Artigo - Luciana Soares Spindola
Artigo - Luciana Soares Spindola
Artigo - Luciana Soares Spindola
RESUMO
A situação atual e duradoura da crise do sistema penal reclama que se retire da invisibilidade
a situação das mulheres encarceradas no Brasil. O alto índice de crescimento da população
carcerária feminina, comprovado por pesquisas realizadas por órgãos governamentais, se
comparada ao índice da população carcerária masculina no mesmo período, revela a
imprescindibilidade de o quadro devastador do sistema prisional ser visto e analisado sob a
perspectiva do gênero. Há de ser atentar para o condicionamento patriarcal exigido para o
papel da mulher na sociedade e o seu impacto nas consequências penais das atitudes
consideradas desviantes do padrão esperado pela comunidade em que inserida. O mais alto
grau de perversidade no encarceramento da mulher está relacionado ao se punir duplamente a
sua conduta, uma vez que além da pena que lhe é imposta, há a perda do vínculo familiar,
notadamente das mulheres que são mães. A justiça de uma decisão que segrega a mulher se
desfaz diante da perspectiva da criança, que se vê também punida com o rompimento do
vínculo com a pessoa de quem depende para o seu desenvolvimento pleno. A questão
discutida no trabalho perpassa o fracasso do sistema penal como um todo, tanto mais da
condição da mulher aprisionada, incluída em um sistema pensado por homens e para os
homens. As reflexões reclamam uma quebra do paradigma do encarceramento e apresenta
hipótese de urgência na concretização da inovação legislativa de possibilidade de prisão
domiciliar para as mulheres com filhos menores de idade.
ABSTRACT
The current and lasting situation of the crisis in the criminal justice system demands that the
situation of women incarcerated in Brazil be removed from invisibility. The high rate of
growth of the female prison population, as evidenced by research carried out by government
agencies, compared to the rate of the male prison population in the same period, reveals the
indispensability of the devastating picture of the prison system being viewed and analyzed
from a gender perspective. It is necessary to be attentive to the patriarchal conditioning
required for the role of women in society and its impact on the penal consequences of
attitudes considered deviant from the pattern expected by the community in which it is
inserted. The highest degree of perversity in the incarceration of a woman is related to the
double punishment of her conduct, since in addition to the penalty imposed on her, there is the
loss of the family bond, especially of women who are mothers. The justice of a decision that
segregates the woman is discarded before the perspective of the child, who is also punished
with the breaking of the bond with the person on whom it depends for its full development.
The issue discussed in the work runs through the failure of the penal system as a whole, all
the more so in the condition of the imprisoned woman, included in a system thought by men
and for men. The reflections call for a breakdown of the incarceration paradigm and presents
a hypothesis of urgency in the implementation of the legislative innovation of the possibility
of house arrest for women with minor children.
INTRODUÇÃO
A noção de dignidade da pessoa humana sofre influência do tempo, do espaço, da
história e da cultura de um povo. Modernamente, no mundo ocidental, observa-se um esforço
para o consenso no sentido de que a dignidade humana pode ser compreendida, à luz da
moral, como o valor fundamental intrínseco do indivíduo pelas suas características
particulares que o tornam especial e único. Assim, "é por ter o valor intrínseco da pessoa
humana como conteúdo essencial que a dignidade não depende de concessão, não pode ser
retirada e não é perdida mesmo diante da conduta individual indigna do seu titular."1
No âmbito jurídico, a dignidade humana, alçada a princípio de estatura constitucional
no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, situa-se entre os direitos materialmente
fundamentais e inspira uma série de direitos fundamentais. Entre esses direitos, o da
integridade física, moral e psíquica, e o que afirma que todos têm o mesmo valor intrínseco,
independentemente de raça, sexo, orientação sexual, idade, religião, origem social ou
qualquer outra condição, qual seja, o direito à igualdade.
_______________
1
BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo:
natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público.
Mimeografado, dezembro de 2010. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-
content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf>. Acesso em: jan. 2017.
3
1 Mulheres encarceradas
_______________
3
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.
4
Artigo publicado em 1988 – Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Disponível em:
<https://archive.org/details/scott_gender>. Acesso em: jan. 2017.
5
MENDES, op. cit., p. 157.
6
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 6ª edição. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2009. p. 158.
8
A consideração de Soraia Mendes confirma que “se de um lado, o controle a que estão
submetidas as mulheres na família, escola, trabalhos, meios de comunicação não é
propriamente jurídico, por outro, o sistema penal cumpre uma função disciplinadora para
manter a subordinação feminina.”9
_______________
7
LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos Vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres. Rio de Janeiro:
Achiamé, 1983. p. 14.
8
DINIZ, Glaucia Ribeiro Starling; PONDAAG, Mirian Cássia Mendonça. A face oculta da violência contra a
mulher: o silêncio como estratégia de sobrevivência. In: DINIZ, Glaucia Ribeiro Starling et al (orgs.).
Violência, exclusão social e desenvolvimento humano: estudos em representações sociais. Brasília: Universidade
de Brasília, 2006. p. 238.
9
MENDES, op. cit., p. 165.
9
Para Santa Rita, a mulher presa perde seu papel de mulher, esposa, mãe e filha,
evidenciando a clara quebra de vínculos familiares. À presença do filho na prisão atribui-se a
benesse de retirar a mulher das galerias prisionais e amenizar as violências institucionais,
mas, ao se separar da criança, o abalo psíquico-emocional é descrito como uma das piores
perdas. 11
No sistema prisional tem-se reproduzidos de forma potencializada o julgamento moral
que somente às mulheres se dirige por não corresponderem ao ideal da ótica masculina de
docilidade, submissão e papel coadjuvante.
É também do mundo masculino o ambiente prisional que por eles foi criado e para
eles dirigido, haja vista que se imprimiu historicamente que a transgressão insere-se no papel
masculino. Por isso, Nana Queiroz diz:
Assim, ignoramos as transgressões de mulheres como se pudéssemos manter
isso em segredo, a fim de controlar aquelas que ainda não se rebelaram
contra o ideal da „feminilidade pacífica‟. Ou não crescemos ouvindo que a
violência faz parte da natureza do homem, mas não da mulher?
É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os
criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas igualdade é desigual
quando se esquecem das diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no
chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas
e filhos que temos de lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam. 12
_______________
13
DINIZ, Debora. Cadeia – Relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 211.
11
terminam por incutir nos filhos das presas palavras de alienação parental ou mesmo optar por
dizer que a presa deve estar morta.
A modificação do sistema penal brasileiro para adequação às condições femininas é
necessária para que se realize o princípio da igualdade, assim delineado por Celso Antônio
Bandeira de Mello:
O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem
embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua,
reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as
normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as
pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por
regimes diferentes. Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e
obrigações que não assistem a outras, por abrigadas em diversa categoria,
regulada por diferente plexo de obrigações e direitos.15
_______________
16
LEGISLAÇÃO Internacional. Declaração e Programa de Ação de Viena. Disponível em
<http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-e-Programa-de-
A%C3%A7%C3%A3o-de-Viena-Confer%C3%AAncia-Mundial-sobre-DH.pdf>. Acesso em: jan.2017.
14
imposição de penas privativas de liberdade devem ser consideradas tão somente em casos de
crimes graves ou violentos.
Em sintonia com as inovações legais, o Conselho Nacional de Justiça noticia a
elaboração de uma resolução que pretende estabelecer diretrizes para o acompanhamento das
mulheres e da sua prole, bem como das gestantes, com a finalidade de dar mais estrutura a
essas crianças e obstar que elas tomem o rumo da criminalidade no futuro.
As Regras de Bangkok já encontraram ambiente de discussão no sentido da efetiva
implantação das suas orientações no Supremo Tribunal Federal. Assim, lê-se da ementa do
Habeas Corpus 134.734/SP:
EMENTA: Prisão em flagrante. Prisão preventiva. Mulher que se encontra
em qualquer das situações excepcionais referidas no rol taxativo inscrito no
art. 318 do CPP. Conversão em prisão domiciliar. Regras de Bangkok,
promulgadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Inovações
introduzidas no direito interno brasileiro: CPP, LEP, Lei das Medidas
Cautelares e Lei da Primeira Infância. Outorga de tratamento diferenciado à
mulher presa que ostente, entre outras, a condição de grávida ou de nutriz
(lactante). Legitimidade desse tratamento, que também se justifica pela
necessidade de respeito ao princípio constitucional que consagra o dever
estatal de proteção integral da criança e do adolescente. Incidência da
Convenção dos Direitos da Criança. Precedentes do Supremo Tribunal
Federal, particularmente de sua Segunda Turma. Conversão do julgamento
deste “habeas corpus” em diligência, para que o impetrante comprove que a
paciente se enquadra em qualquer das situações previstas no art. 318 do
CPP.17
_______________
17
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus no 134.734, 30 de junho de 2016. Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=309626624&tipoApp=.pdf>. Acesso em: jan.
2017.
15
Essa informação, por si só, deixa evidente que a análise da crise do sistema penal
brasileiro não prescinde do olhar sob a perspectiva do gênero, tanto mais diante do registro de
que, ainda segundo o órgão do Ministério da justiça, a população de homens presos, no
mesmo período de 2000 a 2014, cresceu 220%.
Por sua vez, a análise da figura 2 retrata que a situação devastadora do aumento da
população carcerária feminina encontra-se disseminada em todo o território nacional,
destacando-se o Estado de Alagoas, que registra o maior crescimento, qual seja de 444%, em
contraponto, a população masculina naquele estado, que cresceu 250%.
Ressalte-se que, apesar do aumento da população carcerária feminina, os
estabelecimentos prisionais que a recebem são aqueles concebidos para homens. Vê-se, ainda
segundo os dados do Infopen-Mulheres que, em junho de 2014, havia 1420 unidades
_______________
18
BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. INFOPEN Mulheres. Junho de 2014.
Disponível em <http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-
brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: jul.2016.
16
Das unidades que mantém mulheres no cárcere menos da metade dispõe de cela ou
dormitório adequado para gestantes. Em relação à existência de berçários ou centro de
referência materno infantil, 32% das unidades femininas têm esse espaço. As unidades mistas,
por sua vez, contam com apenas 3% de espaços separados para o fim referido.19
O quantitativo de mulheres que se encontram privadas de liberdade sem terem ainda
condenação judicial é outro dado perverso da situação prisional feminina. Apesar de o
_______________
19
BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. INFOPEN Mulheres. Junho de 2014.
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-
brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: jan. 2017.
17
A pena privativa de liberdade é a mais antiga e principal resposta ao crime, certo que
“as prisões constituíram uma forma de dosar a punição em unidades de tempo, oferecendo
uma certa aparência de racionalidade e mesmo de ciência à aplicação da dor.”20
Calcado o aprisionamento como medida de controle nas teorias do paradigma
retributivo da pena, quais sejam a teoria absoluta – pune-se porque pecou; a teoria relativa
(utilitarista) – pune-se para que não peque mais, e a teoria mista – pune-se porque pecou e
para que não peque mais, tem-se que a crise duradoura e ainda atual do sistema de justiça
criminal nos incita à reflexão sobre a necessidade da quebra do paradigma do encarceramento.
Para a teoria absoluta, que tem como defensores Immanuel Kant e Friedrich Hegel, a
pena deve ser entendida como um fim em si mesma. Assim, a pena seria tão somente
compensação (retribuição ou reparação).
Nesse sentido, a explanação de Paulo Queiroz, de que “para Kant, a pena atende a uma
necessidade absoluta de justiça, que deriva de um „imperativo categórico‟, isto é, de um
imperativo moral incondicional independente de considerações finais ou utilitárias.”21
O contraponto à teoria absoluta, por sua vez, traz as teorias utilitaristas, que conferem
à pena a intenção de prevenção de futuros crimes, concebendo a pena como um meio ao invés
de um fim ou valor. A prevenção de novos delitos, aqui, é a finalidade da pena.
Nessa linha, Eugênio Zaffaroni esclarece que:
As teorias relativas desenvolveram-se em oposição às teorias absolutas,
concebendo a pena como um meio para obtenção de ulteriores objetivos.
Essas teorias são as que se subdividem em teorias relativas da prevenção
geral e da prevenção especial, cujos conceitos já examinamos: na prevenção
_______________
20
ZERH, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a Justiça. São Paulo: Palas athena,
2008. p. 114.
21
QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal. Legitimação versus deslegitimação do sitema penal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001. p. 19.
20
geral a pena surte efeito sobre os membros da comunidade jurídica que não
delinquiram, enquanto na prevenção geral age sobre o apenado.22
De toda sorte, ainda que brevemente mencionadas, vê-se que as principais teorias
justificativas do poder punitivo não conseguem enfrentar e superar a falência da pena
privativa de liberdade.
O sistema garantista, por sua vez, advoga a relegitimação do sistema penal sob o
fundamento de que a eliminação do sistema penal como um todo acarretaria o aumento da
vingança privada.
Pode-se concluir que o atual modelo de justiça penal, estruturado na pena privativa de
liberdade, não é apto para a responsabilização dos que transgridem as regras, não produz
justiça e muito menos pode ser considerado um verdadeiro sistema.23
Registro que a contribuição da cátedra de Louk Hulsman atualizou o debate sobre
abolicionismo ao questionar não apenas a pena de prisão, mas o sistema penal em si. O jurista
incita uma nova visão do crime, da pena e da estrutura penal como um todo.
Hulsman aponta que o sistema somente intervém em situações excepcionais, não serve
para prevenir delitos e não funciona como almejado pelos princípios que busca legitimá-los.
Suas críticas apontam que, na verdade, o sistema penal propicia um reforço para as
desigualdades sociais e provoca danos até mesmo naqueles que se diz pretender proteger.
Acrescenta que ao definir fatos como delito reduz-se a possibilidade de compreensão lúcida
do acontecimento e de uma resposta racional para a situação.24
Por último, abolicionistas e garantistas se direcionam no sentido da abolição do
paradigma da prisão pena se se entender que a diferença entre eles se faz na medida em que o
garantismo busca não apenas a deslegitimação, mas, também a relegitimação do sistema
penal.
Para Hulsman, ademais, não existem motivos para se entender que o sistema penal
teria o papel de substituir e impedir a vingança privada, certo que o renascimento de
estruturas agindo sob a forma de autodefesa punitiva (justiça privada) ocorre em situações
mesmas em que o sistema penal encontra-se em funcionamento pleno. Conclui que não
_______________
22
ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, parte
geral, volume I, 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 108.
23
PALLAMOLLA, Rafaella da Porciúncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 29
24
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernart de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão. 2ª ed. Luam,
Rio de Janeiro, 1997. p. 30.
21
haveria razão para vislumbrar que tal fenômeno sofreria aumento na hipótese de
descriminalização de comportamentos tidos como não desejáveis.25
O alto crescimento da população carcerária, o aumento das práticas criminosas, a
absoluta ineficácia do Estado em ressocializar os infratores são causas comuns a homens e
mulheres que já bastariam para a reflexão da busca de outros métodos que não o
encarceramento.
No caso da mulher, em que submetida a um sistema prisional pensado para homens, a
situação se agrava, tanto mais se considerados os danos causados, não apenas a ela, mas à sua
família, especialmente a seus filhos menores e, também, à sociedade, que há de absorver
como cidadãos justamente essas pessoas que foram crianças injustiçadas pela compulsória
ruptura do vínculo maternal e terminaram desassistidas material e emocionalmente.
A relação entre pena e estrutura social desperta a discussão sobre o não
encarceramento, que perpassa obrigatoriamente a questão da criminalização das drogas,
máxime se considerado que a sua repressão provocou um aumento significativo da população
carcerária, principalmente a feminina.
Os dados estatísticos colacionados a este trabalho fazem crível a tese de que uma
alteração específica no rumo da política proibicionista em relação às drogas modificaria,
quase que por si só, o triste quadro de exclusão social.
Ademais, não se pode perseverar na ideia de que o uso de drogas não é punido, uma
vez que todas as condutas que possibilitam esta prática (adquirir, guardar, trazer consigo) são
incriminadas. Em última análise, se o usuário para consumir a droga deve, em algum
momento, tê-la em seu domínio e essa detenção constitui crime, é evidente que o uso, ainda
que por via transversa, é punido.
Para a professora Luciana Boiteux Rodrigues:
O controle penal sobre a droga atua por meio da proibição do consumo e da
venda de determinadas substâncias e seu discurso punitivo fundamentado no
conceito de „nocividade‟ de determinadas substâncias, e impõe um
comportamento individual à coletividade, moldado sobre o ideal de
abstinência como virtude a ser seguida. 26
Nessa linha, o que se observa é que as drogas continuam sendo utilizadas e alimentam
o comércio tido como ilícito, marginalizando os sujeitos envolvidos em razão da norma
proibitiva.
_______________
25
Ibidem, p. 114.
26
RODRIGUES, Luciana Boiteux Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese (Doutorado em Direito), Universidade de São Paulo.
São Paulo, 2006.
22
_______________
27
Encontro Nacional do Encarceramento Feminino, ocorrido em Brasília/DF, realizado no mês de junho de 2011
pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/57252-trafico-de-drogas-
estaligado-a-70-das-prisoes-de-mulheres-no-brasil>. Acesso em: jan. 2017.
28
HELPES, Sintra S. Vidas em jogo: um estudo sobre mulheres envolvidas com o tráfico de drogas. São
Paulo: IBCCrim. 2014. p. 149-151
23
Observa-se que houve avanço na legislação. Assim, por exemplo, o artigo 318 do
Código de Processo Penal, em seu inciso V, incluído pela Lei nº 13.257/2016 (Estatuto da
Primeira Infância), passou a prever a possibilidade de o juiz substituir a prisão preventiva pela
domiciliar quando o agente for gestante; mulher com filho de até 12 anos de idade
incompletos, ou homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 anos
de idade incompletos.
Essas iniciativas de apresentação de medidas alternativas, por si só, revelam,
entretanto, a fragilidade da pena privativa de liberdade. Aliás, abre-se espaço para uma
inquietação, a saber, se tais recursos, na verdade, não serviriam, em última análise, para
reforçar a aplicação da pena privativa de liberdade.
O que se percebe em instrumentos como a liberdade vigiada, limitação de final de
semana, penas restritivas de direito é que se constituem, na sua essência, em medidas
acessórias, tanto que estabelecidas como medidas cautelares.
Não se desconsidera que em alguns casos – se atendidos os pressupostos do artigo 44
do Código Penal31 – substituem-se as penas privativas de liberdade. Mas não há, também,
como se afastar a constatação de que são poucas as situações em que se alcança o
cumprimento de tais exigências.
Isso não obstante, tem-se iniciado o exercício de olhar a prisão de mães como um mal
para a infância. Assim, tem-se decisão do poder judiciário de Santa Catarina na ação de
execução de pena nº 0002363-46.2013.8.24.0038 em que se invocou a absoluta prioridade da
criança (artigo 227 da Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Primeira Infância – Lei nº
13.257/16 e as Regras de Bangkok) para conceder pedido de prisão domiciliar deduzido pela
defensoria pública em favor de uma detenta mesmo condenada à pena de reclusão em regime
fechado para restabelecer os laços familiares com os seus quatro filhos, sendo três deles
menores de 12 anos de idade.
No julgado, o magistrado fez referência ao laudo social que apontou consequências
negativas no comportamento das crianças ante a ausência da mãe. O juiz levou em
consideração que a questão envolvia administração de danos, uma vez que não seria possível
reunir as crianças com a mãe no ambiente insalubre do cárcere.
_______________
31
Art. 44. As penas restritivas de direito são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou
grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II – o réu não for reincidente em crime doloso;
III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta seja suficiente.
25
De toda sorte, a prisão domiciliar para mulheres encarceradas como método para se
evitar o rompimento do vínculo com os seus filhos já traz em si uma inovação significativa.
Há de se atentar, porém, que posta na lei como uma possibilidade e não como uma garantia,
acabe por permitir julgamentos morais de resquício patriarcal que impeçam o seu exercício.
4 Conclusão
A partir da análise dos dados estatísticos levantados por órgãos voltados para a
dinâmica do sistema penitenciário brasileiro, pode-se verificar o alto índice do crescimento da
população carcerária feminina no país se comparada ao crescimento da população carcerária
masculina no mesmo período.
Essa constatação gerou a necessidade de questionamento quanto à significativa
diferença entre os índices dos homens e das mulheres. A busca de resposta para a
desigualdade verificada inclinou a necessidade de a problemática ser vista sob a perspectiva
do gênero.
A revisão bibliográfica realizada neste trabalho no âmbito da sociologia, filosofia e
antropologia colheu textos, estudos e pesquisas para a compreensão da construção histórica e
cultural do ideal feminino esperado pelo patriarcado. Aqui, cabe lembrar a célebre frase de
Simone de Beauvoir de que “não se nasce mulher, torna-se mulher.”33
A linha da pesquisa do artigo serve para o entendimento do perfil das mulheres
encarceradas no país, máxime no que se refere à seletividade penal - jovens, mães, pretas e
pobres -, conforme os dados estatísticos referidos.
_______________
32
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ação de execução de pena numero 0002363-
46.2013.8.24.0038, da circunscrição judiciária de Joinville, 16 de março de 2016. Disponível em:
<http://emporiododireito.com.br/tag/prisao-domiciliar>. Acesso em: jan. 2017.
33
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo. v. II. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de J: Nova Fronteira, 1980.
p. 9.
26
_______________
34
MENDES, op. cit., p. 215-216.
27
5 Referências bibliográficas
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo. v. II. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de J: Nova
Fronteira, 1980.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ação de execução de pena número 0002363-
46.2013.8.24.0038, da circunscrição judiciária de Joinville, 16 de março de 2016. Disponível
em: <http://emporiododireito.com.br/tag/prisao-domiciliar>
DINIZ, Debora. Cadeia: Relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2015.
HELPES, Sintra S. Vidas em jogo: um estudo sobre mulheres envolvidas com o tráfico de
drogas. São Paulo: IBCCrim. 2014
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernart de. Penas Perdidas. O sistema penal em
questão. 2ª ed. Luam, Rio de Janeiro, 1997.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, São
Paulo: Malheiros, 2009.
29
QUEIROZ, Nana. Presos que Menstruam. 5ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2016.
SANTA RITA, Rosângela Peixoto. Mães e Crianças atrás das Grades: em questão o
princípio da dignidade da pessoa humana. Ministério da Justiça, 2007.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Trad. Christine Rufino
Dabat e Maria Betânia Ávila. Original: Gender: Na useful category of hystorical analyses.
S.O.S. Corpo, 1991.
ZERH, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a Justiça. São Paulo:
Palas Athena, 2008.