Construções Dos Números Reais: Paula Cristina Reis Lopes
Construções Dos Números Reais: Paula Cristina Reis Lopes
Construções Dos Números Reais: Paula Cristina Reis Lopes
Construções dos
Números Reais
Paula Cristina Reis Lopes
Orientador:
Professor Doutor José Francisco da Silva C. Rodrigues
Funchal – Madeira
Junho de 2006
ii
Resumo
Neste trabalho estudamos várias construções do sistema dos números reais. Antes
porém, começamos por abordar a evolução do conceito de número, destacando três
diferentes aspectos da evolução do conceito de número real.
Relacionado com este tema, dedicamos dois capítulos, deste trabalho, à apresentação
das teorias que consideramos assumir maior importância, nomeadamente: a construção
do sistema dos números reais por cortes na recta ou secções no conjunto dos números
racionais, avançada por Dedekind, e a construção do número real como classe de
equivalência de sucessões fundamentais de números racionais, ideia protagonizada por
Cantor.
Posteriormente, e de uma forma mais sintetizada do que nas anteriores, apresentamos
outras construções, onde procuramos clarificar a ideia fundamental subjacente ao conceito
de número real. Finalmente utilizamos o método axiomático com o intuito de mostrar
a unicidade do sistema dos números reais, isto é, concluir finalmente que existe um corpo
completo e ordenado, e apenas um a menos de um isomorfismo, do conjunto dos números
reais.
Palavras Chave
Números Reais; Construção dos Números Irracionais; Aritmetização da Análise;
Axiomatização dos Reais; Didáctica dos Números Reais; História dos Números Reais.
iii
Abstract
In this work we study some constructions of the system of the real numbers. First,
we describe an approach to the evolution of the number concept, detaching three different
fields of the construction of the concept of real number.
Related with this subject, we dedicate two chapters, of this work, to the presentation
of the theories that we consider to be more important, namely: the construction of the
system of the real numbers with cuts in the line or sections in the set of the rational
numbers, due to Dedekind, and the construction of the real number as an equivalence
class of fundamental sequences of rational numbers, idea carried out by Cantor.
Later, and in a more condensate form, we present other constructions, where we try
to clarify the underlying basic idea of the concept of real number. Finally we describe
the axiomatic method and we show the uniqueness of the system of the real numbers,
that is, we conclude finally that there exists one complete and ordered field and, up to
isomorphism, only one, the set of the real numbers.
Key Words
Real Numbers; Construction of Irrational Numbers; Arithmetization of Analysis;
Axiomatization of Reals; Didactic of Real Numbers; History of Real Numbers.
v
Agradecimentos
Ao meu orientador, Professor Doutor José Francisco da Silva Costa Rodrigues, pelas
criteriosas sugestões e pistas, que foram fontes primárias, fundamentais na minha inves-
tigação.
À Universidade da Madeira, nomeadamente ao Departamento de Matemática e
Engenharias, pelas condições de trabalho que me proporcionou e pelo apoio logístico
prestado.
À minha amiga, Dr.a Sónia Correia Martins, pela ajuda, pelo empenho, pelo ânimo
que me transmitiu, pela amizade que perdura, um obrigado especial.
Aos colegas de Departamento de Matemática e Engenharias, em especial ao Dr. Jorge
Nélio Ferreira e ao Dr. Maurício Reis por me tirarem de apuros informáticos com simpatia
e disponibilidade.
À minha família, em especial, à minha mãe, Ana Azevedo, ao Duarte Azevedo e ao meu
marido, Hugo Pereira por tudo o que fizeram para que eu pudesse realizar um sonho, pela
paciência demonstrada, pelo apoio, tendo sempre palavras de amizade, ânimo e incentivo.
A todos os meus alunos pela compreensão e incentivo nos momentos em que o cansaço
era evidente.
Finalmente agradeço a todos os meus amigos, que apesar de não lhes ter dado a devida
atenção, continuaram presentes e com palavras amigas.
vii
viii
Índice
1 Introdução 1
1.1 Das Quantidades aos Números . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1.2 Aritmetização da Análise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
1.3 Axiomatização dos Reais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
ix
x
Introdução
Podemos, como é do conhecimento geral, afirmar que esta ideia de Pitágoras fracassou
devido à inviabilidade do pressuposto da comensurabilidade de todas as grandezas, isto é,
da possibilidade de se exprimirem as suas relações por meio de uma razão de inteiros, con-
duzindo ao absurdo de um mesmo número natural ser par e ímpar (para que a hipotenusa
do triângulo rectângulo isósceles se possa medir com um dos seus lados mediante um
número racional) (Veja-se, por exemplo, [35], pp. 34 - 35).
Movidos pela necessidade de estruturar uma Álgebra das grandezas os Gregos desen-
volveram a Teoria das Proporções ([2], p. 204) atribuída a Eudóxio (408 - 355 a.C.).
Se, por exemplo, no plano, G e G0 representam duas áreas e U a área limitada por um
quadrado, diz-se que a razão G/U das duas grandezas G e U é igual à razão G0 /U das
grandezas G0 e U:
1
2 Introdução
m · U = n · G implica m · U = n · G0
onde m · U , por exemplo, significa uma área constituída por m áreas iguais a U.
Por outro lado, diz-se que G/U > G0 /U se se encontrarem dois números m e n tais
que n · G > m · U e m · U > n · G0 .
G/U e G0 /U exprimem-se por ratios g e g 0 e as convenções de Eudóxio equivalem a
considerar g e g 0 como iguais sempre que dêem lugar à mesma repartição dos números
racionais em duas classes: a dos que são maiores que g (ou g0 ) e a dos que são menores
que g (ou g 0 ).
Como veremos mais à frente, esta caracterização dos números é semelhante à elaborada
posteriormente por Dedekind (1831 - 1916) onde está igualmente subjacente o conceito
de ordenação ([9], p. 12).
A Teoria de Eudóxio remonta ao século IV antes de Cristo e foram precisas algumas
centenas de anos para que o programa de Pitágoras, de aritmetização do contínuo, fosse
efectivamente cumprido.
Quando os Gregos consideravam, como grandeza a medir, o perímetro de uma cir-
cunferência, suponham intuitivamente que esse comprimento existia e que estava para
o diâmetro tal como a área do círculo estava para o quadrado do raio, no entanto, a
identificação desse número com o irracional π não estava ao alcance dos conhecimentos
matemáticos da época.
Nos primeiros passos da elaboração da ideia fundamental da Análise: a passagem ao
limite, é ainda significativo o papel da intuição geométrica. A ideia de que a circunferência
está compreendida entre duas sucessões de polígonos, uns inscritos outros circunscritos,
serviu para chegarmos a valores aproximados, do que a intuição indicava ser o compri-
mento da circunferência. No entanto, a afirmação de que este comprimento existe e se
exprime por um número, é o que só pode decorrer das condições de monotonia das referidas
sucessões para a existência de um limite comum.
Esta ideia implícita na condição suficiente de convergência, enunciada por Cauchy
(1789 - 1857) no século XIX, não pôde ser rigorosamente estabelecida antes das construções
Das Quantidades aos Números 3
lógicas dos números reais feitas por Georg Cantor (1845 - 1918), Charles Méray (1835 -
1911) e Richard Dedekind.
Se a Teoria das Proporções e o Método de Exaustão ([3], pp. 128 - 131) eram suficientes
para a resolução de problemas métricos na geometria antiga, a insuficiência da escala
numérica grega manifesta-se com a resolução das equações algébricas no século XVI e
com a Geometria Analítica, no século XVII.
Os números conhecidos até então, (os racionais e os irracionais obtidos por construções
geométricas) encarados como infinidade apenas numerável, não chegam para cobrir o
contínuo dos pontos do eixo dos xx. Assim, a intuição sugere que o número real é o
resultado da medida de qualquer segmento orientado, marcado a partir de uma origem de
coordenadas.
Assim sendo, a intuição do que possa ser a recta euclideana, está na base da análise
da variável real e dos seus desenvolvimentos nos séculos XVIII e XIX.
A necessidade de uma definição formal de número real levou vários matemáticos a pub-
licarem as suas teorias quase simultaneamente, embora elaboradas em épocas diferentes
e tendo sido igualmente diferentes as razões que os moveram a empreender semelhante
tarefa.
Durante a segunda metade do século XIX um crescente número de artigos e livros
foram publicados, dedicados a um único assunto: a definição precisa de número real e a
investigação de funções reais baseada nessa definição.
Podemos destacar três campos distintos de construção da definição de número real.
Hankel (1839 - 1873) e Frege (1848 - 1925) defenderam a ideia tradicional de que a
Análise deveria ser fundada na noção de quantidade contínua.
Dedekind, Weierstrass (1815 - 1897) e Cantor defenderam que a noção de quantidade
deveria ser substituída por uma rigorosa construção aritmética dos números reais, isto é,
uma construção baseada na noção de números naturais ou racionais, que assumiu-se ser
menos problemática do que a noção de quantidade contínua.
Heine (1821 - 1881), Thomae (1840 - 1921) e Hilbert (1862 - 1943) defenderam que os
conceitos fundamentais da Análise poderiam, e deveriam, ser construídos simplesmente de
uma maneira formal, desprezando, tanto quanto possível, os assuntos de ordem filosófica.
Hankel estudou com Riemann (1826 - 1866) bem como com Weierstrass e Kronecker
4 Introdução
(1823 - 1891). Em 1867 publicou o livro Theorie der Complexen Zahlensysteme, insbeson-
dere der gemeinen imaginären Zahlen und der Hamiltonschen Quaternionen onde tratou
um dos assuntos que caracterizou o fim da ciência da quantidade.
Para Hankel o número não é um objecto, é uma substância que existe "fora" do sujeito
e do objecto que lhe deu origem, é um princípio independente, tal como foi visto pelos
Pitagóricos.
Hankel introduziu uma distinção no que diz respeito ao conceito de número. Números
cuja noção está completamente determinada, mas que não são susceptíveis de serem con-
struídos intuitivamente devem ser denominados de números puramente intelectuais ou
puramente formais, em contraste com os números cuja representação pode ser encontrada
em quantidades reais (no sentido filosófico da palavra) e suas combinações.
De uma maneira formal, Hankel tomou os sistemas numéricos como sistemas de símbo-
los e operações (uma operação era vista como uma combinação de símbolos que produzia
outro símbolo do mesmo sistema). Exigiu também que todos os símbolos de um deter-
minado sistema pudessem ser obtidos de outros símbolos básicos (as "unidades") por
repetidas aplicações de operações, definindo assim o sistema, e o sistema como um todo
deveria ser fechado para estas operações.
Nesta altura, questionou-se sobre o facto de este sistema de números estar ou não
completo. A ideia por detrás desta questão é que podem existir outras operações, para
além das referidas, tal como a extracção de uma raiz quadrada de números positivos, para
as quais o sistema dos números reais seja necessário.
Hankel estava convencido de que a problemática dos números irracionais não poderia
estar formalmente resolvida, uma vez que, era impossível definir, de uma vez por todas,
todas as operações que podemos eventualmente admitir no domínio dos números reais.
A razão principal para Hankel acreditar que uma abordagem formal dos números reais
possuía limitações essenciais, foi a sua visão fundamentalmente construtivista do sistema
dos números formais. Apesar disso, ele não o colocou desta forma.
Aritmetização da Análise 5
Numa última análise, Hankel supôs que qualquer sistema deste tipo deveria ser ger-
ado a partir de um conjunto finito de símbolos básicos por uma sequência contável de
aplicações de operações definidas.
A noção de quantidade, por outro lado, foi levada para um domínio que englobava
outro tipo de infinidade, nomeadamente o contínuo intuitivo. Hankel defendeu que, apenas
utilizando a nossa intuição, era possível compreender o conceito de número real.
Apesar de continuar preso à ideia tradicional de quantidades contínuas faltou-lhe uma
noção formal da completude no domínio do número, tal como a proposta por Hilbert mais
tarde.
1
(i) Quaisquer n elementos da forma n
podem ser substituídos pela unidade
principal.
(ii) Qualquer elemento pode ser substituído pelas suas partes exactas, isto é,
1 por n · n1 ; 1
a
por b · 1
ab
, etc.
bolos tangíveis de números, tais que não poderá existir dúvida acerca da sua
existência. Estes símbolos necessitam estar equipados de um sistema que nos
permita definir as operações [uma aritmética]". (veja-se [20], p. 173 - cit. in
[13], p. 299)
A ideia matemática básica por detrás da visão de Heine, tomada de Cantor, foi con-
siderar sucessões de números racionais satisfazendo o que hoje é denominado de Critério
de Convergência de Cauchy ([38], p. 75).
A construção de Heine mostrou, mais uma vez, a tentativa de separar o conceito de
número real das ideias intuitivas sobre quantidade e, mais uma vez, assistiu-se à introdução
de conjuntos infinitos de racionais na sua definição.
A ênfase filosófica de Heine era contudo distinta da de Weierstrass. Ele procurou evitar
problemas filosóficos de uma forma surpreendentemente ingénua, encarando os números
como símbolos tangíveis sem estar consciente do quanto a sua ideia era vaga.
Frege criticou o trabalho de Heine questionando se deveríamos considerar as sucessões
infinitas, e se ainda seriam um símbolo tangível. Questionou, igualmente, se um número
irracional seria uma sucessão desse género ou uma classe de equivalência de uma dessas
sucessões.
Alguns anos antes, uma ideia similar à construção dos números reais de Cantor e
Heine, foi apresentada por Charles Méray, professor na Universidade de Dijon.
Se formos fiéis à cronologia dos acontecimentos, afirmamos que foi Méray o primeiro
matemático a publicar uma teoria dos números irracionais, no ano de 1869, no artigo
intitulado Remarques sur la nature des quantités définies par la condition de servir de
limites à des variables données ([29], pp. 280 - 289).
Segundo Méray, as definições existentes de números irracionais eram insatisfatórias,
consequentemente, sentiu necessidade de criar uma teoria de números irracionais.
Méray pretendeu com a sua obra edificar a Análise, fundamento de todas as matemáti-
cas, sobre bases sólidas, excluindo qualquer empréstimo que a Geometria pudesse fornecer
a algumas demonstrações.
Considerou os raciocínios empregues na análise das funções pouco claros e rigorosos,
ao contrário do que sucedia na Álgebra e na Geometria ([30], XI).
Méray defendeu, em todas as suas obras, que a possibilidade das funções poderem ser
10 Introdução
Introduzido por Joseph-Louis Lagrange (1736 - 1813) nos finais do século XVIII, na
perspectiva de algebrização da Análise, o desenvolvimento de funções em Séries de Taylor
foi pela primeira vez abordado por Méray em 1868, no seu artigo Remarques nouvelles
sur les points fondamentaux du calcul infinitésimal et sur la théorie de développement des
fonctions en séries ([28], pp. 133 - 138).
Foi por não concordar com as definições de número incomensurável, que tinha à dis-
posição, que sentiu a necessidade de elaborar uma teoria de números irracionais. O seu
descontentamento manifesta-se em relação a definições que recorrem ao conceito de limite,
uma vez que exigiam à priori a existência de um número incomensurável.
Méray afirma, na sua obra de 1869, que na época as proposições supra citadas eram
tomadas como axiomas apenas para escapar à introdução da noção de número incomen-
surável ([29], p. 280).
Assim, tendo em conta a natureza dos limites de sucessões de números racionais que
não admitem por limite nenhum racional, Méray formula o seu conceito de número irra-
cional e é à custa dessa definição que, no final das suas obras, apresenta o que considera
serem provas perfeitamente correctas de tão importantes resultados.
"A teoria dos números incomensuráveis (...) foi atribuída ao Sr. Heine pela sua
invenção, aos Sr. Lipschitz, de Bois-Reymond, G. Cantor pelas suas primeiras
aplicações mas três anos antes eu tinha exposto a mesma teoria na sua to-
talidade, depois de a ter comunicado ao Congresso, na Revue des Sociétés
Savantes." ([32], XXIII)
"Se todos os pontos numa linha recta caem em duas classes de tal forma
que todo o ponto da primeira classe está à esquerda de todo o ponto da se-
gunda, então existe um e um só ponto que produz esta decomposição de todos
os pontos em duas classes, esta divisão da linha recta em duas partes". ([9],
p. 11)
Na base da ordenação natural dos cortes, pode ser introduzida uma ordenação dos
números reais. Atendendo a esta ordenação, o conjunto dos números reais satisfaz a
denominada condição de corte, descrita pelo seguinte Teorema:
Aritmetização da Análise 13
O facto de que esta propriedade é válida para os números reais foi, para Dedekind,
a garantia para a estreita analogia entre esta criação matemática e a noção intuitiva de
quantidade contínua.
Ao conscienciosamente separar os conceitos de número real e quantidade contínua,
Dedekind tomou uma decisão diferente da tomada por Hankel. Enquanto Hankel viu a
continuidade do domínio dos números reais como uma razão para confiar na doutrina tradi-
cional da quantidade, Dedekind revolucionou a versão desta propriedade de continuidade,
transformando-a num elo de ligação entre a Geometria e a Aritmética dos números reais.
Até mesmo Weierstrass passou por cima deste ponto de uma forma engenhosa mas
pouco clara. Contudo, a escolha de Dedekind dos cortes como o aspecto característico do
contínuo foi, mais tarde, muito criticada.
Rodolf Lipschitz (1832 - 1903) e Heinrich Weber (1842 - 1913) foram os primeiros a
apontar críticas à teoria dos números irracionais de Dedekind, através de correspondências
que trocaram com o matemático.
Segundo Lipschitz, a teoria de Dedekind não possuía carácter inovador pois não diferia
da que havia sido elaborada pelos gregos nos Elementos, livro V, a partir da definição 5
([14], p. 114), acerca das grandezas incomensuráveis ([39], p. 116).
Sobre este assunto foram trocadas várias cartas entre os dois matemáticos, cada qual
defendendo o seu ponto de vista (veja-se, [39]).
Esta discussão foi iniciada por Lipschitz em 1876, mas na actualidade vários autores,
como por exemplo, Jean Louis Gardies (1925 - 2004), [16], Howard Stein (1911 - 1980),
[41], e Leo Corry, [8], continuam a debruçar-se sobre esta controvérsia.
Mas, em todo o caso, todas estas exposições parecem ir de encontro à ideia defendida
pelo próprio Dedekind:
"Sempre que um corte (A1 , A2 ) não seja produzido por nenhum número racional,
criamos um novo número, um número irracional α, que consideramos comple-
tamente definido por este corte (A1 , A2 ); diremos que o número α corresponde
a este corte, ou que produz este corte." ([9], p. 15)
Nesta definição parece claro, tal como para Weber, que o número irracional não é nada
mais do que o próprio corte, mas Dedekind em carta a Weber2 defende que um número
irracional não é um corte, é antes algo que corresponde ao corte. Afirma que o poder
criativo que atribui à mente humana é justificável pela semelhança de todos os números.
Justifica que existindo igualmente cortes produzidos por números racionais, não teria
sentido, nesse caso, afirmar que um número racional seria idêntico ao corte que produz.
Da mesma forma, não podemos dizer que um número irracional é um corte.
Dedekind estabeleceu uma correspondência entre cortes e números irracionais e com
ela não pretendeu identificar as duas entidades mas sim assegurar que ambas verificam as
mesmas propriedades.
Contudo, as palavras de Dedekind justificam o facto de não sabermos a entidade com
a qual identificar um número irracional.
Note-se que Dedekind já havia feito algo do género quando comparou os números
racionais com os pontos de uma linha recta.
Dedekind reconheceu que o facto de um número real ser definido por um corte acarreta
algumas desvantagens, quando pretendeu verificar quais as propriedades dos números
racionais que seriam válidas no conjunto dos números reais. Solucionou esta questão,
enunciando o seguinte teorema:
e, como já referimos, um grande esforço foi efectuado no sentido de ser apresentada uma
definição precisa de número real.
É evidente que o mais antigo sistema de axiomas conhecido é o de Euclides (300 a.C.),
respeitante ao estudo da Geometria. Contudo, são muitos os matemáticos que, ao longo
dos tempos, têm evidenciado que Euclides tomou como certas determinadas afirmações,
em algumas das suas demonstrações, que não se encontravam explicitamente mencionadas
na sua lista de axiomas e postulados.
Com os desenvolvimentos da Geometria não Euclideana os matemáticos reexaminaram
a natureza dos vários axiomas e procuraram colocar a Geometria de Euclides sob uma
base sólida e consistente.
A tentativa mais bem sucedida de construir um sistema de axiomas para o qual a
Geometria Euclideana pudesse ser derivada, foi levada a cabo por David Hilbert.
Em 1899 Hilbert publicou a obra Grundlagen der Geometrie, que consistia essencial-
mente numa compilação das suas lições sobre Geometria Euclideana, apresentadas na
Universidade de Göttingen.
O objectivo do seu trabalho consistia numa
"tentativa para dar o enunciado dum sistema de axiomas completo e tão sim-
ples quanto possível para a geometria, e deduzir dele os teoremas geométricos
mais importantes de tal modo que fique também claramente em evidência o
significado dos diferentes grupos de axiomas e a projecção de cada um dos
axiomas nas consequências que deles depois se tiram." ([21], p. xvii)
vez disso, proponha aos seus leitores que imaginassem um sistema de entes em que todas
as propriedades (dos números racionais) eram satisfeitas, embora Hilbert nunca tenha
conseguido provar a existência desse sistema.
A ideia de Hilbert consistia em começar com três termos indefinidos: ponto, linha e
plano, e definir as relações existentes entre eles por meio de axiomas. Segundo Hilbert,
eram os próprios axiomas que definiam estas relações e não necessitaríamos de qualquer
tipo de intuição geométrica para levar a cabo a demonstração de um resultado.
Com efeito, Hilbert defendia que as três noções iniciais poderiam ser substituídas por
quaisquer outras, desde que satisfizessem os axiomas.
A sua ideia de um sistema de axiomas era distinta das elaboradas por Euclides, e
Aristóteles (384 - 322 a.C.). Os Gregos estipularam como verdadeiras certas afirmações
que já as tinham intuitivamente compreendido, enquanto que Hilbert, por outro lado,
delegou para o abstracto as propriedades desejadas, independentemente de qualquer in-
terpretação concreta.
O último grupo de axiomas contém dois que caracterizam a ideia básica de con-
tinuidade. O primeiro consiste no Axioma de Arquimedes, que estipula que dado um
qualquer segmento de recta e uma qualquer unidade de medida, existe um inteiro n tal
que n unidades de medida conduz a um segmento de recta maior que o segmento dado.
Uma das consequências deste axioma, quando adicionado aos estipulados anteriormente,
é que não existe limitação para o comprimento de uma linha recta.
O último axioma de Hilbert afirma que os pontos de uma recta estão em correspondên-
cia biunívoca com o conjunto dos números reais. Por outras palavras, não existem buracos
18 Introdução
A sua ideia, à semelhança de outros matemáticos, ao mostrar que a Geometria não Eu-
clideana não possuía contradições, era a de construir uma Geometria usando unicamente
operações aritméticas, que satisfizesse os diferentes grupos de axiomas.
cialmente com o reforço da ideia de que qualquer espaço matemático deverá ter por base
determinados termos não definidos e um conjunto de axiomas especificando as relações
existentes entre eles.
Assim verificamos que apesar de inicialmente o trabalho de Hilbert consistir numa
tentativa de desenvolver um tratamento completo e consistente dos axiomas da geometria,
ao longo das várias edições, procurou sintetizar estes axiomas no contexto da análise dos
números reais, a qual explicaremos no último capítulo deste trabalho.
Notemos que foram vários os sistemas de axiomas desenvolvidos com o intuito de
fundamentar várias áreas da matemática. O trabalho de Hilbert constitui um culminar
desse processo na medida em que conseguiu justificar as ideias transmitidas pelo modelo
dos elementos de Euclides, fazendo com que este continuasse a ser o modelo matemático
adoptado e, uma possível confirmação disso é que, um século mais tarde as suas ideias
ainda continuam a ser válidas.
20 Introdução
Capítulo 2
Neste Capítulo será elaborada uma construção do Conjunto dos Números Reais,
partindo do Conjunto dos Números Racionais, e tendo por base a noção de corte ou
secção utilizada, pela primeira vez, por Richard Dedekind, aquando da sua Construção
dos Números Reais publicada em 1872.
Passado mais de um século, e com a Teoria dos Conjuntos aceite na matemática,
tentamos manter, neste Capítulo, o estilo original de Dedekind e a nossa exposição da sua
teoria não difere muito da apresentada pelo autor .
Apesar de Dedekind não ter enunciado os Teoremas, Definições e Propriedades como
tal, optamos pelo uso dessa terminologia, para uma melhor interpretação da sua obra e
para podermos alcançar o objectivo deste Capítulo: mostrar que o conjunto construído
por Dedekind é um Corpo Ordenado Completo.
Tendo em conta que Dedekind pretendeu criar uma base aritmética sólida para o Con-
junto dos Números Reais, a primeira secção - Properties of Rational Numbers da sua obra
Essays on the theory of numbers, [9], é relativa à reformulação em termos aritméticos das
propriedades do conjunto que constitui a base da sua construção: o Corpo dos Números
Racionais, que denota por R, mas que aqui denotaremos por Q. Assim, inicia a sua
construção com três propriedades dos números racionais e com as correspondentes pro-
21
22 Construção dos números reais utilizando a Noção de Corte ou Secção
priedades para pontos numa linha recta e é a partir dessa correspondência que Dedekind
reflecte sobre a incompletude do Conjunto dos Números Racionais, ampliando este con-
junto com a criação de novos números com o objectivo de que este adquira a mesma
completude que uma linha.
Tendo por base a definição de corte ou secção, e demonstrando que nem todos os
cortes são produzidos por Números Racionais, Dedekind constrói um novo conjunto, o
Conjunto dos Números Reais, formado por todos os cortes.
As operações entre cortes não foram explicitadas na sua obra, à excepção da soma, no
entanto, autores posteriores ampliaram o trabalho levado a cabo por Dedekind, apresen-
tando toda a Aritmética do Conjunto dos Números Reais.
Em 1930 Edmund Landau (1877 - 1938) apresenta na sua obra Foundations of Analysis,
uma construção do Conjunto dos Números Reais igualmente baseada na noção de corte
ou secção partindo, não do Conjunto de Números Racionais como Dedekind, mas do
Conjunto dos Números Naturais utilizando a Axiomática de Peano.
Edmund Landau assume na obra supra citada a influência do trabalho de Dedekind
dedicando inclusivamente a secção 5 do Capítulo IV ao que denominou de Teorema Fun-
damental de Dedekind.
Contudo, a identificação corrente de que este sistema de números constitui um Corpo
Ordenado Completo só se tornou mais tarde usual nos livros de texto de análise e cálculo,
como por exemplo, no livro de texto de Michael Spivak em 1967.
Assim, tendo por base o livro de Spivak vamos mostrar que o Conjunto dos Números
Reais, construído usando a noção de corte ou secção, é um Corpo Ordenado Completo.
Propriedade 2.1.1 "(I) Se a > b, e b > c então a > c. Sempre que a, c são dois números
diferentes (ou desiguais), e b é maior do que um e menor do que o outro, iremos, sem
hesitação devido à sugestão das ideias geométricas, expressar brevemente este aspecto
afirmando: b está entre os dois números a, c.
(II) Se a, c são dois números diferentes, existem infinitos números diferentes entre a,
c.
(III) Se a é um número qualquer, então todos os números do sistema Q caem em
duas classes, A1 e A2 , cada uma delas contendo infinitos elementos; a primeira classe A1
compreende todos os números a1 que são < a, a segunda classe A2 compreende todos os
números a2 que são > a; o próprio número a poderá pertencer à primeira ou à segunda
classe, sendo respectivamente o maior número da primeira classe ou o menor número da
segunda. Em qualquer um dos casos a separação do sistema Q nas duas classes A1 , A2 é
tal que todo o número da primeira classe A1 é menor do que todo o número da segunda
classe A2 ." ([9], p. 6)
Considerando p e q como dois pontos diferentes numa linha recta L, e distinguindo por
direita e esquerda as duas posições opostas de quaisquer dois pontos numa linha recta,
Dedekind estipulou as propriedades anteriormente citadas para os números racionais, no
que diz respeito a pontos sobre uma linha recta.
(II) Se p, r são dois pontos distintos, então existe uma infinidade de pontos situados
entre p e r.
(III) Se p é um ponto definido em L, então todos os pontos em L pertencem a duas
classes, P1 , P2 cada qual contendo infinitos elementos; a primeira classe P1 contém todos
os pontos p1 , que estão à esquerda de p, e a segunda classe P2 contém todos os pontos
p2 , que estão à direita de p; o próprio ponto p poderá pertencer à primeira ou à segunda
classe. Em qualquer um dos casos a separação da linha recta L nas duas classes ou porções
P1 , P2 é tal que todo o ponto da primeira classe P1 está à esquerda de todo o ponto da
segunda classe P2 ." ([9], p. 7)
A analogia entre os números racionais e os pontos de uma linha recta L, torna-se uma
verdadeira correspondência quando, sobre a linha, seleccionamos um ponto que podemos
denominar de origem, o, e uma determinada unidade de comprimento, com o intuito de
medir os seus segmentos. Assim, para todo o número racional a poderá ser construído
o correspondente comprimento e se, por outro lado, deslocarmo-nos na linha recta, para
a direita ou esquerda de o, conforme a é positivo ou negativo, obtemos um determinado
ponto p, o qual será denominado de ponto correspondente ao número racional a.
Atendendo ao facto que foi estabelecida correspondência entre o número racional zero
e o ponto o, podemos afirmar que para todo o número racional a, isto é, para todo o
elemento em Q, corresponde um e um só ponto p, isto é, um elemento de L.
A dois números a, b corresponde, respectivamente, dois pontos p, q e, obviamente,
se a > b, então p está situado à direita de q. Assim, as propriedades citadas anterior-
mente, (I), (II) e (III), respeitantes a números racionais, correspondem completamente
às propriedades (I), (II) e (III), respeitantes a pontos numa linha recta.
"... nós atribuímos à recta a qualidade de ser completa, sem lacunas, ou seja,
contínua. Mas esta continuidade, em que consiste? Tudo deve depender na
resposta a esta questão, e somente através dela obteremos uma base científica
para a investigação de todos os domínios contínuos." ([9], p. 10)
"Se todos os pontos da linha recta pertencerem a duas classes tal que todo
o ponto da primeira classe está à esquerda de todo o ponto da segunda classe,
então existe um e um só ponto que produz esta divisão de todos os pontos em
duas classes, separando a linha recta em duas porções". ([9], p. 11)
Dedekind acreditava não errar, ao admitir que a exactidão do princípio enunciado seria
imediatamente aceite por todos. No entanto, afirmou que a maior parte dos seus leitores
teriam uma grande desilusão ao tomar conta de que foi esta banalidade que revelou todo
o mistério da continuidade.
A este propósito observou que cada um deveria considerar o princípio enunciado tão
evidente e tão concordante com a sua própria representação da recta, pois considerava
que, nem ele, nem ninguém conseguiria dar a este princípio uma qualquer demonstração.
Dedekind considerou que a propriedade da recta, expressa por este princípio, não era
mais do que um axioma, e é sob a forma deste axioma que pensou a continuidade da
recta.
Não existe, por parte de Dedekind, referência à demonstração da unicidade do ponto
determinado pelo axioma, no entanto, esta é feita por redução ao absurdo com base nas
alíneas (II) e (III) da Propriedade 2.1.2, como se mostra de seguida.
Suponhamos que p e p0 são dois pontos distintos que produzem a divisão da recta em
duas classes L1 e L2 , de modo que todo o ponto de L1 está à esquerda de todo o ponto
de L2 , e consideremos, sem perda de generalidade, que p está à esquerda de p0 . Pela
alínea (II), da propriedade 2.1.2, existem infinitos pontos p00 compreendidos entre p e p0 ,
e como cada um destes pontos p00 está situado à direita de p e à esquerda de p0 , podemos
afirmar, invocando a alínea (III), que p00 é, respectivamente um ponto de L2 e de L1 .
Assim, obtemos um absurdo, visto que pelo princípio da continuidade da linha recta, a
construção das classes L1 e L2 é feita supondo que todo o ponto de L1 se situa à esquerda
de todo o ponto de L2 .
Com o intuito de tornar esta construção mais clara, reservaremos o termo corte para
nos referirmos à divisão da recta em duas classes e utilizaremos o termo secção quando
nos referimos à separação do conjunto Q, dos números racionais.
Nem todas as secções são produzidas por números racionais. Com efeito, Dedekind
provou, do seguinte modo, que existem infinitas secções que não são produzidas por
números racionais.
Sendo d um inteiro positivo, diferente de um quadrado perfeito, então existe um inteiro
positivo p, tal que:
p2 < d < (p + 1)2 .
podemos supor que u é o menor número inteiro positivo possuindo a propriedade de que
o seu quadrado, multiplicado por d, pode ser convertido no quadrado de um determinado
inteiro t.
Uma vez que, evidentemente, pu < t < (p + 1) u, o número u0 = t − pu é um inteiro
positivo certamente menor do que u.
Se considerarmos t0 = du − pt, t0 é, do mesmo modo, um inteiro positivo e temos
¡ ¢¡ ¢
t02 − du02 = p2 − d t2 − du2 = 0
O facto do conjunto A ser considerado na definição como sendo α, indica uma pre-
ocupação conceptual e notacional.
Assim, analogamente à concepção tomada por Dedekind, um número real é, por
definição, um conjunto de números racionais. O que significa, em particular, que um
número racional (um elemento de Q) não é um número real, no entanto todo o número
racional x possui um correspondente número real, nomeadamente {y ∈ Q : y < x}.
Continuidade do Domínio dos Números Reais 31
Spivak ([40], p. 495) afirma que após completar a construção dos números reais,
podemos mentalmente excluir os elementos de Q e assumir que Q irá, a partir de agora,
denotar estes conjuntos em especial.
A partir de agora, será necessário trabalhar simultaneamente com números racionais,
números reais (conjuntos de números racionais) e até com conjuntos de números reais
(conjuntos de conjuntos de números racionais). Alguma confusão é talvez inevitável mas
uma notação própria deverá minimizar este facto.
Com vista a obter uma base para a ordenação de todos os números reais, isto é, de
todos os números racionais e irracionais, é necessário estabelecer a relação entre quaisquer
duas secções (A1 , A2 ) e (B1 , B2 ), produzidas por dois quaisquer números α e β. Estas
relações entre secções, estabelecidas por Dedekind, serão tratadas, comparativamente com
uma outra interpretação do conceito de secção.
b de todos os números reais,
Em consequência das distinções estabelecidas, o sistema R,
segundo Dedekind, forma um domínio bem ordenado de uma dimensão, o que significa
que as seguintes propriedades, são verificadas:
Propriedade 2.4.1 "(I) Se α > β, e β > γ, então temos α > γ. Diremos que o número
β está entre α e γ.
(II) Se α, γ são dois quaisquer números distintos, então existem infinitos números
distintos β que estão entre α, γ.
b pertencem a
(III) Se α é um número qualquer então todos os números do sistema R
duas classes U1 e U2 cada qual contendo infinitos elementos; a primeira classe U1 com-
preende todos os números α1 menores que α, a segunda U2 compreende todos os números
α2 maiores do que α; o próprio número α pode pertencer à primeira ou à segunda classe, e
é respectivamente o maior elemento da primeira ou o menor elemento da segunda classe.
b em duas classes U1 , U2 é tal que todo
Em qualquer um dos casos a separação do sistema R
o número da primeira classe U1 é menor do que todo o número da segunda classe U2 e
dizemos que esta separação é produzida pelo número α." ([9], p. 19)
32 Construção dos números reais utilizando a Noção de Corte ou Secção
racionais, bem como as duas classes de qualquer secção são intervalos. Se existe um
número racional a1 que é menor e um número racional a2 que é maior do que qualquer
número de um intervalo A, então A é denominado de intervalo finito; então existem in-
finitos números na mesma condição que a1 e infinitos números na mesma condição que
a2 ; todo o domínio Q é assim dividido em três partes A1 , A, A2 e existem dois números
racionais ou irracionais perfeitamente definidos α1 , α2 , que podem ser denominados re-
spectivamente de limites inferior ou superior (ou menor e maior) do intervalo; o limite
inferior α1 é determinado pela secção pela qual o sistema A1 forma a primeira classe e
o superior α2 pela secção pelo qual o sistema A2 forma a segunda classe. Para todo o
número racional ou irracional α entre α1 e α2 , pode ser dito que está dentro do intervalo
A. Se todos os números de um intervalo A são igualmente números de um intervalo B,
então A diz-se parcela de B." ([9], p. 22)
Teorema 2.5.1 "Se o número λ é o resultado de uma operação entre os números α, β, γ, ...
e λ pertence ao intervalo L, então os intervalos A, B, C, ... podem ser tomados de forma
que incluam α, β, γ, ... de modo que substituindo os números α, β, γ, ... por números ar-
bitrários de A, B, C, ... o resultado da operação aplicada a estes novos números é sempre
um número do intervalo L." ([9], p. 23)
AA = 10 ,
a
A= ,
b
b < a < 10 b.
Seja a − b = c. Então
b + c = a < 10 b = b + b
c < b.
= (mm + 10 (mn)) + nn
donde, tomando
b−c=d
Operações com Números Reais 37
então
= (bb + (10 c) (c + d)) + (cc + dd) = (bb + 10 (cc)) + ((10 (cd) + cc) + dd) =
= aa + 10 (cc)
logo
dd = 10 (cc)
d d
· = 10 .
c c
o que contradiz
c < b.
Definição 2.5.3 "Os cortes serão, a partir de agora, denominados "Números Positivos".
Da mesma forma, o que temos chamado "números racionais" e "inteiros" serão, daqui
para a frente, denominados "números racionais positivos" e "inteiros positivos", respec-
tivamente.
Criamos um novo número 0 (lê-se "zero"), distinto dos números positivos.
Também criamos números que são, igualmente, distintos dos números positivos e do
zero, que serão denominados de números negativos, de maneira que para cada A (i.e.,
para cada número positivo) associamos um número negativo denotado por −A ( − lê-se
"menos").
Nesta definição −A e −B serão considerados o mesmo número (considerados iguais)
se e só se A e B são o mesmo número.
O conjunto constituído por todos os números positivos, pelo zero e por todos os números
negativos, será denominado de números reais." ([25], p. 69)
Teorema 2.5.3 "Consideremos uma qualquer divisão de todos os números reais em duas
classes com as seguintes propriedades:
1) Existe um número na primeira classe e um número na segunda classe;
2) Todo o número da primeira classe é menor que todo o número da segunda classe.
Então existe exactamente um número real α tal que todo β < α pertence à primeira
classe e todo o β > α pertence à segunda classe.
Por outras palavras, todo o número da primeira classe é ≤ α e todo o número da
segunda classe é ≥ α.
Observação Preliminar: É óbvio que, inversamente, todo o número real α origina
exactamente duas destas divisões. Uma delas possui como primeira classe todos β ≤ α
e como segunda classe todos β > α, a outra possui como primeira classe todos β < α e
como segunda classe todos β ≥ α." ([25], p. 89)
Com o intuito de provar que o Conjunto dos Números Reais constitui um Corpo
Ordenado e Completo e tendo por base a Definição 2.3.2, apresentamos, de seguida, a
Aritmética subjacente a este conjunto que nos conduzirá a esse propósito.
A razão por começarmos com a definição de < deve-se à simplicidade deste conceito,
como de seguida apresentamos.
Definição 2.5.4 Se α e β são números reais, então α < β significa que α está contido
em β, isto é, todo o elemento de α é também um elemento de β, mas α 6= β.
A repetição das definições de ≤, >, ≥ é aqui supérfluo, mas é interessante notar que
≤ pode agora ser mais simplesmente expresso do que <, pois se α e β são números reais,
então α ≤ β se e só se α está contido em β.
(α u β) u γ = α u (β u γ) .
α u β = β u α.
40 Construção dos números reais utilizando a Noção de Corte ou Secção
Demonstração. (1) Suponhamos que x está em −α e que y < x. Então −y > −x.
Uma vez que −x não está em α, é igualmente verdade que, −y não está em α. Além
disso, é claro que −y não é o mínimo de Q − α, uma vez que, −x é um elemento mais
pequeno. Isto mostra que, y está em −α.
(2) Uma vez que α 6= Q, existe algum número racional y que não está em α. Podemos
supor que y não é o menor número racional em Q − α (uma vez que y pode sempre ser
substituído por qualquer y 0 > y). Então −y está em −α e assim −α 6= ∅.
(3) Uma vez que α 6= ∅, então existe algum x em α. Então, −x não poderá estar em
−α, logo −α 6= Q.
(4) Se x está em −α, então −x não está em α e existe um número racional y < −x
que também não está em α.
Consideremos z um número racional tal que y < z < −x. Então z também não está
em α e z não é claramente o mínimo de Q − α, então, −z está em −α. Como −z > x
então −α não possui máximo.
Operações com Números Reais 41
Lema 2.5.1 Seja α um número real e z um número racional positivo então, existem
números racionais x em α e y não pertencente a α, tais que y − x = z. Além disso,
podemos supor que y não é mínimo de Q − α.
Definição 2.5.7
n o
b:α>0 .
P= α∈R
Teorema 2.5.10 Se α é um número real, então uma e uma só das seguintes condições é
verdadeira:
(i) α = 0.
(ii) α ∈ P.
(iii) −α ∈ P.
αuγ =βuγ
Operações com Números Reais 43
então
α = (α u γ) u (−γ) = (β u γ) u (−γ) = β,
wz wxy ³ w ´
w= = = · x · y.
z z z
w
¡ ¢
Uma vez que 0 < w < z, temos z
< 1, logo wz · x está em α. Assim w está em α • β.
(2) Claramente α • β 6= ∅.
(3) Se x não está em α e y não está em β, então x > x0 para todo x0 em α, e y > y 0
para todo y 0 em β, uma vez que xy > x0 y 0 para todos os positivos x0 e y 0 . Logo xy não
está em α • β, assim α • β 6= Q.
(4) Suponhamos w em α • β e w ≤ 0. Existe algum x em α com x > 0 e algum y em
β com y > 0, então z = xy está em α • β e z > w.
Suponhamos agora w > 0. Então w = xy para algum x positivo em α e algum y
positivo em β. Além disso, α contém algum x0 > x. Se z = x0 y, então z > xy = w, e z
está em α • β. Assim α • β não possui máximo.
Notemos que α•β está claramente em P se α e β estiverem. Para completar a definição
de • devemos definir |α|.
44 Construção dos números reais utilizando a Noção de Corte ou Secção
α • (β • γ) = (α • β) • γ.
α • β = β • α.
Definição 2.5.11
1 = {x ∈ Q : x < 1} .
Lema 2.5.2 Seja α um número real com α > 0, e z um número racional com z > 1.
y
Então, existem números racionais x em α e y não pertencente a α, tais que x
= z. Além
disso, podemos supor que y não é o mínimo de Q − α.
z n = (1 + (z − 1))n ≥ 1 + n (z − 1) ,
resulta que os números z, z 2 , z 3 , ... não podem estar todos em α. Então, existe algum k
y
tal que x = z k está em α, e y = z k+1 não está em α. Claramente, x
= z. Além disso, se
46 Construção dos números reais utilizando a Noção de Corte ou Secção
α • (β u γ) = α • β u α • γ.
logo
α • (β u γ) = − (α • |β|) u α • γ = α • β u α • γ.
(2) β u γ ≤ 0. Então
α • |β| = α • (|β u γ| u γ) = α • |β u γ| u α • γ,
logo
α • (β u γ) = − (α • |β u γ|) = − (α • |β|) u α • γ = α • β u α • γ.
se poderiam demonstrar proposições tais como a proposição que diz que todo o elemento
positivo do sistema possui raiz quadrada.
Esta forma de completude para as operações aritméticas pode ser descrita pela afir-
mação de que o sistema deve ser fechado para as operações aritméticas que satisfazem as
leis da Álgebra Elementar. Além disso, o sistema deve ser completo no que diz respeito
aos limites, isto é, toda a sucessão convergente de seus elementos deve possuir um limite.
Nesta secção vamos mostrar que o conjunto dos números reais construídos, à maneira
de Dedekind, isto é, através de secções no conjunto dos números racionais ou cortes na
recta, constituem um Corpo Ordenado e Completo.
O conjunto dos números reais assim definido constitui um Corpo, uma vez que, atende
b e as operações
à definição geral, se considerarmos F o conjunto dos números reais, R,
binárias, u e •, as operações usuais + e ·.
com as Definições 2.5.6 e 2.5.12. Por esta razão, num Corpo F , arbitrário, denotamos por
−a o elemento tal que a u (−a) = 0, e por a−1 o elemento tal que a • a−1 = 1, para a 6= 0.
Analogamente, e continuando a utilizar teoremas anteriormente provados, podemos
afirmar que o conjunto dos números reais é ordenado pois:
51
52 Construção dos Números Reais utilizando Classes de Equivalência
O conjunto dos números reais correspondia então ao conjunto das classes de equiv-
alência de sucessões fundamentais. Não foi difícil definir uma relação de ordem nestas
sucessões, bem como estabelecer as operações aritméticas básicas.
Contudo, Cantor pretendia mostrar que o conjunto por si definido era, de algum
modo, o mesmo que a recta numérica. Estava claro para Cantor que todo o ponto da
recta correspondia a uma sucessão fundamental, contudo, deu-se de conta que o inverso
requeria um axioma, nomeadamente, que para todo o número real (classe de equivalência
de uma sucessão fundamental) correspondia um ponto definido na recta.
Ao utilizar esta identificação dos números reais com os pontos na recta, Cantor definiu
ponto limite (hoje denominado como ponto de acumulação) de um conjunto de pontos P ,
como sendo um ponto da linha tal que em toda a sua vizinhança poderíamos encontrar
infinitos pontos de P .
Cantor definiu vizinhança de um ponto como sendo todo o intervalo que contém o
respectivo ponto no seu interior.
Cantor denotou o conjunto destes pontos limites por P 0 , denominando este conjunto
de primeiro conjunto derivado de P . Similarmente, se P 0 é infinito, Cantor definiu o
segundo conjunto derivado P 00 como o conjunto dos pontos limites de P 0 . Se P 0 é finito,
o conjunto dos seus pontos limites é vazio. Continuando desta forma, definiu conjuntos
derivados de qualquer ordem finita.
Definição 3.2.1 Diz-se que a sucessão {rn } é uma sucessão de Cauchy, ou uma sucessão
normal, ou uma sucessão fundamental, o que se nota simbolicamente C {rn }, quando essa
sucessão satisfaz a condição, chamada de Cauchy:
isto é, para todo o δ racional positivo, existe uma ordem N, tal que todos os elementos rn+p
de ordem superior à de um elemento rn , de ordem n > N, se encontram na vizinhança
racional ]rn − δ, rn + δ[ de rn .
e
r − δ 1 < rn+p < r + δ 1 , se n > N e p > 0.
1
A propriedade arquimediana estabelece que qualquer número real, ou é menor que 1 ou é menor que
a soma de um número N de parcelas iguais a 1.
54 Construção dos Números Reais utilizando Classes de Equivalência
ou
rn − rn+p < r + δ 1 − (r − δ 1 ) = δ 1 + δ 1 < δ 1 + δ2 = δ
donde
rn+p > rn − δ, se n > N e p > 0.
ou
rn+p − rn < r + δ 1 − (r − δ 1 ) = δ 1 + δ 1 < δ 1 + δ2 = δ
donde
rn+p < rn + δ, se n > N e p > 0
o que acaba de provar que a condição de Cauchy é uma condição necessária de con-
vergência, graças às características da ordenação densa do grupo dos números racionais.
Uma vez demonstrado que todas as sucessões convergentes de números racionais são
sucessões de Cauchy, deparamo-nos com a impossibilidade, no domínio dos números
racionais, de fazer corresponder a cada sucessão de Cauchy um número racional, que
seja o seu limite.
No domínio da Análise Clássica interessa que a variável, com que trabalhamos, pertença
a um conjunto onde todas as sucessões de Cauchy tenham limite. Atendendo a isso, a
ideia utilizada por Cantor, para a edificação do conjunto dos números reais, foi a de fazer
corresponder, a cada sucessão de Cauchy de números racionais, um número real.
Atendendo que, se {rn } converge para r e {un } converge para zero, r é também o limite
de {rn + un } , então a um número racional pode-se fazer corresponder infinitas sucessões
de números racionais, que para ele convergem, o que nos mostra que a correspondência
sucessão - número não é biunívoca.
Número Real como Limite de uma Sucessão de Cauchy 55
Esta situação pode ser ultrapassada, pela utilização de um conjunto, onde cada ele-
mento corresponde a um conjunto de elementos equivalentes.
Comecemos então por definir uma condição de equivalência de sucessões de Cauchy.
(2) Simetria:
(3) Transitividade:
porque
lim (rn − rn00 ) = lim [(rn − rn0 ) + (rn0 − rn00 )] = lim (rn − rn0 ) + lim (rn0 − rn00 ) = 0.
n n
Podemos distinguir dois tipos de elementos de R: os que são constituídos por sucessões
de Cauchy convergentes no domínio dos números racionais, e os que são constituídos por
sucessões de Cauchy não convergentes.
A cada um dos elementos do primeiro tipo, corresponde biunivocamente um número
racional, isto é, o elemento constituído pelo conjunto das sucessões que convergem para
m m
um número racional n
corresponderá ao número racional n
.
Respeitando a nomenclatura utilizada por Neves Real, em [38], designaremos por [rn ]
o número real constituído pelo conjunto de todas as sucessões equivalentes à sucessão {rn }
e a sucessão {rn } ou outra qualquer {rn0 } que lhe seja equivalente, diremos representante
do número real [rn ].
Se a sucessão {rn } tem limite no domínio Q, dos números racionais, e se esse limite é
r, o número real [rn ], será representado por [r], uma vez que a sucessão {r}, com todos
elementos iguais ao número racional r, tem como limite r e é uma sucessão que pode ser
utilizada para representar [rn ], pois é equivalente a {rn }.
Assim, podemos denominar de [0] o número real que corresponde ao conjunto de todas
as sucessões de números racionais que convergem para o número racional 0. Da mesma
forma, [1] o número real que corresponde ao conjunto de todas as sucessões de números
racionais que convergem para o número racional 1, e assim sucessivamente.
Assim, quando não necessitarmos utilizar sucessões representativas dos números reais
utilizaremos as letras minúsculas gregas.
Definição 3.3.2 Diz-se que a sucessão de números racionais {rn }, satisfazendo a condição
de Cauchy, goza da propriedade N , que se simboliza por N {rn }, quando for possível deter-
minar um número racional positivo d, de modo que quase todos os elementos da sucessão
{rn } sejam menores que −d, querendo significar-se com a expressão "quase todos", todos
os elementos rn , com excepção de um número finito. Simbolicamente:
Gozam desta propriedade N , todas as sucessões que convergem para números racionais
negativos.
Teorema 3.3.1 Se a sucessão de Cauchy de números racionais {rn } não converge para
0, então {rn } possui ou a propriedade P ou a propriedade N , uma com exclusão da outra,
o que se simboliza por:
Mas
(2) N {rn } ⇐⇒ (∃d0 > 0 ∃N 0 : ∀n > N 0 =⇒ rn < −d0 )
e
P {rn } ⇐⇒ (∃d00 > 0 ∃N 00 : ∀n > N 00 =⇒ rn > d00 )
donde
¬N {rn } ⇐⇒ ∀d, n ∃Nn0 > n : rNn0 ≥ −d
58 Construção dos Números Reais utilizando Classes de Equivalência
De modo que a primeira conjunção de (1), N {rn } ∧ P {rn }, implicaria, para n maior do
que o supremo de N 0 e N 00 (o maior dos números N 0 , N 00 ), −d0 > rn > d00 , o que, pela
ordenação dos números racionais é absurdo.
Vejamos agora que a segunda conjunção de (1), ¬P {rn } ∧ ¬N {rn }, contradiz as duas
hipóteses feitas, a de se tratar de uma sucessão de Cauchy e a de não convergir para 0.
Escrevamos a condição de Cauchy:
e sejam rNN0 e rNN00 os dois elementos da sucessão que as proposições de (3), uma vez
arbitrado d, fazem corresponder ao índice N, dado por (4), em função de d. Será então
(5) rNN0 ≥ −d, com NN0 > N e rNN00 ≤ d, com NN00 > N
e (4) implicará
rNN0 +p < rNN0 + d, para p > 0 e NN0 > N
e
rNN00 − d < rNN00 +p , com p > 0 e NN00 > N
e por (5)
−2d < rn < 2d
o que significa que {rn } é uma sucessão de limite 0, contrariando uma das hipóteses.
Definição 3.3.3 O número real α = [an ] diz-se positivo ou maior do que [0], ou ainda
[0] menor do que [an ] se a sucessão {an } admite a propriedade P. Simbolicamente:
O número real α0 = [a0n ] diz-se negativo ou menor do que [0], ou ainda [0] maior do
que [a0n ] se a sucessão representante admite a propriedade N . Simbolicamente:
Definição 3.3.4 Dois números reais α = [an ] e β = [bn ] dizem-se entre si na relação
menor que ou maior que, simbolicamente
Das Definições 3.3.1 e 3.3.3 podemos enunciar o seguinte Teorema, e respectivo Corolário.
Teorema 3.3.3
Corolário 3.3.1
[an ] < [bn ] =⇒ ∃N : ∀n > N =⇒ bn > an .
É de destacar que este Corolário contém uma condição necessária, mas não suficiente
para arrastar a relação menor do que entre os números que as sucessões, a que estão
sujeitas na condição, representam.
© ª © ª
Com efeito, se considerarmos, por exemplo, as duas sucessões 1 + n2 e 1 + n1 , para
n ≥ 1 temos que 1 + n2 > 1 + n1 e, no entanto, as duas sucessões representam o mesmo
£ ¤ £ ¤
número real: 1 + n2 = 1 + n1 .
∀ [an ] , [bn ] , [cn ] se [an ] < [bn ] e [bn ] < [cn ] então [an ] < [cn ] .
Como
Mas então, desde que se tome n > sup (N 0 , N 00 ) , será bn − an > d0 e cn − bn > d00 e,
atendendo ao facto de que o conjunto dos números racionais constitui um grupo ordenado
relativamente à adição, temos:
Teorema 3.4.1 Se {an } e {a0n } são sucessões de Cauchy, o mesmo acontece à sucessão
{an + a0n }.
¯¡ ¢ ¯ ¯ ¡ ¢¯
¯ an+k + a0n+k − (an + a0n )¯ = ¯(an+k − an ) + a0n+k − a0n ¯ ≤
¯ ¯ d d
≤ |an+k − an | + ¯a0n+k − a0n ¯ < + = d,
2 2
Teorema 3.4.2
lembrando que, por hipótese, as duas parcelas do segundo membro devem ter 0 por limite.
Teorema 3.4.3 Toda a sucessão de Cauchy não convergente para zero é equivalente a
uma outra de termos todos diferentes de zero.
Por outras palavras, se [an ] 6= [0] pode sempre ser representado por uma sucessão de
termos não nulos.
Demonstração. Não sendo {an } convergente para zero, temos que ou P {an } ou
N {an }.
Na primeira hipótese, existe um número d positivo e uma ordem N tal que a partir
dela, todos os termos
aN+1 , aN+2 , ...
aN 0 +1 , aN 0 +2 , ...
Tendo como base os Teoremas 3.4.1 e 3.4.2, podemos introduzir a adição de números
reais da seguinte forma:
Seja α = [an ] e β = [bn ]. Uma vez que o conjunto dos números racionais
é um grupo comutativo relativamente à adição, pela Definição 3.4.1, temos
É solução porque
{an + xn } ≈ {bn } ,
isto é,
lim (an + xn − bn ) = 0 ou lim (xn − (bn − an )) = 0
e portanto
{xn } ≈ {bn − an } ou [xn ] = [bn − an ] .
temos que a unidade do grupo (ou módulo da adição) é o número real [0], o qual passaremos
a representar pelo símbolo 0 (zero).
A solução de α + ξ = 0 corresponde ao simétrico, −α, de α. Se α = [an ] , então
−α = [−an ].
aN 0 − d < an < aN 0 + d
a1 , a2 , ..., aN 0 e aN 0 − d,
a1 , a2 , ..., aN 0 e aN 0 + d,
Teorema 3.5.2 Se a sucessão {an } é de Cauchy, a sucessão {|an |}, constituída pelos
valores absolutos dos termos da sucessão dada, é igualmente de Cauchy.
Números Reais como Corpo Ordenado Comutativo 65
as sucessões {an } e {−an } são simultaneamente de Cauchy. Portanto, ainda nesta hipótese
se verifica o enunciado.
Resta considerar o caso em que {an } converge para zero. Mas isto significa que,
qualquer que seja d, encontra-se N de modo a ser |an | < d para n > N, o que é exactamente
a condição de convergência de {|an |} para zero.
Teorema 3.5.3 Se {an } e {a0n } são sucessões de Cauchy, o mesmo acontece à sucessão
{an · a0n }.
¯ ¯ ¯ ¯
¯an+p · a0n+p − an · a0n ¯ = ¯an+p · a0n+p + an+p · a0n − an+p · a0n − an · a0n ¯ ≤
¯ ¯
≤ |an+p | ¯a0n+p − a0n ¯ + |a0n | |an+p − an |
e determinar N de tal modo que, para n maior que N e para todo p, número natural,
tenham lugar as desigualdades:
¯ 0 ¯
¯an+p − a0n ¯ < d e |an+p − an | < d
2L 2L0
¯ ¯
¯an+p · a0n+p − an · a0n ¯ ≤ L × d + L0 × d = d
2L 2L0
Teorema 3.5.4
O carácter limitado das sucessões {|an |} e {|b0n |}, de acordo com os Teoremas 3.5.1 e 3.5.2,
e a convergência para zero de bn − b0n e de an − a0n , conduzem então ao resultado.
Tendo em conta os Teoremas 3.5.3 e 3.5.4, podemos, então, definir o produto de
números reais da seguinte forma:
Sejam α = [an ] e β = [bn ] . Pela Definição 3.5.1 e pelo facto de {Q\ {0} , ·}
ser um grupo comutativo, podemos escrever sucessivamente:
Lema 3.5.1 Se {an } é uma sucessão de Cauchy que não converge para 0 (número racional),
tal que, para todo n, an 6= 0, então {a−1
n } é igualmente uma sucessão de Cauchy.
Demonstração. Considere-se
¯ ¯ ¯ ¯
¯ 1 1 ¯¯ ¯¯ an − am ¯¯ |an − am |
¯
¯ am − an ¯ = ¯ am an ¯ = |am | |an | .
1 1
< |am | , isto é, < ρ,
ρ |am |
e assim ¯ ¯
¯ 1 1 ¯
¯ ¯ 2
¯ am an ¯ < ρ |an − am | .
−
d
Escolhendo agora N de modo a ser |an − am | < ρ2
, desde que n e m sejam maiores que
N, vem finalmente ¯ ¯
¯ 1 1 ¯¯
¯
¯ am − an ¯ < d, para m, n > N,
Então {a−1
n } é uma sucessão de Cauchy, pelo Lema atrás enunciado, e
n o h i
bn bn
an
também, de modo que em an
temos uma solução da equação, porque
∙ ¸ ∙ ¸ ∙ ¸
bn bn 1
[an ] · = an · = an · · bn = [bn ] .
an an an
68 Construção dos Números Reais utilizando Classes de Equivalência
A solução é única pois, se supusermos que não tem lugar a unicidade e que
ξ = [xn ] é um outro número real tal que
o que significa,
¯ ¯ ¯ ¯
|an | ¯xn − bn a−1
n
¯ < δ , isto é, ¯xn − bn a−1
n
¯< δ 1
M M |an |
ou seja µ ¶ ½ ¾
bn bn
lim xn − = 0, ou seja, {xn } ≈
an an
ou, finalmente, ∙ ¸
bn
[xn ] = .
an
Tendo por base o que acabamos de provar, podemos definir a divisão de números reais
da seguinte forma:
Definição 3.5.2 À operação que permite determinar, a partir de dois quaisquer números
reais α e β, com α 6= 0, um terceiro número real ξ tal que αξ = β, denomina-se divisão
de β por α, e ao resultado que se simboliza por αβ , quociente dos dois números.
Números Reais como Corpo Ordenado Comutativo 69
Podemos continuar a designar por 1 (um) o número real, unidade do Grupo Multi-
plicativo dos números reais. Uma vez que
implica ∙ ¸
an
[xn ] = = [1]
an
a solução da equação αξ = α é o número real [1], conjunto de todas as sucessões de
números racionais que convergem para o número racional 1.
Continuando com a caracterização algébrica do conjunto R, podemos enunciar o
seguinte Teorema, o qual é facilmente demonstrável nos termos dos anteriores.
Se [an ] < [bn ] então existe d tal que an + d < bn , desde que se tome
n < N. Mas atendendo a que o conjunto dos números racionais constitui um
grupo ordenado relativamente à adição, isto é, um conjunto ordenado em que
a operação de grupo satisfaz a lei de monotonia para a adição, temos
an + d < bn =⇒ an + cn + d < bn + cn ,
ou finalmente
α + γ < β + γ.
70 Construção dos Números Reais utilizando Classes de Equivalência
Sabemos que
e que
0 < [cn ] =⇒ (∃d0 , N 0 : ∀n > N 0 =⇒ 0 < d < cn ) .
Mas de d0 < cn tira-se, ainda pela mesma razão que dd0 < dcn e, aten-
dendo ao facto de que, como referido anteriormente, Q é um corpo ordenado
relativamente à adição, temos
donde, pondo
d00 = dd0 > 0,
resulta que
an cn + d00 > bn cn para n > sup (N, N 0 ) .
Portanto,
[an cn ] < [bn cn ] , isto é, [an ] · [cn ] < [bn ] · [cn ] , ou seja, α · γ < β · γ.
an + d < L + d < N,
donde [an ] < [N] ou, finalmente, pela convenção adoptada α < N.
limrn = r e limrn0 = r0 .
n n
r0 − r
d< .
2
e
∃Nr0 : ∀n > Nr0 =⇒ rn < r + d < r0 − d < rn0 .
Notando que
rn0 − rn > r0 − d − r − d = r0 − r − 2d,
conclui-se que
∀n > N = sup (Nr , Nr0 ) =⇒ rn0 − rn > 2d
o que mostra ser, pela Definição 3.3.1, P {rn0 − rn } e portanto [rn ] < [rn0 ] , pela Definição
3.3.4.
Resta mostrar que se trata de um isomorfismo algébrico, isto é, que à soma e ao produto
de dois números reais racionais correspondem, respectivamente, a soma e o produto dos
dois números racionais imagens dos dois números reais racionais.
Sejam r = [rn ] e r0 = [rn0 ] , dois números racionais que correspondem aos números
racionais r e r0 , que são limites das sucessões {rn } e {rn0 } que representam r e r0 .
Temos
[rn ] + [rn0 ] = [rn + rn0 ] e [rn ] · [rn0 ] = [rn · rn0 ] .
Mas as sucessões {rn + rn0 } e {rn · rn0 } têm por limites, precisamente, r + r0 e r · r0 , que
serão assim os números racionais correspondentes aos números racionais r e r0 , o que prova
o isomorfismo algébrico entre Q0 e Q.
Tendo por base as noções lógicas de correspondência, relação e conjunto, passamos do
conjunto dos números racionais para um conjunto, cujos elementos chamamos números
reais, que, por sua vez, contém um subconjunto Q0 , cujos elementos denominamos de
Completude do Conjunto dos Números Reais 73
números reais racionais, que não se distingue, do ponto de vista algébrico e de ordenação,
do conjunto dos números racionais, de que havíamos partido. E assim como nos números
racionais há um subgrupo isomorfo dos números naturais e um domínio de integridade
isomorfo dos números inteiros ([19], pp. 15 - 19), também no conjunto dos números reais,
na correspondência estabelecida entre o conjunto dos números racionais e o conjunto
dos números reais racionais, nos aparecem números reais a que poderemos denominar de
números reais naturais e números reais inteiros. Deste modo, continuaremos a utilizar as
mesmas notações e símbolos para os números reais seus isomorfos, desde que não surjam
quaisquer confusões.
Definição 3.7.1 Dados dois números racionais r1 e r2 denomina-se distância desses dois
números aquele dos dois números, r1 − r2 e r2 − r1 , que for positivo.
Definição 3.7.2 Dados dois números reais α e β denomina-se distância desses dois
números ao número obtido da forma:
d (α, β) = |α − β| = |β − α| .
Em relação às duas métricas definidas, para o conjunto dos números reais, na Definição
3.7.2, e para o conjunto dos números racionais, na Definição 3.7.1, tem lugar o seguinte:
Com {an }n indicaremos uma sucessão {a1 , a2 , ..., an , ...} cujos termos não
são necessariamente iguais.
Com {an } indicaremos uma sucessão em que todos os termos são iguais
a an , isto é, {an , an , ..., an , ...}.
Utilizando a noção de limite vamos relacionar um número real com os números reais
racionais isomorfos dos números racionais que intervêm numa qualquer das sucessões suas
representantes.
Teorema 3.7.2 Pode-se considerar todo o número real como limite da sucessão de números
reais racionais isomorfa da sucessão de números racionais que representa esse número
real, isto é,
∀α = [an ]n =⇒ α = lim [an ] .
n
Demonstração. Seja
são inferiores a d.
Deste modo, o número real
[|am − an |]m
...
{ξ 1 , ξ 2 , ..., ξ n , ...} ≡ {ξ n }n
seja convergente é que essa sucessão seja sucessão de Cauchy, ou seja, que, para todo
...
lim [xnm ] = ξ n .
m
O facto de, para todo o n, a sucessão {xnm }m ser uma sucessão de Cauchy, implica que,
para um mesmo d, escolhido de modo a ser [d] < δ, podemos determinar, para cada n,
uma ordem m, designada por mn , tal que
e forme-se a diferença
A primeira e terceira parcelas são menores do que δ em virtude de (a) e portanto pela
própria maneira como a sucessão foi determinada. Quanto à segunda parcela, como a
sucessão {ξ n }n é de Cauchy podemos sempre determinar, em função de δ, uma ordem N
tal que
|ξ n − ξ k | < δ,
ξ = [xnmn ]n .
78 Construção dos Números Reais utilizando Classes de Equivalência
Atendendo ao Teorema 3.7.2, podemos considerar este número como o limite dos
números racionais correspondentes aos números racionais da sucessão {xnmn }n , isto é,
|ξ − ξ n | ≤ |ξ − [xnmn ]| + |[xnmn ] − ξ n |
como a segunda parcela é, por (a), inferior a δ, e a primeira também, por (b), desde que
se tome n superior a uma ordem N 0 , determinada pelo número N, virá
isto é,
ξ = limξ n ,
n
e vamos, com vista a um absurdo, supor que para esta sucessão não se verifica a condição
de Cauchy.
Particularizando a aplicação da condição a uma sucessão não decrescente, a sua ne-
gação terá a seguinte forma
Esta afirmação mostra que se pode determinar para aquele número δ uma sucessão de
inteiros
N1 e p1 ; N2 > N1 + p1 e p2 ; N3 > N2 + p2 e p3 ; ...
tal que
rN1 +p1 ≥ rN1 + δ; rN2 +p2 ≥ rN2 + δ ≥ rN1 +p1 + 2δ; ...; rNk +pk ≥ rN1 + kδ.
Podendo k ter o valor que se queira, basta escolhê-lo, como nos permite a ordenação
arquimediana, de modo a ser
kδ > m − rN1 ,
ξ 1 ≤ ξ 2 ≤ ... ≤ ξ n ≤ ...
η 1 ≥ η 2 ≥ ... ≥ η n ≥ ...,
∀i, j ξ i < η j
∀δ ∃N : ∀n > N =⇒ η n − ξ n < δ,
£ ¤
existe um e um só número real que pertence a todos os intervalos fechados ξ j , η i .
2
Notemos que foi Gomes Teixeira o pioneiro, em Portugal, a enunciar este princípio, no seu Curso de
Analyse Infinitesimal - Calculo Differencial.
80 Construção dos Números Reais utilizando Classes de Equivalência
lim ξ n = ξ ≤ η j .
Como esta desigualdade verifica-se para todo o j, uma nova passagem ao limite, no
conjunto dos números reais, e agora relativamente a j, conduz a
ξ ≤ lim η j = η.
Resta agora provar que ξ e η não podem ser distintos. Se o fossem, todos os termos
ξ n e η n , respectivamente da primeira e segunda sucessões, que satisfizessem a
ηn − ξn < η − ξ
que existem pela segunda condição do teorema, seriam maiores que ξ e menores que η,
facto esse que seria um absurdo.
Tendo por base o Princípio do Encaixe, que acabamos de estabelecer, e tomando X
um subconjunto de um conjunto O, completamente ordenado pela relação de <, iremos
agora enunciar a seguinte definição de supremo e ínfimo.
1o ∀x ∈ X =⇒ x ≤ S;
Todas estas noções aplicáveis a conjuntos ordenados valem, por isso, igualmente para
conjuntos de números racionais ou números reais.
Notemos, no entanto, que existem conjuntos de números racionais que admitem ma-
jorantes sem que tenham supremo. ([38], pp. 108 - 109)
x0 + m0
.
2
x0 + m0
e m0 ,
2
x0 + m0
e x0 ,
2
que não o é.
m0 −x0
Em qualquer das duas hipóteses a diferença m1 − x1 é sempre 2
.
De um modo geral, obtidos os números mn e xn , representamos por mn+1 o menor dos
dois números
mn + xn
e mn ,
2
que é majorante de X e por xn+1 o maior dos dois números que não o é.
A diferença entre esses dois números é
m0 − x0
mn+1 − xn+1 =
2n+1
82 Construção dos Números Reais utilizando Classes de Equivalência
e, como as sucessões {mn } e {xn } são, a primeira monótona não crescente, e a segunda
monótona não decrescente, a sucessão de intervalos fechados {[xn , mn ]} constitui um en-
caixe a que corresponde um número real S, que é afinal o supremo de X, pois, se qualquer
que seja x ∈ X, se tem sempre x ≤ mn .
Igualmente, passando-se ao limite, se terá
x ≤ lim mn = S
lim xn = S
e, desde que por construção nenhum dos xn é majorante, também o não pode ser o número
S − δ.
É importante que esta propriedade se possa inverter servindo-nos para a edificação do
conjunto dos números reais. Com esse intuito, precisamos ainda da seguinte:
Teorema 3.7.8 Se num Grupo Ordenado e Denso, cujos elementos são divisíveis ao
meio, todo o seu subconjunto que admite majorante tem supremo, todas as sucessões de
Cauchy são convergentes.
Se num Grupo Ordenado e Denso, cujos elementos são divisíveis ao meio, todo o
seu subconjunto que admite minorante tem ínfimo, todas as sucessões de Cauchy são
convergentes.
e minorante. Por isso, não são vazios os dois conjuntos A e B, definidos do seguinte modo:
Em A estão todos os elementos do Grupo que são maiores que todo o elemento da
sucessão, a partir de determinada ordem.
Em B, pelo contrário, estão todos os elementos do Grupo que são menores que todo
o elemento da sucessão, a partir de determinada ordem.
De modo que, para quaisquer a e b, se pode determinar uma ordem Nab , tal que
ξN − δ < ξn < ξN + δ
S − δ < ξN < J + δ
para todo x, haveria elementos menores do que J que seriam ainda minorantes de A,
o que seria um absurdo.
Este resultado justifica que os Princípios enunciados nos Teoremas 3.7.5 e 3.7.7, isto
é, que o Princípio do Encaixe e o Princípio do Supremo / Ínfimo sejam equivalentes à
Condição de Cauchy, em qualquer Corpo Ordenado e Denso e, portanto, em particular,
no Conjunto dos Números Reais.
Assim, neste Capítulo, definimos o Conjunto dos Números Reais como Limites de
Sucessões Convergentes de Números Racionais, isto é, à maneira de Cantor e, com base
em resultados referentes ao Conjunto dos Números Racionais, conseguimos provar que
o Conjunto de Números Reais assim construído consiste, a menos de um isomorfismo
algébrico e de ordem, num conjunto que satisfaz as seguintes condições:
A Teoria dos Números Reais, como base da Análise Matemática, foi completada no
século XIX de diversas formas.
Como vimos no decorrer dos capítulos anteriores, as primeiras definições rigorosas de
números reais estavam já publicadas em 1872 por Méray, Dedekind, Heine e Cantor.
A definição rigorosa de convergência de uma sucessão de números foi dada por d’Alembert
em 1765 e por Cauchy em 1821 sem possuírem na altura uma definição rigorosa de números
reais. Uma exposição da construção dos números reais foi dada no livro Grundlagen der
Analysis, [25], por Edmund Landau, sendo fácil hoje em dia encontrar outras, em vários
livros de texto.
O Conjunto dos Números Reais foi construído usando os Cortes de Dedekind ou as
Classes de Equivalência de Sucessões de Cauchy, mas segundo A. H. Lightstone, "estes
sistemas têm pouca conexão com a nossa intuição de números reais, e por isso possuem
pouco ou nenhum impacto no nosso pensamento". ([26], p. 347)
Segundo Mitio Nagumo, "estas teorias matemáticas foram estabelecidas como comple-
mento do sistema dos números racionais, enquanto que a relação íntima entre a quantidade
e o número foi muito negligenciada". ([34], p. 1)
Tendo por base as opiniões supra citadas, ou outros motivos, o facto é que, vários
matemáticos, elaboraram outras Construções de Números Reais, algumas das quais apre-
sentaremos, de uma forma sintetizada, nas várias secções deste capítulo.
85
86 Outras Construções do Conjunto dos Números Reais
Definição 4.1.1 Um sistema algébrico, digamos (S, +, ·, <, 0, 1), onde + e · são as op-
erações binárias em S, < é uma relação binária em S, 0 ∈ S e 1 ∈ S, diz-se um Sistema
de Números Reais desde que este sistema algébrico seja um Corpo Completo e Ordenado.
A definição anterior implica que as seguintes catorze condições devem ser verdadeiras
sobre o sistema algébrico (S, +, ·, <, 0, 1).
1. x + (y + z) = (x + y) + z sempre que x ∈ S, y ∈ S e z ∈ S.
2. x + y = y + x sempre que x ∈ S e y ∈ S.
3. x + 0 = x sempre que x ∈ S.
5. x · (y · z) = (x · y) · z sempre que x ∈ S, y ∈ S e z ∈ S.
6. x · y = y · x sempre que x ∈ S e y ∈ S.
7. x · 1 = x sempre que x ∈ S.
9. x · (y + z) = x · y + x · z, sempre que x ∈ S, y ∈ S e z ∈ S.
Notemos que, as catorze condições aqui enunciadas equivalem às condições das Definições
2.6.1, 2.6.2 e 2.6.4, que introduzimos na Secção 2.6 do Capítulo 2.
A. H. Lightstone apresenta um sistema de números reais, que considera próximo do
sistema intuitivo de aritmética no uso actual, e torna precisos os conceitos e operações
envolvidos nesse sistema, exemplificando-os, sempre que pertinente.
Em particular, apresenta definições de adição e multiplicação que descrevem as oper-
ações de adição e multiplicação utilizadas na aritmética usual.
Tendo em conta que o sistema intuitivo de números reais é baseado no sistema dos
números racionais, vamos, tal como Lightstone fez, supor que este último é conhecido, e
do material provido pelo sistema dos números racionais construir o sistema dos números
reais.
Para construir o sistema dos números reais, fixemos a nossa atenção num determinado
subconjunto de números racionais, nomeadamente, os números racionais decimais.
a0
O número racional decimal 1
+ a101 + 10
a2 an
2 + ... + 10n é denotado por a0 , a1 a2 ...an
Vejamos um exemplo:
35 3 1 0 8 0 7
+ 1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 é denotado por 35, 310807.
1 10 10 10 10 10 10
35310807
Assim como o racional decimal é denotado, igualmente, por 35, 310807.
106
Definição 4.1.3 Uma sucessão de números racionais decimais é denotada por (a1 ; a2 ; a3 ; ...; an ; ...)
em que ao número racional decimal a1 é associado o número natural 1, ao a2 associado
o número natural 2, ... , e ao an associado o número natural n. Convencionalmente
denota-se (a1 ; a2 ; a3 ; ...; an ; ...) por (an ) .
Os elementos deste conjunto ordenado são denominados de termos da sucessão e an é
o n-ésimo termo da sucessão, sempre que n é natural.
88 Outras Construções do Conjunto dos Números Reais
Definição 4.1.4 Uma sucessão de números racionais decimais, (an ), é um número real
se a sucessão verifica as três seguintes propriedades:
1. a1 apenas pode ter um dígito à direita da vírgula.
2. an+1 é obtido a partir de an juntando um dígito a an sempre que n é um número
natural.
3. Dado um qualquer número natural n existe sempre um número natural k maior
que ele, tal que ak é obtido a partir de ak−1 juntando um dígito diferente de 9 a ak−1 .
Note-se que, como o número racional 2, 0 é o mesmo que 2, logo, o número real que
representa a sucessão anterior é o mesmo que o que representa a sucessão
(iii) (45, 2; 45, 23; 45, 228; 45, 2280; 45, 22800; ...)
Vejamos um exemplo:
D2 (13, 201; −1, 415; 0, 0014; 0, 105; ...) = (13, 20; −1, 41; 0; 0, 10; ...)
Definição 4.1.6 Dada uma sucessão podemos obter uma outra "bloqueando-a", isto é,
apagando os primeiros termos da sucessão. O resultado de apagar os primeiros k-termos
da sucessão (an ) denota-se por Bk (an ), onde Bk (an ) = (ak+n ) .
Exemplificando:
Notemos que Bk (an ) não é necessariamente um número real se (an ) é um número real
e k um número natural.
Definidos os dois operadores unários, estamos prontos para definir a adição e a multi-
plicação.
Comecemos por definir a adição.
Sejam (an ) e (bn ) quaisquer números reais, representamos por (an ) + (bn )
o número real construído pelo seguinte procedimento:
É fácil perceber que existe um único racional decimal, digamos d1 , tal que
Bq D1 (an + bn ) = (d1 )
Bq D2 (an + bn ) = (d2 )
Bq Dk (an + bn ) = (dk )
(5, 1; 5, 12; 5, 120; 5, 1200; ...) + (17, 3; 17, 38; 17, 382; 17, 3820; 17, 38200; ...) =
= (22, 5; 22, 50; 22, 502; 22, 5020; 22, 50200; ...)
Bq D2 (an · bn ) = (e2 )
(3, 0; 3, 00; 3, 000; ...) · (1, 2; 1, 21; 1, 213; 1, 2133; 1, 21333; ...) =
(25, 7; 25, 74; 25, 746; 25, 7468; 25, 74680; 25, 746800; ...) <
< (25, 7; 25, 74; 25, 746; 25, 7468; 25, 74680; 25, 746803; 25, 7468030; ...) .
É usual denotar um número real, digamos (an ), por ak , sendo k o menor número
natural tal que an é obtido de an−1 juntando 0 a an−1 , sempre que n > k.
92 Outras Construções do Conjunto dos Números Reais
O número real (5, 1; 5, 12; 5, 120; 5, 1200; ...) é denotado por 5, 12,
Para tal, vamos supor que k é um conjunto não vazio de números reais que possui um
majorante e vamos construir o supremo de k.
Denotemos por Dm (k) o conjunto de todos os racionais decimais obtidos de k selec-
cionando o m-ésimo termo de cada membro de k.
Notemos que, cada membro de Dm (k) é um racional decimal com no máximo m dígitos
à direita da vírgula.
Uma vez que k é limitado superiormente, é claro que o conjunto D1 (k) possui um
número maior que todos os outros, denominemos esse número de d1 .
Da mesma forma, seja d2 o maior número do conjunto D2 (k) e, de um modo geral,
seja dn o maior número do conjunto Dn (k) .
Consideremos então a sucessão (dn ).
Esta sucessão satisfaz os primeiros dois requisitos de número real.
Se o terceiro requisito não for satisfeito, efectuamos em (dn ) a transformação num
número real pela correcção apresentada nos casos anteriores relativos à adição e multipli-
cação.
Denotemos o número real obtido por (d0n ).
Vamos mostrar que (d0n ) é um majorante de k.
Construção dos números reais utilizando a Noção de Quantidade 93
Suponhamos que existe um membro de k, digamos (an ), tal que (d0n ) < (an ), então
existe um número natural s tal que d0s < as . O que contradiz a construção de d0s .
Suponhamos, agora, que existe um majorante de k, digamos (bn ), tal que (bn ) < (d0n ),
então existe um número natural r tal que br < d0r .
Se d0r 6= dr então existe um número natural, digamos m, tal que r < m, e o último
dígito de bm não é 9. Mas então bm < dm e então existe um membro de k, digamos (en ),
tal que bm < em , desde que em = dm . Assim, (bn ) não é um majorante de k. O que
estabelece que (d0n ) é o supremo de k.
Mitio Nagumo publicou, no ano de 1944, Zenkoku Shijo Sugaku Danwakai e poste-
riormente, em 1976, escreveu o artigo Quantities and Real Numbers, [34], publicado em
1977, na revista Osaka J. Math, onde faz uma construção dos números reais, que tem por
ideia base os cortes de Dedekind, e na qual estabelece, e realça, a relação entre quantidade
e números. Relação essa que o autor considera, como já referimos, que foi negligenciada
pelos matemáticos do século XIX.
Mitio Nagumo considera que devemos começar por fazer uma caracterização do sistema
de quantidades positivas e derivar o sistema dos números reais positivos como o conjunto
dos automorfismos do sistema de quantidades positivas. Então, a partir desta derivação,
a extensão, do sistema dos números reais positivos, para todo o sistema de números reais
poderá ser facilmente obtida.
É seguindo o artigo de Nagumo que, nesta secção, vamos mostrar mais uma possível
construção do sistema dos números reais, na qual começamos por caracterizar o sistema
de quantidades positivas.
94 Outras Construções do Conjunto dos Números Reais
(I2 ) Se a, b ∈ Q então a + b = b + a.
(I3 ) Se a, b, c ∈ Q então (a + b) + c = a + (b + c) .
(I4 ) Se a, b, c ∈ Q e a + c = b + c então a = b.
(II1 ) Se a, b ∈ Q, então a + b 6= a.
a + c = b ou a = b + c.
a0 + a = b.
Neste caso, a0 = b − a.
Proposição 4.2.2 Para qualquer par de elementos a, b ∈ Q dado, ocorre apenas um dos
seguintes três casos:
1) a = b; 2) a < b; 3) b < a.
Construção dos números reais utilizando a Noção de Quantidade 95
a < c < b.
Q− = {q ∈ Q : ∃n ∈ N, na > q} ,
Q+ = {q 0 ∈ Q : ∀n ∈ N, na ≤ q 0 } ,
respectivamente.
Suponhamos, com vista a um absurdo, que a Proposição 4.2.6 é falsa. Então Q− , Q+
poderia ser um par de Dedekind, com Q− 6= ∅ e Q+ 6= ∅, e c = (Q− |Q+ ) ∈ Q o que nos
levava a uma contradição.
Φ (a) = a0 .
Para demonstrar a Proposição 4.2.7 são necessários os três lemas que se seguem.
Lema 4.2.1 Seja Φ uma aplicação conforme a definida na Proposição 4.2.7. Então,
dados a1 , a2 ∈ Q,
Φ (a1 ) < Φ (a2 ) se e só se a1 < a2 .
nan < a.
Estabelecidos os lemas, 4.2.1, 4.2.2 e 4.2.3, estamos em condições para fazer a seguinte
Demonstração. da Proposição 4.2.7
Para qualquer a0 ∈ Q0 fixo definimos, os subconjuntos de Q, Q− e Q+ , por
Q− = {q ∈ Q : Φ (q) < a0 } e
Q+ = {q ∈ Q : Φ (q) ≥ a0 } ,
respectivamente.
Então, Q− e Q+ , formam um par de Dedekind de Q.
Tomemos a ∈ Q com a = (Q− |Q+ ), e mostremos que Φ (a) = a0 .
Se tivéssemos Φ (a) < a0 , então a tinha que ser o máximo de Q− . Mas assim deveria
existir um a1 ∈ Q tal que a < a1 e Φ (a1 ) < a0 o que contradiz o facto de a ser o máximo
98 Outras Construções do Conjunto dos Números Reais
de Q− . Pois, pelo Lema 4.2.3 deveria existir c ∈ Q tal que Φ (c) < a0 − Φ (a) que pertence
a Q0 , donde Φ (a + c) < a0 . Notemos que consideramos, a1 = a + c.
Se tivéssemos Φ (a) > a0 , então a tinha que ser o mínimo de Q+ . Mas, pelo Lema
4.2.3 deveria existir um c ∈ Q tal que Φ (c) < Φ (a) − a0 , donde c < a e a0 < Φ (a − c) ,
denotamos a1 = a − c, o que nos levou novamente a uma contradição.
Assim mostramos que Φ aplica Q em Q0 .
Pelo Lema 4.2.1 vemos que Φ é uma aplicação 1 − 1 de Q em Q0 e podemos facilmente
ver que Φ−1 é linear.
Posto isto, vamos definir o que é um automorfismo racional, e para tal, consider-
emos, novamente, Q um sistema de quantidades positivas que satisfaz os axiomas da
continuidade.
Φ (q) = mq.
¡ ¢
n−1 (mq) = m n−1 q .
¡ ¢
Φ (q) = n−1 (mq) = m n−1 q (∀q ∈ Q) (m, n ∈ N) ,
Construção dos números reais utilizando a Noção de Quantidade 99
Proposição 4.2.8 Seja Φ uma aplicação linear de Q em Q0 . Então, para qualquer auto-
m
morfismo racional n
(de Q e Q0 )
³m ´ m
Φ q = Φ (q) (∀q ∈ Q) .
n n
Proposição 4.2.9 Sejam a, b ∈ Q tais que a < b. Então para qualquer c ∈ Q existe um
m
automorfismo racional de Q, n
, tal que
m
a< c < b.
n
Demonstração. Seja d = b − a, com a < b.
Então existe, pela Proposição 4.2.6, n ∈ N tal que nd > c. Logo, d > n−1 c.
Considerando ci = ni c com i ∈ N temos ci = ic1 e ci < ci+1 .
Existe, igualmente pela Proposição 4.2.6, j ∈ N tal que cj = jc1 > a. Consideremos
j = m o menor número natural que satisfaz esta propriedade.
Então, facilmente obtemos
m
a < cm < b com cm = c.
n
Assim, como
m ³m ´ ³m ´ m
Φ1 (b) < c = Φ1 a e Φ2 a = c < Φ2 (b) ,
n n n n
temos, pelo Lema 4.2.1,
m
b< a < b,
n
o que é um absurdo.
Similarmente, se supusermos Φ2 (b) < Φ1 (b) obteremos novamente uma contradição.
Consequentemente, temos que Φ1 (b) = Φ2 (b) para todo o b ∈ Q.
Proposição 4.2.11 Sejam Φ1 e Φ2 automorfismos de Q tais que Φ1 (a) < Φ2 (a) para
algum a ∈ Q. Então, Φ1 (q) < Φ2 (q) para todo o q ∈ Q.
Neste caso, por simplificação da escrita, apenas escrevemos Φ1 < Φ2 .
Logo
n−1 a < b.
µ ¶
m+1 m+1 m
Φ1 (b) ≤ Φ1 a = Φ1 (a) < Φ2 (a) + n−1 Φ1 (a)
n n n
−1
< Φ2 (b) + n Φ1 (a) < Φ2 (b) + c.
Φ1 (b) = Φ2 (b) + c.
Construção dos números reais utilizando a Noção de Quantidade 101
Com base nas proposições 4.2.8 e 4.2.10, podemos definir em P, a adição e a multipli-
cação por
Em primeiro lugar vamos supor c como o máximo de Q− . Então, c < ra para todo
o r ∈ P+ e c ≥ ra para todo r ∈ P− . Pois, se tivéssemos c < r1 a para algum r1 ∈ P− ,
então como r1 a ∈ Q− , contradizia que c fosse o máximo de Q− .
Agora vamos supor c como o mínimo de Q+ . Então, c = r0 a para algum r0 ∈ P+ e
ra < r0 a = c para todo o r ∈ P− . Além disso, como {ra : r ∈ P+ } ⊂ Q+ , temos c ≤ ra
para todo o r ∈ P+ .
A unicidade de c na Proposição 4.2.12 decorre da Proposição 4.2.9.
Para enunciar o Teorema do Isomorfismo, presente na Proposição 4.2.13, continuare-
mos a considerar Q e Q0 sistemas de quantidades positivas que satisfazem os axiomas da
continuidade.
P−
(q) = {r ∈ P : ra < q} ,
P+
(q) = {r ∈ P : ra ≥ q} ,
respectivamente.
Então, P− +
(q) e P(q) formam um par de Dedekind de automorfismos racionais.
r1 a0 ≤ q 0 ≤ r2 a0 para todo r1 ∈ P− +
(q) e para todo r2 ∈ P(q) .
Φ (a) = a0 .
Agora, consideremos Φ (qi ) = qi0 com i = 1, 2. Temos de mostrar que Φ é linear, isto é,
temos de provar que
Φ (q1 + q2 ) = q10 + q20 .
Consideremos
q3 = q1 + q2 e P−
i = {r ∈ P : ra < qi } com i = 1, 2, 3.
Construção dos números reais utilizando a Noção de Quantidade 103
Então, obtemos
© ª
P− − −
3 = r1 + r2 : r1 ∈ P1 , r2 ∈ P2 .
consideremos r ∈ P−
3 . Então, ra < q1 + q2 , considerando
1
qi − d < ri0 a < qi , com i = 1, 2.
2
Então,
ri0 ∈ P− e ra ≤ q1 + q2 − d < (r10 + r20 ) a < q1 + q2 .
ri0
Assim, considerando ri = r10 +r20
r, com i = 1, 2, obtemos
ri ∈ P−
i e r = r1 + r2 .
Para
ri0 ri0
ri a = ra ≤ (r0 + r20 ) a = ri0 a < qi .
r10 + r20 r10 + r20 1
Agora, consideremos
P+
3 = {r ∈ P : ra ≥ q3 = q1 + q2 } .
Então, P− +
3 , P3 forma um par de Dedekind de números racionais e, pela definição de
r0 ∈ P− 0 0
3 = {r ∈ P : ra < q3 } = {r ∈ P : ra < q3 } ,
contradizendo
q30 < r0 a0 .
Donde,
r0 ∈ P+
3 = {r ∈ P : ra > q1 + q2 } ,
contradizendo
r0 a0 < q30 .
(Φ1 + Φ2 ) + Φ3 = Φ1 + (Φ2 + Φ3 ) .
Construção dos números reais utilizando a Noção de Quantidade 105
Φ1 ◦ (Φ2 + Φ3 ) = Φ1 ◦ Φ2 + Φ1 ◦ Φ3 ,
(Φ1 + Φ2 ) ◦ Φ3 = Φ1 ◦ Φ3 + Φ2 ◦ Φ3 ,
(Φ1 ◦ Φ2 ) ◦ Φ3 = Φ1 ◦ (Φ2 ◦ Φ3 ) .
Φ1 ◦ Φ2 = Φ2 ◦ Φ1 .
Φ1 ◦ Φ2 (a) = Φ2 ◦ Φ1 (a) .
Suponhamos, com vista a um absurdo, que a igualdade anterior não é válida, e que
temos, por exemplo,
Φ1 ◦ Φ2 (a) < Φ2 ◦ Φ1 (a) .
m
Assim, pela Proposição 4.2.9, existe um automorfismo racional r = n
tal que
φ + 0 = 0 + φ = φ para todo φ ∈ Φ.
φ + (−φ) = (−φ) + φ = 0.
4) φ ◦ 0 = 0 ◦ φ = 0 para todo φ ∈ Φ.
P− = {r ∈ P : r < φ} e P+ = {r ∈ P : r > φ} .
Pelo isomorfismo de ΦQ com ΦQ0 no que diz respeito à ordenação, devido à adição,
vemos que a φ deve corresponder φ0 .
Consequentemente, podemos observar que ΦQ e ΦQ0 coincidem, como sistemas de
adição e multiplicação, no sentido abstracto.
Como RQ é unicamente derivado de ΦQ observamos que RQ e RQ0 coincidem como
corpo no sentido abstracto.
Denominamos assim, o sistema abstracto R de sistema de números reais e Φ o sistema
de números reais positivos.
108 Outras Construções do Conjunto dos Números Reais
é finito.
é finito.
n ∈ Z → λ (qn) ∈ Z
é linear.
Vamos na próxima secção definir a aritmética dos números reais, nomeadamente no
que se refere às operações de adição e multiplicação, bem como a ordenação.
(α ◦ β) (n) = α (β (n))
α (n + m) − α (n) − α (m) ∈ Eα
e
β (n + m) − β (n) − β (m) ∈ Eβ ,
para n, m ∈ Z.
Assim, para n, m ∈ Z existem u, u0 ∈ Eα e v ∈ Eβ com
α ◦ β (n) + α ◦ β (m) − α ◦ β (n + m) , n, m ∈ Z,
e
β (n) − β 0 (n) ∈ Eβ,β 0 .
A positividade de um número real está relacionada com a natureza dos seus declives
representantes. Com efeito:
Consideremos
N = {n ∈ Z : n ≥ 0} ,
é infinito.
(ii) O número real a diz-se menor do que o número real b se existe um número
real positivo, t, tal que b = a + t. Se a é menor que b escrevemos a < b.
Assim, todo o número real pode ser representado por um declive ímpar.
Para verificar se uma aplicação ímpar γ : Z → Z é um declive, é suficiente verificar
que o conjunto
© ª
γ (n + m) − γ (n) − γ (m) com n, m ∈ N+
é finito.
Com o intuito de caracterizar as propriedades no conjunto, R, dos números reais é
necessário caracterizar determinados declives, denominados de bem ajustados, aos quais
irá corresponder um número real.
Podemos dizer que um declive bem ajustado não necessita tratar-se de uma aplicação
linear de Z em Z, mas difere o menos possível de ser linear.
Cada declive é equivalente a um declive bem ajustado, como mostra o Lema da con-
centração que será enunciado e demonstrado posteriormente.
Assim, em particular, um número real pode ser representado por um declive bem
ajustado.
Antes porém, necessitamos de estabelecer a seguinte:
−q ≤ a − b − c ≤ q.
Então temos
−1 ≤ a ÷ 3q − b ÷ 3q − c ÷ 3q ≤ 1.
Demonstração. O inteiro
a ÷ 3q − b ÷ 3q − c ÷ 3q
−1 ≤ c ÷ m (n + m) − c ÷ n (n + m) − c ÷ nm ≤ 1.
Demonstração. O inteiro
c ÷ m (n + m) − c ÷ n (n + m) − c ÷ nm
difere de
c c c
− −
m (n + m) n (n + m) nm
1
por, quanto muito 2
+ 12 + 1
2
= 32 , logo
−1 ≤ c ÷ m (n + m) − c ÷ n (n + m) − c ÷ nm ≤ 1,
3
uma vez que 2
< 2.
−s ≤ λ (m + n) − λ (m) − λ (n) ≤ s.
−s (t − 1) ≤ λ (tn) − tλ (n) ≤ s (t − 1) .
Para t = 3s temos
e consequentemente
−s ≤ λ0 (n) − λ (n) ≤ s,
deduzimos
−1 ≤ λ0 (n + m) − λ0 (n) − λ0 (m) ≤ 1.
λ (k) > 1,
{n ∈ Z : λ (n) = v}
λ (k) > 1,
|v − λ (n)| ≤ |λ (1)| + 1.
Nesta secção, vamos provar, parcialmente e de uma forma abreviada, que os axiomas
para um Corpo Ordenado e Completo são satisfeitos para (R, +, ·, <), isto é, que são
válidas as seguintes três condições:
2. (R, +, ·) é um Corpo.
Recapitulemos que:
Seguiremos com a verificação de alguns dos axiomas que acabamos de enunciar, para
o sistema dos números reais.
A adição, +, de inteiros faz com que (Z, +) constitua um Grupo Abeliano. Assim,
facilmente decorre que (R, +) constitui igualmente um Grupo Abeliano.
(R, +, ·) é um Corpo. A multiplicação é associativa, uma vez que o é a composição de
aplicações.
Construção dos números reais como Classes de Equivalência de Declives 117
com
|E1 | ≤ |n| Sα e |E2 | ≤ |β (n)| Sα ≤ |n| (|β (1)| + Sβ ) Sα .
o que mostra que os declives α◦β e β◦α são equivalentes, logo a multiplicação é comutativa.
Vejamos como está definido o elemento inverso para a multiplicação, para tal, consid-
eremos 1 o número real representado pela aplicação identidade Idz : Z → Z. Claramente,
para um número real x, as propriedades 1x = x1 = x são válidas, o que faz com que 1
seja o elemento neutro para a multiplicação em R.
Iremos agora construir o elemento inverso para x ∈ R, com x 6= 0, isto é, um elemento
y ∈ R que satisfaz xy = 1.
Seja α um declive bem ajustado representativo de x. Então, para cada v ∈ Z podemos
escolher nv ∈ Z com
|v − α (nv )| ≤ |α (1)| + 1.
Uma vez que α toma cada valor unicamente finitas vezes, concluímos que o conjunto
é finito.
118 Outras Construções do Conjunto dos Números Reais
Então
α (bn) + τ (bn) < β (bn) + τ (bn) − n, para n ∈ N+ ,
x + t < y + t.
Consequentemente Na > A.
Temos também
Nδ p (p) ≤ δ p (q) + N ≤ δq (q) + N.
|δ p (p) − δ pN (pN) ÷ N| ≤ 1.
|σ (n) − c ÷ m (n + m)| ≤ 1,
|σ (m) − c ÷ n (n + m)| ≤ 1,
|σ (n + m) − c ÷ nm| ≤ 1.
|σ (n + m) − σ (n) − σ (m)| ≤ 1 + 3 = 4,
Construção dos Números Reais como Sucessões de Intervalos Encaixados 121
é válida.
Então s ∈ R é um majorante para D.
Com o intuito de provar que s representa o supremo de D, mostraremos que nenhum
t ∈ R com t < s é um majorante para D.
Com efeito, seja τ um declive bem ajustado para t ∈ R com t < s.
Então existe n ∈ N+ com
τ (n) < σ (n) − 2.
Esta construção tem por base sucessões de intervalos fechados de números racionais e,
para tal, precisamos de uma importante propriedade do conjunto dos números racionais,
expressa no seguinte:
Teorema 4.4.1 Sejam r e s números racionais com r < s então existem infinitos números
racionais entre r e s.
m
0< < 1.
n
Uma vez que r < s então s − r é positivo. Também s − r é racional e então temos
m
0< (s − r) < s − r,
n
e consequentemente
m
r<r+ (s − r) < s.
n
m
Uma vez que n
e s − r são racionais, também o é o seu produto e a soma
m
r+ (s − r) .
n
0 < m < n,
m
e m e n podem ser escolhidos por forma a termos infinitos valores distintos de n
, e assim,
m
infinitos valores distintos para r + n
(s − r), os quais todos estão entre r e s.
Vejamos, de seguida a definição de intervalo de números racionais, conceito base da
nossa construção.
Definição 4.4.1 Sejam a e b números racionais com a < b. Por intervalo [a, b] entende-
mos o conjunto
[a, b] = {x ∈ Q : a ≤ x ≤ b} .
Definição 4.4.2 Considerando [a, b], denotamos o comprimento deste intervalo por λ ([a, b]),
o qual é dado por
λ ([a, b]) = b − a.
I1 , I2 , I3 , I4 , ...,
Dizemos que a sucessão {sn } tende para zero, ou tem limite zero se para qualquer
número positivo ε, tão pequeno quanto se queira, existe um número natural k, tal que
para todo o número natural n ≥ k temos |sn | < ε.
Notemos que, apesar dos termos de uma sucessão se aproximarem de zero isso não
quer dizer que a sucessão tenda para zero, vejamos, por exemplo, o caso da sucessão {sn }
1
de termo geral 1 + n
que tem por limite 1.
A definição de limite de uma sucessão não significa igualmente que os termos da
sucessão devam aproximar-se cada vez mais do limite da mesma. Por exemplo, se con-
1 1
siderarmos a sucessão {sn } definida por n
se n é ímpar e 2n
se n é par, os termos não
aproximam-se continuamente do seu limite, que é zero.
124 Outras Construções do Conjunto dos Números Reais
Outra alternativa de definir a convergência de uma sucessão {sn } para zero é a seguinte:
Definição 4.4.3 Uma sucessão {sn } tende para zero se, escolhido um qualquer inter-
valo da forma ]−ε, ε[ , tão pequeno quanto se queira, contendo o zero, a partir de uma
determinada ordem, os termos da sucessão {sn } pertencem ao intervalo.
Iremos construir os números reais com base na localização da sua posição, utilizando
sucessões de intervalos fechados de números racionais.
√
Por exemplo, uma típica sucessão para a localização do número 2, será:
I1 = [1; 2] ;
I2 = [1, 4; 1, 5] ;
...
√
O comportamento destes intervalos é tal que unicamente o número 2 pode pertencer
√
a todos eles. Contudo, uma vez que 2 ainda não foi construído, não podemos falar de
um número pertencente a todos estes intervalos. Com efeito, no contexto dos números
racionais, não existe um número que pertença a todos estes intervalos. Consequentemente,
√
iremos fazer corresponder 2 à sucessão {In } .
Para que esta ideia seja bem sucedida é necessário impor determinadas características
a esta sucessão de intervalos. Assim sendo, estabelecemos a seguinte
λ (Jt ) ≥ s − r
Com o intuito de definir a operação de adição no conjunto dos números reais iremos,
primeiramente, definir a adição de sucessões de intervalos encaixados de números racionais.
ζ + η corresponde à sucessão
{I1 + J1 , I2 + J2 , I3 + J3 , ...} ,
In + Jn = {a + b com a ∈ In e b ∈ Jn } .
Assim, com o objectivo de adicionar dois números reais, iremos escolher quaisquer
sucessões de intervalos encaixados de números racionais representando esses dois números
reais. Adicionamos essas sucessões, adicionando os intervalos correspondentes e os inter-
valos, por sua vez são adicionados, estabelecendo essa mesma operação a cada par de
números dos dois intervalos.
Em última análise verificamos que a operação acima descrita corresponde à adição
definida no conjunto dos números racionais.
É necessário contudo garantir que a adição de intervalos encaixados de números
racionais continue a ser um intervalo encaixado de números racionais, o que se traduz
no seguinte:
Além de {In } e {Xn } serem equivalentes necessitam não ser idênticas. O mesmo deve
acontecer com {Jn } e {Yn } .
Assim, não poderemos esperar que as duas sucessões
sejam idênticas.
O problema reside no facto de que elas podem não ser equivalentes.
Uma vez que é suposto que ambas determinem a mesma adição ζ +η, as duas sucessões
acima devem ser equivalentes ou teríamos uma ambiguidade na definição da adição de
números reais.
Para garantir que esta ambiguidade não tenha lugar é suficiente estabelecer o seguinte:
Atendendo a última condição, as duas sucessões {In + Jn } e {Xn + Yn } não são equiv-
alentes, então, deverá existir algum intervalo da forma Ik + Jk disjunto de algum intervalo
da forma Xm + Ym .
Suponhamos, sem perda de generalidade, que m ≥ k, então, uma vez que
Im + Jm ⊂ Ik + Jk ,
Teorema 4.4.6 A adição de números reais é comutativa, isto é, para quaisquer dois
números reais ζ e η temos
ζ + η = η + ζ.
Teorema 4.4.7 A adição de números reais é associativa, isto é, para quaisquer números
reais ζ, η e θ temos
(ζ + η) + θ = ζ + (η + θ) .
Teorema 4.4.8 O número racional 0, quando tomado como número real, é o elemento
neutro da adição, isto é, para todo o número real ζ temos
ζ + 0 = 0 + ζ = ζ.
Teorema 4.4.9 Para todo o número real ζ existe um número real −ζ tal que
ζ + (−ζ) = (−ζ) + ζ = 0.
Analogamente, podemos definir a multiplicação de números reais com base nas sucessões
de intervalos encaixados de números racionais e enunciar o seguinte:
ζ · (η + θ) = ζ · η + ζ · θ e (η + θ) · ζ = η · ζ + θ · ζ.
Teorema 4.4.14 O número racional 1, quando tomado como número real, é o elemento
neutro da multiplicação, isto é, para todo o número real ζ temos
ζ · 1 = 1 · ζ = ζ.
Teorema 4.4.15 O número racional 0, quando tomado como número real, é o elemento
absorvente da multiplicação, isto é, para todo o número real ζ temos
0 · ζ = ζ · 0 = 0.
1
Teorema 4.4.16 Para todo o número real ζ, distinto de 0 existe um número real ζ
tal
que
1
ζ· = 1.
ζ
Na próxima secção iremos ver como podemos definir a ordenação em R com base na
ordenação definida em Q.
Definição 4.4.8 Consideremos ζ e η dois números reais com representações {In } e {Jn }
respectivamente, sucessões de intervalos encaixados fechados de números racionais. Se
existe um número racional r e um número natural n tais que cada número em In é menor
do que r e cada número em Jn excede r então dizemos que ζ < η.
132 Outras Construções do Conjunto dos Números Reais
Teorema 4.4.17 Se a e b são números racionais e a < b, com a usual relação de ordem
definida em Q, então a < b em R e inversamente.
Teorema 4.4.18 Se ζ e η são números reais então uma, e apenas uma, das três seguintes
condições se verifica:
(i) ζ < η;
(ii) ζ = η;
(iii) η < ζ.
Teorema 4.4.19 Se ζ, η e θ são números reais tais que ζ < η e η < θ então ζ < θ.
Notemos que a notação ζ ≤ η significa que apenas uma das duas seguintes condições
é verificada ζ < η ou ζ = η.
Teorema 4.4.20 Se ζ é um número real e 0 < ζ então existe um número natural n tal
1
que n
< ζ.
Teorema 4.4.21 Se ε é um número real com 0 < ε e γ é um número real com 0 < γ,
então, com ε tão pequeno quanto se queira e γ tão grande quanto se queira, existe um
número natural n tal que
γ < n · ε.
Demonstração. Sejam ε e γ números reais positivos tais que ε < γ (pois ε é tão
pequeno quanto se queira e γ tão grande quanto se queira).
Consideremos {In } e {Jn } sucessões de intervalos encaixados representantes de ε e γ,
respectivamente.
Como {In } não tende para zero, existe um número racional positivo r tal que {In } > r,
a partir de certa ordem, donde se conclui que r ≤ ε.
Por outro lado, sendo {Jn } uma sucessão de intervalos encaixados fechados de números
racionais, é majorada por um número racional k e temos portanto {Jn } ≤ k, logo γ ≤ k.
Atendendo ao facto que o conjunto dos números racionais goza da propriedade Arqui-
mediana, então existe um natural n tal que nr > k, donde nε > γ.
Construção dos Números Reais como Sucessões de Intervalos Encaixados 133
Definição 4.4.9 Consideremos S um conjunto não vazio de números reais. Dizemos que
um número b é um majorante para S se x ≤ b, para todo x ∈ S.
S = {x ∈ Q : x está à esquerda de P }
135
136 Axiomatização dos Números
Como já foi referido, na secção 1.3, do capítulo 1, Hilbert propôs que imaginássemos
um sistema de entes, aos quais chamamos números que são designados por a, b, c, ..., rela-
cionados entre si. Essas relações ajustam-se exacta e completamente por quatro conjuntos
de axiomas ([21], pp. 217 - 219): os de ligação, de cálculo, de ordem e de continuidade,
que enunciamos de seguida.
I. Axiomas de Ligação
a + x = b e y + a = b.
I 3. Existe um determinado número chamado zero (0) tal que para qualquer
número a se verifica simultaneamente
a + 0 = a e 0 + a = a.
ab = c ou c = ab.
a · 1 = a e 1 · a = a.
Axiomatização dos Números 137
II 1. a + (b + c) = (a + b) + c.
II 2. a + b = b + a.
II 3. a (bc) = (ab) c.
II 4. a (b + c) = ab + ac.
II 5. (a + b) c = ac + bc.
II 6. ab = ba.
a + c > b + c e c + a > c + b.
a + a + ... + a > b.
138 Axiomatização dos Números
Notemos que, os axiomas I, II, III e IV correspondem aos de Corpo Ordenado Ar-
quimediano e Completo, sendo a completude entendida no sentido do axioma IV 2. e a
propriedade arquimediana, no sentido do axioma IV 1., onde é pressuposto o conceito de
número finito.
Verificamos que alguns dos axiomas, acabados de enunciar, são consequência dos
restantes, o que nos leva à discussão da dependência lógica dos mesmos.
A existência de elemento neutro na adição (axioma I 3.), assenta, essencialmente, na
propriedade associativa da adição, logo constitui uma consequência dos axiomas I 1. -
2. e II 1..
A existência de elemento neutro na multiplicação (axioma I 6.), depende, fundamen-
talmente, da propriedade associativa da multiplicação, logo constitui uma consequência
dos axiomas I 4. - 5. e II 3..
A propriedade comutativa da adição (axioma II 2.), deduzida da propriedade asso-
ciativa da adição e da propriedade distributiva à esquerda e à direita da multiplicação em
relação à adição, constitui uma consequência dos axiomas I 2. e II 1., 4. e 5..
A propriedade comutativa da multiplicação (axioma II 6.), pode ser deduzida quando
e só quando se junta o axioma de Arquimedes, IV 1., aos axiomas I, II 1. - 5. e III.,
logo é uma consequência dos axiomas I, II 1. - 5., III e IV 1..
Os axiomas IV 1. e IV 2. são independentes um do outro. Nenhum destes axiomas
contém afirmações sobre o conceito de convergência ou sobre a existência de limites, no
entanto, pode-se demonstrar através deles o Teorema de Bolzano-Weierstrass sobre a
existência de pontos de acumulação e também a existência da fronteira correspondente a
um corte de Dedekind.
Axiomatização dos Números 139
Verificamos, assim, que o sistema de números, apresentado por Hilbert, coincide com
o sistema usual dos números reais.
Hilbert considera que na demonstração da não-contradição 1 dos axiomas admitidos,
encontramos a prova da existência da totalidade dos números reais, isto é, na terminolo-
gia de Cantor, a prova de que o sistema dos números reais é um conjunto consistente
(acabado).
Assim, segundo esta concepção do conjunto dos números reais, não temos de imaginar
todas as propriedades possíveis a que podem ser sujeitos os elementos de uma sucessão
fundamental, mas sim um sistema de entes cujas relações recíprocas são dadas pelo referido
sistema finito e fechado dos axiomas I - IV, e para o qual são válidos novos enunciados
somente quando estes podem ser deduzidos daqueles axiomas, por um número finito de
inferências lógicas.
Neste momento, tendo por base o método axiomático de Hilbert, estamos aptos a
responder à seguinte questão:
Existem outros Corpos distintos do, sistema dos números reais, R, que sejam
Completos e Ordenados?
Para responder a esta questão iremos utilizar letras minúsculas para denotar os números
reais, reservando as letras minúsculas "negritas" para outros corpos que possam eventual-
mente aparecer.
Iremos considerar os números inteiros e racionais como casos especiais dos números
reais e vamos esquecer a forma particular como os números reais foram definidos, nos
capítulos anteriores, que como vimos constituem corpos ordenados, arquimedianos e com-
pletos.
Notemos que, se os elementos de um corpo F forem utilizados para denominar certos
elementos de R, então, para cada a pertencente a R deve corresponder um f (a) em F . A
notação f (a) sugere que esta nova denominação pode ser formulada em termos de uma
função.
Definição 5.0.11 Uma função é uma colecção de pares ordenados (de quaisquer objectos)
que não contém dois pares distintos com o mesmo primeiro elemento.
1
A não-contradição consiste em não ser possível obter, a partir deles, por inferência lógica, uma
afirmação que contradiga um dos axiomas apresentados.
140 Axiomatização dos Números
(1) A função f deve ser de 1 − 1 (um para um), isto é, se x 6= y, então deveremos ter
f (x) 6= f (y). O que significa que, não existem dois elementos de F1 possuindo a mesma
imagem.
(2) A função f deve ser sobrejectiva, isto é, para o elemento z em F2 existe algum x em
F1 tal que z = f (x). O que significa que, todo o elemento de F2 é usado para denominar
um elemento de F1 .
f (x ⊕ y) = f (x) u f (y) ,
f (x ¯ y) = f (x) • f (y) .
Definido o isomorfismo, podemos enunciar o que são corpos isomorfos, como se segue:
Dois corpos isomorfos podem ser considerados essencialmente iguais, isto é, qualquer
propriedade importante de um é automaticamente verificada no outro.
Então, sendo F um corpo completo e ordenado não é necessário verificar se ele é igual
a R, mas sim se é isomorfo a R.
Para o próximo teorema iremos considerar F um corpo com as operações u e • e
elementos positivos P, escreveremos a < b para indicar que b − a está em P.
Demonstração. Uma vez que dois corpos são isomorfos se existe um isomorfismo
entre eles, temos, para demonstrar o teorema, de construir uma função f de R para F
que seja um isomorfismo.
Comecemos por definir f para os números inteiros como se segue:
f (0) = 0,
| u {z
f (n) = 1 ... u 1} para n > 0,
n vezes
f (n) = −(1 u ... u 1) para n < 0.
| {z }
|n| vezes
| u {z
Uma vez que F é completo, os elementos 1 ... u 1} para números naturais n formam
n vezes
um conjunto que não é limitado superiormente.
As consequências deste facto para R são análogas às causadas em F , em particular,
se a e b são elementos de F com a < b, então existe um número racional r tal que
Após esta observação, voltamos à demonstração de que as duas definições de f (x) são
válidas para um número racional x.
Se y é um número racional com y < x, então já vimos que f (y) < f (x). Assim, todo
o elemento de Ax é < f (x). Consequentemente,
sup Ax ≤ f (x) .
Por outro lado, suponhamos que temos sup Ax < f (x), então existirá um número
racional r tal que
sup Ax < f (r) < f (x) .
Mas a condição f (r) < f (x) significa que r < x, donde resulta que f (r) está no
conjunto Ax o que contradiz claramente a condição sup Ax < f (r). O que mostra que a
afirmação original era falsa, logo, temos
sup Ax = f (x) .
No primeiro caso f (x) < f (y), e no segundo caso f (y) < f (x) e em qualquer um dos
casos f (x) 6= f (y).
Para provar (2), consideremos a um elemento de F e seja B o conjunto de todos os
números racionais r com f (r) < a.
O conjunto B é não vazio e é igualmente limitado superiormente, pois existe um
número racional s com f (s) > a, tal que f (s) > f (r) para r em B, o que implica que
s > r.
Seja x o supremo de B; vamos provar que f (x) = a.
Se f (x) < a existe um número racional r com f (x) < f (r) < a. Mas isto significa
que x < r e esse r está em B, o que contradiz o facto de que x = sup B.
Por outro lado, se a < f (x) existe um número racional r com a < f (r) < f (x). O
que significa que r < x e uma vez que x = sup B, isto implica que r < s para algum s
em B. Donde, f (r) < f (s) < a e temos novamente uma contradição. Assim f (x) = a, o
que prova (2).
Para verificar (3), consideremos x e y números reais e suponhamos, com vista a um
absurdo, que
f (x + y) 6= f (x) u f (y) .
Então
No primeiro caso, f (x + y) < f (x) u f (y), existirá um número racional r tal que
Mas isto significa que x + y < r. Consequentemente, r pode ser escrito como sendo a
soma de dois números racionais r = r1 + r2 , onde x < r1 e y < r2 .
Assim, usando os factos demonstrados para f respeitante a números racionais, obtém-
se
Conclusão:
Com este teorema concluímos finalmente que existe um corpo completo e ordenado, e
apenas um a menos de um isomorfismo, do conjunto dos números reais, o qual denotamos
por R e que utilizamos hoje em dia.
O conjunto R pode deste modo representar:
• ...
146 Axiomatização dos Números
Bibliografia
[1] Agudo, F. R. Dias. 1989. Análise Real. Vol. I. Lisboa: Escolar Editora.
[5] Burton, D. M. 1988. The History of Mathematics an Introduction. New York: The
MacGraw-Hill Companies, Inc.
[7] Cantor, J. 1872. Über die Ausdehnung eines Satzes aus der Theorie der
trigonometrischen Reihen. Mathematische Annalen, 5. In [13], p. 306.
[8] Corry, Leo. 1994. La teoria de las proporciones de Eudoxio interpretada por Dedekind.
In Mathesis, Vol. 10, pp. 1 - 24 .
[9] Dedekind, Richard. 1872. Continuity and irrational numbers, English transl. 1901.
In Essays on the Theory of Numbers, Dover, New York, 1963. pp. 1 - 24.
[10] Dugac, Pierre. 1973. Éléments d’analyse de Karl Weierstrass. In Archive for the
History of Exact Sciences, Vol. 10, n.o 1/2. Berlin: Springer-Verlag. pp. 41 - 176.
[11] Dugac, Pierre. 1976. Richard Dedekind et les fondements des mathématiques. Paris:
Virn.
147
148 Bibliografia
[13] Epple, Moritz. The End of the Science of Quantity: Foundations of Analysis, 1860 -
1910. In [23], Chap. 10, pp. 291 - 323.
[14] Euclid. 1956. The thirteen books of The Elements. 2.nd Ed. Vol. II. New York: Dover
Publications, Inc.
[15] Ewald, William. 1996. From Kant to Hilbert: A Source Book in the Foundations of
Mathematics. Vol. 2. Oxford: Clarendon Press.
[16] Gardies, Jean Louis. 1984. Eudoxe et Dedekind. Revue d´Histoire des Sciences,
XXXVII (2), pp. 111 - 125.
[17] Grattan-Guiness, Ivor. (Editor) 1984. Del cálculo a la teoría de conjuntos, 1630 -
1910. Una introducción historica. Madrid: Alianza Editorial.
[18] Guerreiro, J. Santos. 1968. Curso de Matemáticas Gerais. Vol. II. Lisboa: Livraria
Escolar Editora.
[19] Guimarães, A. Andrade. 1947. Dos números naturais aos números racionais. In Bo-
letim da Sociedade Portuguesa de Matemática. Vol. 1. Lisboa: Tipog. Matemática,
LTD, pp. 1 - 22.
[20] Heine, E. 1872. Die Elemente der Functionenlehre. Journal für die reine und ange-
wandte Mathematik, 74. In [13], p. 299.
[22] Hurwitz, Adolf. 1878. Einleitung in die Theorie der analytischen Funktionen. In [10],
pp. 96 - 118.
[23] Jahnke, H. N. (Editor) 2003. A History of Analysis. Vol. 24. American Mathematical
Society.
[24] Katz, V. J. 1998. A History of Mathematics - An Introduction. 2.nd Ed. New York:
Addison Wesley Longman.
Bibliografia 149
[25] Landau, Edmund. 1930. Foundations of Analysis. English transl. 1951, AMS-Chelsea
Publishing, Providence, R.I. (Reprint 2001 of the 3rd ed. 1966)
[26] Lightstone, A. H. 1962. A simple alternative to Dedekind cuts. New York: Scripta
Mathematica, XXVI (4), pp. 347 - 351.
[28] Méray, Charles. 1868. Remarques nouvelles sur les points fondamentaux du calcul
infinitésimal et sur la théorie de développement des fonctions en séries. In Revue des
Sociétes Savantes des departements, Section sciences mathématiques, physiques et
naturelles, 37, pp. 133 - 138.
[29] Méray, Charles. 1869. Remarques sur la nature des quantités définies par la condition
de servir de limites à des variables données. In Revue des Sociétes Savantes des
departements, Section sciences mathématiques, physiques et naturelles. 2eme série.
Tome IV. Paris: Imprimerie Impériale.
[30] Méray, Charles. 1872. Nouveau Précis d’Analyse Infinitésimale. F. Savy, Libraire -
Éditeur: Paris.
[31] Méray, Charles. 1887. Sur le sens qu’il convient d’attacher à l’expression nombre
incommensurable et sur le critérium de l’existence d’une limite pour une quantité
variable de nature donnée. In Annales Scientifiques de l’École Normale Supérieure,
IV (3), pp. 342 - 360.
[32] Méray, Charles. 1894. Leçons nouvelles sur l’analyse infinitésimale et ses apllications
géométriques.
[33] Molk, J. 1904. Nombres Irrationnels et Notion de Limite. In Encyclopédie des Sciences
Mathématiques Pures et Appliquées. Vol. I, pp. 133 - 160.
[34] Nagumo, Mitio. 1977. Quantities and Real Numbers. In Osaka J. Math., 14, pp. 1 -
10.
150 Bibliografia
[35] Nogueira, et. al. 2004. Contar e Fazer Contas - Uma Introdução à Teoria dos
Números. Lisboa: Gradiva.
[38] Real, L. N. 1951. Dos números racionais aos números reais. In Boletim da Sociedade
Portuguesa de Matemática. Vol. 1. Lisboa: Tipog. Matemática, LTD, pp. 59 - 135.
[41] Stein, Howard. 1990. Eudoxus and Dedekind: on the ancient greek theory of ratios
and its relation to modern mathematics. In Synthese, 84, pp. 163 - 221.
[43] Toepell, Michael. 1986. Origins of David Hilbert’s Grundlagen der Geometrie. In
Archive for History of Exact Sciences, Vol. 35, pp. 329 - 344.