A Natureza Da Atividade Filosófica

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Ministério da Educação

Universidade Tecnológica Federal do Paraná


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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ
Departamento Acadêmico de Filosofia e Ciências Humanas
Prof. Arilson

A Natureza da Atividade Filosófica

Marco Antonio Franciotti

A atividade filosófica é sui generis. Parecemos viver muito bem sem ela.
Aprendemos e ensinamos, trabalhamos, ouvimos música, vamos à praia e
podemos construir nossas vidas com planos de sucesso e estabilidade
financeira sem nos deixarmos envolver pelo discurso e pelos problemas
filosóficos. Na verdade, os problemas filosóficos normalmente nos deixam
incomodados, mal humorados, ansiosos. Isso porque, como normalmente
ocorre, ao tentar resolvê-los, deparamo-nos com outros problemas que até
então não havíamos considerado. A filosofia parece ser não apenas
desnecessária para o bem viver; ela parece ser incompatível com a ideia de
uma vida tranquila. Somando-se a isso, devemos considerar o caráter abstrato
da atividade filosófica. Por lidar com problemas distantes da vida comum, o
filósofo é considerado frequentemente uma pessoa destacada da realidade,
perdido em especulações inúteis, alheio aos problemas que a vida diária se lhe
impõem.

Essa visão negativa do filósofo rondou-o desde os primórdios da filosofia.


Como ilustração, é interessante recorrer a uma lenda acerca de Tales, o
grande matemático e filósofo grego que revolucionou a geometria, aquele que
inventou o Teorema de Tales, estudado nas aulas de matemática do 2o grau.
Em sua época, cerca de 580 a. C., não havia a divisão do conhecimento que
há hoje, de modo que o intelectual era tanto matemático, quanto político,
astrônomo, geômetra, etc. Conta a lenda que Tales certa vez passeava à noite
olhando para as estrelas, com o intuito de estudar seus movimentos e
regularidades. Com os olhos fixos no céu, ele não percebeu que caminhava em
direção a um poço. Depois de tropeçar e cair dentro dele, uma jovem trácia que
testemunhara o fato observou em tom sarcástico: “tão preocupado com os
assuntos celestes que acabou esquecendo da terra que o sustenta” (cf. Platão:
Teeteto, 174a). Essa lenda é utilizada para caracterizar a visão que o senso
comum tem do filósofo. “Filosofia”, diz o dito popular, “é aquilo sem o qual o
mundo seria tal e qual”. O filósofo é visto como um sonhador de sonhos
inefáveis, ou ainda como uma pessoa que está sempre envolvida com
assuntos que a grande maioria das pessoas não dá o menor valor.

Essa visão caricatural da filosofia não se restringe ao senso comum.


Guimarães Rosa certa vez definiu o filósofo como “aquele que se encontra num
quarto escuro, à procura de um gato preto que não está lá. E ele o encontra…”
Fernando Pessoa, em seu famoso poema Tabacaria, escreve que “a
metafísica… é uma consequência de se estar mal disposto…” Mas será que é
assim mesmo, quer dizer, será que é tão simples descartar a filosofia como
uma atividade intelectual inútil? Para obtermos uma resposta satisfatória, é
necessário que especifiquemos o ofício do filósofo. Qual é a natureza do
trabalho filosófico?

A leitura dos filósofos sugere que a primeira característica distintiva do


filósofo é a de lidar com ideias ou conceitos e não com objetos palpáveis, como
o lavrador e o ferreiro. É claro que estes últimos não dispensam (e não podem
dispensar) o uso de ideias, o ferreiro recorrendo sempre à ideia ou ao modelo
do martelo a ser construído e o lavrador à ideia do solo e da época de plantio.
O filósofo, porém, lida com ideias que não são sempre traduzíveis em coisas
concretas, tais como o conceito de verdade ou de bem. Além disso,
contrariamente ao psicólogo e ao sociólogo, por exemplo, o filósofo não está
preocupado em colocar em prática as suas ideias. Isso não quer dizer que ele
se recuse a fazê-lo; ele simplesmente não considera a concretização de suas
ideias como fundamental para a sua atividade. Como diz Platão: “o filósofo
permanece totalmente alheio ao seu vizinho mais próximo; ele é ignorante…,
ele mal sabe se é um homem ou um animal; ele está investigando a essência
do homem”. Embora ele prefira o convívio das cidades, “sua mente,
desdenhando da irrelevância e da nulidade das coisas humanas, está
sobrevoando o estrangeiro” (Teeteto, pgs. 25-6).

O que há de peculiar em sua prática com conceitos, isto é, em sua prática


teórica, é que ele está sempre buscando o fundamento ou a raiz dos problemas
e das doutrinas analisadas. Para ilustrar esse ponto, creio ser necessário
recorrer a Sócrates. Perguntado pelos chamados sábios acerca do que ele
conhecia, Sócrates respondeu: “A única coisa de certa que sei é que nada sei”.
É claro que Sócrates sabia muito mais do que isso, mas o que ele queria dizer
era que, contrariamente aos chamados sábios, ele procurava se definir em
termos dos limites do seu conhecimento e não em termos da quantidade de
conhecimentos adquiridos. Sócrates acreditava que a primeira atitude em
direção ao conhecimento não era a certeza, mas a ignorância. Nesse contexto,
a palavra ignorância não está sendo usada no sentido pejorativo, mas sim no
sentido de ausência de saber, ou ausência de conhecimento. O filósofo não é,
então, nem o sábio nem o ignorante. Ele é, na verdade, aquele que busca a
sabedoria, ou que procura ser amigo da sabedoria. Ele não é também o
homem das respostas, mas das perguntas. Diante, por exemplo, do problema
acerca da atitude justa ou não de um governante, o filósofo deve destacar que
o que está em jogo é antes de tudo o conceito de justiça; somente a partir de
uma ideia clara desse conceito é que se pode caracterizar a atitude do
governante como justa ou não. É nesse sentido que o filósofo se diz estar
preocupado não tanto com a concretização da sua ideia, mas com a ideia em
si, isto é, não com o ato específico do governante, mas com a definição clara
de justiça.

Assim, o filósofo realmente parece habitar um outro mundo, aquele que


não é visto ou palpável, o mundo das pressuposições e dos fundamentos do
conhecimento. Ele parece estar realmente num quarto escuro à procura de um
gato preto, pois muitas vezes esse fundamento ou essa raiz não se encontra
visível. Ele se deixa envolver pelos pensamentos no sentido de procurar o
ponto que originou uma discussão. Mas além dessa busca da raiz dos
problemas, ou melhor, além dessa atitude radical que acabei de expor, há uma
segunda característica da maneira filosófica de refletir. Suponha que eu receba
a tarefa de desenhar o mapa, por exemplo, da ilha de Santa Catarina. A
representação, por exemplo, da orla da praia da Joaquina, deve ser construída
de acordo com a escala geral do mapa. Se, por ventura, a representação em
questão não respeitar a escala, a praia da Joaquina ocupará no meu mapa
uma área desproporcional em relação ao todo. O filósofo, nesse sentido, é
como um geógrafo: a atitude radical deve ser acompanhada de uma visão da
totalidade, i.e., de uma atitude com respeito ao todo. Sem essa segunda
característica, o filósofo se torna tão descuidado como o geógrafo medíocre
que não leva em conta a escala do mapa que está elaborando, ou como o
botânico que pretende estudar uma determinada planta sem levar em conta o
tipo de solo e o clima do ambiente em que ela nasceu.

Até agora, as minhas observações não fornecem material suficiente para


uma análise da visão que aquela jovem trácia e o homem comum têm do
filósofo, embora já nos deem claras indicações da visão que o filósofo tem de si
mesmo. O homem comum parece ter um forte aliado, um aliado-filósofo, dos
mais influentes na história da filosofia. Eu me refiro a Karl Marx. Foi ele que,
em tom bombástico, afirmou: “Os filósofos até hoje se preocuparam apenas em
interpretar o mundo; trata-se, porém, de transformá-lo”. Parece que Marx
também vê o filósofo como distante das questões do mundo. Creio, porém, que
essa análise não corresponde à intenção real de Marx. É preciso reconhecer
antes de mais nada que não é possível transformar o mundo sem interpretá-lo.
Qualquer ação humana concreta pressupõe uma interpretação, isto é, uma
atitude reflexiva e conceitual. O próprio termo “realidade” se apresenta
carregado de interpretação. É como se eu apenas tivesse acesso à ilha de
Santa Catarina através do seu mapa. Quando falamos, por exemplo, da
situação social do Brasil contemporâneo, o que fazemos é encaixar a
experiência que temos do nosso dia-a-dia, bem como as informações que
dispomos do que acontece no Brasil inteiro e de sua história, num modelo
conceitual, numa teoria, ainda que rudimentar, a partir da qual os eventos são
relacionados e catalogados entre si. Assim, nenhuma atitude transformadora se
dá sem que certos pressupostos sejam assumidos, sem que determinados
princípios que vão direcionar a nossa investigação e a nossa ação sejam
levados em conta. Em outras palavras, a transformação do real só pode ocorrer
se se interpretar o que está para ser transformado. Sem um plano pré-
estabelecido, com seus pressupostos teóricos, corre-se o risco de nada
transformar, ou de transformar para pior.

Dessa forma, a maneira mais adequada que encontro de analisar a frase


de Marx é reconhecer que, de um lado, Marx não poderia estar dizendo que
devemos simplesmente parar de interpretar e apenas transformar, pois a
transformação requer interpretação; de outro lado, a interpretação sem
transformação é inútil, isto é, a interpretação em termos da atitude reflexiva do
filósofo deve ser sempre em última instância uma interpretação com vistas à
transformação do mundo. Dito de outro modo, a filosofia deve sempre falar do
mundo, desse mundo diante dos nossos olhos e que tem um passado, um
presente e um futuro dos quais podemos ter experiência, tentando modificá-la e
melhorá-la. Embora à primeira vista não pareça, a frase de Marx é importante
para uma defesa da atividade filosófica. Ela permite-nos corrigir o homem
comum, mostrando-lhe o caráter enganador da ideia de que o filósofo está “do
lado de fora” do mundo. Marx está se referindo a um determinado tipo de
filósofo, ou a um determinado tipo de filosofia: aquele que em nada contribui
para o desenvolvimento da humanidade, que é hermético, arrogante e
autossuficiente. Esse tipo de filosofia, realmente, não é interessante. Ele se
reduz a um mero exercício de diletantismo.

Outro ponto importante aqui consiste em refletir sobre o que significa


transformar. Creio que não se pode exigir que o filósofo transforme o mundo,
tal como o ferreiro ou o carpinteiro o fazem. O instrumental do filósofo são os
conceitos; portanto, a transformação esperada deve incidir sobre o universo
conceitual diretamente, e apenas indiretamente sobre a realidade concreta. Em
outras palavras, o filósofo não é aquele que necessariamente sai às ruas
pondo em prática as suas teorias. Ele é, essencialmente, um teórico inserido
no mundo, e mesmo o problema da transformação da realidade é por ele
tratado apenas teoricamente. Isso não quer dizer que ele esteja proibido de
agir praticamente. Não há por que reprovar Sartre por ter aderido às passeatas
estudantis no final da década de sessenta em Paris. O ponto, porém, é que,
mesmo se ele não tivesse feito isso, ele continuaria a ser considerado um
filósofo. Do mesmo modo, Platão continua sendo considerado filósofo a
despeito de jamais ter sido rei, embora defendesse a ideia de que o filósofo
deveria ser rei e que o rei deveria ser filósofo.

Vários pensadores adotaram uma postura destrutiva com relação à


filosofia, ou pelo menos com relação ao que eles concebiam como sendo
filosofia. Um exemplo a ser citado é o de Sexto Empírico. Para ele, a atividade
filosófica é essencialmente teórica e contemplativa. Vista desse modo, a
filosofia parece nada mais do que uma atividade destacada da realidade, quer
dizer, destacada da vida e da prática comuns. O filósofo é um dogmático, quer
dizer, uma pessoa que fica formulando dogmas ou, na linguagem de Sexto
Empírico, formulando proposições e provas acerca do não-evidente ou daquilo
que não pode ser verificado na experiência, daquilo que de algum modo se
coloca para além do dado que aparece através dos nossos sentidos. O
dogmático procura estabelecer o conhecimento do não-evidente. Esse
conhecimento se baseia num conjunto de regras e princípios supostamente
não-controversos, por meio dos quais é possível elaborar argumentos
irrefutáveis. É esse conjunto de proposições que é chamado de teoria ou
doutrina.

O cético descrito por Sexto Empírico surge como um opositor no debate


com o dogmático, recusando-se a admitir a verdade das pretensões teóricas e
doutrinais sobre o não-evidente. Ele tenta então substituir essas pretensões por
um mero reconhecimento da nossa habilidade de viver e de explorar o mundo
das coisas que aparecem. O procedimento do cético exibe vários momentos.
Primeiro, ele observa as posições filosóficas conflitantes sobre todo o tipo de
assunto (diafonia). Isso o leva a desenvolver a habilidade de produzir um
contra-argumento a todo argumento com o qual ele se depara, de tal modo que
tanto um quanto o outro acabam por possuir a mesma força persuasiva
(isostenia). Depois de um certo tempo, ele acaba por duvidar de que seja
realmente possível produzir uma explicação ou uma solução definitiva para os
problemas filosóficos em geral (apatia). Em consequência disso, ele propõe
que se suspenda o juízo com respeito às pretensões dogmáticas. Essa atitude
o leva a atingir a desejada paz mental, ou o conforto da alma (ataraxia). Isso
posto, ele se restringe a descrever como um cronista aquilo que se lhe
aparece, manifestando sempre a sua desconfiança com relação a
compromissos teóricos. (cf. Williams 1988, pg. 560)

Esse é um procedimento bem próximo daquele que o homem comum


adota diante da filosofia ou da atividade reflexiva em geral. Explicações
abstratas não nos levam mesmo a lugar algum, de modo que a melhor coisa a
fazer é suspender o juízo sobre elas, mudar de ideia, pensar em outras coisas,
ou simplesmente viver sem se apegar a abstrações. Mas será que é assim tão
fácil se livrar das abstrações? Será que é assim tão simples olhar por outro
lado e “deixar par lá”, por exemplo, quando a gente se dá conta de que a gente
está abstraindo ou especulando?

Hume levanta essa possibilidade, mas se opõe a ela. Na celebrada


conclusão do livro primeiro do Tratado da Natureza Humana, ele diz que
especulações filosóficas profundas, atividades reflexivas muito abstratas, só o
levam ao desconforto. Nenhuma solução aos problemas é encontrada, e
parece realmente que o mundo fica “tal e qual”. Nada muda quando a gente
reflete, ou quando a gente filosofa dessa forma. Ele então decide simplesmente
viver, passear ao longo do rio, jogar gamão com seus amigos e deixar de lado
as elucubrações. Ele está preparado para engavetar os livros de metafísica
escolástica, ou jogá-los ao fogo. No entanto, as inquietações especulativas
parecem voltar à sua mente sem que ele possa impedir. Depois de um certo
tempo “refrescando” a mente com as frivolidades da vida, ele começa a querer
saber quais os motivos que o levam a gostar de certas coisas e não de outras,
a repudiar algumas coisas e não outras, a considerar certas ações como boas
e outras como más, a julgar que certas afirmações são verdadeiras e outras
falsas. Melhor dizendo, ele retorna ao universo da abstração, dos princípios e
das regras que sustentamos muitas vezes sem sermos conscientes delas. Isso
quer dizer que ele retorna ao universo da atividade filosófica naturalmente. É
por isso que Hume é chamado por muitos de seu comentadores de naturalista.
A filosofia é, para ele, algo que está instalado em nós, que faz parte da nossa
condição humana. A natureza, ele diz, força-nos a refletir, a julgar, do mesmo
modo que nos força a respirar e a sentir (Tratado da Natureza Humana, pg.
265 ff).

Não há dúvida de que o homem comum possa passar a vida inteira sem
se preocupar com os problemas que rondam os filósofos. Mas ele,
conscientemente ou não, está se valendo de motivos para tomar as tantas
decisões que a vida o obriga a tomar. Se olharmos mais de perto, veremos que
esses motivos estão calcados em princípios ou regras morais, ou em
informações às vezes genuínas (ou verdadeiras), às vezes equivocadas
(falsas). Quer dizer, o homem comum não pára de refletir, de especular. A
reflexão, quer ele se dê conta disso ou não, faz parte de sua vida do mesmo
modo que faz parte da vida dos intelectuais, sejam eles cientistas ou filósofos.
Mas a filosofia é mais do que refletir. Ela é refletir sobre o refletir. A
filosofia surge quando a própria capacidade de refletir é posta em questão,
quer dizer, refletimos sobre o refletir, quando queremos saber como adquirimos
conhecimentos, ou se sabemos realmente aquilo que supomos saber. Por isso
que, para Sócrates, o ponto de partida do filosofar é o reconhecimento da
própria ignorância. A afirmação “só sei que nada sei” só pode ser feita por
alguém que já exerceu uma autocrítica, que já se debruçou sobre as bases de
seus conhecimentos e os avaliou de modo adequado. Muitas vezes, quando
fazemos isso honestamente, quer dizer, quando olhamos para dentro de nós
mesmos e pesquisamos as razões daquilo que defendemos às vezes tão
teimosamente, nada encontramos, e aí ficamos espantados, perturbados,
incomodados. Platão chamava esse estado de espírito de thaumazéin, isto é, o
espanto da própria ignorância. Esse é o motor do filosofar. É o que nos leva a
tentar preencher o vazio, a ausência do saber, a ignorância.

Para esclarecer esse ponto, é oportuno comparar a filosofia com a


ciência. A atividade do cientista é marcadamente empírica. Ele tenta entender o
mundo como ele é dado em sua experiência e, a partir daí, ele procura predizer
e explicar os eventos. O cientista via de regra pergunta: “O que causou isso?”
Ao tentar responder a essa pergunta, ele recorre a outros eventos que
requerem eles mesmos mais explicações. Quando ele se vê às voltas com uma
sequência de eventos interligados, ele pode perguntar: “O que causou a
existência das séries?”, ou ainda, “por que esta série e não outra?” Estas
perguntas, porém, levam-no para além dos limites da atividade científica, tendo
em vista que uma série como essa não é dada na experiência. Esse território,
às vezes considerado como obscuro, é a filosofia. Certas questões levam-nos a
níveis de abstração que nenhuma investigação empírica pode proporcionar.
Elas surgem, pode-se dizer, no final de todas as outras pesquisas, “quando
problemas relativos aos fundamentos dos saberes particulares, como a Física,
a Matemática, a Geometria, etc., são detectados ou seus métodos de
investigação passam a ser questionados. Assim sendo, os problemas
filosóficos e os sistemas destinados a resolvê-los são formulados em termos
que tendem a se referir aos domínios da possibilidade e da necessidade e não
aos da realidade, ou seja, ao que poderia e ao que deveria ser e não ao que é”
(Scruton 1981, pg. 12 ff.).

Isso quer dizer que nem toda pesquisa fronteiriça aos saberes especiais é
filosófica. Quando se tenta resolver problemas filosóficos sem se questionar a
validade dos procedimentos adotados, incentiva-se o dogmatismo e a
superstição. Por exemplo, no caso da existência da série de eventos, se
pressupusermos que Deus é a causa primeira e também a meta final de todas
as coisas, acabamos recorrendo a um artigo de fé e não a um saber racional.
Essa afirmação tem o mérito de produzir uma dada resposta a quebra-cabeças
metafísicos, mas ela possui uma grande desvantagem, que é a de se basear
numa suposição que não pode ser colocada em dúvida, e que é por isso
mesmo dogmática. Daí não se segue que o filósofo deva necessariamente ser
um ateu. Muitos filósofos do passado (e mesmo vários do presente) acreditam
em Deus e pertencem a diferentes religiões. Mas quando eles decidem discutir
a existência ou não de Deus, eles sabem que não podem simplesmente
postulá-la sem maiores problemas. Eles sabem que toda discussão é uma
disputa, uma busca da melhor explicação ou da solução de um certo problema.
Decidir discutir significa submeter-se ao tribunal final da razão, que não aceita
a mera crença incontestável como base de argumentação (cf. Scruton 1981,
pg. 14).

Tal problemática remete-nos à relação da filosofia com a religião. Sem


dúvida que há semelhanças entre o filósofo e o religioso. Ambos procuram
refletir sobre questões abstratas, ambos procuram explicações gerais, ambos
procuram um princípio ou um conjunto de princípios fundamentais a partir dos
quais podemos responder às questões mais importantes que nos afligem. mas
há pelo menos uma diferença essencial entre os dois: o religioso encontra o
seu princípio fundamental em algo que, em última instância, requer uma crença
não-justificável em um Ser Superior que explica tudo. O filósofo, por seu turno,
procura a verdade ou aquilo que pode ser estabelecido através de bases
racionais.

Isso nos conduz a uma outra característica importante da atividade


filosófica, a saber, a preocupação com a verdade. As questões filosóficas
podem muito bem ficar sem respostas, ou podem mesmo propiciar polêmicas
intermináveis (como geralmente ocorre). Mas elas são questões de qualquer
modo e requerem, por isso mesmo, uma avaliação das razões sugeridas e
propostas para que possamos caracterizá-las como verdadeiras ou falsas.
Afinal, a filosofia não pode ser um mero aglomerado de proposições retóricas,
sem qualquer pretensão de estabelecer princípios sólidos. Ela pode ser
definida como uma atividade a partir da qual se estudam métodos e metas das
nossas formas diferenciadas de reflexão, a fim de que possamos chegar a
conclusões sobre os seus limites e a sua validade. A pesquisa filosófica se dá
de uma maneira racional, quer dizer, sem qualquer remissão à fé, visando o
estabelecimento de respostas convincentes a questões as mais diversas que
fogem ao âmbito das ciências particulares, mas que são comumente trazidas à
luz por elas.

Muito bem. Já disse que a filosofia tem por função, entre outras coisas,
refletir sobre o refletir. Através do filosofar, podemos saber mais sobre a nossa
capacidade reflexiva. Por quê? Porque, em assim o fazendo, podemos exercer
o poder de reflexão mais amplamente, mais efetivamente e com mais precisão.
Mas por que é tão importante exercer a capacidade reflexiva? A resposta é
simples, mas essencial. Sem refletir, não poderíamos ser livres. Agir sem
refletir significa não ser dono das próprias ações, ou ser movido por causas
outras que não a nossa própria razão. Essa é a diferença entre nós e os robôs.
Eles não possuem poder de reflexão e por isso mesmo eles não podem
escolher por si mesmos o curso de ação que irão adotar. Do mesmo modo,
quando adotamos um certo curso de ação “sem refletir”, mecanicamente, a
gente se assemelha a um autômato, ou a um robô nas mãos do primeiro que
passa.

É neste momento que fica claro o porquê do filosofar. A ponte entre a


filosofia e as outras áreas não é imediata. Mas ela existe. Quando digo que
sem refletir seríamos apenas autômatos, eu quero dizer que a atividade
reflexiva é condição de possibilidade das decisões livres. Se assim é, então
filosofia tem a ver com liberdade. Explico melhor: se a atividade reflexiva leva-
nos a ser livres, e se a filosofia permite-nos usar essa capacidade reflexiva com
cada vez mais profundidade, então a filosofia pode ser vista como uma
ferramenta essencial para a nossa liberdade, levando-nos a pensar mais
claramente e, em consequência disso, a usar a capacidade de escolha em sua
plenitude. O exercício da filosofia é a expressão mais profunda e plena da
nossa liberdade. É a liberdade do pensar, do refletir, que nos leva a agir
livremente. O exercício da liberdade pressupõe que reflitamos sobre as nossas
vidas, as nossas ações, as pessoas que nos rodeiam, o país em que vivemos,
as regras da comunidade à qual pertencemos, e as informações (verdadeiros
ou falsas) que obtemos, etc.

Esse é um resultado fundamental. Se surgir então a pergunta sobre o


porquê de se estudar filosofia, independentemente dos interesses intelectuais
de cada um, essa é uma resposta possível. Além disso, a relação entre filosofia
e liberdade permite que a gente responda àqueles que dizem que o filósofo em
nada contribui para o desenvolvimento da humanidade ou para a mudança
(para melhor) da realidade. Se procurarmos mudar a realidade sem liberdade,
na verdade estaremos mudando algo não segundo a nossa vontade, mas
segundo a vontade dos outros.

Uma outra lição que se pode tirar da relação entre filosofia e liberdade é
que ela nos ajuda a compreender o porquê da insatisfação constante do
filósofo, aquela que Hume sente e que o leva a passear ao longo do rio e a
jogar gamão com os seus amigos. A insatisfação origina-se do fato de que a
atividade filosófica, assim como a atividade teórica em geral, não parece ter um
ponto final. Mas isso é exatamente o que a torna tão essencial à liberdade. O
trabalho filosófico em particular e o teórico em geral não têm fim. Conceber um
fim à atividade reflexiva é, de um certo modo, conceber o fim do exercício da
liberdade. A gente só pára de refletir sobre os princípios que atuam como
premissas de argumentos quando a gente se rende à superstição, à religião ou
ao totalitarismo.

Finalmente, pode-se dizer que a atividade reflexiva é autorreferente. Isso


quer dizer que, mesmo para combatê-la, a gente tem que adotá-la. Esse é o
erro de Sexto Empírico e de outros céticos que suspeitavam da atividade
especulativa. Eles só podem combater a especulação de modo persuasivo se
eles adotarem um procedimento especulativo. Eles só podem condenar uma
teoria adotando outra. O que resta então é adotar uma teoria que resista a
ataques, e que explique pelo menos alguns dos problemas que nos afligem.
Mas como descobrir essa teoria, que não é mágica, como queriam os
dogmáticos, mas que inevitavelmente se encontra na atividade intelectual,
como negavam os céticos? No caso da filosofia, a gente tem que filosofar
mesmo para negar a filosofia, como uma vez disse Aristóteles. A gente tem que
ser filósofo mesmo se a gente desejar jogar fora a filosofia.

Publicado no jornal A Notícia, em 16 de Maio de 1993


Disponível em: http://ead.ufsc.br/filosofia/a-natureza-da-atividade-filosofica/
(acesso em 09/03/2011)

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