Bomdiamatriarcado Digital

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#boMdiAMAtriArcado

#boMdiAMAtriArcado

#1
#boMdiAMAtriArcado
Maria Gabriela Saldanha vem alcançando milhares de leitoras, nas redes

#boMdiAMAtriArcado
sociais, com sua escrita voltada para a autonomia e o autoconhecimento
de mulheres, bem como através de seu trabalho com mitos femininos
e oráculos. Neste livro, reúne dezenas de textos veiculados sob a
hashtag #bomdiamatriarcado, que fizeram parte de seu ritual público
e cotidiano, nos recentes anos, de pensar o tema da libertação feminina
em face de toda exploração afetiva e sexual.

A autora aponta o processo de autoconhecimento de mulheres como


sendo o combustível de uma revolução psíquica, e não apenas política,
que está em curso. Para isso, associa o levante feminista de seu tempo a
um imaginário matriarcal. Ao recorrer a um universo repleto de símbolos
e imagens arquetípicas que evocam a força ancestral da mulheridade,
convida-nos a nos lembrar de que somos anteriores ao patriarcado.
Espera que, assim, possamos nos dizer quem de fato somos e despertar
para ocupar nosso espaço no mundo, milenarmente vitoriosas sobre uma
cultura que nos quer ignorantes de nós, andando em círculos, abatidas no
jogo das relações íntimas.

Bom dia, Matriarcado fala sobre a possibilidade de uma nova subjetividade,


não mais sequestrada, mas femeocentrada. Acredita que qualquer mulher
possa romper com os papéis secundários e lugares de domesticação, a
ela reservados pela sociedade, e se colocar corajosamente no centro de
sua vida, pronta para seus sonhos e para compor a transformação social
que precisa chegar. Não apenas identificar e denunciar as violências, mas
saber-se muito maior do que elas. Não apenas resistir, mas reinventar-se.

mariagabrielasaldanha

@mariagabisaldanha

bomdiamatriarcado@gmail.com
#2
#boMdiAMAtriArcado
#boMdiAMAtriArcado

#3
BOM DIA MATRIARCADO

Rituais verbais de libertação emocional

Autora
Maria Gabriela Saldanha

Normalização
Marília Chaves

Direção de Arte, projeto gráfico e


diagramação
Priscila Ramos

1ª Edição-2019

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

S154b Saldanha, Maria Gabriela


#Bomdia matriarcado : rituais verbais de libertação
emocional / Maria Gabriela Saldanha. –– São Paulo :
[S.n.], 2019.
160 p.

ISBN: 978-65-902039-0-8

1. Crônicas brasileiras 2. Feminismo 3. Mulheres – Poder


I. Título
19-2773 CDD B869.8

Índices para catálogo sistemático:

1. Crônicas brasileiras
sumário

Introdução.............................................07

Agradecimentos ....................................08

Matriarcado ...........................................15

Capítulo I...............................................19

Capítulo II .............................................47

Capítulo III ............................................81

Capítulo IV ..........................................117

Posfácio ...............................................149
Fortaleça uma mulher.

Essa obra é propriedade intelectual de Maria Gabriela Saldanha.


Você pode divulgá-la e reproduzir trechos, sem fins lucrativos,
com os devidos créditos. É proibida a venda. Para quaisquer
outros usos ou para saber mais sobre outros escritos e sobre
o trabalho com mitos e oráculos (atendimentos, cursos e
criação de conteúdo) contate a autora. Aí embaixo vão as
informações para contato e redes sociais:

mariagabrielasaldanha

@mariagabisaldanha

bomdiamatriarcado@gmail.com

matriarcaria@gmail.com
Rezas preliminares

#boMdiAMAtriArcado
O feminismo ampliou consideravelmente minha capacidade
de amar mulheres. Individual e coletivamente. Eu hoje
admiro muito mais facilmente aquelas que cruzam o meu
caminho ou que acenam de uma certa distância, como
referências. Torço por todas com mais verdade. Se algo
nelas me incomoda, eu tomo coragem de tentar entender
qual é o espelhamento - exercício que não costuma ser
leve, fácil ou imediato, mas que venho naturalizando até a
musculatura psíquica se habituar.

Volto na memória a diversas situações da vida da minha avó,


da minha mãe, das minhas tias e de minha convivência com
elas e compreendo coisas que jamais pensei compreender.
Peço perdão por ter sido tão ignorante e por tantos anos em
que poderíamos ter sido inegociavelmente cúmplices, tanto
umas das outras quanto de nós mesmas. Eu as amo mais
INTRODUÇÃO

do que nunca. Tenho condições de não levar adiante certos


erros que minhas mais velhas foram levadas a cometer por
diversos fatores, sendo o maior deles a íngreme caminhada
reservada às mulheres dentro do sistema patriarcal, assim
como busco me curar, por meio do autoconhecimento,
de toda a dor que lhe causaram e que foi depositada em
esconderijos do meu corpo e da minha alma.

A minha autonomia como mulher se tornou uma obsessão


temática que expresso artisticamente por meio da
escrita e do livre estudo de simbologias e linguagens
oraculares, onde busco uma outra subjetividade possível,
profundamente referenciada na mulher. Essa é a forma pela
qual penso encerrar em mim toda uma engrenagem de
violências de gênero: semeando no mundo a possibilidade
de que milhares de mulheres se apropriem de si mesmas e
de suas lendas, rompendo um ciclo milenar de dominação
masculina e fundando um tempo onde um existir realmente
livre seja possível para todas nós.

#7
Para Vovó Eloá, Mãe, Dofona,

#boMdiAMAtriArcado
Tia Adelina, Dindinha, Tia Estela,
Tia Sula, Roberta Aline e Danielle:
Matriarcado do qual eu venho,

Sinto muito por todo o trabalho que dei e peço que me


AGRADECIMENTOS
perdoem por meus erros e por minha imaturidade para
compreendê-las em certas ocasiões. Mais adiante eu
pude, honestamente, abrir meu coração para aprender
com as situações difíceis que ocorreram entre nós e
delas extraí algumas das melhores mensagens que a vida
poderia me entregar.

Eu amo muito cada uma de vocês e para sempre amarei,


exatamente como vocês são. Exatamente como vocês são.
Este livro só foi possível porque vocês me tornaram possível.

Agradeço por cada colo, cada minuto de suas vidas dedicado


à minha vida, agradeço por suas belezas, seus sorrisos, sua
proteção, suas broncas e exigências, por tantos sacrifícios
feitos em nome dessa família, por terem feito uma ponte
generosa de talentos e saberes entre a minha geração e
de minhas primas e as gerações de mulheres sábias nas
linhagens da Vovó Eloá e do Vovô Jorge.

#8
À minha tia e mestra de

#boMdiAMAtriArcado
Tarô, Cristina Guill,

Obrigada pelas incontáveis horas ao telefone ou olhando


AGRADECIMENTOS
nos olhos, tomando um chá, quase sempre no dia seguinte
às festas em família, diante de uma mesa tomada de cartas.
Graças à sua amizade tão fértil, sábia e leal, despertei para
honrar minha estrela, minhas ancestrais, pude me abrir à
magia dos caminhos, mapeei minhas pinguelas na floresta,
conforme as atravessava, e agora cá estou, iniciada em mim,
publicando um livro das sombras. Eu te amo.

Espero que perdoe meu lado discípula rebelde do fundão da


sala. Se não fosse você, eu não teria acreditado no sonho de
assinar, quem sabe, uma biblioteca inteira e empilhá-la em
meu colo de sacerdotisa. Se não fosse você para me ensinar
a me referir ao divino com a cumplicidade de sabê-lo fêmea,
sem intermediários entre mim e Ela, esse primeiro livro não
estaria aberto em tantas mãos agora.

#9
Às minhas amigas, incluindo

#boMdiAMAtriArcado
minha querida psicóloga e outras
sacerdotisas que tanto me apoiaram,

Vocês sabem quem são. Sabem que estiveram ao meu lado


AGRADECIMENTOS
torcendo até essa menininha nascer ou, mesmo estando
um pouco afastadas, sabemos quem somos e quem fomos
uma para a outra. Quando falo desta menininha, não me
refiro só ao bebê em estado físico, diagramado e tal, mas
também à alma desta menininha, minhas muitas vivências
compartilhadas, testemunhadas, amplificadas, curadas e
amparadas pela amizade de vocês.

Agradeço à Deusa por nosso encontro. Em um trecho do


caminho ou por uma vida inteira, agradeço por termos nos
transformado mutuamente, por muitas vezes vocês terem
me ouvido, terem dito verdades que me libertaram e por
terem me inspirado no franco tom de conversa comigo
mesma que me rendeu os textos que tecem o pacto de
autocompanheirismo registrado neste livro. Vocês sabem
o quanto de choro ouviram, quantas vezes rimos juntas,
quantas broncas gastaram, quantos insights a gente se
deu, quanto trabalho eu (me) dei, até trazer este belíssimo
amanhecer à beira de mim. Nós somos a cumplicidade entre
fêmeas. Somos o triunfo da mulher sobre a expectativa
sistêmica de que competíssemos e nos inviabilizássemos.

Amo vocês, amo termos decidido que seremos essa girl band
dançando até o patriarcado cair.

#10
Às amizades que contribuíram

#boMdiAMAtriArcado
com o financiamento coletivo que
pagou o parto domiciliar deste livro,

Adriana Nobrega, Aimée Magalhães, Alana Julia Ortiz, Alena


Marruaz, Alexandra Mota, Alice Paiva Souto, Aline Christina
Torres, Aline Cristina Silva, Aline Falcão, Aline Zapponi,
Amanda Azevedo, Amanda Guimarães, Amanda Neder, Ana
Amelia Brasileiro, Ana Amélia Lins, Ana Carla Lopes, Ana
Carmen Navarro de Moraes, Ana Carolina Barbosa Silva,
Ana Carolina Marques, Ana Cristina Oliveira Lopes, Ana
AGRADECIMENTOS
Ferrari, Ana Paula Almeida, Ana Recchia, Ana Rosenblatt,
Ana Sampaio, Ana Tereza Pires, Andrezza Rodrigues
Nogueira, Andréia Neim, André Luiz de Medeiros Bezerra,
Anna Clara de Vitto, Anna Gomide Mochel, Anna Horta,
Ariadne Hamamoto, Ariella Aguiar, Ayama Prado, Beatriz
Reis, Bianca Chiesa, Bianca Martins, Branca Albuquerque de
Barros, Branca Zuma, Bruna Casella, Bruna Freitas, Byanka
Arruda, Bárbara Francelin, Bárbara Primo, Calixto Neto,
Camila Alvarenga, Camila Coutinho, Camila de Assis Novaes,
Camila Santos, Carla Comette Souto Santiago, Carla Oliveira,
Carla Oliveira, Carmem Mota Fernandes, Carol Drumond
Couto, Carolina de Jesus Ferreira Menezes de Oliveira,
Carolina de Oliveira, Carolina Walliter, Caroline Maróstica,
Caroline Nunes, Caroline Quaiato, Carol Pellegrino, Cecilia
Vieira de Melo, Christine Ferreira, Christine Ferreira Azzi,
Cintia Albuquerque, Cintia Erica Mariano, Clara de Carvalho
Vazelesk Ribeiro, Clara Miracco Urbinati, Clara Trindade,
Clarissa Prates, Clarissa Raposo, Claudia Baptista, Claudia
Vasques, Cristiane Brasileiro, Cristina Carneiro de Menezes,
Crix Lustosa, Maíra Louvison, Daiana Travassos Alves, Dalea
Soares Antunes, Dandara Pimentel, Daniela Batista Leite,
Daniela Veríssimo, Daniele Chahad Bueno Cunha, Daniella
Origuela, Demarie Amaral, Denise Patricia Wochnicki, Denize
Amorim, Débora Dias, Elaine Kuriyama, Eldair Câmara, Elisa

#11
Batalha, Elisa R. Bordignon, Erica Coutinho, Eric Ventura,

#boMdiAMAtriArcado
Fabiana Fagundes, Fabiana Fernandes de Souza, Fernanda
Lopes Guarnieri, Fernanda Marques Costa Kinas, Fernanda
Teixeira Ribeiro, Fernando Bones Costa, Flavia Caheté Lopes,
Flávia Marques, Francine Barbosa, Gabi Sevidanes, Gabriela
Alves Araujo, Gabriela Lima, Gabriela Muzza, Gabriella
Amorim, Giovanna da Silva Piani Godinho, Giselle Rocha,
Gislaine Nascimento Dalsotto, Gis Portugal, Grupo de
Mulheres Diplomatas brasileiras, Haiana Andrade, Helena
Fialho, Heloísa Moraes, Heloísa Moraes, Juliana, Henrique
Lima Brandão, Igor Bacelar Fernandes, Ingrid Varella, Isabela
Tomé Oliveira Castro, Isadora Mattiolli, Ivana Lira, Ivna Cruz,
Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza, Janine Oliveira
Arruda, Jeane Carla Oliveira de Melo, Joana Angélica Lavallé,
Jocely dos Santos, Joille Santana, João Gordiano, Julia Chagas
Schimitd, Juliana Almeida, Juliana Candido, Juliana dos Santos
Fonseca, Juliana La Terza Penna, Juliana Protásio, Juliana Royo,
Juliana Tibau, Julia Odri, Jéssica Fratani, Jéssica Schmidt, Júlia
Conterno Rodrigues, Júlia Marques Ferreira, Júlia Robaina,
Karina Cardoso Meira, Karinne Lima, Kelly Diorio, Lais
Dias Moreira Duarte, Lais Weber Righi, Lara Paniago, Lara
Torciano, Larissa Bery, Laura Bettini Novas, Laura Quaresma,
Lavínia da Silva Oliveira, Laysa Gonçalves, Leandra Cristina
Barbejat Castro Cruz, Leda Angelica Miranda, Leticia Bezerra
de Lima, Letícia Brito, Letícia Reolon Pereira, Leyla Menezes
de Santana, Lia Magalhães Graça Silva, Licia Maria, Lili An,
Liliane Vilanova Costa da Silva, Lisane Machado Irala, Livia
Nery, Luana Borba Iserhard, Luana Gabriela Verissimo Soares,
Luana Pacheco, Lucas Liberato Lameira Lourenço, Luciana
Balbino de Andrade, Luciana Soares, Ludimila Terra Pontes
Duarte, Luisa Lemos, Luisa Lima, Luiz Alberto Benevides,
Luiza Ribeiro de Lima, Lulu Mahoney, Léo Brum, Lívia Matos,
Lívia Rodrigues Pinheiro, Maitê Lara, Manuela de Carvalho
Meireles, Manu Marinho, Maria do Carmo Magalhães Cezar,
Maria Eugênia Araujo, Maria Gabriela Macedo Mendonça,

#12
Maria Gabriela Gomes, Maria Ivonilda da Silva Martins, Maria

#boMdiAMAtriArcado
Luísa Tonácio, Mariana Azevedo, Mariana Beltrame, Mariana
Cristina Rosa Garcias, Mariana Marra, Mariana Monteiro,
Mariana Rangel, Mariana Vaz Landim, Marina Almeida, Marina
Azevedo Ferreira Soares, Mario Lobo Neto, Martha Solange
Perrusi, Mayana Macedo Fernandes da Silva, Michelle Cunha
Graça, Michelle Iluminada Cavalcanti, Michel Seadini, Milene
Schmitt Batista, Mireli Cristina Moises Rezende, Mirian de
Souza, Mirian Lipovetsky, Monique Costa de Lima, Nanda
Isele Gallas Duarte, Natacha Oliveira, Nataly Monteiro Costa,
Natasha Vicente da Silveira Costa, Natasha Vicente da Silveira
Costa, Natássia Alencar de Sá, Nayara Natalia de Barros, Nellie
Rabanal, Nina Furtado, Núbia Lima, Olimpia Calmon, Paola
Angelucci, Patricia Cardoso, Patricia Finamori, Patricia Ramos
Guimarães, Paula Miranda, Pollianna Costa, Priscila Fernanda
Porto Scaff Pinto, Priscila Machado, Priscilla Becker, Rachel
Serafim, Rafa Ross, Ramiro Abreu, Raquel Peixoto Barbosa,
Raquel Thomaz, Rebeca Barbosa, Regiane Vieira, Renata
Amaral, Renata Rosado Alves Eller, Roberta Monteiro Jenkins
de Lemos, Roberta Vitória, Rodrigo Sampaio Freitas Santana,
Roseane Maria Santos de Carvalho, Rossana Jansen, Sabrina
Lasevitch, Samantha Santana, Sheila Travain, Sheila Travain,
Singoalla Pessoa de Oliveira, Stephanie Motta, Stephanie
Suarez, Suia Taulois, Syl Dietrich, Sylvia Menna Barreto, Tainá
de Paula Souza, Tatiana Anjos, Tatiana Bastos, Tati Sogabe,
Taíse Mallet Otero, Taíza Andrade, Teofilo Tostes Daniel,
Thabata Alves Oliveira, Thais de Cássia Santos Figueiredo,
Thais de Souza Andrade, Thais Menandro Lopes, Thays
Mielli, Tássia Rosa, Patrícia Corrêa, Tânia Fagundes, Vanessa
Landim, Vanessa Macêdo, Vanessa Múrias, Vanessa Peres Assis
Lima, Vanessa Vieira, Veronica Daminelli Fernandes, Verônica
Marinho Fontes Alexandre, Verônica Zandona Prado, Virginia
Filgueira Dias, Virgínia Máris, Viviane de Morais Pinheiro,
Viviane Oshima, Vânia Bruno, Yaçanã Farias, Áurea Bicalho
Guimarães e Úrsula Nery.

#13
Às minhas doulas literárias,

#boMdiAMAtriArcado
Marília Chaves e Priscila Ramos (Liekki), por toda a paciência
AGRADECIMENTOS
e generosidade, por todo apoio, bom gosto e dedicação.

E a Patricia de Oliveira da Mota, Rainha de Ouros,


pela bênção de sua prosperidade. Que se multiplique!

#14
Senhora da Noite. Fazedora de Amanhecer.

#boMdiAMAtriArcado
Em diversas mitologias do mundo existe ou tentaram fingir
que não existe a imagem da mulher que aprendeu a caminhar
no escuro. Ela pode ter descido ao seu inferno interior e
olhado profundamente nos olhos dos seus maiores fantasmas,
deixando que lhe contassem o que precisava finalmente
conhecer a seu respeito, para então aprender o caminho de
subida. Pode também se apresentar na forma de uma jovem
que se perde graças à sua curiosidade indomável, deflagrando
uma jornada de autoconhecimento; ou ainda de uma idosa um
pouco assustadora, que habita com alguma naturalidade as
zonas inferiores e a quem recorremos para nos guiar diante
matriarcado

dos perigos de uma trilha noturna na mata. Ora, submundo,


mundos dos mortos, inferno, noite: múltiplos nomes para o
desconhecido. Todas essas formas femininas falam sobre a
grande iniciação de uma mulher em si mesma.

Depois de transitar nas próprias sombras por tanto tempo,


é possível que você decore parcialmente o mapa do seu
subterrâneo — já que não tem fim — ou ao menos como
faz para entrar ou sair dele. Descobrir um jeito de se guiar
de volta pra luz, depois de tomar uma rasteira do próprio
desejo, é sabedoria de reconexão às simbologias femininas
de fertilidade, pois retornamos de uma condição infértil, de
frio, hostilidade, adversidade, desterro (inferno), para uma
outra fértil, de cura e regeneração, onde nos reapropriamos
de nós mesmas e passamos a agir do alto de nossa potência.
Um despertar (mundo dos vivos). Tornar à vida, voltar para
nós. Mas não sem ter esmiuçado e desenvolvido a alma.
Ninguém volta como era antes.

A mulher que tem a planta do seu labirinto na palma


da mão foi chamada por diversos nomes, em diferentes
tempos e lugares. O patriarcado e as religiões de culto a
um deus essencialmente masculino tentaram ‘desinventá-
la’, mas já era tarde, nós a conhecemos. Ela é a Inanna dos
sumérios, que desceu ao submundo, então governado

#15
por sua irmã gêmea, Ereshkigal, e abraçou sua contraparte

#boMdiAMAtriArcado
sombria, reascendendo para ocupar seu trono mais
completa e autoconsciente, testemunha do universo
que transcorre em seu porão. Os gregos chamaram-na
Perséfone, donzela que mergulhou no subterrâneo de
Hades, desposando um território proibido até mesmo
para sua mãe, Deméter, indo muito além de qualquer
mulher de sua linhagem, e voltando ao mundo dos vivos
com o título de rainha dos mortos. No Brasil, nossas
mais velhas nos ensinaram a chamá-la de Pombagira e a
reverenciá-la como uma querida amiga, muito humana e
cúmplice de nossa condição de mulheres, que detém a
sabedoria das encruzilhadas da vida, das longas estradas
e do cemitério como metáforas das terras difíceis do
inconsciente. No Tarô, essa expertise arquetípica é
denominada A Sacerdotisa, aquela que é a dona do
templo interno, senhora da noite, que sugere pensarmos
o tempo de modo lunar, que nos guia quando ousamos
experimentar o invisível. Em sua postura silenciosa
repousa o nada, a partir do qual o mistério de toda
vida é possível; ela é aquela que traz em si as respostas. Na
iconografia do arcano, ela está sentada solenemente com um
livro no colo, como se ele fosse uma extensão do seu útero.

Em todas essas imagens arquetípicas está significado o


encontro de uma fêmea com a própria sombra, mas para
todas elas existe um depois abundante e inevitável: um
retorno à fertilidade, isto é, à capacidade de autocura
e regeneração, de ressignificação, de retomada de
suas potencialidades criativas. Dar-se à luz, mãe de si
mesma. Ora, é a isso que se destina traçar o mapa de
seu inferno: deixar de ser refém dele, para contar-se que
o possui. Temos, então, uma mulher que se apaixona
pelo pleno direito de reinventar e nutrir sua realidade.
O passo seguinte ao abraço de Inanna em Ereshkigal
é o seu renascimento; o capítulo dois de Perséfone é
sua reintegração ao reino de sua mãe, recompondo
toda a natureza ao redor através da primavera; após

#16
alimentarmos a Pombagira e cantarmos seus pontos

#boMdiAMAtriArcado
cheios de imagens de autonomia, sentimos que somos
devolvidas a lugares de poder dos quais duvidamos; a
Sacerdotisa, por sua vez, converte-se na Imperatriz do
Tarô, arcano seguinte: a Matriarca Cósmica, útero do qual
jorra toda a existência.

Nenhuma delas pode ser a mesma, pois que cada uma


nos apresentou ao precedente pelo qual uma mulher
atravessa a noite escura da alma e amanhece em si,
isto é, torna-se íntima de seus mistérios e se inicia
no infinito que traz em seu interior, tomando-se nas
mãos e fazendo essa plenitude frutificar. Ao perceber
que é capaz de assinar seu destino e levar-se para onde
quiser, ela transborda em revoluções para compor com
outras iniciadas uma nova coletividade. Chamaremos de
despertar matriarcal ao movimento pelo qual milhares
de mulheres estão se libertando emocionalmente da
domesticação milenar, abraçando suas sombras e se
trazendo à tona ao mesmo tempo.

#17
[Dissertação tarológica ao Cosmos, pós
Caminho do Louco > Publicação de Livro das
Sombras do Arcano XVIII – A Lua, quanto ao
amanhecer que ela precede. Ou simplesmente]
“Bom dia, Matriarcado!”

Fazendo o círculo com o punhal

Quantas noites passadas inteiramente consigo até parar de fugir


de si mesma?

Quanto tempo vagando perdida por suas sombras, até adotar


sua própria estrela e deixar-se orientar por ela?

Quantas sabedorias coletadas de seus próprios tombos, à beira


de seus abismos; quantas vezes voltando à tona mais forte, após
quase afogar-se em seus transbordamentos?

De quantos perigos, entre predadores reais e fantasias


amplificadas pela escuridão da floresta, ser salva por uma
vontade inexplicável de viver; de quantas armadilhas de
caçadores escapar pelo brilhantismo de seu faro e pelas
sabedorias armazenadas em sua memória ancestral, deixadas
por suas mais velhas, para fertilizá-la no tempo certo?

Quantas vezes agigantar a narrativa, não se contentando em


ser uma simples sobrevivente, por intuir a imensidão das coisas
inexploradas às quais têm todo direito?
capítulo I

Lua Minguante
Rituais verbais de entrega,
banimento, esvaziamento.
Tempo e sabedoria do
deságue. Constatações
sobreviventes. O triunfo
embrionário de toda
finalização.
1. Evocação da multidão

#boMdiAMAtriArcado
invisível
Hoje você não vai procurar por ele. Porque essa é apenas a vontade de uma das muitas que
você traz em si. Antes de procurar por ele, eu te convido a descobrir onde estão as outras.
As que moram dentro de você. E como elas te povoam, testemunham a sua solidão sem
compreender. Suas irmãs. Sua mãe íntima. Suas ancestrais. Todas as que torceram para
que você chegasse até esse momento e se libertasse das mesmas amarras emocionais que
as prenderam, cada uma em seu tempo. Aquelas muitas mulheres que você foi para ir mais
longe, com todas as suas idades e sonhos. As que vislumbraram, por direito, um destino
onde você estaria mais plena, mais realizada, mais livre do que elas, sem se resignar à
sombra de alguém que não vale o seu desgaste. Um alguém que talvez represente todos
os males que elas sofreram.

Quando encontrá-las, chore e abrace o quanto quiser, até se entender, até descansar, até
se lembrar de quem você é e se reencorajar para cumprir o seu caminho. Faça todas
as perguntas de que precisar para conhecer que força superior é essa que te governa,
formada pelo somatório de todas as mulheres que te habitam em memória, e o quanto
essa força acredita em você. E te acalma e te honra e te diz os argumentos mais doces e
acertados para que você se cure, se acolha, materialize suas oportunidades, não desista de
si. Para que recobre sua majestosidade diante do espelho, incalculável, inegociável. É com
essas milhares de companheiras que você permanecerá quando a vontade de falar com ele
passar. Quando ele passar. Quando o dia passar. Quando tudo, enfim, passar e você ficar.

Fique de pé com a sua multidão.

2. Ativação da memória de
mulher-lótus
Só tem uma forma de saber o que é viver com um relógio dentro do seu corpo, com
um alarme ativado por cada centímetro de uma cultura desde o dia em que você
primeiro sangra até o dia em que para sempre dessangra, dizendo que a sua serventia
tem prazo. Só tem uma forma de ter seus instintos atormentados pelas convenções

#20
sociais até a exaustão, sequestrada em torno da possibilidade de se reproduzir. De

#boMdiAMAtriArcado
pedir desculpas por tudo, como quem pega as palavras apodrecidas e enterra em seu
próprio solo, adubando-se do avesso.

Só tem um jeito de sofrer constrangimento pela forma de se sentar ou por não ter
condições de ir ao trabalho, porque um vulcão volta à atividade mês a mês dentro
do seu ventre. Só tem um jeito de descobrir como é incompativelmente trágico com
a liberdade quando os seios começam a crescer ou como pode ser doloroso estar
sempre pronta para o amor e o amor nunca estar pronto para você. Só há um jeito de
reinventar o sorriso diário, apenas e apesar de tudo isso.

Só nascendo mulher no meio do ódio, como há deusas que emanam da lótus, como
a lótus emana da lama.

3. Simpatia para não morder anzóis


Arrume uma forma de se dizer todos os dias que não aceita mais a chantagem
da desvalorização. Se um cara te trata mal, isso só fala sobre ele, nunca sobre
você. Mas essa narrativa da culpa é milenar e nós a cumprimos fielmente
quando acreditamos que “a mulher que não se valoriza” faz por merecer os
comportamentos negativos dos outros. Não é por esse caminho de culpabilização
que repensaremos os rumos da nossa afetividade. O tratamento que eles nos
dão não pode ser usado para dar razão à nossa auto imagem precária, tem que
ser usado para aquilo a que de fato se destina: a observação dos processos da
masculinidade nociva e o direito de escolher melhor companhia.

Não deixe que ninguém te fisgue pela tua ferida. Cure as tuas feridas, mulher. Por você
mesma e por uma coletividade feminina mais forte, menos domável. Não deposite
ainda mais sobre ele a obrigação de reverter aquele posicionamento ou conduta
desagradável para que, parecendo que ele se equivocou sobre você, aquilo te alivie
e devolva a sua autoestima para o lugar. A tua autoestima é instrumento para não te
deixar refém. Se te tratou mal, corra. Não enfeite, não se dê desculpas para continuar,
não queira corrigir em si mesma um erro que não é seu. Não é responsabilidade tua
sequer entender, mas dele a de se repensar. Ele poderia ser melhor. Ele sabe que
poderia. Quando ele quer, ele é.

#21
4. Livramentos para colorir

#boMdiAMAtriArcado
Gosto da palavra “livramento”, tão constante no vocabulário de mulheres religiosas.
Acredito que todo sofrimento por uma relação que acaba seja só uma questão de tempo
e autoconhecimento, até entender que o que ocorreu ali foi libertador.

Liste a vida que você imagina para si. Sim, em tópicos: eu sonho isso e isso e isso. Eu me
imagino assim, daqui a tantos anos.

Agora liste os pontos negativos, impeditivos, abusivos, castradores, decepcionantes


desse relacionamento. Aqueles que te torturavam sem você admitir. Aqueles
“defeitinhos” da pessoa que você aliviava. Onde esse mito que agora você tem
dificuldade de quebrar já se mostrava falho.

Tudo isso vai delineando a história que deixamos escapar, dando elementos para
entender como chegamos até aqui. Fica mais fácil responder a si mesma: no que essa
relação impedia a concretização da primeira lista? Temos o direito de nos tomar nas
mãos e voltar a sonhar.

Livramentos são experiências que a gente pode até desenhar para cicatrizar e,
quem sabe daqui a pouco, curadas, voltando a rir de nós mesmas, transformá-las
em um livro pra colorir.

5. Agradecer e honrar a vida útil


de um coven
Com um telefonema, amiga, tudo pode ser diferente.

Mulheres também descartam mulheres. De outra forma, não digo aqui sexualmente.
É um sistema tão trágico, com tantas nuances de misoginia internalizada, que contém
destes feminicídios simbólicos, onde somos emocionalmente mortas, deletadas de
contextos relacionais, inclusive por aquelas que até bem pouco tempo nos foram
cúmplices. Observo a quantidade de conflitos entre homens, daqueles que os levam
a romper amizades. Observo a mesma coisa entre mulheres e... que conclusão

#22
triste. Eu tenho certeza absoluta de que você tem muitos casos assim para contar.

#boMdiAMAtriArcado
Amigas que brigaram ou pararam de falar com você sem que ambas soubessem
exatamente o porquê. Talvez por intervenção de outras, talvez por uma competição
não declarada, talvez por incômodos pequenos, decorrentes de espelhamentos não
trabalhados, e que assumiram proporções inacreditáveis. Porque nos remetem a
uma mãe, uma irmã, uma outra amiga. É muito chocante o exercício de extremos
quando estamos analisando as amizades entre mulheres. Num determinado dia,
a capacidade de se doar plenamente para a cura do momento de fragilidade da
outra, a solidariedade — palavra fêmea — quase instintiva. No outro, um erro ou
desentendimento que não encontra a disposição para o perdão. Mulher não pode
errar, para ela é sempre mais pesado.

Nós suportamos relações abusivas com homens durante anos, estamos sempre
dispostas a perdoá-los e encontrar mil explicações para suas condutas. Mas a um
mísero sinal de desequilíbrio de uma irmã, não somos capazes de dialogar ou
buscar o entendimento. Em vez disso, nos armamos em uma rede de desconfortos
inexplicáveis — com um esquecimento, uma opinião, um traço comportamental
da outra — até que não exista outra solução, tamanho o mundo que inventamos
em nossa cabeça depondo contra ela, que não o descarte dessa companhia. Talvez
pensemos que ao descartar amigas estejamos descartando a nós mesmas, livres,
portanto, para a nossa própria reinvenção. Silenciamos testemunhas. Assassinamos
a cúmplice. O que não notamos, nessa queima de arquivos, é o quanto isso carrega
de automutilação. Quantos pedaços de você ficaram perdidos por aí, na garganta de
mulheres com as quais você não conversa mais?

[Mas você pode fazer diferente agora, se quiser]

6. Para viver um grande encontro


no meio da pinguela
Homens são mutilados emocionalmente, dentro do seu processo de socialização.
Não estou falando isso para que tenhamos pena, porque em nome dessa mutilação
é que diversas formas de violência são impostas às mulheres nos contextos de
relacionamentos. Falo apenas para que estejamos atentas, para que tenhamos

#23
como nos defender da bagunça emocional que eles podem promover, do caos

#boMdiAMAtriArcado
existencial que eles podem desencadear, com potencial de paralisar outras coisas
que tanto precisam da nossa energia. Há tipos misóginos que realmente precisam
ferir no âmbito das relações amorosas, como um esporte. E há aqueles que são só
perdidos mesmo. Nem sempre saberemos quem é quem. Há os que emitem sinais
antagônicos, que não agem a partir de sentimentos de fato, mas a partir de humores:
hoje eu quero isso, amanhã posso dizer exatamente o inverso. Enquanto agimos
desarmadas, eles podem estar jogando, sendo estratégicos, dizendo ou fazendo
exatamente o que é determinante para nos afetar – vilania novelesca. E o pior é que
nem sempre isso é consciente, por vezes apenas obedece ao impulso de dominar
que identifica a construção da masculinidade, mas o fato de não ser também não
deve ser problema da mulher. Enquanto fazemos uma leitura emotiva dos fatos,
priorizando o entendimento, eles também podem apenas estar se autoafirmando,
lendo com frieza inacreditável o nosso papel na vida deles. Enquanto criamos
expectativas (não é nenhum crime sentir expectativa, é uma necessidade humana,
uma consequência natural e instintiva das trocas), eles podem estar absolutamente
indiferentes, reagindo a estímulos, sem que nunca se permitam uma visão mais
aprofundada dos laços, se é que para eles existem laços, como entendemos que
existem para nós. Somos formadas para desejar e identificar laços, nosso caminhar
sozinho, autônomo, não é uma construção fácil, porque somos socializadas para a
sombra, nunca para o Sol. Fácil é a tentativa constante de legitimar nossa existência
pelo anseio de uma relação de entrega, onde podemos nos abandonar aos cuidados
do outro, mesmo que para isso criemos a situação reversa de cuidar excessivamente
do outro, como quem implora por cuidado. Prestemos mais atenção no excesso de
emotividade que nos é imposto na nossa formação como mulher. Esse excesso não
rende sempre problemas óbvios.

Há tipos masculinos de maior complexidade, que instrumentalizam nossas emoções


para suprir suas vaidades da forma mais básica. Esses tipos sedutores que, como
disse, parecem existir só em novelas, que parecem canastrões demais para que
acreditemos neles, existem de fato, e suas deficiências emocionais causam estragos.
Saibamos observar as situações infrutíferas e pulemos fora o quanto antes. Não
adianta humanizar o sujeito a qualquer preço, acreditando que ele seja confuso e
que vale a pena esperar veladamente que ele se resolva por sua causa, não adianta
defender o direito dele à confusão. O centro da sua vida emocional é você. Se você

#24
for uma mulher ferida, sobretudo por ter internalizado em algum nível que proteger

#boMdiAMAtriArcado
emocionalmente os homens é garantia de cativá-los para uma relação, tenha em
mente que cada passo no sentido do outro precisa ser dado conforme o outro
também dê um passo na sua direção.

7. Para se lembrar de não


desperdiçar oráculos
Não costumamos estar erradas quando notamos os caras dando sinais de
envolvimento. Geralmente eles dão, sim. Geralmente, se chegam a demonstrar,
gostam de estar conosco, sim. Claro que há os manipuladores e, em algum nível,
essa também é uma busca por satisfação afetiva. Mas homem é um bicho muito
ferrado emocionalmente, em função da socialização de gênero, do estereótipo
de masculinidade que precisa cumprir. A gente passa a vida inteira gastando
energia, tentando decifrar sinais masculinos nas aproximações (eu sei que
você faz isso, fica quebrando a cabeça). Não sei se algum dia nós vamos deixar
realmente de fazer isso, porque ficamos desnorteadas quando a paixão bate —
também como consequência de um condicionamento ao desenfreio emocional
que nos rouba de nós.

O maior desafio de muitas mulheres que conheço é tocar bem todos os demais
aspectos da vida quando o sentimental estiver borbulhando. É quebrando isso que
a gente deixa de ser refém, de ser fisgada pelo nosso calcanhar de Aquiles cultural.
Mas vamos lá, estou falando com muita cumplicidade aqui, porque preciso que vocês
internalizem definitivamente uma coisa: o monopólio da intuição é, historicamente,
nosso. Então, provavelmente, onde tem fumaça tem fogo. Se arriscamos, pela
observação, o que o sujeito sente, normalmente não estamos equivocadas, não
estamos viajando. Só que eles são, em sua maioria, muito fracos em matéria de
autoconhecimento e inteligência emocional. São pobres nesse sentido, sem muito
treino pra entender o que sentem e caminhar na direção do que querem. Então
certamente você sacou que o cara quer algo, mas ele mesmo não entendeu toda a
situação. E aí ficam, como diz uma amiga, agindo como bebês que estão com sono
e lutam contra. Considerando que nós infantilizamos os homens por toda a vida e
adultizamos as mulheres muito cedo, a imagem escolhida é precisa.

#25
Bom, aonde quero chegar com isso? Que você não está viajando ao achar que

#boMdiAMAtriArcado
tem algo ali, mas que enquanto ele vai com o trigo, você já volta com o bolo
pronto. Já idealizou uma relação, porque é formada para estar permanentemente
pronta para isso. Já conta com o desfecho que formou em sua cabeça. Nós somos
forçadas a nos expandir muito mais emocionalmente. Temos esse know-how,
decorrente do intenso trabalho afetivo, a respeito do que se passa nos corações.
Nós identificamos os laços mal eles surgem, embora não saibamos o que fazer,
mas os caras, em geral, resistem de toda forma. Diferentemente da maioria
deles, a gente quer e tem facilidade de querer, de entender que quer. Então — a
mensagem é bem diferente do que você esperava ao começar a ler — não lute.
Não lute pelo amor de um homem que pareça indeciso. Não queira convencê-lo de
que ele quer. Não se agrida impondo sua presença a quem não está pronto, nem
deseja se aprontar. Você merece trocas espontâneas, à altura de tudo o que se
dispõe a compartilhar. Ele é tornado deficiente nesse sentido, não é incentivado
a conhecer bem os próprios desejos, porque masculinidade é maquinário de
dominação. E você não é terapeuta de quem escolhe como companheiro, não
pode salvá-lo. A neurose dele é uma espécie de casamento. Ele não vai deixar essa
esposa pra ficar com você.

8. Magia com vassouras para


não fazer baldeação ao voltar
pra si mesma
Encerrar um vínculo que te faz mal é uma ótima oportunidade de se pedir em namoro.
Muitas mulheres que conheço não se dão descanso emocional após os términos e se
atropelam psicologicamente na busca incessante por outros parceiros. Desperdiçam
a riqueza de possibilidades que a auto(re)descoberta nos abre, quando liberamos
mais espaço na nossa vida para exercitar a solitude e investir na nossa realização
individual. É normal querer limpar de uma vez o gosto, é importante voltar a se
dizer que há outras pessoas no mundo, é imprescindível destronar a autoridade da
relação anterior sobre nós e quebrar, definitivamente, o mito. Tudo isso é legítimo,
são caminhos pelos quais nos devolvemos à nossa própria vida também, mas cada
passo tem seu tempo.

#26
Cada uma sabe do seu ritmo, porém é comum passarmos por cima de nós mesmas e

#boMdiAMAtriArcado
cedermos àquele comando que fica no fundo da mente de que uma mulher sem um
companheiro será sempre metade. Se a pessoa aparece rapidamente com alguém, por
exemplo, nos sentimos impelidas a travar algum tipo de disputa e demonstrar que
não ficamos para trás. Se tiver sido algum tipo de chantagem para dar continuidade
a uma relação de poder, então teremos caído facilmente, justo no momento em que
mais precisamos relembrar que nos pertencemos. Por outro lado, tudo à nossa volta
força a barra para que estejamos constantemente imersas na energia de outra pessoa,
fugindo de nós, consumindo e sendo consumidas sexualmente, ocupadas demais para
deixar que cheguem as trocas realmente fortalecedoras. A velocidade do mundo nos
convoca para algum tipo de corrida, fazendo com que não atentemos para o nosso
próprio tempo de refazimento e libertação, e queremos sair na frente — sabe-se lá
de quê. Mas o que é realmente estar à frente? De qual estrada falamos, nossa ou do
outro? Continuamos nos deixando pautar pela relação anterior, como se ela agora nos
determinasse do avesso.

Ao contrário do que toda essa corrida estéril tenta nos convencer, há prazeres que
só a solitude nos oferece. Há descobertas sobre o nosso corpo, nossos desejos,
nossos sonhos, alegrias cotidianas, outras naturezas de laço que só têm espaço
para a experimentação quando estamos intensamente conosco, leais e plenas em
nós mesmas. Mas para isso é preciso reaprender a respirar, tocar-se, reencantar-se
pela vida sem intermediários. Costumamos olhar mais para a porta que se fecha,
travando com ela uma relação fetichizada sobre a perda, do que nos autorizamos a
ter curiosidade pelas tantas portas que podem, agora, ser abertas. São incalculáveis
as formas de sentir prazer estando consigo, serenando as ansiedades que nos
desgovernavam. Se não reaprendermos a transitar bem no silêncio, na criatividade
e se não nos alegramos de nossa própria presença, todas as relações amorosas
estão fadadas ao fracasso, tentando eternamente suprir um buraco que nunca deixa
de ser rasgado. Ficaremos para sempre atadas à energia de um outro, nutrindo-o,
com fome, decorativas, sem nunca conhecer tudo o que somos capazes de fazer
com a nossa. Isso não é um destino, é algo que internalizamos com a socialização. É
preciso lamber as próprias feridas, para que a língua primeiro diga a quem pertence
e depois volte a dar o seu recado ao mundo. Ninguém pode deter a força de uma
mulher apaixonada pela própria vida.

#27
9. Simpatia para não se fazer de

#boMdiAMAtriArcado
surda diante de condutas Gritantes
Ele faz uma. Faz duas. Faz três.

Quantas desculpas você precisa se dar pra entender que o acordo vai sempre falhar
aí, onde é fundamental pra você, pra sua sanidade?

Mensagens ocultas nessas repetições:


• Mulher existe pra me perdoar;
• A mulher certa é capaz de mudar o homem que eu sou;
• Se você for boa o bastante, você me transforma;
• Se você não tiver paciência, talvez esteja desperdiçando a pessoa da sua vida;
• Se você não me cobrar, eu fico. Mas aí já posso fazer de tudo;
• Ruim comigo, pior sem mim;
• Ser homem é assim mesmo;
• Melhor do que eu você não vai achar;
• Você é forte, você aguenta;
• Quem manda aqui sou eu;
• Minhas questões são mais importantes;
• Você vai sempre estar aí pra quando eu voltar;
• Você vai sempre acabar entendendo.

Todas transferem pra você a culpa, de alguma forma. Mas podemos e devemos nos
repetir a mensagem-antídoto também: “Pula fora dessa merda”.

7 bilhões de pessoas no mundo. Você tem direito de desejar algo melhor pra si.
O óbvio que passou batido precisa ser lembrado generosamente ao coração.

10. Aforismos de ovários cheios


Se te faz acreditar que te amar seja um esforço, não é amor, é deboche.
Se precisa que você seja menor do que é, não é amor, é involução.
Se drena suas forças e te tira do centro da sua vida, não é amor, é vampirização.

#28
Se está sempre te fazendo desacreditar de si com atitudes ou palavras, não é amor

#boMdiAMAtriArcado
e, acredite, pode ser inveja.
Se te diz que você estaria sozinha, não fosse ele, então não é amor, é chantagem.
Se te estigmatiza como desequilibrada, não é amor, é desprezo.
Se tem muito interesse sexual e pouco interesse na pessoa que você é, não é amor, é consumo.
Se te coloca na condição de quem deve entender ou perdoar tudo, não é amor, é
maternidade compulsória.
Se transfere para você os erros que ele comete e te enche de culpa para desviar o
foco dos gestos dele, não é amor, é tortura.
Se precisa colocar outras pessoas entre vocês para suportar o laço, não é amor, é território.
Se te impõe abandonar tudo pra seguir com ele, não é amor, é propriedade.
Se te priva de ser quem você é por ciúme, não é amor, é controle.
Se te convida, mesmo que apenas insinuando, a escolher entre seus filhos e ele,
não é amor, é canalhice.
Se fala alto contigo, não é amor, é ameaça.
Se desrespeita os seus limites sexuais, não é amor, é violência.
Se te agrediu fisicamente uma só vez, não é amor, é fim.
Se ridiculariza ou inferioriza o seu corpo de qualquer forma, não é amor, é lixo.
Se abusa do seu investimento material, não é amor, é patrocínio.
Se te deixa em modo de espera, não é amor e possivelmente é harém.
Se não pode te assumir publicamente, não é amor, nem mesmo é uma relação.
Se já começa te exigindo muito além do que você pode dar, não é amor, é cilada.

Todas as relações envolvem desafios. Estamos aprendendo uns com os outros


a todo momento, ninguém está pronto. Não teremos a ilusão de que os bons
encontros excluem por completo o desconforto e a dor. Crescer dói. Mas se está
constantemente te colocando à prova, como quem precisa se mutilar para caber,
não é seu número. Não é seu. Deixe ir.

11. Chamamento do próprio espírito


Se a sua aparência refletisse exatamente o ser humano que você é nas relações
afetivas, como você trata quem passa pelo seu caminho, a dignidade ou não com
que você sai da vida de alguém, o respeito que você expressa ou não na abordagem,
a lealdade que você tem ou fica devendo nas trocas, o seu companheirismo ou o seu

#29
egoísmo, a sua compreensão ou a sua conduta abusiva, quantas pessoas você acha

#boMdiAMAtriArcado
que se interessariam por você? Você mesma, será que se veria como alguém atraente?
Teria se relacionado com todas as pessoas com quem se relacionou?

12. Roteiro para superar um


amor minguante:
01) Deslocar o eixo do choro da perda para a libertação, do esvaziamento para a
lavagem, do desperdício para a abundância cíclica que se reconhece na chuva.
70% do seu corpo é água;
02) Educar as mágoas — más águas —, conversando diariamente com elas. Mágoa
é uma criança longínqua sem colo, que foi virando outra por dentro de outra e
mais outra por dentro de mais outra, como bonecas russas, até constituir um
sistema ferido onde o passado desatinasse a doer com os fatos de hoje;
03) Restaurar a sua imagem ao espelho, que esmaeceu pela presença sufocante de
um ausente. É preciso voltar a existir fisicamente para si mesma. Seus corpos (a
alma é um corpo) são seus veículos de vida abundante, não os despreze. Deixe-
os pescar experiências;
04) Lembrar-se de quem era. De como sorria, de como era bela, de como intuía, de
como era tomada pelo tesão de viver. Quem ama pode nos ajudar, pois amar ata
passado e presente, atravessa o tempo e o espaço. O contato com a diversidade de
formas mais fáceis e saudáveis de amar resgata em nós a fome de novas conexões;
05) Lembrar-se de a que altura do exercício do direito de sonhar — sozinha e plena e
indomesticável — você estava, quando foi atravessada por uma flecha;
06) Dizer-se que amor deve ser justo. Que a manhã pode ser leve;
07) Tomar sorvete. Outros doces servem para nos restituir a língua enquanto
passaporte dos sabores novos;
08) Prestar mais atenção ao seu cotidiano, às vezes uma conversa com um completo
desconhecido, enquanto se passeia com o cachorro, pode te devolver o fôlego
do encontro simples;
09) (Re)descobrir o que há de prazer inegociável em sua própria companhia,
até desejar trocar qualquer um por si mesma em uma sexta-feira
barulhenta. O passo seguinte é levar-se, como sua própria, primordial e
infinita namorada, a explorar a cidade, o país, o mundo, o dia, a noite;

#30
10) Fazer listas de ano novo para se incentivar a renascer a qualquer tempo.

#boMdiAMAtriArcado
Mulher, de longe, se renova mês a mês. De perto, dia a dia. O destino de
todo amor minguante será, inevitavelmente, a mulher nova.

13. Alinhamento de peregrina


Deixe ir.

Vai embora da nossa vida quem precisa ir mesmo. Nem sempre isso significa que
uma das partes esteja absolutamente correta na história, para que então a outra
esteja inquestionavelmente errada. Não se trata sempre de uma questão de justiça,
de equilibrar a balança com a partida. Tampouco a verdade é esgotável e só cabe em
um par de mãos. O mundo não é sobre nós, sobre nossa versão de todos os fatos.
Narrativas podem e devem coexistir, sem sentença, sem martelo, sem que os Deuses
que moram em nosso umbigo distribuam castigos aos que nos contrariam.

Há sete bilhões de narrativas no planeta. Vai embora, muitas vezes, quem


simplesmente não pode mais ficar. Quem não tem razão de ficar, quem com sua
história não se deixa mais permanecer naquela parte do caminho, velando o mesmo
encontro até que saia do coma. Vai embora quem projetou tanto, deixando de
enxergar o outro nu e cru, e esse alguém agora só passa para a fase seguinte se
destruir o laço onde projetou seus equívocos, sem constituir relação. Relação com
espanto, com surpresa, com curiosidade quanto a quem de fato estivesse ali. Nem
sempre foi laço e não há um diagnóstico universal para as separações.

Não é preciso que somente uma das partes tenha razão, que todas as partidas sejam
resultantes de disputas, na lógica da competitividade em que nos forjamos. Por vezes
uma despedida é só a natureza abençoando a mudança, versa sobre sobrevivência,
respiro, distância para o salto, reciclagem, nascimento, amor demais, autocura,
insegurança, incompatibilidade momentânea, pretexto de segunda vez. Cada um fica
onde consegue, nem sempre isso é sobre anjos e demônios ou céus e infernos. Cada
um caminha como pode e encontra ou desencontra quando dá.

Não vai faltar gente, sossegue o seu coração. Somos oceano de gente e há sempre
um ombro à sombra onde possamos descansar e nos reabastecer. É da vida chegar

#31
e partir. Que a gente aprenda um pouco mais sobre essa arte da estrada, deixando

#boMdiAMAtriArcado
seguir quem precisa, abrindo a porta com coragem para quem chega, tomando
fôlego nas esquinas onde novos encontros lecionam vida, para que reencontros
também nos digam que nem sempre as partidas demonizam com sucesso os Deuses
que vislumbramos por entre defeitos.

14. Agenda de ausências


Você não precisa continuar na relação que não te satisfaz. Porque ela também
acessa a cultura do estupro em algum nível. Ela vai contra o pleno e consciente
exercício do consentimento em outras esferas, para além do cotidiano sexual.
E não precisa aceitar a relação aberta ou sem rótulo que não te satisfaz
emocionalmente (e que assegura diversidade sexual para o homem). Porque ela
viola o seu consentimento também. Você sabe que não quer desse jeito, que
merece mais da vida. Precisamos respeitar a força de todo “não” que seja a
nossa verdade. Precisamos não duvidar da qualidade que esperamos das trocas.
Não comparecer aos estupros afetivos que foram agendados para nós. Não
relativizar nossa felicidade, não nos perceber mais como alguém que está ali
disponibilizando o corpo como moeda de troca para que um outro venha suprir
nossos vazios de toda ordem: carências, traumas, inseguranças, necessidade de
adequação social ou o que quer que seja.

15. Introdução à magia da


desistência
Volta e meia me deparo com mulheres profundamente decepcionadas em sua vida
íntima, dizendo que estão desistindo de se relacionar, de casar, ter filhos etc.

O que eu tenho a dizer a cada uma delas é: desista, desista, sim. Desistir de
encontrar alguém é um momento importantíssimo na vida de toda mulher.

Não, eu não acredito em uma desistência do amor. Pelo simples fato de que ele é uma
necessidade humana, como respirar, comer, cagar, dormir. Somos animais afetivos. O
amor estará presente por meio de outras conexões, para além das trocas românticas,

#32
apenas porque precisamos. Mas quando você relata que chegou a esse ponto de exaustão

#boMdiAMAtriArcado
nas conexões afetivo-sexuais, está me confessando um pouco mais do que gostaria de
confessar.

Vamos lá: só está exausta quem tomava isso como um objetivo. Olhe para você
mesma. Pense em como vinha se comportando em face da vida amorosa. Ela sempre
teve um caráter central na sua existência. A sua identidade, como mulher, passou anos
e anos impregnada pela ideia de encontrar alguém e “dar certo”. Era mais do que dar
certo com a pessoa tal, era dar certo dentro de uma inquietação que você trazia desde
a infância: nascem, crescem, REPRODUZEM-SE e morrem. Havia e ainda há o impulso
de repetir a história que te constituiu, por vezes esbarrando em parceiros que te
fisgaram pelas mesmas feridas que se faziam presentes nos seus laços familiares. O
mesmo padrão de pai ausente, mulherengo ou violento, de mãe dominadora, fria
ou vítima de agressões, de triangulação por conta de um padrasto que nos tomou o
objeto primeiro da nossa afetividade ou nos fez reféns de seus abusos. Está tudo aí,
nas teias do seu inconsciente, esperando para formar uma nova você, com todos os
equívocos que, aprendeu, amar deveria ter.

Quando dizemos “desisto”, temos a oportunidade de admitir um cansaço que decorre


dessa identidade voltada interminavelmente para um outro e da perseguição de um
modelo relacional que expressa nossos padrões psicológicos. Não é do amor que
estamos desistindo, creio que isso não seria possível com tanta facilidade. Mas
estamos nos contando que não suportamos mais funcionar deste modo. Que é
urgente deslocar esse fluxo de energia para outras realizações. Costumo dizer que
esse é o momento em que anjos estouram uma garrafa de champanhe e soltam fogos
à nossa volta, rs.

Desista, desista sim. Isso é voltar a apostar em si mesma. Coloque os dois pés no
agora. Não se esconda dos seus maiores sonhos atrás de alguém. Não force para
caber em um papel secundário previsto para a sua condição de mulher, porque
você é bem maior. Ouse naquilo que ainda não teve como ousar. Pergunte-se com
muita honestidade quantas coisas ainda gostaria de viver, quais passos profissionais,
artísticos, políticos gostaria de dar, quantas vezes tem vontade de sair para celebrar
com os amigos sem dar satisfação, redescubra o prazer de viajar, de não dever nada a
ninguém, de caminhar no sentido de ter o seu espaço, de estudar o que ama, de viver

#33
até mesmo aqueles encontros leves e efêmeros que no dia seguinte não nos roubam

#boMdiAMAtriArcado
de nós, se você assim desejar.

Desista, insista em si. Volte para tudo o que de melhor você poderia ser. Quando
desistimos de um destino artificial, o que tem potencial de ser genuinamente nosso
ganha a chance de vir ao nosso encontro. Quando desistimos de forçar nossas
pernas na direção de um outro, descobrimos que podemos voar.

16. Guarnecer a taça do altar


com águas fundas
Não dá pra se relacionar intimamente por muito tempo com quem não se interessa de
fato pelo ser humano que você é. Com quem não pode te suportar num mergulho mais
profundo. Você tentou ir além de si, não se culpe por descobrir essa limitação decisiva.
Esse vínculo não só não vai durar como também vai doer, vai atrapalhar as outras
dimensões da sua vida e vai te fazer acreditar menos em si. É uma tortura emocional.
Não adianta tentar se adequar desesperadamente a uma forma de existir que não é a
sua, que é a forma ideal para que o outro não se afaste, buscando preservar laços que
não te acolhem nem te fazem crescer. É injusto, sufocante para ambos e devastador para
o pedaço de mundo que lhes foi confiado pelas forças sagradas que criam os encontros.
Apenas se abra para isso: poder ser quem você é e ser abraçada exatamente assim é uma
necessidade humana inquestionável.

17. Messenger do fundo do poço:


01) De toda dor que te causam, ainda resta você como sua própria obra, tomando
por matéria-prima aquilo que te fizeram.
02) Se você opta por permanecer no formato que te deixaram, se não se levanta, não
se pega no colo, não lambe suas feridas, podem passar quinhentos transeuntes
estendendo a mão, que você não enxergará. Trancou-se na desesperança.
03) E tudo bem por isso, a desesperança tem uma função temporária. Diagnóstica.
Sinaliza onde estão os abismos. Doerá, mas tão logo você perceba, terá mais
riqueza de argumento para fazer o caminho de volta a si mesma.
04) Se você decide retornar e escalar o poço, se ao menos essa decisão está pronta,

#34
ainda que o seu corpo não esteja, sua força não te permita totalmente, suas feridas

#boMdiAMAtriArcado
latejem, fale para o vento: “Preciso de ajuda para sair daqui”. Fale para o seu sangue
pisado: “Eu me autorizo realmente a sair daqui”, até que seja verdade.
05) Há muita vida lá fora. Amadurecemos a decisão de nos levantar, enquanto
não levantamos. É isso que faremos, que nos diremos. Lembraremos dos
nossos sonhos e de tudo o que ainda temos a viver. Imaginaremos o cheiro
do desconhecido, o vento batendo em nosso rosto. Despertaremos para o
empoeirado exercício de sonhar. Sentiremos algumas curiosidades esmaecidas.
Desejaremos o levante com o dobro de intensidade.
06) Atravessar a noite íntima não se resume a esperar — e só esperar — amanhecer.
Mas a fazer amizade com os próprios fantasmas, aprendendo a transitar no
descaminho, mapeando nosso perímetro de escuridão, para que ele nunca mais
nos traia. A noite é uma força iniciadora. Será um novo abismo, esse não mais.
07) Povos antigos se orientavam pelas estrelas. Quando não havia mais nada, eles
olhavam para o céu e se reconectavam a algo muito maior do que a condição
humana, efêmera. Permitiam-se transportar mentalmente para ver tudo do
alto. O que há de mais distante e belo, de repente, fica a um passo de nossa
imaginação e nos restitui a coragem. Talvez porque sejamos poeiras de estrelas
e precisemos nos lembrar disso.
08) Sempre haverá alguma ajuda, em alguma parte. Ajuda não é sempre
completa, mas pode vir em dose suficiente para despertar este ou aquele
poder, virar esta ou aquela chave, acessando algumas dimensões de nós que
estavam esquecidas. Há músculos que ficam completamente anônimos até
que comecemos a exigir mais deles. Conosco reaprenderemos a amanhecer.
09) Será prazeroso tatear-se. Redescobrir-se. Há alguns prazeres assegurados no
caminho de volta. No processo de levante, muitas vezes nos perguntaremos: “Por
que não experimentei minha força antes?”. E, de repente, você se dá conta de que
conhecer a si mesma em movimento não teria sido possível sem a queda.
10) As recaídas fazem parte da tentativa de escalar o erro, a sombra, o medo,
a solidão, a perda. Não há uma estaca zero para onde escorregar, porque já
teremos conhecido o desejo de subir e ele terá criado um precedente em estado
bruto onde só possuíamos desespero. Nosso papel é lapidar o precedente,
aprendendo com as entre-quedas.
11) Quando você chegar à sua própria casa, depois de tudo isso, notará que nunca
esteve fora dela. Que os compartimentos secretos e elevadores sem fundo dela

#35
sempre fizeram parte. Que o que você pensava ser uma casinha de sapê em seu

#boMdiAMAtriArcado
íntimo é universo. É da sua própria infinitude que decorre um repertório de
precipícios. Mesmo aquele temor que foi superdimensionado só decorreu do
seu enorme poder criativo. A diferença é que agora um anseio de cartografia
nasceu em sua alma.
12) Há o descanso merecido, a celebração do retorno, o orgulho de vencer a
si mesma. Abraçar a sombra. Mas existem aquelas vozes dos que também
desabaram e agora pedem socorro. Escute-as.

18. Oferenda à Mulher Esqueleto


Nem sempre o que você sente pelo cara é amor. Às vezes é só o desespero de
não saber como faz pra existir fora de uma fantasia de dominação que nos foi
imposta durante séculos. O que muitas de nós amam neles, sobretudo nos
tipos mais problemáticos e indisponíveis, é justamente essa capacidade de nos
dominar psicologicamente. De nos deparar com elementos de masculinidade
que nos sequestram e nos dizem qual é o nosso papel como mulheres. Esses
elementos são variados quanto ao nível de dominação/violência, mas sempre
vão movimentar a nossa ideia de pertencer a alguém, reafirmando que a nossa
presença no mundo tem mais legitimidade a partir do momento em que esse papel
de mulher de um homem — rondando mais a posse do que a horizontalidade —
se encontra preenchido. É por isso que apaixonar-se guarda sempre uma linha
tênue com a obsessão, porque a estética desse amor ensinado às mulheres é a da
romantização de um sequestro psicológico. Somos convocadas desde a infância
para reproduzir esse formato relacional de dominação-submissão, embelezado
e celebrado historicamente. Vivemos em uma sociedade neurótica demais para
que a maioria das paixões seja vivida com saúde e dignidade. Uma mulher não é
fabricada culturalmente para ser só uma mulher. Ela é uma mulher e um buraco de
estimação. A socialização feminina vai abrindo essa cova na nossa personalidade
para que a exploração emocional possa preencher aquilo que “devemos ser”
com o conteúdo de nossas relações. E esse conteúdo nos esconde de nós. Não
sabemos quem somos de fato, mas o que devemos tentar nos tornar a todo custo:
esposas. É nessa cova, portanto, que enterramos outras possibilidades — mais
livres — para o nosso destino.

#36
19. Prática alquímica para

#boMdiAMAtriArcado
destilar o mantra do erro
O passo posterior a descobrir que ele não foi bacana é se perguntar: “Por que escolhi esse
tipo, o que estou tentando me dizer com isso?”. Não é uma questão de fácil resposta,
como nenhum exercício de autoconhecimento deve ser, mas seremos incansáveis em
pescar fragmentos nossos que estão perdidos no lago escuro do inconsciente.

Se um dos recados da socialização de gênero é o de que nossa vida se legitima


por meio de um parceiro, e esse recado se enraíza com uma força infernal, até
porque vem sendo transmitido de geração em geração, os parceiros tendem a ser
extensões de nós. Ora, somos formadas para ser propriedades deles, deixamos de
ser/conhecer quem somos para que nos tornemos mulheres de alguém. Até bem
pouco tempo, um homem poderia matar sua esposa no Brasil e se beneficiar da
legítima defesa da honra. Vejo dois resultados muito batidos de uma identidade
feminina atrelada à ideia de pertencer a alguém: comumente esse alguém é espelho
da nossa auto imagem ou um lugar onde exercemos indiretamente nossos desejos.

No primeiro caso, um parceiro abusador ou ausente pode dar exatamente aquilo que
você acredita que merece, confirmando uma péssima imagem que você tem de si, não
se enxergando como merecedora de uma relação saudável. Você não se sente boa o
bastante. O companheiro de uma péssima mulher só pode ser um péssimo homem.
Quase sempre repetindo padrões familiares, a mulher segue defendendo que ele só é
agressivo porque ama tanto que isso o desequilibra, que por ela é capaz de se regenerar,
que pode ser lapidado, que “teve problemas com a mãe”, que só consegue “gostar”
desse jeito, que não há outro capaz de ocupar esse espaço, mesmo em um mundo com
bilhões de seres humanos, e outras crenças que a fazem andar em círculos.

No segundo caso, você idolatra aquele cara porque [acha que] ele personifica
coisas que você gostaria de ter e às quais pensa ter direito — e tem mesmo, mas
obviamente você teve menos oportunidades de imaginar uma vida que se realizasse
fora do roteiro casamento-filhos. Em outras palavras, a sociedade não vai te dar
facilmente status, dinheiro, reconhecimento profissional, carreira acadêmica, voz...
Mas ela vai te “recompensar” fazendo você acreditar que pode viver isso de modo

#37
indireto dentro de uma relação. Esse comando te castra na busca por autonomia e

#boMdiAMAtriArcado
te prepara para ser sexualmente objetificada ou explorada emocionalmente por um
homem. Sombra, platéia, claque, groupie, secretária, primeira-dama. Nem sempre
essa tendência será óbvia, às vezes será bem sutil e se apresentará como uma simples
admiração. De qualquer modo, é uma forma de não assumir o protagonismo da sua
própria vida, caminhando insegura quanto ao mundo, protegida do seu sucesso e
das responsabilidades que ele envolve. Qualquer uma pode ter criado uma ficção de
ídolo para beber de uma fonte que lhe foi vetada. Mas também para continuar se
vetando, deixando de se jogar naquela fonte sem intermediários.

Portanto, não se apresse em chamar de paixão o diálogo que você pode ter criado
consigo por meio de um tradutor de quinta categoria.

20. Acenda uma vela na saliva


A sua vida importa mais. A sua felicidade não vai ser negociada assim, tão facilmente,
nem mesmo por um tempo. Você precisa de si mesma forte, sem se demorar tanto
naquilo que não é do seu caminho. No entanto, por algum motivo você parou aí,
nessa relação. Esqueça explicações do tipo “a gente tinha mesmo que se encontrar”,
não é disso que eu tô falando. Preciso que tateie a si mesma dentro dessa história
e entenda o que te fez parar um pouco nesse trecho. O que está tentando se dizer
inconscientemente por meio dele, da dificuldade que a situação apresenta, da disputa
que está ocorrendo por mais que você não admita, do desejo de ser a escolhida? Onde
foi que você se viu refletida? Por que você precisa que um abandono aconteça para
que você seja feliz? Ou quando foi que você internalizou que a sua realização afetiva
precisa acontecer dessa forma? Ou será que ele te lembra alguém? Ou qualquer outra
pergunta que te devolva para o seu centro, porque na periferia de si mesma nada
se resolve. Afaste-se dele aproximando-se de você. Sabemos caminhar nas brumas,
apenas não nos lembramos. Somos nossas mestras primordiais.

Se ainda estiver muito difícil, por todas as mulheres que te antecederam, por tudo
o que você já sonhou pra si, por todas as situações difíceis que venceu sozinha
antes que ele aparecesse, por se lembrar de quem você é, de onde veio e aonde
deseja chegar, eu te convido a imaginar-se vivendo coisas extraordinárias que
muito te realizarão emocionalmente SEM ELE. Eu te convido a se lembrar da sua

#38
criatividade, do poder criativo presente em todas as suas amigas e nas mulheres da

#boMdiAMAtriArcado
sua linhagem materna ou paterna diante das adversidades, algumas conseguiram
escapar ou ressignificar circunstâncias inacreditavelmente hostis para mulheres. Se
elas tiveram essa firmeza sobre o desejo de prosseguir na vida, você também possui
esse poder sobre si mesma. Não é nenhuma migalha emocional que vai te seduzir
para fora do seu eixo e te fazer se demorar tempo demais em um trajeto infértil.

Tudo à nossa volta diz, sem dizer, que a totalidade das nossas vidas importa menos
do que qualquer sentimento masculino. Esse mito de inferiorização que você está
vivendo com ele precisa ser quebrado. Ele não é superior a você, não é seu senhor,
por que teria o direito de ser nutrido com a sua espera ou com a sua disposição?

— Trecho de “Motivos para se afastar de um homem que já tenha um


relacionamento”, texto de setembro de 2017. Mas pode servir para encorajar a
ruptura com qualquer relação nociva.

21. Encher a profecia de autonomia


É fundamental discutirmos relacionamentos abusivos. Mas devemos lembrar que ficamos
vulneráveis a eles não apenas porque os homens são socializados para a violência e a
dominação, mas porque nós somos socializadas para viver à sombra deles. Não existe
um destino, uma má sorte, um carma, um dedo podre, um mapa astral ruim. Então,
ainda mais importante do que identificarmos quais relações são abusivas, o que isso
significa, é rompermos com esse padrão relacional autodestrutivo. Se você vive uma
relação abusiva, duas, três, quatro, cinco, está tentando reiteradamente se dizer algo,
mas ainda não parou para se ouvir. Existe a questão sistêmica, mas nossos trabalhos aqui
são a resistência e a reinvenção, contra toda a tarefa feminicida do sistema.

Precisamos nos ajudar mutuamente, fortalecendo uma autoestima que não se assente
exclusivamente sobre a noção de beleza, mas que realmente nos coloque como o
centro de nossas vidas, rompendo com o ciclo de exploração emocional, ensinando
caminhos de independência e escolhendo parceiros que venham para somar a uma
existência que já é feliz consigo.

Isso não é responsabilizar mulheres, isso é construir autonomia de verdade.

#39
22. Você vai precisar de uma

#boMdiAMAtriArcado
semente ansiosa por morrer para
entregar o broto
Você ainda o quer?
Ou você quer uma oportunidade de resolver isso dentro de si mesma?
Você ainda o quer ou você quer se dar mais uma chance de ver que ele não é isso?
Estaria farejando que tem mais coisa para ser descoberta dentro dessa história, para
que possa ir embora dela consciente?
Você ainda o quer ou quer a si mesma, aquela que em você vem depois de todo
esse vendaval?
Será que, no fundo, quer implodir de uma vez esse sentimento que ainda não foi embora?
Você ainda o quer ou quer esgotar esse luto para renascer?

23. No baralho matriarcal,


Rainha vale mais que Rei
O cara insuperável de hoje é o famoso “quem mesmo?” de amanhã. Lembra quando
nada, nada, NADA tirava aquele outro da tua cabeça?

Foi só questão de dar uma oportunidade à vida pra que preparasse novos encontros que
destronassem o sujeito. Muitas vezes, o insuperável é apenas o mais recente. Não é mérito
dele, foi a sua roleta que não girou ainda. Ou não girou direito, significativamente. Ficamos
marcadas pela última referência, reticentes em abrir a porta para ver o mundo novo, para
respirar ar puro lá fora, para deixar outro dia chegar.

Isso é sobre você. Sobre flertar com suas inseguranças e limitações através de alguém.
Sobre o medo de se renovar e deixar ir embora o que ou quem não te acrescenta.

Limpe o gosto. Queira conhecer o que está mais adiante e aquela que em você
funciona bem melhor depois de tudo isso. Seja dona da tua ciclicidade. Dona do seu
tempo, substância que passa.

#40
24. Meditação para inspirar a

#boMdiAMAtriArcado
contar sua própria lenda
Você vai desagradar. Vai espelhar as pessoas para elas mesmas e nem sempre elas
gostarão do que vão ver. Vai ser difamada e caluniada, como se esse fosse o preço por
seguir seus sonhos. Quando cair a noite, você vai se deitar inconformada, porque tem
em seu coração a certeza de que não trabalhou para a derrota de ninguém, pois estava
ocupada demais em se fazer acreditar no seu caminho. Em pegar em sua própria mão
e se dizer o oposto do que o sistema te diz diariamente. Sofrerá injustiças que nunca
imaginou, mas olhará para trás e se lembrará de tudo o que passou para chegar aqui. Foi
muito pior e, no entanto, você está de pé. Você vai, em um desespero de ingenuidade,
rezar por quem te faz mal, para tentar enviar pensamentos que apaziguem tanto ódio.
Ficará em silêncio por alguns dias, depois explodirá na tentativa de se defender. Nem
sempre haverá quem te defenda. Vai olhar para suas tragédias íntimas e pensará que
as pessoas que competem contigo não fazem ideia do quanto suas dores já te exigem.
Ninguém disse que seria fácil, que a vida seria moleza, que somente beijos de cinema
te aguardavam na linha de chegada. Mas existe um segredo entre nós, caso tudo isso
te atormente dentro da potência deste minuto, caso a maldade e o poder destrutivo
estejam de tocaia esperando pelo seu tropeço: enquanto todos fugiam de si mesmos,
você abraçava sua sombra. Foi aprendiz do erro e se fertilizou em seu próprio deserto.
Precisou reinventar seu modo de olhar para o mundo. Precisou buscar forças nas
reentrâncias da sua alma, enquanto todos achavam mais fácil se impor pelo que de pior
existe na conduta humana e te culpabilizar por seus infernos. Você já venceu, mesmo
que ainda não tenha notado. Então vim aqui te dizer, porque só faltam essas palavrinhas
mesmo. Ninguém saberá por ora, mas eu sei que você amanheceu só por ousar ser
quem é e levar adiante aquilo que veio fazer aqui. Ninguém testemunha tão de perto o
quanto você se agiganta. Pegue-os de surpresa. Sorria, desarmando trincheiras. Você foi
maior do que duvidaram. Seja sua melhor amiga na solidão multitudinária. Só você sabe
quanto chão, quanto sangue, quanta lágrima, quanto amor desfeito bordou o tempo,
como tecido da vida. Eu te garanto que as coisas não continuarão as mesmas. Você já
não é a mesma. Deixe que fique para trás quem se percebe um passo atrás. Vim aqui
te contar esse segredo: você será odiada e amada pelos mesmos motivos. É tempo de
reescolher qual narrativa assinalar em sua biografia. Ninguém contará sua história como
você. Suas letras brilham. Reescolha-se.

#41
25. Efeitos colaterais pelo mau

#boMdiAMAtriArcado
uso do poder de defesa
Apegar-se desesperadamente a relações que não dão em nada e a situações
emocionais ilusórias diversas é uma defesa, talvez a mais radicalmente desgastante
que encontramos para que nos mantenhamos ocupadas.

Você deve se perguntar do que se defende. Essa é a única pergunta que é eficaz em
te tirar de onde está.

Tenho duas sugestões centrais:


01) Você se defende de relações reais. Essa vale mais para as esperas.
Enquanto a troca se encontra estacionada, você não corre riscos.
Aguardar o que é improvável de acontecer é uma espécie de anestesia.
A ansiedade não te sequestra, o ciúme é suportável, as más lembranças
de outros vínculos não te atormentam, teus traumas familiares não estão
em movimento etc. Nenhuma relação nova, com seus problemas reais e
sua felicidade perturbadora, mexe nas suas feridas e te obriga a sair do
lugar seguro da fantasia.
02) Você se defende do seu poder. Essa vale tanto para as esperas quanto
para as relações infrutíferas em andamento. Enquanto presta atenção
no outro, você não corre riscos. Não se conhece, não descobre o quanto
pode fazer, não se experimenta em pleno voo. O medo do fracasso não te
persegue, a tarefa de lutar pelos seus sonhos não te coloca fora da cama,
você não precisa fazer mil coisas que só você poderia fazer para o seu
caminho triunfar. Nenhuma aventura que te coloque como protagonista
da sua vida ameaça a sua paz, é possível ficar eternamente escondida
atrás de alguém. Sua energia está sendo devidamente sugada por outra
pessoa, garantindo que você não a empregue em seu crescimento
individual e não lide com os prazeres e as dores da aposta em si mesma.

Acredito que outras respostas esbarrem nessas duas explicações. Seja qual for o
gabarito que você encontre, ele se soma ao fato de que o sofrimento amoroso nos
foi oferecido culturalmente como droga ao longo de séculos, contribuindo para o

#42
nosso apagamento e submissão. Mas você pode e deve conhecer outras ondas bem

#boMdiAMAtriArcado
mais estimulantes, não destrutivas, recriando a sua realidade e reescrevendo um
roteiro onde seja a personagem principal. Dá pra começar agora, se quiser.

26. Sugestão de ritual:


masturbação comemorativa
Quem vai embora nos faz um grande favor em nos deixar em nossa própria presença.
Em nos libertar de ser ao meio para nos adequar a prioridades e valores que não
são nossos. Poupa nossa tentativa de um prolongado investimento equivocado.
Esse alguém nos deixa soltas para nos descobrirmos completas e colocarmos nossa
energia naquilo que realmente pode dar frutos.

Quem vai embora abre espaço para que nos deparemos com as fragilidades que
precisam ser admitidas e curadas, assim como encerra um ciclo onde tivemos
nossas riquezas desperdiçadas. Quem vai embora é sempre revelador, um espelho
se quebra, uma porta se bate, isso nos convoca a fuçar outros tantos espelhos, a
aceitar a multiplicidade de portas que ainda desconhecemos.

Levaremos um tempo para compreender as mensagens da chegada e partida de quem


foi embora. Mas não nos torturaremos com a culpa de ter ou não merecido aquela
visita. A despedida é inerente à natureza dos hóspedes. A forma como partem, talvez
desonrando o carinho com que foram recebidos, só fala sobre eles. O que fica é o
aconchego da casa. Cuidaremos da morada, porque ela é infinitamente nossa.

27. Sugestão de ritual


complementar: banho de
ervas pós-masturbação
comemorativa
Saber deixar ir embora o que não é seu. Seja um alguém, um tempo, um lugar. Saber
esvaziar-se do que perece se permanecer. Do que pesa, do que só fica se forçar a

#43
barra, do que não encaixa mais no que você está se tornando. Aceitar os ciclos.

#boMdiAMAtriArcado
Extrair a melhor lição de cada passo, armazenar o gosto da lembrança enquanto ela
ainda estiver fresca. Respirar, confiar que suas pernas tiveram a manha de te trazer
até aqui e seguir em frente. Não há outra forma de florir o solo novamente, sem
a coragem de enfrentar o próprio inverno. Sem a coragem de testar se aquilo que
hoje chamamos perda não é, no final das contas, libertação.

Para deixar chegar o que fica, o que soma, o que recompensa e nutre, tem que
internalizar a sabedoria das partidas. Não há nada que não possa ser mais prazeroso,
receba. Tem que abraçar sua segunda chance. Tem que soltar o que sobrecarrega e ter
as mãos prontas novamente. Senão, como conhecer a potência do que está guardado?

É questão de limpeza emocional.

28. Provérbios de desengano


Amar não é aguentar o pior do outro reiteradamente, esperando que ele melhore,
indo além dos seus limites na tentativa de educá-lo.

Amar não é deixar de lado seu projeto de vida para acompanhar alguém em suas
escolhas, alguém que — você sabe — não faria o mesmo pelas suas.

Não é trabalhar emocionalmente sozinha para que a relação seja possível.

Nem é justificar maus-tratos com uma análise da história familiar. Porque só


diagnosticar o erro não garante transformação. Porque sua sanidade e integridade
física vêm em primeiro lugar. Porque também há, na sua história familiar e na aceitação
dos maus-tratos, algo fundamental que deva ser compreendido e transformado.

Amar não é medido pelo quanto podemos suportar, em matéria exploração emocional.

Não somos “feitas para o amor”, temos sido feitas para doar nossa vitalidade,
garantindo a nutrição afetiva dos homens para que eles dominem o mundo,
pensando e sentindo por eles para a manutenção dos laços, conhecendo-os por
eles, já que não se interessam pelo autoconhecimento.

#44
Nossa missão na vida não é essa. Não é gastar toda essa energia para a superprodução

#boMdiAMAtriArcado
psicológica de quem não se importa. Precisamos descobrir uma motivação
existencial que vá muito além do labirinto das relações. E, depois de descobrir,
trabalhar por nós mesmas, para desvendar os padrões que nos aprisionam neste
lugar da não realização e da resignação diante de parceiros que não reconhecem o
nosso valor. Amar mesmo é outra coisa.

29. Instruções para soltar um


pássaro à meia-noite de si mesma
Feminismo se destina à libertação coletiva das mulheres, e nisso é importante
incluirmos também a libertação emocional, uma vez que a afetividade colonizada
pela ideia de gênero nos devasta a autoestima, ferramenta política das mais
relevantes, deixando-nos nas mãos de parceiros que nos causam dor, em nome
de um projeto de vida pelo qual nos legitimamos apenas como companhia de
alguém. A gente sabe de tudo isso, em algum nível, porque mesmo antes do
feminismo a existência de um feminino ancestral já nos permitia intuir outros
modos de existir bem mais livres para mulheres. Nesse sentido, o feminismo
só nos lembra e organiza politicamente velhos anseios. Ocorre que às vezes o
discurso não penetra em certas áreas do coração. Não somos o nosso discurso,
nós o contemos. Somos também a traição, a contradição, a revolta dentro da
revolta, o engano em curso. Dizemo-nos certas coisas todos os dias e elas não
são suficientes para nos blindar contra certas experiências. Não são bastantes
para nos alimentar contra certas entregas. Às vezes a vida se impõe e nos convida
a vandalizar nosso próprio senso moral, até como forma de nos apropriarmos de
nós mesmas. Nem toda teoria do mundo tem força contra territórios específicos
e indomáveis da irracionalidade. Antes de sermos animais políticos, somos
apenas animais mesmo. Vai ter dia em que o coração vai cuspir no prato da nossa
argumentação e mijar na nossa cama. Dizer “Quem manda nessa merda sou eu”. E
a gente precisa, precisa muito que ele faça isso. Senão o feminismo seria só uma
borracha. Senão a libertação feminina seria só questão de escolha. O processo não
é instantâneo, as questões inconscientes estão aí, criando nossas armadilhas o
tempo inteiro, testando nossos limites, pedindo pra que sejam solarizadas. Temos
que ser de verdade, mesmo se for só pra concretizarmos a devastação diante

#45
dos nossos olhos e reescolhermos o caminho. Mas temos que ser de verdade

#boMdiAMAtriArcado
por muitos motivos, ouvir os chamados, trair nossas convicções, como quem
tem dor de dente e se pega forçando o dente dolorido com a língua, testando
a dor. Ser dona de si envolve uma busca incessante pelo autoconhecimento
e autoconhecimento não é autonegação, é saber se tatear até possuir de
cabeça o seu mapa interno. Mas todo mapa tem seu Triângulo das Bermudas,
mostrando que ter de cabeça não é o mesmo que colocar os pés. Temos que
dar espaço à dimensão do descontrole, do caos, do medo, da paixão. Faz parte
da autoconquista. Se o feminismo não considerar a necessidade do seu bicho-
mulher de fazer tudo ao contrário, tudo errado, tudo de inconsequente em algum
momento, então ele é só mais um discurso que, falando radicalmente sobre a sua
humanidade, no fundo te desumaniza. Porque não se trata de domar/apagar o
bicho para torná-lo discurso, mas de aceitar que ele voe e que, exatamente por
isso, nem sempre voará na direção que imaginamos.

Fortaleça uma mulher.

Essa obra é propriedade intelectual de Maria Gabriela Saldanha. Você pode divulgá-la e
reproduzir trechos, sem fins lucrativos, com os devidos créditos. É proibida a venda. Para
quaisquer outros usos ou para saber mais sobre outros escritos e sobre o trabalho com mitos
e oráculos (atendimentos, cursos e criação de conteúdo) contate a autora. Aí embaixo vão as
informações para contato e redes sociais:

mariagabrielasaldanha

@mariagabisaldanha

bomdiamatriarcado@gmail.com

matriarcaria@gmail.com

#46
Lua Nova

capítulo II
Rituais verbais de
semeadura. O frescor
do ciclo. Like a Virgin.
O reinvento que
sucede a resistência.
A substância da nova
mulher.
30. Adotar sua fênix como

#boMdiAMAtriArcado
pet de bruxa
Se for pra ser um companheiro, ele tem que ser foda, mulher. Sabe por quê?
Porque você é foda. Não aceite qualquer coisa. Não fique tentando acolher toda
incapacidade afetiva que vê pela frente, criando quem ainda não tem condições
de te entender, aceitar, enxergar. Já deu. Você está alguns passos à frente porque
se forjou na dor. Sobreviventes são sempre mais sábios. O quase morrer de
cada dia amadurece demais. Submeter-se por acreditar em falta de opção é um
feminicídio lento. Pesquise-se, desfaça essas crenças limitantes marcadas na tua
pele desde a primeira boneca, reveja essa autoimagem que te desencoraja, quebre
esse padrão que consome a tua família desde bem antes da tua bisavó. Faça o que
for necessário para se fortalecer, vire-se do avesso: terapia, caminho espiritual,
dedicação profissional, militância... Você precisa ser sua, por mais que seja muito
doloroso esse jogo doentio de nunca poder descansar emocionalmente no colo de
alguém. Nós temos sido os melhores colos do mundo há muito tempo, o know-how
é todo nosso, vamos vencer isso. Não desperdice a sua existência sagrada com
quem não tem empatia. E estou falando em voz alta para que eu ouça também.
Ainda erraremos, ainda insistiremos no que não vale a nossa lágrima, mas desde já
estamos fundando um eixo para o qual possamos sempre voltar, um ninho para a
nossa fênix. Precisamos nos dizer isso incansavelmente, até o fim das nossas vidas,
porque estão conseguindo nos convencer do contrário há milênios.

31. Há muitos roOmmates nas


moradas da casa da minha mãe
Teoria dos Sete Bilhões. É quando renovamos a consciência da grandeza do
caminho e nos reconectamos com a pluralidade das trocas, autorizando-nos a
fazer escolhas melhores, seja em matéria de parcerias ou de feitos individuais.
Abrimos espaço para que o mistério e a abundância da vida nos surpreendam.

Por exemplo:
Sete bilhões de pessoas no mundo. Você não precisa continuar nessa relação abusiva,

#48
precária, insatisfatória, condenada, rezando por um milagre. Se dê de presente a

#boMdiAMAtriArcado
curiosidade de saber o que a vida reserva de bom. Pode estar ali na frente.
Ou
Sete bilhões de pessoas no mundo. O que te faz correr atrás justamente de quem não
está nem aí pra você? Descubra e passe de fase, que o jogo é longo e a única certeza
que ele oferece é a de que gente nunca vai faltar.
Ou
Sete bilhões de pessoas no mundo. Talvez você escolha sempre um tipo semelhante
de parceiro, experimentando o mesmo padrão de decepção. Isso também é sobre
você, sobre algo que deseja inconscientemente dizer a si mesma por meio desse
outro. Ouça sua própria mensagem espelhada e libere-se para viver os outros
tantos encontros possíveis, que não mais te vampirizem, mas que te fortaleçam e te
coloquem em contato com o seu melhor.

32. Experimentações do poder da


mente para a multiplicação dos
encontros
Quando a gente perde a ânsia de encontrar uma pessoa e começa a focar em outros
poderes que a gente tem, em outras criatividades e outros prazeres, descobre
novas formas de... encontrar pessoas! A vida fica mais mágica, menos previsível.
Não há meta emocional pra bater. Quando você não está caçando alguém, libera-
se intimamente pra reconhecer belezas e comportamentos que antes a ansiedade
não te deixava notar em si, nos outros, na vida e que não deixava que notassem
em você. O tempo dos encontros passa a ser outro, é por isso que eles começam
a acontecer, porque têm seu próprio tempo e você não deixava. De alguma forma,
você achava que não merecia um destino bom, surpreendentemente bom, mas
qualquer coisa ou pessoa minimamente qualificada que cobrisse um buraco, esse
vazio de ser fêmea, e te fizesse se sentir ajustada socialmente. Quantas e quantas
paixões você não inventou para pertencer a alguém, porque é esse o lugar da
mulher, não é mesmo? Não estar apaixonada era como estar emocionalmente
desempregada. Porque é isso que somos para o patriarcado: funcionárias. A
palavra “patrão” tem a mesma raiz da palavra que designa esse sistema.

#49
33.Salma sem número

#boMdiAMAtriArcado
Não é essa a pessoa.
Não se despedace em vão.
Serene o maremoto entre o peito e as coxas.
Seu poder está revolto.
Será outra, que ainda não chegou.
Pessoamanhã, cujos olhos você pensa ter vislumbrado por entre as cortinas do que se
passa agora. E dispara em busca de confirmações de que seja ela, atropelando seus
próprios braços e pernas, pulando quilômetros de jornada como a mesma menina
diante da mesma amarelinha no mesmo ontem que ecoa como vazio e ainda e sempre
e hoje, especialmente, nos confunde.
Eu sei do magma que ferve nas suas veias. Sei que você supõe, com a solidão dos que
precisam demais supor, ter encontrado indícios, pegadas, um cheiro perdido entre
folhas, um elogio, um gemido cortando a madrugada, algo qualquer que possa colher
e santificar, chamar baixinho de amor.
Pois quem tem fome tem pressa.
Sei do seu estômago, tenho com ele uma cumplicidade fêmea.
Mas esse flagrante é forjado, não presta, rouba cores no jogo da existência. Todo dia
é dia para um café honesto que nos amanheça. Porque não será essa a pessoa, será
outra, alguns passos após o vendaval.
Não é essa, porque essa movimenta a sua multidão para te deixar só no final.
Não é essa, porque você sequer a enxerga ou se enxerga para além da urgência, do
ajuste, do preenchimento, da ânsia de banir memórias.
Não é essa, porque sugere banquete e te devora num lanche.
Não é essa, porque o manequim é pequeno demais para a fantasia.
Não é essa, porque reconstrói prisões familiares.
Não é essa, porque te deixa sem casa, grifa abandonos, atiça fantasmas, vai embora
com a facilidade de quem jamais esteve.
Negocia lealdades, precariza dignidades... Um “Não” despenca do “Então”.
Mas será outra, que ainda não chegou.
Será outra, depois do espelho inadiável.
Será outra, que pegue algum cansaço milenar no colo.
Será outra, que domine suavemente anatomias.
Outra, de companheirismo orgânico, riso íntimo, maratona de séries, acordar sem

#50
pressa, deixando de fora o mundo lá fora, dizendo ao colapso que o remédio para

#boMdiAMAtriArcado
todo ódio mora deliciosamente entre cobertas.
Será melhor que a encomenda, quando desistirmos da tarefa hercúlea e incessante
de encomendar.
Será a três, na fila, aguardando para beijá-la só depois de você mesma.
Será a quatro, porque teve o cuidado de marcar depois do revolucionário date consigo.
Será aquela por quem não precisamos esperar, nem desesperar.
Que tudo bem se jamais bater à porta, porque chegamos antes ao nosso próprio eixo
e lá fundamos uma civilização.
Mas se chegar, será o melhor penetra, champanhe no braço, memes no expediente,
mãos dadas por ruas amplas, caminhará sem pressa e com toda atenção às palavras
que não dizemos, celebrará o corpo exatamente como é, generosidade de elefantes,
ganhar o mundo junto com fôlego de reality show de navegadores, sorte.
Para encontrá-la, a pista nunca esteve fora de nós.
Cheque o bilhete sob seus pés: “Acalme seu brilho. Há uma constelação de pessoas.
Alguma terá cara de festa, porque te flagrará plena em plena dança”.

34. Convidamos todas as


mulheres amanhecentes para aulas
de tai chi chuan e yoga na praia
Não é preciso esperar para amar o seu corpo. Isso é deixar-se para depois. É dizer a cada
centímetro que te constitui que o seu olhar sobre você mesma e sobre tudo o que ainda
sonha experimentar é menos importante do que o resto das pessoas. O corpo é tudo.
Ao criminalizá-lo, guardamos na gaveta o instrumento por meio do qual existimos.
Esse amanhã de medidas ideais nunca chega. Você se rouba a praia, o vestido pelo
qual se apaixonou, a viagem de férias, o orgasmo da noite, a festa inesquecível apenas
porque não cabe naquilo que os outros esperam do seu tamanho. Preciso escrever no
seu espelho que a vida que deixa de ser aproveitada em toda a sua imensidão não é a
de nenhum deles. Não é dos olhos de completos desconhecidos que a beleza de uma
paisagem é descontada, como se não houvesse um direito natural a ela. O prazer de
estar por inteira em cada momento não escorrega por entre outros dedos. É somente
do seu tempo que os minutos despencam, esfarelando-se entre delícias desperdiçadas.
Ao final de uma jornada, o caminho foi muito menor do que poderia porque hoje você

#51
não aceita que precisa se tomar nas mãos, contra tudo e contra todos. Você tem o

#boMdiAMAtriArcado
direito de conduzir a história do seu corpo para onde bem entender, mas não precisa
deflagrar esse processo de se reapropriar de si mesma sendo tão dura consigo. É
possível iniciá-lo gentilmente, respeitando a forma como a sua carne respondeu aos
acontecimentos até aqui. Os movimentos de expansão e redução das suas formas, as
memórias de doenças, as condições genéticas, tudo o que está arquivado no organismo
constitui uma trajetória que é só sua, que te trouxe até esse exato momento. Não é
preciso apagar a sua força. Seja mais generosa com tudo o que o seu corpo atravessou
e aprendeu na intenção de que você seguisse em frente. Não é necessário mudar para
se adequar a tanto ódio, não premie quem nos tortura. Você pode se reinventar a partir
de um corajoso gesto de amor por si mesma.

35. Na metade de uma lunação, já


deu tempo de muita coisa
Não é porque você está querendo esse cara que necessariamente precisa aceitar as
condições que ele estabelece para a aproximação. Eu tô falando daquelas condições
mesmo que ninguém tem muita coragem de colocar em palavras, sabe? Todas as que
se enquadram na categoria ilusória de “Se chegar perto demais, ele se assusta” e outras
chantagens implícitas tão infantis quanto.

Não é porque você está querendo conhecê-lo um pouco mais que precisa topar lidar
com o sexo como moeda de troca, fingindo não notar o quanto ele te objetifica
sexualmente, ou seja, ignorando o ser humano que você é, com tudo o que tem
a dizer. Não está te satisfazendo, você deseja viver uma troca mais plena. Não se
condene a nem mais um minuto aí.

Não é porque você está sozinha, querendo ver no que vai dar, que precisa se
negociar por baixo. Você não está desesperada, pode perfeitamente fazer questão
de alguém que esteja mais disponível emocionalmente. Quem está sozinha tem
a vantagem de estar consigo, absolutamente livre para reescolher o melhor para
si a qualquer tempo.

E não é porque ele não está procurando que tem dificuldades para se relacionar.

#52
Não é uma questão de espera, de dar um jeitinho, de passar mais confiança. Caia

#boMdiAMAtriArcado
na real. Quem quer dá seu jeito. Quem tem saudades procura. Quem gosta sempre
fica mais um pouco.

36. Oração ao Arcano do Mundo


que se traz dentro do útero
Você não o ama.

Você só precisava de um rosto para colocar nesse monte de expectativas. Então escolheu
um nome com o qual sonhar para cumprir o seu papel de mulher com segurança.

Mas amá-lo, mesmo, você não ama.

Um dia te convenceram de que você não pode se dar ao luxo de estar


emocionalmente desempregada. Jamais. Ter o coração desocupado é ser menos
fêmea. Porque função de fêmea é nutrir o mundo, nem que isso represente sua
desnutrição íntima. Para ser mãe, disseram, é preciso um pai. Mulher deve ser
mãe de tudo o que encontrar pela frente.

Disseram. Mas eu te digo que você não o ama. Você sequer o enxerga.

Amar é quase sempre “apesar de”. O amor tem bons olhos. É atravessado pela
verdade e suas raízes sobrevivem. Isso que você movimenta para fugir de si toma
fôlego em repetidas mentiras. Você não o ama porque é necessário descaracterizá-
lo, fechando os olhos para quem ele é de fato, e essa é a única possibilidade de
exercer algum “Eu te amo”.

Um útero tem fome de criar. Por esse chamado, explorado culturalmente à exaustão,
colocamos toda a nossa inventividade a serviço do outro, em vez de dizer à nossa
potência criativa quem manda em quem. Em vez de deixar que ela molde a vida que
realmente queremos.

Seus tesouros estão enterrados e existir em torno de alguém é uma forma de

#53
nunca fuçar o seu subterrâneo e tomá-los. Afirmar que o deseja é apressar o passo,

#boMdiAMAtriArcado
abafando vozes internas, antes que essa mulher forte que vaga pelas suas ruas te
puxe pela mão e te conte quais são seus verdadeiros sonhos. É dela, de seu poder e
liberdade, que você tem medo.

Você é um mundo extraordinário a ser desbravado. Você não o ama.

37. Não posso, tenho um despertar


marcado pra hoje
Quando você vem tentando há muito tempo ter um relacionamento e mesmo
conhecendo pessoas nada se transforma em um vínculo maior, talvez esteja querendo
se dizer alguma coisa. Mas claramente não se escuta, fica presa a um ciclo, a um
comportamento repetitivo que expressa, em algum nível, um desespero para fugir
de si. Está ocupada demais tentando se esconder atrás de alguém. Orbitar outra
vida, à qual poderá doar toda a sua energia, entretendo-se como mulher e, em
algum nível, como mãe, enquanto se deixa de lado. É legítimo desejar amar e ser
amada, experimentar a plenitude dos afetos. Isso é uma necessidade vital. Mas se
você vem fazendo sucessivas apostas e se frustrando, isso é revelador de padrões que
precisamos quebrar para chegar a outros lugares de nós mesmas, para nos dar outros
cenários, outras condições (inegociáveis) das quais partiremos quando entrarmos em
um namoro, outra auto-imagem, outros interesses que vão nos nutrir e nos ocupar,
porque precisamos nos realizar individualmente e, para isso, não podemos ser reféns
das relações como algo central em nossas vidas. Esse imenso vazio que você sente
por não firmar nada mais sério com ninguém precisa ser preenchido por você mesma.

Algumas sugestões:
01) Encontre algo que você ama fazer, que te energiza e que te faz se sentir
forte diante do mundo;
02) Explore o grande prazer que existe em levar uma vida de solteira, abrindo
espaço para a experiência da solitude. Tem muita coisa boa em estar consigo
e você não explora;
03) Aproveite que está consigo e renove a forma como habita o seu próprio
corpo. Novos hábitos e atividades que lhe devolvam o poder sobre o corpo
te lembrarão que ele existe, antes, para você mesma;
#54
04) Cerque-se de amizades que te lembrem o quanto é prazeroso vivenciar a

#boMdiAMAtriArcado
afetividade de muitas formas não sexuais;
05) Olhe para aquilo que, na sua vida, está precisando de toda a sua atenção.
Desatar esses nós e abrir caminho para essa nova mulher que nasce em você
vai te fortalecer e não te deixar na mão de ninguém mais adiante.

Aceite a sua luz. Solarize toda a sua vida. Ajude-se a trazer algumas questões das
sombras para a claridade, para que repense sua trajetória, como quem amanhece
em si mesma. Não faz o menor sentido se deixar ser eclipsada o tempo todo.

38. Dançar até o patriarcado cair


Eu te convido a banir o abuso de poder masculino da sua vida. Olhe bem à sua
volta. Olhe bem o seu reflexo no espelho. E se pergunte, definitivamente, se você
precisa passar por tudo o que vem passando no âmbito das relações afetivas.

Pense se é preciso se submeter a joguinhos, caprichos, imaturidade, agressões


físicas e/ou verbais, dominação psicológica, sucessivas tentativas de desestímulo e
inferiorização, ausência, ameaça, abandono, ameaça de abandono, objetificação
sexual ou qualquer conduta que aproveite de você muito menos do que o ser humano
completo — muito mais do que a carne — que você é, exploração financeira,
deslealdade, constrangimento perante família e amigos, chantagens, maus-tratos aos
filhos ou a outros parentes, sexo que te atropela, machuca ou ignora sob qualquer
aspecto a sua plena satisfação, abuso do seu zelo ou da sua empatia como se você
fosse mãe de quem deveria ser companheiro, aproximações abusivas que te fragilizem
para que se possa comer e beber à vontade da sua vida para depois ir embora etc.

Acredito profundamente no que você tem a cumprir no mundo. Acredito na sua


força, no seu brilho, no seu poder, nos seus sonhos. Deixe ir embora quem não foi
capaz de enxergar a sua beleza. Deixe ir embora quem não foi capaz de te amar.
Isso não pode te esconder de si mesma. A sua missão é maior.

Há uma engrenagem sendo mantida para que você se contente em ser apenas a
sombra de alguém ou o colo infinito de um círculo de pessoas. Para que você não
seja senhora de sua própria realização. Nós precisamos enferrujar essa estrutura e

#55
retirar as próximas gerações de meninas e de meninos desses lugares previamente

#boMdiAMAtriArcado
estabelecidos para o ser mulher e o ser homem. Mas não conseguiremos fazer isso
se a sua vitalidade for tragada para fortalecer o império masculino a partir dos laços
de intimidade, que deveriam nos abastecer para tomarmos o mundo e nele operar
as transformações necessárias e justas para a maioria dos seres.

Não é possível mudar tudo de uma vez só. Mas agora é possível se tomar nas mãos,
ampliar os horizontes de interesses e existir como uma nova mulher insubmissa e
vibrante, capaz de fuder todo o projeto existente para si mesma apenas pela própria
coragem, honrando as que vieram antes e as que vieram depois de nós. Honrando
cada pegada que fez com que hoje você pudesse estar aqui lendo essas palavras.

É possível mudar a si mesma, caminhar atenta a toda tentativa de manipulação.

Seja grande, faça lembrar a adaga de deusas bélicas apagadas, seja feroz, incansável,
justa, chata por resistência, bem-humorada por reinvenção, misândrica por esporte,
seja apenas de si mesma.

Sem medo. Ou ao menos com enfrentamento do medo.

Esses são os meus votos pra você a qualquer tempo: que você seja capaz de ouvir e
dançar em seu próprio ritmo.

“Que assim seja. E assim será”, diziam as antigas sacerdotisas.

39. Aprender a chamar à porta de


um corpo que é casa
O debate sobre as fronteiras entre assédio e flerte é fundamental para nós,
mulheres, porque ele se refere ao consentimento desde as aproximações. Ele torna
muito evidente para uma mulher quando ela está sendo minimamente considerada
como uma pessoa ou quando ela está sendo reduzida ao status de presa.

Manter obscura a noção ou o exercício do consentimento por mulheres e


adolescentes só é interessante, sabemos, para aqueles cujo desejo está tão
#56
impregnado pela cultura de violência sexual que não conseguem funcionar de

#boMdiAMAtriArcado
outra maneira. É a violência sexual cotidiana, diluída em meio a olhares, palavras,
ameaças, toques e outros elementos, que sustenta a violência sexual “em estado
bruto”, isto é, aquela faixa em que vai ficando mais difícil escapar de palavras como
“abuso”, “molestação” e “estupro”.

Aqueles que não conseguem pensar ou argumentar de outra maneira, porque essa é
a sua sexualidade e ela não abre mão da linguagem violenta, terão necessariamente
mais dificuldade de compreender. Talvez sequer nos ouçam. Pois o centro de
qualquer relação está neles mesmos, é sobre eles o início, a continuidade, o término.
E para que seja possível caminhar autocentrado por tanto tempo, é preciso que
desde o início não exista exatamente um outro, a mulher, mas apenas a extensão da
masculinidade, o imaginário de império, a colonização.

Como há uma estrutura milenar trabalhando duro para que não sejamos nada além de
pedaços de carne, é possível afirmar de olhos fechados que a maior parte dos homens
heterossexuais fetichiza a violação do corpo da mulher em algum nível. Se não fosse assim,
não haveria uma indústria que se tornou milionária vendendo quase que exclusivamente
essa ideia, como é o caso da pornografia. Então tá, vamos fingir que a quase totalidade da
punheta no mundo fantasia o pleno consentimento, não o poder masculino e a anulação
de mulheres. Não é por outro motivo para além da continuidade do direito de expressar
o seu desejo como um ato de violência que um homem ridiculariza ou deturpa esse
diálogo que vimos fazendo sobre o flerte. A própria inviabilização do diálogo é que está
em questão, por isso ela é igualmente método e objetivo.

No flerte, a mulher está de posse de si, como um ser humano completo. Existe
espaço para que ela exerça algum poder de escolha. Mas se uma mulher escolhe,
prolonga ou rejeita, então ela está frustrando o fetiche da violação com alguma
antecedência. Sendo essa mulher, eu estou, em um país que nos violenta de diversas
formas na vida íntima, desde agora te dizendo que precisamos agir mutuamente
para a construção do desejo. Que ele importa para mim. Que somos iguais. Que
o seu egoísmo periga me afastar, inviabilizando a evolução deste encontro. Que
eu sou sujeito de desejos, que existe um coração batendo no que para você é
tão somente objeto. E como você não é feito para isso, para a relação, mas para
identificar masculinidade com violência, talvez isso pareça broxante. Desculpe o
transtorno, mas estamos extinguindo essa modalidade de abate.
#57
40. Convocar suas muitas partes

#boMdiAMAtriArcado
para um banquete que as lembre
de serem organismo
A modernidade líquida “legalizou” algumas babaquices. Defender-se de uma
relação antes que ela aconteça talvez seja uma das maiores delas, no plano afetivo.
Não faz o menor sentido alertar que “Olha, isso não vai virar um namoro” mal
conhecendo a pessoa. Mas certamente quase todas nós já passamos por isso. Que
autoestima surreal entrar assim na vida de alguém, não é mesmo? Acredito que
possa acontecer, que nós mesmas possamos não estar tão abertas vez ou outra,
mas a frequência com que eles fazem é anormal. Sobretudo mulheres se dão conta
e reclamam desse esvaziamento nas aproximações, porque são os homens que
detêm o poder de escolha. São elas que observam também que muito do que
as pessoas vêm chamando de liberdade são diferentes formas de objetificação
e empobrecimento dos encontros (por isso é importante questionar relações
heterossexuais abertas como espaços de manutenção de privilégios de gênero,
apontando a pressão que elas sofrem para fingir que se sentem livres e garantir
diversidade sexual a eles). Muitas mulheres acreditam que precisam se adequar a
essa realidade precária do ponto de vista afetivo, pelo simples medo da solidão.

Por que eu posso querer conhecer profundamente o seu comportamento sexual,


mas tudo bem jogar no lixo o que você tem a me dizer e me marcar como ser
humano, por pânico do rótulo que isso pode vir a ter? Como eu posso ter certeza,
de antemão, que não vou querer construir nada ao seu lado? Eu mal te conheço.
Por que o desespero de não se envolver antecede as trocas? E assim, como é uma
tendência que vem se tornando comum nas aproximações, só resta a quem quiser
algum contato que se submeta às regras do jogo. Eu passo a ser carta fora do
baralho se não entendo que as pessoas estão funcionando dessa forma; se não
entendo que a minha necessidade de dividir o que estou fazendo em um certo
momento pode soar pegajosa; se não me desumanizo escondendo a alegria por
alguma mensagem no meio do expediente.

Mulheres ensinam a outras mulheres coisas do tipo “finja que não está interessada” ou
“não ligue se ele não ligar”, por medo de violarem a norma de que não podem sugerir

#58
envolvimento — norma que não foi estabelecida por elas. Nem exatamente por eles,

#boMdiAMAtriArcado
mas que decorre de uma chantagem geral sobre a ideia de libertação sexual feminina,
tornando isso uma pressão coletiva e inevitável em um sistema onde gêneros ainda
se hierarquizam. A quem favoreceu de fato a chamada “revolução sexual feminina”,
se vivemos tempos onde optar por adiar ou evitar o contato sexual, por exemplo, faz
com que uma mulher seja julgada como retrógrada? Mas se nós estamos sujeitas a
tantas violências na intimidade, não seria mais sensato justamente conhecer os novos
parceiros um pouco mais, antes de entrar de cabeça em qualquer coisa? Não seria o
esperado estranhar tanta intimidade sexual acompanhada de tão pouco conhecimento
da personalidade, dos sonhos, das expectativas ou da história de vida?

Mas tudo isso é visto como sinal de imaturidade, de ser mal resolvida e, agindo desta
ou daquela forma, nos deparamos com um sentimento de inadequação.

Fato é que demonstrar carinho passou a ser perigoso. Há uma cultura de negação
dos sentimentos que nos orienta subliminarmente a gostar de quem não gosta de
nós. Ora, se eu devo ignorar uma pessoa para ser objeto de sua atenção, então estou
assimilando que só damos atenção a quem nos ameaça com o descaso. Nada mais
em conformidade com a sociedade de consumo e com o enraizamento dos seus
valores dentro das relações, tornando as emoções passíveis de descarte, produzindo
encontros vazios em série, desnaturando para que sejamos máquinas (aplicativos?)
no lugar de animais afetivos. Que deserto é esse que estamos construindo? Talvez
seja hora de falar em sustentabilidade e em resistência também no âmbito dos
sentimentos.

41. Trilha ao vale do eco das


feridas ancestrais para entoar cura
Uma decepção amorosa dói sobre todas as outras. Porque cada uma se vê carregada
de algum nível de violência de gênero ou de memórias dessas violências — nossas
e de mulheres que temos por referências. Mesmo uma rejeição recente pode mexer
na angústia de ter um pai ausente, por exemplo, mostrando que não é questão
de encontrar um novo rosto que preencha momentaneamente esse vazio, porque
a nossa dor é muito mais velha, os desencontros que nos (des)estruturaram têm

#59
essa força da anterioridade. Ao mesmo tempo em que tentamos administrar esse

#boMdiAMAtriArcado
comando de uma vida inteira, profundamente enraizado em nós, de que devemos
ser coadjuvantes de alguém, um amor, para que a vida faça sentido, as esperanças
de descansar emocionalmente do mundo em uma relação saudável sofrem baques
o tempo todo. Porque vivemos um tempo em que os laços se mostram cada vez
mais precários. Esses baques se encadeiam, em efeito dominó. E aí, o que era
pra doer apenas hoje dói dentro de todas as mulheres que fomos. É por isso que
estranhamente choramos mais pela última experiência, mesmo não tendo sido tão
significativa quanto outras. Porque é a referência mais fresca e porque estamos
cansadas, porque é ferida feita em cima de ferida.

Mas então o que sobra de nós? Nós sobramos de nós. Tudo passa e nós ficamos.
Somos nossa própria casa e é preciso cuidar bem dela, não alienando nosso
patrimônio por qualquer visita. Essa solidão que pensamos nos definir como
mulheres não será superada se não estivermos dispostas a uma reconstrução
profunda da forma como nos contamos nossa própria história de vida. Devemos
nos dizer incansavelmente que essa vida existe para nós, para nos realizarmos
individualmente dentro de um propósito e a partir dele contribuir com a
coletividade, e não para esse outro abstrato que esperamos eternamente chegar,
porque um dia nos foi prometido que uma paixão daria conta de nos preencher.
Paixões chegam ou não, chegam e vão embora. Nós ficamos. Devemos ficar
conosco. Para isso, é preciso uma reconstrução “femeocentrada”, isto é, onde
você não esteja mais à margem de si mesma, desalojada e em busca de alguém
em quem possa morar. Onde mais do que nos deixar determinar pelo que nos
fizeram, reescolhemos o que fazer, dentro de nossas possibilidades, daquilo que
nos fizeram. É importante, por exemplo, perdoar-se muitas vezes por ter caído
nas garras de um sistema que nos inferioriza, pegando-se no colo e dizendo,
mais uma vez: “Você merece mais, não fique aí, ouse desejar mais”. Bem como
é preciso perdoar, ao menos internamente, outras mulheres que nos compõem
e que nos formaram, compreendendo suas limitações e o quanto de violência
também sofreram, restaurando uma cumplicidade ancestral que nos foi roubada,
já que competir se tornou a norma. Nossa cura transpassa o tempo. A missão é
maior. Uma decepção amorosa não será nada. Restauraremos a força da totalidade
de mulheres, hoje, ontem e amanhã.

#60
42. Senhora Desatadora de Nós

#boMdiAMAtriArcado
Minimizaremos os esforços estéticos e emocionais, a cobrança sexual, os gastos
financeiros e o tempo de locomoção para nos encontrar com um homem.

Aboliremos qualquer forma de tortura que um dia nos dissemos ser necessária para
mantê-lo por perto.

Minguaremos pouco a pouco a nossa existência como um espaço que existe para
o agrado alheio. Com inesquecíveis farras periódicas onde só convidaremos a nós
mesmas. Diremos que é a nós que o corpo serve. Diremos que “embelezar-se” não
é o mesmo que “anular seus traços reais”, mas uma possibilidade — jamais um
dever — de celebração do corpo.

Desataremos os nós inconscientes que hoje não nos autorizam a conquistar outros
territórios, aproveitando todos os nossos dons, curiosidades, ideias, poderes,
sonhos, expandindo nossa experiência terrena por caminhos que aquelas que
vieram antes garantiram com seu sangue.

Para que nenhuma menina mais exista à margem de si mesma. Para que nenhum
menino passe a vida desconhecendo o seu potencial de amar e dialogar.

43. Toda vulva aberta é um livro


sagrado aguardando leitura labial
Sei muitas coisas sobre você. Sei que em alguns momentos você se sente exausta
emocionalmente por sucessivas tentativas unilaterais que não deram certo. E que
caminhar sozinha tem repousado uma muralha sobre os seus ombros. Mas que, não
raro, essa solidão é a dois. Eu te sei sem saber, é como se houvesse, diante de mim,
um corpo de mulher adormecido, tentando buscar refúgio em seus próprios sonhos.
Lembro, sem conhecê-la, das vezes em que você se desdobrou feito máquina para fazer
todo o trabalho afetivo sem o qual suas relações evidentemente não se sustentariam:
passou horas quebrando a cabeça para reinterpretar um diálogo, mutilou suas frases
para que não assustassem em intensidade, sentiu-se responsável por sinais confusos,

#61
por vezes propositalmente confusos, que te emitiram, puxou para o seu útero diversos

#boMdiAMAtriArcado
erros que não cometeu, repassou mentalmente narrativas de vida que justificariam
qualquer perdão além das suas possibilidades, quis reinventar os fatos como se os
pudesse pegar no colo. A mulher em seu espelho adoece de paixões desperdiçadas.
Seu brilho esmaece. Tudo o que você gostaria é que um milagre acontecesse e que
só por um momento você pudesse se sentir acolhida, reconhecida, poupada. Amada.

Mas também sei de muitas coisas que você não foi levada a conhecer a seu respeito.
Que talvez uma parte de você, uma parte indócil, saiba e guarde selvagemente, como
um segredo bruto que espera o fruto maduro. A primeira delas é que essa inesgotável
capacidade de recolher todos os erros alheios em seus seios advém de uma grandeza
emocional que flui na direção errada. Em vez de nutrir e acolher você mesma,
reexplicando o mundo pacientemente para todas as meninas e mulheres que você já
foi, lembrando e dizendo “Não é culpa sua”, seu poder está sempre à disposição de
quem passa (você fica). Mas imagina, imagina só se tamanha potência afetiva te contasse
que seus ombros existem antes para você mesma. Então você teria para sempre alguém
que não vai embora. Alguém cuja companhia ainda há muito para revelar em prazer,
porque durante todo esse tempo vigorou a crença de que só era possível ser feliz ao
lado de um outro. Todo tesão se torna inédito quando voltamos para nós mesmas. Há
um corpo curioso para conhecer o quanto de realizações pode se dar. Há uma alma
que não aguenta mais ficar à margem de si mesma, que precisa urgentemente assumir
seus dons, seus sonhos, seus desejos, sua grandeza diante do mundo. Há uma imagem
a ser reinventada, uma fantasia a ser materializada, uma estrada a ser desbravada
na companhia daquela que ainda não vislumbrou a imensidão dessa aventura de
viver, por estar sempre à espera, inacabada, ao meio. Este alguém que você busca
desesperadamente nunca esteve fora. E não vê a hora de te encontrar.

44. Toda vulva aberta é um


disco sagrado aguardando
discotecagem matriarcal
Sei, ainda, de outras coisas a seu respeito. Mesmo sem te saber. Sei do quanto a
sua saudade arde, ameaçando o raio de estabilidade que você precisa ter para as
coisas ordinárias, cotidianas. Sei que você se lembra de um rosto, de um formato

#62
de corpo que parece feito para o seu encaixe definitivo, de momentos que parecem

#boMdiAMAtriArcado
estar frescos, em um ontem muito mais perto do que o amanhã. É para trás que você
olha. Está fincada na passagem que se fecha, não ousa imaginar as portas por abrir.
Não ousa apropriar-se desta narrativa e só por um minuto pensar que, onde tem a
impressão de que perde, talvez apenas se livre. É possível que você tenha chegado
àquele ponto onde erramos na mão do quanto nos expomos, por meio de uma
procura unilateral. A vida parece, de repente, ter o seu sentido comprometido: para
que tanto desejo em vão? Ou qualquer pergunta análoga, não importa, tudo se traduz
em “Por que não eu?”. Há um vazio que a nada é permitido consolar, que em algum
nível te desonra, subestima, desperdiça e te faz duvidar — novamente — do seu
valor. Você se sente impotente, com um universo de belezas, as suas maiores belezas,
escorrendo por entre os dedos. Pensa que não existirá alguém semelhante, um gosto
que supere, um encontro comparável, na urgência da sua solidão.

Também sei de outras tantas coisas que você sabe, mas não se permite admitir. Sei,
por exemplo, que o caminho é imenso e os encontros são inesgotáveis. Há sete
bilhões de pessoas no mundo, com suas riquezas e misérias, é bem verdade, mas
onde o saldo de vida por explodir é inegavelmente positivo. Sei que você é única.
E que se alguém que teve a oportunidade de estar ao seu lado e foi enxergado e
celebrado em sua singularidade, mas não foi capaz de te enxergar e celebrar na
sua, então essa troca é desproporcional. Alguma parte de você sabe muito bem o
que está abaixo do que você precisa e merece como mulher. Conecte-se com ela. É
possível tocar uma relação precária por um tempo, mas não é possível diminuir-se
para caber nos horizontes de outra pessoa quando você não deseja menos do que
voar. É hora de ouvir o que está tentando dizer a si mesma. De comparecer aos
encontros consigo. Sei que você pode deixar ir o que não te fortalece e que pode,
finalmente, olhar nos olhos dos seus padrões e compreender por que insiste nesse
tipo de ferida, como foi que ela se formou na construção da sua afetividade. Não
há outra maneira de curá-la. Não existe um destino amoroso feliz que te despeje de
sua vida para acolher um outro em seu íntimo, sua casa. Qualquer um que te visite
deverá te encontrar devidamente preenchida por sua própria presença. E sabemos
que esse processo começa agora, tomando fôlego no que não vingou, no que não
deveria vingar justamente para que o autoconhecimento fosse deflagrado. Chegou
a hora de dizer às emoções quem é a dona de quem. De desejar mais da vida, em
vez de se contentar com o que aparece. Chegou a hora de assumir a mulher incrível
que você realmente é.
#63
45. Lembrar-se de como são

#boMdiAMAtriArcado
múltiplas e precedidas de artigo
feminino as possibilidades de
escolha
Aquele que realmente deseja encontrar:
(x) não vê a hora;
( ) deixa pra depois, oportunidade não faltará.
Aquele que realmente deseja encontrar vai arrumar:
(x) um jeito;
( ) uma desculpa.
Aquele que realmente deseja encontrar, desde agora:
(x) procura;
( ) não expressa sua vontade.
Aquele que realmente deseja encontrar tem:
(x) mais fome que medo;
( ) mais medo que fome.

46. Fazer um brechó das relações


que ficaram pequenas para nós
Você precisa de paz, não dele.

Pra ter paz, precisa dizer a si mesma que existe mais vida além dele.

E isso não é instantâneo, sabe. Há um tempo de relação construída, não é mole quebrar
tudo o que ela deixa em nós. É uma marca na sua história. Mesmo que fosse algo breve,
só ficou difícil ir embora porque mexeu onde mexeu — e esse conselho vale também
para alguém com pouco tempo de vínculo, mas com dificuldade de deixar ir embora.

Qualquer coisa que eu te diga terá seu próprio tempo de agir em você. Mas se você
quer mesmo o meu conselho, acho que você precisa quebrar esse mito em torno dele,

#64
isto é, a imagem intocável de alguém que você não pode superar. Você pode e deve

#boMdiAMAtriArcado
superá-lo e pra isso tem que se ajudar a se mostrar que existe mais vida.

Algumas coisas que podem te ajudar a multiplicar a quantidade de vida à sua volta,
quebrando o mito dele, em três passos:
01) Você precisa de uma rede, mesmo pequena, de amizades que possam te dar
afeto, te levar para sair, fazer você sorrir. Isso vai te convencer de que vale a
pena viver outras coisas que não contenham a presença dele. Você vai voltar pra
si mesma mais leve, depois de uma noitada com amigas, por exemplo. E noitada
pode ser na rua ou simplesmente reuni-las em casa.
02) Segunda parte: você vai colocar no papel coisas que gostaria de viver e que
não poderia viver porque estava com ele. Ou seja, você vai contar a si mesma
que você sabe, de alguma maneira você sabe, que deseja ter uma vida muito
maior e melhor do que teria ao lado dele agora. Você vai confessar aquilo que
está dentro de você e da qual por muito tempo precisou se esconder: você
sabe que deseja mais da vida. Sabe que seu destino não é ficar presa a um
homem que limita a sua felicidade e o seu crescimento. Você vai admitir que,
no fundo, deseja voar e está te doendo demais se desapegar de tudo o que
vinha tentando construir.
03) Você vai se dar chance de olhar para outras pessoas. Não estou dizendo que
você vai ficar com ninguém agora. Respeite seu tempo. Acho que você precisa
apenas se abrir à ideia de que existem 7 bilhões de pessoas no mundo e não
está condenada a ficar com alguém que não esteja em condições. E, para isso,
precisa mostrar aos seus próprios olhos que existe mais gente interessante,
sim. Gente interessante, nessa fase, nem sempre é gente que tem tudo a ver
com a gente, é só quem nos lembra de que estamos vivas no mundo. Quem
acessa coisas em nós que sozinhas não estamos conseguindo acessar por ora.
Não necessariamente é alguém para ficar na sua vida. Não necessariamente
você vai transar ou até mesmo beijar, a menos que realmente queira. Você só
precisa deixar que outros seres humanos reativem a sua vontade de viver e a
sua admiração por você mesma, a reconexão com seu corpo, com suas muitas
belezas. Dizer-se que o novo sempre vem. Ao se encontrar com amigas, você
ativou isso de modo fraternal, agora chegou a hora de voltar a perceber que a
sua energia sexual é sua, não dele.

#65
E, por fim, vá retomando a sua rotina aos poucos, se reapaixonando pela vida em sua

#boMdiAMAtriArcado
própria companhia. Invente coisas para fazer sozinha, cuidados com o corpo, coloque
projetos no papel, faça planos de viagens, saia novamente com suas amigas, flerte,
sonhe com coisas que nunca se autorizou a sonhar por todo este tempo, resgate
velhos desejos que ficaram pelo caminho. Você está viva! Então viva!

Ah, se aceita mais um conselho, dê um tempo no contato com ele. Corte, se possível,
completamente. Se houver questões pendentes de ordem prática, como dinheiro,
bichos de estimação, bens em comum a resolver, fale apenas o essencial. Mas, por
enquanto, corte tudo o que puder, corte ao máximo. Você não precisa ser didática
ao decidir fazer isso, você só precisa se proteger. Procure alguém com quem possa
conversar em segurança, não se exponha procurando por ele. Afaste-se, não deixe que
ele atrapalhe a sua reaproximação com você mesma. Vai haver o tempo de vocês se
falarem, se você quiser e quando estiver bem pra isso.

— Conselhos para uma mulher que veio ao meu encontro, com muita dificuldade de
deixar ir quem não desejava mais ficar. Ou “Essa relação ficou pequena para você”. (A
transcrição foi autorizada)

47. Publicar um ensaio a batom


em seu próprio corpo e ir ao
mercado
Gozar e ir embora. Se todo esse ódio triunfa no mundo, também as relações
íntimas se descaracterizaram como fontes de transformação afetiva. Abaladas
pelas urgências e superficialidades, já não conhecem mais seu próprio tempo. E
se, não conhecem, não prosperam, isto é, não nos acessam profundamente, não
nos trabalham, não nos conectam com o nosso melhor. Perderam a sua função de
espelhamento. Vivemos uma cultura de fácil descarte e nos perdemos de tudo
que temos a oferecer uns aos outros. Estamos nos esquecendo de quem somos —
animais afetivos — para agir como máquinas.

Esse pânico que a coletividade vem desenvolvendo de continuidade/convivência é


a morte da intimidade como parque de diversões. Quase não nos permitimos mais

#66
viver trocas que se deem para além do corpo. Ou somos a parte que tem pânico

#boMdiAMAtriArcado
de rótulos ou somos a parte que sente muita vergonha de parecer cafona, carente,
frágil, dependente de rótulos. Nos dois extremos há processos de desumanização.
Nos dois extremos, não estamos sendo quem somos de verdade. Mas relacionar-se
não precisa ser um peso, não precisa transcorrer com sisudez, pode ser a construção
de um território em comum tão prazeroso que reabasteça as suas energias para
enfrentar tudo de ruim que acontece no mundo “lá fora”.

Como feminista, entendo perfeitamente a importância de quebrar elementos da


cultura romântica, mas também creio que amar e imaginar enquanto ama sejam
necessidades reais, bem como respeitar o seu próprio tempo, o tempo do seu
corpo se entregar, o tempo de amadurecer o seu “sim” e o seu “não”, o tempo do
seu peito desarmar, o tempo de sair da simples projeção para sentir curiosidade
por alguém como esse alguém realmente é. Então é importante questionar
a cultura romântica como um bombardeio de idealização que aprisiona as
mulheres, mas se você a fuzila, por exemplo, com a rotatividade e objetificação da
“civilização dos aplicativos de encontros” ou com um discurso de relação aberta
que só valida privilégios masculinos, o que você está deixando no lugar é apenas
sociedade de consumo.

48. Tomar banho de bambu para


andar inquebrável
Eles te chamarão de moralista todas as vezes em que você for firme e bater o pé sobre
o quão inegociável é, para você, a dignidade humana das mulheres.

Sempre que você perceber que sua totalidade não se confunde com os seus desejos,
que você não os é, mas os contém, e que pode dizer “Não” a qualquer tempo, também
dirão que você é moralista.

E, ainda, quando você se colocar de igual para igual, estabelecendo os seus limites
diariamente, na micropolítica dos relacionamentos. Não consentindo com qualquer
esboço de violência física, sexual, psicológica ou patrimonial contra você ou contra outras.

#67
Eles te dirão que você é moralista sempre que você disser: “Não fomos nós que

#boMdiAMAtriArcado
inventamos que uma mulher precisa ser compartimentada em afetividade e sexualidade,
essa é uma demanda da objetificação sexual, da cultura do estupro, do comércio dos
corpos. Nós não funcionamos assim, nós apenas aprendemos a nos enquadrar”.

A chantagem de ser chamada de “moralista” estará presente desde as aproximações,


quando você não achar seguro mandar fotos ou vídeos íntimos, sabendo que a maior
parte desse material é exposto como vingança depois que os vínculos acabam. Isso é
produzido para ser exposto em algum momento.

Você parecerá insuportavelmente moralista quando não achar que é liberdade sexual
uma indústria que prega como normal uma mulher jovem se vestir de criança para
fazer sexo diante das câmeras com um homem idoso, com uma legenda que exalte o
abuso intrafamiliar. E quando uma outra mulher tiver o intestino atravessado por um
antebraço, ou quando receber dinheiro para forçar um prolapso para que um homem se
masturbe olhando os seus órgãos serem deslocados.

Não tem nada de errado em não se sentir confortável com pornografia. Ou em


perceber que o direito social e historicamente garantido a eles de se servirem
de prostitutas impacta as vidas de todas as mulheres e crianças. Não tem
nada de errado em não topar certas “fantasias”. Não tem nada de errado em
não querer sexo casual. Ou de não disponibilizar a sua bissexualidade para
o deleite alheio. Você não é obrigada a ser sexy o tempo inteiro. Você não
precisa mutilar o seu corpo para caber no tesão dos outros. Você não precisa
se reduzir ao que pode oferecer sexualmente. Não precisa abrir a relação. Você
pode se retirar a qualquer momento de uma situação ou convivência que te
faça se sentir menor.

Você será julgada antiquada por ter percebido que a lógica dos aplicativos
é a de naturalizar que os homens realizem o sonho da diversidade sexual
irrestrita, sem a menor responsabilidade afetiva, sem a menor preocupação
com a transmissão de doenças, em um dos países onde as mulheres mais
sofrem violência no planeta, inclusive psicológica, enquanto nós continuamos
sendo socializadas para aguardar ser descobertas por um amor que transforme
nossas vidas.

#68
Você será cafona, retrógrada, exagerada, moralista por não achar normal que um

#boMdiAMAtriArcado
homem faça questão de demonstrar que olhou sexualmente para você na rua. E
para a sua filha.

Você soará como ultrapassada por querer ser vista como um ser humano
completo, para além da sua constituição física. E suas falas serão incômodas,
porque há muitos e muitos séculos nós somos o playground sexual do mundo.
Então eles te dirão que você está querendo controlar o tesão dos outros, que
nos desejos ninguém manda, que não sentir atração por mulheres assim ou
assado é apenas questão de gosto.

Você será moralista porque ousa enfrentar um sistema que garante cada vez
mais a todos eles a satisfação irrestrita de qualquer coisa que possam imaginar
sexualmente, sempre à custa da humilhação de meninas e mulheres.

Mas nós estamos construindo uma ética que eles não têm referências para
compreender, porque são a parte sexualmente mimada da história. Aquela
a quem foi dado o direito de chegar ao orgasmo por meio de um repertório
inesgotável de violências.

Pois que eles se fodam. Permaneça forte, não se deixe intimidar. Você sabe quem
você é e aonde estamos querendo chegar: a uma sociedade livre para todas nós
e não livre para fazer qualquer coisa conosco. Seja moralista, seja marginal.

49. Tirar sua cosmogonia do papel


É muito libertador pensar em não ter marido ou filhos e sentir que está tudo bem.
Levei anos e muitas desilusões amorosas pra me permitir pensar nisso pela primeira
vez. E, ao me permitir, senti alegria e muita fome de viver. Um alívio substituiu a lição
que me passaram de que não me casar ou não engravidar seriam sinais de fracasso.
Também posso mudar de ideia e ser mãe adotiva, quando quiser.

Quando eu tinha uns 3 ou 4 anos, parecia essas meninas, bem crianças mesmo, que
a gente vê chorando, em diversos vídeos na internet, porque estão apaixonadas por
um menino da classe e vão mudar de colégio. Vídeos que os pais postam e acham

#69
lindo. Há vídeos assim onde elas se declaram para professores. Eu era apaixonadinha

#boMdiAMAtriArcado
— ou sei lá que nome isso tem — por um dos integrantes do grupo Dominó e alguém
chegou a se passar por ele pra falar comigo ao telefone. Esse incentivo a existir em
função de uma presença masculina está presente na nossa socialização muito antes
de sabermos o que é envolver-se emocional ou sexualmente com alguém. Mesmo
as bonecas bebês que nos são dadas já falam sobre maternidade compulsória, sobre
heterossexualidade compulsória e sobre dependência emocional. As panelinhas,
casinhas e princesas dizem qual deve ser o nosso lugar no mundo.

Mas eu te pergunto, mulher: quem somos nós, realmente, fora de tudo isso?
Quem é você, afinal? Que tipo de vida você deseja fora do que te ensinaram?
Quem seríamos nós, se não tivéssemos recebido essas informações? Estaríamos
obcecadas por “dar certo com alguém”? Ou nos colocaríamos como o centro
das nossas vidas? Precisamos nos dizer quem somos. Reescreva a sua história.
Conte a si mesma uma narrativa de autonomia, contra a posição de sombra que
insistentemente a família, a escola, a religião, a mídia e a sociedade inteira te
disseram. Resgate-se dos escombros que fazem de você um ser humano que só
se legitima por meio da presença de outro, sendo este do sexo masculino. Há
muito com que sonhar e que conquistar para além de casamento e filhos. Essas
coisas podem acontecer ou não. Há um mundo que nos espera, pedindo para
ser descoberto.

50. Desatar as algemas da vítima


e beijar-lhe os pulsos com
delicadeza e bálsamo tantas vezes
quantos forem seus anos de vida
Ok, fomos assediadas, abusadas, abandonadas, traídas, humilhadas,
ridicularizadas, tivemos nossos corpos apontados, recebemos menos, assumimos
os filhos sozinhas, temos medo de andar na rua, envelhecemos solitárias,
aguentamos muito mais do que qualquer ser humano deveria aguentar. E muitas
outras coisas.

#70
Eu só não queria que a gente parasse a nossa história na constatação disso tudo.

#boMdiAMAtriArcado
Porque uma coisa é diagnosticar, outra é a cura. Uma coisa é observar como tudo
é feito conosco, a fim de que nunca mais meninas estejam sujeitas a isso. E, uma
vez que despertamos, esse processo não para nunca mais. Outra coisa é a nossa
vida hoje, exatamente abaixo desse projeto de mulher livre do futuro, o que está
ao nosso alcance ressignificar e reescolher. O que fazemos de nós hoje? O que
fazemos hoje do que foi feito conosco?

Que o nosso discurso não seja constituído da simples valorização do sofrimento.


Precisamos, sim, conversar sobre nossas experiências abertamente. Mas essa é
apenas uma etapa inicial do levante de mulheres. A próxima, que eu pouco vejo
ser construída, é ir dizendo a cada uma dessas dores o que ela precisa ouvir para
deixar de nos aprisionar. Precisamos disso, de libertação. Agora. Construir essas
narrativas que admitem a causa do nosso sofrimento como sistêmica também
corre o risco de nos estacionar, de nos deslumbrar, de nos deixar inebriadas
demais pela exaltação histórica da dor feminina. Denunciar as violências não
pode ser algo instrumentalizado para nos escravizar emocionalmente, fazendo
com que andemos em círculos.

A liberdade não pode ser uma figura utópica quando tratamos de direitos
humanos de mulheres. Deve ser um exercício. Não pode existir distante de
nossas histórias, de nosso cotidiano. Foram muitos “nãos”: não pode isso, não
pode aquilo. E acreditamos em todos eles, muito mais do que imaginamos. Para
além de denunciar esses impedimentos, devemos sabotá-los. E devemos fazer
isso para ontem, nos jogando mais na vida, que não parar de acontecer, do
que no conflito que pensa a vida filosoficamente e acaba se apaixonando pelo
pensar, romantizando inevitavelmente a dor. Precisamos voltar lá, no processo de
formação de cada uma dessas mágoas e dizer a elas que nós as possuímos, não
são elas que nos possuem. Que nós somos maiores, que elas não nos determinam.
O que cada uma de suas dores te ensinou que você não poderia fazer? Decifre
esses comandos, decifre os estragos. Mas FAÇA. Na contramão, não perca
tempo. Encha-se de coragem e FAÇA. As próximas gerações agradecem e a sua
singularidade, hoje, também.

#71
51. Desenhar medos e transmutá-

#boMdiAMAtriArcado
los pelo fogo. Desenhar desejos
e regá-los em um vaso com
terra. Obs.: abrir as pernas e
sangrar por cima.
01) Liste seus últimos envolvimentos. Uns cinco, se possível. Escreva o nome
do primeiro fulano, centralizado. Embaixo, duas colunas, uma contendo as
cinco coisas que você mais gosta nele. Outra contendo as cinco que você não
admite. Repita o exercício para cada um.
02) Agora outro papel. Sem nome. Cinco adjetivos que um parceiro ou
uma parceira precisa possuir, aqueles que sejam imprescindíveis para uma relação
contigo. E mais cinco características inaceitáveis em uma parceria amorosa.

Cruze as listas. Parece bobo, mas o resultado rende um material muito


interessante. Perceba quantas vezes se submeteu ao que, para você, é
inadmissível. Perceba quantas vezes abriu mão do que era imprescindível. Em
muitos momentos, deu a si mesma exatamente o oposto daquilo que buscava.
Por que rouba no jogo contra você mesma, por que acha que precisa passar por
certas coisas, por que não acha que é digna do tratamento que deseja?

As pessoas não serão como queremos e é nas diferenças que reside o nosso
processo evolutivo, sim. Esse não é um exercício que valida a tendência à
idealização romântica, mas pelo qual começamos a investigar certos padrões. A
pensar submissão. A nos abrir a essa conversa íntima. Atentas à dimensão menos
consciente das nossas escolhas, abrimos espaço para novas e melhores escolhas.

Espero que ajude.

A página 2 é sempre sobre solitude.

#72
52. Outra magia oral de lua nova

#boMdiAMAtriArcado
em projeto crescente
Liste:
01) Um traço ou comportamento que você nunca tolerou em um companheiro
ou companheira;
02) Um traço ou comportamento que você tolerava, mas agora não tolera mais;
03) Um traço ou comportamento que você ainda tolera, mas sabe que precisa
parar de tolerar.

Pode ser mentalmente ou aí, sozinha, em off. Pode ser mais de um em todos os casos.
É só pra você se lembrar de como era, de quando começou a estabelecer os seus
limites para os outros, de quando começou a dizer “sim” a si mesma. E para continuar
banindo o que precisa ser banido e para continuar se autorizando a desejar mais.

53. Visualização de um chá entre


Rainha de Copas e Rainha de Ouros
Eu me lembro das muitas vezes em que precisei ir além dos meus limites para
ser aceita. Desde pequenos gestos, nas aproximações, como dar um presente nas
primeiras semanas para mostrar que aquele não era mais um envolvimento banal,
quando só eu estava de fato envolvida, até passar horas quebrando a cabeça para
encontrar uma solução profissional que um namorado não havia encontrado
porque não desejava. A gente precisa preencher apressadamente todos os vazios,
não dar espaço para que a pessoa elabore as coisas por si só, responder por ela
para que a conversa não esfrie, infantilizá-la para convencê-la de que o nosso
cuidado é imprescindível, protegê-la de si mesma e da vida. Porque é assim que
gostaríamos de ser tratadas. Porque pensamos que fazendo além da conta existe
alguma garantia de que seremos também cuidadas, reconhecidas, valorizadas.
Estamos sempre de prontidão, dedicando o nosso intenso trabalho emocional.
Como boas mães que fomos ensinadas a ser. Quando é que teremos tempo
para cuidar de nós mesmas e nos dar o valor que esperamos — investindo duro
enquanto esperamos — que um outro nos dê?

#73
54. Sessão de regressão de memória

#boMdiAMAtriArcado
Já fui aquela mulher que está sozinha no início de uma relação, esperando pelo
momento em que pode anunciar a todos que ela começou. Dentro disso, já fui
também a mulher que tomou conhecimento sozinha de que não havia relação
alguma, bem como já fui aquela que se descaracterizou para que a relação
tivesse, finalmente, início, apagando todos os traços que pudessem “assustar”
quem já não queria tanto assim estar ali mesmo. Obviamente, esses traços
vieram à tona depois. Porque essa sou eu. Porque meus excessos talvez só sejam
criminosos para quem é pouco.

Já fui aquela mulher que trabalha sozinha para que a relação aconteça. Que é a
mãe, a melhor amiga, a coach, a amante, a enfermeira. Dentro disso, fui também
aquela que foi se deixando de lado pouco a pouco, pagando para realizar esse
trabalho, pagando com a minha sanidade. Estive profundamente só a dois, sem
compreender como é que mesmo doando tudo o que eu tinha de melhor, as
coisas nunca fluíam para que eu tivesse um descanso, um momento de segurança.

Já fui aquela que continuou ali, acreditando que havia relação, quando todos já
sabiam que eu estava sozinha. A última a saber do desgaste, aquela que não podia
compreender como é que, mais uma vez, havia se dedicado tanto para nada. Que
achou que era só uma fase, que ele evoluiria, que uma hora poderia se reapaixonar
por mim. Alguém que ficou presa para sempre na beleza do primeiro mês, esperando
que o tempo pudesse voltar, como se tudo fosse um grande equívoco: o tempo
não passa, as pessoas não se mostram, não se acomodam, não desgostam quando
notam suas fragilidades.

Já fui também a que se manteve pacientemente à espera daquilo que jamais


reaconteceria. E aquela que se negociou por baixo para reacontecer. E mais aquela
que inventou um amor que não existia só para ficar mais um tempo dopada,
inspirada, em contato com o seu melhor lado. Fui aquela que não conseguia achar
muito sentido em estar com o coração desempregado. Apaixonólatra. Fui a outra,
fui a enésima, fui harém, fui sempre de um outro, diversas vezes, sem fazer ideia do
que significava ser minha. Até que um dia, exausta, não tive muita escolha, a não ser
testar se isso que falavam sobre amor próprio era verdade mesmo.

#74
55. Sessão de ressignificação

#boMdiAMAtriArcado
de memória
Até que um dia, exausta, não tive muita escolha, a não ser testar se isso que falavam
sobre amor próprio era verdade mesmo.

Dizem que você deve se amar, mas ninguém te diz como. Ninguém entrega a
fórmula, que fórmula? Então primeiro você pensa que pode representar isso: “Se
eu demonstrar que me amo, naturalmente terei amor correspondido”. Mas é como
roubar no jogo. Você acredita que ao emitir a mensagem de que sua autoestima
se amplificou da noite pro dia, quem te despreza inevitavelmente morderá a isca.
Continua sendo por um outro, nunca por você mesma. Ao não criar intimidade
consigo, uma mulher desperdiça a extraordinária potência existencial armazenada
em se tornar sua melhor amiga.

Caímos no conto de que basta não ligar para que exista procura, de que “um macho
precisa sentir o cheiro de outro” (quem nunca ouviu essa?), de que as pessoas só
dão valor quando perdem. E, em algum nível, tudo isso funciona em curto prazo,
sim. Mas o cansaço emocional é o mesmo, não relaxamos nunca, porque estamos
apenas fingindo que não nos importamos. Ao mesmo tempo, há um tiro no pé
em longo prazo: estamos alimentando a cultura de que as pessoas devem ser
desprezadas para que assumam seus afetos, de que vale mais quem está em posição
de controle, porque fomos todos programados para entender e viver as paixões
como relações de poder.

A partir desse equívoco, temos todas as fórmulas apresentadas por revistas


femininas e livros de autoajuda, para que as mulheres continuem chovendo
no molhado de uma caricatura de feminilidade, seguindo essa ou aquela regra
pelo desespero de não ficar sozinhas. E, assim, continuam caminhando sem
que se conheçam, sem que aprendam a tatear seu próprio corpo, a conhecer
intimamente seus desejos, seus padrões psicológicos, sem que se deem a chance
de ressignificar seus traumas, as violências de gênero que testemunharam em
família e que construíram sua noção de amor ou os pontos exatos onde se
traem. Deixam de impor seus limites nas relações, de fazer algo maior de suas

#75
dores e de experimentar outros horizontes para além de existir em função de

#boMdiAMAtriArcado
outras pessoas.

Esse comando de auto amor é transmitido de forma vazia, mas estou voltando dos
meus maiores abismos para te dizer que ele é um mistério no qual nos iniciamos.
Amor próprio só chega com autoconhecimento, é quando despertamos para a
aventura de desbravar os territórios intactos de nós mesmas, apropriando-nos das
riquezas subjetivas e compreendendo o que estamos tentando nos dizer com tantas
escolhas afetivas equivocadas, que só reforçam nosso sentimento de inferioridade.
Não mais repetir uma história, que talvez esteja acompanhando as mulheres da nossa
linhagem há gerações, mas finalmente construir a realidade que se deseja. Deslocar o
eixo daquilo que realmente importa na vida desse outro idealizado que nunca chega
para essa mulher maravilhosa que deseja vir à tona em nós e tomar, no mundo, o
que é dela por direito. Aprender que há um propósito maior para estar viva. O que
não tem o poder de banir completamente as tristezas, evitar frustrações ou nos
fazer parar de cometer erros — autoconhecimento é pra sempre —, mas que nos
possibilita extrair de cada estrago as melhores lições. É só assim que nossas relações
espelharão algo diferente de uma solidão intransponível, quando caminhar só passa
a ser algo que deixa de nos assustar e fazer reféns de qualquer um que apareça para
revelar um imenso prazer através da autodescoberta. Amor próprio é um exercício.

56. Espalhei coisas que preciso


lembrar a meu respeito em todos
os bolsos de todas as roupas
Estamos em processo de autoconhecimento político e íntimo como mulheres.
Queremos saber quem somos de verdade, estamos rejeitando a forma como os
homens nos definiram. Não penso que o impasse feminista sobre fidelidade –
onde algumas questionam duramente a monogamia e consideram legítimo se
relacionar com companheiros de outras, ao passo que outras repudiam com
veemência a violação de acordos e defendem a responsabilidade afetiva recíproca
entre mulheres — seja infértil ou desnecessária. Eu acho apenas que esse impasse
nos diz: “O plano do discurso precisa encontrar nossas subjetividades para que
sejamos e façamos uma revolução, mas isso leva tempo”. E leva tempo porque

#76
cada uma de nós tem uma história com isso. Em uma sociedade repleta de mães

#boMdiAMAtriArcado
solo, é fácil concluir que a maioria de nós foi moldada por padrões familiares
cheios de abandonos, abusos psicológicos, traições. É isso que internalizamos
como afetividade, então revivemos esses enredos. E é por isso que precisamos nos
conhecer, conhecer a história da nossa família, descobrir do que precisamos nos
libertar geracionalmente: para estancar um ciclo de violências contra mulheres
e descobrir que temos direito a desejar relações mais saudáveis. Dentro deste
processo, nós ainda vamos errar muito conosco e umas com as outras, mas penso
que precisamos estar comprometidas com essa transformação. Por outro lado, é
função do plano do discurso ser rígido para nortear uma ética e não deixar que
a gente se perca.

57. A nudez ritualística como prática


diária de conversar consigo
Lembro de quantas vezes fui me adequando a regras de aproximação que não foram
estabelecidas por mim. Ou era isso ou a relação não acontecia. Isso ia me sugando,
me roubando do meu cotidiano, virando um sequestro psicológico. Um dia me veio
a pergunta: “Por que estou topando algo que em médio prazo ficará insustentável,
porque desconsidera o meu desejo, só para ter alguém ao lado?”. Os homens se sentem
muito à vontade em definir a frequência da procura, desde o ritmo de mensagens
até a duração dos encontros, conforme o quanto aguentam se comprometer. Eles
são formados para a dominação emocional, para que as coisas aconteçam em seus
termos. Mesmo com toda a confusão que nunca procuram conhecer e repensar, mas
que afastam simplesmente negando a dimensão da afetividade, eles são incentivados
a construir sua autonomia e estão no centro de suas vidas. Nos causar frustrações,
para eles, faz parte. Que um dia nos venha a pergunta: “Por que queremos estar com
quem só pensa em si?”. Queria muito, em meu tempo, que uma amiga tivesse me dito
coisas como “Busque também estar no centro de sua vida” ou “Não saia tolerando
tudo, ensine como você deve ser tratada”. É por isso que hoje eu me digo diante
do espelho e digo a todas as mulheres que a minha voz possa alcançar. Repito essa
obviedade que nos liberta e que, de tão óbvia, nos ocultaram: a de que somos dignas
do mesmo cuidado que temos a oferecer.

#77
58. Um panteão onde todas as

#boMdiAMAtriArcado
deusas portam espelhos
Aquilo que você odeia em outra mulher talvez reconheça fortemente em si mesma e
precise renegar com veemência.

Aquilo que te incomoda nas escolhas dela, do que faz questão de desdenhar ou que
inveje em silêncio talvez esconda algo que você realmente gostaria de abraçar em sua
vida, mas AINDA não pode admitir.

Aquilo que você ridiculariza na outra, mas que não te diz respeito, dá pistas sobre a
sua péssima relação com o seu próprio ridículo, do quanto se sente inadequada, não
pertencendo, com medo de transformar ou assumir.

Aquilo que desanda na sua relação com uma grande amiga pode ter sido trazido —
mal-resolvido — das suas relações com as mulheres que te formaram: questões com
mães, irmãs, tias, avós... Você projeta e se frustra, permanecendo no lugar afetivo que
foi levada a conhecer.

Os afetos entre mulheres desenham um caminho conturbado porque fomos orientadas,


primeiro, a não nos amar, a não autorizar determinados aspectos em nós mesmas, a
não fazer amizade com a nossa sombra. E, depois, a não amar, admirar, incentivar, criar
cumplicidade umas com as outras.

Nossos espelhamentos expressam a violência que nos sufoca e desestimula.


Desconsideramos nosso direito de falhar e enrijecemos demais o olhar sobre as
múltiplas narrativas femininas possíveis. Reproduzimos um ciclo de (auto) punições e
nos defendemos de ser maiores, de ir além daquilo que dávamos por certo.

Nada disso significa que mulheres não possam errar de fato conosco, apresentar
atitudes ou discursos desastrosos ou que não possamos nos ater à parte mais imediata
dos conflitos. Uma visão Pollyanna de sororidade não dá conta dos desafios do processo
de autoconhecimento e de libertação. Mas precisamos nos lembrar de que existe uma
programação para que sejamos implacáveis ao olhar para os nossos erros, não raro

#78
superdimensionando-os até que uma outra mulher seja queimada em praça pública,

#boMdiAMAtriArcado
enquanto para os homens reservamos toda a compreensão do mundo, ainda que
tenham cometido atrocidades.

Sorte do dia: hoje você vai escolher uma mulher com quem tem conflitos, humanizá-la e
se enxergar através dela sem medo. Afinal, ela não movimentaria tanto as suas emoções
se você não se reconhecesse ali.

59. Nenhuma mulher pode se


esconder sob o próprio Sol
Seja sincera consigo desde o primeiro instante:
— Ele possivelmente sai com outras, os tempos pregam diversidade sexual
sem responsabilidade afetiva;
— Você não é obrigada a se enquadrar nesse formato. Procurar conhecer a si
mesma, não negligenciar suas necessidades afetivas e respeitar seus limites é
fundamental;
— Tá todo mundo pegando todo mundo sem camisinha, você tem o dever de
se proteger e não colocar ninguém acima da sua saúde;
— As amigas percebem quando você está floreando a narrativa pra perdoá-lo
e sacrificar seu direito de viver algo melhor;
— Lembra aquela pontada no coração que te deu quando ele fez aquilo, mas
que você tentou apaziguar dentro de si para fingir que não foi nada? Esse
incômodo vai dar as caras de novo, pra você aprender a se ouvir;
— Você não precisa salvar ou mudar a vida de ninguém. Não precisa se
esforçar para ser aceita. Melhorar o individualismo de uma pessoa também
não é tarefa sua;
— Falta de empatia sexual às vezes não tem jeito. Gozar é direito seu e ponto;
— Não deixe aquilo que te energiza de lado, não se deixe por ninguém,
continue alimentando sua autonomia e o prazer da sua individualidade.
— Continue cultivando suas amizades leais. Tenha para onde voltar.

#79
60. Tirar o fim de semana para a

#boMdiAMAtriArcado
troca de pele da cobra
Facilitamos demais pra eles. Não deixamos que se esforcem. Não damos espaço
para que conheçam sua gentileza. A cada semana que passa, nós os protegemos de
sua própria saudade. Não falhamos em dar notícias. Não deixamos que descubram
sozinhos o que está faltando em casa. Assumimos integralmente a culpa por
querer que tudo fique bem. Limpamos todos os cômodos, todas as mágoas, todos
os erros. Voltamos atrás, dez passos atrás de nós mesmas, por qualquer migalha.
Pensamos estar loucas, porque não é possível que eles estejam jogando sujo.
Esperamos mais um pouco, talvez eles não estejam prontos. Esperamos fingindo
que não é da forma que estamos vendo. Esperamos justificando que eles já não
transam mais. Pagamos boquete e ficamos no vácuo. Preferimos engravidar ou
adoecer a impor camisinha. Fuçamos todas as mensagens. Descobrimos o óbvio.
Perdoamos as reincidências. Abrimos a relação por eles. Terminamos desejando
que voltem. Começamos um novo vínculo já listando engasgos. Gastamos 2/3
do dia sonhando acordadas com a próxima vez. Damos muito além do que
recebemos. E cada vez mais, de tanto amor acumulado.

Imprimimos este texto. Contrariamos item por item. Queimamos a folha. Permitimos
que venha a nova mulher.

Fortaleça uma mulher.

Essa obra é propriedade intelectual de Maria Gabriela Saldanha. Você pode divulgá-la e
reproduzir trechos, sem fins lucrativos, com os devidos créditos. É proibida a venda. Para
quaisquer outros usos ou para saber mais sobre outros escritos e sobre o trabalho com mitos
e oráculos (atendimentos, cursos e criação de conteúdo) contate a autora. Aí embaixo vão as
informações para contato e redes sociais:

mariagabrielasaldanha

@mariagabisaldanha

bomdiamatriarcado@gmail.com

matriarcaria@gmail.com

#80
capítulo III
Lua Crescente
Rituais verbais
de Expansão e
Consolidação.
Pertencer a si mesma
toma consistência.
Ciência das fertilidades.
Tesão de habitar sua
própria pele. Fazendo
amizade com suas
verdades.

#81
61. Comprar um vestido branco

#boMdiAMAtriArcado
em promoção e já sair da loja
vestida com ele
Todo mundo quer amar e ser amado. Mas só um gênero é socializado para se sentir
inferior sem um parceiro afetivo-sexual ao lado. Só um gênero é criado para passar a
vida fazendo de tudo para ser desejado. Só um gênero coloca sua realização pessoal
atrás da ânsia de casamento. Ou se aproxima dos quarenta anos sem ter se casado
e acha que fracassou na vida. Submete-se a cirurgias, tratamentos estéticos, dietas
agressivas e desenvolve diversas patologias porque não se sente correspondido em
seus afetos. É capaz de odiar seu corpo ou partes dele porque não se parece com
o que vê nos comerciais. É escravizado sexualmente em diversas sociedades. Acha
que merece menos amor porque não atingiu um ideal físico ou comportamental. Só
um gênero coloca como centro da sua existência o outro gênero.

E é justamente por isso que parar de achar que a vida só se legitima por meio da
presença masculina é um dos maiores passos na libertação de uma mulher. Faça
um teste: encontre outros objetivos e alegrias na vida. Dê a si mesma essa nova
chance. Faça coisas que disseram que você não poderia fazer. Sonhe, viaje, tenha
o seu dinheiro, estude o que ama, deixe sua marca no mundo. Você não precisa
que uma figura paternal aprove seus passos e te proteja em tempo integral,
proteja até mesmo de você, do quão longe você pode ir.

Case-se consigo.

62. Nem só de espada vive a amazona,


há que manusear o escudo.
É inadmissível que a gente se sinta tão inferior diante de um parceiro que não
seja capaz de questionar: “Onde está a camisinha?”. Custei muito a entender o
diálogo oculto por trás daquele silêncio de quando o homem simplesmente pula
o preservativo. Quando um cara não se importa em se prevenir, quando ele não
cuida de si, já está dizendo quem é e, principalmente, que não terá o menor

#82
cuidado contigo. A gente fica cega de paixão e tesão, quando já há uma evidência

#boMdiAMAtriArcado
ali bem gritante de que não dá pra confiar tanto, de que esse comportamento foi
naturalizado e coloca em risco outras mulheres.

Por outro lado, também é urgente popularizar o uso da camisinha feminina, como
uma solução para a autonomia preventiva da mulher. Entre outros benefícios, ela
protege uma área maior e o seu anel externo estimula o clitóris. Mas até para que
ela se torne um hábito, essa etapa de se impor e colocar a saúde acima da vaidade
do parceiro e do fetiche com reprodução é fundamental.

Nada vai cobrir o teu desespero diante de um diagnóstico de DST depois, nada
vai pagar você caçando contato pra realizar aborto em um país onde é crime,
arriscando sua vida com remédio cujo índice de mortes por trombose é alto ou
com procedimentos feitos por “açougueiros”.

Olhe pra sua vida, ame a sua vida, as pessoas passam e sua vida fica. Não se barateie.

63.Visualização de sua própria


infinitude
Abandonar o velho modo de se relacionar, pelo qual a mulher está sempre à
margem da própria vida, não é prazeroso no momento em que acontece. Ousar
apropriar-se de si, do seu caminho, às vezes implica em renunciar a desejos tão
fortes que por mais que nos expliquemos de onde eles vêm — e muitos deles vêm
desse condicionamento milenar à submissão e à doação incondicional — nada
parece suficiente para contê-los. Essa é a hora em que você se diz que não é o seu
sentimento. Você possui o seu sentimento, mas é bem maior do que ele. Romper
com essa identidade feminina assentada apenas sobre o emocional dói, mas é
uma cirurgia existencial pela qual precisamos passar, para dizer a nós mesmas e às
outras gerações de mulheres que é possível ser livre, ser dona de si. Dizer “não” a
quem ou ao que te faz menor é dizer “sim” a uma versão sua que já não consegue
fingir que continua do mesmo tamanho. Então vai lá, vai ser grande na vida. Esse
padrão de relacionamento ficou pequeno pra você.

#83
64.Poção para remover mofo de

#boMdiAMAtriArcado
asa
Não caia mais nesse abismo. Nesse, não. Respire fundo, se dê um tempo, tenha
curiosidade por abismos novos. Nem que seja para entender quantas modalidades
de quedas existem. Esse não, porque é um velho e traiçoeiro conhecido. Melhor se
perguntar por que se afeiçoou ao penhasco. Ou o que está tentando se dizer com
tantas repetições dolorosas, ralando sua pele, empoeirando seus olhos, destroçando
seu ventre, deixando-se em carne viva... Será que olha para o desfiladeiro e encontra
as mulheres que a antecederam, jogadas umas por cima das outras? Será que de
tanto elas caírem você se convenceu de que esse é o único destino? Será que a
história te ensinou a desejar uma queda que te aproxime delas? Você é aquela na
qual fileiras de ancestrais apostaram para um triunfo e um bálsamo que estão no
forno. É aquela que foi banhada e enfeitada para abrir num passado sombrio uma
fresta ensolarada, onde o cheiro da manhã ventile todos os medos e retire o mofo
de poderes ocultos (incalculáveis). Está em plena iniciação nos arquivos e mistérios
do útero, como toda a sua era está. Você é aquela que pode sonhar mais do que as
suas já sonharam e permitir que as meninas que te sucederão venham mais plenas.

Mas diante do pânico de crescer e dar esse salto geracional, cicatrizando os rasgos
que há tempos são talhados na nossa linhagem feminina, a gente se esconde. Evita
a si mesma, fica à própria margem, gastando um mar inteiro de desejos com aquilo/
aquele/aquela que não é fundamental. Inventa paixões desesperadas em série,
alimenta conflitos estéreis, sabota dons, não acredita que ousar crie mundos, cisma
que o problema mora em outra mulher, não se autoriza a receber toda prosperidade,
distrai-se de mil formas no labirinto. Porque no fundo sabe, sabe muito bem, que
só morando no centro de si, como quem assume o comando de uma espaçonave
e desbrava corajosamente o próprio universo, é que elevará a sua própria vida e a
experiência das mulheres da sua família a um outro nível: mais justo, mais digno,
mais belo, mais saudável, mais livre. Depois de tantos séculos sendo convencidas
de que o nosso lugar é o abismo-vala, a autonomia de dizer ao mundo em que lugar
realmente desejamos estar é algo que apavora. Compreensível.

Mas chegou a hora de tomar, sem pedir licença, uma nova e fértil e imensa geografia.

#84
65. Toda alfabetização de uma

#boMdiAMAtriArcado
mulher em si mesma rende Nobel
Isso soará desconfortável, como qualquer ferida ancestral a ser limpa. Mas é preciso
se lembrar de que seu talho uterino não é jovem. E que há um veneno que você
ingere acreditando que corrói veias que não são suas. Seu problema, definitivamente,
não se esconde em outra mulher. Nem é de hoje. O rancor dá rosto fresco a um
comando mais antigo. Culpabilizá-la tem um limite e esse limite é dado pelo
compromisso que você tem consigo. Por que a odeia tanto ou se define pelo ódio
que ela precisa vociferar? Será que não superdimensiona atitudes que foram bem
menos preocupantes, apenas porque precisa se embriagar nessa dinâmica tóxica para
continuar se reservando o que existe de pior nas relações? Por que a persegue ou
valida a perseguição que esse feminino adoecido promove contra você? Por que a
difama ou se deixa escravizar cegamente pela difamação? Por que lhe deseja o mal ou
recebe todo o mal desejado em seu peito? Qual é o ponto que você não pode encarar
em si mesma e ela inevitavelmente espelha, jogando toda a lama inconfessável bem
no meio do seu rosto?

Mesmo que uma igual tenha agido de forma lamentável, voltar-se insistentemente para
essa conduta é adiar o diálogo que você precisa ter consigo. É abrir mão do poder que
você tem sobre suas emoções, sua vida, sua história. É quando uma leoa com o dom
irrestrito da caça e da majestade resolve devorar a si mesma. Saiba que o poder de recriar
o olhar sobre tudo a qualquer momento, de reescrever sua autoimagem, de reescolher
os pensamentos, a interpretação dos fatos e fazer algo maior daquilo que considera que
fizeram de errado com você aguarda a sua cura, a sua retomada do melhor caminho.
Talvez seja esse o seu medo: o de se perceber autora da sua própria estrada, por isso
precisa sempre se sentir dominada e, quando isso não ocorre, você inventa um conflito
para fugir de si. Ou revive conflitos passados, com as mulheres que foram importantes
para a sua formação. Não renuncie à fertilidade de ressignificar. Aproveite para ler a
mensagem de tudo isso, aquilo que você mesma escreveu usando palavras alheias.

Capte o recado do que você não tem coragem de se dizer diretamente e, para isso,
coloca uma terceira, uma estranha, estrategicamente posicionada entre a mulher que
mora em você hoje e a que deseja ver feliz amanhã.

#85
66. Escavação ao laríngeo para

#boMdiAMAtriArcado
desenterrar um uivo antigo
Eles continuarão tentando nos inferiorizar de todas as formas. Esse é o motivo pelo
qual precisamos nos conhecer e pavimentar todas as crateras da autoestima até que nos
tornemos imunes às diferentes camadas do exercício permanente de masculinidade.
Não raro, o ponto exato onde um homem identifica uma ferida e enfia o dedo para te
devastar é também o ponto onde ele se sente emasculado pela sua força.

A lama será jogada sobre você porque ele se sente sujo. Quando quiser te convencer
de que você não é boa o bastante, isso não é sobre a sua competência, é para que
ele mesmo se sinta melhor no que faz. Quando precisar te sinalizar que você não foi
aprovada fisicamente, essa é uma forma simbólica de se deitar sobre você e te dizer
para o que você deveria servir, fazendo com que se sinta mal a partir da crença de que
não serve. Quando quiser que você se sinta culpada, é um lembrete emocional de que
você não está cumprindo a sua sina de ser apenas propriedade. Agride porque se sente
ameaçado e mapeia sua própria inferioridade.

No fundo, tudo recai em mecanismos de contenção e domesticação de mulheres.


Toda violência de gênero é um atestado de desespero, um tiro no pé. Podemos cair na
armadilha e aceitar a mensagem da agressão de bom grado, adoecendo, desistindo,
acreditando que o problema realmente está em nós — e, consequentemente, gastando
com essa validação uma energia que poderia ser gasta com os nossos propósitos
existenciais. Mas também podemos manter os olhos bem abertos e não nos deixar
definir pela violência, arriscando um outro diagnóstico: a conduta violenta entrega a
fragilidade sobre a qual está assentada a identidade masculina e, em especial, sobre a
forma que a misoginia tomou naquele homem.

Afastar-se emocionalmente dessa violência, em vez de internalizar rapidamente o recado


da sua ameaça, é um exercício que permite compreender o lugar onde a sua grandeza
está intimidando. A mensagem é sobre as peculiaridades do seu poder manifesto.
Igualmente, afastar-se das verdades consolidadas de um sistema de dominação de
gênero para analisá-lo é voltar na história e constatar que o que apavora é o poder sobre
a vida. Ou seja, o que carregamos com exclusividade, o que todo o nosso corpo diz, é

#86
que intimida. E é por isso que fomos dominadas a partir da capacidade reprodutiva.

#boMdiAMAtriArcado
O perigo que eles pensam combater é também a constatação de uma fortaleza
primordial: aquelas que nascem com o poder de gerar a vida devem ser insistentemente
destronadas. O que apavora é o arquétipo da Mulher Selvagem, aquela que em nós não
se submete às estruturas de dominação. Romper com a domesticação despertará muito
ódio, mas esse é o único caminho de fortalecimento, até o momento em que toda
tentativa de inferiorização contra mulheres se torne risível.

67.Exercícios de respeito ao tempo


lunar para não desperdiçarmos a
abundância que o instante carrega
Lá na frente, eu sei, você vai ter desejado não esperar tanto pra amar o seu corpo. As
praias que você desperdiçou ninguém vai viver no seu lugar. Vai lembrar que poderia
ter se censurado menos por ouvir seus sentimentos. Ninguém descobre seu modo
de atravessar as turbulências sem primeiro dar voz às próprias verdades. Muitos dos
minutos que tiver descontado das suas alegrias em nome das tarefas cotidianas talvez
tenham enriquecido outras pessoas. Não era preciso ser tão rigorosa consigo e se
roubar justo no território dos imprevistos que nos reenergizam pra tudo valer a pena.
Você vai olhar pra trás e perceber que várias experiências que chamou de paixão
eram só pretextos para se reencantar por si mesma através de outros olhos. Mas
que em vez de aproveitar cada tesão em cena para aprender um pouco mais sobre
os seus padrões, entregou o seu ouro a quem era latão. Eu posso te ver guardando
em uma gaveta as palavras que se privou de dizer e poderiam ter gerado libertação
mútua. Quase posso tocar no quanto você deixa para depois a pessoa que poderia
começar a ser desde já, inventando condições que não fazem o menor sentido: eu só
vou ser feliz quando, eu só vou merecer quando, eu só vou tentar quando... Amanhã
você pode desejar ter assumido seus sonhos, não ter acreditado em todas as palavras
ofensivas que ouviu e apostado muito mais nos seus dons; ter viajado quando podia
e feito de um dia simples em sua cidade o melhor dos últimos tempos; ter dito a si
mesma que estava pronta o suficiente para que o caminho terminasse de te aprontar
e simplesmente se jogar nas trilhas abertas; ter perdoado porque a estrada é longa,
os membros precisam estar a postos para todas as belezas que quiserem chegar e
a gente não precisava se sobrecarregar levando lixo emocional a toda parte. Confio

#87
no seu poder de ressignificar o que tem sido até agora e agigantar o olhar sobre si

#boMdiAMAtriArcado
mesma e sobre tudo que existe ao seu redor. A vida corre imensa, enquanto nos
orgulhamos de ser tão pequenos para justificar nossos medos. Confio nessa página
em branco fundada hoje. Talvez tenhamos nos esquecido de nosso milagre original na
pequenez das urgências, mas acontece que somos poeiras de estrelas.

68. Perguntar-se por que


as deusas de fertilidade andam
muito zangadas
Algumas (só algumas) verdades sexuais que você não tem coragem de se dizer,
porque internalizou que precisa mantê-lo satisfeito pra que ele não se afaste, mas
eu tô aqui pra te lembrar:
— O sexo não acaba quando o cara goza;
— O sexo não gira em torno do pau dele;
— Você não precisa fazer o que não gosta pra agradá-lo;
— Você não necessariamente é uma mulher livre e bem resolvida só porque
topa fazer de tudo;
— Você não é obrigada a abrir a relação;
— Será que você curte mesmo violência ou está condicionada?
— Filme pornô não é referência pra sua intimidade;
— Você não precisa transar no primeiro encontro porque isso é garantia de
continuidade, sinal de maturidade ou qualquer outra coisa;
— Você não é obrigada a ser amigável quando for abordada de maneira que te
incomoda, seja na internet ou na rua, seja por alguém que conhece ou por um
completo desconhecido;
— Você não precisa transar só porque já está ali;
— Não precisa ter penetração, caso você não queira;
— Você não precisa ficar inerte, esperando ele desistir de fazer o que está
fazendo, só porque não está sendo tão bom;
— Se estiver se sentindo mal com alguma coisa, pode pegar suas coisas e ir
embora, sim, ou pedir pra que ele vá;
— Demonstre o que te dá prazer ou diga com todas as letras, se achar melhor.
É importante também pra que perceba se ele está se recusando a te dar prazer;

#88
— Você não precisa ter um corpo dentro dos padrões para merecer viver sua

#boMdiAMAtriArcado
sexualidade ou afetividade;
— Você não vai ficar condenada à solidão por dizer “não” a uma oportunidade
de transar ou beijar;
— Você não precisa ficar sexualmente à disposição do seu ex, esperando que
isso represente um retorno;
— Você não precisa transar só pra não se sentir sozinha, nem ir à caça na
noite apenas por autoafirmação. Sua autoestima pode ser trabalhada em você
mesma, sem passar pela aceitação masculina;
— Tem fetiche que coloca nossa vida em risco ou gera consequências com as
quais teremos que lidar pra sempre. Não usar camisinha é um deles;
— Se você aceitar ser filmada ou fotografada, por maior que pense ser a relação
de confiança, não existe a menor garantia de que amanhã não seja exposta na
internet. Há mulheres que já se suicidaram por terem a vida arruinada pela
pornografia de vingança;
— Sexo é diálogo, é construção, muitas de nós precisam que passe pela confiança,
ninguém tem que estar sempre pronto ou ser performático, devemos reaprender a
respeitar nosso tempo e nosso ritmo, tratando com honestidade o que nos faz bem;
— Ele tem o dever de aceitar o seu “não”, não importa o contexto.

Tudo isso é sobre consentimento. Poucas vezes na vida nos orientaram com todas
as letras a prestar atenção no que desejamos ou permitimos de fato. A violação do
consentimento é o DNA da cultura do estupro.

69. Para recitar antes de pedir


demissão
Afetividade é uma necessidade humana. Mas ela é moldada culturalmente para ser
vivenciada dentro dessa dinâmica, onde a mulher é sugada na vida privada, em
sua condição de colo absoluto, para nutrir emocionalmente aqueles aos quais é
entregue a função de conduzir a vida pública. É assim que, há milênios, estamos
aí abastecendo com nossos seios, vaginas e docilidade todas as guerras, todas as
conquistas científicas, todo crescimento econômico, toda revolução que ocorre,
uma vez que cada homem protagonista de sua vida tomou fôlego na presença

#89
feminina subterrânea para chegar aonde chegou, seja de mãe amorosa, de avó

#boMdiAMAtriArcado
protetora, de esposa humilhada, de meninas de quem abusou. Temos sido o
colchão, o divã, o café da manhã dos campeões do planeta.

Mas o que sobra para nós? O trabalho emocional feminino não cessa. Viramos dia
e noite tentando compreender aquela fala, aquele sinal, remoendo lembranças,
nutrindo expectativas e pensando no que é possível demonstrar ou não.
Definitivamente, esse nível de elaboração e de sofisticação analítica não fazem
parte, pelo menos não com tamanha intensidade, da rotina masculina. Esse labor
foi feito nosso, nos foi dado pela primeira boneca, pela primeira panelinha rosa,
pela primeira revista pré-adolescente que ensinava a beijar em um copo com gelo.
Porque você precisa estar pronta para o masculino quando ele chegar reivindicando
o que foi dito que seria dele por direito. Você precisa estar pronta. Mas nunca para
si. Onde está a nutrição emocional que você poderia se dar para ir mais além?
Onde está o seu desejo de ir além desse destino? Onde está o que você realmente
veio fazer aqui, a mensagem que você tem a deixar? O que você desejaria com
todas as forças se não te doutrinassem numa escola de princesas? Para que serve
sua vida, afinal?

70. Caixa é brinquedo para a deusa


gato. Não se confunde com ela
mesma.
Durante séculos imperou um feminino classicamente submisso e associado ao
espaço do lar. Com a apreensão desse feminino pelo capitalismo, dentro da lógica
de mercantilização dos corpos, emerge a super mulher, atropelando a anterior: da
rua, sexualmente objetificável ao máximo, vazia de pretensões afetivas até onde
isso pareça conveniente, desejosa de sua autonomia até onde isso não represente
uma ruptura com o sistema e, aparentemente, senhora de seu corpo, desde que
ele reflita o que é esperado pela indústria. Mas para isso há um pacto: ele precisa
estar aberto a ser constantemente moldado pelo que ela produz.

Entre uma geração que cumpre um determinado estereótipo de feminilidade e


outra, o que sobra de nós? Quem somos nós, de verdade, fora da caixinha da

#90
mulherzinha dócil e servil emocionalmente ou do mulherão servil sexualmente,

#boMdiAMAtriArcado
por vezes com um pé em cada uma, vivendo uma afetividade dúbia, partida
ao meio? Você conhece os seus desejos, o que te faz bem, permite-se querer
mais da vida, sonhar alto, ou internalizou que um companheiro basta para a
vida fazer sentido? Estamos sempre sendo formadas para ser a companhia de
alguém. Pesquisar outras possibilidades existenciais que nos deem prazer de estar
vivas desloca o nosso eixo de segurança das relações com o outro para a relação
conosco e com as outras, rompendo também com o ciclo de competitividade.

71. Para destrançar quilômetros


de cordas vocais
Um bom companheiro é o que se interessa pelo que você tem a dizer. É aquele que
respeita a sua vida enquanto mensagem, que considera a sua singularidade e não
só o olhar dele. É o que se encanta também pelo que a sua história diz, pelo que o
seu corpo pede, pelo que o seu momento registra, pelo que é dito sem dizer, pelo
recado contínuo que a sua existência imprime.

O verbo é um dos nossos mais importantes instrumentos para viver as trocas e


enriquecer os encontros. Se você não diz, dificilmente o outro te sabe. Há carícias
insubstituíveis, feitas inteiramente de palavras. Qualquer coisa que desrespeite a
nossa dignidade verbal periga não ser relação, mas alguma forma de te calar para
te consumir, de te esmaecer para te contornar, de pintar sobre as suas formas o
personagem que lhe for conveniente.

É para isso o silêncio como forma de dominação masculina. E ele tem muitas
nuances: negar o entendimento, determinar o ritmo das mensagens, estabelecer
quando as palavras excedem e quando faltam, sugerir desaprovação, descaso...
Parar de se comunicar é uma forma de sequestro emocional. Mas nós podemos e
devemos, o quanto antes, nos pegar nas mãos e nos retirar desse cativeiro. Dar
à nossa garganta o direito à sabedoria do tempo, de se encontrar e se deleitar
em outras conversas.

Não poder expressar o que pensa e sente é uma forma de violência psicológica. Sem

#91
diálogo, sem chance. Se você não tem voz, se não pode ser você mesma, não perca

#boMdiAMAtriArcado
muito tempo aí. Não se perca no deserto de palavras. Não se adie. Precisamos do
que você veio contar ao mundo.

72. Coragem de talhar seu


próprio confessionário
Algumas mentiras que as mulheres se contam:
01) “Ele tem problemas com a mãe”
Todo mundo tem, gata. No patriarcado, somos exploradas a partir de nossa
capacidade reprodutiva, absolutamente tudo o que envolva mulher será
atravessado pela maternidade compulsória como mecanismo de dominação.
02) “Eu assusto os homens”
É claro que a relação mulher-poder intimida e emascula. Mas vamos combinar
que essa frase costuma ser usada pra gente se iludir e tentar se envaidecer
à custa da indiferença misógina que tem muita prática em nos colocar na
geladeira. Aí a gente pega essa zona de desprezo e faz o que pra se machucar
mais? Isso mesmo que você está fazendo: romantiza.
03) “Ele está com medo de se envolver”
A probabilidade maior é de que ele não esteja querendo tanto, ok? Se ele
quiser mesmo, vai dar um jeito de expressar, sossegue essa xota e acredite
em mim. Geralmente a gente usa esse pensamento pra se blindar diante de
contextos onde eles não estão nem aí pra gente, porque não aguentamos
nos sentir impotentes diante dos vacilomachos.
04) “Ele está com dificuldades de admitir o que sente”
Pode até ser verdade. Não seja por falta de foda-se. Você não precisa ficar
presa nesse trabalho emocional de tentar decifrar dia e noite o que os gestos
dele significam — correndo o grande risco de, na verdade, fazer com que eles
signifiquem o que você gostaria. Não gaste essa energia toda, relacione-se
com o que ele explicita. Se ele não explicita nada, não está se comunicando
com você.
05) “Ele tem dificuldades de se relacionar”
Esse é um jeito de nos dizermos “Ufa, não é comigo”, tirarmos noventa quilos das
costas e abrirmos uma cerveja artesanal imaginária, como se durante o resto do

#92
tempo as relações não vingassem porque o problema é nosso. Mas o momento

#boMdiAMAtriArcado
seguinte a essa conclusão é sempre um perigo, uma heroína dos relacionamentos
fica coçando dentro da calcinha. Pra que fazer A Redentora, é algum tipo de
emprego? Isso é ter noventa quilos nas costas novamente. Se a barreira é com
todas, não faz o menor sentido insistir. E por falar em consertar o cara...
06) “Ele vai mudar”
...vai, em alguma encarnação. O que ele não vai é mudar por SUA causa.
Ele pode querer mudar por si mesmo, estimulado por essa relação. A gente
se envolve e naturalmente se ajuda porque se gosta, isso é normal, está
presente em todos os vínculos onde as pessoas se propõem a crescer e
construir coisas juntas. Mas quando você decide sozinha que ele vai mudar,
escrevendo um plot twist cor-de-rosa porque acreditou demais na sua
Redentora interior, tá fazendo coaching de graça enquanto deveria estar
interrompendo uma série Netflix pra transar.
07) “A relação dele está desgastada”
Está, embora nenhum ser vivente no planeta Terra neste indigníssimo ano do
século XXI seja capaz de explicar o que você tem com isso. Se é preciso se
apegar a esse pensamento para se manter em modo de espera, você já está
desgastada sem sequer ter algo que possa chamar de relação.
08) “Ele mentiu para me proteger”
Ele TE infantilizou para SE proteger.

73. O que as árvores centenárias


e os úteros têm em comum
Toda mulher que se levanta precisa saber que tentarão derrubá-la.

Eles só podem suportar uma vulva que se aviste deitada.

— Tentarão dizer que o seu corpo não serve para o consumo deles, que transborda
do tamanho medíocre de seus corpos masculinos ou que não está do agrado. Porque
pensam ser uma ofensa para você informá-la que não consegue estar nesse lugar,
não desconfiam de que talvez você simplesmente queira estar onde bem entende;
— Encontrarão muitas formas de te comunicar que você está sendo menos mulher,

#93
para que se corrija, mas você já terá entendido que ser mulher não é o mesmo

#boMdiAMAtriArcado
que circular dentro do cercado estético, moral e comportamental da feminilidade.
Das entrelinhas dessas falas, lembre bem disso quando acontecer, desprende-se a
certeza de que você decidiu ser humana;
— Muitas vezes dirão que você não presta pra ser mãe ou que não é uma mãe tão
boa. Sabem que isso equivale a tentar colocar a mão no seu útero ou tomar seu
filho dos seus braços. É essa a dor que querem lhe causar com palavras, pra que
você retorne ao seu status submisso de mulher;
— Eles vão rir de você e convocar o riso alheio para que todos juntos te
intimidem, inferiorizem e te façam recuar. Olhe à sua volta, perceba como
muitos exercem sua masculinidade por meio da ridicularização de outras
pessoas. Essa é uma ferramenta que pensam que você jamais pode manejar;
— Se for excitante para eles, saiba que vão te enxergar como um desafio
sexual e vão cercá-la até que você tropece em seu próprio desejo. Uma mulher
insubmissa diante dos olhos de todos, mas que na cama poderá ser convertida
e recolocada na condição de brinquedo, da qual jamais deveria ter saído;
— Quando você compreender melhor as reentrâncias dos seus sonhos, tentarão
te roubar o direito de sonhar. Dirão que você é uma louca, que sua conduta é
suja, não está pronta, que o que você faz é de má qualidade, que seu corpo não
presta pra isso ou tem prazo e mais importante é a maternidade, que só as mais
belas mulheres ou as que aceitaram ser profundamente frustradas/obcecadas/
partidas ao meio chegam a algum lugar. Em um ambiente profissional, eles
priorizarão outros homens para te puxar o tapete e dizer “Você não é uma de
nós”. A solitude da sua estrada é sempre lida como indignidade ou rejeição;
— Tudo isso pode ser feito de perto, quando aquele que está ao seu lado não
aceita que você se comporte como um ser humano. Como um ser humano = para
si mesma. É impensável que você exista antes para si, que não esteja à disposição
de um homem, então nosso pequeno tirano terá uma meia dúzia de gestos que
te farão funcionar psicologicamente para ele, enfiando o dedo em todas as feridas
que a sua solidão conhecer. Nem mesmo é preciso ter uma relação consolidada,
a ameaça de abandono é suficiente, em todos os níveis de intimidade, para
sequestrá-la e fazer com que se esqueça de que você é sua prioridade.

A cena é, precisamente, a de um grupo de brutamontes tentando conter uma única


fêmea. Mas ela também ilustra o tamanho da sua força e o quanto eles precisam
investir para que se pensem maiores diminuindo o seu tamanho.
#94
O que eles não sabem é que quando uma só fêmea se levanta, todas as que vieram

#boMdiAMAtriArcado
antes dela, por sua linhagem, também ficam de pé sobre os tempos.

74. 20 lembretes para uma mulher


pertencer apenas a si mesma
01) Um homem é apenas um homem. Não é “o homem”, nem é mais de um;
02) Não importa o que aconteça lá fora, sempre voltaremos para nós mesmas.
Seja generosa consigo enquanto sua única e verdadeira casa;
03) Sair de si também é importante, seja para se ver de fora, seja para melhor se
reapropriar da vida quando voltar. Um encontro, às vezes, só serve para nos
sacudir, renovar os olhos e restituir o fluxo natural das coisas. Pessoas são passeios;
04) Dar importância demais a quem te secundariza é uma pegadinha para ficar
à margem de si, escondendo-se eternamente da vida que realmente deseja;
05) O corpo é o seu instrumento para existir, sentir prazer, realizar propósitos, tecer o
cotidiano e registrar as experiências do mundo. Ele não precisa ser como o corpo
de ninguém, ele só precisa ser bom para você mesma, ser ocupado de forma que
te traduza e ter fôlego para te ajudar a chegar aonde deseja;
06) Sempre que nos apaixonamos, estamos tentando nos conectar a uma dimensão
nossa que só fica em negrito no contato com o outro. Para desarmar a paixão
destrutiva, é preciso identificar essa dimensão e experimentar acessá-la sem
carecer de um intermediário. Então nos diremos, até internalizar, que o mérito
nunca é do intermediário, aquilo que buscamos incessantemente por meio de
um outro também podemos perfeitamente nos dar;
07) Precisa mesmo ser o caminho mais difícil ou você está só se sabotando?
08) Autoconhecimento é também mapear a dinâmica do seu funcionamento,
entendendo o que precisa se dar ou fazer por si mesma para se conduzir a
um outro momento;
09) Agradar não é importante. Saúde emocional é importante;
10) Ser verdadeira consigo descomplica, atrai o que é seu e economiza energia;
11) Idealizar demais desgasta, paralisa e alimenta culpas. Perdoe-se. Respeite seu ritmo.
Não tenha medo de pedir ajuda. Fazer o que é possível é melhor do que não fazer;
12) Valorizar os pontos fortes e, diante dos pontos fracos, deixar-se tomar pela
alegria e tesão de conhecer essa versão de si mesma que vai além e triunfa
sobre as limitações;
#95
13) Novas coragens mudam cenários, personagens, abrem novas temporadas.

#boMdiAMAtriArcado
Coragem é sempre re-mundo;
14) Apesar de tudo, o seu nome não é dor. Não se deixe identificar ou determinar
pelas violências, é isso que elas queriam. Existe uma você que sobrevoa os fatos;
15) Perdoar não é sobre exploração da sua empatia. É sobre estar pronta, dentro
de um contexto específico, para escolher não carregar mais lixo emocional;
16) Tornar cada vez mais central aquilo que você ama fazer te nutre e blinda.
Precisamos construir um eixo para o qual possamos sempre retornar, mas do
qual não sairemos, desde agora, por qualquer coisa;
17) Pesquisar o próprio passado e seus talhos na nossa subjetividade é
fundamental para ressignificá-lo. Encontre uma linguagem terapêutica que
te dê elementos pra isso;
18) Não se culpe por não ser quem a família desejou que você fosse. Apazigue-se
com seu salto evolutivo. Aceite o “pecado” de ser exatamente quem é. Isso é
o suficiente para criar um marco na libertação das que vieram antes e fundar
novos horizontes para as mulheres que virão depois de você.
19) Não definitivar o que pode ser passageiro. Fomos e ainda seremos muitas.
Existe sempre uma “ex-você” para te lembrar de que tudo passa e de que há
muitas formas de ser;
20) Você pode lidar com as surpresas da vida. Acredite no seu talento em ação. Quanto
mais surpreendente, mais vida potente se oferecendo para o seu crescimento.

75. Levar uma nécessaire com


cebola e alho para afugentar
vampiros
Já esbarrei em alguns colecionadores de mulheres. É sempre uma experiência
devastadora, porque você se deixa aprisionar por uma corrida que não está de fato
acontecendo. Quer ganhar, mas não há um prêmio. A maioria é formada por homens
que entendem corpos femininos como capital. Que se alimentam da energia de
pessoas que estão ali iludidas e por inteiro, como vampiros. Outros não são mal
intencionados, têm lá seus traumas (todos temos), mas nem desejam mudar, nem
ninguém muda de uma hora para outra, nem você está ali como terapeuta, nem
perderá o seu tempo precioso cuidando de alguém para não olhar pra si mesma. Enfim,

#96
o que eles pensam ser autoestima alimentada pela diversidade de parceiras é apenas

#boMdiAMAtriArcado
uma solidão insuportável. Vazio, imaturidade, ignorância a respeito de suas emoções
disfarçada com alta rotatividade, dificuldade de criar vínculos saudáveis e de estar
em sua própria companhia. Uma infantilização que contrasta com uma vida inteira de
trabalho emocional exigido do ser mulher. Todos apresentam o mesmo padrão: não se
apaixonam realmente, embora pensem que sim, apenas se mudam de pessoa com uma
bagagem imensa de projeções, sem que enxerguem e valorizem de fato a singularidade
delas. Não dá tempo de abrir os presentes da intimidade, de apreciá-la, a superfície é um
escudo. Se você se deparou com alguém assim, não pense que vai salvá-lo, convertê-lo,
mudar sua natureza. Saia já daí. Essa decisão não é sua, nem você pode se resumir a ser
a decisão de alguém. O que posso te dizer é que a sua energia é preciosa e você tem o
direito de viver algo melhor, mas precisa romper com a crença de que não merece ter
qualidade nas suas relações. Você é digna de alguém emocionalmente disponível e sem
pressa para te sentir, para te ver além da casca, mas também de experimentar outras
formas de felicidade que ultrapassem a vida amorosa. Ele não está procurando alguém,
está apenas evitando se conhecer ou se encontrar. Você, que está de fora vendo isso,
pode aprender como é imprescindível e muito mais rico se conhecer E se encontrar.

76. Matrioska como lugar de


abraço às idades interiores
Algo que eu gostaria de dizer a todas as meninas:

Se um dia você se sentir rejeitada por um homem por conta do seu tipo físico, precisa
ter em mente que isso fala muito mais sobre ele do que sobre você. Fala sobre a total
incapacidade de buscar uma conexão afetiva e sexual para além do formato que lhe
foi ensinado, onde mulher deve existir deste ou daquele modo porque a razão da sua
existência é agradar ao homem. Beleza padrão fala sobre controle, não sobre quem
é melhor ou pior. O mundo da moda, a televisão, a indústria pornográfica e outros
universos onde ela se faz fundamental não nos deixam dúvidas do quanto os padrões
são sobre possuir mulheres. Cada um é o que é e estamos, aos poucos, nos dizendo que
nossos corpos devem nos servir, que eles não estão aí sendo escravizados pelo olhar do
outro. A partir disso, teremos elementos para nos reapropriar deles e nos cuidar como
pensamos que deve ser e não como querem que pensemos.

#97
Um homem que te rejeita a partir do corpo não consegue enxergar uma mulher em sua

#boMdiAMAtriArcado
completude. Não só você, mas nenhuma. Porque elas devem ser um troféu a ser exibido.
Devem ser pequenas para caber na dominação deles. Devem ser belas, não importa o
que pensem, sintam ou sejam de fato. Toda a sua experiência de vida, os seus sonhos, o
que você tem a dizer, sua contribuição para o mundo, suas melhores características não
são nada se você não couber nas medidas e formas que ele julga necessárias para que
consiga te olhar como um ser humano digno de afeto. E, mesmo assim, você continua
acreditando que a rejeição é culpa sua, que você não está se esforçando, que deve ser
outra pessoa e não essa, quando tudo mostra o quanto ele é que é pequeno pra você.

Não quero dizer que atração física não seja importante, mas que mesmo a nossa
noção do que é ou não atraente está contaminada por um sistema que bombardeia as
mulheres para que se odeiem por qualquer motivo durante todos os dias de suas vidas.
E que bombardeia os homens para que busquem ostentar mulheres próximas do padrão
midiático, não porque as amam, mas porque elas são um sinal de poder masculino. Não
há uma vontade de encontrar e de se deslumbrar com aquilo que o outro nos traz, só
existe a fome de controlar um corpo, de dispor de uma carne. Isso é mesquinho em níveis
assustadores. Desenha o enraizamento da misoginia naquela subjetividade. Inviabiliza
relações realmente saudáveis, porque mesmo que ele encontre uma mulher dentro de
suas exigências, sempre olhará para elas como menores do que elas podem ser.

Conseguir caminhar fora dessa lógica é libertador para homens e mulheres, permite
que se entreguem a outras riquezas da arte do encontro. Sua vida se engrandece
conforme você desperte para outras nuances de desejo, conforme consiga perceber
outras belezas, aquilo que é singular, que nenhuma outra pessoa no mundo tem, um
modo de falar, de olhar, de se comportar no cotidiano, um orgulho que sentimos de
tamanha sensibilidade, inteligência, companheirismo etc. Até sentirmos desejo pelo
que nos acolhe e desarma. Até que o resto da sociedade esteja fora de nossas camas.
Até que sejamos apenas nós, ali, mutuamente aceitos e felizes.

Se ele precisa que você seja qualquer outra que não você mesma em sua
constituição física, deixe que vá embora do teu corpo, da tua casa, da tua vida. Ele
não é teu dono, é só um hóspede — de péssimos hábitos. Deixe sua intimidade
ser melhor frequentada. Esse aí já foi tarde.

#98
77. Depois de talhado o

#boMdiAMAtriArcado
confessionário, lembrar de
frequentá-lo vez em quando
Não há nada de errado em admitir os sentimentos. Não há nada de errado em se
colocar com honestidade diante de quem movimenta as nossas emoções. Seguimos
por um caminho muito ruim com essa cultura de disfarçar o que se sente, com
esse clichê de “praticar o desapego”, com a opção de viver as relações do modo
mais superficial possível, confundido leveza com medo de mergulhar nas trocas. E
não foge das trocas só quem renega os sentimentos, mas também quem se deixa
escravizar afetivamente, roubando-se a experiência da solitude. Porque como falar
em trocas saudáveis quando estamos aprisionados dentro de nós mesmos e de
nossas expectativas, vazios, isto é, não preenchidos por nossa própria presença?
As relações se engrandecem quando a gente se permite emocionar uns com os
outros, aprender humildemente a sair de si mesmo pelo desejo de comungar com
alguém, humanizando o caminho, mas sem se perder de vista. É natural desejar
e oferecer esse espaço de magia e confidência nos contatos, por mais breves ou
racionais que eles se proponham, senão os encontros não têm alma, não atingem o
propósito de nos transformar e de nos redefinir como mosaico de gente que somos,
impulsionando a nossa existência a um novo momento. Isso é evolução e estamos
sendo roubados no processo evolutivo por uma cultura de misérias afetivas, de
máxima celebração das aparências, do consumo e descarte de pessoas, do catálogo
de solidões, de tudo o que é feito para não durar.

Mas vandalizaremos com beleza todas as armaduras.

78. Magia amarela: ter mais o que


fazer e com que se importar
Descobri que a solução pra muitos conflitos emocionais nessa vida — recheados
por sentimentos como tristeza, rancor, frustração, ciúme, dúvida etc. — está em
“ter mais o que fazer/com que se importar”. É tendo mais o que fazer ou com que se
importar que a gente modera alguns comportamentos autodestrutivos, pondera o

#99
tempo destinado às coisas, afasta-se das pessoas que só fazem mal, ventila-se física,

#boMdiAMAtriArcado
moral, mental, emocional e espiritualmente, recria saídas. E teu arroz interno não
queima. E tua pia existencial está sob controle. Bônus.

É preciso cultivar um chamado maior de estimação, à semelhança de uma terapia


que tem o poder de nos pinçar de qualquer lugar infértil no momento adequado,
permitindo que nos reapropriemos de nós mesmos, reconduzindo nossa atenção e
recalculando nosso tempo. Por vezes, ter-mais-oque-fazer ou com-que-se-importar
não necessariamente significa desviar o olhar para algo mais relevante, mas ater-se
a algo descomplicado para se dar o direito de respirar e repensar as relevâncias. Isto
é, abrir possibilidades para que o que for considerado desnecessário ou para aquilo
a que estamos desobrigados sejam exercícios da arte da leveza e do equilíbrio.

Mapeamos mentalmente a vida e nos dizemos o tamanho que cada fato deve
ocupar agora, retomando o barco. Tendo mais com que se ocupar, até o ócio é
melhor aproveitado e fazer porra nenhuma revela suas propriedades curativas; até
o riso se potencializa e nos devolve a nós mesmos lavados e passados, enquanto
o prazer (em todos os sentidos) se redescobre maior. Porque vemos as grandezas
e as miudezas minimamente organizadas, para que nós as tenhamos mais do que
elas nos têm. Ter mais o que fazer ou com que se importar é uma convocação
da “arte das alternativas”, para que não sejamos sequestrados por situações que
nos desgastam ou desperdiçam. Em vez disso, reafirmamos a liberdade de fazer
escolhas, optando pelo que nos torna e nos faz sentir melhores.

79. Magia vermelha: dar defeito


na estrutura de dominação de
gênero
Dê defeito. Ao menos uma vez por dia (e respira), mas dê defeito. Até a corrente se arrebentar.

Esqueça de avisar que não vai, comente alto que está menstruada, indique uma mina,
deixe a sua irmã falar. Leia mulheres, ignore a chamada, não permita que a lembrança
de um abusador te vença, roube seu corpo do veneno das revistas, arrote, foda ou não
foda e saia de cima. Estrague o clima, você não vai se submeter.

#100
Que você dê defeito e todo defeito tem o poder bruto da surpresa. Estamos

#boMdiAMAtriArcado
quebrando a espinha dorsal de uma obsessão dócil milenar ao meio.

Fuja do altar, coloque-o pra fora de casa, fique mais atenta à cusparada de sangue
que o romantismo pode soltar a qualquer momento contra o teu vestido branco.
Fique nua admirando seu corpo, em suas formas, cores, texturas, cheiros e
tamanhos, ao espelho. Confie mais no poder de uma mãe de santo do que no de
um partido político inteiro de pastores.

Ironize a eterna adolescência sexual. Você sabe que é mulher demais pra esse moleque.

Ocupe
o
espaço
público.

Vote em uma igual.

Seu cabelo é lindo. Denuncie a violência policial. Seu feminismo passou da hora de
abraçar sua mãe. Decore mil formas novas de dar defeito para quando ele quiser
voltar com joguinhos.

Rompa com a casca do ovo para sempre. Sua casa deve ser seu espaço sagrado,
seu refúgio. Mas se quiserem te vender a ideia de lar como qualquer coisa que
te paralise ou te faça desistir de jorrar seus objetivos para o mundo, não aceite.
Prefira comida caseira e de verdade, eles estão nos matando. Se você divide o lar,
não se esqueça que as tarefas também são ao meio.

Dê defeito quando disserem que você não pode. Dê defeito quando meterem
a mão na sua maternagem. Elogie sua companheira. Você descobriria que está
envelhecendo sensacionalmente se parasse de se torturar. Deixe a sabedoria de
suas ancestrais falar por seus poros. Tente não comer mais embutidos. Nunca mais
deixaremos que qualquer um deles interrompa nossas falas.

Exerça uma religiosidade livre. Repense o seu absorvente. Respeite o tempo da


sua sexualidade. Não deixe o seu “não” por minutos demais no forno. Proteja-se.
#101
Exija camisinha. Se pediu nudes, não há garantia alguma de que você não seja

#boMdiAMAtriArcado
exposta. Pergunte-se o quanto o teu tesão vale um babaca mimado pela indústria
pornô. Pare de fingir pra si mesma que não deseja receber afeto.

Seja honesta com seus sonhos. A gente veio aqui pra tentar fazer o que ama,
sim. O sistema nos ameaça devorar o tempo todo, mas cada uma tem sua estrela.
Olhemos umas para as outras e pensemos: “Por onde andará sua estrela?”. Não
falharemos em dialogar — isso é lá do mundo deles.

Eu espero que você dê defeito na engrenagem, para ganhar largura de movimentos


o suficiente, até vestir experimentações e saber que tantas culpas não são suas. Que
nas dores você investigue sua alma profundamente para desvendar seus padrões e
caminhar em suas noites íntimas. Que, no meio do processo, você pegue a manha
de si mesma e descubra outros modos de funcionar. Que colecione outros tipos de
orgasmo, explorando novos lugares nos quais colocar sua energia. Que dê defeito
em tudo o que anula, adia, duvida ou debocha do teu voo. Que não demore em
se apaixonar profundamente pela mulher que é, agradecendo à mulher que foi,
encorajando a que deseja se tornar.

80. Carta à mulher que pode


mudar o destino das mulheres da
sua família
Em algum lugar, existe uma mulher que tem nas mãos a oportunidade de
escrever de forma diferente o destino das mulheres da sua família.

Talvez seja você. Talvez seja a primeira a ter acesso ao ensino superior ou a
frequentar lugares da cidade aos quais o seu pai ou a sua mãe não se sintam
autorizados a ir. Talvez você não tenha pai. Quem sabe um padrasto abusador,
que te obrigou a conhecer desde muito cedo os seus infernos, mas que também
te apresentou à sua fúria de leoa. E eu arriscaria dizer que você se tornou, como
adulta, uma potência bélica. E que esteja tentando aprender a se desarmar para
aproveitar o amor.

#102
Pode ter vindo de uma família miserável e ter sido adotada por uma família pobre.

#boMdiAMAtriArcado
E ao usar palavras como “miséria” e “pobreza”, sente desconforto, porque as
limitações materiais te fizeram desenvolver um olhar extraordinário para outras
formas de riqueza na vida. Talvez você se sinta mais íntima do real significado de
prosperidade do que todas as outras pessoas que conhece.

Essa mulher, que existe em algum lugar, talvez diante dessa tela por onde me
lê, aprendeu a ser sozinha, de certa forma. Não havia quem lhe pegasse no colo
o quanto precisava. Ou abraçava a si mesma ou ficaria pelo chão. Foi fazendo,
assim, as pazes com sua própria sombra. Aprendendo a encher de amor sua
solidão, transformando-a em solitude. Precisava construir um espaço sagrado e
confortável para si mesma. Escondeu muito bem escondido, para funcionar bem
no dia a dia, a fome avassaladora desse colo que ninguém pode dar.

Talvez seja você. Talvez recortes seus. Mas existe uma mulher em algum lugar, eu
sei, que foi a primeira de sua linhagem a experimentar certas coisas inimagináveis
para a sua realidade de origem e ousar desejar dar passos mais largos. Ela sentiu
o gosto. E agora cisma de tomar o mundo a partir daquilo que faz, dos seus dons,
um desespero de ser gigante lhe atravessa. Ela é uma farejadora e intui cenários
que seus olhos ainda não se sentem prontos para suportar.

Ela aprendeu a transitar na dor. Mortes, perdas e abandonos lhe fizeram assim.
Racismo, misoginia, lesbofobia, elitismo. Traições. Acostumou-se com as
trincheiras, tem dificuldade de admitir suas fraquezas. E é aí que está o ponto.
Assim como deseja com toda a sua razão, o seu emocional lhe paralisa e trai.
Pensa ser de aço. Em algum nível, acredita que obter determinadas realizações
é luxo. Ela se organiza para voar, mas empaca. Sabota. Adoece. Apaixona-se por
quem lustra suas algemas. Deixa a culpa em lidar com dinheiro falar mais alto.
Esconde-se em seu porto seguro. Afasta-se de realizar-se a partir daquilo que ama
fazer. Não muda os hábitos que precisam ir embora. Essa mulher varreu para baixo
do tapete alguns medos, que de tanto que lhe assustavam, petrificaram.

Talvez o eixo central desses medos esteja no terror de romper com as suas
raízes. Você sabe que tem tudo nas mãos para expandir a experiência das
mulheres da sua família, mas os padrões psicológicos que as atormentam

#103
também formaram você. Há um medo de não dar conta, de não ser capaz, de

#boMdiAMAtriArcado
parecer individualista, de crescer e isso ser uma espécie de traição às suas,
aos seus. Essa mulher não sabe se eles compreenderiam o seu voo. E também
se sente insegura diante da imensa responsabilidade que envolve caminhar
livre no planeta.

Se você for essa mulher, preciso lhe dizer que todo medo é um medo de morrer,
entende? Olhe nos olhos do pavor de deixar de ser isso ou aquilo, de deixar o
novo chegar e perder o chão. Pergunte o que precisa saber a seu respeito para
seguir em frente. Perdoe-se. Você não precisa carregar sempre o peso desta
armadura. Aproprie-se da sua vida, dos seus poderes, pergunte-se o que falta
assumir ou instrumentalizar para que se ajude. Seja sua melhor amiga. Visualize
o novo tempo como quem se seduz para uma ideia. Não tenha medo de se afastar
demais dos seus, de contrariá-los para que possa ser quem é. Rompa as amarras.
Apaixone-se pela história do seu corpo, porque ele é veículo de expressar sua
potência no mundo. Não deixe que te digam como o amor deve ou não deve
acontecer. Você sabe o que o desamor pode causar. Não queira se esconder de si
mesma e de tudo o que ainda pode viver atrás de um relacionamento. Você não
será ofuscada por sua própria carência. Conheça os muitos tons da sua liberdade,
conforme ela for chegando. Essa nova vida, esse ganhar territórios, essa dança
que se anuncia infinita assusta demais. Respeite seus limites, sim. Seja íntima
de suas verdades. Mas não naturalize os males que te aconteceram, tampouco
supervalorize as limitações, sob pena de acreditar demais nelas. Você teve, tem e
sempre terá o direito de desejar uma vida melhor para si mesma.

Essa conversa continua entre nós. Ainda tenho muito a te dizer. Mas hoje eu preciso
que você pare de se culpar por levar a um lugar inédito a experiência daquelas que
te antecederam. Preciso que você tenha coragem de deixar ir embora aquela que
não te serve mais, agradecendo por tudo o que ela moldou, mas reescolhendo o
que deseja levar consigo para essa nova fase. Não é possível voltar atrás e apagar
o que houve, mas é possível despertar, ressignificar e dirigir o final dessa história.
Preciso que você se apaixone profundamente pela mulher que está se tornando e
que permita que ela venha contar ao mundo a sua mensagem. Minhas próximas
palavras serão ditas diretamente a ela.

#104
81. Acionar a farejadora que te

#boMdiAMAtriArcado
habita
Você não tá farejando errado. O bicho em nós não erra. Ele não quer tanto assim.

Sei que vai justificar para si mesma que ele tem medo, que ele não está pronto, que
ele tem problemas com relacionamentos, mas a verdade é que ele não quer o bastante
estar junto. Porque te dói se abrir à verdade. Mas a verdade é um pouco mais além: a
motivação dele não importa, a tua autoestima não está nisso.

Que graça tem lutar por quem não nos reserva o seu brilho nos olhos? Pra que gastar
energia com quem não estará por inteiro no encontro? Pra que se forçar a caber, com
toda a sua grandeza de mulher, na rasa disposição de alguém?

Você é maior. Não se roube universos. Você faz questão do frio na barriga, sim, do
coração acelerado, do tempo da sedução, da pergunta companheira de como foi o
dia, da gargalhada fácil, da netflix junto, do meme, do jantar feito em casa.

Ou pelo menos da foda honesta, de quem vai pra experimentar o ser humano completo e
amanhecer bem, mesmo que depois cada um vá para o seu canto tocar seus projetos de
vida. Foda honesta. Sem mentiras, sem a tristeza da irreciprocidade, sem desumanização.

(E talvez você decida, no meio da foda honesta, que quer mais. Seja como for, meu
conselho é: continue sendo honesta consigo).

Mas a questão é que o teu valor não é dado pelo quanto um homem te deseja. Você
não precisa se mutilar, negando partes suas — traços físicos, desejo de continuidade,
projetos, filhos, hábitos etc. — para se confinar na atenção de alguém.

Sabemos que você veio ao mundo para amar com folga.

Não tem nada de errado contigo, ok?

Ouse desejar mais pra si.

#105
82. Para dizer-se diante do espelho

#boMdiAMAtriArcado
A conclusão sobre quem ele é está quase pronta, mas talvez faltem palavras que você
possa se dizer diante do espelho. Conforme a situação em que você se encontra, há
sempre uma mensagem que a sua intuição tenta trazer à tona. “Ele não está com
saudades”, por exemplo. “Ele não teve tempo de se arrepender”. “Ele não mudou
completamente desde a última relação”. Pode ser que esteja tentando melhorar, mas
abra bem os olhos, “você não tem que suportar tudo, a evolução dele não pode ser
penosa para você”. Se começou agora, “É muito cedo para ele dizer que ama, talvez
esteja só mudando as emoções de endereço, por imaturidade”. Ou “Ele não vai querer
nada além de transar quando ELE sentir vontade”. Não entregue seu ouro tão fácil,
observe, ouça essa voz que está tentando dizer algo. Alguma parte de você sabe
bem de todas essas possibilidades, mas ainda precisa se pegar pela mão e se contar.
Todas sabemos que a intenção deles, na maior parte do tempo, é testar e reafirmar o
poder sexual. A masculinidade é previsível. São anos de autoestima assentada sobre
a dominação sexual e afetiva de mulheres. Você não vai mudar essa mentalidade
de uma hora para outra, forçando-se para caber em uma situação que te faz infeliz
ou que te desperdiça. Se reaparece do nada, lembre-se de que, quando esteve por
perto, nunca procurou se interessar de forma mais profunda por quem você é, pelo
que faz, pelo que pensa, pelo que sente e busca da vida, mesmo tendo todas as
oportunidades. Você também sabe catalogar as muitas formas de ausência que ele te
fez conhecer: mentiu, foi injusto, egoísta, agressivo, deixou que coisas importantes te
faltassem, descumpriu acordos, não deu pequenos e fáceis retornos que fariam toda a
diferença, manipulou, reduziu você a um brinquedo sexual, não perguntou como você
estava, foi negligente como pai, quis que você largasse coisas importantes, manteve
um repertório de abusos, te deixou em modo de espera enquanto possivelmente
brincava com outras, fomentou ilusões só para te comer quando quisesse.

Talvez você nem queira desenvolver um vínculo maior neste momento, então
pensa “tudo bem que ele seja assim, eu também não estou querendo nada”. Mas
eu te pergunto se faz parte da sua vontade viver uma troca tão precária ou se você
precisa fechar os olhos para muitas coisas, a fim de que o sexo aconteça. Isto é,
de que o teu corpo esteja ali disponível para um lixo de pessoa. Eu te pergunto
se aceitar a dinâmica que o favorece não legitima que esse comportamento dele
se estenda a outras mulheres e se não temos uma responsabilidade coletiva

#106
umas com as outras, em face de tantas violências. São sete bilhões de pessoas

#boMdiAMAtriArcado
no mundo, há encontros e encaixes menos misóginos, que não te desumanizem,
que não os autorizem a desumanizar todas nós. Tenho dificuldade de acreditar
que assim esteja bom para você. Talvez você faça questão, sim, de mais afeto, mas
esteja sendo dura demais consigo para admitir e romper, descrente de que mereça
conhecer novas formas mais satisfatórias de conexão. Então se adequa para não
ficar tão sozinha. É preciso abrir espaço na sua vida para que novos encontros,
com mais substância, aconteçam, esvaziando-se do que não te serve mais e do
que faz com que caminhe divorciada de si mesma. Mais do que isso: é preciso ser
uma mulher muito atenta para sustentar um relacionamento sem abrir mão das
suas verdades mais caras.

Eu não te adivinho. É que esse formato relacional não foi decidido por nós.
Há milhões de mulheres nessa situação, sequestradas psicologicamente por
narcisistas. Essa dinâmica rasa e destrutiva de envolvimentos não é de nossa
autoria, definitivamente, nós apenas a reproduzimos. Não assinamos esse projeto
de modernidade líquida. Mas, em vez disso, fomos levadas a acreditar pela cultura
romântica que nosso lugar é à sombra de qualquer esboço de relacionamento.
Para dizer que formato desejamos, precisamos ampliar o nosso poder de escolha,
coisa que só acontece com muito autoconhecimento: descobrir onde estão nossos
nós psíquicos para não sermos mais refém deles, dizer todos os dias que nossos
corpos existem para nós mesmas, que temos direito a sonhar e desejar mais da
vida, trabalhar as memórias de abusos para que não nos determinem, conversar
umas com as outras sobre as muitas formas de violência a que estamos sujeitas,
questionar a heterossexualidade e a maternidade compulsórias, investir em
caminhos de desenvolvimento profissional e financeiro e, sempre que possível,
alavancar outras mulheres junto conosco, para que deem seus saltos de realização
pessoal e ocupem todos os espaços.

Perca o medo de estar consigo. Descubra o grande prazer que existe na experiência
de solitude, a sua solidão é um prato cheio para essas chantagens. É só gerando um
movimento individual e coletivo rumo à nossa completa autonomia que viraremos
o jogo. Mas hoje, na micropolítica dos relacionamentos, já é possível se impor e
anunciar para aqueles que virão que não aceitaremos mais qualquer migalha. Que
não seremos reduzidas a qualquer rótulo em nossa experiência humana. Quero te

#107
dizer que você se sente muito pequena pela rejeição, mas que você é imensa e que

#boMdiAMAtriArcado
o mundo precisa da sua singularidade. Não abra mão dela para se submeter, para
ser mais uma peça dessa multidão adoecida. Você é muito mais do que alguém que
sofre com a vaidade de um babaca. Sua afetividade mal aproveitada é uma riqueza
que está empoeirando e é o testemunho de por que esse sistema não se sustenta
mais. Você é aquela que concentra um gigantesco potencial de dizer, a partir do
lugar que ocupa, aquilo que não queremos para nenhuma de nós. De construir, a
partir do seu corpo e das suas escolhas amorosas, uma dinâmica completamente
diferente para as meninas das próximas gerações. Seremos resistência afetiva.
Seremos reinvenção da mulheridade. Seremos libertação.

83. Em um caldeirão pequeno,


você pode preparar um
ansiolítico caseiro com ervas
brandas
A obrigação de ser socialmente ajustada ao papel de feminilidade — bela e
amada — é um sequestro psicológico que pode durar uma vida inteira. Quando
você entra na ciranda do desespero por aceitação e beleza, você está vivendo
uma ansiedade interminável, escolhendo a infelicidade e se tornando política e
emocionalmente frágil, mais distante de assumir o seu papel como mulher dentro
dos processos sociais decisivos.

O nosso sistema de produção de misérias e injustiças precisa que as mulheres


continuem se sentindo horríveis, dependentes emocionalmente, preteridas
sexualmente ou viciadas em autoafirmação sexual, facilmente ofendidas e
criticáveis, consumidoras compulsivas das indústrias da moda e de cosméticos,
inadequadas, desconectadas dos seus sonhos, perecíveis, ultrapassadas,
competitivas, com ódio do próprio corpo, inseguras, impotentes, frias, rancorosas,
vivendo um repertório de desequilíbrios. Imagine se nos levantássemos e
fizéssemos a diferença, não recuando mais um centímetro no combate a todos os
projetos de ódio — racial, de gênero, orientação e de classe — da masculinidade.

#108
Dos quase 3,5 bilhões de mulheres que existem no mundo, se pelo menos 30%

#boMdiAMAtriArcado
se sujeitam a esses valores, isso já é mais do que suficiente, em termos de
desmobilização/esterilidade política, para manter as coisas em seus devidos
lugares. Seria terrivelmente libertador para o planeta se elas se encorajassem em
níveis nunca vistos e começassem a assumir seus postos: promovendo cultura,
democratizando educação e saúde, distribuindo terras e moradia, proferindo
sentenças justas, derrubando governos, desmascarando o sistema financeiro,
gerando transformação social.

Onde quer que você esteja, o que quer que esteja passando, deve ser uma
motivação a mais para o seu levante saber que o mundo precisa de você. E que
o seu confinamento na vida íntima, submissa ao amor ideal ou à beleza padrão,
rouba dos espaços públicos uma grande mulher. A ideia é exatamente essa, o
projeto existente para nós é o de aniquilar os traços de matriarcas e romantizar
a fragilidade das princesas. Erga-se e assuma o seu papel no mundo. Há muito
sangue sendo derramado em toda parte, não podemos mais esperar.

84. Fortalecer a musculatura


espiritual para suportar sozinha
suas belezas
Com quantos homens você precisou ser benevolente só pra não ficar sozinha?
A gente sabe, a gente sabe muito bem que, muitas vezes, o sujeito não é lá
isso tudo. Que tem algumas capacidades emocionais atrofiadas, que não tem
tanta afinidade conosco ou sensibilidade para dividir aquilo que nos é caro, que
confunde falta de empatia com sede de liberdade, que tem uma compulsão por
sexo que atropela a dignidade das pessoas ou que tem um repertório simbólico
pobre, como diz uma amiga. A gente sabe disso sem muito esforço. Mas
ninguém quer admitir. Admitir o que a gente está vendo, que está escancarado
ali, é perder uma oportunidade de se relacionar. Então, mais uma vez, para
não “julgar” — e porque nos deram lentes cor de rosa assim que nascemos
e passamos o resto da vida pensando que ela pode nos presentear com um
serumaninho incrível — a gente vai lá e aposta no animal. CEGAMENTE. O
problema está aí, em nunca ir com calma. Em não se dar tempo.

#109
Metade dessas coisas bonitas que você reconhece em um homem só está te

#boMdiAMAtriArcado
espelhando, ok? Não que eles não possam ser grandes amigos, companheiros,
pais ou colegas de trabalho. Mas é que, sejam como forem, estamos aí há alguns
milênios sendo doutriná-las para endeusá-los com muita, muita facilidade. Está
quase no automático. E para que isso seja melhor cumprido, estamos também
sendo doutrinadas para competir e ter péssima autoestima. Uma série de tristezas
e violências desde que nascemos nos faz muito carentes. E aí, se eu não posso
prestar atenção em mim direito, se eu mereço menos, se o outro é senhor absoluto
da porra toda, isso vai deflagrar dois processos em mim:

01) Eu vou precisar dele para reconhecer minhas características brilhantes, vou
deixar que o interesse dele seja um termômetro do meu valor;
02) Paradoxalmente, se eu tenho dúvida do meu valor, e eu sempre tenho,
vou escolher inconscientemente aqueles que vão espelhar o meu desvalor,
confirmando a imagem precária que tenho a meu respeito.

Não é ele, é você. Nos dois casos: é você que é uma mulher maravilhosa e é
você que está se dizendo que não é. Só que está usando o outro pra fazer isso,
porque sua socialização não te fortalece como indivíduo e não te encaminha
para o desenvolvimento de uma autonomia.

E aí ficamos eternamente presas nessa ciranda de relações insatisfatórias,


pintando-os como seres mais belos, inteligentes, interessantes e iluminados
do que de fato são, para que o desejo deles nos pinte como deusas também,
indiretamente. E como não são de fato a última coca-cola do deserto e como não
nos reconhecem em nossas qualidades, porque precisam sempre estar acima de
nós, acabam nos levando a pensar que não somos isso tudo. É um monólogo.

85. A mulher como arquiteta


de seu espaço sagrado
A solitude é uma construção. Não acordamos e nos deparamos com ela, um belo
dia, sentada em nosso sofá, sentindo prazer de estar em nossa companhia, de
fazer as tarefas cotidianas, cuidar amorosamente de nosso próprio corpo, no

#110
silêncio da nossa casa, espelhando a paixão instantânea de viver só. A solitude

#boMdiAMAtriArcado
é um exercício cujo ganho só se encontra na travessia da mais dolorosa
solidão. Se você olhar bem dentro dos olhos de uma mulher que hoje ama
estar consigo, não encontrará um histórico fácil, uma infância de vontades
realizadas, uma adolescência que tenha desconhecido a crueldade, uma vida
adulta de trechos blindados contra a tragédia. Com uma boa lente, você
avistará um caminho craquelado, despedaçado muitas vezes e refeito porque
é preciso seguir em frente. Porque é quase um luxo desistir. É esse, portanto,
o olhar alongado da solitude, que redimensiona em fertilidade as miudezas
cotidianas às quais as multidões não dão valor. A mão que pega em sua própria
mão à noite, porque não haverá mais ninguém ali. E que, cansada de só olhar
para a ausência, começa a inundar todos os vazios dos cômodos de sua própria
presença. Então é rica, por não amplificar suas misérias, mas por convertê-las
em matéria-prima para novas vivências. A solitude, de tão insistente, de tão
estudiosa da dor, uma hora consegue extrair um prazer improvável do instante
mínimo consigo. Porque já ressignificou perdas incalculáveis, já enfrentou frio
e fome concretos ou simbólicos, teve que se levantar e fazer curativos quando
não havia sequer um desconhecido por perto para prestar socorro, já teve
que se reinventar mais forte, mais suave, mais esperançosa para suportar uma
existência inteira diante do espelho. Temos, portanto, uma história recontada
com toda dignidade poética a que tem direito. A solitude é o mini oásis que
encontramos quando pensamos não ter mais nada a perder, a vitória de achar
sempre novos motivos para recriar a paisagem íntima em pleno deserto.

86. Meditação para alcançar


vida abundante
Sei que muitas vezes você se sente uma fraude. Pensa que não está tão pronta
assim e fica se dando mil desculpas para que nunca se aproprie de sua vida, dos
seus desejos, dos seus dons. Tem culpa de ganhar dinheiro, de se jogar no que
ama fazer. Passa horas lustrando seus defeitos e evitando repensar honestamente
seus hábitos, na desculpa de permenecer segura onde está. Quase sempre você se
adia, virando um eterno projeto em sua própria gaveta, jamais atingindo a forma
ideal. Talvez tenha noção da grandeza da marca que tem a deixar, mas morre

#111
de medo de que esse movimento de acreditar em seus passos traga uma vida

#boMdiAMAtriArcado
completamente diferente. Medo de não dar conta, medo de dar conta e tornar-se
outra, medo de tornar-se quem é. Seu medo esconde um poder que você (ainda)
não suporta ter.

É assim mesmo, nenhuma de nós foi incentivada o bastante a andar na direção


da sua autonomia. É uma afronta ao sistema que nos realizemos. E ouso dizer
que é justamente por isso que devemos viver como um exercício permanente de
coragem, enfrentando aquilo que nos assusta, aquilo que não desaparecerá se
não abraçarmos. E desconfiar do tamanho dos obstáculos, porque volta e meia
nós os superdimensionamos para justificar a estagnação e o esconderijo. Uma
mulher feliz com suas escolhas incomodará um grande número de homens e de
mulheres. Em algum nível, há sempre uma ruptura familiar, porque é preciso
elevar a um novo patamar a experiência de uma linhagem inteira de mulheres
que não puderam viver como desejavam, e talvez essa revolução que você esteja
prestes a protagonizar não venha a ser compreendida/aceita por anos. Mas tanto
suas ancestrais quanto aquelas que ainda não nasceram agradecerão.

Também sei que, mesmo com faca e o queijo na mão para descobrir um propósito
que dê um sentido maior à sua existência, você costuma se perguntar coisas como:
“O que venho fazendo de errado para que minhas relações não deem certo?”, “Será
que já não está na hora de parar de desejar essas coisas para decidir se quero ser
mãe?” ou “Não estou velha demais para isso, já que não me realizei até agora?”.
Você se sente perecível e limitada, não porque sua alma não vibre, mas porque a
sociedade é obcecada pela juventude das mulheres, para que possa consumi-las.
Você se sente desajustada socialmente se não possui uma relação, se ainda não
é mãe ou se já é mãe, como se o seu coração não pudesse pedir mais nada. Você
não se autoriza a mudar os rumos, a deixar que a curiosidade te guie, a reescolher
uma vida que é sua, só sua, a qualquer tempo. Na tentativa de se enquadrar no que
esperam de uma mulher, você termina por nunca se perceber e por renunciar a
perguntas que mudariam toda a sua história.

O que não nos dizem é que quando uma de nós ousa romper certas barreiras,
isso tem um aproveitamento coletivo. Quando uma de nós deixa de assumir sua
singularidade, então há menos gente fazendo a diferença e fundando um novo

#112
tempo. A evolução de uma mulher no sentido de se ouvir e apostar em seus

#boMdiAMAtriArcado
sonhos é a afirmação de uma nova era, ao passo que a sua desistência em nome
do lugar reservado às mulheres é um incalculável desfalque. Enquanto você se
tortura por se pensar uma fraude, enquanto você se culpa por ganhar dinheiro,
por fazer diariamente algo que te motive e por viver em condições melhores, todas
essas experiências continuam concentradas em individualidades privilegiadas, que
seguem alheias ao local de onde você veio e a tudo o que alguém como você precisa
passar para ocupar certos espaços de poder. Faça o que for necessário para se
conhecer, melhorar e desmontar seus medos. Blefe, vai do jeito que está, banque a
loucura, divulgue, celebre os pontos fortes, seja cara-de-pau. Você merece vivenciar
tudo aquilo que intui merecer. E o mundo merece circular por mãos mais generosas.

87. Magia azul: para descansar


de todo trabalho emocional
Por que é você quem tem que batalhar para que essa relação aconteça? Por que é você
quem tem que se empenhar emocionalmente, quebrando a cabeça para entender o
que significa cada gesto do outro? Ou ficar zonza, sem saber quando pode mandar
mensagem, quando se excedeu, quando é a hora de sugerir ou deixar que a pessoa
tome a iniciativa do próximo encontro? Por que você não pode ser quem é, descansar
de tanta produção para ser aceita, responder mensagens apenas quando puder, deixar
de lado a culpa por ter dito ou feito isso ou aquilo...?

Não é “incompetência” sua se o roteiro que você tinha em mente não tiver
se concretizado. Você não vale menos se alguém não for capaz de perceber a
grandeza da sua companhia. Não precisa se esforçar tanto para aliviar erros em
série, pode começar a conhecer e pontuar seus limites desde agora. Não perca
muito tempo onde percebe que o investimento é unilateral/desproporcional.

Chega de ser uma operária dos relacionamentos. Demita o seu patrão afetivo.
Considere que muitas pessoas ficaram na sua vida pelo mesmo motivo que outras
foram embora. Você merece ser amada sem se descaracterizar pra isso. Deixe chegar
a paz de ser exatamente como é, você não pode passar a vida inteira escondendo-se
de si mesma atrás de alguém que diga o quanto você vale.

#113
88. Magia rosa: tornar a

#boMdiAMAtriArcado
existência femeocêntrica
Eu falo sobre nos libertarmos de toda dominação emocional pra que as
mulheres descubram que não precisam ficar em relações que as matarão
de muitas maneiras. O feminicídio, como um último degrau nessa escala
de violências, só é possível porque estamos dentro de relações destrutivas
acreditando que aquele seja o nosso destino. Somos reféns de uma socialização
que nos convence da nossa inferioridade e que autoriza os homens a tomar
pra si qualquer coisa que pensem lhe pertencer, inclusive nossas vidas.
Minha militância é para que todas possamos abrir os olhos agora e iniciar um
movimento de dizer o que não queremos, estabelecendo nossos limites nos
laços desde que eles se esboçam, enquanto nos colocamos no centro de nossas
existências com muito autoconhecimento. Isso é questão de sobrevivência.
Iniciar um movimento de ir lá descobrir nas nossas raízes as crenças que
nos aprisionam em relacionamentos que nos devastam e dar um basta. Não
combateremos a violência contra a mulher sem dar novos elementos para
que a sua subjetividade seja repensada. É preciso se renovar psiquicamente,
porque o sequestro é psicológico. Isso significa abrir-se a narrativas de
autonomia, desde pequenos exercícios cotidianos de recontar suas vivências
para si mesma até investigar no inconsciente coletivo e em todo material
ancestral referências simbólicas onde as mulheres sejam centrais, passando
pelo conhecimento histórico e cultural que não nos deixará reproduzir lugares
e papéis onde não desejamos mais estar, enquanto levantamos exemplos de
realizações de mulheres que nos autorizaram a ir além. Nem só de militância
clássica será feita a nossa liberdade. Disputaremos também uma subjetividade
que nos devolva a nós mesmas.

Um despertar matriarcal: o que eu quero já tem nome.

#114
89. Reservar um dia só para

#boMdiAMAtriArcado
voltar e reler o que você quis se
dizer em seu livro das sombras
A maior crueldade do patriarcado é essa carga depositada sobre as mulheres da
busca pelo relacionamento ideal. Ela é a maior porque, diferentemente de outras
formas de violência, é silenciosa. Faz estragos em longo prazo, às vezes uma vida
inteira. Faz com que a gente seja refém das emoções, rouba-nos o protagonismo
da nossa própria história. Por mais que a gente vá exercitando a autonomia em
outros aspectos da vida – profissão, estudos, até mesmo sexualidade – a ideia de
que existe um lugar de tranquilidade emocional que nos é devido, que é quase
um direito e, como tal, um dia chega, arrasa com a mente. Isso pode se apresentar
de muitas maneiras: na obsessão pela fidelidade, na competição feminina, na
necessidade de dar nomes às relações, nas narrativas maniqueístas sobre os
envolvimentos passados... Por outro lado, livrar-se desses comportamentos pela
própria saúde e pela saúde sentimental também pode recair naquela obrigação de
estar socioemocionalmente ajustado, como numa chantagem: se você não aceitar
os valores soltos dos novos tempos, fica só. Pra mim, a maior luta feminista é
aquela que é travada internamente, no bojo do processo de autoconhecimento, e
sepulta essa síndrome de Estocolmo constantemente confundida com amor. E dói,
dói muito se conhecer e desejar/entender o que significa libertar. A gente nunca
sabe quando se abrir à imprecisão das novas formas de se relacionar é libertação
de verdade ou é anular-se; nem quando respeitar certas crenças e necessidades é
uma forma de resistência política ou conservadorismo.

________________
Esse é um texto de 2014. Eu editaria algumas coisas, reescreveria melhor, mas preferi publicar do jeito
que coloquei lá atrás e dialogar com ele. Hoje entendo que a expectativa excessiva em torno da realização
amorosa, que é estimulada em nós dentro do processo de socialização, é estratégica para o patriarcado.
Porque estabelece a fundamentação do trabalho emocional atribuído às mulheres. Ela vai dizendo qual
é o nosso lugar na sociedade: à sombra dos homens, esperando ser amadas. Internalizamos uma noção
de felicidade que está essencialmente ligada à aceitação masculina. Essa secundarização, alinhada à
maternidade e à heterossexualidade compulsórias, não é apenas mais uma forma de violência, ela fornece
a base psicológica para que aceitemos diversas formas de violência no bojo das relações íntimas. Ela nos
desautoriza e desencoraja em muitos níveis e nos distancia do interesse pela autonomia: por caminhar
fortalecidas em nossa própria companhia, retirando a nossa realização pessoal das mãos de terceiros e nos
tornando responsáveis por nossas vidas.

#115
90.Magia dourada: permitir-se

#boMdiAMAtriArcado
desejar mais da vida
Quando digo que ele te usa, não estou cancelando o seu poder de ação e te colocando
como vítima das circunstâncias, incapaz de se defender ou de realizar escolhas. Estou
querendo te dizer que a sua totalidade como ser humano não está sendo considerada
e que isso não constrói uma relação. Estou querendo te lembrar que você é mais do
que a foda certa, mais do que aquele colo que só é útil quando uma merda acontece,
mais do que um corpo para o qual transferimos nossas expectativas frustradas com
outro, mais do que a fragilidade momentânea, do que se submeter por solidão, mais
do que um papel cuja serventia beneficia o fortalecimento de um gênero à custa
da doação de outro. Você não existe para o sustento de vaidades. Eu acredito que
você mereça alguém que te alcance nas suas questões, alguém que se interesse pela
sua história, por como você pensa diante dos acontecimentos, que celebre suas
conquistas, alguém que te dê descanso voltando de um expediente pesado ou que te
apresente para todas as pessoas queridas sem medo, alguém que te queira quando
você também quer e não apenas quando é conveniente. Acredito que você tenha
todo o direito de olhar para o que vem recebendo agora e se perguntar se é isso que
realmente vem buscando, se essa troca tem ternura e igualdade, ou se você está só
se adequando à — aparentemente — única opção que apareceu. Coragem, vamos lá,
você merece o melhor e não é nenhum crime desejar um pouco mais.

Fortaleça uma mulher.

Essa obra é propriedade intelectual de Maria Gabriela Saldanha. Você pode divulgá-la e
reproduzir trechos, sem fins lucrativos, com os devidos créditos. É proibida a venda. Para
quaisquer outros usos ou para saber mais sobre outros escritos e sobre o trabalho com mitos
e oráculos (atendimentos, cursos e criação de conteúdo) contate a autora. Aí embaixo vão as
informações para contato e redes sociais:

mariagabrielasaldanha

@mariagabisaldanha

bomdiamatriarcado@gmail.com

matriarcaria@gmail.com

Lua Cheia #116


Rituais verbais de

#boMdiAMAtriArcado
plenitude. Maternidade
ou não. Coragem de ser
grande. Mulheridade
Próspera.
O levante é oceânico.
capítulo IV
ROGER VIOLLET/ GETTY

#117
91. Jornada à Vênus de Willendorf

#boMdiAMAtriArcado
É regra também ser magra emocionalmente, para caber na capacidade
masculina de sustentar um vínculo. Toneladas de revistas femininas e livros de
autoajuda existem para nos ensinar a emitir a mensagem certa de “Não estou
me importando”, como se isso pudesse ser uma isca. Por dentro, estamos
destruídas. Por dentro, nossa verdade devastada. Mas sabemos que precisamos
manter uma aparência de leveza e desprendimento que oculte quase que
num passe de mágica as ansiedades cultivadas desde a infância em torno
de um relacionamento, as ansiedades reativadas a cada encontro, sem que
nunca tenham tempo de respirar e se curar pelo autoconhecimento. É como
um photoshop existencial. Você simplesmente finge que segue caminhando
bem em meio a uma multidão que também finge não se importar, não se
apegar, não ter solidão, não buscar um amor. Quantas vezes você ouviu “Não
cultive expectativas”, sem que te explicassem como? Mas você não é magra
emocionalmente para garantir essa dieta de encontros rasos, você tem fome de
viver e trocar. Você é gorda. É grande de afetos, é farta de desejos, abundante
de sonhos. Você se movimenta com folga, como a própria natureza. Seus gestos
são amplos, fundam florestas, seus sentimentos arrastam as correntezas. Se
juntassem tudo o que você já chorou na vida, daria um oceano. Todo esse
volume emotivo foi explorado na mulher como um papel diante do mundo e eu
acredito firmemente que esse volume exista, que ele não seja falso, que ele seja
potência, mas que venha fluindo, há milênios, na direção errada, na direção do
homem, para nutri-lo interminavelmente.

92. Contando a si mesma que está


grávida
Você passou dias a fio tentando entender o que um determinado gesto dele
significava. Quando era mais nova, comprou revistas que listavam “21 sinais
que eles dão quando estão interessados”. Cada frase dita é dissecada até
comprovar o que você gostaria. “É só um menino”, anota mentalmente. Você
reage muito mal ao silêncio, caça pistas de onde ele esteve, acompanha a sua
movimentação nas redes sociais, dá desculpas a si mesma por atitudes que

#118
não são suas, “Ele está confuso”, “Tem problemas com a mãe”, “É a Vênus

#boMdiAMAtriArcado
em Virgem”, “Tem dificuldade de compreender as emoções”, “É traumatizado
pela relação anterior”, “A ex dele é louca”, “Normal, ele faz isso porque é
homem”... Você investiu até mesmo dinheiro por quem não soube agradecer.
Deixou de crescer no trabalho por um romance. Tantas vezes foi às compras e
não pensou em si mesma primeiro. Fingiu que palavras e ações não foram tão
agressivas. Perdoa os maiores absurdos sem que tenham te pedido perdão.
Mais para a frente, acredita, vocês se encontram. Talvez só assim sossegue um
pouco, porque joga para amanhã essa ansiedade. Negligenciou o faro do seu
ciúme. Não existe uma conversa que não seja estudada à exaustão. Quando
nada mais se pode processar, você assume a autoria dos abusos, trazendo
a culpa para os seus seios. Condicionou sua paz a um diálogo que não está
acontecendo. Vai atrás de cada relação que ele teve. Facilita tudo pra ele,
atestando incapacidades.

Talvez você reconheça uma ou muitas dessas atitudes. E, em algum nível, sabe
o quanto elas são aproveitadas com desonestidade. Todas elas evidenciam
um inacreditável trabalho emocional que caracteriza a nossa subjetividade
desde sempre. Aquele impulso de ser mãe de quem deveria ser companheiro,
por também entender “mãe” como uma entidade infinitamente compassiva e
não como um ser humano. Esperou pela rendição porque, de alguma forma,
acredita que ele mudaria por você. Estamos sempre prontas e eles nunca
estão, mas desejamos aprontá-los a todo custo. Não nos temos nas mãos
porque a energia disponível para nós mesmas, que nos transformaria pelo
autoconhecimento, está sempre sendo devotada na direção do homem. Vamos
até o fim pela possibilidade afetiva, como se isso fosse algum tipo de prêmio,
ainda que tudo sinalize ser apenas esmola. E se, em vez de destrincharmos o
outro para que ele caiba em nossas teorias desesperadas, estudássemos a nós
mesmas? E se conhecêssemos a origem do nosso vazio íntimo, que é também
político e ancestral? Creio que não seríamos mais exploradas emocionalmente.
Uma outra mulheridade seria possível: próspera, serena, não referenciada no
outro, mas em nós, com potencial para identificar os verdadeiros sonhos, com
coragem para ir em busca deles, com tesão de ocupar todos os espaços e
construir a realidade que se deseja, que é preciso. Uma que não espere o
carimbo amoroso para finalmente existir. Plena.

#119
93. A fase cheia da lunação em sua

#boMdiAMAtriArcado
simbologia de situação-limite
Já não é mais a pura ofensa misógina que agride, porque vamos nos
repensando, curando, e em muitos casos conseguimos identificar mais
facilmente que ela é só uma tentativa de controle. O que agride e cansa e
retalha as esperanças é saber que a pretensão de agredir chega a um nível
tal de banalização que nunca vai cessar, por mais que dediquemos a nossa
vida a construir uma realidade melhor para a totalidade de mulheres. O que
nos abala, independentemente das palavras ou gestos escolhidos para “nos
colocar no nosso lugar”, é constatar que o mesmo ódio que está contido no
estupro ou no feminicídio encontra-se diluído em micro agressões diárias,
dadas como inofensivas, de difícil percepção. Tentam nos envenenar, castrar e
calar em doses homeopáticas, porque assim ninguém percebe, ninguém pune,
ninguém se importa. Porque assim a nossa denúncia perde o objeto e somos
dadas como loucas, raivosas, reclamonas, problematizadoras. Comumente, se
um homem não concorda, desagrada-se ou não entende o que você quis dizer,
a culpa é sua. E, comumente, a reação que ele terá será ofensiva, violenta,
proporcional ao quanto sua mensagem afrontou sua masculinidade. Porque o
que incomoda, mais além da dimensão das ideias em conflito, é o seu direito
de dizer o que pensa. Desde o momento em que acordamos até a hora em que
vamos dormir, ouvimos toda espécie de barbaridades que remetem à nossa
condição de mulher. É assim, com esse gotejar infinito, que as violências vão
sendo autorizadas pelo tecido dos discursos. “Qual é a solução?”, você me
pergunta. A ela eu reservo poucas linhas nesse texto, para que você se lembre
de que tudo o que fizer e parecer insignificante diante da violência constitui
também uma gota no corpo de um levante oceânico: a solução já está em
curso. A solução é tudo o que já vimos fazendo por nós mesmas e umas pelas
outras. E é só por isso que eles tentam nos conter, pelo desespero de quem
percebe que já não mais poderá nos conter. O ódio que se desprende do ódio
agora se mostra diagnóstico de uma masculinidade que não sabe perder.

#120
94.Deite-se confortavelmente,

#boMdiAMAtriArcado
respire profundamente nove vezes
e coloque as mãos sobre o seu
ventre. Ele é seu.
Eu poderia contar muitas histórias de homens que pedem filho para todas as
mulheres com as quais se envolvem. Essa é uma situação bastante comum.
É um anseio que às vezes parte da ideia de ser socialmente ajustado, não
necessariamente da vontade de construir uma vida a dois. Não significa que o
sujeito será um pai presente, não significa que a mulher terá apoio emocional na
gestação, não significa que ele terá clareza quanto ao que representa ser pai ou
qualquer empatia quanto ao fato de essa experiência ocorrer predominantemente
no TEU corpo, pode estar apenas dando vazão a um apelo inconsciente de
resolver sua história familiar constituindo uma nova estrutura. Enfim, não
significa nada em termos afetivos, porque é milenar que sejamos anuladas em
função de nossa capacidade reprodutiva ou tratadas como mera propriedade.
Tudo nos diz que a tendência é ficarmos marcadas para aquele homem ausente
apenas como um útero que existiu para servir — sinônimo de desumanização.
Mesmo assim, terminamos por nos iludir: frequentemente recebemos os muitos
tons de dominação aí presentes da forma mais elogiosa, como uma oportunidade
de validar o modelo existencial para o qual fomos preparadas pela socialização
de gênero. É bem verdade que eu também poderia contar muitas histórias de
mulheres que triunfaram sobre a solidão de arcar integralmente com a educação
de uma criança. Essa é a história da maioria esmagadora das mães em nosso
país. Mas hoje você tem a possibilidade de encontrar essas palavras, identificar
o engano e repensar suas escolhas. Não vamos mais cair nesse conto, não é?
Cancelaremos o direito de brincar com a vida humana. Quando esse “pedido” vier
carregado de irresponsabilidade, de pouca profundidade no vínculo, de pouco
tempo de conhecimento mútuo, tem grandes chances de ser só mais uma forma
de submeter o seu corpo, não implicando em um interesse real por dividir uma
vida e assumir todos os desafios na formação de um ser humano, principalmente
diante de um mundo tão adoecido e difícil para as crianças e as mulheres. O desejo
masculino de paternidade como status é só mais um resultado da maternidade

#121
compulsória em curso, não se confunde com amor. Estamos moldando um tempo

#boMdiAMAtriArcado
em que essa será uma escolha consciente de mulheres despertas, donas do seu
corpo, da sua afetividade e do seu amanhã.

95. Magia branca: método de


purificação do altar e retomada
da criação de sua realidade
Não existe outra forma de crescer que não seja se soltando de amarras
passadas. Não adianta: você vai sentir mágoa, raiva, rancor, ódio e enquanto
busca incessantemente punir, é o seu corpo quem sustenta esse paiol. Uma hora
terá que limpar as suas emoções, esvaziar-se de todo o peso que tem se feito
carregar. Do contrário, você se pune também. Toma veneno esperando ficar
para ler o obituário, condena-se aguardando justiça sobre quem sequer foi réu.
A totalidade dos fatos escapa à nossa fome de controle, mas temos mais poder
sobre nós do que geralmente exercemos. Adiamos o experimento, ele funda o
grande perigo das páginas em branco. A frustração promete um sossego estranho
e seduz para a inação, enquanto ressignificar é autorizar o amanhã e flertar com
o desconhecido. Mas sempre, sempre, sempre chega aquele momento, por mais
que se fuja, de colocar os dois pés firmes no presente para se reapropriar de
sua história. De perdoar, sim, porque é só na tua carne que dói — acorde! De
sentir curiosidade pelas possibilidades guardadas no horizonte, parando de dar
as costas às muitas outras de nós que desejam chegar e libertar aquelas que
anteriormente se deixaram determinar pelas dores por um tempo prolongado.
Dor é um alerta. Uma forma de o corpo se expressar, por exemplo, de dizer que
algo não vai bem. Não é identidade. Qual é o seu nome? Olhe para a criança
que aí ainda existe, para todas as idades que conservamos internamente, como
matrioskas. Cada qual traz seu conjunto de dores que vão pesando nos ombros
das crianças seguintes, até que a pessoa adulta de hoje tenha desacreditado
demais. Qual é o seu nome? Com qual vida você sonhava? Esse texto é pra você
pegar essa criança no colo e se dizer, diante do espelho, que sempre é tempo
de se reinventar.

#122
96. Não ter hora para subverter

#boMdiAMAtriArcado
a solidão e decretar uma festa
surpresa em sua companhia
É chegado o momento de se dizer “Que bom que a pessoa não vem”. Tomar um bolo
tem esse caminho. Primeiro raiva, depois frustração, depois reinvento. Não importa
a dimensão do bolo ou a (des)conexão que o criou. Tomar um bolo é tomar um bolo,
seja do técnico do provedor de internet, da paixão, do entregador de uma encomenda:
nasce desagradável. Acessa os abandonos internos, corre o risco de parecer descaso maior
do que foi. Mas, se pá, nos lembra de fazer o reboco em alguns abismos. Do migué ao
impedimento real, a desculpa para o furo importa menos do que o fato de que ficamos a
sós conosco. Imprevistos improvisam. Somos obrigadas a nos preencher de nossa própria
presença, a arrumar outra coisa, a dar nosso jeito. A arte de deixar ir embora, coisa que o
mundo só nos ensina com violência, pode ser perfeitamente exercitada com mais leveza
na ausência repentina. Assim, você pega a substância do balão que tomou e transforma em
liberdade. Desmarcar, de repente, sentencia o óbvio: que os caminhos não se encontram
atados. Que cada uma é dona das suas pernas. Dá pra ver tudo maior, quando a gente sai
do reino miúdo da comunicação cotidiana e corre na direção da despalavra poética. Então
qual é a grande lição de um bolo? Você tem lá sua estrada e eu a minha. Se você não vem,
eu me autorizo a ir a toda parte. Se você não vem, por exemplo, às 9, quem sabe à meia-
noite eu me tome nas mãos, pega de surpresa pelo meu direito ao meu próprio tempo, à
minha própria folga, à minha própria trilha. À minha companhia, que se agiganta quanto
mais eu me resolvo e redefino gentilmente o que farei hoje comigo. Deixo as horas me
surpreenderem e me mostrarem por que era incrivelmente melhor desse jeito. Faço uma
profecia maior acontecer só com o talento de deixar ser aquilo que o desencontro é.
Então rola o que precisa rolar. Vem quem precisa vir. Estou onde preciso estar. Acaba me
encontrando o que eu deveria viver. Estou em minha plena companhia.

Se você tomou um bolo,


não se afobe, não,
que nenhum chão é pra já
e os pés sabem intuir
jeito bom de atender
ao destino do coração.

#123
97. Todas estamos fadadas a

#boMdiAMAtriArcado
nos dar à luz diversas vezes no
espaço de uma vida
Quando uma criança ou uma adolescente foram levadas a acreditar que não havia
muito amor disponível para elas, passam a vida duvidando. Nenhum terreno é seguro.
Recebem migalhas e se perguntam se ali não existe uma fagulha de afeto bom, mas
confuso, tentando desvendar a qualquer custo o que lhes parece uma declaração de
amor do avesso. Caminham sedadas pelo labirinto das micro agressões diárias, até
que se percam o bastante de si mesmas e, cansadas, ironicamente vão tomar sombra
à beira das agressões maiores, tirando forças sabe-se lá de onde para se convencer
de uma outra paisagem. Mas se de repente recebem carinho, justo quando não
estão de banho tomado esperando por aquilo, então de imediato se perguntam
se não há uma camada oculta de intenções, um messias, um escudo, uma punição
velada, uma piada rondando prestes a se legendar. O que era só um gesto amoroso
virou uma galáxia e agora é preciso inventar uma batalha entre estrelas. Testam
os limites de todos à sua volta e os seus próprios, até que comprovem a lei do
desamor que lhes foi apresentada lá atrás, trazendo essa sentença entre os dentes,
sagrando. Não tem remédio. Não tem nada no mundo que preencha as incertezas
dessa inocência ferida. A única força que lhe salva e nutre é a da adulta corajosa, que
enfia a mão por dentro de si para puxar sua juventude dos abismos internos e se
colocar em seu próprio colo. Parece que vai rasgar nessa hora, mas a gente aguenta,
a vagina de todas as coisas é feita para a flexibilidade. Parto é parto.

98. Palavras de poder: “Sim” e “Não”


Parece que a boca não se acostuma. É normal, estamos vivendo um exercício
histórico, que nossas mães e avós não puderam viver. Estamos aprendendo a dizer
um certo tipo de “não”, em uma sociedade que forma a mulher para que o seu “não”
seja desconsiderado. Muitas vezes a saliva falta, os lábios fraquejam, a gente bota a
culpa no coração (duvido que o coração não queira mais libertação do que qualquer
coisa. O coração é íntimo do útero)... Mas depois que começamos a exercitar esse
tipo de “não”, primeiro por defesa, em seguida para nos convencermos e só depois

#124
para retomar a visão e fuçar outros “sins” que pouco exploramos, é aí, exatamente

#boMdiAMAtriArcado
aí, que outras camadas de diálogo se revelam. Então percebemos: existe um outro
tipo de profundidade no “não”. Uma outra vida. Uma que tem muito prazer em
estoque. É preciso atravessar a frustração que nos obriga a dizer “não” para chegar
até essa esfera. Sim, quase como um portal em nós mesmas. Encará-la como quem
encara seus próprios medos. Todos os medos são velhos. O maior deles, dentro
do qual somos chantageadas o tempo todo, é o da solidão. Pensamos que banir
quem nos faz mal determinará o nosso isolamento, mas não é verdade. Temos aí
sete bilhões de pessoas no mundo pra contar outra história, uma onde os laços
possam ser experimentados — e, neles, outras saúdes e riquezas de troca — até
que aprendam a ser mais plenos. Depois que olhamos bem nos olhos dos nossos
fantasmas, aqueles que rondam tentando deslegitimar o nosso “Não” e tomamos
coragem de dizê-lo e, mais do que isso, sustentá-lo, as sombras se dissipam.
Amanhecemos. O caminho se revela e chegamos em casa. Descobrimos o deleite
que existe em voltar para nós mesmas. Sentimos aquele alívio nas costas, porque
não nos roubamos no jogo. Porque nos honramos. A vida volta a dizer o quanto
é nossa, porque nos abrimos à nossa própria grandeza e a tudo o que aguardava
pacientemente para nos encontrar.

99. O significado original de virgem


é “mulher que pertence a si mesma”
Às vezes uma mulher se torna tão insubordinada em determinados processos que
se vicia em caminhar sozinha. Uma Ártemis, inadequada por escolha. Encontra
sua forma de mandar mensagens de sobrevivência às corajosas fileiras fêmeas,
mas seu espírito já está melhor adaptado a uma floresta imaginária. Seus olhos
preferem se distanciar das luzes da cidade, de superficialidade febril, e ela caça
agora uma relação de conhecimento uterino com as coisas. Está interessada em
si mesma e nas que vieram antes dela e agora estão escondidas em toda parte,
reivindicando voz. Essa mulher não cabe mais nos encontros mornos, nas leis, nos
bancos de horas ou em fitas métricas. Os seus ovários lhe pertencem, não são
mais do mundo. O seu tempo ressignificou muitos anos de vida. E é normal que
desse deslumbre, que repetido mil vezes se torna verdade, escape um sentimento
profundo de que existe uma força maior do que todas nós juntas, uma força que

#125
não pare de garantir a vida. Que se tornou alvo de um genocídio justamente

#boMdiAMAtriArcado
por sua promessa de natureza farta. Uma gravidez permanente chamada Cosmos,
tomada por divindade antes da primeira domesticação. Há o impulso incontrolável
de tratá-la como uma entidade da qual vertemos em imagem e semelhança.
Uma Deusa, cujo rosto maior não pode ser visto, composta de incontáveis faces
mais palpáveis de deusas, para dar conta de nossa multiplicidade. Então somos
novamente íntimas, refazendo um espelhamento divino que nos foi roubado
para nos fragilizar. Ela é o lado B de toda a Física ainda não descoberta, toda a
Literatura que correu anônima carrega o seu nome impronunciável, ela é uma
Lua cotidiana querendo eclipsar todas as estradas dadas como certas. Chega
perto dela e sente sua respiração aquela mulher que se apaixona tão ferozmente
pelo seu ser indomesticável, em franco processo de autoconhecimento, que o
feminismo parece ter ficado pequeno para os seus anseios. Já não cabe mais em
si, já não fica para ver o fim do round entre vertentes. Acreditou na reapropriação
do seu corpo. Acreditou na importância da sua vida. Acreditou na voz de suas
ancestrais. Algum mundo se partiu dentro dela. Talvez a bolsa onde nadava em si
mesma tenha se rompido.

100.Deturpações do misticismo: (a)


fingir que não está esperando
Eu sei onde você está agora. E sei que esse é o lugar mais seguro onde seus pés pisaram
nos últimos tempos. Você está cansada demais para acreditar na promessa silenciosa,
feita tão logo nascemos, de que um dia virá um amor para cada uma de nós, pois ser
mulher é se colocar em espera, e ainda que não haja o bastante para todas, o seu não
faltará. “O que é seu está guardado” e , quando chegar, lavará com saliva toda a sua
demora, foi o que lhe disseram. Você está exausta de vigiar o portão e seus olhos não
aguentam mais os alarmes falsos, as visitas de ocasião, os beija-flores. “Bem-me-quer”,
“Sapino”, “Com quem será”, “Estrelinha um, estrelinha dois”... Se ouvir de perto, sua
espera tem um léxico próprio e você está vestida de noiva desde que se entende por
gente. Mas há anos nenhum encontro firma estrada. Só as mesmas palavras destituídas
de gestos de sempre.

Quando nada mais parecia fazer sentido, o seu fôlego foi renovado. Quem sabe por

#126
um beija-flor que ineditamente não se limitou à varanda, invadindo a sala no meio da

#boMdiAMAtriArcado
tarde. Mas quando ele reencontra a saída, o golpe dói sobre camadas e mais camadas
sobrepostas de feridas que nunca cicatrizaram. Você já nem se lembra de qual foi a
primeira, mas eu te dou o spoiler de que ela precisa ser descoberta e curada, só isso
permite que as demais tenham chão. Depois do mais recente voo de abandono, no
entanto, você parece resignada. E começa a caminhar por uma faixa neutra, onde uma
sentença de mulher adulta desbanca todos os verbetes do léxico daquela menina:
“Quando a gente para de procurar, o amor nos encontra”. E agora os seus olhos se
voltam normalmente para as tarefas cotidianas, mas com a boca você tenta enganar o
portão, fingindo que fala sobre outros temas, embora visivelmente continue vigilante. O
que é seu pode chegar. Tudo o que você precisa fazer é fingir que não está esperando.

101. Deturpações do misticismo:


(b) alma gêmea como política
de passividade
Tudo o que você precisa fazer é fingir que não está esperando.

Você não passou a acreditar, de súbito, que “se pararmos de procurar pela pessoa
certa, então ela aparece” porque se apaixonou perdidamente pela sua própria
companhia. Não é porque se entediou do desperdício de energia com a caricatura
romântica. Nem porque se interessou pela qualidade de vida presente na solitude.
Mas porque atingiu o teto do seu desespero. Quase toda a sua identidade como
mulher foi construída em cima de uma busca por uma metade idealizada. No fundo
da sua caixinha de joias, eu sei, existe até hoje um pingente fabricado para ser
partido ao meio. As brincadeiras de menina, nos moldes de adivinhar com quem
cada uma se casaria, faziam-se presentes diariamente.

A última folha do caderno era reservada para a maioria delas. O seu coração batia mais
rápido quando a letra dele saía. Esse “ele”, com a sucessão dos anos, foi mudando
de rosto até tomar todo o alfabeto. O que você passou meia existência amando, no
final das contas, foi o que se chamava amor, que morreu — não mais do que adoeceu,
golpeou, despedaçou e matou — e reencarnou muitas vezes. Um buraco negro.

#127
“Todo mundo tem, teve ou terá

#boMdiAMAtriArcado
aquela pessoa que é buraco negro.
Só a presença é suficiente para te devorar,
sem o argumento da dúvida:
uma esfinge sem ética.
E que sendo só presença,
tudo na humanidade nela se basta, de pé,
diante dos seus olhos; desmoronando
inventos, monumentos, civilizações.
E que te faz acreditar, desde que nasceu,
que a sua natureza é entregar-se a ela em holocausto,
como a caça ao índio com fome
— segundo o próprio índio,
segundo a verdade místico-avassaladora da sua fome.”

Misticismo: é isso, afinal, que dividimos, que nos faz cúmplices enquanto
vítimas, mas que foi deturpado para nos entreter como uma promessa
permanente de afeto correspondido em alguma parte do globo. Acreditamos em
um invisível que se comunica uterinamente conosco, mas a partir do momento
em que ele foi apropriado pelo dominador para explorar em nós a mais carente
feminilidade, dominando as brincadeiras das meninas e alimentando o vazio
das mulheres, estamos diante de uma tragédia. Não cansamos de nos manter
atentas a todo e qualquer sinal cósmico que anuncie a chegada de uma alma
gêmea disponível, sempre prestes a nos alcançar e salvar de todas as formas de
solidão, da sexual à política.

Foi nos intervalos dessa busca por um “outro” que jamais chegou, com braços e
pernas ralados no asfalto, que você desmitificou outra sentença insistentemente
vendida às garotas, a de que amor é eterno, embora essa consciência não viesse
com um manual de instruções para conter imediatamente o fluxo de amar. Mas
agora essa caça desenfreada cede espaço a um comando maior. Se pararmos de
procurar, seremos encontradas, alguém disse. Então você cessa a busca amorosa,
mas mantém a espera, entregando sua vida a uma nova lei mística de autoria
desconhecida. Que sentido faz?

#128
102. Ser o resultado de sua magia

#boMdiAMAtriArcado
Existe uma mulher que tomou coragem de ser maior. Por vezes, mesmo diante das
menores situações, ela gira a sua saia fazendo a diferença, ventando esperanças
que o mundo parece estar perdendo. E isso não tem volta. Esse é um lugar ao
qual ela chegou dentro de si mesma e, ainda que em algum momento se perca
um pouco, tempo o bastante para ir até onde as lições íngremes se escondem dos
olhares acomodados, logo se realinha à sua grandeza. Nenhuma contrariedade terá
força de pará-la. Ela volta e meia se lembra de quem é, de suas raízes e para onde
vai. Em seu coração, sente profundamente o chamado para dançar com a vida. Ela
olha para as conquistas das suas iguais e não as deseja para si, tampouco deseja
que “desconquistem”, não precisa deixar que a comparação se instale afundando
navios. Porque sabe que todas nós estamos aqui para manifestar uma singularidade
iluminada, algo insubstituível. Essa mulher não se rouba dos prazeres cotidianos,
não deixará de viver o que puxou significativamente a sua mão, fazendo com que
olhasse em outra direção. Não se culpa como lhe ensinaram, nem se trai. Ela viverá
o que sente vontade, mas sabe que existe um lar dentro de si mesma, que construiu
a duras penas e que está sempre pronto para acolhê-la quando quiser voltar. Ela ama
sua própria companhia e é gigante por conhecer sua própria multidão. A curiosidade
pela beleza das novas experiências é sua guia. Sua solidão está povoada.

103. Antes de comer, agradecer


pela fartura da colheita
“Você é muito _____________. Desse jeito não vai arrumar ninguém.”

Dá pra fazer uma lista de coisas. O espaço facilmente vira parágrafo, que vira lauda,
que vira livro, que vira... vida. Uma vida inteira de chantagem como mecanismo de
controle das nossas condutas, do exercício cotidiano da nossa personalidade, dos
nossos corpos, crenças, experiências, palavras...

Desse jeito você não vai “arrumar”, vai desarrumar. Deixar de dar rumo. Perceba que a
possibilidade de rumo, norte, só existe em face de outra pessoa nesse raciocínio. Ela é
colocada fora de nós. A chantagem, seja lá o que você escolha para preencher o traço,

#129
é sobre solidão. Não importa onde você exceda, cada uma excederá em um diferente

#boMdiAMAtriArcado
aspecto do que pensam que seria uma boa mulher.

A gente pode “arrumar” essa frase. Dar rumo. Eu sugiro assim:


“Você é muito.”

Ponto.

104. Lembrar de avaliar honestamente


se não é mais prazerosa a vida da
bruxinha que vive no coração da
floresta do que a da mártir
A busca espiritual das mulheres não se destina à cura dos homens:
01) Porque o cultivo de uma espiritualidade é algo que serve apenas a você
mesma, à sua própria evolução;
02) Porque mulheres que se relacionam com mulheres também buscam a espiritualidade;
03) Que homem não precisa de cura quando se tem uma socialização de gênero
voltada para o exercício de uma masculinidade violenta de diversas formas?
04) Que mulher não precisa de cura quando se tem uma socialização de gênero
voltada para uma feminilidade aprisionante e secundarizante de diversas formas?
05) Uma dessas formas de secundarização é a ideia de que estamos destinadas a
ser mães daqueles que deveriam ser nossos companheiros;
06) Ser espiritualizada não é ser “o lado superior na história”. Em nenhuma história.
É apenas uma escolha de vida que tende ao autoconhecimento associado à fé.
07) Ser espiritualizada não é ser, instantaneamente, uma terapeuta holística ou
qualquer função do tipo.

Urgem outras referências para que pensemos a relação entre mulheres e suas
necessidades afetivas e espirituais, sem que isso implique em reproduzir
estereótipos de gênero. Já temos muita coisa pra tomar conta dentro da nossa
experiência de libertação coletiva e ressignificação individual. Imagina sermos
condecoradas salvadoras do mundo.

#130
105. Amolar a faca da minguante

#boMdiAMAtriArcado
na cheia
A gente, como mulher, precisa exercitar incansavelmente o “não”, até naturalizá-
lo. Até dizer, com todas as os células do corpo: “Eu não POSSO deixar que você
faça isso comigo”. E repetir, repetir, repetir, também com todas as células, até que
a mensagem se converta em: “Eu não QUERO que você faça isso comigo”.

Tem “não” que rasga a gente por dentro. Quem recebe não sentirá o baque, porque
nós mesmas amortecemos antes de soltar. Mas é imprescindível dizer. Tenho a
impressão de que são justamente esses “nãos” — os mais difíceis — aqueles que
estão sendo ditos (através da nossa boca) por nossas ancestrais. Porque são todos os
que elas não puderam dizer.

106. Engolir os primeiros raios


de Sol
Que você não caiba. É o que desejo. Que o mundo te suporte como o fenômeno
da natureza que você não aguenta mais fingir que não é só para ser aceita.

Que você nunca mais precise se reduzir para caber em qualquer expectativa dócil,
caseira ou meramente de fim de semana, que seu faro esteja atento para que os
seus sonhos não sejam cooptados pela demanda de nutrição compulsória que
desde sempre nos enfiam pela garganta, silenciando nos papéis reservados às
mulheres tudo aquilo que você poderia ser.

Que sua alma deixe sua marca em tudo o que você fizer, que seu amor não caiba
no confinamento da posse, da relação precária, do sexo raso, das muitas formas
de desconsideração da sua humanidade presentes nas falsas trocas.

Que seu corpo transborde das balanças, fitas métricas, cosméticos, lâminas,
inunde os espaços que sutilmente não lhe permitiram frequentar. Ou que ele falte,
que escorregue do abraço deserto, das críticas e de todo controle verbal, psíquico

#131
ou físico, que não compareça aos abusos para ele agendados pelos aplicativos.

#boMdiAMAtriArcado
Que sua carne não tenha um jeito certo, que tudo lhe seja vida, que ela se permita
celebrar a beleza da sua singularidade e a força do tempo. Que seus pés causem
transtornos ao fetiche ensinado das sapatarias, que sejam ouvidos em sua ânsia
de percorrer o planeta com o conforto dos mamíferos. Que você se entorne
deliciosamente por todos os caminhos até então proibidos para as mulheres.

Que a sua chegada seja um problema para todos aqueles que não podem lidar
com uma fêmea ameaçando as estruturas. Que as dores não te determinem, mas
que sejam oportunidades de olhar definitivamente nos olhos da antiguidade
da sua ferida, que talvez venha acompanhando as mulheres da sua linhagem há
muito, muito tempo. Que ecoe por você, fluindo para as próximas gerações, toda
autorização que nos foi roubada para existirmos como seres humanos completos,
alardeando uma nova era.

Que você não caiba em si mesma, que nunca se dê por encerrada, que se
perdoe e se acolha em suas tentativas, que ouse tomar para si a vida que
deseja e que se premie em seu cotidiano pelas pequenas grandes vitórias. Que
exista generosidade diante do espelho. Que você seja sua melhor amiga. E
que sinta profunda curiosidade por tudo o que as mulheres ainda não viveram,
despertando sem volta, dançando talvez o amanhecer mais aguardado da
história do planeta.

Desperte o matriarcado que te habita!

107. Feitiço para fazer o coração


de uma lebre voltar a bater
Coisas que um “Eu te amo” não significa:
— Meu sentimento é imutável;
— Haja o que houver, cuidarei de você;
— Perdi a capacidade de reconhecer que outras pessoas podem ser interessantes;
— Você perdeu a capacidade de reconhecer que outras pessoas podem ser interessantes;
— Não temos um acordo;

#132
— Você é minha prioridade;

#boMdiAMAtriArcado
— Quero ter filhos com você;
— Minha lealdade é inabalável;
— Você não precisa se amar, eu já te amo;
— Se você não me disser certas coisas, é certo que vou compreender;
— Somos uma coisa só;
— Você ganhou o direito de saber todas as minhas senhas;
— Não é normal viver conflitos;
— Sobreviveremos aos conflitos;
— Violência contra a mulher é apenas mais um tipo de conflito;
— Nunca trairei minhas certezas;
— Estamos em um comercial de margarina;
— Você não precisa mais ser senhora de sua própria vida;
— Proverei suas necessidades;
— Seus sonhos não fazem mais tanto sentido, agora que você encontrou alguém;
— Podemos dispensar preservativos;
— Terei maturidade para lidar com qualquer coisa que você divida;
— Nossa relação substitui qualquer terapia;
— Nossa relação substitui toda a sua rede afetiva;
— Podemos transar sempre que EU sentir vontade;
— Podemos transar sempre do jeito que eu sentir vontade;
— Se não transarmos com frequência, tem algo de errado;
— Posso opinar sobre o que não gosto no seu corpo;
— Não é normal desejar ficar sozinho às vezes.

Entre outros tantos não significados.

Ser amada por alguém não é encontrar a razão da sua vida. É apenas abrir-se
profundamente a um encontro, talvez construindo uma troca prazerosa e saudável.
Continua sendo indispensável ser aquela que mais ama e cuida de você mesma.
Que busca o autoconhecimento, que preserva o valor das individualidades e que
nutre seus próprios sonhos. Aquela que sabe dizer “não”.

Afinal, amores passam. Nós ficamos.

#133
108. Transcender o carma

#boMdiAMAtriArcado
abortivo
Se você insiste em investir numa relação precária;
Se luta por quem está dando todos os sinais de que não se importa tanto;
Se oferece tudo já mastigado por acreditar que a pessoa não te perceberá por si mesma;
Se você é mãe de quem deveria ser companheiro;
Se inventa motivos para forçar um diálogo que não esteja acontecendo naturalmente;
Se você passa a mão na cabeça da irresponsabilidade afetiva;
Se fica pacientemente esperando pelo momento em que o outro mude;
Se acha que uma relação cairá do céu e transformará a sua vida, sem que precise
conhecer e dominar seus abismos;
Se pensa que precisa renunciar a características suas para agradar;
Se continua fingindo que o teu prazer está em ser um objeto para o prazer de
quem vai embora;
Se não admite que o que te nutre de verdade é companheirismo, para então se
contentar com qualquer migalha de atenção;
Se reabre a porta para traidores;
Se espera por um milagre afetivo;
Se finge que não está passando por violência psicológica;
Se tenta se dizer que a violência física foi um fato isolado;
Se dá na mão dele o poder de escolha sobre a sua vida;
Cuidado: talvez você esteja grávida de um abandono.

É hora de banir presenças que condecoram o seu sentimento de inferioridade. É


hora de se investigar psiquicamente, revisando toda a sua história, e descobrir o
que te fez construir uma auto imagem tão negativa. E reinventá-la. Você é forte.
Saia de sua própria margem, posicione-se no centro de todos os seus sonhos,
reescolha e reafirme a grandeza do seu destino. Você não pertence a ninguém
além de si mesma. A demora em descobrir isso é o comando milenar que a nossa
geração de mulheres veio para desobedecer.

#134
109. Ikigai é um conceito japonês

#boMdiAMAtriArcado
que fala sobre encontrarmos a
nossa motivação existencial
Existe algo que venho observando em nós, mulheres, há alguns anos, algo em que tenho
acreditado fortemente, até que me provem o contrário: a nossa fome desesperada de
encontrar alguém só passa quando a gente descobre o nosso propósito. Até lá, a gente
bate cabeça. É preciso chegar àquele momento em que o eixo da sua vida se desloca
da realização afetiva para a realização individual. Eu não estou falando em carreirismo
vazio, estou falando em realização, satisfação, sentir-se nutrida a partir do que faz e
contribuir para a evolução da coletividade de alguma forma. Essa é a única maneira de
preencher determinados vazios: consigo (eu penso). Mas nunca é apenas consigo, né?
Porque se você assume a sua motivação existencial, precisa colocar a cara no mundo
a partir dela e encontra seus iguais. É quando você se apaixona por outras formas
de conexão prazerosas e cotidianas, para além do encontro amoroso, e elas não te
desperdiçam como ser humano.

Você se nutre todos os dias, porque todos os dias estará em contato com o que te move.
Isso será uma espécie de casamento: cria rotinas, toma o teu pensamento ao longo do
dia, convoca sua fertilidade. Então você descobre algo que justifica a tua existência no
mundo e esse algo não está em outra pessoa, mas apenas em você mesma. Obviamente,
você continuará esbarrando em desafios, problemas, situações de desestímulo,
mas eu tenho certeza absoluta de que cultivar uma missão é algo que nos obriga ao
autoconhecimento e não nos deixa desistir. Então crescemos com as adversidades,
porque estamos certas de que estamos vivendo a nossa verdade. Esse é o ponto em que
você também se dá uma casa para onde voltar. Isso é inevitável, você se torna sua aliada,
porque há um mundo a ser enfrentado. Essa amizade precisa existir.

Uma vida com um propósito te nutre porque te faz se sentir necessária e, então,
as características da sua personalidade que pareciam aberrações para os outros —
talvez você não se enquadrasse em muita coisa, não servisse para ser a esposinha,
fosse brigona demais ou a sua desorganização viesse de uma criatividade absurda —
revelam-se pedras preciosas. Você se sente valorizada e fazendo a diferença a partir da
sua singularidade. Trabalha com aquilo que ninguém pode te roubar, porque envolve

#135
seus dons, seus sonhos, quem você realmente é. A vontade de amar e ser amada

#boMdiAMAtriArcado
não vai passar, eu penso, isso é uma necessidade humana, mas se você localiza o
seu propósito e se alinha à sua própria jornada, então o amor passa a ser parte da
sua vida e não o seu cárcere. Não se esconda de si mesma. Procure saber a que veio.
Precisamos da sua mensagem, ela não poderá ser dita por mais ninguém.

110. Poção para refrescar a


humanidade em dias quentes e
aquecê-la em dias frios
Todas as vezes em que você ouvir essa angústia e retirar o seu corpo do lugar de
inferioridade que foi previsto para ele;
Todas as vezes em que você se pegar no colo antes de dormir, limpando do seu dia as
violências, reafirmando que elas não têm o poder de dizer quem você é;
Todas as vezes em que você olhar bem para os seus detalhes no espelho e decidir
afastar as reticências e experimentar se reapaixonar pelo que vê;
Todas as vezes em que você pegar na mão da sua mãe e perceber que carrega o poder
de criar um destino diferente para a sua linhagem materna, dando a si mesma a vida
que uma mulher merece ter;
Todas as vezes em que você pegar na mão de qualquer uma de nós e enxergar os
olhos da sua mãe, que são também os seus;
Todas as vezes em que você farejar que uma relação está te obrigando a ser menor
do que é e sair correndo;
Todas as vezes em que puder dizer a uma criança o que sabe que mudaria a sua vida
ter ouvido em seu tempo;
Todas as vezes em que você pular da cama, olhar o Sol e renovar consigo o pacto de
evoluir, de fazer a diferença, de enraizar o seu melhor contra a doença do sistema;
então um outro mundo é visualizado e fica mais fortemente disponível no inconsciente
coletivo: em uma onda inexplicável, milhares de mulheres e meninas serão abraçadas
pelo seu exercício de libertação.
Deixe seu recado no DNA do planeta.
Você sabe bem o que estamos realizando juntas, nós voltamos para buscar o que é nosso.
Eu sei que você sente isso em seu ventre.
Eu também sinto e é por isso que te escrevo.

#136
111. Transbordar seu rio

#boMdiAMAtriArcado
caudaloso, repentinamente e sem
culpas, em uma esquina qualquer
Ele te quer menor. Perceba o seu tamanho.

Nas entrelinhas da solidão a dois e de toda violência, há uma mensagem para que uma
mulher gigante entenda e assuma que nada dará certo enquanto ela não admitir que
é uma mulher gigante.

Se você precisa se reduzir para caber no espaço que uma mulher deve ocupar na vida
de alguém, passando por cima do pleno desenvolvimento da sua individualidade,
deixando-se profissionalmente em segundo plano, sustentando certos caprichos,
negociando seus sonhos para cuidar da realização de alguém que não faria o mesmo
por você, esse não é o seu lugar. A sua incrível capacidade de fazer tudo valer a pena
é desperdiçada em um vínculo que te explora.

Se você precisa negar sua amplitude emocional para que pareça uma pessoa mais
fácil de lidar, também está no local errado. Lembre-se de quantas vezes quase
morreu, atravessando madrugadas hostis e amanhecendo mais forte do que antes.
Seus sentimentos são resistência e ilustram a sua grandeza, porque volta e meia
frustram o projeto de dominação: são ricos, verdadeiros, complexos, insubmissos.
Você conserva alguma pureza de intenção que te faz acreditar no encontro
desarmado entre duas pessoas e o sistema não foi capaz de corromper isso.

Seu corpo transborda. É grande no volume, nas memórias, na intensidade dos


desejos. Quer manifestar o milagre de estar vivo e dançar todos os movimentos a
que tiver direito. Ele tem uma história própria que deve ser respeitada, que tomou
este ou aquele caminho para te proteger ou arquivar experiências. Se você precisa
do sacrifício diário de viver fora do seu ritmo normal, de negar a conexão entre sua
afetividade e sua alimentação, ou de mutilar-se em um centro cirúrgico para caber
no colo hostil de alguém pequeno, esse, definitivamente, não é o seu lugar.

Seja como for, ele te quer menor. Mas não há nada de errado com o seu tamanho.

#137
Se está doendo, é hora de parar de se forçar para caber e ouvir a voz dessa ferida: a

#boMdiAMAtriArcado
inadequação te protege, é uma força mais elogiosa do que você pensa e tem muito a
te ensinar sobre a sua autoestima.

O seu coração está te dizendo em muitas frentes que qualquer um que não possa
suportar a tua imensidão te confina em si mesma e rouba o teu brilho do mundo.

112. Técnicas bruxísticas de


agigantamento para esmagar
opressores
Esse exercício de cortar o poder dos homens pouco a pouco na sua vida, agigantando
o espaço destinado a você mesma e a outras mulheres, deve ser diário. Deve envolver
desde coisas simples, como responder a mensagens na hora em que você quer e
pode, não na hora em que eles te cobram, até observar que a idolatria (inclusive
sexual) que dispensamos a figuras masculinas públicas é uma forma de compensar
a sensação de que não costumamos ir muito longe em nossos feitos, então só nos
restaria aplaudir, ou de que estar presente eroticamente nos fenômenos que eles
protagonizam, mesmo como platéia, é uma forma de fazer parte.

Precisamos minar essa tietagem - a que dedicamos aos famosos e a que dedicamos aos
homens que estão presentes no nosso cotidiano, até que a nossa atenção se habitue,
não se negocie por baixo. Não se trata de deixar de ter admiração por pessoas, mas de
não estar tão à disposição quanto foi ensinada a estar. E de ousar dizer que mulheres
podem e devem ocupar esses mesmos espaços que admiramos. Precisamos retomar,
pouco a pouco, a condição central em nossa existência, até que a gente consuma mais
música, literatura, artes em geral produzidas por mulheres; até que uma desilusão
amorosa nos impacte menos do que a saúde frágil de uma amiga; até que sejamos em
maior número em posições de comando; até que nossos sonhos tenham muito mais
peso do que joguinhos psicológicos de homens mimados.

Não deixaremos que eles determinem o nosso valor.

Encerraremos definitivamente este ciclo de orbitá-los.

#138
Baniremos toda a cultura de exploração que nos faz existir para nutrir

#boMdiAMAtriArcado
compulsoriamente suas vaidades.

113. Quando estiver morando bem


em si mesma, precisará escrever
certas coisas sobre sua grandeza
em todas paredes, para nunca mais
se esquecer.
Toda mulher que faz sucesso será chamada de embusteira. Ou de piranha,
canalha, egóica, louca, agressiva, interesseira, vendida. O crime que ela comete é,
precisamente, o de ser uma mulher chegando a um lugar — no mundo e em si
mesma — que é expressamente proibido para a maioria das mulheres. Não existe
isso de ser fêmea com visibilidade, em um mundo comandado pelos homens, e ter
paz. Quantas você conhece que passaram ou passam por isso?

Cuja vida é desviar das campanhas difamatórias de quem não pode suportar a sua
projeção? Quem difama precisa estar convencido do que está alegando e vai muito,
muito longe para comprovar sua tese: a de que aquela mulher não merece o seu
reconhecimento. Então o difamador age para que todas as pessoas sintam a mesma
aversão a ela, para que todos sejam uma extensão dele. Mas será que todo mundo
que admira aquela mulher está errado, então? Será que não existe mérito algum no
fato de nascer mulher em uma sociedade que odeia mulheres e conseguir vencer
a violência de sua trajetória e alcançar um objetivo? Será que todos os holofotes
são sujos, não temos ali alguém que se venceu, que precisou, contra tudo e contra
todos, apostar todas as fichas nos seus sonhos?

Seja a diva internacional ou a digital influencer de nano fama, qualquer mulher que ouse
dar passos maiores está beneficiando todas as mulheres do planeta, até mesmo as que
sentem ódio por ela. Por outro lado, quando você toma muita porrada por ser uma mulher
pública, quem te bate continuará no mesmo lugar de sempre. Só está te batendo pelo
direito de continuar no mesmo lugar de sempre. Mas quem apanha já ganhou só por se
ver obrigada a se repensar. Esse é o seu troféu: você sai melhor. O inimigo não tem saída.

#139
São milênios de inquisição contra nós. É muito fácil improvisar uma inquisição

#boMdiAMAtriArcado
contra uma mulher no cotidiano. Você detesta aquela colega de trabalho e já
cria estratégias para puxar os demais colegas para o seu lado, queimando-a
na primeira ida ao banheiro. Você nunca trocou uma ideia na vida com aquela
moça cujos posts são bem compartilhados, não tem a menor noção do que ela
possa estar passando, mas vai facilmente aos comentários de um post dizer
que ela não deve prestar, afinal, já viu alguém dizendo. Você pode até ter tido
motivos para brigar com a fulana que um dia foi sua amiga, mas se não estiver
firme no compromisso com a sua própria evolução cairá na tentação de nunca
mais perdoá-la por seus erros. Somos mulheres, é normal que nos enxerguemos
umas às outras, o que não é normal é escolhermos fazer a coisa mais destrutiva
que podemos fazer com isso por puro orgulho. Se aceita um conselho de
quem está começando a aprender como funciona essa dinâmica cruel pela qual
não apenas os homens, mas mulheres expõem outras mulheres com prazer,
como válvula de escape para suas frustrações, aprenda com seus sentimentos.
Certamente você está se espelhando naquela pessoa e se relacionando apenas
consigo. Ela tem alguma coisa que você não suporta em si mesma ou está
vivendo algo que você não tem coragem de assumir que deseja pra sua vida.
Seja a diva internacional, a digital influencer de nano fama, a atual do seu ex, a
ex do seu atual, a sua irmã, a colega de trabalho: É TUDO SOBRE VOCÊ. Não é
problema dela o que você deposita ali. Você não pode aceitar que ela exista e te
mostre aquilo que você não deseja enxergar. Está se envenenando e esperando
que o outro morra. É hora de parar de ser refém do próprio ressentimento, por
mais inofensivo que ele pareça, a energia que você gasta com provocações e
difamações transformaria completamente o seu caminho. Seja um pouco mais
generosa com o que está tentando se contar por meio da imagem de outra.
Você precisa ouvir o que está se dizendo, o que todo mundo já está ouvindo,
mas só você não consegue compreender.

114. Habilitando-se no poder de


plasmar mundos
Depois de percebermos que o sentimento era unilateral, que investimos tanto e
sozinhas para que uma relação acontecesse, não é raro que sintamos raiva. Inclusive
de nós mesmas. E culpa, por termos sido generosas e compartilhado o nosso melhor.
#140
Pelo tempo gasto, pela paciência em compreender falhas, pelo quanto a expectativa

#boMdiAMAtriArcado
nos convocou para nada. Vontade de nos vingar, de dizer mil coisas que façam o outro
experimentar o mal-estar que sentimos, a impressão de termos sido enganadas: mais
uma vez. Um imenso vazio, por fim.

É sempre uma espécie de luto e não vamos aqui subestimar o tamanho do envolvimento
ou a sua duração. Às vezes, um encontro considerado pequeno, relâmpago, foi capaz
de despertar um novo olhar para a vida e teve aí a sua importância. Não é bobo, só
você sabe o que sentiu, em quais dores anteriores mexeu, quais esperanças renovou
e justamente por isso se sente golpeada pelos fatos agora. Repetidas frustrações
geram um cansaço que uma hora damos por irrecuperável, incurável, e muito pouco é
preciso para não termos mais fé. A parte mais bonita de você mesma foi mobilizada,
o sentimento de ter sido desperdiçada é perfeitamente compreensível, porque eu sei
que você tem muita beleza para manifestar no mundo.

Respeitemos a dimensão da sua dor, mesmo que outras pessoas te digam que
não existe motivo para tanto sofrimento. Porque, para a maioria das mulheres
que conhecemos, há uma vida inteira de sofrimento e cada nova tristeza tem
efeito dominó sobre as tristezas antigas. Mas eu quero aqui propor um outro
olhar sobre isso: as emoções são grandes mestras e têm algo a nos contar. Se não
aconteceu o desfecho que você esperava, ainda é possível se ouvir e fazer algo
maior das miudezas que te atravessaram. O que está tentando se dizer por meio
deste (des)acontecimento? Será que você só queria se reconectar com essa parte
de si que precisa de inspiração para se levar adiante? Será que sozinha você não
consegue detectar seus tesouros, então esse outro surge como um catalisador
de determinadas qualidades? Será que você não precisava se reapaixonar por sua
própria imagem, voltando a pensar que a vida vale a pena, que em meio a tanto ódio
que vimos circular pelo mundo, o amor ainda tem vez?

Talvez você tenha criado essa pegadinha inconscientemente. Não seria sobre um
outro, sobre uma outra, mas tão somente sobre você. Sobre voltar a beber de algum
encantamento pela vida. Encontre uma forma de expurgar esse mal-estar, sim, é
importante limpar o peito — e não é preciso ser (auto)destrutiva para isso. Exorcizar é
uma necessidade, ninguém fica bem instantaneamente, todo fim há de ser respeitado.
Mas seja generosa consigo, ok? Não sinta raiva de ter sido pura ou entregue. São
coragens. Seja benevolente com a sua experiência, porque você é a pessoa que vai
#141
continuar ao seu lado. Seja esperta e observe que você só queria um pouco mais de

#boMdiAMAtriArcado
beleza no caminho e que não depende de que um encontro específico se consagre
para restaurar esse olhar. Você fez isso consigo, levou-se até o paraíso, usou de outra
pessoa para espelhar para si mesma a sua imensa vontade de viver. Se ela não ficou,
talvez você não a tenha perdido, mas dela tenha se livrado. E agora você já se lembrou
do que é capaz. Já pode fazer as pazes com a sua grandeza. Está livre para viver
encontros mais férteis. Há sete bilhões de pessoas no mundo. Não se perca em culpa,
você criou tudo isso sozinha porque é imensa e precisava se confessar isso quando
ninguém estivesse por perto.

115. Sinais cósmicos nem tão


agradáveis de que estamos no
caminho certo
Uma das estratégias mais usadas para sabotar o sucesso de mulheres é reforçar a
culpa que elas sentem em caminhar rumo à sua autonomia. Isso não é feito apenas
por homens, mas por outras mulheres movidas pela competitividade. Culpa é um
dos sentimentos que mais marcam e limitam nossas vidas, somos massacradas com
julgamentos de toda natureza, vindos de todas as partes, da família ao mercado de
trabalho. Quando uma falsa amizade deseja que não avancemos, ela vai nos encher
de culpa. Quando um companheiro ou uma companheira tiverem ciúmes da nossa
evolução sem eles, seremos bombardeadas com frases e atitudes que ativarão nossa
culpa. A culpa quanto ao corpo, que é o instrumento principal de existir, é uma das
que mais nos restringem, porque se você não confia nas suas pernas, na sua presença,
no seu peso e no espaço que ele ocupa, no seu rosto, nos seus cabelos, na sua cor, em
colocar a sua cara no mundo, então só te resta o confinamento no espaço doméstico,
escondida de si mesma e do seu destino.

Onde mora a sua culpa? O que foi que te disseram para que você não acreditasse no
seu poder? O que ainda embarreira a urgência de que você se aproprie da sua vida?
Será que você conserva por perto pessoas que te desestimulam e desencorajam, para
que não se autorize a viver o caminho que realmente deseja? O que é possível fazer
agora para confiar novamente no seu corpo, nos seus gestos, nas suas ideias e na
sua voz? Você idealizou uma forma de existir, para que nunca alcance isso e seja uma

#142
eterna promessa? Quanta poeira foi depositada sobre os teus talentos? Sua culpa está

#boMdiAMAtriArcado
relacionada a ganhar dinheiro a partir daquilo que você sabe que realiza bem?

Quão mais perto do seu grande salto você estiver, mais vai aparecer gente para dizer
que o que você faz está errado. Só você conhece a sua história, as suas motivações
para seguir em frente e a dimensão do seu propósito existencial. Mas a libertação
de uma mulher, sobretudo da mulher que leva consigo outras, incomoda pelo
espelhamento, pela potência e pela força histórica. Tem gente que simplesmente não
pode suportar que você prospere, que você ame e seja amada, que você realize seus
sonhos, que seja reconhecida pelos seus dons e que inove quando todos são mais do
mesmo. Você possivelmente será constrangida, talvez até perseguida, para que não
se torne aquela que realmente é. Quando isso acontecer, não se intimide: é sinal de
que está no caminho certo.

116. Mandamento único: honrar o


fato de que viemos do útero
Esperam que de alguma forma, por sermos mulheres, ajudemos a criar todos os homens
que atravessam nossas vidas. E nós cumprimos esse destino como a chantagem mais
perfeita já inventada, porque somos levadas a acreditar que não existem seres humanos
no mundo que saberão amar melhor do que nós. Não deixamos que a vida ensine ou que
eles aprendam com suas escolhas e consequências, por mais que eles sejam também a
classe que teve malícia o suficiente para dominar o mundo e sistematizar violências. É
assim que criamos todos os homens da nossa família, mesmo os mais velhos, é assim que
estamos sempre pegando no colo e tentando consertar nossos companheiros e amantes,
é assim que tentamos fazer o impossível por amigos e deixar certas coisas mastigadas
para nossos colegas de trabalho. Tem sempre alguém que esteja cru emocionalmente e
que nos convoque, como mães devotas da humanidade, para levá-lo ao forno. A imagem
de Maria ajoelhada aos pés de Jesus crucificado, mergulhada na dor, capaz de dar a
vida em seu lugar por todos os seres — na lógica da mitologia cristã — carrega uma
simbologia fundamental para a formação da ideia de maternidade compulsória, como
nós vimos internalizando há milênios. É um recado de feminino ideal, após apagadas
todas as formas femininas divinas autônomas e combativas, herdadas de outros povos.
Não sei se conseguiremos nos libertar por completo (nossa geração, quero dizer) deste

#143
sentimento que em nós foi plantado, porque sempre existirá uma cabeça de homem que

#boMdiAMAtriArcado
intime a nossa mão e porque enraizamos profundamente esse formato de afetividade,
mas penso que se tivermos que cuidar daqueles que amamos, que sejamos educadoras
firmes, estabelecendo nossos limites de uma vez por todas, que eles encontrem outra
substância para nutrir sua fome de dominação até que ela perca o sentido, que não o
façam à custa do nosso extrativismo afetivo nunca mais. Que respeitem o único tipo de
colo incansável, do qual, um dia, todos nós precisamos. Honrar o fato de você ter vindo
de um útero deveria ser o básico da condição masculina.

117. Oferendas periódicas à sua


pedra fundamental
Creio que não romperemos com os traços de dominação presentes em todas as formas de
relação de gênero se não perdermos o medo de enfrentar nossa solidão, convertendo-a
em um processo de autoconhecimento e deslocando o eixo do sentido de nossas vidas
de um existir orbitando os homens, a família e a maternidade compulsória, o ajuste social
no espaço público, o enquadramento estético com o qual pensamos merecer amor, enfim,
deslocar-nos de um ideal de realização afetiva para a nossa centralidade, por meio:
01) Do compromisso de investigar, identificar e ressignificar as experiências
dolorosas e violências diversas que marcam nossas trajetórias individuais,
autorizando-nos a viver relações com mais qualidade e horizontalidade,
rompendo também com o histórico de abusos a que foram submetidas as
mulheres da nossa linhagem familiar, respeitado o tempo de cada uma de
nós para isso;
02) Da constituição de um propósito existencial que nos realize intimamente, de
modo que, enquanto caminhamos em sua direção, nos tornemos autônomas
e autoconfiantes, capazes de redefinir quem somos, mais além do que o
patriarcado estabeleceu que seríamos;
03) Da contribuição, como for possível, por meio deste propósito existencial,
para a libertação de todas as mulheres. Esse é o grande salto pelo qual nossas
vidas deixam de estar confinadas nas relações íntimas e alcançam a sensação
coletiva; pelo qual nos apropriamos, em multidão de fêmeas, do espaço
público e encaminhamos uma verdadeira revolução.

#144
118. Passar as mãos cheias de

#boMdiAMAtriArcado
azeite em volta do corpo para
consagrar suas formas
A feminilidade foi feita pra que a gente dê defeito.
A maternidade compulsória foi feita pra que a gente dê defeito.
A heterossexualidade compulsória foi feita pra que a gente dê defeito.
É impossível sermos como querem que sejamos. Sofreremos para caber nas
idealizações estruturais.
Precisamos descobrir nossa própria forma, nosso próprio jeito, nosso mais profundo
desejo.
Permita-se, mulher.

119. Aprender a nadar. Aprender a


navegar. Pegar as garrafas que
nossas mais velhas atiraram ao
mar para nós um dia
O olhar feminista pode até demorar, mas ele não falha em se encontrar com a ideia
de ancestralidade. Se estamos em processo de autoconhecimento como mulheres,
reconstruindo uma visão mais livre e autônoma sobre a nossa condição, esse processo
também nos faz despertar para as mulheres de quem somos herdeiras física, emocional,
psíquica, espiritualmente. Para suas experiências, suas lendas, seus dons, suas frustrações
que se acumularam na forma de expectativa sobre a geração seguinte. Compreendemos
que estamos integradas à coletividade a partir de uma linhagem de mulheres que tem sua
própria história de libertação. Que resistiu ao sistema com os instrumentos disponíveis em
seu tempo, ora se adequando, ora assumindo seus desejos, lutando por sua sobrevivência.
Nós temos uma dívida com essas mulheres. As nossas mulheres. As que nos deixaram
o seu legado de ser mulher. Não no sentido rasteiro da palavra “dívida”, mas no fôlego
curativo que ela carrega e para o qual nem sempre atentamos. Trazemos a dimensão da
nossa realização íntima, que é o nosso norte, a nossa singularidade batendo no peito e
desejando deixar seu recado único no mundo, mas temos também, ao sul, um histórico

#145
que nos molda e que se agita como fenômenos da natureza em nosso inconsciente. Deixar

#boMdiAMAtriArcado
a nossa marca pode significar resgate ou ruptura. Muitas vezes, é justamente aquela
mulher que não cabe no que a família espera dela que está conduzindo corajosamente a
experiência da sua linhagem para uma direção mais livre. E ela deve seguir seu caminho
sem culpa, mas com uma leitura generosa sobre as suas ascendentes, banindo o quanto
puder a dominação de gênero de sua vida e curando sua relação também com o masculino
ancestral, respeitando suas limitações e seu próprio tempo, encontrando sua maneira de
fazer isso. Somos, portanto, essa colcha de retalhos uterinos. Herdamos padrões que vão
se repetindo de forma cada vez mais nítida aos olhos da mulher que se descobre, até que
ela conclua pela desnecessidade deles, ressignificando memórias e tomando nas mãos o
seu destino. Herdamos também bênçãos e talentos que subvalorizamos até que nos caia
a ficha de que foram os modos pelos quais nossas ancestrais deixaram registradas suas
belezas, o seu melhor. Tire um momento para refletir sobre tudo o que você herda das
suas e aonde deseja chegar, com quais padrões precisa romper para ser feliz e para que
suas descendentes não sejam mais limitadas por eles. Quando uma só mulher desperta
para tomar tudo aquilo que o patriarcado lhe rouba, ela está honrando a vida de todas as
que vieram antes dela.

120. Femeocentrar-se é sem volta


Estamos nos impondo cada vez mais sobre a violência que eles entenderam como
sinônimo de ser macho, identidade. Eles se sentem acuados e desafiados porque nos
percebemos fortes e autônomas em novos níveis, então reagem com mais violência,
reafirmando o lugar de poder pelo qual se pensam homens. Querem fazer com que nos
sintamos culpadas e experimentemos o mesmo medo com o qual se deparam, medo
de quem se dá conta de que está perdendo um posto milenar. Mas não tem volta, nós
vamos até o fim e vamos nos preparar, cada vez mais, para viver embates maiores pela
libertação de mulheres. Sempre que for intimidada por um homem, lembre-se disso.

121. Um belo dia, fazer caminhar a


fêmea selvagem e nada mais
Mulher sempre sente mais culpa. Sempre é mais culpabilizada. Porque culpa é uma
ferida pronta, sistêmica, para dominar uma mulher a partir dela basta ir lá e enfiar o

#146
dedo. Mulher tem culpa de usar certas roupas, de buscar oportunidades melhores, de

#boMdiAMAtriArcado
viajar, de querer ser mãe, de não querer ser mãe, de não ser a mãe ideal, de amar, de
não estar tão interessada (então ela se força, porque tem culpa de estar sozinha), de
comer, por só ter esse corpo, por estar se divertindo em uma festa, em vez de atenta
e preocupada em receber as pessoas bem, por ocupar o mais alto cargo do Estado
com retidão de caráter, por não votar em quem o parceiro admira, por estranhar que
o parceiro admire quem acredita que homens sejam superiores...

A culpa feminina é a condição essencial da servilidade afetiva e sexual, da maternidade


compulsória, da subvalorização e exploração do trabalho e da insegurança estrutural
diante da pretensa onipotência masculina, que sabota as individualidades das
mulheres e inviabiliza sua autonomia. Isso que chamam de mulher não é bem o que
somos, mas o que esperam que sejamos. É preciso descobrir o ser humano que pulsa
em você, por trás dos comandos da feminilidade. E um desses comandos é o de puxar
para si toda a culpa das situações, sobretudo injustas, pelas quais passar.

É hora de desrespeitá-lo. Aprender a dizer “não” e limpar bravamente o mal-estar que


fica na garganta, por não ter sido dócil, por ter escolhido corajosamente a si mesma,
por ter sobrevivido. Banir o abuso de poder masculino do seu corpo, do seu coração,
da sua mente, da sua leitura de mundo, da sua vida. Não esperar demais para impor
seus limites dentro das relações. Aceitar que contrariar as expectativas da família
pode ser a única forma de construir sua individualidade e que cada mulher liberta, em
cada família, liberta também gerações de mulheres. Entre tantos outros exercícios.

Enquanto você não investigar a sua culpa, descobrir como e onde foi que ela
se cristalizou, não saberá o quanto ela te impede de caminhar na direção da sua
realização. Não conhecerá certos talentos que só são manuseados quando aceitamos
as rupturas, não administrará bem os seus desejos e sonhos, não desafiará os lugares
clássicos reservados para as mulheres na sociedade. Ou seja, acaba roubando de si
mesma e de toda a coletividade, que deixa de ser inspirada e transformada pelos
seus feitos.

Onde a sua culpa estiver, lá estará uma versão de você mesma que acredita merecer
menos. Que se mantém atada a um barbante e ignorante do seu tamanho e da sua
força, como um elefante de circo. Talvez por carregar modelos de culpa que vêm se
arrastando como correntes vivas entre as mulheres da sua linhagem, enraizando-se
#147
em lugares dos quais você não conseguirá removê-las facilmente, sem avançar em seu

#boMdiAMAtriArcado
processo de autoconhecimento e se dar novas ferramentas.

Onde houver quem estimule a sua culpa, lá estará alguém que não acredita que você
se pertença. Que você tenha direito às suas escolhas. Nem sempre por mal, muitas
vezes por descontar o fato de que também não pertence a si mesmo ou pela cegueira
diante da ideia de que estamos aqui para viver de modo maior. Às vezes, alguém que
amamos e que diz nos amar, que pensa estar nos protegendo. Não se negocie por isso.
Alguém tem que mostrar que a culpa não te cabe e que a coragem de seguir em frente
faz com que a vida se entregue em toda a sua beleza. Seria espetacularmente didática
a cena de um elefante caminhando e, pelo puro instinto de caminhar, arrastando toda
a lona circense consigo.

Desfazendo o círculo com o punhal.


Tomar o café da manhã de uma nova era.

Fortaleça uma mulher.

Essa obra é propriedade intelectual de Maria Gabriela Saldanha. Você pode divulgá-la e
reproduzir trechos, sem fins lucrativos, com os devidos créditos. É proibida a venda. Para
quaisquer outros usos ou para saber mais sobre outros escritos e sobre o trabalho com mitos
e oráculos (atendimentos, cursos e criação de conteúdo) contate a autora. Aí embaixo vão as
informações para contato e redes sociais:

mariagabrielasaldanha

@mariagabisaldanha

bomdiamatriarcado@gmail.com

matriarcaria@gmail.com

#148
Ajeito meus cabelos para a frente e me sento em uma área

#boMdiAMAtriArcado
suficiente para o volume de meus quadris - e de toda a vida
selvagem invisível que ele comporta - em um gigantesco
círculo de mulheres com as quais divido um tempo. Trago
minha velha pele em meu colo e ela tem a forma e o
testemunho de um livro. Eis o registro de anos de magia
verbal que fiz comigo – ou ao menos sua parte publicável. Fui
meu oráculo. Menstruei sobre toda autoajuda. Fui incansável
na missão de encontrar as palavras exatas que me retirariam
cada vez mais naturalmente dos lugares de dominação
emocional destinados às mulheres pela sociedade patriarcal.

O processo iniciático de uma mulher em si mesma é quase


sempre deflagrado por uma exaustão que deve ser ouvida
e honrada. Uma hora você se cansa de tanto se machucar.
Você já não pode mais evitar aprender a caminhar por
suas sombras, precisa descobrir por que faz isso consigo.
Para então se dar alguma cura, reintegrar suas partes,
reapropriar-se de si e colocar em movimento o seu poder
de realização. Para que vida, muito mais do que sobrevida,
aconteça. Então você ensaia um pouco até que se entrega
posfácio

ao rito de passagem da longa noite íntima. Consiste em uma


trilha noturna em sua própria escuridão, onde está tudo o
que você sabe e finge não saber. Sempre chega a hora de
ir lá mapear seus medos. De entender que é preciso olhar
nos olhos dos seus maiores fantasmas, desvendar seus
padrões, perguntar o verdadeiro nome dos seus desejos,
fuçar o legado subterrâneo de gerações de mulheres que
atravessam o que você é agora, compreendendo o que está
deixando de ser e fertilizando-se para trazer o novo. A certa
altura, é possível que você esteja tão confusa com o seu
mergulho em si que não saiba mais se existe um amanhecer
pela frente. Você duvida de que ficará para ver o seu Sol se
erguer do horizonte. É quando escuta uma voz de mulher
gritando ao longe. E ela ressoa como um clarão. Uma nova
versão de você mesma está tentando te acessar, te acordar.
Ela quer te contar que você é maior e melhor e vai mais
longe do que hoje consegue vislumbrar.

#149
Depois de uma ruptura amorosa daquelas, há alguns anos, quem precisou me pegar no colo

#boMdiAMAtriArcado
mais uma vez e cumprir todo o ritual de me prestar socorro, reanimar e acompanhar até
que eu me refizesse minimamente, fui eu. Na verdade, eu estava constantemente fazendo
isso comigo e era insano e cansativo. Costumo dizer que eu era uma apaixonólatra, uma
apaixonada pelo estado de estar apaixonada. Hoje sei que, de alguma forma, acreditava
que a busca amorosa me validava enquanto mulher. Era como se eu só pudesse me pensar
realizada se isso envolvesse a figura de um companheiro com a promessa de me dar filhos.
O que me fazia, a cada novo envolvimento, moldar toneladas de expectativas; decidir
sozinha, tendo muito pouco do outro, que daria certo, que ele era “O Cara”, e então eu
trabalharia diariamente para materializar um final feliz – que nunca chegava. Com isso, a
minha prioridade na vida quase nunca era eu.

Por vezes pensava que, se modulasse meu “gênio difícil”, eu não assustaria tanto, não
afastaria tanto e as relações prosperariam. Era apenas uma questão de me negociar, ajustar,
adequar, ser competente na manutenção do vínculo. Mas então esse “gênio difícil” – meu
temperamento combativo, minha bravura diante de todas as situações de violência pelas
quais eu já havia passado - vinha como uma tsunami e lambia quilômetros de terra, jogando
toda a relação no lixo. Esse gênio difícil era o meu ouro e eu não sabia. A docilidade que
o mundo me exigia, em vez disso, era frequentemente uma prisão. Ele já mostrava onde
eu não poderia aceitar determinados abusos. Onde a inegociabilidade fez casa em mim.

Tive medo do quanto era capaz de responder por mim e da revolução que essa autoconfiança
crescente e esse direito de criar a minha realidade poderiam causar. Aquele modo de
viver, pelo qual uma mulher acredita que precise estar em determinados papéis sociais,
era um esconderijo. Servia para que eu me defendesse de um encontro mais profundo
com a minha indomesticabilidade como um dom e com outras motivações existenciais
que amplificavam o meu poder de decisão sobre o meu caminho. Essa pressão social de
me pensar mulher como alguém que existia para o amor romântico era algo que me dava
a sensação de estar sempre ao meio, incompleta, fugindo de tudo o que eu poderia fazer
comigo e esperando receber dos outros aquilo que eu mesma poderia me proporcionar. Eu
me via constantemente apostando em situações afetivas que não me faziam bem e, mal me
dava tempo de cicatrizar, já enfiava a cara em novas paixões problemáticas, abrindo novas
feridas sobre as antigas. Era a minha droga maior.

Não pensei por um só momento que, para realizar este destino, eu precisaria abrir mão
de estudar, trabalhar e ter a minha independência financeira, ou renunciar à minha paixão
pela escrita, ou qualquer sacrifício semelhante. Acreditava, em vez disso, que havia uma
pessoa certa que, mais cedo ou mais tarde, surgiria em meu caminho, que me pouparia

#150
de novas decepções, que se encaixaria com alguma facilidade ao meu jeito, que nutriria

#boMdiAMAtriArcado
algumas afinidades essenciais, que me aceitaria como sou e ao lado da qual eu poderia
finalmente descansar emocionalmente do mundo. O argumento de que existia uma
pessoa certa, como uma promessa espiritual, se por um lado me consolava quando uma
paixão era frustrada, por outro, seguia me mantendo distante de: (i) compreender como o
patriarcado se enraizava por dentro das relações; e (ii) compreender como o patriarcado
estava enraizado em mim, moldando a minha identidade e a minha afetividade. Eu vivia me
machucando sob o pretexto de encontrar uma cura fora de mim.

Mas a dor de uma decepção afetiva em um determinado ano não desatinou como a dos anos
anteriores. O Feminismo já havia me apresentado a alguns conceitos impossíveis de ignorar,
como a socialização de gênero e a heterossexualidade e maternidade compulsórias. E me
isentado do diagnóstico simplório de que eu “tinha o dedo podre para escolher homem”, o
que só faz culpabilizar mulheres, para que elas acreditem que a miséria afetiva que as cerca
se deve a um ilusório e precário poder de escolha, e não a uma formação que recebem para
orbitar e servir emocionalmente os homens. Entendi que havia uma estrutura sexual de
classes, na qual nós somos a classe explorada. A ideia de que estamos sob um sistema de
dominação de gênero – o patriarcado – já havia deixado sua marca em mim e me proposto
um novo modo de olhar para o mundo, dentro do qual eu tinha o dever de resistir e de me
libertar emocionalmente, repensando-me cada vez mais como um ser humano completo,
para além do apego a esse trabalho afetivo que é esperado das mulheres.

Além disso, jamais poderia me esquecer do que vi todas as minhas mães e irmãs passando
por amor aos homens, fossem eles pais, irmãos, maridos, filhos, sobrinhos, netos. Assim
como vi o que eles fizeram com toda essa devoção. Muitas vezes por ignorância de si
mesmos e de outros modos de ser, pois também foram moldados, cada qual em algum nível,
para ser máquinas de dominação. Sempre me senti impelida a escrever sobre amor. Mas,
por minha história familiar, sabia que aquele formato de amor não me cabia mais. Sentia
fome de certas liberdades desde as minhas raízes. Eu ainda via as mulheres que eu amava
atravessando situações desnecessárias e dolorosas, mas já compreendia minimamente o
que significava e de que modo se expressava ter sido socializada para acreditar que o
sentido maior da vida de uma mulher se achava na realização afetiva.

O processo de autoconhecimento íntimo e político de uma mulher não tem volta ou fim.
É revolucionário porque todos os espaços que ela ocupa passam a ser preenchidos por
esta nova consciência acerca da sua condição. E porque estamos diariamente tecendo
um mundo com outras fêmeas que também estão revolucionando a si mesmas e a seus
espaços. Mas, sim, viver tudo isso assusta. O que nos leva, volta e meia, a faltar com

#151
nossas maiores verdades. Entendi que, para retornar deste ponto, alguém havia de me

#boMdiAMAtriArcado
perdoar e me cobrar de nunca mais me negociar por baixo, e esse alguém era eu. Eu
deveria ser a minha firmeza. Então fui me tornando isso, minha melhor amiga para mim,
alguém que me ajudasse a construir um eixo, que me puxasse de volta para esse eixo
quando eu estivesse à beira das autotraições e dos sequestros patriarcais cotidianos, que
ora me desse um sacode nas minhas encruzilhadas, ora me pegasse no colo e me desse
amor sem maiores explicações.

Passei a escrever sobre minhas experiências afetivas de um outro modo, dando a mim
mesma coragem para experimentar uma leitura femeocentrada dos acontecimentos.
Para banir o patriarcado da narrativa ou ao menos para fundar pontos a resolver comigo,
aos quais poderia voltar para meditar e elaborar minhas próprias respostas e curas. Uma
mulher tem o poder de criar e recriar seu mundo, é o que todas as mitologias contam
em uníssono. Fui conversando comigo, inventando minhas rezas, meus próprios mantras,
minhas sentenças de poder, minhas canções de ninar, através dos meus textos. Escrevi
cartas e bilhetes para as muitas que me habitam, bem como deixei que elas escrevessem
para mim. Fui crescendo em meu amor por minha própria companhia, por minha imagem
ao espelho, por minha história, pelas histórias das minhas, pela troca com outras mulheres,
pelo que eu tinha a dizer, pelo que eu poderia realizar. Solitude é povoar a sua solidão.

Mas então uma outra questão se ergueu: a partir do momento em que constatamos
que essa subjetividade servil e sequestrável não nos serve mais e está ruindo, então de
onde tomaremos emprestada a substância para compor uma nova subjetividade? Ora,
ser mulher é muito mais antigo do que ser socializada para ser mulher no patriarcado.
Mesmo as mulheres mais dóceis que eu conheci eram capazes de, vez em quando,
“dar defeito na submissão” e mostrar os dentes. Isso ocorre porque sentimos lá dentro
de nós que ser mulher não é isso que nos ensinaram a ser. Apesar de toda tentativa
de dominação, referências de insubmissão conseguiram atravessar os tempos e nos
encontrar. Nossas mais velhas organizaram bibliotecas materiais e imateriais onde
arquivaram suas sabedorias sobreviventes para que chegassem até nós. Existe um senso
de dignidade ancestral que sobrevoa o capitalismo, o patriarcado e o racismo, que foi
deixado disponível por mulheres de todos os povos às suas filhas e que não está ao
cálculo dos interesses imperialistas dos homens.

Vimos sendo usurpadas de um legado simbólico feminino ao longo de milênios pela


sabotagem patriarcal. Em outras palavras, roubaram-nos cores e diversidade de fios para nos
tecermos individual e coletivamente como mulheres. Isso ocorreu conforme os séculos foram
nos dizendo que ser mulher é ser desse ou daquele jeito, isto é, que devemos nos enquadrar

#152
em um estereótipo de feminilidade e aceitar um jogo onde são premiadas aquelas que melhor

#boMdiAMAtriArcado
se enquadram e punidas as que, por sua natureza ou por suas vivências, desviam ou divergem
do padrão. Há muito tempo vem sendo assim. Nascemos e temos a subjetividade sequestrada
por um sistema que nos diz como devemos ser o tempo todo e que nos oferece escassos
elementos para ser, violentando-nos quando não somos. Um comando para nos virarmos e
satisfazermos os outros que é milenar. Esses recursos imateriais, eu ouso pensar, deveriam ser
muito mais diversificados e prósperos para a mulheridade quando as religiões monoteístas
que afirmaram o patriarcado ainda não tinham constituído um império e jogado para o
subterrâneo da humanidade toneladas de referências de deusas e de povos onde mulheres
exerciam alguma autonomia e liderança. Mulheres de uma socialização completamente
diferente da nossa. Depois de esmaecidas as formas femininas divinas nas quais poderíamos
nos espelhar, tornamo-nos também mais facilmente violáveis. Nossas ancestrais foram
guardiãs, penso, de uma outra subjetividade possível – mais livre – para nós.

Com a demonização da mulher, da sua insubmissão primordial, do seu senso de dignidade


tão forte que se assemelhava a uma condição sagrada, porque seu corpo imitava a
ciclicidade presente na natureza; com o advento de um modelo civilizatório que dizimou
povos e destruiu seu vínculo com a terra, o que sobrou para tecermos nossa identidade
livre como mulheres? Envenenaram ou cortaram as fontes pelas quais poderíamos nos
criar psiquicamente com muito mais amplitude, bem como enriquecer nosso espaço no
mundo, dando um sentido maior às nossas vidas, que não fosse orbitar a vida dos homens.
É como você ter acesso ao melhor material de construção das redondezas e de repente essa
fábrica fechar, depredada, saqueada, humilhada. Então você passa a depender de material
de qualidade inferior para erguer a casa na qual vai morar para sempre. Poucos modos de
ser mulher para si mesma, e não incansavelmente para os outros, sobraram às claras. Mas
essas formas mais potentes e livres de feminino ainda estão abundantemente presentes nas
memórias que compõem um imaginário matriarcal. Chegou a hora de resgatá-las.

Acredito que falte às mulheres contemporâneas despertarem para o fato de que,


numericamente, nós já somos um matriarcado. Falta-nos preenchê-lo à luz desta nova
consciência, virando uma chave qualitativa, subvertendo o conteúdo do processo de
socialização para fazer falir a cultura do assédio, do estupro, da pedofilia, do feminicídio.
Transmutando a narrativa de inferioridade em orgulho, ampliando o nosso sistema
de escolhas e vencendo a competitividade que nos fragiliza. Na prática, já ocupamos
diversos espaços de base necessários para promover essa revolução: somos mães,
profissionais majoritárias em áreas estratégicas como saúde e educação, alcançamos
cada vez mais novos e altos postos, ampliamos consideravelmente a nossa participação
política, a nossa representação na cultura e nos esportes. Estamos, por exemplo, à frente

#153
da formação da sensibilidade das crianças, pela qual os homens pouco se interessam,

#boMdiAMAtriArcado
uma vez que os índices de abandono paterno são alarmantes em nosso país. Somos
um mercado consumidor tão potente que não apenas temos feito a grande mídia
mudar o tom pelo qual conversa conosco, mas se acordarmos amando nossos corpos,
sabemos que levaremos à falência diversas empresas. Ao mesmo tempo, buscar a
libertação de toda dominação nos faz mais fortes e cúmplices, agindo em rede e nos
fortalecendo mútua e economicamente. Somos mulheres de todas as partes do mundo
em busca de autoconhecimento e autonomia e convertendo essa busca em material de
libertação umas para outras. Desnaturalizando as relações de poder entre os gêneros e
desafiando a noção superficial de liberdade e de felicidade que não fomos chamadas a
construir, mas que nos obrigaram a buscar. Fundando uma nova ética que universalize a
responsabilidade afetiva consigo, com outras e outros. Enquanto a maioria dos homens
segue resistente a discutir masculinidade e violência com profundidade, enferrujando-se
diante da velocidade com que nos lançamos a este despertar.

Divido este tempo com incontáveis mulheres que se descamaram por meio da escrita,
ressignificando seus processos, tornando-os arte, obras a serem consumidas culturalmente
por outras mulheres que dançam em diversas outras linguagens e campos do saber e
que, enquanto vão se libertando cada vez mais dos precários modos patriarcais de existir,
inundam os espaços que ocupam da verdade solar de sua mulheridade. Eu me sinto junto
a esse grande círculo de mulheres e exibo a minha pele trocada, para quem queira ver que
é possível. Uma vez, uma moça que acompanhava minhas publicações sobre libertação
emocional de mulheres resolveu me escrever em uma das minhas redes sociais, surpresa
com um texto onde eu relatava parte da minha revolução íntima. Ela me perguntou:
“Então é possível?”. Em todos esses anos em que meus textos vêm alcançando milhares
de mulheres, nunca uma pergunta me marcou tanto. Pois é possível, é necessário e é
urgente. Estamos todas abandonando uma pele patriarcal e deixando vir o novo, feito de
um amanhã mais amplo de possibilidades e de um ontem em parte resgatado, em parte
ressignificado, onde existíamos mais dignas, completas, inteiras, onde talvez tenhamos nos
pensado muito mais verdadeiras, muito mais como nós somos do que agora, que somos
destituídas de nossas verdades para corresponder a um ideal de feminino, a um ideal de
nós mesmas em cada circunstância da vida.

Este livro é um instrumento mistificável. Você pode se abrir ao diálogo com ele em qualquer
página, utilizando-o como uma espécie de oráculo, como funcionaram cartas, conchas,
sementes e pedras – outros livros sagrados - para tantas mulheres que vieram antes de nós,
socorrendo-as, norteando-as em sua sobrevivência, acalmando-as, curando-as, permitindo
que reconfigurassem seu momento, abrindo frentes de diálogo com o inconsciente dentro

#154
da luta que se tornou nascer mulher. Nossa supremacia intuitiva e nossa genialidade

#boMdiAMAtriArcado
emocional são efeitos colaterais das trevas nas quais fomos lançadas e contra as quais
precisamos lutar para nos dar à luz. Muito trabalho sensível nos hipertrofiou. As referências
de poder feminino que transbordam dos mitos e das imagens que eles arquivaram no
inconsciente coletivo estão à nossa disposição, para nos enriquecer simbolicamente diante
da revolução que estamos protagonizando, dentro da qual o feminismo é apenas a sua
dimensão política, mas que é antes de tudo uma revolução psíquica e profunda, espiritual.
Um despertar matriarcal está em curso e a consciência acerca do quanto se enraizou em
nós o projeto de dominação emocional masculina – para com ele rompermos – é apenas
o seu primeiro ato.

Portanto, estão aqui reunidas diversas mensagens que precisei escrever para a mulher
em mim, no curso de uma jornada de autoconhecimento (que, descobri, jamais tem
fim). O meu diálogo comigo mesma, o meu exercício de me libertar de amarras afetivas
que me desencorajavam em muitos níveis a ser quem eu era e a fazer de meu caminho
algo maior. Reuni-las é, ao mesmo tempo, a oportunidade em que reencontro algumas
de minhas faces/fases e o coquetel servido após uma linha de chegada. Há uma festa de
coroação acontecendo aqui dentro, quando, posso dizer – na ignorância de tudo o que
ainda hei de viver, mas também com muita consciência da complexidade do caminho que
percorri – cheguei a algum lugar inovador no centro de mim mesma e passei a enxergar
e experimentar, não sem falhas, minha vida de lá. Cheguei e, por meio desta publicação,
posso abraçar muitas de mim que ontem se viam devastadas, sem esperanças, abusadas,
isoladas umas das outras, perdidas de tantas formas, marginais em si mesmas, e falar para
cada uma dessas fêmeas: “Eu disse que você conseguiria”. Posso abraçar também essas
faces nas mulheres que agora me lêem.

Caminho, hoje, mais alinhada com essa voz de mulher sábia que em outros tempos
escreveu todas essas mensagens para que eu resistisse ao desamor sistêmico e me
reinventasse e desejasse saber o que me aguardava mais adiante. Tenho usufruído
bem mais da vida e dos encontros a partir da amizade com essa tecnologia anciã
que achei em meu espírito, pela qual aprendi a respeitar meu tempo e meu espaço
dentro das relações, a aceitar e honrar minha singularidade, minhas origens e minha
história, a ser mais sincera com meus desejos, a garantir meu direito ao erro e ao
reexame honesto e a exercitar minha coragem de ressignificar, no lugar daquela
jovialidade ingênua que caminhava dopada de paixões, autodestrutiva, desatenta de
suas qualidades, desperdiçando sua energia, fugindo do espelho, tentando ser aceita
e amada a qualquer custo.

#155
Este livro é mágico, também, por materializar esse meu casamento comigo. Porque

#boMdiAMAtriArcado
torna manuseável, ao alcance de qualquer mulher que precise se inspirar, um feito real: é
perfeitamente possível, partindo de uma condição de intensa dependência afetiva, tendo
uma história marcada por abandonos, traições, desestímulos e violências de gênero,
conhecer-se e fundar um companheirismo curativo consigo, deslocando o eixo de sua
existência do outro para você mesma, encontrando suas melhores referências, seus limites,
os temas e atividades que te nutrem, reorganizando suas memórias, enfim, superando
um modo passivo, carente e servil de estar no mundo, como foi dado às mulheres desde
o momento em que nasceram, por meio do processo de socialização de gênero, para um
modo mais criativo, autônomo e realizado, que não desperdice o brilho de estar viva,
pulsante de dons, deixando alguma marca para as que vierem depois.

Estamos todas renascendo, dando à luz um novo tempo. Somos bilhões. Ninguém passará
imune ao nosso levante. Ninguém pode passar imune a um movimento de tais proporções.
Olhamo-nos nos olhos com imensa curiosidade umas pelas outras e por colher as lições dos
espelhamentos e pelos novos modos de ser que, mal (re)descobrimos, logo trazemos ao
centro da roda para mostrar e contar às outras: “É possível”. Influenciamo-nos mutuamente,
ousamos nos pensar mais humanas e mais sagradas do que nunca, formulamos perguntas
até então proibidas para nossas mais velhas, cotidianizamos o direito de nos pensar mais
livres do que o machismo gostaria. Estamos nos reapropriando de nossos corpos, nossas
vozes, nossas existências, ancestralidades, nossas narrativas roubadas ou sufocadas pelo
patriarcado. Deixando de tentar cumprir o que nos ditaram que deveríamos ser, ousando
acreditar em nossos sonhos e desbravando o universo que de fato somos.

Não pretendo, contudo, que as respostas que encontrei dentro de mim e que viraram
textos de acolhimento para outras mulheres sejam universais ou herméticas. Elas são
apenas a minha oferenda para o corpo coletivo e uma manifestação material do meu
processo de libertação. Que sirvam como um manifesto. Cada uma encontrará seu tempo
e seu modo para reaver a si mesma. O que é inadiável é que uma possibilidade existencial
mais livre para todas nós se deflagre. Que deixemos de ser desperdiçadas, com toda a
nossa grandeza, em nome da manutenção de um sistema estúpido. Despertar é nossa
responsabilidade ancestral e nosso destino. Uma mulher que aprenda a mapear sua noite
se torna uma iniciada em si mesma e, inevitavelmente, uma fazedora de amanhecer.

Bom dia, Matriarcado!

#156
#boMdiAMAtriArcado
Estão aqui reunidas diversas mensagens que precisei
escrever para a mulher em mim, no curso de uma jornada de
autoconhecimento (que, descobri, jamais tem fim). O meu
diálogo comigo mesma, o meu exercício de me libertar de
amarras afetivas que me desencorajavam em muitos níveis
a ser quem eu era e a fazer de meu caminho algo maior.

Despertar é nossa responsabilidade ancestral e nosso


destino. Uma mulher que aprenda a mapear sua noite se
torna uma iniciada em si mesma e, inevitavelmente,
uma fazedora de amanhecer.

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