A Natureza Da Atividade Filosófica
A Natureza Da Atividade Filosófica
A Natureza Da Atividade Filosófica
A atividade filosófica é sui generis. Parecemos viver muito bem sem ela.
Aprendemos e ensinamos, trabalhamos, ouvimos música, vamos à praia e
podemos construir nossas vidas com planos de sucesso e estabilidade
financeira sem nos deixarmos envolver pelo discurso e pelos problemas
filosóficos. Na verdade, os problemas filosóficos normalmente nos deixam
incomodados, mal humorados, ansiosos. Isso porque, como normalmente
ocorre, ao tentar resolvê-los, deparamo-nos com outros problemas que até
então não havíamos considerado. A filosofia parece ser não apenas
desnecessária para o bem viver; ela parece ser incompatível com a ideia de
uma vida tranquila. Somando-se a isso, devemos considerar o caráter abstrato
da atividade filosófica. Por lidar com problemas distantes da vida comum, o
filósofo é considerado frequentemente uma pessoa destacada da realidade,
perdido em especulações inúteis, alheio aos problemas que a vida diária se lhe
impõem.
Não há dúvida de que o homem comum possa passar a vida inteira sem
se preocupar com os problemas que rondam os filósofos. Mas ele,
conscientemente ou não, está se valendo de motivos para tomar as tantas
decisões que a vida o obriga a tomar. Se olharmos mais de perto, veremos que
esses motivos estão calcados em princípios ou regras morais, ou em
informações às vezes genuínas (ou verdadeiras), às vezes equivocadas
(falsas). Quer dizer, o homem comum não pára de refletir, de especular. A
reflexão, quer ele se dê conta disso ou não, faz parte de sua vida do mesmo
modo que faz parte da vida dos intelectuais, sejam eles cientistas ou filósofos.
Mas a filosofia é mais do que refletir. Ela é refletir sobre o refletir. A
filosofia surge quando a própria capacidade de refletir é posta em questão,
quer dizer, refletimos sobre o refletir, quando queremos saber como adquirimos
conhecimentos, ou se sabemos realmente aquilo que supomos saber. Por isso
que, para Sócrates, o ponto de partida do filosofar é o reconhecimento da
própria ignorância. A afirmação “só sei que nada sei” só pode ser feita por
alguém que já exerceu uma autocrítica, que já se debruçou sobre as bases de
seus conhecimentos e os avaliou de modo adequado. Muitas vezes, quando
fazemos isso honestamente, quer dizer, quando olhamos para dentro de nós
mesmos e pesquisamos as razões daquilo que defendemos às vezes tão
teimosamente, nada encontramos, e aí ficamos espantados, perturbados,
incomodados. Platão chamava esse estado de espírito de thaumazéin, isto é, o
espanto da própria ignorância. Esse é o motor do filosofar. É o que nos leva a
tentar preencher o vazio, a ausência do saber, a ignorância.
Isso quer dizer que nem toda pesquisa fronteiriça aos saberes especiais é
filosófica. Quando se tenta resolver problemas filosóficos sem se questionar a
validade dos procedimentos adotados, incentiva-se o dogmatismo e a
superstição. Por exemplo, no caso da existência da série de eventos, se
pressupusermos que Deus é a causa primeira e também a meta final de todas
as coisas, acabamos recorrendo a um artigo de fé e não a um saber racional.
Essa afirmação tem o mérito de produzir uma dada resposta a quebra-cabeças
metafísicos, mas ela possui uma grande desvantagem, que é a de se basear
numa suposição que não pode ser colocada em dúvida, e que é por isso
mesmo dogmática. Daí não se segue que o filósofo deva necessariamente ser
um ateu. Muitos filósofos do passado (e mesmo vários do presente) acreditam
em Deus e pertencem a diferentes religiões. Mas quando eles decidem discutir
a existência ou não de Deus, eles sabem que não podem simplesmente
postulá-la sem maiores problemas. Eles sabem que toda discussão é uma
disputa, uma busca da melhor explicação ou da solução de um certo problema.
Decidir discutir significa submeter-se ao tribunal final da razão, que não aceita
a mera crença incontestável como base de argumentação (cf. Scruton 1981,
pg. 14).
Muito bem. Já disse que a filosofia tem por função, entre outras coisas,
refletir sobre o refletir. Através do filosofar, podemos saber mais sobre a nossa
capacidade reflexiva. Por quê? Porque, em assim o fazendo, podemos exercer
o poder de reflexão mais amplamente, mais efetivamente e com mais precisão.
Mas por que é tão importante exercer a capacidade reflexiva? A resposta é
simples, mas essencial. Sem refletir, não poderíamos ser livres. Agir sem
refletir significa não ser dono das próprias ações, ou ser movido por causas
outras que não a nossa própria razão. Essa é a diferença entre nós e os robôs.
Eles não possuem poder de reflexão e por isso mesmo eles não podem
escolher por si mesmos o curso de ação que irão adotar. Do mesmo modo,
quando adotamos um certo curso de ação “sem refletir”, mecanicamente, a
gente se assemelha a um autômato, ou a um robô nas mãos do primeiro que
passa.
Uma outra lição que se pode tirar da relação entre filosofia e liberdade é
que ela nos ajuda a compreender o porquê da insatisfação constante do
filósofo, aquela que Hume sente e que o leva a passear ao longo do rio e a
jogar gamão com os seus amigos. A insatisfação origina-se do fato de que a
atividade filosófica, assim como a atividade teórica em geral, não parece ter um
ponto final. Mas isso é exatamente o que a torna tão essencial à liberdade. O
trabalho filosófico em particular e o teórico em geral não têm fim. Conceber um
fim à atividade reflexiva é, de um certo modo, conceber o fim do exercício da
liberdade. A gente só pára de refletir sobre os princípios que atuam como
premissas de argumentos quando a gente se rende à superstição, à religião ou
ao totalitarismo.