3 Artículo - Embriaguez Ao Volante
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RESUMO
ABSTRACT
The research intends to analyze what is the understanding of the Brazilian Superior Court of
Justice (STJ) about the aggravation of the risk of the automobile insurance contract, due to
drunkenness, independently of a third party, and the (im)possibility of losing the insurance
guarantee. Preliminarily, there was a brief review of the principles of the social function of the
contract, objective good faith, and the institute of the insurance contract, highlighting its main
nuances and basic concepts. Then, in the light of contemporary contractual principles, a para-
digmatic case was analyzed, also making a parallel with previous doctrinal and jurisprudential
understandings and conjecturing possible different developments for the case. It was concluded
that, in the understanding of the STJ, the mere finding of drunk driving, including the fault of
a third party, can generate the loss of the insurance guarantee, and it is the responsibility of the
insured to prove the inexistence of a causal link related to the aggravation of the risk. The re-
search methodology is documentary, bibliographical, doctrinal and qualitative.
Keywords: Social function of the contract. Objective good faith. Car insurance. Brasilian Su-
perior Justice Tribunal. Special resource.
INTRODUÇÃO
É deveras instigante pensar no Direito e em suas reinvenções constantes, já que ele é, certa-
mente, uma das ciências que mais opera mutações à curto/longo prazo. Caminha nesse sentido,
também, a seara jurídica contratual, sendo um exemplo inconteste o julgamento de um caso
paradigmático pelo Superior Tribunal de Justiça Brasileiro: o AgInt no Agravo em Recurso
Especial Nº 1039613. Indaga-se o motivo, e a resposta se encontra na hermenêutica dos opera-
dores do direito, que está em constante evolução, bem como no uso da técnica de relativização
na interpretação das normas, em desarmonia a perspectiva meramente literal do texto legal.
Tal relativização urge com o escopo de atender e privilegiar a principiologia contratual contem-
porânea, fundamentada no protagonismo da boa-fé objetiva e da função social dos contratos,
que impõem limites à liberdade contratual, isto é, à autonomia privada dos contraentes. A boa-
fé é sintetizada no dever de honestidade, lealdade e confiança entre as partes. Por outro lado,
a função social é observada quando o contrato não impacta negativamente a esfera individual
de terceiros, noutros termos, a coletividade, por efeito do princípio da relatividade dos efeitos
contratuais.
Ademais, sabe-se que as revoluções tecnológicas tornaram a vida mais “fácil”, embora mais
perigosa, semeando a indispensabilidade de contratos de seguro para contornar eventuais si-
tuações de risco, à exemplo do seguro de automóvel. Nessa perspectiva, os princípios supraci-
tados devem nortear, também, essa espécie de contrato, sendo a única que detém previsão legal
específica nesse sentido, presente no art. 765 do atual Código Civil Brasileiro - 2002.
tário do carro) no agravamento do risco do contrato por terceiro condutor. Ou seja, pergun-
ta-se: apenas a culpa do segurado na ocorrência do sinistro pode acarretar a perda da garantia
securitária? A moldura interpretativa do art. 768 pertencente ao Código Civil Brasileiro poderá
ser ampliada? Pois bem. Não há, ainda, consolidação legal-formal do entendimento, gerando
decisões desconformes entre os tribunais.
Não obstante, o julgamento do AgInt no Agravo em Recurso Especial Nº 1039613, que serviu
de paradigma para decisões posteriores, é basilar ao entendimento desse tema, fato que, indis-
cutivelmente, influenciou a escolha e o caminho da pesquisa. É que, tal conjectura é contumaz
no cotidiano de diversas empresas desse ramo, bem como vislumbrada no crescimento expo-
nencial do número de acidentes de trânsito no Brasil, fruto da irresponsabilidade dos conduto-
res. Isto posto, há premência e urgência em disseminar essas discussões.
Ante o exposto, o objetivo geral é demonstrar qual o entendimento do STJ acerca da (im)pos-
sibilidade de perda de garantia securitária de automóvel, em virtude de agravamento do risco
por embriaguez de terceiro ao volante, a partir da principiologia contratual contemporânea
brasileira. Seguidamente, os objetivos específicos são, primeiramente, compreender o que são,
como se manifestam e quais são as implicações práticas dos princípios da boa-fé objetiva e da
função social do contrato. Segundamente, discutir sucintamente os principais aspectos relativos
ao contrato de seguro, em especial o de veículo.
O terceiro é analisar o entendimento adotado pelo STJ no AgInt no Agravo em Recurso Espe-
cial nº 1039613, sobretudo quanto a perda ou manutenção da garantia securitária de automóvel
no caso de agravamento do risco por embriaguez, a partir da análise dos fundamentos utiliza-
dos no decisium. Por fim, tem-se o propósito de examinar decisões e entendimentos de demais
tribunais, com o escopo de realizar um paralelo com a linha de decisão adotada pelo STJ, bem
como conjecturar possíveis desdobramentos distintos para o mesmo caso.
Dessa forma, com esse artigo, espera-se demonstrar que a imposição de limites ao direito e a
liberdade dos segurados (consumidores) é necessária, em razão dos princípios e da natureza dos
contratos, sob prejuízo de gerar prejuízos à sociedade e aos segurados como um grupo coletivo.
METODOLOGIA
Quanto ao aspecto metodológico, a pesquisa será de tipo doutrinária, reunindo uma parcela
teórica, e outra dogmática. Ademais, terá natureza qualitativa, porquanto através de uma abor-
dagem dos conceitos que envolvem os princípios da boa-fé objetiva e função social do con-
trato, além de leis, jurisprudências e julgados sobre o tema, estes serão analisados a partir dos
contornos do julgamento do AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1039613, pelo Superior
Tribunal De Justiça Brasileiro.
Nesse viés, o método de abordagem será o indutivo, já que a partir do exame do julgado em
específico, e de precedentes jurisprudenciais similares, será possível chegar à tese de que há
possibilidade de perda da garantia securitária, quando agravado o risco do contrato por embria-
guez, independentemente de terceiro condutor, tendo, essa questão, eficácia e aplicabilidade
geral.
DESENVOLVIMENTO
Segundo Stolze e Pamplona Filho (2020, p. 608), o contrato é “um negócio jurídico por meio
do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva,
autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas
próprias vontades”. Nesse viés, pelos motivos a serem expostos ulteriormente, o foco da pre-
sente análise repousará nesses dois princípios.
Além do mais, considerando a correlação direta entre o direito de propriedade e a seara con-
tratual, a partir da redemocratização e formação do Estado Democrático de Direito, mutações
ocorridas após a Carta Magna de 1998 no âmbito conceitual do primeiro, repercutiram direta-
mente no âmago do segundo.
Nesse sentido, Pablo Stolze et al. (2019, p. 97) afirmam que “socializando-se a noção de pro-
priedade, o contrato, naturalmente, experimentaria o mesmo fenômeno (...)”. Tal socialização é
consagrada pelo artigo 421, caput, do Código Civil de 2002, ulterior à nova redação dada pela
Lei 13.874/ 2019, que dispõe: “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social
do contrato” (Lei 10.406, 2002).
Nas palavras de Flávio Tartuce (2020), desse comando legal são retirados três aspectos basila-
res. O primeiro é relacionado à consagração do princípio como um preceito de ordem pública.
Por consequência, o parquet deve intervir e o juiz pode conhecer de ofício. Concomitantemente,
ratifica a correlação entre função social da propriedade e dos contratos, bem como permite a
retroatividade motivada ou justificada do princípio aos contratos celebrados antes da vigência
do novo diploma civil, e que continuam gerando efeitos atualmente.
Ademais, Eduardo S. Santos (2002, p. 29) ao tratar sobre os efeitos do contrato à todas as esfe-
ras da sociedade, defende que
É preciso atentar para os seus efeitos sociais, econômicos, ambientais e até mesmo
culturais. O contrato somente terá uma função social – uma função pela sociedade
quando for dever dos contratantes atentar para as exigências do bem comum, para
o bem geral. Acima do interesse em que o contrato seja respeitado, acima do inte-
resse em que a declaração seja cumprida fielmente e acima da noção de equilíbrio
meramente contratual, há interesse de que o contrato seja socialmente benéfico. .
Isto posto, compreende-se que a função social é extensão do princípio da relatividade dos efei-
tos contratuais, que prevê que os efeitos do contrato não podem gerar obrigações de natureza
negativa para terceiros. Dessarte, o contrato não deve afetar ou lesar interesses coletivos, di-
fusos, sociais e metaindividuais, acerca dos quais não têm os contratantes a disponibilidade
(Coelho, 2020).
Ademais, como corolário do termo “exercida nos limites da função social do contrato” (art. 421
do CC/2002), têm-se o surgimento do conceito de autonomia (privada) solidária, corresponden-
te a união entre liberdade e função social do contrato, no ponto em que ambas coexistem e se
equilibram. (Martins-Costa, 2007, p. 71).
Isto posto, ressalte-se que um princípio não anula necessariamente o outro. É preciso, no entanto,
que o equilibro entre ambos prevaleça, e o exame de ponderação principiológica solucione even-
tuais colisões, in casu, que perturbem a harmonia entre a tríade. Ademais, coadunando com simi-
lar linha de raciocínio, Stolze et. al (2019, p.100) são enfáticos: “com isso, repita-se, não se está
pretendendo aniquilar os princípios da autonomia da vontade (ou autonomia privada) ou do pacta
sunt servanda, mas, apenas, temperá-los, tornando-os mais vocacionados ao bem-estar comum”.
Os interesses coletivos ou sociais não anulam os individuais, embora estes não possam con-
trariá-los. Assim, embora o indivíduo seja responsável pela criação do contrato, é no seio da
sociedade que o contrato será executado e receberá uma noção de medida e equilíbrio (Miguel
Reale, 1986).
Em síntese, o contrato atenderá efetivamente à sua função social quando, respeitada a autono-
mia privada, privilegiar sobretudo a dignidade humana, reconhecer uma cláusula implícita de
boa-fé objetiva, zelar pelo meio ambiente, respeitar o valor social do trabalho (Stolze et al.,
2020).
Cícero, filósofo e jurista português, afirmou que a boa-fé objetiva consiste no dever de hones-
tidade, e na confiança recíproca das partes acerca da retidão de suas condutas (Lôbo, 2020). A
boa-fé objetiva é, por isso, uma regra de conduta, visto que estabelece os ditames pelos quais os
contratantes devem se submeter. Nesse sentido, determina que os segurados “ajam de modo a
evitar a concretização dos riscos protegidos, tudo com a finalidade de manutenção do equilíbrio
econômico do fundo mutual” (Calvert, 2015, p. 171).
Nas relações contratuais, os indivíduos confiam uns nos outros, máxime na conduta honesta,
idônea, lícita e leal, ansiando que suas expectativas sejam preenchidas. Outra característica
desse princípio é a sua presunção pelo operador do direito, ao passo que a má-fé necessita de
comprovação por quem a alega.
Logo, ao dispor que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”, o art. 422 do Código Civil de 2002
imputa o princípio à ambos os contratantes, e não somente ao devedor ou credor individual-
mente (Lei 10.406, 2002). Além disso, o dispositivo associa a boa-fé objetiva ao princípio da
probidade, que consiste no dever das pessoas de cumprir honestamente com as suas atribuições.
Sabe-se que a boa-fé objetiva deve alcançar o comportamento do agente antes, durante e em
momento posterior ao fim do negócio jurídico. Dessa forma, Lobo (2020, p. 87) aduz que “a
boa-fé não apenas é aplicável à conduta dos contratantes na execução de suas obrigações, mas
também aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebração (in contrahendo) ou
após a extinção do contrato (post pactum finitum)”.
Para mais, a regulamentação legal da boa-fé não se limita ao supracitado artigo 422 do CC,
visto que se insere em outros dois, quais sejam, o art. 113 do CC: “os negócios devem ser in-
terpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” (Lei 10.406, 2002); e art.
187 do CC: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede ma-
nifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes” (Lei 10.406, 2002).
Ademais, é imperioso realizar uma distinção entre a boa-fé subjetiva e objetiva. A primeira remete
ao aspecto psicológico, ou seja, é o princípio que protege o estado de ignorância dos indivíduos
quanto a determinados fatos, já que, por vezes, estes agem em desconformidade com o direito,
sem ter a consciência do ato ilícito. A segunda, mais presente na seara obrigacional, é cláusula
geral e não somente princípio. Logo, nas palavras de Carlos R. Gonçalves (2020, p. 55):
No mais, a boa-fé tem, ainda, função limitadora, vez que pode vedar ou aplicar sanção ao exer-
cício de direito subjetivo, ante o abuso de posição jurídica, a partir de conceitos correlatos ao
princípio da boa-fé objetiva, quais sejam, venire contra factum proprium, suppressio, surrectio
e tu quoque, que não serão aqui dissecados, notadamente por não serem o objeto central do
presente artigo.
2. CONTRATO DE SEGURO
Por depender de evento futuro e incerto, é um pacto de natureza aleatória, além de ser um con-
trato de adesão, visto que as cláusulas contratuais da apólice já são padronizadas pelo segura-
dor, restando ao segurado a aceitação ou a dispensa, motivo pelo qual é, também, consensual.
Ressalte-se, ademais, a diferença entre risco e sinistro na seara contratual. O primeiro é a possi-
bilidade de ocorrência de determinada situação funesta, já prevista pelo instrumento contratual.
Por outro lado, o sinistro é a própria ocorrência, a hipótese transfigurada em realidade e vislum-
brada no caso concreto. Isto posto, não havendo risco, o contrato de seguro é nulo, porquanto
perde o seu objeto. Similarmente, tendo o segurado, antes da celebração do contrato, consciên-
cia da ocorrência certa do sinistro, não terá direito ao ressarcimento pela seguradora.
Dentro dessa seara, e regulamentado pelos arts. 778-785, o seguro de dano protege o bem de
eventuais riscos. Seguidamente, o contrato de seguro de veículos se encontra dentro daquele
tipo contratual, e visa indenizar o segurado por eventual perca/roubo, destruição ou reparação
de veículos de propulsão a motor. No entanto, há possibilidade de que haja exclusão de respon-
sabilidade do segurador, por contribuição voluntária do segurado para a ocorrência do sinistro
(Biancas, 2009).
Nesse sentido, o agravamento intencional do risco, dependendo de sua intensidade, poderá afe-
tar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de seguro, fato que, ante a sua concretização,
ocasiona a perca da garantia securitária, em atenção aos princípios outrora discutidos. Logo, o
acidente de trânsito (por força de embriaguez ao volante) é um desses exemplos, presente no
cotidiano forense, sendo objeto de repressão por parte das autoridades públicas, à exemplo da
blitze da Lei Seca, bem como de campanhas de conscientização por parte da população (Cal-
vert, 2015).
DISCUSSÃO
É imperioso, preliminarmente, construir um breve relatório do caso. J.D.F interpôs agravo in-
terno, após decisão do relator que conheceu do agravo, mas negou-lhe provimento, oportunida-
de em que aplicou a súmula nº 568/STJ, já que o acórdão estava em acordo à jurisprudência do
STJ, “no sentido de que, demonstrado que o agravamento do risco pela embriaguez contribuiu
efetivamente para a ocorrência do sinistro, fica a seguradora exonerada de pagar a indenização”
(AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1039613, 2020, p. 04).
O art. 768 do Código Civil Brasileiro dispõe que “o segurado perderá o direito à garantia
se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato” (Lei 10.406, 2002). No entanto, a
decisão do ministro em sede de análise do recurso foi fundamentada da seguinte forma: uma
vez inequívoca a embriaguez, bem como o agravamento do risco como consequência direta,
inclusive por 3º condutor, gerando a ocorrência do sinistro, a seguradora se desincumbiu do
ônus indenizatório, corolário do contrato de seguro. Logo, evidenciou-se que a conduta de
dirigir embriagado/sob uso de substâncias psicoativas, por si, agravam extremamente o risco
de acidentes.
Por outro lado, amparado em divergente interpretação do art. 768 supra, em suas razões, o
agravante ratificou que, malgrado tenha sido comprovado que o agravamento do risco pela em-
briaguez gerou a ocorrência do sinistro, não foi o proprietário do carro, isto é, o segurado, o pro-
tagonista do acidente, já que era seu filho que estava dirigindo o automóvel. Assim, defendeu
que somente a conduta ilícita de autoria do próprio agravante (mediante dolo ou culpa) poderia
ensejar a perda da indenização, porquanto “não configura agravamento do risco imputável ao
próprio segurado” (AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1039613, 2020, p. 04).
Ademais, ante a inocorrência da primeira hipótese, a permissão dada a terceiro para dirigir veí-
culo (ressalte-se, embriagado) também importa em responsabilização do proprietário/segurado.
No entanto, “a responsabilidade do segurado esgota-se tão só com a entrega das chaves ao ter-
ceiro” (AgInt no Agravo em Recurso Especial Nº 1039613, 2020, p. 05).
Logo, a lógica do onus probandi foi invertida. O tribunal, aprioristicamente, entendia que so-
mente a ingestão de alcoólicos, aliada a direção, não ensejaria a aplicação do referido art. 768
do Código Civil, tendo em vista a necessidade de comprovação dos requisitos mencionados.
No entanto, o ministro defendeu que há presunção relativa de agravamento do risco do sinistro
nessa situação, estado físico-psíquico que compete a seguradora comprovar, restando ao segu-
rado, doutro ponto, afastar o nexo de causalidade, ou seja, comprovar que, por outra(s) razão
(ões), o sinistro também ocorreria.
Não é oportuno utilizar indevidamente o instituto do ilícito culposo para elidir a hipótese do
artigo retro na interpretação do caso. É imperiosa a atenção a teleologia e axiologia da norma,
dispensando a sua interpretação literal. Por óbvio, no caso, o indivíduo não teve a pretensão
direta de causar o acidente. Entretanto, haja vista o número de acidentes de trânsito no Brasil,
ao permitir que o filho dirija em estado de embriaguez, o autor aceitou tacitamente a ocorrência
do sinistro como possível ou provável.
Logo, para além de culpa (in eligendo e vigilando), ele poderia incorrer, a depender da in-
terpretação do magistrado, na hipótese do art. 18, in fine, do CP (dolo eventual), afirmando
o ministro em seu voto que, por isso, “a configuração do risco agravado não se dá somente
quando o próprio segurado se encontra alcoolizado na direção do veículo, mas abrange também
os condutores principais (familiares, empregados e prepostos)” (AgInt no Agravo em Recurso
Especial nº 1039613, 2020, p. 09).
Seguidamente, para fundamentar o caminho que palmilhou no caso, o relator passou a análise
dos princípios norteadores das relações contratuais, notadamente em razão da inversão da or-
dem dos fatores (que, fora da matemática, pode alterar o resultado) e da divergência com a ju-
risprudência do próprio STJ. Nessa perspectiva, em primeiro plano, fez menção direta a função
social do contrato.
O contrato de seguro não observa efetivamente a sua função social, se divergir da valorização
da segurança viária e da própria “vida”, da observância às normas de trânsito, penais e adminis-
trativas, sem olvidar da conduta ética, responsável, solidária e empática. Assim, o Direito Se-
curitário “não pode servir de estímulo para a assunção de riscos imoderados que, muitas vezes,
beiram o abuso de direito, a exemplo da embriaguez ao volante” (AgInt no Agravo em Recurso
Especial nº 1039613, 2020, p. 08).
Por isso, a garantia de ter um seguro não pode permitir que o indivíduo permaneça em sua
“zona de conforto”, driblando reiteradas condutas ilícitas por sua própria torpeza, bem como se
beneficiando do fato de não ser o próprio segurado. Do contrário, o Direito Securitário serviria,
segundo o ministro, “como salvo-conduto para terceiros que queiram dirigir embriagados, o
que feriria, como visto, a função social do contrato de seguro, por estimular comportamentos
danosos à sociedade” (AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1039613, 2020, p. 09).
Logo, em atenção a função social do contrato securitário, deve-se exigir do terceiro condutor os
mesmos deveres ínsitos a conduta do segurado, sob prejuízo deste último ser responsabilizado
igualmente pelo agravamento intencional do risco. Para mais, quanto ao princípio da boa-fé
objetiva, que estabelece um padrão de conduta ético aos indivíduos, o art. 765 do Código Civil
Brasileiro (2002) consigna que “o segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão
e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como
das circunstâncias e declarações a ele concernentes” (Lei 10.406, 2002).
A boa-fé deve estar presente em todas as fases do contrato de seguro. Nessa esteira, conside-
rando que nas relações contratuais os indivíduos confiam na conduta honesta, idônea e leal
recíproca, quando o segurado ingere álcool e dirige (ou empresta o veículo a terceiro que age
igualmente), prejudica a confiança precípua e ínsita ao contrato securitário, desequilibrando a
relação risco-prêmio estabelecida e ferindo a boa-fé objetiva do segurado.
Por fim, aplicando o novo entendimento ao caso, decidiu por negar provimento ao recurso,
diante da inafastabilidade da culpa aplicada ao segurado, que permitiu que seu filho dirigisse
seu carro em estado de embriaguez. Isto posto, determinou a aplicação da “penalidade prevista
no art. 768 do Código Civil, porquanto o segurado não agiu com a cautela necessária ao entre-
gar o carro a seu filho (culpa in vigilando e in eligendo), que se embriagou antes de ter pegado
a direção” (AgInt no Agravo em Recurso Especial Nº 1039613, 2020, p. 13).
As 3 ações são bastante similares ao julgamento base, visto que as controvérsias residiam na
mesma questão. Nesse viés, foi adotado, em todas, o entendimento fixado no julgado anterior-
mente analisado: presunção relativa de agravamento de risco ao contrato de seguro, sobretudo
por força de ingestão de bebida alcoólica, independentemente de configuração de terceiro con-
dutor, em atenção aos princípios da função social e da boa-fé objetiva. Por outro lado, havendo
condições adversas que transcendam o comportamento ilícito do condutor, ou caso entrega do
carro tenha sido efetuada sem o conhecimento do estado de ebriedade do terceiro pelo segura-
do, tais devem ser provadas por este, em razão da inversão do ônus probandi.
Por fim, curioso e instigante é um trecho do voto do ministro relator, que responde a um ar-
gumento apresentado pela parte em suas razões recursais: “o segurado não agiu com a cautela
necessária ao entregar o carro a seu filho (culpa in vigilando e in eligendo), que se embriagou
antes de ter pegado a direção (...)”. Assim, é imprescindível destacar o seguinte: o filho se em-
briagou antes ter pegado a direção, ressalte-se, antes. E, por que esse detalhe é tão importante?
Compreende-se que, certamente, a indenização seria cabível, visto que o fundamento do minis-
tro é justo a culpa in vigilando e in eligendo (vigilância e escolha) do segurado. Noutro contex-
to, que culpa ele teria, direta ou indiretamente? O agravamento do risco existiria, evidentemen-
te, mas não haveria qualquer envolvimento do proprietário. Por força do desconhecimento da
prática da conduta ilícita, ele não teria a oportunidade de agir/impedir, inobstante o agente ser
ou não filho dele.
Além disso, por consequência da condição de desconhecimento do ato, a função social do con-
trato não seria quebrada, já que o segurado não daria causa ao acidente (seja direta ou indireta-
mente, por dolo ou culpa), logo, não seria ele o responsável pelo descumprimento das normas
penais e administrativas. Concomitantemente, a boa-fé objetiva não seria atingida, porquanto
não haveria quebra de confiança/lealdade contratual mútua.
Muito embora não seja oportuna a interpretação restritiva do art. 768 do Código Civil para
salvo-conduto de terceiros condutores, aqui não se discute culpa/dolo, nem intencionalidade ou
dever de responsabilidade. Nesse sentido, não é oportuno que haja relativização desse artigo
para os casos em que há evidente desconhecimento da conduta de terceiro por parte do proprie-
tário. Dessa forma, a decisão mereceria reforma, por não haver substancial razão para condenar
o autor por uma conduta por ele não praticada, nem tampouco consentida. No entanto, como
tal cenário hipotético não restou configurado no caso, a decisão do ministro foi assertiva, pelos
motivos já expostos.
Ademais, considerando que o novo entendimento do STJ defende a presunção relativa de agra-
vamento do risco do sinistro por constatação de embriaguez, por consequência, tem-se como
presumida relativamente a má-fé do condutor, já que a boa-fé e as demais adversidades preci-
sam ser comprovadas. No entanto, o art. 13 do Código Civil Brasileiro dispõe que “os negócios
jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” (Lei
10.406, 2002). Desta feita, a jurisprudência e a doutrina, em conformidade com o dispositivo,
asseveram que a boa-fé se presume, ao passo que a má-fé deve ser, necessariamente, compro-
vada (Lôbo, 2020).
Diante da perspectiva apresentada, a inversão do ônus probandi que fora adotada na decisão
prejudica, deveras, a presunção de boa-fé. Novamente, a ordem dos fatores pode alterar o resul-
tado quando ultrapassa a seara da matemática. Logo, no caso em apreço, aplicada a presunção
de boa-fé, seria destinado a seguradora o ônus (ressalte-se, exclusivo) de prova contrária. Sobre
essa previsão, Tartuce (2019, p. 960) entende que “não se pode atribuir ao segurado pelo sim-
ples fato da embriaguez a intenção de agravar o risco, o que seria presumir de forma exagerada
a má-fé, mesmo no seguro de automóvel”.
Portanto, ela teria o dever de demonstrar que a embriaguez deu causa ao acidente de forma
estrita e determinante, circunstância que teria agravado o risco. Concomitantemente, deveria
provar que o pai tinha conhecimento do estado de ebriedade do filho. Caso contrário, em virtude
de ausência de elementos probatórios substanciais, estes habilitados a ensejar a aplicação do
art. 768 do Código Civil Brasileiro ao caso, a decisão do ministro poderia ter favorecido o se-
gurado/autor, por não se constatar lesão à função social do contrato e a boa-fé objetiva, quando
aplicada tal hermenêutica.
Por fim, é interessante pensar que um detalhe pode revolucionar os rumos de uma decisão com-
pletamente. O direito é construído por miudezas, sendo um quebra-cabeça formado por fatos,
fundamentos e decisões. Cada peça é essencial. E, por efeito dessa singularidade, malgrado
apenas uma seja trocada, o quebra-cabeça é alterado integralmente, ou seja, o cenário muda, as
circunstâncias acompanham, os fundamentos já não sãos mais os mesmos, e o veredito, como
sequela, segue o mesmo caminho.
CONCLUSÃO
Abordou-se, seguidamente, o princípio da boa-fé objetiva, que deve estar presente nas fases
pré-contratual, contratual e pós- contratual, compreendido na exigência de uma conduta leal,
honesta e idônea dos envolvidos, que, reciprocamente, depositam sua confiança no cumpri-
mento da avença, e anseiam que suas expectativas sejam preenchidas. Ademais, foi discutida a
aplicação da função social do contrato e da boa-fé objetiva no caso concreto, a partir da análise
do AgInt no Agravo em Recurso Especial Nº 1039613, de relatoria do ministro Ricardo Villas
Bôas Cueva (STJ) e publicado em outubro de 2020.
Logo, o art. 718 do Código Civil Brasileiro deve ser interpretado conforme os princípios mencio-
nados, afastando-se a exigência de dolo para que se configure agravamento do risco imputável ao
próprio segurado, vez que, ao entregar o carro para terceiro alcoolizado, o segurado aceita indire-
tamente a ocorrência do sinistro como possível ou provável. Dessa forma, tal raciocínio privilegia
a axiologia e teleologia da norma, que encontra guarida na principiologia dos contratos.
No mais, foram analisados julgados de outros tribunais, ora similares, ora distintos, além de
apresentadas duas hipóteses de decisão divergentes, estas relativas ao entendimento apresen-
tado. A primeira é fundamentada na inviabilidade de relativização do artigo 718 retro para os
casos em que há evidente desconhecimento, por parte do proprietário, da conduta de terceiro.
A segunda, por sua vez, é configurada pela tese de inviabilidade de presunção de má-fé. No
entanto, malgrado o amparo jurídico-doutrinário, a tese restou afastada.
Demandas como essa não deixarão de surgir nunca, porquanto o número de acidentes de trânsi-
to cresce cada vez mais. Nesse sentido, situações ulteriores poderão invocar o julgado como ar-
gumento para serem, igualmente, consagradas por e pelo direito. Outrossim, ressalte-se que este
artigo tem o escopo de contribuir para a bagagem de discussões sobre os temas apresentados,
sobretudo por meio da análise de entendimentos jurídicos, decisões, leis e doutrinas, amplian-
do, de fato, o debate já existente. No entanto, não existe intento de esgotar as próximas teses e
correntes acerca do tema, pelo contrário, futuras pesquisas devem aprofundar ainda mais essas
discussões, com o escopo de trazer maior segurança jurídica aos agentes envolvidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS