Clementina Pereira Cunha, no obtive sucesso nas buscas no
GIFI.
134
APERJ, Casa de Deteno, Livros de Matrcula de detentos livres e libertos: notao 12 (24/02/1878
01/04/1879); notao 19 (15/02 29/03/1881); notao 29 (15/01 28/02/1883); notao 30 (28/02
21/04/1883); notao 39 (09/02 06/04/1885); notao 49 (15/02 23/03/1887); notao 54 (23/01
26/02/1888); notao 55 (26/02 28/04/1888). Livro de Matrcula de detentos escravos: notao 13 (23/07/1879
21/05/1880); notao 20 (25/03/1881 22/02/1882); notao 28 (23/12/1882 05/02/1883).
69
cinco em 1887 (de um total de 153) e um fantasiado em 1888 (de um total de 173). Nos
demais anos (1879 e 1881), nenhum registro.
Obviamente no devemos ler estes dados como uma prova da inexistncia de
fantasiados, ou do bom comportamento desses em todos os anos, e que apenas em 1883 eles
aprontaram pelas ruas. preciso entender melhor a Casa de Deteno da Corte para
analisarmos este fenmeno.
Segundo Carlos Eugnio Lbano Soares, a Casa de Deteno era uma das mais
importantes instituies carcerrias da cidade do Rio de Janeiro durante a ltima metade do
sculo XIX135. Ela fazia parte do complexo composto pela Casa de Correo, que
destinava-se aos presos que cumpriam pena, enquanto a Casa de Deteno era utilizada
para detenes curtas, pequenos crimes, ou rus sendo processados na justia. 136 Inaugurada
em 07 de setembro de 1856, a Casa de Deteno ficava localizada na Rua do Conde dEu,
nmero 277, e tinha o clssico formato do panptico, onde de um ponto central era possvel
vigiar os quatro grandes corredores cheios de selas, formando uma cruz. Aps as 18 horas a
casa no recebia mais presos, sendo estes detidos no Xadrez da polcia, nas estaes das
subdelegacias e no Depsito de Presos da Chefia de polcia, na rua do Lavradio. 137
Logo, quem fosse preso noite no iria diretamente para a Casa de Deteno, mas
sim para as estaes policiais. Segundo referncias de jornais, a noite era o perodo mais
turbulento do carnaval. E grande parte das prises nos dias de Momo foi efetuada pelos
Subdelegados e praas dos distritos de cada freguesia que remetiam os presos primeiramente
para suas delegacias. Podemos deduzir que, quando estavam fantasiados, perdiam a fantasia
na noite que passavam no xadrez antes de chegarem Casa de Deteno.138
Isto torna ainda mais intrigante a presena de presos trajando roupas fantasia no
carnaval de 1883 nos livros da Casa de Deteno. Os registros efetuados demonstram certo
padro interessante e instigante que se acentuaro nos anos seguintes.
135
70
Foram 93 fantasiados presos no carnaval desse ano. Dentre eles 35 brancos, sendo 13
estrangeiros (37% do total de brancos); 46 pretos, pardos e fulas, sendo 1 estrangeiro
(portugus da Ilha da Madeira); e 12 morenos, sendo 1 estrangeiros.139
Pretos/Pardos/Fulas
Morenos
13%
38%
49%
Grfico 1
139
71
Pretos/Pardos/Fulas
Morenos
14%
28%
58%
Grfico 2
Obviamente nenhum grfico, tabela ou estatstica fala por si, ou evidencia verdades
absolutas. preciso que nos debrucemos com mais calma sobre esses nmeros para
entendermos melhor a experincia da populao negra nos carnavais da dcada de 1880.
Antes de partirmos para uma anlise geral das prises nos dias de carnaval, acredito ser
importante atentarmos para esse ano excepcional, em se tratando de prises de folies
fantasiados.
As prises desses 93 indivduos no ocorreram simultaneamente. O primeiro grupo
de presos engloba 19 registros de sujeitos trajando roupa fantasia. Tais presos foram
conduzidos para a Casa de Deteno pelo carro da casa e foram presos por ordem do prprio
Chefe de Polcia da Corte, acusados de desordem, no dia 05 de fevereiro. O segundo bloco
de registros conta 61 indivduos fantasiados, presos sem motivo declarado e que chegaram
casa no carro da mesma sob ordem do segundo Delegado entre os dias 05 e 06 de fevereiro
(32 no primeiro dia e 29 no segundo). Por fim temos o bloco de presos pelo subdelegado do
segundo distrito de Santana, formado por nove sujeitos fantasiados.
O Chefe de Polcia da Corte no ano de 1883 era o desembargador Belarmino
Peregrino da Gama e Mello, morador da rua do Lavradio nmero 36, esquina da rua do
72
A que ser devida essa degringolade do nosso nico divertimento popular? Parece-nos que o
entrudo que afugenta as famlias que enchiam as ruas.
E este ano as famlias parecem ter tido mais receio do que nunca, e a razo simples: tendo
ouvido dizer que a policia proibira o jogo do entrudo, toda a gente sups que o entrudo seria mais
feroz ainda.141
E acrescenta:
Jogou-se o entrudo como jamais. As autoridades passavam de chapu baixo, e com a convico
de quem no tem fora para fazer respeitar as circulares do sr. Chefe de polcia. 142
Mais uma vez culpa o entrudo por afastar as famlias da festa e ressalta a
incompetncia da fora policial em proibi-lo. Angelo Agostini mostra de forma bem
humorada sua interpretao da situao (Figura 3). O edital do Chefe de polcia, representado
por uma cartola, alvejado por todos os lados por uma tempestade de lquidos diversos, na
capa da Revista Ilustrada de 11 de fevereiro de 1883.
140
Segundo o Almanak Administrativo, Mercantil e industrial do imprio do Brazil [Almanak Laemmert] para
1883, ano 40. Disponvel no Center for Research Libraries global resources network.
http://www.crl.edu/brazil/almanak.
141
Gazeta de Notcias. 05/02/1883 - BN
142
Idem.
73
Figura 3. Edital do Chefe de Polcia de 1883. Angelo Agostini. Revista Ilustrada 11/02/1883 - BN
procuraram demonstrar que nem S. M., nem a constituio corre o menor perigo; o chefe
inabalvel e ameaa os Tenentes de os mandar espadeiras de 50 pratas.
A Revista Illustrada que no concorda com os escrpulos de S. Ex., publica nesta pgina, os tais
carros de aluses que foram proibidos143
143
74
75
para a Casa de Deteno. O Z-Povinho foi o nico a passar a noite no xadrez. Muitas vezes
as sociedades carnavalescas utilizavam capoeiras como capangas (seguranas) para garantir a
tranquilidade durante o desfile146. Talvez estes presos estivessem contratados pelos
Tenentes do Diabo para tal, e o confronto com os praas do 2 delegado fosse inevitvel.
Entretanto, no devemos entender tais prises apenas como um conflito entre capangas e
policiais. preciso levarmos em conta a possibilidade bastante verossmil de que a populao
carioca tivesse se engajado nesse conflito por vontade prpria.
Os desfiles das Grandes Sociedades Carnavalescas eram muito populares nesse
perodo. Defendiam um carnaval europeizado, com carros alegricos e mscaras venezianas.
Contudo, atingiram grande popularidade graas ao luxo, s belas mulheres e ao bom humor
com que tratavam temas polticos e cotidianos do Rio de Janeiro. A populao carioca
dividia-se entre partidrios de Fenianos, Democrticos e Tenentes do Diabo, torcendo e por
muitas vezes brigando para defender suas agremiaes preferidas147.
bastante provvel que o conflito envolvendo policiais que almejavam impedir a
sada dos carros de ideias dos Tenentes do Diabo tenha atrado a ira de diversos segmentos
populares. Se os presos fantasiados realmente tiveram sido detidos nesse confronto, temos os
seguintes nmeros: treze indivduos classificados como brancos (9 fluminenses, 3 portugueses
e 1 espanhol), 4 morenos (sendo 1 portugus), e 8 pretos, 3 pardos e 1 fula (todos brasileiros).
interessante notarmos que entre os 29 presos, 16 so fluminenses, 8 brasileiros de outras
regies e 5 estrangeiros. Como veremos mais adiante, este no o padro mais comum entre
as prises. Encontramos um nmero muito elevado de estrangeiros presos entre os indivduos
classificados como brancos em toda a dcada de 1880. Podemos supor que os brasileiros,
sobretudo os fluminenses (tanto pretos, pardos, fulas e morenos quanto brancos) sentiram-se
mais motivados do que os estrangeiros para se envolverem numa luta contra os policiais a fim
de defender o prstito dos Tenentes do Diabo.
Entre os presos estavam quatro carpinteiros, trs copeiros, dois pedreiros, dois
caixeiros, um alfaiate, um caldeireiro, um cigarreiro, um criado, um ferreiro, um gravador, um
marceneiro, um pintor, um sapateiro, um tipgrafo, um vaqueiro e sete trabalhadores. Todos
homens (alguns meninos) solteiros, entre 12 e 26 anos. Esses jovens folies, moradores quase
todos das ruas centrais da cidade, no devem ser encarados apenas como fora contratada para
146
147
76
77
78
79
pele mais clara (que hoje tambm se considera pardo). Os de cor branca so em sua
esmagadora maioria estrangeiros (portugueses, espanhis, ingleses italianos, entre outros).
Como podemos ver nos grficos 4 e 5, o ano de 1879 apresenta um nmero maior de
brancos registrados na Casa de Deteno no perodo do Carnaval (50% de brancos e 48% de
pretos, pardos e fulas). Da em diante esta diferena ser invertida e aumentar at o ano de
1888, onde encontramos a maior diferena proporcional entre brancos e pretos, pardos e fulas
nos dias do carnaval (55% de pretos, pardos e fulas e 36% de brancos). importante ressaltar
que entre 1881 e 1887 a porcentagem de brancos presos se manteve sem alteraes, enquanto
a de pretos pardos e fulas oscilou at atingir o pice percentual em 1888, ano que apresenta
tambm o percentual mais baixo de brancos detidos (apesar do crescente nmero de
imigrantes europeus na cidade).
1879
1881
1883
1885
1887
1888
Brancos
50%
40%
40%
40%
40%
36%
Pretos/Pardos/Fulas
48%
49%
47%
53%
51%
55%
Morenos
2%
10%
12%
6%
7%
7%
1%
1%
1%
2%
2%
Outros
Grfico 3. Presos no carnaval por cor (1879, 1881, 1883, 1885, 1887, 1888) Casa de Deteno, Livro de
Livres.
80
55%
50%
48%
40%
36%
30%
20%
10%
0%
1879
1881
1883
1885
1887
1888
Pretos/Pardos/Fulas
48%
49%
47%
53%
51%
55%
Brancos
50%
40%
40%
40%
40%
36%
Morenos
2%
10%
12%
6%
7%
7%
1%
1%
1%
2%
2%
Outros
Grfico 4. Presos no carnaval por cor (1879, 1881, 1883, 1885, 1887, 1888). Casa de Deteno, Livro de Livres.
81
Brancos
34%
66%
Grfico 5. Populao total da cidade do Rio de Janeiro - 1890. Apud Sidney Chalhoub. Trabalho Lar e
Botequim. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.
66%
64%
50%
40%
50%
50%
36%
30%
34%
20%
10%
0%
Presos no Carnaval
(1879)
Presos no Carnaval
(1888)
Pretos e Mestios
50%
64%
34%
Brancos
50%
36%
66%
Grfico 6. Comparao: Presos nos carnavais de 179 e 1888 com a populao total (1890)
82
Ao longo desses dez anos as prises efetuadas nos dias de carnaval sofreram
mudana significativa. Em 1879 metade dos presos eram no brancos (pretos, pardos, fulas e
morenos), e houve um avano gradativo nos anos seguintes at o pice dessa diferena,
ocorrida em 1888. A populao total da cidade do Rio de Janeiro apresentava nmeros
inversos aos de detentos da casa.
Em 1890, j no perodo republicano, a cidade do Rio apresentou um elevado
crescimento populacional em relao ao ltimo censo, efetuado em 1872. Como nos mostra
Sidney Chalhoub, a populao do Rio passou de 274.972 pessoas em 1872 para 522.651 em
1890, praticamente dobrando sua populao em menos de vinte aos. Chalhoub afirma que tal
crescimento est relacionado migrao de escravos libertos da zona rural para a urbana,
intensificao da imigrao e a melhorias nas condies de saneamento.151
O nmero de imigrantes ao longo da dcada de 1880 e por toda a Primeira Repblica
marcou profundamente a cidade. Em 1890 representavam 30% da populao total, com cerca
de 155 mil habitantes. Nmero que rivalizava com os 180 mil pretos e mestios do Rio de
Janeiro.
Nos livros de matrcula da Casa de Deteno essa presena estrangeira tambm se
faz notar. Entre os brancos presos, o nmero de estrangeiros sempre maior que 50%,
chegando at 80% em 1881 e 78% em 1888. Portugueses, espanhis, italianos so maioria,
mas encontramos tambm alemes, ingleses, suos, argentinos, estadunidenses, entre outros.
A maioria desses estrangeiros eram jovens e solteiros e chegaram em grande nmero com o
crescimento da onda imigratria das dcadas de 1870 e 1880.
Ao chegar Corte, disputaram palmo a palmo espaos com escravos e libertos, e
demais despossudos da cidade. Como nos mostra Sidney Chalhoub, as ruas e os cortios
serviram como espaos de contatos e conflitos entre nacionais e estrangeiros, ajudando a
formar alianas e rivalidades entre eles. O elevado nmero de presos estrangeiros nos dias de
carnaval mostra que estes imigrantes tambm estavam disputando espaos na festa carioca,
estabelecendo alianas e rivalidades com a populao nascida no Brasil.
151
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle poque. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001.
83
1879
1881
1883
1885
1887
1888
Pretos/Pardos/Fulas
70%
72%
60%
81%
71%
78%
Brancos
30%
14%
23%
15%
17%
11%
Morenos
13%
16%
3%
9%
8%
Outros
1%
1%
1%
3%
3%
84
70%
78%
70%
60%
50%
40%
30%
30%
20%
11%
10%
0%
1879
1881
1883
1885
1887
1888
Pretos/Pardos/Fulas
70%
72%
60%
81%
71%
78%
Brancos
30%
14%
23%
15%
17%
11%
Morenos
13%
16%
3%
9%
8%
Outros
1%
1%
1%
3%
3%
152
Ainda hoje, infelizmente, vigora uma mxima do senso comum que afirma que a polcia sabe muito bem
quem preto e quem branco no momento de efetuar aes repressivas.
85
89%
70%
49%
51%
30%
11%
Brasileiros Presos no
Carnaval (1879)
Brasileiros Presos no
Carnaval (1888)
Populao nascida no
Brasil (1890)
Pretos e Mestio
70%
89%
49%
Brancos
30%
11%
51%
Grfico 9. Comparao: Brasileiros presos nos carnavais de 1879 e 1888 com a populao nascida no Brasil
(1890)
86
Presos - 1879
60%
48%
50%
50%
50%
50%
40%
30%
20%
10%
2%
0%
0%
Carnaval
Pretos/Pardos/Fulas
48%
50%
Brancos
50%
50%
Morenos
2%
0%
Outros
0%
0%
Presos - 1881
60%
50%
49%
48%
40%
40%
40%
30%
20%
11%
10%
10%
0%
Carnaval
Pretos/Pardos/Fulas
49%
40%
Brancos
40%
48%
Morenos
10%
11%
Outros
1%
1%
87
Presos - 1883
50%
47%
42%
40%
43%
40%
30%
20%
14%
12%
10%
0%
Carnaval
Pretos/Pardos/Fulas
47%
42%
Brancos
40%
43%
Morenos
12%
14%
Outros
1%
1%
Presos - 1885
60%
53%
50%
43%
40%
47%
40%
30%
20%
0%
10%
6%
10%
Carnaval
Pretos/Pardos/Fulas
53%
43%
Brancos
40%
47%
Morenos
6%
10%
Outros
1%
0%
88
Presos - 1887
60%
51%
48%
50%
43%
40%
40%
30%
20%
9%
7%
10%
0%
Carnaval
Pretos/Pardos/Fulas
51%
48%
Brancos
40%
43%
Morenos
7%
9%
Outros
2%
0%
Presos - 1888
60%
55%
50%
40%
41%
45%
36%
30%
20%
12%
7%
10%
0%
Carnaval
Pretos/Pardos/Fulas
55%
41%
Brancos
36%
45%
Morenos
7%
12%
Outros
2%
2%
O contexto histrico pode nos ajudar a entender tal fato. A primeira metade da
dcada de 1880 marca a expanso do movimento abolicionista e sua respectiva popularizao;
89
153
90
argumentos eram baseados numa concepo de festa europeizada, com modelos bem
definidos de quem deveria empreend-la.
Entretanto essa alardeada permissividade, compartilhada muitas vezes por
autoridades e membros do governo, foi entendida, incorporada e atualizada pela populao
negra do Rio que, a partir de sua prpria lgica trouxe para o carnaval inmeras festas negras
como os reisados, congadas, folias, procisses religiosas, batuques, como veremos ao
estudar principalmente os Cucumbis Carnavalescos.
O nmero proporcionalmente maior de pretos, pardos e fulas sendo levados para a
Casa de Deteno durante o carnaval em comparao com as prises do ms seguinte festa
reflete, por conseguinte, dois aspectos da relao entre a represso e a participao desses
sujeitos. Por uma lado temos indcios para crer na maior e mais abusada participao da
populao negra na festa na dcada de 1880, respondendo aos avanos de uma nova cultura
poltica da liberdade, inspirada na crise do escravismo que vinha sendo produzida na cidade.
Por outro lado, tais dados expressam o maior incmodo que essa presena causava
nas foras policiais. No possvel afirmar se realmente a populao negra estava mais
atrevida e ousada nos carnavais da dcada de 1880 (o que acredito que sim), contudo,
evidente a maior preocupao por parte das autoridades em controlar essa ao. Da o
aumento progressivo da diferena proporcional entre pretos, pardos e fulas presos no carnaval
em comparao com brancos, apesar da populao geral da cidade no corresponder a esse
crescimento.
91
e barcas, foi gigantesco, chegando a casa de 300 mil passageiros!156 a Revista afirma que as
companhias de bonde transportaram 492 mil e 53 passageiros! Somando os passageiros dos
trens da Estrada de Ferro, Estrada do Norte, Rio do Ouro, Caxambi com os da Barca Ferri e
de Paquet esse nmero chegaria a quase 600 mil passageiros de ida e volta, o que d um
movimento de cerca de 300.000 pessoas157. Esse nmero ainda mais expressivo se
levarmos em conta a soma da populao das nove freguesias mais centrais da cidade.
Candelria, So Jos, Sacramento, Santa Rita, Santana, Santo Antonio, Esprito Santo, Glria
e Lagoa juntas possuam aproximadamente 200 mil habitantes em 1888158.
Mapa 1. Freguesias Centrais da Cidade do Rio de Janeiro (final do sculo XIX). A partir do mapa utilizado no
livro de CUNHA. Ecos da Folia uma histria social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. So Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
156
92
Mesmo que essa estimativa da Revista Ilustrada esteja superestimada, um dado que
representa bem a grande atrao que as freguesias centrais da cidade exerciam sobre as reas
mais afastadas e mesmo sobre outras regies do Brasil.
A Candelria atraa as maiores atenes dos jornalistas e da maioria do pblico, pois
concentrava os prstitos das Grandes Sociedades Carnavalescas. A rua do Ouvidor, a artria
da civilizao, era a sua principal passarela. As redaes dos principais jornais e revistas, as
lojas mais luxuosas e estrangeiras ocupavam seus quarteires.
Felipe Ferreira, reconstruindo o roteiro das Grandes Sociedades Carnavalescas na
dcada de 1880, mostra que seus trajetos se restringiam entre a Primeiro de Maro e a Praa
da Repblica, s vezes chegando ao campo da Aclamao (campo de Santana) e aos ps do
Morro de Santo Antnio. O pice desses desfiles era a travessia da rua do Ouvidor, com o seu
mar de gente foliona159.
A populao da Candelria girava em torno de 10 mil habitantes, segundo o
Almanack Laemmert de 1888, sendo aproximadamente oito mil pessoas livres. Apesar de
corresponder menor populao entre as nove freguesias aqui consideradas, poderamos
supor que nos dias de carnaval, pelo elevado nmero de pessoas que se reuniam na freguesia
(no apenas para esperar as Grandes Sociedades, mas tambm para fazer a festa), o
subdelegado da Candelria teria muito trabalho e que o nmero de registros de prises
efetuadas por ele nesses dias seria proporcionalmente alto.
Contudo no o que nos mostram os dados da Casa de Deteno. Ao compararmos
os registros de prises efetuadas pelos subdelegados das freguesias nos carnavais dos anos de
1879, 1881, 1883, 1885, 1887 e 1888 com o nmero de habitantes das mesmas, as concluses
so diversas. Apesar de toda badalao em torno do carnaval na Candelria, as outras
freguesias tambm tinham grande pblico e recebiam ateno das foras policiais.
Dentre as nove freguesias aqui consideradas (por ocuparem geogrfica e socialmente
o centro efervescente do Rio - Candelria, So Jos, Sacramento, Santa Rita, Santana, Santo
Antnio, Esprito Santo, Glria e Lagoa), quando comparamos o nmero aproximado de
habitantes com o nmero de prises efetuadas pelos subdelegados respectivos encontramos
variaes interessantes, que nos permitem refletir sobre os espaos mais disputados dos dias
do carnaval.
159
FERREIRA, Felipe. Inventando Carnavais... op.cit. Ver mapas das pp. 94-97
93
160
94
Esprito Santo
7%
Candelria
5%
So jos
10%
Glria
11%
Sacramento
14%
Santo Antonio
10%
Santana
19%
Santa Rita
17%
So Jos
12%
Sacramento
10%
Esprito Santo
9%
Santo
Antonio
11%
Santa Rita
13%
Santana
20%
95
96
Lagoa
3%
Esprito Santo
2%
Candelria
5%
So jos
14%
Santo Antonio
3%
Santana
28%
Sacramento
21%
Santa Rita
19%
Grfico 18. Presos por Freguesia nos carnavais dos anos 1879, 1881, 1883, 1885, 1887, 1888 Casa de
Deteno da Corte, livro de livres.
A freguesia de Santana parece ter despertado ainda mais ateno das foras policiais.
Mesmo sendo a freguesia mais populosa da cidade (com 20% dos habitantes dentre as nove
analisadas), o nmero de prises efetuadas pelos seus subdelegados161 muito superior aos
demais: so 28% dos registros contra 21% de Sacramento e 19% de Santa Rita.
Mas por que justamente essas freguesias? Podemos nos aproximar das respostas para
essa pergunta esmiuando tais nmeros e os aliando ao ambiente sociocultural dessas
freguesias. Primeiramente, possuam elevados ndices de populao negra, escrava, liberta e
livre, convivendo entre alianas e conflitos com imigrantes pobres vindos de Portugal, Itlia,
Espanha, etc. Segundo Chalhoub, tais contatos ocorriam diariamente tanto nas disputas
empedernidas por empregos cada vez mais intensa, com o aumento da imigrao, o que
fazia uma enorme presso sobre os salrios quanto no cotidiano das moradias coletivas que
se disseminaram enormemente a partir de 1850.
Essas moradias cortios e estalagens tornaram-se elementos cruciais na geografia
social da cidade. Sua proliferao foi tamanha entre os anos 1850 e 1860 que Chalhoub
161
97
chama a segunda metade do sculo XIX de a Era dos Cortios. Esse crescimento estaria
ligado diretamente ao aumento do fluxo de imigrantes portugueses, ao aumento do nmero de
alforrias e o nmero cada vez maior de escravos que conquistavam junto aos seus senhores a
autorizao para viver sobre si.162 Essa expresso de poca resumia um longo processo de
negociaes e conflitos empreendidas pelo escravo sobre o senhor visando obter a autorizao
de morar afastado de sua casa, conquistando dessa forma maior autonomia nas atividades
produtivas e representava ainda a possibilidade de levar uma vida praticamente
indiferencivel em relao populao livre da cidade163.
Apesar de muitas vezes ser lucrativo para o senhor pois recebia parte dos jornais
dos cativos e reduzia as despesas com sustento , o crescimento do nmero de escravos
vivendo sobre si gerou um importante elemento desagregador da instituio, em longo
prazo. Chalhoub afirma que essa prtica enfraqueceu a relao de sujeio e dependncia
pessoal, que passavam pelo poder senhorial de conceder a alforria e a proximidade espacial
entre senhores e escravos. Conquistar o direito de viver sobre si representava um passo a
mais em direo a liberdade.
Portanto, os cortios, estalagens, casas de cmodos tornaram-se na segunda metade
do sculo XIX, cada vez mais importantes para escravos que buscavam autonomia, mas
tambm para negros livres e libertos com poucas opes de moradias mais estruturadas, assim
como o grande nmero de imigrantes europeus pobres que desembarcavam no Rio para
disputar empregos, quartos e casamentos com os nacionais. Nesse contexto, essas moradias
coletivas possibilitavam formas variadas de solidariedade entre livres e escravos, auxlios em
busca de alforria, esconderijo para escravos fugidos e acabaram se tornando espaos de luta
dos negros da Corte contra a escravido nas ltimas dcadas do sculo XIX.164
Assim, no seria apenas por motivos cientficos a grande represso efetuada pelas
foras pblicas contra os cortios no final do sculo XIX, principalmente no incio da
repblica. Se as teorias higienistas que afirmavam serem os cortios os grandes focos das
epidemias que assolavam a Corte serviram de justificativa para muitas aes policiais contra
os cortios, outro elemento foi central na poltica de expulso das classes populares das
freguesias centrais da cidade: estava associada a uma tentativa de desarticulao da memria
162
98
165
Idem. P. 26
Agradeo a professora Maria Clementina Pereira Cunha pelo apoio e pela disponibilizao de imagens, fontes
e mapas para a realizao dessa pesquisa. Agradeo tambm ao CECULT/UNICAMP por permitir o uso de seus
mapas.
167
http://www.unicamp.br/cecult/mapastematicos/corticos/introcort.html
166
99
Mapa 2. Cortios ao redor da Praa Onze de junho na freguesia de Santana. Em vermelho esto os cortios e
em amarelo as estalagens. Desenhado a partir de pranchas do lbum de Edward Gotto, Plan of the city of Rio
de Janeiro, Brazil, surveyed in 1866, existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, pelo projeto
Temtico Santana e Bexiga, coordenado pelo professor Sidney Chalhoub, no Cecult/Unicamp.
http://www.unicamp.br/cecult/mapastematicos/corticos/introcort.html
CRUZ, Maria Cecilia Velasco. O porto do Rio de Janeiro no sculo XIX: uma realidade de muitas faces. In:
Revista Tempo ago/1999.
100
Tais concluses e nmeros so muito semelhantes aos que vimos quando analisamos
os dados da Casa de Deteno referentes aos dias de Carnaval. Essa proximidade
significativa j que estamos analisando freguesias onde a presena da populao negra era
elevada e a atuao policial parece ter respondido de maneira mais forte a essas regies.
Alm dos inmeros cortios e da movimentada zona porturia, a confluncia das
freguesias de Santana, Santa Rita e Sacramento principalmente, comportava inmeros espaos
simblicos que animavam variadas disputas. O mapa a seguir aponta alguns desses territrios
que serviam de local de afirmao de certos grupos, no apenas no carnaval. Contudo, na
festa carnavalesca essas disputas se acirravam.
O Campo da Aclamao (campo de Santana) era um dos espaos mais disputados
pelas maltas de capoeira na dcada de 1880. Nele, inmeros conflitos entre capoeiras e contra
169
Idem.
ARANTES, Erika Bastos. O porto Negro: cultura e trabalho no rio de janeiro dos primeiros anos do
sculo XX. Dissertao de mestrado, Unicamp, Campinas, SP. P.25.
170
101
policiais resultaram em crimes, mortes e prises. Em 1888, estaria sob o controle da malta
Cadeira da Senhora, membros dos Nagas, segundo Carlos Eugenio Lbano Soares. 171
Mapa 3. Parte das freguesias de Santana, Santa Rita e Sacramento. Mapa desenvolvido a partir dos mapas
cedidos pela professora Maria Clementina Cunha e pelo Cecult (tais mapas foram produzidos sobre as
pranchas do lbum de Edward Gotto, Plan of the city of Rio de Janeiro, Brazil, surveyed in 1866, existente na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, pelo projeto Temtico Santana e Bexiga, coordenado pelo professor
Sidney Chalhoub, no Cecult/Unicamp.
As praas tambm eram locais privilegiados na geografia das maltas. Como podemos
ver no mapa (pontos 5 e 6), essa regio possua, alm do campo da Aclamao, a praa Onze
de Julho e a Praa da Constituio, ambas atraindo muito pblico nos dias de carnaval. A
171
102
regio porturia tambm era espao de disputa entre os capoeiras da Corte, principalmente na
regio da Gamboa e da Sade.172
Dentre os 68 registros de prises por capoeiragem 26 foram efetuadas pelos
subdelegados de Santana, 13 pelo de So Jos, 12 de Sacramento e 10 de Santa Rita
(totalizando 51 prises). Essa preponderncia nos registros de capoeiragem importante para
reafirmarmos que essas freguesias possuam espaos simbolicamente valorizados para esses
grupos. Outro dado importante que dentre os 95 indivduos presos como capoeiras nos
carnavais analisados 47% eram pretos, 22 % eram pardos e 4% fulas. O que refora a ideia de
Soares de que mesmo com o avanar do sculo XIX, a capoeira continuava a ser uma prtica
majoritariamente negra, e um espao de sociabilizao e desenvolvimento de identidades.173
Entretanto, no devemos supor que s de capoeiras se compunham as fileiras de
folies desses carnavais. Dos 671 registros de prises efetuadas pelos subdelegados das
freguesias da rea central da cidade, apenas 68 foram sob acusao de capoeiragem. Isso
demonstra que apesar do grande alarde causado por eles, os capoeiras representavam um
nmero pequeno entre a populao, e que, de outro lado, possuam caminhos variados para se
manterem afastados das garras policiais.174 A grande maioria das prises eram sob acusao
de vagabundagem, desordem, embriaguez e turbulento. Quase sempre os motivos eram
estabelecidos em pares ou trincas: motivo: brio, vagabundo e desordeiro ou vagabundo,
desordeiro e turbulento. Somados esses motivos correspondem a 71% de todas as prises.
Por mais variados que fossem os sujeitos das festas dessas freguesias (Santana, Santa
Rita, So Jos e Sacramento), a grande maioria dos presos era composta por pretos, pardos e
fulas, atingindo o nmero de 52%, enquanto brancos correspondiam a 37%, morenos a 10% e
outras cores (acaboclado, cabra) a 1%.
Desta forma, o nmero de registros de ingresso na Casa de Deteno efetuadas pelos
subdelegados das freguesias nos ajuda a entender melhor em quais lugares da cidade havia
maior ao de indivduos que despertavam temor das autoridades pblicas, fazendo com que
seus agentes da ordem trabalhassem com mais afinco. Percebemos tambm que seus
principais alvos acabavam sendo a populao negra, no apenas quando relacionados aos
capoeiras, mas porque empreendiam formas de brincar conflitantes com os padres
172
ASSUNO. Matthias Rohring. Capoeira: The History of an Afro-Brazilian Martial Art. London & New
York: Routledg Taylor & Francis Group, 2005.
173
SOARES. Idem.
174
Ver SOARES. Idem e CHALHOUB. Vises.... Op. cit. Sobre a relao dos capoeiras com a polcia.
103
defendidos pelos membros dos grupos dominantes, que pretendiam hegemonizar a festa
intento mais difcil do que poderiam supor.
Por conseguinte, os dados da Casa de Deteno nos ajudam a reforar o argumento
de que com a intensificao da crise do escravismo e de antigas formas de dominao, que
pautavam inclusive as relaes entre indivduos livres h uma resposta repressiva tambm
nos dias de carnaval que tm como alvo principal indivduos pretos, pardos e fulas e suas
prticas culturais. Esse grupo representar 55% das prises no carnaval do ano da abolio
(1888), contra 36% de brancos. Se contarmos apenas os indivduos nascidos no Brasil essa
diferena ainda mais gritante: 78% eram pretos, pardos e fulas contra 11% de brancos, 8%
de morenos e 3% de outros (cabras e acaboclados) Em 1879 foram 49% de pretos, pardos e
fulas contra 50% de brancos. Isso no nos permite afirmar que houve um aumento na
participao da populao negra no carnaval ao longo da dcada. Entretanto, devemos
entender esse aumento de prises como uma intensificao na represso participao de
certos indivduos na festa.
Nos carnavais da dcada de 1880, era cada vez mais arriscado para pretos, pardos e
fulas brincarem pelas ruas do Rio. Suas prticas, muitas delas compartilhadas por imigrantes e
demais trabalhadores pobres, de qualquer cor de pele, eram mais reprimidas. Apesar da
expanso dos movimentos abolicionistas, a participao da populao negra na festa
representava perigos srios para muitos dos que pretendiam civilizar a festa e a nao.
Isso fica ainda mais ntido quando analisamos os dados freguesia por freguesia.
Dessa maneira pudemos perceber que a geografia social e cultural da cidade tambm pautava
as medidas repressivas. Essa represso tambm trouxe luz o carter das festas carnavalescas
de Santana, Santa Rita, So Jos e Sacramento: as mais perseguidas pela fora policial, pois
representavam formas de brincar ameaadoras aos olhos dos agentes da ordem, no apenas
pela forma, mas pelos sujeitos sociais. Essa ameaa levou a prises de centenas de sujeitos,
sendo 52% deles sujeitos de cor, contra apenas 37% de brancos e 10% de morenos
Sendo assim, mesmo sem uma terminologia ntida e uma ideologia racializada
explcita nos jornais, encontramos nos carnavais da cidade do Rio de Janeiro da dcada final
da escravido uma represso racializada da participao na festa. Tal medida est afinada com
os discursos de jornalistas que defendem uma civilizao do carnaval, e elegem como alvo
primordial de seus ataques prticas socialmente reconhecidas como negras, como a
104
capoeiragem, e os prprios indivduos de cor que buscavam espao nas ruas principalmente
associando-as com a noo de perigo e violncia.
Essa relao conflituosa entre as imagens construdas pela imprensa sobre folies
negros e a prpria ao desses sujeitos est dialogando com as polticas de embranquecimento
da sociedade brasileira que se fizeram notar em inmeras frentes: a poltica imigrantista, que
visava substituir a mo-de-obra negra e mestia por trabalhadores europeus brancos; a poltica
higienista de combate a mazelas especficas que atingiam sobretudo esses imigrantes europeus
(como o ataque febre amarela); o desenvolvimento de imagens de negros como preguiosos,
desordeiros e vagabundos, entre outras. 175
Nos prximos captulos procurarei me aproximar desse processo de construo de
imagens sobre prticas do carnaval da populao negra e quais os sentidos destas para seus
prprios agentes. Para tanto, teremos como anfitries carnavalescos os diabinhos encarnados
e os Cucumbis, atravs dos quais tentaremos chegar o mais prximo que as fontes permitirem
das tenses dos carnavais de finais do sculo XIX.
175
105
Essa expresso recorrente nos relatos sobre o carnaval. Atravs dela os folies iniciavam uma srie de
pilhrias e calnias, protegidos por suas mscaras. Ver CUNHA. Ecos da Folia... op.cit.
177
Gazeta de Notcias - 08 de fevereiro de 1883. P1
106
sujeitos trajando roupa fantasia. A ficha de Calixto Jos da Silva nos revela que ele tinha
24 anos, 1 metro e 68 centmetros, solteiro; era natural de Campo Grande, trabalhava como
cocheiro e morava na rua da Princesa. Sua cor era Fula.
A ficha de Domingos Ramos traz as seguintes informaes: era fluminense de 19
anos, com 1 metro e 71 centmetros; morador da rua da Prainha e carpinteiro. Sua cor era
Preta. Joo Paulo Fernandes aparece no livro da Casa de Deteno como fluminense de 17
anos, pedreiro. Sua cor era Parda. 178
O grupo apresentado pelo jornal contava ainda com dois escravos, Sancho e Orlando.
Tambm fantasiados de diabinho, eles participavam da festa lado a lado com homens livres.
Neste captulo iremos nos aproximar dessa figura to presente nos relatos desses
antigos carnavais. Qual a imagem que intelectuais, jornalistas e autoridades policiais faziam
destes folies endiabrados? E por que, apesar de existirem tantas outras fantasias e de brancos
e morenos tambm se fantasiarem de diabos e diabinhos, esta fantasia foi associada imagem
de pretos, pardos, fulas, crioulos e escravos? Quais as experincias dos diabinhos nas ruas do
Rio s vsperas da abolio? Essas questes pautam as pginas que se seguem.
***
No Dicionrio da lngua Portuguesa, de Antnio de Moraes Silva, que data do ano
de 1813, encontramos os seguintes verbetes:
Diabo, s. m. Anjo mal, demnio. (...) no fig. Homem muito sabido, vivo
Diabrete, s. m. dim. de diabo. Fig. Rapaz muito travesso, maligno: talvez uns que se vestiam, e
mascaravam de diabos, e faziam mil despejos, e travessuras.
Diabrura, s. f. ao de diabo. Fig. Ao maligna, maravilhosa, feita por arte do diabo (grifos
meus)179
178
No encontrei os registros de Luiz Ezequiel Pinheiro, Francisco Alves de Souza, Jos Pereira Garcia e
Alfredo de Tal nos Livros de Matrcula da Casa de deteno.
179
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionrio da lngua portuguesa. A. Litho-typographia Fluminense, Rio de
Janeiro, 1922. Fac smile da segunda edio (1813). P. 613
107
Diabo, s. m. demnio, satans; esprito maligno; sat; gnio do mal; esprito das trevas; demo;
(fig.) pessoa m, mau gnio; indivduo feio; criana turbulenta. (do Latim diabolu)
Diabrete, s. m. diminutivo de diabo; (fig.) criana traquina; nome de um jogo de cartas.
Diabrura, s. m. coisa diablica; maldade; travessura de criana.180
108
Cascudo afirma que sua figura est sempre presente nos desafios de versos pelo Brasil a fora.
E em algumas ilustraes, a lngua tem um papel de destaque nas mscaras de diabos.
A lngua em forma de cobras e lagartos representava a tradio de falar improprios
e calnias, pilhrias e revelar segredos183. Alm da mscara grotesca com lnguas enormes, a
fantasia de diabinho consistia em roupa simples de tecido vermelho, geralmente com guizos
nas bainhas dos braos e das pernas. Possua calda longa que era enrolada cintura, chifres e
tridente, ou outro pedao de madeira184. (Figuras 4 a 7).
183
Ainda hoje, nas Folias de Reis do Estado do Rio de Janeiro h um personagem que representa o soldado de
Herodes e recebe a incumbncia de perseguir o menino Jesus para mat-lo. Ele o Palhao. Por tal misso o
palhao constantemente relacionado ao diabo. Para encarnar um palhao a pessoa precisa saber danar muito
bem, saltar, fazer piruetas, comumente acompanhado de um cacete, ou espada como tambm chamado, e
precisa ser capaz de versejar sobre a folia e sobre as situaes cotidianas. O palhao usa mscaras assustadoras,
que em nada nos remetem a imagem do palhao tradicional de circo, simptico e feliz. Sua imagem geralmente
composta por fantasias grandes e grotescas, muito coloridas e com mscaras assustadoras. Com freqncia eles
mesmos criam suas mscaras e comum a presena de chifres adornando suas cabeorras e grandes lnguas
caindo pela boca. Para mais informaes e imagens dessas mscaras ver: Acervo UFF Petrobras Cultural
Memria e Msica Negra que pode ser consultado atravs do site: http://www.historia.uff.br/jongos/acervo/
184
Mas tambm estavam presentes em outros crculos sociais. Fantasias de Mefistfeles, lcifer e outras
representaes de demnios eram muito populares entre os nobres folies das altas classes cariocas. Mesmo as
Grandes Sociedades Carnavalescas reconheciam nele um timo representante do esprito carnavalesco. Inmeros
grupos traziam seu nome no estandarte: Tenentes do Diabo, Trinta Diabos, Mephistpheles, Endiabrados, etc.
109
Figura 6. Mscara de diabo. Ilustrao de A. D. In: EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. 3 v. p. 803
110
Figura 7. Capa de O Malho Diabinho. A lngua proeminente e seus cabelos crespos em formas
pontiagudas so to importantes na fantasia quanto a cor vermelha e o tridente. A legenda tambm
reveladora: Ho...ho...ho...! O rei da terra nestes dias, sou eu! Ho...ho...ho! O Malho, 04/03/1905.
111
No Brasil o diabo portugus, com os mesmos processos, sedues e pavores. Como no me foi
possvel compreender um demnio entre os indgenas ou negros escravos, creio que os negros e
amerndios ajudaram ao satans dos brancos, ampliando-lhe domnio e formas mas sem que lhe
dessem nascimento185
CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro. INL, Rio, 1954 3 edio, 1972. P. 291
CASCUDO, Luiz da Cmara. Made in frica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1965. P. 108.
187
Idem.
188
PRANDI, Reginaldo. Exu, de mensageiro a diabo sincretismo catlico e a demonizao do orix exu.
Revista da Usp. n.50 jun/jul/ago 2001. P.3
186
112
tambm era uma divindade flica. Esse conjunto de caractersticas fez com que os europeus
logo o entendessem como o oposto Deus, representante da luxria, do pecado, do sexo e da
maldade.189 Suas cores (preto e vermelho) tambm contriburam para tal associao diablica,
j que eram as cores do Diabo em muitas tradies europeias.
A fora simblica dessa associao fez com que ainda hoje Exu seja o orix mais
incompreendido e caluniado do panteo afro-brasileiro, como afirmou Roger Bastide.190 ,
por isso, bastante comum ver as imagens de Exus com chifres, tridentes e outros adereos e
formatos do diabo cristo. A demonizao de prticas africanas por parte de colonizadores
cristos ultrapassou a figura de Exu, impregnando os olhares de geraes inteiras contra as
religies afro-brasileiras.
Essa constante necessidade de estabelecer os limites das foras diablicas por parte
de missionrios e colonos europeus pode ser entendida pela grande presena dessa figura na
cultura europeia de forma mais sistemtica e difundida a partir da Idade Moderna. Entre os
sculos XIV e XVII a Europa viveu, nas palavras de Jean Delumeau, uma invaso
demonaca,191 onde elementos das tradies pags (com seus pequenos demnios brincalhes
e travessos) foram incrementadas com a iconografia oriental. Com o advento das Reformas
protestantes Sat ocupa papel ainda mais relevante na cultura europeia, deixando de estar
presente apenas em questionamentos teolgicos isolados em mosteiros e ultrapassando a
figura de pequenos demnios das florestas que aprontavam diabruras com os camponeses.
Com a Renascena, Sat tornar-se o prncipe deste mundo, aquele que est
continuamente se esforando para enganar e seduzir os humanos para tornar sua vida
miservel. neste momento que sua iconografia mais padronizada ser difundida, atravs dos
escritos de Martinho Lutero, atravs do teatro, da imprensa. O medo e o fascnio do satanismo
se espalha pela Europa no alvorecer da Idade Moderna.
A figura do Diabo que ganha cada vez mais difuso na Europa, e que ser
transportada pelos colonizadores para as Amricas, est bem resumida pelo texto de uma pea
de teatro do sculo XVI, na Alemanha:
189
Idem. P.4
Apud PRANDI. Op.cit P. 4
191
DELUMEAU, Jean. Histria do Medo no Ocidente (1300-1800). So Paulo: Companhia de Bolso, 2009.
Captulo 7: Sat. Os prximos pargrafos so baseados em sua obra.
190
113
Ele [Sat] tem grandes chifres, seus cabelos so todos eriados, seu rosto horrendo, seus olhos
so redondos e flamejantes, seu nariz comprido, torto e recurvo, sua boca, desmesuradamente
grande, inspira horror e pavor, seu corpo inteiramente negro. 192
Alm dessas caractersticas, a cor vermelha tambm era sua habitualmente, assim
como o rabo e o tridente.
193
encontramos no Rio de Janeiro no perodo estudado, como podemos ver nas imagens
anteriores.
Dessa forma, a iconografia do diabo mais comum entre as fantasias carnavalescas no
Rio era aparentemente inspirada no diabo europeu. Entretanto, tal constatao no nos
permite afirmar que os significados da utilizao dessa fantasia por cariocas em finais do
sculo XIX sejam diretamente correspondentes a essa tradio europeia. Devemos investigar
quais referenciais culturais permitiram a aproximao entre negros e diabos nos carnavais
cariocas da dcada de 1880.
No possvel afirmarmos a importncia de Exu para a utilizao de fantasias de
diabo em finais do sculo XIX. Entretanto, devemos reforar que a imagem do diabo j estava
presente em festas e procisses coloniais, como a de So Jorge e na festa de Corpus Christi e
no sbado de Aleluia. Nessa ltima festa, por exemplo, a presena do diabo bastante
marcante. Segundo Mary Karash, no sbado de Aleluia, quando havia a cerimnia de enforcar
o Judas, a presena de escravos era predominante na primeira metade do sculo XIX. O diabo
era responsvel por enforcar o Judas: ele era cercado por foguetes e segurava a figura
pendente do Judas em uma de suas garras.
192
idem. P. 363
MUCHEMBLED, Robert. Uma histria do diabo sculos XII-XX. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001. P.
27.
193
114
A imagem que Debret nos legou dessa festa possibilita uma melhor visualizao do
diabo: era mascarado, com chifres e garras (Figuras 8 e 9). Ainda segundo Mary Karash, essa
figura no representava para os escravos e descendentes os mesmos sentidos do demnio,
pecado e inferno europeu, mas sim poderia se aproximar mais de Cubango (correspondente
Bantu de Exu), entidade que controla os espritos rebeldes.
115
Sendo assim, as imagens do diabo percorreram diversos caminhos antes de tornaremse fantasias carnavalescas. Nos carnavais cariocas da dcada de 1880 j constituam uma nova
prtica com novos sentidos, muito diversos e plurais. No estavam limitados a um nico
grupo social, mas os sentidos de seus usos variaram de acordo com o tempo e com os
sujeitos. Iremos buscar agora as trilhas e encruzilhadas pelas quais essas fantasia percorreu s
vsperas da abolio da escravido.
116
Na verdade, a imprensa carioca passava nesse perodo por uma transformao muito intensa em
direo massificao e busca de um pblico leitor mais amplo e indiferenciado. Por isso, o
interesse em noticiar ocorrncias capazes de atrair a curiosidade de muita gente pode ter gerado
o aumento desses registros nas colunas de jornais, ampliando o seu significado e alcance em
busca do interesse dos leitores195
194
117
as classes pobres e viciosas, diz um criminalista notvel, sempre foram e ho ser sempre a mais
abundante causa de todas as sortes de malfeitores: so elas que se designam mais propriamente
sob o ttulo de - classes perigosas ; pois quando mesmo o vcio no acompanhado pelo crime,
s o fato de aliar-se pobreza no mesmo indivduo constitui um justo motivo de terror para a
sociedade. O perigo social cresce e torna-se de mais a mais ameaador, medida que o pobre
deteriora a sua condio pelo vcio e, o que pior, pela ociosidade 197
Apud CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortios e epidemias na Corte Imperial. So Paulo:
Companhia das Letras, 1996. P.21
118
a principal virtude do bom cidado o gosto pelo trabalho, e este leva necessariamente ao
hbito da poupana, que, por sua vez, se reverte em conforto para o cidado. Desta forma, o
indivduo que no consegue acumular, que vive na pobreza, torna-se imediatamente suspeito de
no ser um bom trabalhador (..). O resto segue como que naturalmente: os pobres carregam
vcios, os vcios produzem os malfeitores, os malfeitores so perigosos a sociedade; juntando os
extremos da cadeia, temos a noo de que os pobres so, por definio, perigosos 198
Fechando com chave de ouro tais afirmativas, conclui a comisso de deputados que
discutem a lei: as classes pobres (...) so [as] que se designam mais apropriadamente sob o
ttulo de classes perigosas.
Apesar, de nessas citaes, em momento algum ter sido mencionado a associao de
pobres com negros, devemos atentar para o fato de que, como ressalta Chalhoub, o contexto
histrico onde essas formulaes foram produzidas fez com que, desde o incio, os negros se
tornassem os suspeitos preferenciais e representantes dessas classes perigosas199.
Est relacionada diretamente com as problemticas oriundas da crise do sistema
escravista, como a discusso em torno das estratgias para garantir que os negros se
sujeitassem a trabalhar para a continuidade da acumulao de riquezas de seus
senhores/patres e como organizar o mundo do trabalho sem o recurso s polticas de
domnio caractersticas do cativeiro200. Neste cenrio ganha fora a poltica da suspeio
generalizada.
Como as polticas de controle social cada vez mais saam da esfera de poder privado,
e ficaram definitivamente comprometidas aps o 13 de maio de 1888, fundamentou-se uma
estratgia de represso contnua, agora na esfera do poder estatal, atravs de leis, da polcia,
de registros oficiais, da necessidade de documentos e contratos, etc. A necessidade de manter
o controle social sobre os trabalhadores torna-se cada vez mais urgente com o ocaso da
escravido.
Os suspeitos preferenciais sero os negros, pois, nas palavras do deputado MacDowell, na sesso de 10 de outubro de 1888, a lei de 13 de maio no seria capaz de fazer
198
Idem. P. 22
Idem. P. 23
200
Idem. P. 24
199
119
201
120
Figura 10. direita a capa da Revista Ilustrada. esquerda, em detalhe, os dois diabinhos e o possvel
guarda urbano Revista Ilustrada, 31/01/1880
121
Alm dos tradicionais diabinhos, que pem a caraa com o nariz para os astros, e um ou outro
princez maltrapilho (...) e de alguns Zes-Pereiras, nenhum mscara se apresentou digno de
meno.207
Mscaras avulsos coisa que j no h. Apenas diabinhos encarnados, e esses mesmos em
pequena quantidade. J no h sujeitos de cabea de burro e livro debaixo do brao, e nem com
uma lanterna acesa se encontra um princez.208
No se via um mscara avulso sobre o qual pudssemos lanar vistas: simplesmente uns cujos a
que o povo, na sua linguagem tola, de scia, apelida de trouxas, apareciam por intervalos,
vestidos de diabinhos, princezes, et reliquia,209
Ontem o dia foi consagrado ao descaso. Alguns Zs-Pereiras, mais ou menos ruidosos,
percorreram as ruas da cidade, zabumbando os ouvidos do prximo. Raros princezes, muitos
206
Como vimos no captulo Pginas Carnavalescas, ngelo Agostini e sua revista estavam diretamente
alinhados ao modelo de carnaval e mesmo de abolicionismo pregado pelas grandes sociedades.
207
Gazeta de Notcias, 04/03/1878
208
Gazeta de Notcias, 05/02/1883
209
Gazeta da Tarde, 07/-2/1883
122
diabinhos, alguns velhos daqueles cuja raa parece prestes a extinguir-se e uma ou outra
aluso feliz.210
O Rio de Janeiro aglomera-se, amontoa-se, empilha-se e atropela-se todo na rua do Ouvidor
quando tudo monopoliza. (...)
s vezes do meio desta multido, que caminha lenta e pisada, ecoa um grito [?]. tolo,
desenxabido: Voc me conhece? o diabinho211
123
Uma infinidade de mscaras a p percorreram ontem as ruas. E h um fato que precisa ser
considerado: os domins suplantaram os diabinhos. Querem alguns que isto seja fenmeno
progressistas, to progressista como a derrota dos limes de cheiro pelas hostes compactas das
bisnagas.213
Aos domins cabe ainda este ano, como coube o ano anterior, a vitria numrica (...) Os
princezes tambm chegaram a um bom nmero, e os arlequins no lhes ficaram atrs, pelo menos
213
214
124
durante o dia; a noite no houve reprter que quisesse meter em tal verificao, e por isso no
podemos informar.215
Deve ter acordado cedo, se que dormiu, se que no andou toda a noite a bailar pela cabea a
ideia do figuro, que ia fazer no dia seguinte, e do muito que ia divertir-se, a palmilhar esta
cidade inteira, ao sol e chuva s chuvas de toda ordem , gritando, pulando, danando, ora a
rufar num tambor, ora a empunhar um archote, a envolver-se aqui num rolo, a incorporar-se ali
num grupo, arriscando a encontrar uma alma caridosa, que o convide a matar o bicho, ou algum
capoeira que lhe ponha as tripas ao sol.(...)
Alguns dormem nas estaes da polcia, outros vo dormir Misericrdia, e j um amanhece na
mesa de pedra do necrotrio.217
As opes elencadas pelo colunista no so muito otimistas: tripas postas ao sol por
um capoeira; dormir na estao policial; ir ao hospital da Misericrdia ferido; ou mesmo
amanhecer no necrotrio da cidade. O destino do diabinho estaria inevitavelmente atrelado
violncia, a crimes e a morte. Mas tambm podemos reconhecer no texto elementos da
atuao desse mascarado. Palmilhava a cidade inteira, movendo-se com desenvoltura entre
grupos variados (com archote, tambores, envolvidos em tumultos). Apresentava desta forma
um carter de liberdade de trnsito em diferentes espaos e reforava sua individualidade.
215
125
Nestes trs dias a polcia no me mandar arrancar o caro, ela minha amante, ns somos
camaradas, o chefe que me serve ter carcias para o meu esperneamento, sorrisos para as
minhas vergonhas218.
Ele o tolo que faz os demais rirem, anda alienado atrs de qualquer turba, barulho,
msica que aparecer. Mas tambm aquele que vocifera at enrouquecer, explicitando que a
fala era to importante quanto a dana e as piruetas.
Eu sou assim, concentro-me numa frialidade conveniente; isolo-me numa neutralidade que faz
bem barriga; atiro-me para onde me chama a turba dos meus iguais e ali, loucamente sem outra
razo a no ser a tolice caracterstica dos diabinhos, vocifero e enrouqueo a alinhavar nas
coisas de que muitos riem-se, sem que as entenda, e a que a maior parte despreza com o erguer de
ombro dos honestos.219
Assim como o diabinho de Jos Telha, esse folio circula livremente pela cidade,,
frequentando festas diversas. Goza, aparentemente, de uma liberdade de ir e vir em
determinados espaos festivos que refora sua individualidade e importncia para a festa. O
diabinho encerra sua gazeta alardeando sua fora assustadora: o anonimato e a navalha.
No penseis, porm, que to cedo deixeis de ser o patro dos princezes. Correrei com eles por
praas e becos, navalhando com a mentira, acrobateando de um lado para outro, j no meio de
218
219
126
cadveres polticos que eu penso, vive j entre os secretas meus amigos, ora com caro dos trs
dias de Momo, ora com a caraa que me prpria, sempre todos me ignorando e rejeitando. 220
Tanto com o caro dos dias de Momo, quanto com a caraa que lhe prpria nos
dias restantes do ano, o diabinho rejeitado e ignorado, at o momento que surge violento e
incivilizado. O diabinho, segundo esta fonte, o desqualificado dessa sociedade no apenas
no carnaval, mas tambm nos demais dias do ano.
Estas duas crnicas abrem a possibilidade de interpretao mais prxima da imagem
desses folies para jornalistas representantes das folhas dirias mais importantes do Rio de
Janeiro: seriam fantasias capazes de mascarar a violncia desses sujeitos; representam o
perigo para o burgus pacato que pretende sair s ruas para apreciar o carnaval.
Entretanto, ambos os textos tambm favorecem nossa aproximao com as prticas
desses sujeitos sociais que escolhiam se fantasiar de diabinho: comumente agiam
individualmente na festa, circulando por diversos espaos e grupos carnavalescos, desfilando
com archotes, tocando tambores, participando de grupos mais organizados; o canto, a pilhria,
a dana e as piruetas fazem parte de suas caractersticas, o que reforado pelas suas
mscaras com grandes lnguas e por sua fama de danarino e capoeira.
Mas no aparece a cor do indivduo que se esconde por baixo do tecido vermelho.
Apesar disso, como pretendo demonstrar, o diabo associado a prticas generalizadamente
entendidas como negras no final do imprio sobretudo a capoeiragem e que, como parece
ser forte nas relaes raciais brasileiras, a cor silenciada, mas nem por isso, menos
relevante nessa sociedade.
Quando o estadunidense C. Andrews esteve no Brasil, ele assistiu a vrios carnavais.
Sua percepo foi que na dcada de 1880 a festa perdia a popularidade, pois as classes mais
altas do Rio permaneciam em casa nos trs dias de Momo. Provavelmente seu crculo social
no Rio lhe deu essa impresso. Contudo, ele no deixou de notar um fato, que lhe chamou a
ateno.
Segundo Andrews, o evento que primeiro desperta as pessoas para a proximidade do
festival o aparecimento de jovens vestindo roupas vermelhas apertadas, chifres e longos
220
Idem.
127
Racializando diabruras
At aqui trilhamos um caminho tenso atravs da velada e sutil construo abstrata de
intelectuais e autoridades sobre as inferioridades de certas prticas carnavalescas em relao a
outras. Primeiro vimos a disputa entre o entrudo e o carnaval, sendo o primeiro, representante
do atraso colonial e de primitivas formas de diverso. J o carnaval seria filho da
civilizao, a festa representante das mais sofisticadas e evoludas naes Em seguida
avaliamos a consequente oposio entre Z-povinho e as honradas famlias que alugavam
sacadas na Rua do Ouvidor. Tal oposio colocava em campos opostos os que tinham o
direito liberdade de transitar pelas ruas sem ser incomodados pelo povo, ao qual deveria o
Estado reprimir, para garantir a liberdade das famlias.222
Vimos que, ante as intensas agitaes sociais da dcada de 1880 na Corte, houve
uma intensificao da represso a certos sujeitos durante o carnaval. Entre 1879 e 1888, os
nmeros da Casa de Deteno da Corte nos ajudaram a analisar como as foras policiais se
empenharam em coibir a participao de pretos, pardos e fulas nos carnavais e como certos
espaos da cidade ocupavam posio de destaque na disputa simblica do carnaval (sobretudo
localizados nas freguesias de Santana, Sacramento, Santa Rita e So Jos).223
Neste captulo buscamos aproximao com a fantasia de diabinho, cada vez mais
associada aes violentas e criminosas por parte da imprensa. O ponto culminante desse
processo, e que marcaria profundamente a imagem dos diabinhos e dos prprios negros no
carnaval e na sociedade carioca, foi a associao dessa fantasia aos capoeiras da Corte.
Peo desculpas desde j pela longa citao que se segue, mas acredito que ela por
demais rica para ser desmembrada. Na Gazeta de Notcias de 07 de fevereiro de 1883, a seo
Ocorrncias da Rua traz as seguintes linhas:
221
ANDREWS, C. C. Brazil: its condition and prospects. New York, D. Appleton & Co., 1887. Col. B Ottoni.
p.41.
222
Como vimos no captulo Pginas Carnavalescas.
223
Ver Captulo 2 dessa dissertao: Prises momescas.
128
Os diabos, isto os capoeiras por essa forma fantasiados, continuaram anteontem a praticar
diabruras.
Na rua da Quitanda, esquina da do Visconde de Inhama, feriram gravemente no peito com uma
punhalada o crioulo Justino, escravo do comendador Luiz Jos da Silva Guimares o qual foi
recolhido ao hospital da Misericrdia.
Na rua primeiro de maro na frente de um Z Pereira, recebeu diversos ferimentos o crioulo
Quintino Jos Gonalves de Souza, sendo preso o autor da ofensa, que era o diabo, crioulo Joo
de Souza.
O de nome Jos Francisco Pinheiro, armado de um grande porta-voz, na rua Senador Pompeu,
ofendeu a diversas pessoas, pelo que foi recolhido ao xadrez.
A crioula Maria da Felicidade da Conceio segui o mesmo destino, por estar promovendo
desordem na rua General Caldwell, estando tambm caracterizada de diabo.
Um numeroso grupo dos tais diabos e diabinhos invadiu a loja de charutos da rua dos Andradas ,
n. 26 e depois de espancarem ao dono da mesma, Janurio Joaquim Menezes, e a Jos Rodriguez
de Carvalho, que ali se achava, passaram a inutilizar diversos objetos, roubar charutos e o mais
que encontravam a jeito. A polcia conseguiu apenas prender o chefe do grupo, que era Manoel
Jacinto Nunes.
Um outro grupo, vendo que eram recolhidos alguns companheiros a estao do 4 distrito,
pretendiam invadi-la para solt-los. Esse grupo era capitaneado por um sargento do exrcito, que
foi preso e remetido para o seu quartel.
Durante a noite foram ainda recolhidos a diversas estaes 41 diabos, que em diversas ruas
faziam distrbios.
Na freguesia de Santana, todos os diabos que eram encontrados eram revistados, e como sinal
cortavam-lhes a calda.224
129
A cor dos indivduos ao longo dos jornais aparece apenas em ocasies especficas.
Quando os jornais tratam genericamente dos prstitos das Grandes Sociedades, ou escrevem
editais atacando o entrudo, as cores dos indivduos no aparecem com frequncia, as
diferenas so tratadas na esfera cultural e social. Nesta situao as abordagens so muito
mais abstratas e versam, como vimos, sobre o Z-Povinho sem educao que ameaa as
prticas civilizadas dos prstitos dos bons rapazes e famlias respeitveis 225.
Entretanto, quando passamos s pginas de notcias policias o quadro outro. As
poucas referncias a cor dos indivduos aparece a. Podemos notar que a regra um
silenciamento da cor, o que no quer dizer que nesta sociedade inexista o preconceito racial.
Pelo contrrio, o que notamos uma racializao velada, ou como diz Wlamyra Albuquerque,
h uma dissimulao da raa226.
Segundo Lilia Schwarcz, com o clmax da abolio da escravido que o problema
da raa ganha espao entre as discusses da elite brasileira. Assim, com o advento da
igualdade formal, com a passagem do escravo a cidado, parecem surgir novas concepes e
esteretipos.227 A autora afirma, citando Skidmore, que o auge do pensamento racial no
Brasil ocorreria entre as dcadas de 1890 e 1920, perodo em que a noo de superioridade
branca seria legitimada cientificamente 228.
Ora, se a ascenso de um pensamento racializado capaz de justificar medidas
repressivas de controle das populaes de cor e a tentativa de manter certos padres de
dominao e trabalho est diretamente ligada ao rompimento das relaes escravistas,
encontrando seu auge com a abolio e os anos seguintes, no Rio de Janeiro parece ter se
iniciado precocemente aps a lei de 28 de setembro de 1871, e se acelerado na dcada de
1880.
Se contabilizarmos o nmero de livres e escravos nas freguesias centrais da cidade e
levarmos em considerao o elevado nmero de negros e mestios da populao como
mostra o censo de 1872 podemos concluir que na Corte dos ltimos anos do imprio a
parcela de populao cativa era diminuta, e em contrapartida havia um elevado ndice de
225
130
negros e mestios livres ocupando os mais variados postos de trabalho na cidade. 229 Os
escravos existentes trabalhavam lado a lado com negros livres e imigrantes europeus,
sobretudo portugueses o que tambm ir se refletir no carnaval.
Tabela 1. Populao das freguesias centrais do Municpio Neutro, com base nas informaes do Almanack
Laemmert de 1879.
Freguesias
Livres
Escravos
Total
Santana
33.746
5.157
38.903
Santa Rita
30.057
4.778
34.835
Sacramento
22.927
4.250
27.077
Glria
17.960
4.525
22.487
3.937
20.693
So Jos
17.378
2.904
20.282
Candelria
8.162
1.843
10.005
229
131
racializa o indivduo nessas pginas policiais, como na fonte pouco citada. Retornemos a
ela.
A fonte to instigante que difcil saber por onde comear. Partiremos, ento, da
primeira frase: Os diabos, isto os capoeiras por essa forma fantasiados, continuaram
anteontem a praticar diabruras. O jornalista lana mo, j na abertura de seu texto, de uma
frase que sintetiza a imagem que pretende reforar sobre os que se fantasiam de diabo durante
o carnaval carioca. Segundo ele, os diabos so representados majoritariamente na festa por
capoeiras. As diabruras cometidas por esses folies so entendidas como inerentes e
naturalizadas, j que no se espera outra atitude de capoeiras que no a violncia.
Mais uma pea para nosso enigma. Os diabos que naquele mesmo ano foram vistos
pelo jornalista da Gazeta de Notcias como a nica manifestao do Z-Povinho no
carnaval232 foram considerados como a expresso mxima da ao dos capoeiras na festa.
Por isso importante entendermos um pouco melhor quem eram esses capoeiras e quais suas
prticas e motivaes em finais do Imprio do Brasil.233
Segundo Carlos Eugnio Lbano Soares, as festas representaram um dos momentos
de maior atuao dos capoeiras no Rio de Janeiro. Desde a primeira metade do sculo XIX, os
dias festivos do calendrio religioso, as festas cvicas nacionais eram marcadas por grande
atividade das maltas de capoeiras, sobretudo, nas celebraes realizadas nos meses que
marcam a virada do ano: Dezembro, Janeiro e Fevereiro como o Natal, o Dia de Reis e o
Carnaval234. Era um perodo como ainda hoje o de temperatura elevada, com dias mais
longos, que incentivava os moradores brancos e portugueses a se refugiar em casa, em
longas sestas 235, enquanto a populao negra ocupava as ruas.
232
132
238
236
Idem. P. 71
Idem. SOARES. Negregada... op.cit.
238
SOARES. A Negregada op.cit. p.47
239
Idem. P. 64
240
Na dcada de 1870, as maltas iro se fundir em dois grandes grupos (ou naes) rivais: Nagas e Guaiamus.
Segundo Soares, a geografia das maltas aponta para o controle dos Guaiamus da rea da cidade velha (parquias
de Sacramento e Santa Rita, Candelria, regio porturia, e de cortios). J os Nagas ocupavam a regio de
ocupao mais recente, Glria, Lapa, e praia de Santa Luzia, alm de Santana, fazendo um crculo em torno da
cidade velha. O campo de Santana era uma regio de disputa pelos dois grupos. As maltas podiam chegar a
centenas de pessoas, e possuam uma hierarquia similar militar. A iniciao de caxinguels, sarandeje ou
237
133
Figura 11. Typos e uniformes dos antigos Nagoas e Guayamus. Desenho de Calixto. Kosmos, 1906. BN
Os anos 1870, sugere Soares, marcam uma politizao explcita da capoeira na Corte,
com o crescimento das ideias abolicionistas, alianas com membros da elite branca, mas
tambm como fruto do contexto da guerra do Paraguai, onde muitos capoeiras lutaram e, ao
regressarem, inflaram suas maltas de ousadia. Esses grupos tambm participaram ativamente
das disputas eleitorais na Corte, principalmente na dcada de 1880.241
Esse processo se d ao mesmo tempo em que o carnaval se torna a principal festa
carioca, suplantando mesmo as festas religiosas. Era um momento propcio para esconder-se
por trs de diabos entre a multido e ocultar-se dos agentes da ordem, realizar com maior
segurana as vinganas pessoais (...) e exprimir rivalidades242.
carrapetas (jovens postulantes a se tornarem capoeiras) comeava por volta dos 10 anos, e grande parte dos
presos por capoeiragem na Casa de Deteno neste perodo estavam na faixa etria de 15 a 20 anos.
ASSUNO. Capoeira op.cit.
241
SOARES. A Negregada... op.cit. e ASSUNO. Capoeira...op.cit.
242
SOARES. Festa e violncia... op.cit. P. 303.
134
Ainda os capoeiras de uma estalagem da rua do conde DEu saiu ontem um grupo de
mascarados, diabinhos e domins, que promoveu grande desordem, armados de cacetes e pedras.
A polcia compareceu e prendeu alguns. Quase todos so conhecidos como capoeiras. 243
Tal caracterstica das pginas dos jornais nos dias de carnaval refora a tentativa de
associar a imagem dos capoeiras com o diabo, e mais do que isso atrelar a fantasia de
diabinho prtica da capoeiragem, da violncia e da desordem. Entretanto, quando
analisamos os nmeros de prises que resultaram em transferncia para a Casa de Deteno
da Corte nos dias de carnaval, percebemos que poucos indivduos foram presos por
capoeiragem. So apenas 95 acusados de capoeiragem em 995 fichas analisadas. Ou seja, a
porcentagem de capoeiras que chegavam a ser detidos na Casa de Deteno era mnima, de
apenas 9,55% do total de presos. Esse percentual nos possibilita deduzir que, apesar de
numericamente pouco representativos, os capoeiras cultivavam uma imagem forte o suficiente
para inferir medo em grande parte da imprensa e autoridades pblicas. Outra concluso, j
ressaltada por Chalhoub e Soares, que os capoeiras possuam inmeras relaes mesmo com
agentes da ordem, o que muitas vezes lhes livravam do xadrez.244
Contudo, apesar desse nmero relativamente pequeno de presos por capoeiragem,
sua composio racial bastante significativa. Como podemos ver no grfico a seguir, 73%
foram definidos como pretos (47%), pardos (22%) e fulas (4%), enquanto apenas 19% deles
eram brancos. Dentre os 18 brancos presos por capoeiragem metade eram estrangeiros (oito
portugueses e um francs). Portanto, apesar na maior abertura tnica e social da capoeira a
partir de 1850, com grande nmero de brancos praticando (principalmente imigrantes
portugueses), nos dias de carnaval a represso aos capoeiras negros era muito superior a
qualquer outro indivduo.
243
244
135
Pardos
Fulas
6%
Brancos
Morenos
Outros
2%
19%
47%
4%
22%
Grfico 19. Capoeiras presos no carnaval (1879-1888) Casa de Deteno da Corte, livro de Livres.
136
246
REIS, Joo Jos. "Tambores e Temores: a festa negra na Bahia na primeira metade do sculo XIX" In Maria
Clementina P Cunha (org.). Carnavais e outras F(R)estas. Ensaios de histria social da cultura. Campinas:
UNICAMP, 2002.
247
Idem. P129.
248
SLENES, Robert. "Senhores e Subalternos no Oeste Paulista" In: Luiz Felipe de Alencastro (org.). Histria
da Vida Privada no Brasil. A Corte e a Modernidade Nacional. So Paulo: Cia das Letras, 1997.
249
Idem.
250
Apud. CHALHOUB. Machado de Assis, historiador. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. P. 240.
137
com diversos fins, sentidos e resultados. Era uma oportunidade para a celebrao de valores
culturais trazidos pelos africanos e de outros aqui criados. Servia para preencher as poucas horas
de folga ou para acolher os que fugiam das horas de trabalho. A partir e em torno dela muita
coisa se tornava possvel: rituais de identidade tnica, reunio solidria de escravos e libertos,
251
As batalhas pelo direito de festejar mobilizaram tanto quanto os anseios por uma
famlia, por roa, ou por autonomia no trabalho. Ao longo de todo perodo escravista no
Brasil, a festa foi almejada como mais um componente da luta pela autonomia e um ponto
formador de muitas vises de liberdade compartilhadas pela populao negra.
O crioulo Justino apenas um entre tantos escravos que batalharam pelo direito de
festejar. Justino, escravo do comendador Luiz Jos da Silva Guimares, no Domingo de
carnaval de 1883 se envolveu numa confuso com um grupo de diabinhos. Acabou levando a
pior, sendo apunhalado no peito. Tal balbrdia ocorreu na esquina da Rua da Quitanda com a
Rua Visconde de Inhama, bem no centro da cidade, onde mais tarde, naquele mesmo dia
passariam as Grandes Sociedades Carnavalescas.
No tenho informaes sobre o que se passou com Justino aps agresso to
violenta, mas com certeza seu senhor, o comendador, ficou profundamente insatisfeito por ter
perdido os servios de seu escravo seja por uns dias, seja eternamente. No sabemos os reais
motivos do atentado contra Justino, nem o que ele fazia naquele momento num dos locais
mais animados e disputados do carnaval carioca. Entretanto plausvel supor que estivesse
num momento de folga, j que era Domingo clssico perodo de descanso dos escravos e
ainda por cima, Domingo de carnaval, dia que abria oficialmente o reinado de Momo na
cidade. Mesmo no sendo um feriado oficial, o carnaval representava um perodo de
suspenso do trabalho, como j ressaltou Cunha252, e tanto para Justino quanto para seus
agressores, a festa poderia representar um momento de distanciamento da autoridade
senhorial e da explorao de sua fora de trabalho.
evidente que esses casos de violncias e agresses so das pginas policiais do
jornal. No podemos olhar inocentemente para essa fonte e acreditar que todos os diabos eram
251
138
capoeiras desordeiros e que crioulos e pardos saiam no carnaval para roubar e agredir os
outros. Muitas outras estratgias e possibilidades se abrem nos dias do carnaval.
A venda de comida, de gua, de limes-de-cheiro era liderada por negros e,
sobretudo, mulheres negras253. No incio da dcada de 1880, a educadora alem Ina Von
Binzer, aps ser alvejada inmeras vezes por tais limes, escreve para sua querida Grete
que, apesar de haver proibio, repete-se a mesma coisa todos os anos e nas esquinas at as
pretas oferecem venda enormes bandejas cheias de laranjinhas.254
Alm de tentarem alcanar algum retorno financeiro com a festa, das formas mais
variadas, a importncia da participao desses escravos no carnaval parece exceder o simples
desejo de angariar algum peclio. Muitas vezes, na prtica, o que ocorria era o contrrio, j
que o sujeito, alm de no trabalhar sendo ele escravo de ganho, todo dia sem trabalho
representava um prejuzo perante o seu senhor acabava gastando suas minguadas economias
para comprar ou fazer uma fantasia.
Em 1878, na loja de nmero 55 da rua Sete de Setembro era possvel comprar
mscaras de diabo por 500 ris e 1$000 (mil ris) enquanto as ditas de bichos 1$ e 2 $,
mscaras de cera 1$500, ditas de veludo2$, ditas de cetim 1$.255 Na Casa do lagarto, Praa
Onze de Junho, 132, em 1885, a fantasia de diabo custava 2$ (dois mil ris) e 2$500 (dois mil
e quinhentos ris); mscaras de diabo 1$ (mil ris), a escolher. J o preo dos domins era
4$000, 5$000 e 6$000; a roupa de palhao 7$000256. Em 1888, na Casa da Cotia, conhecida
loja da rua Uruguaiana, nmero 16, as fantasias custavam: Preos: Diabos 1$000; Domins
3$500; Pierrot 4$ e 6$.257
No parece haver uma grande variao nos preos das fantasias de diabos entre os
anos. Contudo no devemos nos esquecer que mesmo estas vestimentas possuam hierarquias
e gradaes. Uma fantasia de diabinho simples custava muito menos do que paramentadas
fantasias de Mefistos e Reis dos Diabos ostentadas pelos folies ilustres das Grandes
253
Ver por exemplo Debret: Os pnicos preparativos do carnaval brasileiro consistem na fabricao dos
limes-de-cheiro, atividade que ocupa toda a famlia do pequeno capitalista, da viva pobre, da negra livre que
se rene a duas ou trs amigas, e finalmente das negras das casas ricas, e todas, com dois meses de
antecedncia e fora de economias, procuram constituir proviso de cera.(...)
Muitos negros de todas as idades so empregados nesse comrcio[de limes] at a hora da ave-maria, quando
se suspendem os divertimentos. DEBRET. Op.cit. p. 268-70
254
BINZER, Ina Von. Os meus Romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alem no Brasil. So Paulo:
Paz e Terra, 2004. P.85.
255
Gazeta de Notcias, 03/03/1878.
256
Gazeta de Notcias, 13/02/1885.
257
Gazeta de Notcias, 12/02/1888.
139
Sociedades. Uma fantasia de cetim podia chegar a custar 25$000 (vinte e cinco mil ris)258
enquanto uma fantasia completa de diabinho com rabo e mscara podia ser encontrada por
2$500 (dois mil e quinhentos ris).
Parece bastante plausvel a possibilidade de se comprar uma fantasia de diabinho,
mesmo para escravos de ganho, em finais do sculo XIX. Segundo Andr Dutra Boucinhas,
em interessante estudo sobre consumo e comportamento no Rio a partir de 1850, a renda
mensal de um trabalhador urbano ou arteso livre girava em torno de 60$000 (sessenta mil
ris) enquanto seu gasto mensal mnimo seria de 19$000 (dezenove mil ris) se fosse solteiro
e 34$000 (trinca e quatro mil ris) se casado, ao longo da dcada de 1870.259
Andr Boucinhas afirma que um escravo de ganho precisava entregar ao seu senhor
um jornal mnimo de 20$000 (vinte mil ris) mensais. Segundo seus clculos, um escravo que
vivesse sobre si em quarto de cortio desembolsaria 7$000 (sete mil ris) de aluguel do
quarto de solteiro e teria um gasto mnimo de 12$000 (doze mil ris) de alimentao. Dessa
forma, um escravo de ganho na dcada de 1870 precisaria conseguir minimamente 39$000
(trinta e nove mil ris) para as despesas bsicas 19$000 para comida e moradia e 20$000
para seu senhor.
O autor afirma que, mesmo os indivduos com as profisses com pior remunerao
servente de pedreiro, domsticos, vendedores ambulantes e operrios teriam condies de
gastar um pouco com roupas, mveis e, claro, diverso260. A partir desses dados plausvel
supor que, para os dias de carnaval, com certa economia, seria possvel adquirir uma fantasia
de diabo a 2$500, ou apenas sua mscara por 500 ris. Entretanto, sendo escravo de ganho,
tendo que pagar altas quantias para seu senhor, se sustentar e ainda tentar juntar peclio para
compra da liberdade, a melhor opo seria fazer sua prpria fantasia com arame, papelo,
trapos vermelhos, e usar o prprio cabelo para fazer os chifres. Mesmo assim, passar a noite
na festa demandava dinheiro para comer e beber beber mais do que comer, geralmente.
Portanto o que leva tais escravos a participar dessa festa?
Muitas vezes a apario de escravos nas pginas dos jornais nos dias de carnaval
acontece de forma coletiva. No temos como afirmar que estavam agindo coletivamente na
festa, ou que se conheciam, ou faziam parte de uma malta de capoeira. Contudo, interessante
258
140
notar o recurso do jornal em noticiar as prises desses indivduos conjuntamente, num bloco
de escravos:
Prises por diversos motivos foram detidos anteontem os seguintes escravos: Ricardo
Francisco, de Domingos Jos Machado; Luis de Jos Luis Francisco; Eusbio, de Alfredo Luiz de
Souza; Antero, de F. Brum; o menor Pedro, de Frederico de Tal. 261
Prises foram detidos anteontem os seguintes escravos: Sebastio, de Alexandre Jos da Silva;
Damasia, de Jos Pereira Magiai; e Maria, de Maria Maia. 262
261
141
Antonio Nunes pereira; Celestino, [escravo] de Joo de Tal; Loureno, [escravo] de Fuo
Carneiro; Leopoldino, [escravo] de Fuo Fontainha; Jos Mendes Ferreira, Manoel da Silva,
Antonio Pereira dos Santos, Jos Martins de Gusmo e Joo Afonso da Silva. 265
Capoeiras foram presos anteontem os seguinte capoeiras: Cypriano Leopoldo, Ricardo Joo
da Costa, Joo Ferreira de Melo e Romualdo Ferreira, encontrados em exerccio de capoeiragem
na frente de uma banda de msica na rua do Hospcio; Joaquim Ramos de Souza, Antonio Jos
Rodrigues e Serafim, escravo de Jos Maria da Silva Guimares, na praa Onze de Junho;
Amarino, escravo do comendador Simeo de Sampaio Leite, no campo da Aclamao. 266
Aniceto, escravo de Antonio Jos Machado, foi encontrado fantasiado, em luta corporal com um
indivduo que evadiu-se, na rua do Riachuelo. Aniceto apresentava trs leves ferimentos na
cabea e foi recolhido ao hospital da Misericrdia.267
265
142
269
143
In cauda venenum!
Que mal pode haver numa calda feita de algodo enrolada cintura de um diabinho?
Aparentemente ela apenas compe o personagem, juntamente com seus chifres e tridente.
Contudo, seus rabos satnicos foram o alvo de ataque das autoridades policiais da freguesia de
Santana, no carnaval de 1883. O jornalista da Gazeta de Notcias escreve que:
270
CHALHOUB. Vises da liberdade... op.cit. MACHADO. O Plano... op. cit. SILVA, Eduardo. As camlias
do Leblon e a abolio da escravatura: uma investigao de histria cultural. So Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
144
Na freguesia de Santana, todos os diabos que eram encontrados eram revistados, e como sinal
cortavam-lhes a calda
Para ele, o corte da cauda era uma estratgia dos policiais para identificar os
diabinhos que j haviam sido revistados, pois, o nmero desses fantasiados na freguesia era
enorme. Provavelmente esse reprter, acostumado a ver o carnaval a partir da sacada da
redao do jornal na Rua do Ouvidor, no conhecia todas as sutilizas dos diabinhos.
A cauda no era apenas um acessrio inofensivo do endiabrado, e parece que os
policias sabiam disso, assim como J. Verin, escrevendo na Revista Ilustrada:
O carnaval, essa festa pag, religiosamente conservada at os nossos dias, como um parnteses
alegre, da vida montona e sria de um ano inteiro, proporcionou, a todas as classes sociais, um
meio de gozarem de uma liberdade ilimitada, fantasiando-se capricho, e at fingindo o que no
so.
O povo, pde ser, vontade, imperador, prncipe, bobo, diabinho, bispo, sem que ningum se
julgasse ofendido, nem pensasse em limitar-lhe essa liberdade de ao, que vai de nariz de cera a
longa cauda satnica, de paninho encarnado, em cujo extremo se aninha, as vezes, uma navalha.
In cauda venenum!271
A longa cauda podia ocultar a navalha, arma mortal e preciosa de capoeiras cariocas
na segunda metade do sculo XIX. Parece que tanto autoridades quanto jornalistas viam o
diabinho como a encarnao do mal nos dias de carnaval. No , portanto, desprezvel o fato
de que encontrei apenas uma referncia a outros tipos de fantasias quando estas aparecem em
relatos de crimes (na maioria dos casos o termo usado so mascarados ou fantasiados,
nominalmente, apenas a de diabinho). No devemos com isso supor que apenas diabinhos
atentassem contra o sossego pblico, mas que, dos relatos de violncia ocorrida no
carnaval, os jornais s colocavam em evidncia as fantasias de diabinhos, quando no usavam
o termo genrico mscaras ou no citavam a fantasia o que representa a maioria dos casos.
271
145
Um numeroso grupo dos tais diabos e diabinhos invadiu a loja de charutos da rua dos Andradas ,
n. 26 e depois de espancarem ao dono da mesma, Janurio Joaquim Menezes, e a Jos Rodriguez
de Carvalho, que ali se achava, passaram a inutilizar diversos objetos, roubar charutos e o mais
que encontravam a jeito. A polcia conseguiu apenas prender o chefe do grupo, que era Manoel
Jacinto Nunes.
Um outro grupo, vendo que eram recolhidos alguns companheiros a estao do 4 distrito,
pretendiam invadi-la para solt-los. Esse grupo era capitaneado por um sargento do exrcito, que
foi preso e remetido para o seu quartel.274
272
146
expresso violenta somente uma parcela da crescente atuao de negros, escravos e livres275,
no cotidiano politizado da cidade e no esfacelamento do escravismo.276
A ousadia desses grupos to grande que chegam a tentar invadir a estao policial
do 4 distrito para resgatar alguns companheiros. E o chefe do grupo era um sargento do
exrcito! Essa relao entre capoeiras e foras militares e policiais no to surpreendente
quanto pode parecer primeira vista. Os diabinhos que formaram esse grupo so tratados
como capoeiras pelo jornalista, e sua ao revela um pouco do universo desses sujeitos na
dcada de 1880.
A atuao mais ousada e politizada de capoeiras pode ser sentida mais intensamente
aps a Guerra do Paraguai, quando muitos deles retornaram ao Rio, aps uma severa poltica
de recrutamento forado na dcada de 1860.
A participao do Brasil na guerra marcou profundamente a sociedade e o Estado
nacional. Como ressalta Ricardo Salles, novas discusses ganharam corpo ao passo que
elementos qualificados como incapazes de partilhar e conviver com padres de civilizao
do imprio eram chamados a defend-los277. O exrcito emergiu como uma nova instituio
nacional com razes em outros grupos sociais (...) com amplo reconhecimento moral, sem, no
entanto, contar com espao de participao e poder social e poltico condizentes com esse
reconhecimento278
O retorno ao Rio de Janeiro dos ex-escravos, alforriados pela guerra, da populao
livre pobre que lutou junto com escravos e voluntrios das mais variadas provncias, e dos
inmeros capoeiras que ajudaram na vitria de importantes batalhas no Paraguai, coincide (e
contribui) com a acelerao da crise do escravismo279.
Como podemos ver na charge de Angelo Agostini, (Ver Figura 12) o fim da Guerra
do Paraguai exigia a discusso da questo servil. A legenda da charge diz: De volta do
Paraguai. Cheio de glria, coberto de louros, depois de ter derramado seu sangue em defesa
da ptria e libertado um povo da escravido, o voluntrio volta ao seu pas natal para ver sua
mo amarrada a um tronco! Horrvel realidade.... No era mais possvel adiar seu
275
No devemos esquecer que a fonte usou quatro vezes a palavra crioulo em 4 casos citados imediatamente
antes de tratar do grupo de tais diabos e diabinhos
276
SILVA. As camlias... op.cit., CHALHOUB. Vises... op.cit.
277
SALLES. Op.cit. P.63
278
Idem.
279
SOARES. A Negregada... op.cit.
147
encaminhamento, sob risco do voluntrio negro e fardado, heri de guerra, com medalhas
no peito, que lutou pela liberdade de um povo passar da indignao revolta.280
Figura 12. De Volta do Paraguai - Angelo Agostini criticando o paradoxo brasileiro aps a Guerra do Paraguai:
Lutar pela liberdade em um pas cheio de escravos. A Vida Fluminense, 11/07/1870. BN
280
Sobre Agostini ver BALABAN, Marcelo. Poeta do lpis: a trajetria de Angelo Agostini no Brasil imperial
So Paulo e Rio de Janeiro 1864-1888. Tese de doutorado. Campinas, SP, 2005.
148
281
149
Alm de tudo isso foram grandes os prejuzos que sofre o estabelecimento invadido.
Esse fato altamente censurvel, no nos admirando, porm, que se desse, porque em parte e
para honra nossa o policiamento da cidade foi feito nos trs dias de carnaval pela polcia secreta,
que desonra os distintos militares que, garantindo a ordem pblica nesses trs dias, tantas
desordens evitaram.
O Sr. Chefe de Polcia um homem srio, e estamos certos que dar todas as providncias para
que se no repitam abusos dessa ordem.
Abra S. Ex. uma devassa e prenda os criminosos.285
O Trinta possua relaes estreitas com a fora policial, a ponto de lograr a priso do
dono e do caixeiro do botequim que no quiseram lhe vender fiado. E a notcia da Gazeta da
Tarde exige uma atitude do Sr. Chefe de polcia contra a atuao dos secretas que, alm de
terem apoiado o promotor da desordem, espancaram e prenderam a vtima! Entretanto, no
parece que o Sr. Chefe de polcia, entre 1885 e 1888, o temido rapa-cocos Coelho Bastos,
tenha ouvido tais queixas, pois ao longo de seu perodo como chefe de polcia, o corpo de
secretas foi utilizado amplamente.286
Contudo, o que preciso reforar que a polcia, assim como o exrcito,
desempenhou tambm uma possibilidade de ascenso social para a populao negra, e no
apenas um mecanismo de represso senhorial. Participar de uma corporao representava
mais alternativas de crescimento pessoal e mesmo de liberdade para muitos escravos.
Uma semana aps o carnaval de 1886, o crioulo Hemetrio, escravo de Antnio
Rodrigues Soares, conquistava sua carta de alforria. O senhor recebeu a quantia de 300$000
(trezentos mil ris). O que chama ateno nessa histria o fato de o pagamento ter sido
efetuado pelo Illm Snr Capito Joaquim Basto Lopes da Cunha, Tesoureiro do Conselho
econmico do corpo Militar de Polcia da Corte. Para ele e para os demais membros do
corpo policial, o crioulo Hemetrio era na verdade Eugenio da Silva, praa do corpo militar
de polcia da Corte.287
Hemetrio, de cor preta, solteiro, de 19 anos de idade [ilegvel] e do servio
domstico, devidamente matriculado nesta Corte em 23 de abril de 1872 sob o n 2182 da
285
150
matrcula geral havia adentrado o corpo policial da Corte como praa sob o nome de Eugenio
da Silva. No sabemos as circunstncias desse fato, contudo sabemos seu desfecho.
Hemetrio teve sua alforria comprada pela fora policial como nos diz o seu ex-senhor:
Pela presente carta lhe concedo plena e geral liberdade, como se de ventre livre tivesse nascido,
por haver recebido em pagamento da mesma liberdade a quantia de trezentos mil ris, do mesmo
Corpo Militar de Polcia. E para seu ttulo mandei passar a presente que assino. 288
No sabemos se Hemetrio era parte do Corpo dos Secretas, mas o que preciso
ressaltar a possibilidade aberta pela polcia para que um jovem escravo conseguisse formar
alianas e amizades capazes de lev-lo a liberdade. A polcia era mais do que um simples
brao armado dos interesses de senhores escravocratas. Dentro de suas linhas Hemetrio
deixou de ser escravo e passou a ser o soldado Eugenio da Silva, livre.
288
151
Figura 13. Junto a um Z Pereira dois diabinhos danam. Um deles segurando um cacete. Revista Ilustrada, n.
241, ano 6, 1881 BN.
Como podemos ver na imagem de Agostini, (Figura 11) dois diabinhos danam em
torno de um Z-Pereira. Um deles segura um pedao de pau. Ao seu lado um Velho de
Cabea Grande evolui com seu cetro. Os tridentes compem a fantasia de diabinho e podiam
facilmente servir para fins mais violentos (Figura 12).
Figura 14. Diabinho negro sendo preso. Repare na sua mscara (a lngua uma cobra venenosa) e anda com
um grande tridente. Fon-Fon!, 25/02/1911 BN.
152
Por isso preciso entender melhor sua utilizao, para alm dos dias de carnaval.
O cacete tambm era um dos elementos centrais da capoeiragem da segunda metade
do sculo XIX no Rio de Janeiro.291 Na Gazeta de Notcias do domingo de carnaval de 1883
temos um bom exemplo da combinao entre o carnaval, os capoeiras e o uso do cacete:
No ano de 1885, Angelo Agostini publica a imagem que fazia dos secretas, na
tentativa de ridicularizar e criticar a utilizao desses indivduos como fora policial. Na
imagem, que foi analisada por Matthias Assuno em seu estudo sobre a capoeira293, podemos
reparar que todos so negros, esto vestidos com palets e chapus, cultivam bigodes, e em
sua pose que mescla dissimulao e arrogncia reparamos a presena fundamental de
pequenos pedaos de madeira, popularmente chamados de cacete e petrpolis, (Figura 15).
289
153
154
155
Figura 18. Transport dun enfant Blanc, pour tre babtis a lglise. In: DEBRET, Jean Babtiste.
Voyage Pitoresque et historique au Brsil. Tome Troisime. Paris: Firmin Didot Frres, Imprimeurs de
linstitute de France, 1839. Prancha 12. Escravos carregadores esto portando cacetes.
Figura 19. Brullement de leffigiedu Juda. Detalhe - crianas negras utilizam cacetes para destruir bonecos
de Judas no sbado de aleluia. DEBRET, Jean Babtiste. In: DEBRET, Jean Babtiste. Voyage Pitoresque et
historique au Brsil. Tome Troisime. Paris: Firmin Didot Frres, Imprimeurs de linstitute de France, 1839.
Prancha 21.
156
Na figura 18, chamada Transport dun enfant Blanc, pour tre babtis a lglise
(Transporte de um beb branco, para ser batizado na igreja), podemos notar o porte de
cacetes pelos escravos que fazem o transporte da criana e de sua ama. J na figura 19,
crianas negras se divertem despedaando bonecos de Judas no sbado de Aleluia; suas armas
so pequenos pedaos de madeira.
Esses variados usos de pequenos pedaos de pau por escravos e seus descendentes da
cidade do Rio de Janeiro nos revela que o seu porte fazia parte de sua indumentria cotidiana.
Serviam como objeto de distino social (em eventos mais pomposos como enterros e eventos
festivos), como arma para proteo e ataque em eventuais conflitos (como no caso dos
capoeiras, mas no s deles) e tambm como elemento constitutivo de manifestaes culturais
festivas como no carnaval.
Como demonstra Matthias Assuno, o uso do cacete tambm ultrapassa as
fronteiras da Corte brasileira. Jogos de cacete existem em grande parte das colnias
americanas onde a escravido africana foi de grande importncia 294, no Caribe, na Venezuela,
no Brasil, nos Estados Unidos (figura 21).
Na Venezuela, entre os descendentes dos escravos de Lara, regio de plantation de
cana, ainda hoje o juego de palo uma prtica importante. Em Santo Domingo, Haiti, e na
Dominica (Figura 20) tambm h lutas, jogos ou rituais religiosos que utilizam o cacete como
arma ou adereo. Em Trinidad, nos carnavais da dcada de 1880, os stick fighters
empreenderam movimentos violentos contra a tentativa do governo de reprimir o uso dos
cacetes na festa.295 Muitas regies da frica, que fornecerem escravos para essas colnias,
possuem registros de lutas com cacetes: Angola, Moambique, os Zulus da frica do Sul, a
frica Ocidental.296
Porm, a Europa tambm tem prticas semelhantes. Entretanto, no devemos estar
preocupados aqui com as razes de prticas culturais, mas sim com as rotas que elas
294
ASSUNO, Matthias Rhrig. Juegos de Palo em Lara. Elementos para la historia social de um arte
marcial venezolana. Revista de ndia, 1999, vol. LIX, n. 215. pp. 55-89.
295
KONNINGSTEIN, Peter van. The history of the Trinidad Carnival in the nineteenth century. In: Trinidad
carnival: a quest for national identity. Warwick University Caribbean studies.
296
ASSUNO. Jeugos de palo... op. Cit.
157
Figura 20. Imagem do final do sculo de XVIII de confronto entre um negro francs e um ingls na ilha
caribenha da Dominca. Agostino Brunias, 1779. "A cudgelling match between English and French Negroes in
the island of Dominica." Retirada do site The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas: A Visual
Record. Image Reference: Bilby-3; origem: National Library of Jamaica, Institute of Jamaica, Kingston.
http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/index.php
297
ASSUNO. Matthias Rohring. Versos e Cacetes: Desafios masculinos na cultura popular afro-fluminense.
Paper apresentado ao IX Congresso da Brazilian Studies Association BRASA, Tulane University, New
Orleans, 27-30 de maro, 2008. Mesa Raa e gnero na cultura popular. GILROY, Paul. O Atlntico Negro,
Modernidade e Dupla Conscincia. Rio de Janeiro: UCAM/Ed.34, 2000.
158
Figura 21. Dana numa plantation da Carolina do Sul, EUA, em finais do sculo XVIII. Artista desconhecido.
Retirada do site The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas: A Visual Record. Image Reference:
NW0159; Origem: Abby Aldrich Rockefeller Folk Art Museum, Colonial Williamsburg, Virginia.
http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/index.php
Ainda hoje, no Vale do Paraba Fluminense, existem pessoas que praticam o jogo
do pau. Esses indivduos descendem dos ltimos escravos que trabalharam na regio cafeeira
do estado do Rio de Janeiro. Essas prticas tanto divertiam como serviam para defesa e
agresses quando necessrio. Tambm encontramos o cacete nas folias de reis, forte presena
entre as comunidades negras rurais do Rio e tambm na baixada fluminense. O palhao da
folia, que representa o soldado de Herodes, quele que persegue o menino Jesus, muitas
vezes associado com o diabo. Suas principais armas so os versos (tanto sobre as histrias
da folia quanto sobre o cotidiano) e os cacetes que compe sua fantasia colorida.298 Portanto a
utilizao dos cacetes por capoeiras e tambm por diabinhos no carnaval possui nexos
culturais muito variados que remetem experincia da escravido e da dispora. Sua presena
no Rio, na dcada de 1880, foi to marcante que o ator Vasques, figura popular naqueles
tempos299, em crnica publicada na Gazeta da Tarde em 14 de fevereiro de 1884, afirma que
298
Entrevista concedida por Geraldo Abel e Didiel Gonalves para o projeto Jongos, calangos e folias: memria
e msica negra em comunidades rurais do Rio de Janeiro. Fitas 46, 47, 48, 78 e 79. Estas entrevistas esto
disponveis no Acervo UFF Petrobras Cultural Memria e Msica Negra que pode ser consultado atravs do
site: http://www.historia.uff.br/jongos/acervo/
299
Segundo Andrea Marzano, Francisco Correa Vasques foi um dos atores mais queridos do pblico fluminense
na segunda metade do sculo XIX. Ator e dramaturgo, mestio de origem modesta, abolicionista e cronista,
Vasques atuou intensamente na segunda metade do sculo XIX seja nos palcos, nas ruas ou nos jornais da
cidade. MARZANO, Andrea. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o rio de janeiro (1839-1892). Rio
de Janeiro: Folha Seca / Faperj, 2008.
159
Outro pndego!
Henrique Jos de Lima Freitas h muito que desejava possuir uma bengala.
Como se aproxima o carnaval lembrou-se Freitas de que s lhe restava um meio era o de bifar,
visto que no tinha dinheiro para comprar.
Ontem passando ele pela chapelaria n. 117 da rua da Uruguaiana viu um bonito petrpolis
servindo de amort[ilegvel] na porta da referida chapelaria; parou, mirou-o e num movimento,
zs, bifou-o.
O proprietrio daquela chapelaria, que, estava apreciando os trejeitos de Freitas, gritou logo: Pega ladro, pega, pega, e, comparecendo o respectivo rondante, teve tempo de filar o Freitas,
levando-o presena do subdelegado do [?] distrito do Sacramento, que contra ele fez lavrar
auto de flagrante, remetendo-o e seguida para a Deteno.
Coitado, no v o carnaval!...301
Para possuir um bengala, Henrique Jos achou que valia a pena arriscar ser preso
tentando roubar um bonito petrpolis. No conhecemos suas reais intenes, porm
podemos imaginar suas mltiplas possibilidades: estilo, dana, defesa, agresso, desafios...
Liberdade Diablica
A figura do diabo nas ruas da Corte ameaava no apenas o carnaval civilizado
sonhado por muitos jornalistas, mas ameaava tambm projetos de nao e cidadania que
estavam em disputa. A associao dos diabos com os capoeiras, com cacetes, violncia e uma
imagem de perigo constante, e com sua aproximao com sujeitos reconhecidos como
300
301
160
crioulos, pardos e pretos traz consigo o temor das elites polticas e intelectuais em relao ao
rumo da nao aps a abolio que se aproximava: o diabo representava o negro destemido e
abusado, que com humor e doses de violncia, expressava seu desejo de participar da nao
ativamente, determinando seus rumos, no apenas como plateia do carnaval civilizado e
ordenado representado pelas Grandes Sociedades Carnavalescas.
Considero, portanto, o diabo um personagem que, na dcada de 1880, na prtica e
simbolicamente potencializava o temor dos senhores de ver riscada da gramtica das
relaes sociais, junto com a palavra escravo, a condio social dos homens brancos,
construdas por sculos com tanto esmero, parafraseando Wlamyra Albuquerque302.
Ela a nica fantasia explicitamente nominada nos jornais quando relatam um crime,
e os anos de 1883 e 1885 so os que trazem as maiores referncias. Grupos inteiros agindo
pelas ruas, desordens e confuses que na perspectiva dos jornalistas ameaavam seriamente a
implementao de uma festa civilizada, digna de uma nao civilizada.
Conforme avanam os anos, como produto da constante associao de mascarados e
crimes, perigo e violncia, mais medidas repressivas contra o entrudo e as prticas do
carnaval das ruas so exigidas e anunciadas pelos jornais. Em 1887, a Gazeta de Notcias
afirma que o nmero de diabinhos no carnaval menor que nos anos anteriores. Atribui tal
fato proibio de diabinhos maiores de quinze anos pelo chefe de polcia (Coelho Bastos) e
o recolhimento de mais de quatrocentas pessoas ao xadrez, por convenincias de sade e
livr-las de constipaes. - Pelo que a polcia lavra mais um tanto, conclui a Gazeta de
Notcias.303
Representantes das vertentes abolicionistas presentes nos jornais e no parlamento no
viam contradio em defender o fim da escravido e pregar o combate s prticas culturais
dessa mesma populao e de seus descendentes.
Como nos mostra Angelo Agostini, muitas vezes o negro nem precisava de mscara
para ser associado ao diabo nos dias do carnaval. Na figura que se segue (Figura22),
ilustrao de O Mequetrefe, do carnaval de 1886, podemos visualizar esquerda um velho
302
303
161
304
162
Podemos (e devemos) tambm analisar a imagem por outro vis: o folio negro
participando ativamente da passagem do antigo para o novo carnaval (civilizado e moderno).
Percebemos que a festa era tambm disputada pela populao negra, que ansiava por espaos
de autonomia e participao neste evento que anualmente era alardeado nos mais variados
meios como o tempo da liberdade305. Sua atuao na festa lhes parecia elemento central na
experincia de liberdade que anualmente ganhava fora, no apenas para os escravizados, mas
tambm para a populao negra livre.
No me refiro a uma liberdade burguesa, no sentido liberal ou apenas antnima a
escravido. Trato nessa dissertao de uma liberdade com sentido mais amplo, que vinha
sendo discutida tambm nas ruas do Rio naqueles anos. A liberdade de festejar e se divertir de
sua prpria maneira, liberdade de transitar pela cidade, de viver o cotidiano de forma mais
leve e alegre. Por isso a importncia do Carnaval.
Ora, se o carnaval foi alado festa civilizatria por membros das elites intelectuais
e polticas do Brasil, tambm foi eleito como espao de dramatizao de desejos de
participao na sociedade que se pretendia construir pela populao negra. Foi um evento que,
ao mesmo tempo em que servia para reforar tradies e prticas culturais escravos, libertos e
negros livres, servia como espao de luta e transformao das relaes sociais.
Muitas prticas sociais de matriz africana encontraram espao de manuteno na
festa de momo, pois mesmo as autoridades viam esses dias como mais permissivos. A
transposio de folias de reis, ranchos, barracas de festas do Divino ou Penha, mscaras,
Cucumbis, e mesmo de diabos e outras fantasias para os dias de carnaval no ocorreu sem
conflitos e rupturas, muito pelo contrrio: para manterem suas tradies culturais foi preciso
transform-las de acordo com as novas tenses e discusses presentes na dcada de 1880.306
Interpretaram com suas concepes de liberdade o carnaval e atravs dele politizaram sua
experincia.
Ser um diabinho negro que sobe em um carro de ideias a favor do abolicionismo e
dana diante da multido, composta pelas mais ilustres famlias da Rua do Ouvidor, pelos
jornalistas dos peridicos mais importantes do imprio, pelas autoridades policiais, alm de
todos os seus pares do Z-Povinho, ganha novos sentidos. Estes esto diretamente
305
306
PEREIRA. Op.cit.
Como veremos com os Cucumbis em captulo posterior.
163
Figura 23. Detalhe da ilustrao de Angelo Agostini que ocupa duas pginas de sua revista. Nela esto
retratados os prstitos das Grandes Sociedades Carnavalescas. Mas se olharmos atentamente desvendamos
outros segredos daqueles carnavais. Revista Ilustrada, n. 241, ano 6, 1881. BN
Esses novos sentidos podem ser medidos atravs de dois elementos. Primeiro, pela
constante perseguio aos mscaras, sobretudo aos diabos e sua associao a uma imagem de
crime e perigo, presentes nos jornais (e pela crescente represso policial aos pretos, pardos e
fulas, como vimos atravs dos dados da Casa de Deteno). Em segundo lugar, temos a
crescente ousadia desses fantasiados, principalmente aqueles membros de maltas de capoeiras
que atuaram no carnaval com grande afinco. Conforme nos mostrou Soares, confrontos entre
Nagas e Guaiamus, as duas principais maltas da cidade no perodo, tornaram-se frequentes
nos anos finais da escravido e assim como sua atuao mais regular nos conflitos entre
abolicionistas e defensores do escravismo.307
O crescimento do sentimento abolicionista sensvel nos dias do carnaval, onde os
carros das grandes sociedades carnavalescas que representavam a Liberdade eram sempre os
mais aplaudidos dos prstitos; onde o povo delirava ao ver ex-escravos sendo alforriados nos
dias de Momo. Os prprios ex-escravos tomam parte na propagao deste movimento. Em
307
164
1888, a Revista Ilustrada narra da seguinte forma os prstitos carnavalescos das grandes
sociedades:
Congresso dos Fenianos (...) logo aps vinha um carro simbolizando a questo abolicionista, e
que o pblico recebia com palmas e bravos, testemunhando, assim, a sua simpatia pela grandiosa
ideia ali exibida. Representava ele um grupo de escravos, maltratados pelo senhor, que, julgandose seguro, entregava-se a todas as sanhas. Quando, porem, menos pensava surgia a figura de um
grande parlamentar abolicionista e aplicava-lhe um ruidoso pontap, no lugar em que as costas...
mudam de nome.
O povo ria e aplaudia a mais no poder!
Acompanhavam este carro 17 pretos montados em burricos e fazendo discursos s massas, sobre
a escravido e almejada liberdade (...)
Fechava o grandioso prstito dos Democrticos, uma apologia abolio, que h de trazer o
progresso e a grandeza a este pas desorganizado. Os bravos e as palmas com que foi acolhida
esta belssima apoteose, no tinham conta. Pode-se dizer que ela atravessava a cidade, em meio
de uma constante ovao (...)308
308
165
O carnaval representou um evento anual que permitia e garantia que essa populao
experimentasse o avano das ideias abolicionistas e de suas aspiraes individuais de
participao. Os diabinhos esto no centro desse movimento, pois pautaram formas de agir e
tambm justificaram caminhos de represso. Apesar de sua grande popularidade entre folies
com tons de pele variados, a fantasia de diabinho parece realmente ter despertado grande
interesse entre os descendentes de africanos no Brasil e em diversos pontos do Atlntico. Nas
ilhas caribenhas, na Venezuela, em Nova Orleans eles esto presentes nos dias de carnaval e
em outras festas populares. Os limites dessa pesquisa no nos permitem maiores concluses
sobre essa recorrncia diablica pelo Atlntico Negro, mas podemos supor que muitos de seus
atributos atraram essas populaes. A irreverncia, a dana, as pilhrias e uma imagem de
esperteza podem ter reforado o desejo dos negros de se auto representarem com essa
fantasia.
Mas, ainda assim, essa fantasia nos ajuda a entender, sobretudo a dimenso
individual da participao de negros e mestios no carnaval do Rio. No captulo seguinte
enfrentaremos estratgias carnavalescas coletivas empreendidas por negros que danavam, se
vestiam e cantavam moda africana.
166
IV Cucumbis Carnavalescos
O toque do agog, alto e agudo, chegava primeiro esquina da Rua Primeiro de
Maro com a Rua do Ouvidor. Logo em seguida o som dos chocalhos, tamborins e adufos 309
atraa os ouvidos e os olhares daqueles que se apertavam no cho e nas sacadas. No mesmo
instante em que os gritos e cnticos graves e retumbantes inundavam a Rua do Ouvidor, era
possvel distinguir as primeiras plumas de cocares e pontas de lanas dobrando a esquina.
O prstito de aproximadamente duas dezenas de pessoas avanou pela estreita rua,
danando e cantando sem parar. Eram homens e mulheres negros vestidos de ndios, com
penas, tacapes, lanas, escudos, carregando cobras e lagartos (alguns vivos). Uma mulher
ricamente adornada, com manto e cetro, era carregada num andor. Era a Rainha e ao seu lado
vinha o Rei. Seus sditos tocavam instrumentos pouco comuns para os habituais
frequentadores da rua do Ouvidor. Cantavam numa lngua menos comum ainda. Mas era
carnaval, sua Corte estava passando e uma frase entre tantas outras ficou clara para todos os
presentes: A frica sempre foi livre cantavam os membros do grupo chamado Cucumbis
Africanos.
Esse episdio ocorreu na segunda-feira de carnaval do ano de 1888 e foi noticiado
pelo Jornal do Comrcio310. Ele um bom exemplo de um fenmeno curioso, mas no
inexplicvel, que ganhou fora na segunda metade da dcada de 1880 no carnaval carioca.
Refiro-me crescente apario de grupos explicitamente associados a prticas africanas nos
jornais do Rio de Janeiro, sobretudo aqueles que se auto intitulavam Cucumbis. No encontrei
referncias a esses grupos, enquanto associaes carnavalescas, antes de 1884 nos trs jornais
pesquisados (Gazeta de Notcias, Gazeta da Tarde e Jornal do Comrcio), nem na Revista
Ilustrada. Entretanto, entre 1884 e 1888 sua presena tornar-se- cada vez mais significativa
tanto quantitativa quanto qualitativamente nas folhas dirias.
Obviamente, no estou afirmando que tais sociedades tenham surgido apenas em
1884; o que pretendo discutir porque justamente a partir desse ano elas comeam a ganhar
309
Adufe. Membr. Perc., s. m., PL. = adufes Tamborete quadrado. Normalmente seguro com uma das
mos e tocado com uma baqueta de madeira ou com a mo. Por ser um instrumento artesanal e a pele no
ser bem fixada, produz uma sonoridade grave. Possui entre uma e quatro cordas esticadas sobre uma das peles,
atuando como esteira. Na dana do Fandango (estado do Paran) utilizada pele de cutia ou de
mangueiro/cachorro-do-mato. encontrado em outras manifestaes folclricas como na dana de Santa Cruz e
na Folia de Reis. Pode ser encontrado como adufo e o instrumentista chamado adufeiro (Brasil e Portugal).
Mario D. Frungillo. Dicionrio de Percusso. So Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2003
310
Jornal do Comrcio - Ano 66 n. 45 14/02/1888
167
espao nos peridicos da Corte nos dias de carnaval. Este captulo pretende analisar tambm
quais os significados dessa imagem africana produzida tanto pelos prprios membros desses
grupos quanto pela imprensa, por memorialistas, folcloristas e viajantes. Acredito ser de
grande importncia pensarmos esses grupos (que se apresentavam moda africana) 311 em
relao com todo o processo de desestruturao da escravido, vivido to intensamente na
cidade do Rio de Janeiro na dcada de 1880. Para tanto precisaremos ir mais distante, no
tempo e no espao: voltar at o perodo colonial em busca das congadas e outras festas
semelhantes; atravessar o Atlntico em busca de referncias histricas que nos ajudem a
entender a fora dessa prtica que, mais de trs dcadas depois da extino do trfico, fez
homens e mulheres sarem s ruas cantando, danando e contando histrias de uma certa
frica.
168
presena coletiva pareciam ainda mais perigosos e abominveis aos olhos de jornalistas e
autoridades.313
Contudo, mesmo para um observador bastante distante, como muitos jornalistas, alguns
grupos pareciam se destacar na multido de folies. O maior espao nas pginas de seus
jornais era dedicado aos prstitos das Grandes Sociedades Carnavalescas e outras sociedades
e grupos que almejavam chegar prximo da glria ostentada por Democrticos, Fenianos e
Tenentes do Diabo. Sociedades como Estudantes de Salamanca, Progressistas da Cidade
Nova, Piratas do Amor, Congresso dos Socialistas, Cavaleiros de So Potino entre tantas
outras desfilavam anualmente, aumentando a concorrncia das ruas nos dias de carnaval.
A partir de 1884, porm, uma nova denominao aparece nos jornais pesquisados: so
os Cucumbis. So apresentados simploriamente como grupos carnavalescos compostos
exclusivamente por homens e mulheres negros, que se vestem, cantam, danam e narram
histrias moda africana. Assim como os Z-Pereiras, os Cucumbis representam uma
possibilidade de ao coletiva nos dias de carnaval, mas trazem consigo tambm formas de
identidade diferenciada, medida que possuem critrios especiais na aceitao ou no de
membros.
Portanto, precisamos nos aproximar o mximo possvel dessa experincia coletiva e
festiva empreendida por negros e negras no carnaval do Rio, sobretudo por ganhar
visibilidade na imprensa justamente no auge da crise do escravismo. Para tanto preciso
buscar os relatos sobre a presena de Cucumbis no Brasil para alm da festa carnavalesca.
***
No dia 13 de fevereiro de 1888, uma segunda-feira de carnaval, a Gazeta de Notcias
publicara um longo texto assinado por Mello Moraes Filho intitulado Os Cucumbis. Esse
artigo seria publicado com algumas modificaes em sua obra Festas e tradies populares
do Brasil314, na edio de 1901. No por acaso que o artigo de Mello Moraes compe a
Gazeta de Notcias naquele ano. Suas explicaes sobre os Cucumbis correspondem ao
crescente impacto desses grupos nas ruas (ou pelo menos a sua maior visibilidade diante dos
313
CUNHA. Ecos da folia. Op.cit P.46. CUNHA, Clementina. Vrios Zs, um sobrenome: as muitas faces do
senhor Pereira no carnaval carioca da virada do sculo IN: CUNHA, Maria Clementina Pereira (org.)
Carnavais e outras f[r]estas: ensaios de histria social da cultura. Campinas: Ed. Da Unicamp, CECULT,
2002.
314
Mello Moraes Filho. Festas e tradies populares do Brasil. Ediouro: Rio de janeiro, 1967. Os Cucumbis
pp. 191-202
169
315
Idem.
Verbete Debret In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionrio do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de
Janeiro: Objetiva, 2004. P.396-397. DEBRET, Jean Babtiste. Viagem pitoresca e histrica ao Brasil, Belo
Horizonte/So Paulo: Itatiaia/USP, 1989.
316
170
No terceiro volume dessa obra encontramos uma prancha intitulada Convoi funbre dun
fils de roi ngre (Cortejo Fnebre de um filho de rei negro)317 e uma breve descrio do
mesmo. Segundo o artista francs, no raro encontrar entre a multido de escravos, alguns
grands dignitaires thiopiens, e que os seus ex-vassalos os reconhecem, lhes prestam
homenagens e buscam meios de juntar dinheiro para comprar sua liberdade. Quando morre,
ou ento seu filho morre, seu corpo exposto com vesturio africano, recebendo visita de seus
sditos e de delegaes de negros de outras naes (compostas por trs dignatrios: um
diplomata, um porta-estandarte e um capito de guarda). Uma multido de negros se aglomera
fora da casa que abriga o corpo. Em seu interior os negros cantam acompanhados de seus
instrumentos nacionais, reforados pelas palmas das mos daqueles que os rodeiam.
Ao anoitecer o cortejo sai s ruas. O mestre de cerimnias sai da casa e, a grandes
golpes de rotin [a traduo literal vime, aparentemente se refere a um pequeno pedao de
madeira], faz recuar a multido de negros que obstruem a passagem. Ele seguido por um
negro que solta fogos de artifcio, e atrs deste vm trs ou quatro negros dando cambalhotas,
saltos, piruetas, e mil outras artimanhas para animar a cena. Atrs segue, ento, a sada
silenciosa dos amigos e das delegaes que escoltam seriamente o corpo transportado em uma
maca coberta com um manto morturio. O prstito fechado por alguns outros ajudantes de
cerimnia, armados de rotin [vime], servindo de guarda-costas para manter uma distncia
respeitosa os curiosos que seguem o cortejo.
Debret afirma que o comboio se encaminha indubitavelmente para uma das quatro
igrejas consagradas s confrarias dos negros: S Velha, Lampadoza, do Parto, e So
Domingos. E arremata dizendo:
317
171
Nas imagens que se seguem podemos ter uma noo ainda mais ntida daquilo que o
artista francs observou no Rio de Janeiro entre as dcadas de 1820 e 1830. A primeira
imagem mostra um plano geral do cortejo fnebre. Podemos visualizar sua ordenao e
sequncia e os principais personagens. frente vem o sdito responsvel pelos fogos de
artifcio, que abrem o prstito (em destaque na figura 24). Depois aparecem os negros que
danam e fazem mil artimanhas; o mestre de cerimnias com seu vime [cacete]
conduzindo o cortejo. Carregando o corpo, vm as delegaes de outras naes africanas e
os amigos; na imagem em detalhe possvel reparar que alguns trazem estandartes e
bandeiras e que o cadver coberto por um manto decorado com uma cruz (Figura 25).
Podemos notar ao fundo os negros que tentam manter uma enorme multido a certa distncia.
172
173
Figura 24. Convoi fnebre dun fils de roi ngre. In: DEBRET, Jean Babtiste. Voyage Pitoresque et
historique au Brsil. Tome Troisime. Paris: Firmin Didot Frres, Imprimeurs de linstitute de France,
1839. Prancha 16.
Figura 25. Detalhe da ilustrao de Debret intitulada Convoi fnebre dun fils de roi ngre - Negro
responsvel pelos fogos de artifcio. In: DEBRET, Jean Babtiste. Voyage Pitoresque et historique au Brsil.
Tome Troisime. Paris: Firmin Didot Frres, Imprimeurs de linstitute de France, 1839.
Figura 26. Detalhe da ilustrao de Debret intitulada Convoi fnebre dun fils de roi ngre - Cadver real
sendo carregado por "amigos" e "delegaes africanas". In: DEBRET, Jean Babtiste. Voyage Pitoresque et
historique au Brsil. Tome Troisime. Paris: Firmin Didot Frres, Imprimeurs de linstitute de France, 1839.
174
bastante provvel que Mello Moraes Filho tenha lido Debret e associado as imagens
desses prstitos fnebres s suas recordaes de infncia. Mello Moraes Filho aproveita o
gancho dos cortejos fnebres para relacionar os Cucumbis s tristezas da escravido africana
no Brasil:
Desembarcados dos navios negreiros, com o corao cheio de saudades e os olhos cheios de
prantos; arrancados das cabanas de seus pais e dos desertos de sua terra; no ouvindo mais o
sibilo do vento e o rugido da fera que os acalentaram a infncia; os pobres cativos, despejados
em nossas matas virgens, tiveram necessidade de dar expanso sua dor, relembrando os
costumes dos seus maiores.
E a dana dos Cucumbis ressoou estrepitosa nas florestas, ao tinir das correntes dos cepos e
dos gemidos nas senzalas, ao som do aoite nas surras da escada e do soluo da me escrava,
a quem tiravam para sempre dos braos o filhinho nu e misrrimo. 319
Logo, o enredo desse baleto no poderia ser outro que no um que versasse sobre o
passado africano. Mello Moraes o resume da seguinte forma:
Depois da refeio lauta do cucumbe, a comida que usavam os congos e munhanmbanas nos
dias da circunciso de seus filhos, uma partida de Congos pe-se a caminho, indo levar
rainha os novos vassalos que haviam passado por essa espcie de batismo selvagem.
O prstito, formado por prncipes e princesas augures e feiticeiros, intrpretes de dialetos
estrangeiros e inmero povo, levando entre alas festivas os mamtos circuncidados com a
lasca de taquara, acometido por uma tribo inimiga, caindo flechado o filho do rei.
Ao aproximar-se o cortejo, recebendo a notcia do embaixador, ordena o soberano que venha
sua presena um afamado adivinho, o feiticeiro mais clebre de seu reino, impondo-lhe a
ressurreio do prncipe morto.
Ou dars a vida a meu filho, diz ele, e ters em recompensa m tesouro de miangas e a mais
bela das mulheres para com ela passares muitas noites; ou no dars, e te mandarei degolar.
E aos sortilgios do feiticeiro, o morto levanta-se, as danas no findam, ultimando a funo
ruidosa retirada, na qual os Cucumbis cantam o Bendito e diversas quadras populares.
319
175
Essa grande passeata, que segundo ele poderia levar horas, era composta por homens e
mulheres vestidos de crculos de penas aos joelhos, cintura, braos e punhos, alm de cocar de
traseira vermelha,
botinas de cordovo enfeitadas de fitas e gales, cala e camisa de meia cor de carne, e ao
pescoo das mulheres e homens, miangas, corais e colares de dentes, dando uma ou mais voltas.
O Feiticeiro, o Rei e a Rainha ostentam vestimenta mais luxuosa e caracterstica, porm no
mesmo sentido.
176
Figura 27. Detalhe da ilustrao de Debret intitulada Convoi fnebre dun fils de roi ngre - Negros que
fazem "mil artimanhas", mestre de cerimonias e tocador de adufo. In: DEBRET, Jean Babtiste. Voyage
Pitoresque et historique au Brsil. Tome Troisime. Paris: Firmin Didot Frres, Imprimeurs de linstitute de
France, 1839
320
ANDRADE, Mario. Dicionrio musical brasileiro. Belo Horizonte/So Paulo: Itatiaia/USP, 1989.
CASCUDO, Luis da Cmara. Dicionrio do Folclore brasileiro. INL, Rio, 1954 3 edio, 1972. RAMOS,
Arthur. O folclore Negro no Brasil. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, [s.d.].
177
rede de pescaria, tendo presos pequenos bzios nos pontos de interseo das linhas)321 e o
adufo.
Este ltimo instrumento, segundo descrio de Mario Frungillo, bastante similar ao
que aparece na imagem de Debret: tamborete quadrado que, por sua natureza artesanal, no
possui sua pele muito esticada, produzindo assim sons graves322.
Entretanto, a partir das descries de Mello Moraes sobre os Cucumbis carnavalescos
do Rio de Janeiro no podemos afirmar terem sido eles apenas a reedio de cortejos fnebres
realizados por motivo de falecimento de membros de famlias reais africanas no Brasil na
primeira metade do sculo XIX. Se encontramos semelhanas com o prstito fnebre
registrado por Debret como a presena do tema da morte, os negros fazendo piruetas, os
instrumentos musicais e a visita de delegaes as diferenas so marcantes, como por
exemplo a presena da rainha, a ressurreio, o feiticeiro poderoso que vence a morte, e os
prprios sentidos da festa encenar empreitadas vitoriosas de antepassados africanos,
reforando o poder de sua corte e a fora de sua mstica encarnada pelo Quimboto, o
Feiticeiro.
***
178
castas e todas as rals, despejados pelas vielas e alfurjas em redor, atrados pelo engodo da
folia: congos e moambiques, monjolos e minas, quiloas e benguelas, cabindas e rebolas, de
envolta com mulatos de capote, com ciganos e moleques, a turbamulta dos quebra-esquinas,
escria das ruas., flor da gentalha e nata dos amigos do banz. O rebolio cresce, referve,
explode, continua... nos interiores das casas, a famulagem, ouvindo fora os rudos das
msicas, desencabrestada e candente, abandona o trabalho, deserta das cozinhas, vara
corredores, derribando mveis, batendo portas, saltando janelas, caindo na rua... no h
escravo que atenda amo, que obedea a senhor nesse minuto de desabafo e embriaguez. uma
loucura! O que ele quer, o negro, aturdir-se na folia, mergulhar na folgana, integralizar-se
no ritmo do samba, fazendo um pio no tronco, e das pernas dois molambos, que se confundem
em delrio coreogrfico. um desengono macabro, em que a gente sente o negro
desanatomizar-se todo, desarticulando brao, cabea, p, perna, pescoo e mo. Isso tudo aos
guinchos, aos assobios, aos berros, aos aia! Oia! Eia!
So as congadas!
O relato sobre a Congada citado acima, foi retirado do seu livro O Rio de Janeiro no
tempo dos Vice-reis (1763-1808). Obra que versa sobre os costumes das populaes do Rio de
Janeiro na segunda metade do sculo XVIII, trata de festas populares, Congadas, Cavalhadas,
Touradas, moda feminina e masculina, cortes de cabelo, cozinha e mesa, teatro, namoros e
casamentos; tambm tem captulos especficos sobre a medicina, a justia, as assembleias, o
pelourinho e a forca. Traz tambm quase cem pginas de aspectos da cidade e das ruas.323
Luis Edmundo, nascido no Rio de Janeiro em 26 de junho de 1878, foi jornalista, poeta,
cronista, memorialista, teatrlogo e orador. No ano de 1944 foi eleito para ocupar a cadeira
nmero 33 da Academia Brasileira de Letras. Dedicou-se intensamente ao passado do Rio de
Janeiro, cidade que amou e onde faleceu em 8 de dezembro de 1961324. Foi cronista e
pesquisador da cidade, publicando obras ainda hoje fundamentais para aqueles que se
interessam pelo cotidiano carioca nos sculos passados.325
A Congada descrita por ele, que remontaria ao final do sculo XVIII, constitui-se de um
grande grupo de homens e mulheres negras que saem s ruas da cidade para apresentar sua
corte, que havia sido coroada na Igreja do Rosrio:
323
Luis Edmundo. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-reis (1763-1808). Braslia: Senado Federal Conselho
Editorial, 2009.
324
Biografia de Luis Edmundo publicada no site da Academia Brasileira de Letras:
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=716&sid=309&tpl=printerview
325
Ver EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. 3 v.
179
Para tais solenidades, em tudo copiadas das que serviam coroao dos verdadeiros reis,
enfeitava-se toda a igreja, acendiam-se os altares e at repicavam os sinos.
O prstito era composto por uma banda de adufos, caxambus, xequers, marimbas,
chocalhos e agogs, comandada pelo Capataz. Em cima de andores vm o Rei e a Rainha,
trajando seda, empunhando cetro e ostentando sobre a cabea coroas de papelo. Ao chegar
em frente ao palcio do Vice-rei (na atual praa Quinze de Novembro), o prstito para, o rei
desce de seu palio danando, chacoalhando as luas e estrelas de metal presas sua capa
pesada. Seu canto assim:
A Rainha o acompanha no bailado, enquanto um novo verso ecoa pelos ares, cantado
pelo prstito:
Neste momento surge em cena um dos personagens principais da trama: o Mamto. Ele
o filho do rei e da rainha, e descrito assim por Luis Edmundo:
180
O mameto, filho do rei, um molecote de dez anos, como os monarcas todo metido em sedas e com
sua capa de belbute, logo que sentam em seus tronos o rei e a rainha, avana e, em crculos, a
erguer os bracinhos tenros, pe-se a danar, cantando em voz de falsete:
Mameto do Congo
Quero brinc;
Cheguei agora
De Portug.
Vale descrio especial a figura do bruxo ressuscitador que aparece. um negro esplndido de
porte, gil danarino, trazendo, a tiracolo, uma cobra viva. Nos braos mostra grandes braceletes
de miangas e tem as pernas envoltas em peles de anta e de jaguar. Impressiona.
O Quimboto dana e canta ao redor do corpo do Mamto, que aos poucos torna a vida:
mama. mama.
Ganga rumba, seises iac.
E mama. E mama.
181
O coro responde:
- Quambato, Quambato.
- Savot lngua.
- Quem pode mais?
- o s. a lua.
- Santa Maria.
- E S. Benedito.
O Caboclo, louco de espanto, tenta atacar novamente com seu tacape, mas dessa vez o
feiticeiro, num passo de chula, fulmina-o com o olhar, que uma estocada. Triunfo
absoluto do quimboto. Sua recompensa ter a mais linda das princesas como noiva,
terminando a farsa em casrio.
As descries de Luis Edmundo sobre uma Congada e as de Mello Moraes sobre os
Cucumbis so muito similares. Os versos registrados por ambos praticamente no se alteram,
os instrumentos tambm. Os personagens so os mesmos, assim como o enredo
praticamente o mesmo. Mas importante notar que, enquanto Luis Edmundo narra uma
Congada, cujo tema central a coroao do rei do Congo e seu desfile de consagrao, Mello
Moraes se dedica ao prstito festivo que narra o desenrolar de uma embaixada africana que
atacada por outra tribo. Portanto, a nfase dos dois autores diferente, da o destaque dado ao
rei no texto de Luis Edmundo, que aparece tomando as principais decises e a rainha sempre
est a segui-lo.
182
J no texto de Mello Moraes a Rainha ocupa papel central na narrativa. Segundo ele, o
Cucumbi seria uma partida de Congos [que] pe-se a caminho, indo levar rainha os novos
vassalos; o Mamto surge como o filho da Rainha, e no como o filho do Rei (como no
texto de Luis Edmundo). Quando o Mamto assassinado pelo Caboclo, o Capataz convoca o
Lngua (o embaixador dos negros) e o expede a comunicar Rainha o infausto
acontecimento (...) [ele] dirige-se Rainha, inclina a fronte, conta-lhe o motivo de sua
misso, submisso e pesaroso (...) A Rainha, ao ouvi-lo, como que desvaira de dor, interroga-o,
e, a seu conselho, faz comparecer o Feiticeiro que, de joelhos, a escuta consternado (...) A
Rainha ordena-lhe que faa reviver o seu Mamto, garantindo-lhe ricos presentes e a mais
formosa de suas vassalas, que lhe seria cortada a cabea se os seus feitios no conseguissem
levant-lo.326
Quando a batalha contra a tribo do Caboclo vencida e o Mamto est novamente vivo,
o filho apresentado me, e ela, a Rainha, o recebe nos braos, acumulando o Feiticeiro de
ddivas opulentas.
Essa presena forte e predominante da Rainha na narrativa de Mello Moraes, escrita em
1888, quando os Cucumbis esto com mais visibilidade do que nunca nos carnavais do Rio,
pode se relacionar justamente com a forma assumida por esses grupos durante o carnaval,
colocando a mulher em destaque em seu prstito. A presena feminina nessa festa era
marcante, principalmente sobre os carros de ideias das Grandes Sociedades Carnavalescas.
Reservavam lugar de destaque para belas mulheres (s vezes seminuas) em seus carros.
Representando papis centrais nas narrativas, como a Liberdade e a Repblica entre outros, as
mulheres foram um dos elementos que mais cativaram a ateno dos folies para o alto dos
carros de ideias.327
Entretanto, no s o apelo sexual deve ser considerado como elemento propulsor para o
destaque da Rainha nos Cucumbis. H tambm uma importante referncia que deve ser levada
em conta: a influncia da rainha Ginga sobre muitos africanos escravizados trazidos para o
Brasil.
Segundo Arthur Ramos, a presena constante dessa Rainha guerreira nos autos de
Congos no Brasil, exprime inegavelmente uma sobrevivncia histrica, de antigas epopeias
326
327
183
angola-congolesas.
328
autos de congos (ou Cucumbi) como a coroao de monarcas, lutas de monarquias africanas
umas com as outras, luta contra o colono invasor, embaixadas, orculos de feiticeiros,
etc.329 E a Rainha dessas embaixadas seria D. Ana de Sousa, a poderosa Rainha Ginga.330
A Rainha poderosa que manda e desmanda no Cucumbi descrito por Mello Moraes
estaria sendo informada pelo enorme arcabouo cultural reelaborado no Brasil a partir das
tradies dos africanos escravizados na regio do Congo-Angola? A fora da imagem da
rainha guerreira pode ter se favorecido do maior espao usufrudo pelas mulheres na festa
carnavalesca e ter galgado mais destaque do que o Rei no Cucumbi carnavalesco.
Assim, podemos perceber uma clara aproximao entre os Cucumbis e as Congadas,
descritas por Mello Moraes e Luis Edmundo, respectivamente. Enredo, instrumentos,
palavras, personagens so muito semelhantes. Contudo no possvel confirmarmos que os
Cucumbis carnavalescos331 da dcada de 1880 so Congadas que foram transferidas para os
dias de Momo.
Primeiro, devemos ressaltar a distncia temporal existente entre os dois. As congadas do
perodo colonial possuam sentido diverso. Estavam quase sempre associadas s irmandades
religiosas, que representavam uma possibilidade de distino social de escravos e negros
livres numa sociedade de Antigo Regime. Aumentavam as chances de acesso ao batismo e a
328
184
332
SOARES, Mariza. Devotos da Cor: identidade tnica, religiosidade e escravido no Rio de janeiro do
sculo XVIII. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 2000. Cap. 4
185
333
QUERINO, Manuel. A Bahia de Outrora. Salvador: Livraria Progresso editora, 1946. P.63
Idem.
335
Idem.
336
Idem.
334
186
Figura 28. Detalhe - "vime". In: DEBRET, Jean Babtiste. Voyage Pitoresque et historique au Brsil. Tome
Troisime. Paris: Firmin Didot Frres, Imprimeurs de linstitute de France, 1839.
Logo, quando Manuel Querino coloca uma dana coreografada que utiliza pequenos
pedaos de madeira como parte integrante dos Cucumbi na Bahia, no devemos nos espantar.
Seu uso bastante difundido entre as populaes negras no s no Rio de Janeiro, e nem
mesmo s no Brasil.337 Apesar de Mello Moraes no citar seu uso nos Cucumbis
carnavalescos, a presena desses cacetes no improvvel, na medida em que era corriqueiro
para um escravo, liberto ou negro livre portar o seu cacete pelas ruas da cidade e incorpor-lo
tambm as suas festas como, por exemplo, podemos constatar pela sua utilizao pelos
diabinhos nos dias de momo e pela profuso de registros de danas e manifestaes populares
onde os cacetes tem participao mais ou menos central.338
Entretanto, apesar das semelhanas aparentes, o Cucumbi descrito por Manuel Querino
tem enredo diverso daqueles observados no Rio de Janeiro. A festana transcorre
normalmente, com os instrumentos tocando e as grimas sendo batidas umas nas outras,
337
187
quando ento um indgena [] acusado de haver enfeitiado o guia, que devido a essa
circunstancia, se achava em estado mortal. Ento o feiticeiro
se delibera a curar o guia, que simula agonizante. Para isso, no meio de grande algazarra, toma
de uma bolsinha e com ela toca levemente as pernas e braos do doente, dando movimento
desordenado ao corpo, entoando cantigas lgubres. Ao depor a bolsinha ou contra-feitio nos
lbios do guia, este recobra os sentidos, e todos se entregam s maiores expanses de regozijo.339
Este Cucumbi no possui Mamto [seria o guia?], nem aparece a Rainha ou o Rei
(exceto no verso inicial: Viva nosso rei, Preto de Benguela, Que casou a princesa Co infante
de Castela.)340. No semelhante tambm s descries de Congadas ou Reisados. Querino,
que foi artista, funcionrio da secretaria da agricultura, diretor do clube carnavalesco
Pndegos dfrica, professor, associado da Sociedade Libertadora Baiana, jornalista da
Gazeta da Tarde341, merece ser observado com ateno.
Segundo Wlamyra Albuquerque, Querino forjou sua imagem pblica em sua
empedernida atuao na campanha abolicionista, sua participao em associaes operrias e
em suas pesquisas sobre a cultura negra na Bahia.342 Sendo negro, sua atuao contribui para
combater a ideia de que os brancos eram responsveis pelas aes abolicionistas. Defendia
que o negro merecia lugar de destaque como fator da civilizao brasileira, pois foi o seu
trabalho que sustentou por sculos a nobreza e a prosperidade do Brasil343.
Portanto, esse relato sobre os Cucumbis da Bahia de outrora produto de um
conhecedor profundo dos costumes das populaes negras da Bahia. Logo, a inexistncia de
termos como Mamto, Quimboto, Caboclo, e o silncio sobre o enredo mais detalhado dessa
prtica tambm nos diz muita coisa. provvel que os Cucumbis, sob esse nome e no modelo
narrado por Querino, no existissem mais na Bahia em finais do sculo XIX, e sua narrativa
tenha sido feita com base em memrias antigas ou relatos de velhos participantes. Tal
argumento reforado pelo livro de Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, quando afirma
339
188
que nunca viu Cucumbi na Bahia.344 Por outro lado, podiam existir de forma to marginal que
nem Nina Rodrigues os enxergou nem Manuel Querino pode captar seus personagens e
enredo mais minuciosamente.
Por conseguinte, apesar das reincidentes afirmaes de que os Cucumbis dos carnavais
cariocas foram trazidos por baianos na segunda metade do sculo XIX 345, no devemos tomar
essa concluso como definitiva. O Rio de Janeiro ao longo do sculo XIX comportava
inmeras tradies culturais, robustas o suficiente para se transformar e interagir com as
demais, dando origem a formas e nomes novos para antigas prticas ou prticas novas para
antigos nomes.
***
Nessa breve leitura de memorialistas, folcloristas e viajantes sobre os Cucumbis,
podemos chegar a algumas concluses. Grande parte dos textos publicados no sculo XX
sobre este tema tomou como base o artigo de Mello Moraes Filho, publicado pela primeira
vez no carnaval de 1888. Cmara Cascudo, Mario de Andrade, Nina Rodrigues, e em menor
escala Arthur Ramos escreveram sobre os Cucumbis a partir da anlise de Mello Moraes.
Obviamente todos esses autores buscaram novas contribuies e empreenderam comparaes
com outras prticas. No tenho como afirmar qual a influncia do artigo de Mello Moraes
sobre o texto de Luis Edmundo. O livro O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis foi
publicado em 1932, aps o autor ter pesquisado em arquivos do Brasil e de Portugal e
bastante provvel que tenha tomado contato com Festas e tradies populares, de Mello
Moraes.
J o texto de Manuel Querino sobre os Cucumbis na Bahia o que apresenta maiores
diferenas em relao a todos os demais. Personagens e enredo so outros e no corresponde
ao baleto que Mello Moraes viu nos carnavais do Rio de Janeiro no final do sculo XIX,
apesar de trazer na sua descrio uma embaixada africana que atacada por um indgena
Outro elemento de destaque a unanimidade de que o Cucumbi uma prtica
estreitamente vinculada aos africanos no Brasil. Tal caracterstica aparece em todos os
autores: so danas africanas, versos com palavras africanas, emoes africanas e
pessoas reconhecidas como africanas ou descendentes. (Mesmo que grande parte deles
344
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 4. Ed. So Paulo/Braslia: Ed. Nacional/INL, 1976. P. 181
Mello Moraes o primeiro a usar esse argumento e seguido por praticamente todos os que falaram sobre os
Cucumbis (Mario de Andrade, Cascudo, Arthur Ramos, Nina Rodrigues). Ver bibliografia.
345
189
destaque simultaneamente que essas prticas no so mais puras e leais essa tradio
africana, pois se encontram em contato com as populaes crioulas h muito tempo) Por isso
necessrio nos perguntarmos que frica essa? Quais as referncias que nos possibilitam
entender melhor o que essa imagem africana, seja nos Congados seja nos Cucumbis
Carnavalescos.
346
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista: histria da festa de coroao do rei
Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. p 254
190
monoplio do rei do Congo sobre as coroaes no sculo XIX, devem ser buscadas na
histria das relaes entre Portugal e a frica Centro-Ocidental.347
As caractersticas culturais compartilhadas pelos povos de origem banto, oriundos da
frica Centro-Ocidental, tiveram papel principal na elaborao de novas identidades na
sociedade colonial. Marina de Mello e Souza elenca um rol dessas semelhanas relativas s
formas de organizao social, poltica e religiosa dos povos banto:
transformaes
das
religies,
dentro
do
parmetro
maior
do
complexo
348
dos africanos trazidos para o sudeste brasileiro, em torno de 93% entre 1791 e 1811 e 75% ente
1811 e 1850 vieram da frica central ocidental; desta forma a grande maioria das pessoas
destinadas para as senzalas nessa parte do Brasil descobriu desde o incio, no navio negreiro ou
na jornada anterior rumo a costa atlntica, que tinha muito em comum.349
O reino do Congo, citado pela autora como exemplo de organizao social, poltica e
religiosa complexa que partilhava desses pressupostos culturais, e por Robert Slenes como
347
Idem. P. 258.
Idem. P. 259.
349
SLENES, Robert. Eu venho de muito longe, eu venho cavando: jongueiros cumba na senzala centroafricana. In: LARA, Silvia Hunold & PACHECO, Gustavo (orgs.). Memria do jongo: as gravaes
histricas de Stanley Stein. Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas, SP: CECULT, 2007.
P.116.
348
191
principal fonte de escravos para o sudeste brasileiro at meados do sculo XIX, tornou-se
smbolo para os negros provenientes da frica Centro-Ocidental de reino forte e respeitado
por europeus e africanos. Seu processo de cristianizao precoce, ainda no sculo XVI, lhe
conferiu ares diferenciados no interior do continente africano e abriu novas formas de
prestgio e poder.350 Apesar de seu enfraquecimento poltico com as guerras civis que sofreu
entre os sculos XVII e XVIII351, a imagem do rei do Congo, catlico e poderoso, continuou a
ser um elemento forte o suficiente para estar presente nas festas e histrias dos negros no
Brasil at hoje.
Sendo assim, a coroao do rei Congo foi uma dentre muitas possibilidades de
formao de identidades do lado de c do Atlntico. Contudo, conseguem catalisar as
atenes de mltiplos grupos de escravos a medida que muitos deles puderam se sentir
pertencentes quelas prticas. Com o passar do tempo as diversidades foram sendo apagadas
em favor de uma identidade comum, historicamente construda, de negros catlicos 352, mas,
devo acrescentar, sob a predominncia das caractersticas culturais do povos banto.
As coroaes de reis Congo descritas por Marina de Mello e Souza compreendem,
alm do ato da coroao em si, uma embaixada, onde ocorre um embate entre o rei Congo e
enviados de um reino estrangeiro. A partir dela, afirma a autora, podemos encontrar os
caminhos para compreender o processo de constituio de uma identidade catlica negra e
tambm onde encontramos com mais clareza elementos de uma histria e uma organizao
social africanas353.
As embaixadas eram comuns entre os reinos africanos e tambm europeus. Atravs
delas estabeleciam relaes comerciais, polticas e militares, firmavam-se casamentos e outros
pactos sociais. Nas festas coloniais, as embaixadas consistiam em prstitos formados por uma
corte, ou representantes dessa corte que se deslocavam como se fossem encontrar-se com
outro reino africano. A centralidade das embaixadas na eleio do rei congo no Brasil
demonstra que, a partir da incorporao de elementos da histria africana, essa festa tornou-se
350
192
Idem. P.304
193
Mapa 4. O Reino do Congo e seus vizinhos no sculo XVI (segundo J. Vansina). VANSINA, J. O Reino do
Congo e seus visinhos. In: OGOT, Bethwell Allan (editor). Histria geral da frica, V: frica do sculo XVI ao
XVIII. Braslia: UNESCO, 2010.
A meno Portugal pode ser explicada pelas estreitas relaes do reino do Congo
com a coroa portuguesa nos primeiros anos de contato. A aristocracia congolesa desde muito
cedo penetrou a sociedade lusitana, se valendo da converso ao cristianismo e estabelecendo
355
356
194
Segunda Mary Karash, quenguel uma entidade espiritual da stima falange da linha
de Xang.358 Nei Lopes completa afirmando que, na umbanda, quenguel uma entidadeguia, chefe da falange dos Pretos Velhos, na linha de Xang, provavelmente [deriva] do
Lingala kengele, tomar conta, zelar. Em quioco, o vocbulo kengele exprime a ideia de
aparecer, mostrar-se; deixar-se ver mas sem se aproximar359. Pierre Verger, analisando os
orixs do candombl da Bahia, afirma que
o arqutipo de Xang aquele das pessoas voluntariosas e enrgicas, altivas e conscientes de sua
importncia real ou suposta. Das pessoas que podem ser grandes senhores, corteses, mas que no
toleram a menor contradio, e, nesses casos, deixam-se possuir por crises de clera, violentas e
incontrolveis (...) Enfim, o arqutipo de Xang aquele das pessoas que possuem um elevado
sentido da sua prpria dignidade e das suas obrigaes, o que as leva a se comportarem com um
misto de severidade e benevolncia, segundo o humor do momento, mas sabendo aguardar,
geralmente, um profundo e constante sentimento de justia.360
MBOKOLO, Elikia. frica Negra: histria e Civilizaes. Tomo I (at o sculo XVIII). Salvador: Edufba;
So Paulo: Casa das fricas, 2009. Pp. 413-15
358
KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. So Paulo: Companhia das Letras,
2000.
359
LOPES, Nei. Novo dicionrio bantu do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003. P.181
360
VERGER, Pierre. Orixs: deuses iorubs na frica e no Novo Mundo. Captulo sobre de xang.
195
descrito por Verger. sintomtico que a entidade Quenguel esteja afiliada linha de Xang
atualmente na umbanda e que nos versos dos Cucumbis seja associada aos Reis do Congo.
Ser que essas caractersticas estavam presentes tambm em Quenguel e por isso
favoreceram a aproximao dessa entidade com Xang? Os limites desse estudo no nos
permitem responder, contudo essa suposio me parece bastante verossmil e refora a
imagem do rei do congo nobre, importante e justo sendo representado no carnaval.
No segundo verso da estrofe surge a palavra Calunga que, de acordo com o Novo
Dicionrio Bantu do Brasil, de Nei Lopes, tem origem no termo multilingustico banto
Kalunga, que encerra ideia de grandeza, imensido, designando Deus, o mar, a morte. Na
umbanda, calunga-grande significa o mar, o oceano, enquanto calunga-pequeno, cemitrio.361
Wyatt McGaffey, afirma que no Congo atual, as atividades de culto esto centradas nas duas
principais rotas de comunicao entre os mundos, que so a gua e o tmulo.362
Calunga, nas palavras de Robert Slenes, significava tambm a linha divisria que
separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Portanto, atravessar a kalunga
(simbolicamente representada pelas guas do rio ou do mar (...)) significava morrer, se a
pessoa vinha da vida, ou renascer, se o movimento fosse no outro sentido363. Esse sentido
era compartilhado por grande parte dos povos da regio Congo-Angola, assim como a
caracterizao da cor branca como cor dos mortos e espritos, em oposio ao preto, cor dos
homens. Assim, como afirma Slenes, ficou fcil para os povos banto associarem a terra dos
brancos com o mundo dos mortos, e a travessia do Atlntico como uma dolorosa transposio
da Kalunga.
O ltimo verso da pequena estrofe que vimos analisando diz: Man quem vem l.
Seria uma referncia a algum Manuel, rei congols escravizado e que fez a travessia da
calunga? No temos subsdios para afirmar. No entanto podemos tirar algumas concluses
dessa estrofe.
Em primeiro lugar, o capataz sada o Rei do Congo (que anunciara h pouco sua
chegada de Portugal) evocando Quenguel, aquele que se mostra, mas sem se deixar
aproximar, como exige a pompa de uma corte; e que ao mesmo tempo pode significar aquele
361
196
que toma conta e zela por algo ou algum. Quenguel que atualmente corresponde ao chefe
dos preto-velhos da umbanda, os ancestrais dos antigos escravos vindos da frica centroocidental, membro da linha de Xang, orix da justia.
Em seguida, anuncia que a calunga gira, trazendo o Rei Manuel. A Calunga que liga
os dois mundos, dos mortos e dos vivos, mundos complementares e inseparveis. O Rei do
Congo atravessa a Calunga-Grande (o mar) e associado Quenguel, aquele que deve zelar
pelos seus e mostrar-se sem se aproximar demasiadamente, mantendo sua nobreza.
Aps a apresentao do rei e da rainha, o Mamto entra em cena danando e
centralizando o prstito em torno de si. Entretanto, no tarda em ser assassinado por um
Caboclo. Neste momento evocado um dos personagens mais interessantes da trama: o
Quimboto, o feiticeiro africano. Assim descrito por Mello Moraes Filho:
Este interlocutor traz em volta do pescoo cobras e cadeias de ferro, pende-lhe a tiracolo uma
bolsa de bzios fornecida de objetos de efeito mgico, tais como razes, vboras, resinas, etc.
Vale descrio especial a figura do bruxo ressuscitador que aparece. um negro esplndido de
porte, gil danarino, trazendo, a tiracolo, uma cobra viva. Nos braos mostra grandes braceletes
de miangas e tem as pernas envoltas em peles de anta e de jaguar. Impressiona.
197
capacidade de mudar de pele sem passar para o Outro Mundo, era associada ao
imperecvel.364
E parece mesmo que a religiosidade dos povos da frica centro-ocidental teve papel
de destaque nos Cucumbis de finais do sculo XIX. Segundo Mary Karash, ao longo da
primeira metade do sculo XIX, a religiosidade dos escravos e negros livres do Rio de Janeiro
tem como elementos centrais a tradio religiosa da vasta regio cultural do centro-oeste
africano. O que seria reforado, afirma a autora, pelo predomnio numrico de pessoas
escravizadas nessa regio que aportaram no Rio nesse perodo, pela atual semelhana da
umbanda carioca com as religies curativas de Angola e, sobretudo, pelo prprio carter
aberto dessas tradies, que no se prendiam a um conservadorismo religioso365.
Ela consegue prevalecer sobre o catolicismo, o islamismo e o candombl justamente
por estar aberta ao novo, buscando um rearranjo de rituais, smbolos e crenas, buscando
preservar o complexo ventura/desventura, noo central da cosmologia banto. Segundo essa
viso de universo o bem tende a prevalecer na ordem natural, enquanto o mal sempre
causado por espritos malvolos e sentimentos malignos. preciso que especialistas
interfiram para que o bem prevalea sobre o mal.
Com o intuito de manter a ventura sobre a desventura, os povos que compartilham
dessa tradio religiosa abrem espao para novas prticas e so muito mais flexveis ao novo.
Para os escravos, libertos e negros livres, a cidade do Rio de Janeiro poderia se apresentar
muito desventurada, e a atuao de especialistas para virar o jogo espiritual a favor do bem, e
trazer ventura para a vida, era muito valorizada. Portanto os feiticeiros eram muito comuns no
Rio at bem avanado no sculo XIX. Hbeis manipuladores de drogas e venenos, eram
lderes religiosos poderosos e eficazes desde o perodo colonial. Karash afirma que eles eram
capazes de manipular o sobrenatural e neutralizar o mal, inclusive donos cruis e brutais, fazer
com que os escravos ficassem invulnerveis, adivinhar o futuro e, sobretudo, curar doenas,
detectando e expulsando bruxos e feiticeiros 366
364
idem. P. 134.
Idem. Os pargrafos seguintes so baseados nessa autora.
366
KARASH. Op. cit. p. 351
365
198
Seus amuletos de proteo estavam presentes por toda a cidade; chifres contra mauolhado, cavalo-marinho para expulsar os demnios, e tantos outros patois eram vendidos
pelas ruas do Rio.
O Quimboto tambm trazia seus amuletos pelo corpo (cadeias de ferro, cobras e
vboras, peles de rpteis secas, bzios, razes e resinas) para contornar qualquer desventura e
trazer o bem de volta ordem natural do universo. No Cucumbi seu desafio talvez grande
demais. Ele precisa vencer a maior das desventuras: a morte. A fora de sua magia testada
contra a fora do Caboclo brasileiro que mata o Mamto.
Danando em torno do corpo juvenil do filho da rainha, o feiticeiro canta:
Segundo Cmara Cascudo, a palavra Zumbi tem origem na regio de Angola e usada
no Brasil em vrias localidades e com ainda mais variados sentidos. Citando BeaurepaireRohan (1889) afirma que Zumbi seria um ente fantsticos que (...) vagueia no interior das
casas em horas mortas [e etimologicamente] vocbulo da lngua bunda, significando
duende, alma do outro mundo367. Citando Vale Cabral, afirma que zumbi significa entre os
angolanos gente que morreu, alma do outro mundo (...) Na tradio oral de muitas naes
africanas, fantasma, Diabo, que anda de noite pelas ruas368. No Haiti, prossegue Cascudo, h
os Zombies, cadveres animados por fora mgica, sob a vigilncia constante do
feiticeiro369.
367
CASCUDO, Luiz da Cmara. Made in frica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1965. p. 114. Grifo
meu
368
Idem. P. 115
369
Idem p.117
199
Conclui com outra citao, agora de scar Ribas, que nos til: Zumbi a alma de
pessoa falecida recentemente, num perodo no secular370. Segundo esse autor, zumbi
deriva de kuzumbika que significa perseguir a mando de um feiticeiro.
significativo que o feiticeiro evoque Zumbi, no processo de encantamento que busca
trazer a vida novamente o Mamto. Trata o recm falecido como zumbi, ou seja, alma do
outro mundo, mas que afligida pelos feitios corretos pode retornar sob o comando do
Quimboto.
A ressurreio do Mamto demonstra a fora e o conhecimento mgico e sobrenatural
do feiticeiro africano. Ele, atravs de msica, dana,371 utilizao de amuletos e evocando as
entidades corretas consegue derrotar a morte causada pelas foras do Caboclo, provvel
representante das foras amerndias e/ou brasileiras, como sugeriu Mary Karash.372
A vitria do Feiticeiro e o restabelecimento da ventura sobre a desventura
encaminham o prstito para o seu desfecho. O feiticeiro evoca So Benedito como santo
maior encarregado de fechar o desfile. Este santo, negro, nascido na Etipia no sculo XVI,
era um dos mais populares entre a escravos, libertos e negros livres do Rio de Janeiro. Virgem
Maria tambm louvada e um versinho sobre a Bahia definido por Mello Moraes como o
fecho do prstito.
Na Bahia tem,
Tem, tem, tem
Na Bahia tem
baiana
gua de vintm...
370
Idem p. 118
KARASH. Op. cit. Dana, msica e transe esto no mago do ritual centro-africano: a msica cura, a
msica comunica-se com os de cima e de baixo do mundo visvel; ela inspirada[Craemer](p.361).
372
Essa ideia da vitria da feitiaria africana sobre as foras americanas, representada pela ressurreio do
Mamto defendida por Mary Karash. Op. cit. P. 357
371
200
201
Percorreram tambm diversas ruas [o] grupo dos Pirilampos, Flor de Netuno, Cavalheiros de S.
Potino, Flor de Catumby, Piratas do Amor, Quicumby (Caboclos), Bumba meu boi e outros.373
Para mim, fictcio estrangeiro a ler jornais do Rio, o aparecimento desse Quicumby
no Jornal do Comrcio no representaria nada alm de mais um grupo carnavalesco carioca
com nome extico. Sobretudo, por ele ter aparecido esse ano apenas nesse jornal e por eu no
ter encontrado nenhuma referncia a Cucumbi entre 1879 e 1883 nos peridicos consultados.
Porm, no carnaval seguinte, para minha surpresa, me deparei novamente com esse
termo, no apenas no Jornal do Comrcio, mas tambm na Gazeta de Notcias. Nas listas de
grupos que percorreriam as ruas da cidade nos dias da festa publicadas pelo Jornal do
Comrcio no ano de 1885 aparecem o grupo dos Cacumbys e o grupo Triunfo dos Cacumbys,
ambos anunciando sua sada nos trs dias. J a Gazeta de Notcias afirma que, na tera-feira
de carnaval de 1885,
202
tarde passaram os Cucumbis pela Rua do Ouvidor, parando em frente as redaes dos jornais,
onde executaram umas danas cheias de circunstncias e comprimentos a uma dama que vinha
vestida de rainha e a um homem com umas barbas muito grandes e muito pretas, que devia ser o
rei.376
A Gazeta da Tarde, pela primeira vez desde 1882, registra a participao dos
Cucumbis no carnaval: Cacumbys e Triunfo dos Cucumbis esto na lista de grupos que
desfilaro. Alm desses dois, presentes nos outros jornais pesquisados, a Gazeta da Tarde
abre espao para um terceiro grupo que, por sua homenagem a Jos do Patrocnio, recebe
ateno especial:
Iniciadora Cucumbi
Antes da passagem das grandes sociedades, mais uma vez a Iniciadora Cucumbi cumprimentou as
redaes dos jornais danando e cantando, agitando a pluma de seus cocares, estando todos os
scios rica, luxuosamente mesmo fantasiados.
Em frente ao edifcio da nossa folha, demoraram-se por longo espao de tempo, dando vivas a
Jos do Patrocnio e a seus companheiros de trabalho. A sua passagem, como a dos
Democrticos, saudaram-na gentis senhoras, que, das vossas janelas, deixavam cair sobre eles
chuva de ouro e ptalas de rosas.377
A partir desses dois breves textos algum que nunca tivesse vivido os carnavais
cariocas do perodo poderia tirar algumas concluses. Os Cucumbis, como vrias outras
sociedades menos famosas, tambm usavam o expediente de homenagear os jornais da
cidade danando em frente s suas redaes. Descendo a rua do Ouvidor em direo ao largo
S Francisco de Paula esses Cucumbis chegariam primeiro redao do Jornal do Comrcio,
situado no nmero 61 no sabemos se dedicaram algum tempo a danar em frente a essa
redao, pois no h registro. Andando mais alguns metros, no mesmo quarteiro, mas do
outro lado da rua, no nmero 70, pararam para executar suas danas cheias de circunstncias
376
377
203
Mapa 5. Rua do Ouvidor - redao dos jornais. O nmero 61 abrigava a redao do Jornal do Comrcio, o
nmero 70, a Gazeta de Notcias. J a Gazeta da Tarde ficava no nmero 144, prximo igreja de Nossa
senhora do Rosrio. Mapa desenvolvido por mim a partir dos mapas cedidos pela professora Maria
Clementina Cunha e pelo Cecult (tais mapas foram produzidos sobre as pranchas do lbum de Edward
Gotto, Plan of the city of Rio de Janeiro, Brazil, surveyed in 1866, existente na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, pelo projeto Temtico Santana e Bexiga, coordenado pelo professor Sidney Chalhoub, no
Cecult/Unicamp
204
Desfilar pela rua do Ouvidor (e saudar as redaes dos jornais nela sediados) era
atitude comum entre os grupos que colocavam seus prstitos na rua durante o Carnaval.
Inspiravam-se nas Grandes Sociedades Carnavalescas Fenianos, Democrticos e Tenentes
do Diabo que se encontravam no auge de sua popularidade e serviam de exemplo para
centenas de grupos. Essas Grandes Sociedades Carnavalescas, como vimos no primeiro
captulo dessa dissertao, estavam bastante afinadas com os interesses e projetos de grande
parte da imprensa carioca. Defendiam caminhos de modernizao e civilizao para a nao
brasileira, caminhos estes que passavam tanto pela abolio da escravido e proclamao da
repblica quanto pela reformulao das prticas festivas brasileiras, que seriam atrasadas e
incompatveis com o ideal de progresso.
O carnaval de inspirao veneziana deveria substituir o brbaro entrudo e as demais
brincadeiras populares, sobretudo as de matriz africana como vimos em relao aos
diabinhos em captulo anterior378. A Rua do Ouvidor seria, ento, o melhor espao para tal
empreitada, medida que era considerada a artria da civilizao no Rio de Janeiro e
concentrava inmeras lojas europeias e de artigos de luxo, alm das redaes dos principais
jornais e revistas. Seus jornalistas e redatores compartilhavam grande parte dos ideais
progressistas das Grandes Sociedades Carnavalescas, sendo que muitos deles eram seus
membros mais atuantes.379 Eram comuns as homenagens recprocas entre Fenianos,
Democrticos e Tenentes do Diabo e os grandes jornais da Corte, principalmente queles mais
identificados com causas como a abolio, a repblica e a defesa de projetos modernizadores
para o Brasil, como a Gazeta de Notcias e a Gazeta da Tarde.
Portanto, quando as muitas sociedades que eram criadas anualmente no Rio para
desfilar no carnaval no apenas os Cucumbis disputavam espao na estreita rua do
Ouvidor e paravam diante dos jornais para saud-los, elas estavam se valendo das estratgias
das Grandes Sociedades, mas com outros objetivos e com modos e vestimentas muito
distantes dos de Veneza. Visavam, sobretudo, ganhar territrios simblicos na festa, conseguir
espao nas pginas dos jornais, ter seu esforo e dedicao reconhecidas publicamente e ser
elevadas ao rol dos grupos de destaque. Com os Cucumbis no foi diferente. A incorporao
de expedientes das Grandes Sociedades servia para que fossem mais vistos e reconhecidos, ao
mesmo tempo impedia que fossem completamente silenciados ou perseguidos pelas
378
379
205
380
206
O segundo grupo [a passar pela rua do Ouvidor] (entre parnteses se diga que muitos grupos
havia sem denominao, apenas com zabumba) foi o da [ilegvel]
Gente bem vestida esta e que danava bem, como provou, danando em frente a cada uma das
redaes dos jornais.
Acompanhava o grupo uma poro de pretas, carregando criancinhas de peito.
O que prova que os Cucumbis, alm das festas do carnaval, tem outras coisas em que se
ocuparem. (...)
Passou ainda [pela rua do Ouvidor] o grupo Triunfo dos Cucumbis, composto de umas vinte
pessoas, todas rigorosamente vestidas de saiotes de plumas e turbantes idem.
Cantaram e danaram de tal modo que, se todo mundo cantasse e danasse assim, ficariam no rol
do esquecimento todos os suadouros.381
Mais uma vez ressaltada a capacidade de cantar e danar dos membros dos
Cucumbis, assim como se repete o ato de dedicar um tempo da apresentao para a apreciao
em frente s redaes dos jornais. As plumas tambm so notadas pelo jornalista como
elemento central da fantasia, presente nos saiotes e turbantes. Todavia, h um
componente novo na descrio sobre o Cucumbi: a cor da pele. Segundo o jornalista uma
poro de pretas acompanhava o grupo carregando criancinhas de colo. Pela primeira vez,
desde 1884, quando da primeira apario dos Cucumbis nos jornais analisados, se explicitava
a cor da pele de parte das pessoas que compunham esses grupos: elas eram pretas. Como se
no bastasse esse comentrio, o jornalista prossegue afirmando como se respondesse
queles que duvidavam que aquelas pretas dos Cucumbis tambm tinham outras coisas com
que se preocupar, alm de cantar e danar vestidas de plumas durante o carnaval.
Apesar dos elogios ao bom desempenho dos membros dos Cucumbis ao danar e
cantar, o comentrio racializado do jornalista comea a evidenciar elementos at ento
invisveis para quem s tomou conhecimento dos Cucumbis atravs dos caracteres impressos.
O ano de 1888 ser revelador nesse sentido, proporcionando novos caminhos de entendimento
para o olhar estrangeiro que tentei aplicar nessa anlise at o momento.
381
207
Se em 1884 aparece uma referncia aos Cucumbis, ano a ano esse nmero se eleva,
atingindo o nmero de seis grupos diferentes nomeados Cucumbi (tabela 2).
Tabela 2. Recorrncia de Cucumbis nos jornais
Jornal
1884
1885
1886
1887
1888
Lanceiros Cucumbis
Triunfo dos
Cucumbis
Cucumbis
Carnavalescos
Iniciadora Cucumbis
Carnavalescos
Filha da Iniciadora
Cucumbis
Carnavalescos
Cucumbis Africanos
(Texto)
Unio Lanceiros
Cucumbis
Lanceiros Cucumbis
Triunfo dos
Cucumbis
Cucumbis
Carnavalescos
(texto)
Cucumbis (Texto
Mello Moraes)
Cucumbi Africanos
(texto)
Jornal do
Comrcio
Quicumbi
(caboclos)
Cacumbis
Grupo dos
Cacumbis
Triunfo dos
Cacumbis
Cacumbi
Carnavalesco
Triunfo dos
Cucumbis
Os Cacumbys
Cucumbis
Carnavalescos
Iniciadores dos
Cucumbis
Filha dos Iniciadores
dos Cucumbis
Triunfo dos
Cucumbis
Cocumbis
Gazeta de
Notcias
Club
Cucumbi
Cucumbis
Cucumbis
Carnavalescos
(texto)
Triunfos dos
Cucumbis
Cucumbis
Carnavalescos
Iniciadores dos
Cucumbis
Filha dos Iniciadores
dos Cucumbis
Triunfo dos
Cucumbis (Texto)
Cucumbis (Texto)
Gazeta da
Tarde
Triunfo dos
Cucumbis
Os Cacumbis
Iniciadora Cucumbi
(Texto)
Cucumbis
Total de
registros
de
Cucumbi
nos
jornais
(18841888)
Quicumbi
(caboclos)
Sem textos
Cucumbis
Triunfo do
Cucumbis
Sem textos
Cucumbis
Carnavalesco
Triunfo dos
Cucumbis
Iniciadora
Cucumbi
2 texto
Cucumbis
Carnavalescos
Triunfo dos
Cucumbis
Iniciadores dos
Cucumbis
Filha dos
Iniciadores dos
Cucumbis
2 textos
Sociedade Iniciadora
Cucumbis
Carnavalescos
Iniciadora Cucumbi
Carnavalesco
Unio Lanceiros de
Cucumbis
Triunfo dos
Cucumbis
Cucumbis
Carnavalescos
Unio Lanceiros
Cucumbis
Triunfo dos
Cucumbis
Iniciadora dos
Cucumbis
Carnavalesco
Filha da Iniciadora
dos Cucumbis
Carnavalescos
Cucumbis Africanos
4 textos
208
Desfilaram pela rua do Ouvidor: (...) os Cucumbis Africanos, que, vestidos como nos pases
africanos, saudaram a imprensa e o Imperador do Brasil, entoando nessa ocasio cnticos
originais, ao som de instrumentos no menos originais, parando de vez em quando para fazer
prolongadas reverncias, dando o mote da cantiga: A frica sempre foi livre; (...)
[Desfilaram tambm] os Cucumbis Carnavalescos, fantasiados tambm com roupas africanas;
na frente vinham alguns scios fantasiados de ndios, aos quais faziam manobras selvagens,
deitando-se as vezes no cho para ouvir o que ia ao longe. No centro do grupo estava a rainha,
coberta por um grande manto, cujas pontas eram seguras por dois Cucumbis. Paravam em frente
aos jornais, cantavam e danavam moda africana.
Apresentavam-se em seguida sete cavalheiros vestidos de branco uniformemente, parecendo
trajar domins. Cada um deles tinha um instrumento desconhecido e original. Formavam assim
uma pequena orquestra, interessante, fantstica, e que no deixou de ter a sua graa. Tocaram
peas esquisitas em frente s redaes dos jornais, sendo aplaudidos e saudados.
Fizeram tambm a sua passeata os Lanceiros Cucumbis carnavalescos, que como os dois outros
grupos congneres e do mesmo nome apresentaram-se vestidos originalmente, carregando
garboso estandarte, danando e brincando a valer. (...)
As 9 horas da noite fez sua apario o grupo Triunfo dos Cucumbis. Em frente s redaes
abriram alas, achando-se no centro do grupo o rei e a rainha, com os seus respectivos cetros,
danaram acompanhando as danas de cantos.
nome), ao ler esse exemplar do Jornal do Comrcio uma nova realidade se descortina. Pela
primeira vez ntida e explcita a aluso frica que a passagem dos Cucumbis causava na
imprensa. Para o jornalista, aqueles homens e mulheres estavam vestidos como nos pases
africanos, danavam e cantavam moda africana, utilizavam instrumentos originais,
eram liderados por uma Rainha e um Rei, com manto e cetro.
Alm desses elementos o prprio nome de um dos grupos bastante conclusivo:
Cucumbis Africanos, que cantam o tema A frica sempre foi livre. Ao seu lado, o Jornal
do Comrcio tambm registrou os prstitos de Lanceiros Cucumbis, Triunfo dos Cucumbis,
Cucumbis Carnavalescos, Iniciadora Cucumbi Carnavalescos, Filha da Iniciadora Cucumbi
Carnavalescos.
O ano de 1888 bastante significativo no que se refere ateno dispensada pela
imprensa aos Cucumbis (que ainda nfima se compararmos com toda a cobertura dedicada
aos prstitos das Grandes Sociedades Carnavalescas). Alm dos seis grupos e do texto
presente no Jornal do Comrcio, encontramos na Gazeta de Notcia desse ano o valioso texto
de Mello Moraes Filho chamado O Carnaval Os Cucumbis382 e referncia aos grupos
Triunfo dos Cucumbis, Lanceiros Cucumbis, grupo dos Africanos (descrito como um
Cucumbi) e os Cucumbis Carnavalescos.
O texto de Mello Moraes pode funcionar como um termmetro para a efervescncia
de Cucumbis carnavalescos que vinham conquistando espao no Rio de Janeiro, pelo menos a
partir de 1884. Mello Moraes Filho, que poca j despontava como importante conhecedor
da cultura popular brasileira, assina o artigo sobre os Cucumbis em fevereiro de 1888,
entretanto esse artigo no publicado na primeira edio de sua obra Festas e Tradies
populares do Brasil que saiu pela Garnier no mesmo ano com o ttulo Festas Populares do
Brasil, mas estaria presente nas edies seguintes, publicadas a partir de 1901. Este indcio
aponta para a urgncia da confeco daquele texto.
Com a crescente presena dos Cucumbis entre os vrios grupos e mesmo entre as
Grandes Sociedades Carnavalescas a partir de 1884, e a presumvel curiosidade despertada
sobre jornalistas e leitores, Mello Moraes Filho decide escrever a sua histria dos Cucumbis e
quais seriam suas principais caractersticas. Assim, em 1888, quando o maior nmero de
382
210
Cucumbis aparece nos jornais, publicado o texto mais completo da poca sobre estes
grupos, que para muitos eram exticos, selvagens, mas que tinham certa graa.383
Mello Moraes tenta dar conta das origens dos Cucumbis e descreve o seu enredo e
seus instrumentos, assim como reproduz alguns versos. Afirma categoricamente, j nas
primeiras linhas, que consistia num grupo de negros e que esses bandos inicialmente eram
constitudos por escravos dfrica que cantavam cantigas brbaras na linguagem de suas
terras natalnicas. Segundo ele, os Cucumbis tiveram seu carter ligeiramente modificado
com elementos novos ao longo do sculo XIX, mas que ainda hoje [representam] uma das
faces mais belas dessa raa afetiva por excelncia, a quem deve o Brasil a maior parte de sua
populao, de sua riqueza e de seu progresso.384
Associa essa dana coreogrfica aos sofrimentos da escravido e saudade da
frica. Segundo o autor, mesmo aps os versos deixarem de ser cantados em lngua africana e
da tradio africana encontrar-se corrompida pelas geraes crioulas, sua ndole ainda a
mesma, ainda possvel reconhecer o que h de primitivo como os costumes autnticos.385
Aps inmeras geraes crioulas e da influncia de pretos baianos aqui
residentes, os Cucumbis no Rio teriam se transformado em sociedades carnavalescas. Mello
Moraes afirma conhecer os Cucumbi Lanceiros Carnavalescos, o Triunfo dos Cucumbis
Carnavalescos, os Iniciadores dos Cucumbis e os Cucumbis Carnavalescos, estando elas em
atividade em pleno ano de 1888. No entanto, seu texto refora a noo de que esses Cucumbis
so exemplos de um passado inofensivo, de tradies que devem ser reconhecidas e
valorizadas, mas que esto fadadas ao desaparecimento.
Mello Moraes Filho buscava os elementos formadores do povo e da nacionalidade
brasileira. Diferentemente de tantos outros intelectuais, Mello no pretendia silenciar
tradies africanas ou mestias. Como afirmou Martha Abreu, sua obra incorpora e valoriza
de forma saudosista e idealizada muitas das tradies africanas. Contudo, seu lugar era no
passado, pois o presente e o futuro estariam reservados aos diversos encontros e contatos entre
mltiplas tradies.
Aps travar contato com seu texto, o leitor estrangeiro capaz de entender quo
ntida era a matriz africana nesse festejo. Poderia perceber que se tratava de um grupo de
383
211
descendentes dos africanos escravizados trazidos para o Brasil, e que mantinham essa prtica,
apesar das transformaes do tempo.
E, ao juntar todos os elementos vistos at aqui poderia concluir que os Cucumbis
eram reconhecidos pelos jornalistas e por Mello Moraes Filho como grupos compostos por
negros, que traziam tambm seus filhos para o desfile; que catavam, danavam e vestiam-se
moda africana; trajavam penas e plumas; percorriam a rua do Ouvidor e paravam frente
das redaes dos jornais para saud-las; em um dos anos (1886) elegeram Jos do Patrocnio
como homenageado, e gastaram longo tempo danando em frente ao seu jornal; outro tema
que aparece ressaltado na imprensa o mote A frica sempre foi livre, que, apesar de ser
registrado apenas pelo Jornal do Comrcio no pode ser desprezado.
Mello Moraes ainda presenteia o leitor com sua tese de como os Cucumbis teriam
reaparecido no Rio de Janeiro em finais do sculo XIX. Para ele, esse fenmeno seria produto
do empenho de pretos baianos aqui residentes, que, sendo descendentes diretos dos
africanos tem conservado no Brasil a herana paterna386, e transferiram o cortejo dos dias
fnebres e das festas de reis ou de coroaes de reis do Congo para a festa de Momo.
O leitor poderia reparar, ainda, no olhar racializado de muitos jornalistas (quando,
por exemplo, associam as pretas sexualidade, ou quando afirmam que a histria do
Cucumbi era a de uma rainha to despeitada quo preta387) ou na leitura benevolente de
Mello Moraes Filho, como afirmou Maria Clementina Cunha. E que ambos tentavam
dispensar um tratamento folclorizante para essa prtica, tratando-a muitas vezes como
primitiva e infantil, mesmo que menos perigosa e ameaadora do que os diabinhos.388
Entretanto, como no sou um leitor estrangeiro do sculo XIX, mas sim um
historiador, preciso empreender uma anlise mais complexa dessas concluses gerais
extradas quase literalmente dos jornais. Acredito ser possvel visualizar na experincia dos
Cucumbis Carnavalescos da dcada de1880 elementos da construo de identidades (baseadas
em imagens da frica) e de um processo de crioulizao dessa prtica. Sendo que ambos os
processos dialogaram constantemente, no sem conflitos e negociaes, com a luta em torno
do conceito de liberdade, intensamente desenvolvidas na cidade do Rio de Janeiro.
386
Idem
Gazeta de Notcias. 14/02/1888
388
CUNHA. op. cit. p.43
387
212
389
sendo compartilhada por muitos pensadores que entenderam experincias similares como
meras sobrevivncias do passado).
Como nos alertou Wlamyra Albuquerque, em sua inspirada anlise sobre a
construo de imagens de fricas em carnavais baianos de finais do sculo XIX e incio do
XX, no devemos cair na dicotomia analtica que estabelece dois nicos polos possveis para
atuao de grupos negros na sociedade escravista: de um lado estaria a opo da integrao
social por critrios brancos, em outras palavras a assimilao; de outro lado estaria a
resistncia, como, por exemplo, empreendida pelos batuques africanos, avessos a integrao e
assimilao.
Para Wlamyra Albuquerque, esta dicotomia deve ser evitada e devemos nos
preocupar mais em pensar sobre como o passado africano estava compondo a experincia
389
213
214
ngelo Agostini. Artista nascido na Itlia mas brasileiro por escolha, Agostini fez de sua
revista um dos veculos mais populares da difuso de ideias abolicionistas.393
Em 1883 fundada a Confederao Abolicionista, que visava reunir todas as
associaes abolicionistas do pas. No mesmo ano publicado O Abolicionismo de
Joaquim Nabuco, livro que se tornaria maior referncia literria sobre o tema. Em 1884, a
Cmara Municipal do Rio de Janeiro criou um livro de ouro para arrecadar fundos em prol
da liberdade dos escravos do municpio neutro. Mesmo ano em que a abolio foi decretada
na provncia do Cear e do Amazonas e foram comemoradas com grande festa no Rio de
Janeiro.
Joaquim Nabuco foi eleito deputado pela provncia de Pernambuco em 1884, tendo o
abolicionismo como carro chefe de sua campanha. Em 1886, era a vez de Jos do Patrocnio
ser eleito deputado pelo Rio de Janeiro.
No mbito diplomtico internacional, o Brasil se via pressionado pelas potncias
estrangeiras (sobretudo Frana e Inglaterra) a dar cabo de to vexatria instituio. As
disputas jurdicas eram tambm cada vez mais acirradas entre os que defendiam o direito da
liberdade contra aqueles defensores da propriedade enquanto os escravos levavam uma
vida de peteca entre os dois polos, como ressaltou Chalhoub.394
Essa ebulio de debates em torno da questo servil se fez notar nas leis do
perodo. Desde 1871, com a chamada lei do Ventre livre, essa questo esteve em pauta nas
casas legislativas do imprio. Em setembro de 1885, aps intensas disputas entre as bancadas
ligadas aos senhores de escravos do sudeste e pelo crescimento do movimento abolicionista,
outra lei emancipacionista foi decretada: a Lei dos Sexagenrios que declarava livres os
escravos com mais de 60 anos. Se a lei tinha um evidente carter protelatrio da abolio
final, gerou um intenso debate a respeito do fim da escravido e dos direitos dos escravos.
Atravs de suas exigncias, garantiu a alforria aos escravos no matriculados a partir daquela
data e um preo mximo dos cativos por faixa etria.395
393
Sobre Agostini ver BALABAN, Marcelo. Poeta do lpis: a trajetria de Angelo Agostini no Brasil imperial
So Paulo e Rio de Janeiro 1864-1888. Tese de doutorado. Campinas, SP, 2005.
394
CHALHOUB. op. cit
395
NEPOMUCENO, Eric Brasil & MENDONA, Camila. Abolio e Abolicionismos, 2010. (Artigo
produzido para compor o curso de extenso de educao continuada voltado para profissionais docentes
oferecido pela Universidade Federal Fluminense em parceria com o Programa de Educao Sobre o Negro na
Sociedade Brasileira PENESB.
215
396
Emlia Viotti da Costa. A Abolio. 8 Edio revista e ampliada, So Paulo: editora UNESP, 2008. P. 122123
397
NEPOMUCENO & MENDONA. Op. cit. E SILVA, Eduardo. Palestra conferida ao I Seminrio Caminhos
da abolio e do ps-Abolio. Niteri: PPGH/UFF, 2010.
398
SILVA, Eduardo. Domingo, dia 13: o underground abolicionista, a tecnologia de ponta e a conquista da
liberdade. In: ABREU, Martha & SERVA, Matheus P. (orgs) Caminhos da liberdade: histrias da abolio e
do ps-abolio no Brasil. Niteri: PPGHISTRIA-UFF, 2011.
216
Ora, se a dcada de 1880 no Rio de Janeiro pode ser definida pela radicalizao dos
debates abolicionistas, nas mais variadas esferas, podemos inferir que consequentemente
houve uma intensificao nas disputas em torno das vises de liberdade entre os diferentes
grupos sociais da cidade. No apenas senhores e escravos estavam repensando suas
concepes, mas tambm os homens livres encaravam sua liberdade de outra forma. E muitos
desses homens livres negros (assim como escravos) escolheram o carnaval para colocar em
prtica suas novas possibilidades de liberdade e participao na sociedade carioca.
Defendo que, como a participao dos diabinhos, a presena cada vez mais
impactante dos Cucumbis Carnavalescos a partir do ano de 1884, est diretamente relacionada
a essa nova cultura poltica de liberdade, que vem sendo construda no Rio a partir de diversas
frentes (abolicionismo parlamentar, imprensa, participao popular, seja de escravos ou
livres) e que tem no carnaval um vetor de criao, transformao e representao..
O carnaval foi a festa escolhida pela populao carioca para expor seu desejo de
liberdade e, no caso dos Cucumbis, tambm seu desejo de mostrar e criar uma identidade
prpria. Seus membros elaboraram uma imagem de cortejo carnavalesco saindo juntamente
399
400
217
com as demais sociedades e, apesar de usar muitos dos seus expedientes (como por exemplo,
passar pela rua do Ouvidor, parar nas redaes dos jornais) eles mantiveram diferenas
significativas frente aos demais grupos. Eles traziam s ruas uma frica simbolicamente
positivada, com seu rei e rainha, prncipes e princesas, alm de banda, guarda, feiticeiros e
sditos.
Ao representar imagens da frica, os Cucumbis estabeleciam critrios de
pertencimento e identificao com certos grupos e excluam outros. O rei do Cucumbi era
Congo, seus personagens tinham nomes africanos e quem se sagrava vencedor ao final do
cortejo era justamente o reino africano contra as foras do Caboclo. Essa imagem da frica
positivada presente no carnaval dos Cucumbis foi criada a partir de um rico arcabouo
cultural presente no Rio de Janeiro, cujos elementos tentei apresentar anteriormente401.
Ao longo de todo o sculo XIX as gentes de cor da cidade travaram contato com
tradies africanas de mltiplas origens. Pudemos ver que dentre elas houve uma significativa
predominncia banto. Os Cucumbis descritos por memorialistas, folcloristas e viajantes foram
sempre associados a elementos desses povos da frica Centro-Ocidental. Entretanto, sua
hiptese mais comum (baseada em Mello Moraes Filho) para o ressurgimento dos Cucumbis
no carnaval do Rio coloca a ao de baianos filhos de africanos trazidos pelo trfico interno
como agentes nicos dessa inovao.
Minha tese difere da anlise de Mello Moraes, apesar de no negar a importncia de
baianos para as transformaes culturais e sociais do Rio de Janeiro ps 1850. Porm, eles
representam apenas um elemento de composio do amplo caldeiro cultural que era a cidade
do Rio de Janeiro em 1880. Como afirma Tiago de Mello Gomes, os baianos encontraram
no Rio um rico universo cultural no qual outros grupos imprimiram suas marcas e tiveram,
assim, que dialogar com as tradies j existentes402.
Os Cucumbis Carnavalescos no representam apenas uma reproduo de antigas
festas coloniais. Eles eram uma manifestao mais ampla, uma elaborao criativa de seus
participantes estabelecendo um dilogo entre as novas formas de se brincar o carnaval da
401
Outros grupos da dcada de 1880 apresentavam nomes com referncias explcitas frica. Nao Angola,
Dana Benguela, Cabindas, Cabunds aparecem mais de uma vez nos jornais do perodo. Infelizmente no foi
possvel recolher mais informaes sobre eles alm de seus nomes. Contudo, sua presena j demonstra que o
carnaval era um espao requisitado pela populao de cor para expressar suas concepes de festa e tradio.
402
MELLO, Tiago. Para alm da casa da Tia Ciata: outras experincias no universo cultural carioca, 18301930. Afro-sia, 29/30 (2003), 175-198. p.179
218
dcada de 1880 com os elementos culturais presentes entre as culturas negras da cidade.
Elementos das congadas, dos reisados, das festas das irmandades religiosas, dos cortejos
fnebres, de embaixadas africanas, e tambm referncias a tradio religiosa banto (o
complexo ventura/desventura, o feiticeiro, a Calunga, um cristianismo africano) e a histrias
da frica (o reino do Congo, a rainha Ginga, a travessia do Atlntico).
O grupo fotografado por Cristiano Jnior na rua da Quitanda, no carnaval de 1868,
por exemplo, nos ajuda a refletir sobre as transformaes dos Cucumbis na dcada de 1880.
As duas fotos mostram uma corte africana de Cucumbi, onde, na primeira, vemos 14
pessoas negras vestidas de branco, com algumas penas nos chapus. A frente esto o possvel
rei e a rainha, do lado esquerdo, quatro homens tocam tambores, do lado direito, temos quatro
mulheres e atrs mais quatro homens. possvel notar que muitos deles (inclusive o rei) esto
descalos, o que revela sua condio cativa. A segunda foto apresenta dois homens negros
tocando seus tambores. Vestidos de camisa branca, calas e chapu com algumas penas, no
possuem calados.
Apesar de ser uma corte, e que Cristiano Jr. tenha os intitulado como Cucumbis, esse
grupo muito diferente daqueles que encontramos na dcada de 1880. Primeiro no vemos os
ndios, to caractersticos dos Cucumbis Carnavalescos. Os instrumentos musicais se
resumem a tambores iguais, sem chocalhos, tamborins, agogs, pianos de cuia e outros. No
possvel distinguir o feiticeiro, com suas cobras e amuletos, nem o Caboclo, ndio guerreiro
que carrega seu tacape. As descries da dcada de 1880 falam em grupos de cinqenta
pessoas, com muitas mulatas formosas, com pequena orquestra de instrumentos
desconhecidos e originais. No aparece tambm o Mamto, jovem negro dedicado as
piruetas e acrobacias.
O Cucumbi registrado por Cristiano Jr se assemelha muito mais s Congadas e folias
das irmandades religiosas do perodo, que contriburam significativamente para a elaborao
criativa que originou os Cucumbis Carnavalescos da dcada de 1880.
219
Figura 29. Cucumbi fotografado por Christiano jr na rua da Quitanda em 1868. In: Escravos brasileiros no
sculo XIX a fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ex-Libres, 1988, prancha 73. Copyright Servio do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional.
220
Figura 30. Cucumbi fotografado por Christiano jr na rua da Quitanda em 1868. In: Escravos brasileiros no
sculo XIX a fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ex-Libres, 1988, prancha 73. Copyright Servio do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional.
221
Esse Bando Precatrio como foi chamado, foi registrado por Angelo Agostini em
pgina dupla de sua Revista no dia 28 de fevereiro de 1885. Em sua imagem h a seguinte
legenda: Grande bando Precatrio. A Revista Ilustrada, grata a todas as associaes que
403
Ver Los terremotos de Andalucia conferencia leida en el ateneo de Madrid en febrero de 1885 por Jos
Macpherson. Madrid: Imprensa de Fortanet, Calle de la Libertad, num. 29. 1885. Disponvel no site:
http://ateneodemadrid.es/biblioteca_digital/folletos/Folletos-0008.pdf
404
Revista Ilustrada. Ano 10 n403 28 de fevereiro de 1885
222
tomaram parte nessa grande obra de caridade, oferece-lhes em homenagem esta coroa. O
desenho representava um gigantesco prstito cercado por uma coroa de louros. Cada folha
possua o nome de uma associao: Tenentes do Diabo, Democrticos, Fenianos, entre muitas
outras, assim como associaes abolicionistas. Uma das ltimas folhas, no canto inferior
esquerdo trazia uma inscrio encoberto por outra folha. Apesar de ser pequena e escura,
possvel reconhecer o nome Cucumbi.405
Na Gazeta de Notcias de 23 de fevereiro, dia seguinte ao Bando Precatrio, h uma
grande notcia descrevendo o prstito que saiu a esmolar pelas ruas da cidade. Segundo o
jornal,
As terrveis calamidades que tm assolado uma grande parte da populao de Espanha, despertaram no
corao generoso do povo fluminense os mais acentuados sentimentos de filantropia, (...)
Dado o alarme pela imprensa, que pela primeira vez se uniu para a prtica de um ato que h de honr-la
eternamente, de todos os lados apareceram francas e espontneas adeses, no honroso intuito de
concorrerem para a obteno de recursos, que possam de algum modo suavizar a situao aflitiva de
tantos milhares de desgraados.
Cremos poder afirmar, que nunca se viu no Rio de Janeiro uma manifestao to solene e imponente
como a que ontem presenciamos.406
Comisses dos jornais, dez sociedades abolicionistas, alunos das escolas Militar,
Politcnica, de Medicina e de Belas Artes, clubes danantes, associaes de portugueses,
franceses e espanhis sucederam-se nas ruas. Ao seu lado, mais de uma dezena de sociedades
carnavalescas tambm participaram. Aps o carro dos Diplomatas Carnavalescos:
Sucedia-se o Club dos Cucumbis, o dos Piratas do Amor, o Centro Juvenil, e depois destes uma banda de
msica que precedia o Club das Sogras Vtimas dos Genros, de Niteri.407
405
Idem.
Gazeta de Notcias. 23/02/1885. Biblioteca Nacional, Seo de Peridicos.
407
Idem.
406
223
Porm, duas pginas seguintes da mesma edio do jornal, uma pequena nota trs
complicaes para essa interpretao:
S. Cucumby Carnavalesco
Declaro que a sociedade no se fez representar junto ao bando que em favor das vtimas de Andaluzia
esmolaram hoje, e s por surpresa viu o seu estandarte figurar nesta festa de caridade.
Secretaria, 22 de fevereiro de 1885. O secretrio, Carlos Macedo da Silva Junior.408
Essa carta abre duas possibilidades analticas. Primeiramente, apresenta uma questo de
difcil explicao: quais motivos levaram a S. Cucumbi Carnavalesco se pronunciar
publicamente negando sua participao em ato to nobre? Por que preferir manter-se parte
desse prstito? Atualmente no possuo mais informaes que permitam uma resposta
satisfatria para esse mistrio. Contudo, inmeras possibilidades me ocorrem: outro grupo
Cucumbi desfilou e o jornal confundiu os nomes? Ou ento o estandarte foi carregado sem o
consentimento da secretaria do clube, demonstrando heterogeneidade interna? A negao
veemente demonstra um desejo de manter autonomia e distino em relao s demais
sociedades? Os limites das fontes no permitem avanarmos para alm das interrogaes,
nesse momento.
Entretanto, a segunda contribuio dessa carta representa a possibilidade de
confirmarmos que os Cucumbis possuam uma organizao complexa, nos moldes das demais
sociedades carnavalescas. A nota presente na Gazeta de Notcias assinada pelo secretrio
Carlos Macedo da Silva Junior e enviada pela secretaria do clube. Era preciso capital
financeiro para publicar no jornal, mas, alm disso, era necessrio dominar a escrita. Possuir
um secretrio implica a consequente formao de uma diretoria, da arrecadao de verba, de
uma sede, de estatutos.
Portanto, os membros dos Cucumbis Carnavalescos trazem para o carnaval carioca
uma expresso cultural baseada na fuso e transformao de inmeras referncias africanas e
s carnavalizam positivamente. Essa frica negra e positiva disputa espaos com as grandes
Sociedades Carnavalescas e outros grupos populares que tentam se inspirar no modelo
europeu de carnaval. importante ressaltarmos que esses folies dos Cucumbis, poderiam ter
escolhido outras formas, entretanto, preferem deliberadamente trazer s ruas uma
manifestao que seria prontamente associada ao passado africano tanto pelas autoridades e
408
224
pela imprensa quanto pelos seus iguais. Celebravam, desta maneira, a fora de toda uma
complexa trama de smbolos e tradies ligadas a um passado africano, reelaborado a partir
dos contatos com as sucessivas geraes crioulas e com as transformaes sociais cariocas.
225
411
226
Consideraes Finais
Diabinhos e Cucumbis no eram novidades carnavalescas na dcada de 1880. Seus
nomes e mesmo sua imagem eram muito semelhantes a antigas formas de brincadeiras
festivas. Diabinhos j apareciam em procisses religiosas no perodo colonial, assim como os
Cucumbis j desfilavam com seu rei Congo pelo Brasil a fora muito antes de tornarem-se
carnavalescos.
Contudo, o imprescindvel para qualquer historiador, principalmente para aqueles
que se debruam sobre temas classicamente analisados por antroplogos, folcloristas e
jornalistas, como o caso do Carnaval, ter sempre em mente duas advertncias feitas por
historiadores sempre inspirados. A primeira delas foi escrita por March Bloch em sua
Apologia da Histria: para grande desespero dos historiadores, os homens no tm o hbito,
a cada vez que mudam de costumes, de mudar de vocabulrio412. A segunda advertncia nos
foi legada por E. P. Thompson: todo significado um significado-dentro-de-um-contexto e,
enquanto as estruturas mudam, velhas formas podem expressar funes novas, e funes
velhas podem achar sua expresso em novas formas 413
Por mais que fantasias e formas culturais se repitam, ou que a represso e combate a
certos sujeitos se mantenha, preciso encarar esses elementos a partir de seu prprio
contexto, suas relaes sociais, conflitos e alianas. A manuteno ou transformao de
formas artsticas, ldicas, ou de costumes e prticas est sempre dialogando com a vida
material e a consequente experincia cotidiana dos indivduos envolvidos.414
Desta maneira, fantasiar-se de diabinho ou organizar um Cucumbi na dcada de 1880
no Rio de Janeiro tem significado diverso de faz-lo em outra poca ou em outro lugar. Tentei
nessa dissertao descortinar ao mximo as experincias carnavalescas desses sujeitos,
levando em conta as atuaes de variados grupos sociais, e suas relaes muitas vezes
conflituosas, como por exemplo, com a imprensa e as foras repressivas da cidade.
Ainda h inmeros outros caminhos de atuao empreendidos pela populao negra
do Rio, no contexto do processo abolicionista, a serem estudados. Acredito que, assim como
412
BLOCH, March. Apologia da Histria ou O Ofcio do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor,
2002. P. 59
413THOMPSON. E. P. Folclore, Antropologia e Histria Social. IN: Antonio Luigi Negro & Sergio Silva
(orgs.) As peculiaridades dos Ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. P. 243
414
THOMPSON, E. P. O termo ausente: experincia In: A Misria da Teoria ou um planetrio de erros.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1981.
227
415
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma histria social do carnaval carioca entre 1880 e
1920. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
228
mantendo sua tradio crioula, aberta a novas possibilidades, iro se recriar de acordo com as
novas necessidades festivas e sociais na nascente Repblica.
Ambos os exemplos nos ajudam a refletir sobre o cenrio poltico cultural da cidade
nessa dcada. A runa do sistema escravista caminhava concomitantemente com a ascenso
do carnaval como festa nacional e permissiva (apesar da intensa represso policial). Ou seja, o
conceito de liberdade era alardeado mais do que nunca. Contudo, seus significados eram por
demais variados para que qualquer grupo conseguisse manter algum tipo de hegemonia
semntica. Tanto escravos quanto negros livres e libertos estavam sendo afetados por esses
debates, como to bem nos mostrou Sidney Chalhoub em Vises da Liberdade, e interferiram
em seu processo416.
O carnaval foi sendo construdo nessa dcada como espao de expresso de crticas e
posies polticas, alm da loucura, do humor e da sensualidade, tambm elementos
constitutivos de sua imagem. Esse conjunto de caractersticas era potencializado pelo perodo
praticamente sem trabalho ou demais responsabilidades, to marcante na festa carioca, que
durava oficialmente de domingo a tera-feira (mas que na prtica iniciava-se sbado e
prolongava-se at a quarta-feira de cinzas).
No eram apenas os representantes do Z-Povinho que valorizavam essas
caractersticas do carnaval. Os membros das elites intelectuais e polticas em sua maioria
esmagadora defendiam o carnaval como tempo da loucura e inverso, e muitos o viam como
uma vlvula de escape para os estresses de um ano inteiro. Assim, o carnaval do Rio emanava
uma aura de permissividade e tolerncia, apesar de na prtica se manterem os mecanismos de
represso e excluso. Por isso mesmo, no foi raro a transferncia de prticas que ocorriam
em outros perodos do ano para os dias de Momo, sobretudo quelas majoritariamente
negras.417 Buscavam maior tolerncia e espao para suas festas, e o carnaval aparecia como o
espao propcio.
Chamo ateno para esse ponto, pois gostaria de ressaltar que a existncia de grupos
negros no carnaval no exclusividade brasileira. Muito pelo contrrio, est presente em
416
CHALHOUB. Vises da Liberdade uma histria das ltimas dcadas da escravido na Corte. So Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
417
ABREU, Martha Campos. O Imprio do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. So Paulo: Nova Fronteira, 1999.
229
praticamente todas as antigas colnias catlicas das Amricas, e mesmo em algumas regies
de colonizao protestante.418
Robin Moore, ao estudar o carnaval da cidade de Havana, em Cuba, no final do
sculo XIX e incio do XX, afirma que os diablitos eram os preferidos dos costumbristas, e
no carnaval de Trinidad, as Devil Bands tinham papel importante, assim como na
Venezuela ainda hoje esto presentes.419
Ainda cedo para concluses sobre a recorrncia da fantasia de diabo nos carnavais
de regies com grande presena negra nas Amricas. Mas a comparao til para
entendermos melhor o processo carioca.
Em Cuba, Robin Moore afirma que o desdm aberto contra as formas culturais de
matriz africana pelas classes mdias brancas frequentemente serviu como meio para justificar
o preconceito racial contra os afro-cubanos420. Nas trs ltimas dcadas do sculo XIX as
autoridades cubanas empreenderam uma poltica repressiva contra tais prticas, sobretudo
contra as Comparsas421. As Comparsas eram grupos formados por negros a partir de
irmandades, vizinhana, trabalho, que saam na festa do Dia de Reis. Entretanto com a
represso a essa festa, tais grupos migraram para o Carnaval no final do sculo XIX. Processo
semelhante ao ocorrido com as folias e ranchos de reis no Brasil, assim como os Cucumbis
carnavalescos. No entanto essa comparao ter que ficar para outra pesquisa.
Com a abolio da escravido em 1886, somada luta pela independncia, cuja
vitria em 1898 se deveu muito a participao dos afro-cubanos, e com o sufrgio universal
masculino em 1902, os afro-cubanos esperavam um amento na integrao social e econmica.
A partir de ento, o carnaval foi tomado por suas Comparsas e diablitos 422.
418
Em Nova Orleans, no Sul dos EUA, o Mardi Gras (Tera Gorda) permanece ainda hoje como uma festa
central para a cidade. MICTHELL, Reid. Significando: carnaval afro-creole em New Orleans do sculo XIX e
incio do XX In: CUNHA (org.). Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de histria social da cultura. So
Paulo, Editora da Unicamp, Cecult, 2002.
419
MOORE, Robin. Comparsas and Carnival in the New Republic: Four decades of cultural controversy. IN:
Nationalizing Blackness: afrocubanismo and artistic revolution in Havana, 1920-1940. University of
Pittsburgh Press, 1997. KONINGSBRUGGEN, Peter van. The history of the Trinidad Carnival in the
nineteenth century. In: Trinidad carnival: a quest for national identity. Warwick University Caribbean
studies.
420
MOORE. Op. Cit. P. 63
421
Idem.
422
Idem. At ento era proibida a participao de comparsas de negros no carnaval.
230
Com isso a questo do lugar dos afro-cubanos e de sua expresso cultural na cultura
nacional tornou-se mais urgente423. Segundo Moore, mesmo os intelectuais mais liberais
como Fernando Ortiz no viam contradio em aceitar retoricamente os negros como
cidados cubanos, enquanto simultaneamente clamavam pela eliminao de todas as
atvicas formas culturais derivadas da frica. A condenao das comparsas, santera,
rumba, abkua serviu como uma das primeiras justificativas para a poltica social racista em
cuba, um meio de perpetuar prticas de descriminao sem admitir ou confrontar
diretamente.424
A ilha de Trinidad, mesmo sendo colnia britnica a partir do final do sculo XVIII,
teve 300 anos de ocupao espanhola e permanente migrao de franceses, sobretudo aps a
revoluo do Haiti, juntamente com muitos escravos e negros livres de outras ilhas do caribe,
fazendo com que a ilha, mesmo sob domnio de uma coroa protestante, tivesse uma festa
carnavalesca pujante, at os dias de hoje.
Em seu carnaval formaram-se grupos (bands) com entre cinco e 20 stick fighters
que saam no carnaval para duelar com outros grupos esta prtica era conhecida como
Calinda. interessante notar que at a abolio da escravido em 1834, o carnaval estava
restrito s mos brancas da elite proprietria da ilha. Aps a emancipao, os libertos
tomaram a festa e a transformaram, dotando-a de novos sentidos. O Camboulay, uma stira
dos brancos sobre o mundo dos negros na plantation, foi capturado pelos libertos e fundido
com a Calinda ao longo das dcadas. Tornou-se, desta forma, um importante instrumento de
violncia e presso nas mos do proletariado urbano, organizado em grupos (bands) que
existiam por todo o ano e saam s ruas no carnaval.425
A partir dos anos 1860 o carnaval foi dominado pelas yard bands, formadas nos
subrbios da cidade de Porto de Espanha, capital da Ilha. As condies de vida eram muito
difceis, moravam em casas de madeira, dividas em quartos onde moravam famlias inteiras,
sem privacidade, com constante disputa por gua e pelo uso de banheiros. Tais disputas eram
refletidas tambm nas formas artsticas: desafios verbais e fsicos (com cacetes).
significativa a semelhana com a formao das maltas de capoeira no Rio de
Janeiro. Sua formao levou em conta parquias e vizinhana, alm de possurem grande
423
Idem. P. 68
Idem . p. 68
425
KONINGSBRUGGEN. Op. Cit. P. 18
424
231
426
427
Idem.
Idem.
232
428
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234
inmeros outros folies negros, nos dias do carnaval, brindando a expectativa de liberdade e
cidadania ps-abolio. Mesmo que no explcita ou conscientemente, esses grupos
contriburam para o amadurecimento de uma cultura poltica da liberdade na Corte carioca,
onde o humor, a festa, a stira, a dana, as brincadeiras, e mesmo doses de violncia e
desrespeito s leis foram elementos centrais. Para alm da abolio, essa cultura poltica
continuou informando aes carnavalescas e sociais por muitas dcadas na cidade do Rio de
Janeiro. Porm, os caminhos ps-abolio e as comparaes com outros processos no
Atlntico Negro tero que aguardar carnavais futuros, pois esta dissertao j chegou sua
quarta-feira de cinzas.
235
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Posturas e Editais:
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ndice Remissivo
A
abolio, 55, 56, 77, 90, 104, 118, 120, 130, 144, 161,
165, 240
abolicionismo, 122, 143, 163
Angelo Agostini, 73, 121, 122, 147, 148, 153, 161, 215
C
Cmara Municipal, 33, 35, 36, 37, 90
capoeira, 125, 132, 133, 134, 140, 143, 146, 164
capoeiras, 47, 49, 75, 128, 129, 132, 134, 135, 136, 142,
145, 147, 148, 149, 153, 154, 159, 160, 247
carnaval, 18, 20, 28, 30, 31, 36, 46, 47, 52, 53, 54, 55,
56, 57, 58, 59, 60, 69, 70, 71, 73, 75, 80, 84, 85, 90,
92, 104, 106, 108, 117, 120, 121, 122, 124, 125, 126,
128, 131, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 143, 144,
145, 146, 149, 150, 153, 154, 159, 160, 161, 162, 163,
164, 165, 169, 228, 242
Casa de Deteno, 68, 69, 70, 72, 75, 76, 77, 80, 84, 104,
106, 107, 134, 144, 146, 164
classes perigosas, 118, 119, 121
Corte, 17, 28, 35, 48, 49, 68, 70, 72, 75, 83, 90, 106, 118,
122, 128, 130, 132, 134, 137, 149, 150, 157, 160, 164,
229, 241, 247
crioulizao, 132
crioulo, 59, 69, 78, 129, 130, 132, 136, 147, 150
Cucumbis, 0, 1, 3, 9, 24, 26, 46, 50, 52, 53, 54, 61, 62, 91,
105, 144, 163, 167, 168, 169, 170, 175, 176, 178, 182,
183, 184, 186, 187, 188, 189, 190, 193, 196, 198, 201,
202, 203, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213,
214, 217, 218, 219, 224, 225, 226, 227, 228, 230, 234
D
diabinho, 55, 58, 59, 106, 107, 108, 117, 120, 123, 125,
126, 127, 135, 144, 145, 163
diabinhos, 48, 50, 52, 54, 56, 59, 77, 106, 107, 108, 117,
118, 120, 121, 122, 123, 124, 126, 128, 129, 145, 146,
147, 151, 152, 153, 159, 161
diabo, 59, 107, 108, 109, 129, 130, 139, 160, 161
diabos, 48, 50, 107, 108, 109, 128, 129, 132, 134, 136,
138, 145, 146, 147, 154, 160, 163, 164
domins, 50, 124, 139
E
entrudo, 33, 36, 47, 55, 58, 73, 74, 75, 128, 130, 161
G
Gazeta da Tarde, 29, 30, 35, 74, 75, 122, 125, 126, 141,
143, 144, 150, 160
Gazeta de Notcias, 52, 55, 57, 58, 59, 60, 70, 73, 106,
122, 123, 124, 125, 128, 129, 136, 139, 141, 144, 146,
153, 161
Grandes Sociedades Carnavalescas, 53, 58
Guerra do Paraguai, 49, 147, 148, 246
J
Jornal do Comrcio, 35, 59, 60, 79, 141, 142
L
liberdade, 17, 29, 30, 31, 49, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 61,
90, 118, 122, 126, 128, 137, 138, 142, 143, 144, 145,
146, 148, 149, 150, 151, 163, 165, 242, 244
Luiz Edmundo, 51
M
mscara, 47, 50, 52, 106, 122, 123, 125, 161, 162
mscaras, 47, 48, 50, 55, 109, 122, 124, 128, 139, 142,
145, 164
movimento abolicionista, 29, 31, 50, 89, 144
N
Nabuco, 29, 30, 90, 144
nao, 47, 54, 69, 136, 160, 161
P
Patrocnio, 29, 30, 144
princezes, 50, 51, 70, 122, 124, 126
R
racializao, 61, 68, 118, 130
Revista Ilustrada, 29, 30, 73, 74, 121, 123, 145, 146, 152,
154, 164, 165
Rio, 17, 20, 22, 28, 30, 33, 35, 36, 37, 47, 48, 49, 50, 51,
52, 54, 55, 57, 60, 61, 69, 70, 73, 75, 77, 78, 79, 84,
104, 106, 107, 110, 120, 121, 123, 127, 130, 131, 132,
133, 142, 147, 148, 153, 159, 165, 195, 215, 229, 238,
239, 240, 242, 243, 244, 247
Rua do Ouvidor, 28, 35, 36, 50, 56, 57, 58, 90, 106, 124,
128, 145, 163
249
T
Tenentes do Diabo, 74, 75, 90
Z
Z-Povinho, 35, 46, 50, 76, 122, 130, 163
V
velhos, 48, 50, 51, 57, 122, 123
250