Artigo - Luciana Soares Spindola

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A MULHER ENCARCERADA NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO: A BUSCA DE

SOLUÇÕES PARA AS ESPECIFICIDADES DO GÊNERO FEMININO NO


TOCANTE À MATERNIDADE

THE WOMAN INCARCERATED IN THE BRAZILIAN CRIMINAL SYSTEM: THE


SEARCH FOR SOLUTIONS FOR THE SPECIFICITIES OF THE FEMALE GENDER IN
MATERNITY

Luciana Soares Spíndola

Sumário: Introdução 1. Mulheres encarceradas. 1.1 Perspectiva de


gênero; 1.2 Normas nacionais e internacionais de proteção à mulher
presa e à infância. 2. Situação atual das mulheres presas no Brasil. 3.
Medidas alternativas para o não encarceramento. 4. Conclusão. 5.
Referências bibliográficas.

RESUMO
A situação atual e duradoura da crise do sistema penal reclama que se retire da invisibilidade
a situação das mulheres encarceradas no Brasil. O alto índice de crescimento da população
carcerária feminina, comprovado por pesquisas realizadas por órgãos governamentais, se
comparada ao índice da população carcerária masculina no mesmo período, revela a
imprescindibilidade de o quadro devastador do sistema prisional ser visto e analisado sob a
perspectiva do gênero. Há de ser atentar para o condicionamento patriarcal exigido para o
papel da mulher na sociedade e o seu impacto nas consequências penais das atitudes
consideradas desviantes do padrão esperado pela comunidade em que inserida. O mais alto
grau de perversidade no encarceramento da mulher está relacionado ao se punir duplamente a
sua conduta, uma vez que além da pena que lhe é imposta, há a perda do vínculo familiar,
notadamente das mulheres que são mães. A justiça de uma decisão que segrega a mulher se
desfaz diante da perspectiva da criança, que se vê também punida com o rompimento do
vínculo com a pessoa de quem depende para o seu desenvolvimento pleno. A questão
discutida no trabalho perpassa o fracasso do sistema penal como um todo, tanto mais da
condição da mulher aprisionada, incluída em um sistema pensado por homens e para os
homens. As reflexões reclamam uma quebra do paradigma do encarceramento e apresenta
hipótese de urgência na concretização da inovação legislativa de possibilidade de prisão
domiciliar para as mulheres com filhos menores de idade.

PALAVRAS-CHAVE: Encarceramento da mulher. Gênero, Alternativa à pena privativa de


liberdade. Manutenção do vínculo familiar. Proteção à infância.
2

ABSTRACT
The current and lasting situation of the crisis in the criminal justice system demands that the
situation of women incarcerated in Brazil be removed from invisibility. The high rate of
growth of the female prison population, as evidenced by research carried out by government
agencies, compared to the rate of the male prison population in the same period, reveals the
indispensability of the devastating picture of the prison system being viewed and analyzed
from a gender perspective. It is necessary to be attentive to the patriarchal conditioning
required for the role of women in society and its impact on the penal consequences of
attitudes considered deviant from the pattern expected by the community in which it is
inserted. The highest degree of perversity in the incarceration of a woman is related to the
double punishment of her conduct, since in addition to the penalty imposed on her, there is the
loss of the family bond, especially of women who are mothers. The justice of a decision that
segregates the woman is discarded before the perspective of the child, who is also punished
with the breaking of the bond with the person on whom it depends for its full development.
The issue discussed in the work runs through the failure of the penal system as a whole, all
the more so in the condition of the imprisoned woman, included in a system thought by men
and for men. The reflections call for a breakdown of the incarceration paradigm and presents
a hypothesis of urgency in the implementation of the legislative innovation of the possibility
of house arrest for women with minor children.

KEYWORDS: Woman's imprisonment. Gender. Alternative to custodial sentence.


Maintenance of the family bond. Child protection.

INTRODUÇÃO
A noção de dignidade da pessoa humana sofre influência do tempo, do espaço, da
história e da cultura de um povo. Modernamente, no mundo ocidental, observa-se um esforço
para o consenso no sentido de que a dignidade humana pode ser compreendida, à luz da
moral, como o valor fundamental intrínseco do indivíduo pelas suas características
particulares que o tornam especial e único. Assim, "é por ter o valor intrínseco da pessoa
humana como conteúdo essencial que a dignidade não depende de concessão, não pode ser
retirada e não é perdida mesmo diante da conduta individual indigna do seu titular."1
No âmbito jurídico, a dignidade humana, alçada a princípio de estatura constitucional
no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, situa-se entre os direitos materialmente
fundamentais e inspira uma série de direitos fundamentais. Entre esses direitos, o da
integridade física, moral e psíquica, e o que afirma que todos têm o mesmo valor intrínseco,
independentemente de raça, sexo, orientação sexual, idade, religião, origem social ou
qualquer outra condição, qual seja, o direito à igualdade.

_______________
1
BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo:
natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público.
Mimeografado, dezembro de 2010. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-
content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf>. Acesso em: jan. 2017.
3

A progressiva valorização dos direitos humanos e dos direitos fundamentais se


refletiu na elaboração de documentos nacionais e internacionais voltados para a proteção das
situações em que aspectos da dignidade humana sofrem limitações frente a outros valores
individuais ou sociais, como o que ocorre quando da imposição da pena de prisão.
Assim, tem-se a Constituição Federal de 1988, a Lei de Execução Penal, as Regras
Mínimas das Nações Unidas e tantos outros compromissos firmados pelo Brasil no que se
refere ao tratamento de pessoas presas.
A observação do sistema prisional brasileiro deixa claro, entretanto, as graves
violações dos direitos fundamentais da população carcerária. A superlotação dos
estabelecimentos prisionais, a discriminatória seletividade social e racial evidenciada na
maioria de pretos, pardos e pobres; a carência de assistência jurídica e à saúde; a ineficiente
política de ressocialização e o alto índice de reincidência criminal compõem o quadro
desolador das pessoas em situação de cárcere no país.
Se o olhar do observador se volta para a situação das mulheres presas, ressalta a
dupla punição que se lhes impõem em razão de o sistema prisional ter sido criado por homens
e para os homens, em consonância com os ditames da sociedade patriarcal onde se acentuam
as desigualdades e discriminações decorrentes dos papéis sociais de dominação do homem em
relação à mulher.
As especificidades do gênero feminino, como a maternidade, o impacto físico e
psíquico da alteração cíclica dos hormônios, a gravidez, a amamentação, a saúde ginecológica
e a higiene não encontram adequação em um sistema concebido para receber homens, e não,
mulheres.
Além das peculiaridades citadas, cabe ressaltar que as mulheres encarceradas, em
geral, são as responsáveis pelo sustento, proteção e cuidados com os seus filhos menores. A
segregação a elas impostas acaba por penalizar também os filhos nascidos durante o
cumprimento da pena restritiva de liberdade, que se vêm inseridos no ambiente prisional, bem
como aqueles afastados do convívio com a mãe e passados à guarda de familiares,
institucionalizados em creches ou postos à adoção.
As estatísticas apontam que o número de mulheres presas está aumentando a uma
velocidade mais rápida se comparado ao crescimento da população de detentos do sexo
masculino.
Assim, a população carcerária feminina cresceu 567% nos últimos quinze anos (2000
a 2014), segundo levantamento nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da
4

Justiça - INFOPEN Mulheres2 do Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN, alcançando


o número de 37.380 detentas. A média de crescimento nos presídios masculinos foi de
220,20% no mesmo período, conforme informação da mesma pesquisa.
O citado registro do INFOPEN Mulheres, de junho de 2014, fez-se com a ressalva de
que há significativa deficiência de dados e indicadores quanto ao perfil de mulheres em
privação de liberdade nos bancos de dados do governo, o que contribui para a invisibilidade
das necessidades dessas pessoas.
O tema, portanto, possui relevância política, social e acadêmica. Expõe as
deficiências do sistema penal para atender às demandas específicas da condição feminina e a
urgência para que se retirem da invisibilidade as mulheres em situação de cárcere. Encontra-
se no núcleo do debate de novos paradigmas para as questões de gênero que instruam o
legislador e o poder judiciário, bem como a elaboração de políticas públicas que concretizem
efetivamente os direitos fundamentais e os direitos humanos em relação às mulheres
confinadas e aos filhos dessas mulheres.
O presente artigo se amparou nas discussões e contribuições acadêmicas (pouco)
disseminadas no país e no estrangeiro e na incipiente jurisprudência apta a compor o
complexo quadro da situação atual das mulheres sob cárcere no país.
Ressalte-se que o objeto do trabalho se traduz em analisar as condições do cárcere
feminino no sistema prisional brasileiro como meio de aprimoramento para conferir tutela
adequada ao gênero feminino em razão das suas especificidades, especialmente no tocante à
maternidade - também justificada pela necessidade de proteção à população infanto-juvenil -
na linha de compromissos assumidos pelo Brasil perante a ordem constitucional e no plano
internacional.
Importa registrar que o tema relaciona-se a nossa experiência no trabalho de
assessoria jurídica do Ministério Público em que são raros os processos criminais analisados
no cotidiano laboral em que se apura que a mulher presa recebe do sistema penal um
tratamento adequado às especificidades do gênero, máxime em relação à maternidade, o que
terminou por gerar a inquietação propulsora da realização da pesquisa.

O cerne da questão a ser tratada consiste na análise das condições do aprisionamento


da mulher infratora no sistema penal brasileiro sob o aspecto das especificidades do gênero
feminino, especialmente daquelas mulheres que possuem filhos menores de idade.
_______________
2
BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. INFOPEN Mulheres. Junho de 2014.
Disponível em < http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-
brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: jan. 2017.
5

A composição do problema assim se apresenta: quais são as formas de cumprimento


de pena pelas mulheres infratoras adequadas à condição feminina, notadamente para aquelas
que possuem filhos menores de idade para que se efetive o princípio da igualdade e a integral
proteção à infância?
A principal técnica utilizada na abordagem do problema se realizou por meio da
pesquisa bibliográfica e documental, considerado o caráter teórico-argumentativo. O
desenvolvimento do processo de análise se baseia na conceituação substantiva, jurídica e
sociológica, dos seguintes termos: Princípio da Igualdade; Gênero feminino; Criminologia
Feminista.

A forma de abordagem encontra-se circunscrita à pesquisa dogmática com enfoque


sociojurídico, dada a necessidade de se estabelecer interdisciplinaridade entre o campo do
Direito e outras esferas do conhecimento – como acima apontado – para buscar uma resposta
mais adequada ao problema, que não poderia se dar sem uma perspectiva de gênero.
A revisão bibliográfica se apoiou em obras e trabalhos acadêmicos que discorrem
sobre sistema penitenciário e dados colhidos por órgãos públicos, em especial o Conselho
Nacional de Justiça – CNJ e o Departamento Penitenciário Nacional – Ministério da Justiça.
Ainda na revisão bibliográfica deste trabalho, preponderam conceitos e investigação
científica no âmbito da criminologia feminista, notadamente da obra da professora Soraia
Mendes.
Como subsídio à revisão bibliográfica, utilizou-se pesquisa de campo realizada por
pesquisadores contemporâneos da estatura de Debora Diniz e Nana Queiroz, em que constam
relatos do cotidiano de mulheres encarceradas.
A inspiração e o norte do artigo foram pontualmente trabalhados nas horas de
discussões teóricas e vivências colhidas da cátedra e experiência forense da professora
Cristiane Damasceno Leite Vieira.
No tocante ao desenvolvimento do presente artigo científico, optou-se pela divisão
em três capítulos. O primeiro, intitulado Mulheres Encarceradas e dividido em dois tópicos,
aborda a seletividade do sistema de justiça criminal, a inadequação do sistema prisional
(masculino) imposto à mulher e a situação de invisibilidade da população carcerária
feminina e dos seus filhos sob a perspectiva do gênero. Discorre-se sobre normas nacionais e
internacionais e boas práticas para a mulher encarcerada, destacando-se as Regras de
Bangkok e a Lei de Proteção à Infância (Lei nº 13.257/2016).
6

No segundo capítulo, intitulado Situação Atual da Mulher Presa no Brasil, o


levantamento geral de dados estatísticos buscou trazer visibilidade para a precária condição
da mulher sob cárcere, destacando-se o alto crescimento da população carcerária feminina, o
percentual também elevado de mulheres detidas à espera de julgamento e as inadequações
físicas dos estabelecimentos prisionais.
No terceiro capítulo, Medidas Alternativas ao Encarceramento da Mulher, discorre-se
brevemente sobre as teorias em defesa do não encarceramento para subsidiar a quebra do
paradigma da pena privativa de liberdade na forma de prisão. Faz-se análise de julgados dos
tribunais pátrios que vêm se preocupando em harmonizar o cumprimento de pena com a
condição feminina, notadamente a maternidade e a proteção à infância para que não se tenha
rompido o vínculo familiar. Apresentam-se as vantagens psicológicas e sociais de preservar
o convívio diário da mulher infratora com os seus filhos.
A hipótese é a de lançar a reflexão de que o cárcere não se compatibiliza com as
especificidades do gênero feminino e que é medida de urgência que as mulheres infratoras,
presas preventivamente e as condenadas à pena privativa de liberdade, que possuem filhos
menores de idade, não sejam confinadas em presídios e, sim, aguardem julgamento ou
cumpram pena em regime de prisão domiciliar para que não tenham rompido o vínculo com
os seus filhos.
A intenção é lançar que tal solução atende aos ditames de um Estado que se pretende
Democrático de Direito e busca realizar o princípio da igualdade e, ainda, sustentar que a
medida proposta contribuiria para a interrupção do ciclo de violência que macula os filhos da
mulher confinada no sistema prisional, aumentaria a possibilidade de ressocialização da
infratora e diminuiria a reincidência criminal.
Por último, ressalte-se que a opção pelo presente trabalho dar-se na forma de artigo
científico se harmoniza com o propósito de contribuir para tornar mais fluida e visível a
constatação da grave situação das mulheres presas e a de seus filhos no Brasil.

1 Mulheres encarceradas

1.1 Perspectiva de gênero

Ao homem, os espaços públicos e, à mulher, o privado, a vigilância. Há muito as


mulheres conhecem a contenção dos gestos, da fala, do pensamento. O sistema patriarcal se
incumbiu de atribuir papeis rígidos condicionados pelas diferenças biológicas entre o homem
e a mulher.
7

A submissão da mulher a diversos poderes que se voltaram e ainda se voltam para a


sua criminalização e vitimização vem descrito como custódia, ou seja, o conjunto de tudo o
que se faz para reprimir, vigiar e encarcerar a mulher.3
A autora Joan Scott observa que a expressão gênero surgiu como resposta ao
entendimento de que o gênero é culturalmente construído, superando o determinismo da
diferença biológica entre os sexos:
Minha definição de gênero tem duas partes e vários itens. Eles estão inter-
relacionados, mas devem ser analiticamente distintos. O coração da
definição reside numa ligação integral entre duas proposições: gênero é um
elemento constitutivo das relações sociais baseado em diferenças percebidas
entre os sexos (...). Entretanto, minha teorização de gênero está na segunda
parte: gênero como uma forma primária de significação das relações de
poder. Talvez fosse melhor dizer que gênero é um campo primário no qual
ou através do qual o poder é articulado.” 4

A invisibilidade das questões relacionadas ao gênero feminino, notadamente na


criminologia, foi registrada por Soraia Mendes:
Como visto, a criminologia nasceu como um discurso de homens, para os
homens, sobre as mulheres. E, ao longo dos tempos, se transformou em um
discurso de homens e sobre homens. Pois, já não era mais necessário, para
alguns, “estudar” as mulheres; ou, politicamente relevante, para outros,
considerar as experiências destas enquanto categoria sociológica e filosófica,
como ensina Lourdes Bandeira. De maneira que, no discurso criminológico
competente atual, a mulher surge somente em alguns momentos. Mas, no
máximo, como uma variável, jamais como um sujeito. 5

Bourdier destaca que a diferença anatômica entre os órgãos sexuais masculinos e


femininos serviu de “justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros
e, principalmente da divisão social do trabalho” 6 , o que, em última análise termina por
reservar, na sociedade patriarcal, o protagonismo da esfera produtiva aos homens e do círculo
reprodutivo, às mulheres.
Registros e dados estatísticos verificados nas taxas de criminalidade nos últimos anos
levam a crer que à medida que há maior participação feminina na força de trabalho e maior

_______________
3
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.
4
Artigo publicado em 1988 – Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Disponível em:
<https://archive.org/details/scott_gender>. Acesso em: jan. 2017.
5
MENDES, op. cit., p. 157.
6
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 6ª edição. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2009. p. 158.
8

igualdade entre os sexos, a participação da mulher nas estatísticas criminais também


aumenta7, bem como aumenta a incidência das mulheres no tráfico de drogas.
A relevância da análise sob a perspectiva de gênero e o alcance do termo se estabelece
para que seja possível estudar os conflitos que envolvem homens e mulheres e, aqui, para
melhor compreensão da sistemática em que está inserida a mulher encarcerada no sistema
prisional brasileiro. A compreensão da criminalidade feminina propicia um sentido mais
amplo do que a forma de lidar com a população carcerária feminina ou a mera reabilitação das
presas. Atinge, na verdade, a própria necessidade de modificação das relações sociais entre os
sexos e das instituições tradicionais de custódia da mulher.
Na prisão, a discriminação e a opressão se fazem na aviltante desigualdade do
tratamento dispensado à mulher, algo infantilizado e preponderantemente moralizador, e no
sentido peculiar que a prisão tem para ela. Acrescidos a isso, tem-se o impacto que o
rompimento do convívio gera para sua família, a forma como o poder judiciário se posiciona
em relação ao desvio feminino e também o estigma que a sociedade se lhe impõe.
A prática do crime pela mulher, no contexto atual do país, está quase sempre
relacionada à busca de prover condições de subsistência para seus filhos. Situação comum,
ainda, a de que a mulher se incline à prática infratora (predominantemente com o
narcotráfico) para favorecer o seu companheiro, realizando o cumprimento do seu papel de
abnegação culturalmente e historicamente imposto pelo patriarcado.
Nessa linha, segundo o registro de Glaucia Starling Diniz, as mulheres são:
(...) ensinadas a se sacrificar e a negligenciar suas necessidades para apoiar
as necessidades dos outros e para potencializar os projetos de vida do marido
e dos filhos. O esquecimento de si e o cuidado com o outro passam a ser
marcas registradas do comportamento das mulheres. Seu trabalho cotidiano é
invisível, e com isso, aos poucos sua história e sua identidade vão se
tornando também invisíveis, diluídas na vida dos outros membros da
família8.

A consideração de Soraia Mendes confirma que “se de um lado, o controle a que estão
submetidas as mulheres na família, escola, trabalhos, meios de comunicação não é
propriamente jurídico, por outro, o sistema penal cumpre uma função disciplinadora para
manter a subordinação feminina.”9
_______________
7
LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos Vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres. Rio de Janeiro:
Achiamé, 1983. p. 14.
8
DINIZ, Glaucia Ribeiro Starling; PONDAAG, Mirian Cássia Mendonça. A face oculta da violência contra a
mulher: o silêncio como estratégia de sobrevivência. In: DINIZ, Glaucia Ribeiro Starling et al (orgs.).
Violência, exclusão social e desenvolvimento humano: estudos em representações sociais. Brasília: Universidade
de Brasília, 2006. p. 238.
9
MENDES, op. cit., p. 165.
9

Olga Spinoza alerta para que:


Contudo, uma das principais contribuições dos movimentos feministas tem
sido revelar a condição de gênero nas relações sociais, buscando com isso
que identifiquem homens e mulheres como seres humanos potencialmente
iguais em direitos e em dignidade.10

Para Santa Rita, a mulher presa perde seu papel de mulher, esposa, mãe e filha,
evidenciando a clara quebra de vínculos familiares. À presença do filho na prisão atribui-se a
benesse de retirar a mulher das galerias prisionais e amenizar as violências institucionais,
mas, ao se separar da criança, o abalo psíquico-emocional é descrito como uma das piores
perdas. 11
No sistema prisional tem-se reproduzidos de forma potencializada o julgamento moral
que somente às mulheres se dirige por não corresponderem ao ideal da ótica masculina de
docilidade, submissão e papel coadjuvante.
É também do mundo masculino o ambiente prisional que por eles foi criado e para
eles dirigido, haja vista que se imprimiu historicamente que a transgressão insere-se no papel
masculino. Por isso, Nana Queiroz diz:
Assim, ignoramos as transgressões de mulheres como se pudéssemos manter
isso em segredo, a fim de controlar aquelas que ainda não se rebelaram
contra o ideal da „feminilidade pacífica‟. Ou não crescemos ouvindo que a
violência faz parte da natureza do homem, mas não da mulher?
É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os
criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas igualdade é desigual
quando se esquecem das diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no
chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas
e filhos que temos de lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam. 12

As mulheres aprisionadas, em geral, conforme perfil delineado a partir do citado


levantamento nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, são jovens de
baixa renda, têm filhos que dependem econômica e funcionalmente delas, e a sua vinculação
penal se deu por envolvimento com o tráfico de drogas em conduta não relacionada à gerência
do tráfico de entorpecentes ou a organização criminosa.
O papel secundário da mulher na organização do tráfico ilegal de drogas mereceu da
pesquisadora Débora Diniz a observação:
O principal crime é a categoria ambígua de “tráfico de drogas”. Não conheci
uma traficante semelhante a líder de facção criminosa, talvez uma
característica do tráfico na capital ou, quem sabe, da traficante dos presídios
_______________
10
ESPINOZA, Olga. A Mulher Encarcerada em Face do Poder Punitivo. São Paulo. IBCCRIM, 2004. p. 53.
11
SANTA RITA, Rosângela Peixoto. Mães e Crianças atrás das Grades: em questão o princípio da
dignidade da pessoa humana. Ministério da Justiça, 2007
12
QUEIROZ, Nana. Presos que Menstruam. 5ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2016. p. 19.
10

do país. Elas eram mulheres comuns, donas de casa, ambulantes ou


empregadas domésticas, que um dia resolveram levar drogas no corpo para
os maridos ou companheiros no presídio masculino. Ou que acharam
possível esconder um pacote de cocaína embaixo da cama, ou vender
pamonha com maconha.13

A desigualdade entre homens e mulheres na sociedade e nas relações de trabalho se


repete no contexto criminal. A atividade desenvolvida pelas mulheres nos crimes ligados ao
narcotráfico, em grande parte, corresponde ao de menor hierarquia. São mulheres com
histórico de abandono, violência, dependência química. A elas cabe, no mais das vezes,
entregar as substâncias aos consumidores ou o transporte da droga, parte, assim, mais
suscetível aos riscos de sua saúde e à prisão.
Ao serem detidas, sujeitam-se a tratamento cruel e discriminatório em relação ao
gênero, não sendo raros os relatos de abuso e violência sexual.
No cárcere, é comum as atividades ocupacionais, quando existem, serem voltadas para
trabalhos manuais, como artesanato e costura, reproduzindo e reforçando nas prisioneiras que
seu mundo se reduz a vida doméstica. Não há espaço para que pratiquem algum esporte, que
serve ao desenvolvimento físico, estimula a competição, a capacidade de adquirir um grau
mais elevado de autoestima e valorização no grupo a que pertence.
De toda sorte, o que se constata é que não há preocupação efetiva para que a mulher
venha a aprender ou desenvolva habilidade técnica, industrial e mental que a prepare para a
disputa profissional na vida fora da prisão. Ao contrário, o que se lhe impõe é a docilidade, a
valorização de que cuidar do outro é mais importante do que cuidar de si, embaçando-lhe a
visão quanto à possibilidade de conquistar outros horizontes.
De volta à vida fora do cárcere, continuará restrita ao mundo doméstico e a
subempregos que lhe permitam continuar a cuidar sozinha da casa e dos filhos. E como não é
oportunizado à mulher o enfrentamento de novos desafios e o estímulo de que poderia
enfrentá-los e ampliar as oportunidades de um novo modo de vida, o que lhe resta é a o papel
subalterno de guardar em casa e empacotar as drogas ou servir de mula, termo utilizado para
determinar a pessoa que leva a substância ilegal ao destino determinado. Volta-se a repetir a
conduta que a levou ao cárcere.
Com a segregação que lhes é imposta, as mulheres têm interrompido o convívio com
os filhos, que passam a guarda de familiares ou são institucionalizados sob a custódia do
Estado. Se a maternidade ocorre durante a permanência no cárcere, a criança é mantida com a

_______________
13
DINIZ, Debora. Cadeia – Relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 211.
11

progenitora pelo período da amamentação, submetidos ambos ao reconhecidamente precário


ambiente prisional. Grande parte dessas mulheres é abandonada pelos companheiros, situação
que não é significativa quando é o homem a ser preso.
As peculiaridades do gênero feminino permanecem sem a adequada correspondência
em um sistema prisional que foi concebido sob a ótica masculina, não obstante o progressivo
movimento social e legal para suprir as deficiências apontadas.
Essa constatação de invisibilidade da condição da mulher encarcerada reclama
especificidade no tratamento da sociedade, das leis e das políticas públicas voltadas para a
singularidade do gênero.
Nessa toada, Paulo Gustavo Gonet Branco registra que:
Os direitos fundamentais que, antes, buscavam proteger reivindicações
comuns a todos os homens passaram a, igualmente, proteger seres humanos
que se singularizam pela influência de certas situações específicas em que
apanhados. Alguns indivíduos, por conta de certas peculiaridades, tornam-se
merecedores de atenção especial, exigida pelo Princípio do respeito à
dignidade humana. Daí a consagração de direitos especiais aos enfermos, aos
deficientes, às crianças, aos idosos... O homem não é mais visto em abstrato,
mas na concretude das suas diversas maneiras de ser e de estar na
sociedade.14

Um claro exemplo de que o sistema prisional não atende às nuances do gênero


feminino é a distância física entre o local onde situado os presídios e a comunidade em que
inserida a estrutura familiar da mulher posta sob a custódia do Estado. Não se leva em
consideração que são elas as principais responsáveis pela manutenção da prole sob o aspecto
material e emocional e que a distância e a dificuldade de acesso ao estabelecimento prisional,
por vezes, inviabiliza a manutenção do vínculo familiar, principalmente com os seus filhos
menores de idade.
Àquela mulher que é ensinado e imposto o papel de mãe e cuidadora do lar, além da
liberdade, retira-se também o único mundo que conhece, somando-se, ainda, a perda do lar e
dos filhos, em sofrimento extremamente difícil de suportar e exclusivamente ligado ao que a
sociedade e a cultura vincularam como ideal ao gênero feminino.
No caso de mulheres chefes de família, os efeitos do desfazimento do vinculo em
relação aos filhos e a ela é devastador. Os filhos são entregues às avós ou encaminhados a
órgãos de assistência social, e ainda pende sobre a mulher a culpa pelo abandono material e
emocional dos filhos, desonra que os próprios familiares buscam esconder e, por vezes,
_______________
14
MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9ª edição.
São Paulo: Saraiva, 2014. p 156.
12

terminam por incutir nos filhos das presas palavras de alienação parental ou mesmo optar por
dizer que a presa deve estar morta.
A modificação do sistema penal brasileiro para adequação às condições femininas é
necessária para que se realize o princípio da igualdade, assim delineado por Celso Antônio
Bandeira de Mello:
O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem
embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua,
reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as
normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as
pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por
regimes diferentes. Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e
obrigações que não assistem a outras, por abrigadas em diversa categoria,
regulada por diferente plexo de obrigações e direitos.15

Por pertinente, ressalte-se que as políticas públicas e as mudanças legislativas e sociais


não devem ser restritas ao tema da maternidade para que não se repitam os comportamentos
patriarcais que reduzem a mulher ao papel de mãe, perpetuando o conceito tradicional de que
a ela cabe o cuidar do outro e a vida doméstica.
Tem-se, assim, que a redução das desigualdades de gênero e o enfrentamento da
ineficácia do sistema prisional brasileiro são relevantes desafios a serem superados para uma
efetiva consolidação do ideal democrático da Constituição Federal.

1.2 Normas nacionais e internacionais de proteção à mulher presa e à infância

Na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, há vedação de penas cruéis,


garantia ao preso do respeito à sua integridade física e moral e determinação para separação
dos encarcerados por gênero. A Constituição também assegura o direito de os filhos
permanecerem com as mães durante o período da amamentação.
A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) dispõe sobre a obrigatoriedade de
berçários nos estabelecimentos prisionais femininos para as condenadas amamentarem seus
filhos. O preceito também se encontra no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº
8.069/1990) e nas Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil (Ministério da
Justiça, 1995).
A Lei nº 12.962/2014 trouxe alteração ao Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA
(Lei nº 8.069/1990) para assegurar a convivência da criança e do adolescente com os pais
_______________
15
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, São Paulo: Malheiros,
2009. p. 12-13.
13

privados de liberdade, e, ainda, fixou, na redação do parágrafo 2º do artigo 23 que: “a


condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto
na hipótese de condenação por crime doloso, sujeito à pena de reclusão, contra o próprio filho
ou filha.”
A Lei da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), por sua vez, responde à convocação
dos organismos internacionais para a especial atenção que deve ser dispensada aos filhos de
pessoas aprisionadas para diminuir o impacto da penalidade na sua prole.
Assim, por força da inovação trazida pela Lei da Primeira Infância, o artigo 318 do
Código de Processo Penal passou a prever a possibilidade de o juiz substituir a prisão
preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante; mulher com filho de até 12 anos de
idade incompletos, ou homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12
anos de idade incompletos.
A Conferência Mundial dos direitos Humanos, realizada em Viena na Áustria (junho
de 1993), reconheceu no seu artigo 18 que:
Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e
constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais
(...). Os direitos humanos das mulheres devem incluir a promoção de todos
os instrumentos de direitos humanos relacionados à mulher.16

Mais recentemente, a 65ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas


(ONU), para complementar as Regras Mínimas para o tratamento de reclusos e as Regras
mínimas das Nações Unidas sobre medidas não privativas de liberdade (Regras de Tóquio),
aprovou, em dezembro de 2010, as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres
Presas e Medidas não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras: as Regras de
Bangkok.
O documento internacional, traduzido pelo Conselho Nacional de Justiça, abre novos
paradigmas para a questão do gênero feminino, notadamente quanto à recomendação de
adoção de medidas alternativas ao aprisionamento feminino, dando relevo às questões da
gravidez e do cuidado com os filhos.
Enfatiza-se nas Regras de Bangkok que deve ser priorizada, sempre que possível, ao
sentenciar ou aplicar medidas cautelares à gestante ou à pessoa que seja a principal ou a única
responsável por uma criança, a imposição de medidas não privativas de liberdade e que a

_______________
16
LEGISLAÇÃO Internacional. Declaração e Programa de Ação de Viena. Disponível em
<http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-e-Programa-de-
A%C3%A7%C3%A3o-de-Viena-Confer%C3%AAncia-Mundial-sobre-DH.pdf>. Acesso em: jan.2017.
14

imposição de penas privativas de liberdade devem ser consideradas tão somente em casos de
crimes graves ou violentos.
Em sintonia com as inovações legais, o Conselho Nacional de Justiça noticia a
elaboração de uma resolução que pretende estabelecer diretrizes para o acompanhamento das
mulheres e da sua prole, bem como das gestantes, com a finalidade de dar mais estrutura a
essas crianças e obstar que elas tomem o rumo da criminalidade no futuro.
As Regras de Bangkok já encontraram ambiente de discussão no sentido da efetiva
implantação das suas orientações no Supremo Tribunal Federal. Assim, lê-se da ementa do
Habeas Corpus 134.734/SP:
EMENTA: Prisão em flagrante. Prisão preventiva. Mulher que se encontra
em qualquer das situações excepcionais referidas no rol taxativo inscrito no
art. 318 do CPP. Conversão em prisão domiciliar. Regras de Bangkok,
promulgadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Inovações
introduzidas no direito interno brasileiro: CPP, LEP, Lei das Medidas
Cautelares e Lei da Primeira Infância. Outorga de tratamento diferenciado à
mulher presa que ostente, entre outras, a condição de grávida ou de nutriz
(lactante). Legitimidade desse tratamento, que também se justifica pela
necessidade de respeito ao princípio constitucional que consagra o dever
estatal de proteção integral da criança e do adolescente. Incidência da
Convenção dos Direitos da Criança. Precedentes do Supremo Tribunal
Federal, particularmente de sua Segunda Turma. Conversão do julgamento
deste “habeas corpus” em diligência, para que o impetrante comprove que a
paciente se enquadra em qualquer das situações previstas no art. 318 do
CPP.17

No Superior Tribunal de Justiça, com base no Estatuto da Primeira Infância (Lei


13.257/16), o Ministro Rogério Schietti Cruz concedeu liminar no Habeas Corpus nº
351.494/SP, em 14 de março de 2016, para substituir a prisão preventiva por domiciliar no
caso de uma jovem mãe de 19 anos acusada de tráfico de drogas.
As normas nacionais e internacionais delineadas nas últimas décadas vêm lançando
um olhar sobre os impactos do patriarcado, sedimentado ao longo da história da humanidade,
e que sempre informou a relação de dominação e poder dos homens sobre as mulheres,
relegando-as a um plano secundário.
A melhoria da degradante realidade do sistema prisional brasileiro, especialmente no
que se relaciona à mulher aprisionada, não foi alcançada pela inspiração das normas aqui
referidas. As questões do encarceramento feminino, a par das inovações legislativas, carecem
de efetivas políticas públicas para que essa população deixe de ser relegada ao ostracismo.

_______________
17
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus no 134.734, 30 de junho de 2016. Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=309626624&tipoApp=.pdf>. Acesso em: jan.
2017.
15

2 Situação atual das mulheres presas no Brasil

Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN


MULHERES)18, de junho de 2014, informam que a taxa de aprisionamento de mulheres do
ano 2000 ao ano de 2014 cresceu 567%, alcançando o número de 37.380 mulheres.
Figura 1- Evolução da população de mulheres no sistema penitenciário. Brasil. 2000 a
2014

Fonte: Ministério da Justiça – a partir de 2005, dados do Infopen/MJ

Essa informação, por si só, deixa evidente que a análise da crise do sistema penal
brasileiro não prescinde do olhar sob a perspectiva do gênero, tanto mais diante do registro de
que, ainda segundo o órgão do Ministério da justiça, a população de homens presos, no
mesmo período de 2000 a 2014, cresceu 220%.
Por sua vez, a análise da figura 2 retrata que a situação devastadora do aumento da
população carcerária feminina encontra-se disseminada em todo o território nacional,
destacando-se o Estado de Alagoas, que registra o maior crescimento, qual seja de 444%, em
contraponto, a população masculina naquele estado, que cresceu 250%.
Ressalte-se que, apesar do aumento da população carcerária feminina, os
estabelecimentos prisionais que a recebem são aqueles concebidos para homens. Vê-se, ainda
segundo os dados do Infopen-Mulheres que, em junho de 2014, havia 1420 unidades

_______________
18
BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. INFOPEN Mulheres. Junho de 2014.
Disponível em <http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-
brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: jul.2016.
16

prisionais no sistema penitenciário estadual, voltados quase exclusivamente para a população


carcerária masculina (75%). Apenas 7% desses estabelecimentos são direcionados para a
população carcerária feminina e 17% são mistos, ou seja, podem ter uma ala específica para
mulheres no interior de um estabelecimento masculino.
Figura 2 – Variação percentual da população privada de liberdade por gênero.
Unidades federativas. 2007 a 2014

Fonte: Infopen, jun/2014. Departamento Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça.

Das unidades que mantém mulheres no cárcere menos da metade dispõe de cela ou
dormitório adequado para gestantes. Em relação à existência de berçários ou centro de
referência materno infantil, 32% das unidades femininas têm esse espaço. As unidades mistas,
por sua vez, contam com apenas 3% de espaços separados para o fim referido.19
O quantitativo de mulheres que se encontram privadas de liberdade sem terem ainda
condenação judicial é outro dado perverso da situação prisional feminina. Apesar de o

_______________
19
BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. INFOPEN Mulheres. Junho de 2014.
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-
brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: jan. 2017.
17

patamar nacional de 30%, percebe-se que há um enorme distanciamento do percentual dos


estados da federação vistos individualmente. A distorção ocorre porque o Estado de São Paulo
– que possui 39% do total das mulheres presas no país conta com o percentual de 9% de
índice de mulheres detidas sem condenação no Brasil. Note-se que apenas São Paulo e
Rondônia situam-se no patamar de menos de 20%. A situação do Estado de Sergipe é
calamitosa: registra que 99% das mulheres que se encontram presas ainda não foram julgadas.
Figura 3 – Percentual de mulheres presas sem condenação. Unidades federativas.
Junho de 2014

Fonte: Infopen, jun/2014. Departamento Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça

O crescimento vertiginoso da população carcerária se deu, notadamente, em razão de


práticas relacionadas ao narcotráfico. E, neste ponto, a questão da desigualdade social entre
homens e mulheres toma proporções bem destacadas, uma vez que, também nas atividades
ligadas ao tráfico ilícito de drogas, as mulheres ocupam, em geral, posições subalternas, como
as de entrega das drogas, conhecidas pelo termo popular mulas. O desempenho dessa função é
o que mais expõe à prisão em flagrante e compõe a lista de motivos para o enorme
crescimento populacional feminino na última década.
18

Figura 4 - Distribuição por gênero dos crimes tentados/consumados entre os registros


das pessoas privadas de liberdade. Brasil. Junho de 2014.

Fonte: Figura elaborada pela autora a partir de dados do Infopen, jun/2014.


Departamento Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça.
Agrega-se, ainda, a circunstância de as tarefas atribuídas à mulher no tráfico de drogas
poderem, no mais das vezes, serem exercidas no ambiente doméstico onde alternam os
cuidados com a casa e com a família.
Vê-se da figura 4 que a maior parte das mulheres está presa pela prática de crime de
tráfico de drogas. Dos homens tão somente 25% respondem pelo mesmo crime. Ainda quanto
aos homens, 21% respondem por roubo e 12% por furto. A partir desses dados, ressalta que os
homens se beneficiam do indulto natalino, sorte que não alcança tanto as mulheres, uma vez
que o tráfico de drogas, ainda que envolvendo pequena quantidade e praticado sem violência,
não permite que façam jus ao benefício. A constatação alerta para uma mudança que garanta a
população feminina encarcerada por força da figura do tráfico privilegiado e da do tipo básico
do tráfico a benesse do indulto.
19

A resposta social às mulheres que cometem crime tem sido repetidamente


menosprezada. As discussões quanto à diferenciação entre homens e mulheres ainda não
propiciaram uma mudança significativa na situação das mulheres encarceradas. Daí, a
importância de estudos nessa área de criminalidade feminina, justamente para romper com a
invisibilidade da mulher no sistema penal brasileiro predominantemente voltado a perspectiva
androcêntrica.

3 Medidas alternativas para o não encarceramento

A pena privativa de liberdade é a mais antiga e principal resposta ao crime, certo que
“as prisões constituíram uma forma de dosar a punição em unidades de tempo, oferecendo
uma certa aparência de racionalidade e mesmo de ciência à aplicação da dor.”20
Calcado o aprisionamento como medida de controle nas teorias do paradigma
retributivo da pena, quais sejam a teoria absoluta – pune-se porque pecou; a teoria relativa
(utilitarista) – pune-se para que não peque mais, e a teoria mista – pune-se porque pecou e
para que não peque mais, tem-se que a crise duradoura e ainda atual do sistema de justiça
criminal nos incita à reflexão sobre a necessidade da quebra do paradigma do encarceramento.
Para a teoria absoluta, que tem como defensores Immanuel Kant e Friedrich Hegel, a
pena deve ser entendida como um fim em si mesma. Assim, a pena seria tão somente
compensação (retribuição ou reparação).
Nesse sentido, a explanação de Paulo Queiroz, de que “para Kant, a pena atende a uma
necessidade absoluta de justiça, que deriva de um „imperativo categórico‟, isto é, de um
imperativo moral incondicional independente de considerações finais ou utilitárias.”21
O contraponto à teoria absoluta, por sua vez, traz as teorias utilitaristas, que conferem
à pena a intenção de prevenção de futuros crimes, concebendo a pena como um meio ao invés
de um fim ou valor. A prevenção de novos delitos, aqui, é a finalidade da pena.
Nessa linha, Eugênio Zaffaroni esclarece que:
As teorias relativas desenvolveram-se em oposição às teorias absolutas,
concebendo a pena como um meio para obtenção de ulteriores objetivos.
Essas teorias são as que se subdividem em teorias relativas da prevenção
geral e da prevenção especial, cujos conceitos já examinamos: na prevenção

_______________
20
ZERH, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a Justiça. São Paulo: Palas athena,
2008. p. 114.
21
QUEIROZ, Paulo. Funções do direito penal. Legitimação versus deslegitimação do sitema penal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001. p. 19.
20

geral a pena surte efeito sobre os membros da comunidade jurídica que não
delinquiram, enquanto na prevenção geral age sobre o apenado.22

De toda sorte, ainda que brevemente mencionadas, vê-se que as principais teorias
justificativas do poder punitivo não conseguem enfrentar e superar a falência da pena
privativa de liberdade.
O sistema garantista, por sua vez, advoga a relegitimação do sistema penal sob o
fundamento de que a eliminação do sistema penal como um todo acarretaria o aumento da
vingança privada.
Pode-se concluir que o atual modelo de justiça penal, estruturado na pena privativa de
liberdade, não é apto para a responsabilização dos que transgridem as regras, não produz
justiça e muito menos pode ser considerado um verdadeiro sistema.23
Registro que a contribuição da cátedra de Louk Hulsman atualizou o debate sobre
abolicionismo ao questionar não apenas a pena de prisão, mas o sistema penal em si. O jurista
incita uma nova visão do crime, da pena e da estrutura penal como um todo.
Hulsman aponta que o sistema somente intervém em situações excepcionais, não serve
para prevenir delitos e não funciona como almejado pelos princípios que busca legitimá-los.
Suas críticas apontam que, na verdade, o sistema penal propicia um reforço para as
desigualdades sociais e provoca danos até mesmo naqueles que se diz pretender proteger.
Acrescenta que ao definir fatos como delito reduz-se a possibilidade de compreensão lúcida
do acontecimento e de uma resposta racional para a situação.24
Por último, abolicionistas e garantistas se direcionam no sentido da abolição do
paradigma da prisão pena se se entender que a diferença entre eles se faz na medida em que o
garantismo busca não apenas a deslegitimação, mas, também a relegitimação do sistema
penal.
Para Hulsman, ademais, não existem motivos para se entender que o sistema penal
teria o papel de substituir e impedir a vingança privada, certo que o renascimento de
estruturas agindo sob a forma de autodefesa punitiva (justiça privada) ocorre em situações
mesmas em que o sistema penal encontra-se em funcionamento pleno. Conclui que não

_______________
22
ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, parte
geral, volume I, 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 108.
23
PALLAMOLLA, Rafaella da Porciúncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
2009. p. 29
24
HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernart de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão. 2ª ed. Luam,
Rio de Janeiro, 1997. p. 30.
21

haveria razão para vislumbrar que tal fenômeno sofreria aumento na hipótese de
descriminalização de comportamentos tidos como não desejáveis.25
O alto crescimento da população carcerária, o aumento das práticas criminosas, a
absoluta ineficácia do Estado em ressocializar os infratores são causas comuns a homens e
mulheres que já bastariam para a reflexão da busca de outros métodos que não o
encarceramento.
No caso da mulher, em que submetida a um sistema prisional pensado para homens, a
situação se agrava, tanto mais se considerados os danos causados, não apenas a ela, mas à sua
família, especialmente a seus filhos menores e, também, à sociedade, que há de absorver
como cidadãos justamente essas pessoas que foram crianças injustiçadas pela compulsória
ruptura do vínculo maternal e terminaram desassistidas material e emocionalmente.
A relação entre pena e estrutura social desperta a discussão sobre o não
encarceramento, que perpassa obrigatoriamente a questão da criminalização das drogas,
máxime se considerado que a sua repressão provocou um aumento significativo da população
carcerária, principalmente a feminina.
Os dados estatísticos colacionados a este trabalho fazem crível a tese de que uma
alteração específica no rumo da política proibicionista em relação às drogas modificaria,
quase que por si só, o triste quadro de exclusão social.
Ademais, não se pode perseverar na ideia de que o uso de drogas não é punido, uma
vez que todas as condutas que possibilitam esta prática (adquirir, guardar, trazer consigo) são
incriminadas. Em última análise, se o usuário para consumir a droga deve, em algum
momento, tê-la em seu domínio e essa detenção constitui crime, é evidente que o uso, ainda
que por via transversa, é punido.
Para a professora Luciana Boiteux Rodrigues:
O controle penal sobre a droga atua por meio da proibição do consumo e da
venda de determinadas substâncias e seu discurso punitivo fundamentado no
conceito de „nocividade‟ de determinadas substâncias, e impõe um
comportamento individual à coletividade, moldado sobre o ideal de
abstinência como virtude a ser seguida. 26

Nessa linha, o que se observa é que as drogas continuam sendo utilizadas e alimentam
o comércio tido como ilícito, marginalizando os sujeitos envolvidos em razão da norma
proibitiva.
_______________
25
Ibidem, p. 114.
26
RODRIGUES, Luciana Boiteux Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese (Doutorado em Direito), Universidade de São Paulo.
São Paulo, 2006.
22

Julita Lemgruber sustenta a tese de que mulheres envolvidas no tráfico de drogas


deveriam ser submetidas a penas alternativas que não a prisão porque “essas mulheres
desempenham papel secundário no tráfico; muitas vezes são flagradas levando drogas para os
companheiros nos presídios. Elas não representam maiores perigos para a sociedade e
poderiam ser incluídas em políticas de reinserção social.” 27
Helpes ressalta que o tráfico de drogas se circunscreve majoritariamente no ambiente
familiar, o que confirma o papel doméstico historicamente estabelecido para a mulher. 28
E, tanto mais grave, há de se questionar a legitimidade de uma medida que acaba por
alcançar a criança ou adolescente, filho da mulher encarcerada, que não atentou contra as
normas estabelecidas, não participou do ato infracional, não foi submetido a julgamento e ao
devido processo legal e, ainda assim, vivencia a pena de viver atrás das grades ou a pena de
ser privado do convívio com a pessoa de quem depende para o seu regular desenvolvimento
humano.
Entre os diversos relatos da vida de mulheres presas colhidos por pesquisadores
contemporâneos destacam-se os que descrevem a dor das mães de se verem separadas dos
filhos e a perversidade de se apresentarem a elas apenas duas opções: estender a pena do
cárcere às crianças, mantendo-as atrás das grades junto a si, ou entregá-las a própria sorte, aos
cuidados de um parente ou amigo ou instituição, todos despreparados para atender uma
criança marcada pelo trauma do rompimento do vínculo materno.
As consequências emocionais, sociais e físicas sofridas pelos filhos de mulheres
presas são objeto de registros em pesquisas científicas no âmbito da psicologia, da medicina e
das ciências sociais. Em comum esses estudos apontam que a quebra da estrutura familiar
pelo aprisionamento da mulher, na verdade, torna-se uma grande contribuição para o ciclo
que inclina filhos de pessoas encarceradas a uma vida de violência e marginalização.
As mulheres encarceradas são privadas da sua liberdade, do direito à intimidade, da
maternidade e da saúde. O rompimento da estrutura familiar em razão do aprisionamento da
mulher traz consequências gravíssimas para o desenvolvimento psíquico e emocional dos
filhos. Essas crianças violentadas pela opção da sociedade em separá-las compulsoriamente
das suas mães serão fortemente marcadas pelas consequências da ruptura do vínculo maternal.

_______________
27
Encontro Nacional do Encarceramento Feminino, ocorrido em Brasília/DF, realizado no mês de junho de 2011
pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/57252-trafico-de-drogas-
estaligado-a-70-das-prisoes-de-mulheres-no-brasil>. Acesso em: jan. 2017.
28
HELPES, Sintra S. Vidas em jogo: um estudo sobre mulheres envolvidas com o tráfico de drogas. São
Paulo: IBCCrim. 2014. p. 149-151
23

Se é de se esperar que o desprezo às necessidades instintivas básicas de afeto e


cuidados funcionais a essas crianças, além do estigma social, as afetam tão fortemente cabe o
questionamento de que tipo de pessoa a sociedade espera que esses jovens se tornem na
estrutura social da próxima geração.
Por isso, Lemgruber aponta que:
Quando o homem é preso, os filhos ficam com suas mulheres. Mas quando a
mulher é presa, geralmente o companheiro não fica com os filhos, que
acabam sendo penalizados e passam a ter na mãe um referencial negativo.
Essa é uma situação que tem tudo para reproduzir a criminalidade, já que
essas crianças poderão seguir o mesmo caminho que os pais. 29

Por pertinente, registre-se que entidades governamentais e não governamentais têm


unido forças para a quebra do paradigma do encarceramento da mulher e sustentado, em
propostas dirigidas a autoridades do ministério da justiça e de órgãos ligados a política
criminal e penitenciária, que as consequências da ruptura do vínculo familiar da mulher com
os seus filhos traz dor e mutilação emocional nas partes envolvidas e prejuízo certo e grave
para a sociedade.
Peço vênia para transcrição de trecho de vivência da pesquisadora Nana Queiroz na
penitenciária feminina do Distrito Federal ao registrar a desolação, o medo e toda a sorte de
sentimentos experimentados por uma criança separada da sua mãe em visita a ela no cárcere:
A mãe de nosso pequenino havia aparecido. Cruza um portão, outro. Ele
observa estático seus movimentos, como se ela fosse uma aparição
sobrenatural. É uma mulher jovem, de pele cor caramelo e cabelos alisados
até o ombro e um andar muito feminino. Tem os traços do rosto delicados e
um corpo apoucado e magro ao qual ele se agarra. Fica com a cabeça
escondida na barriga dela e os bracinhos ao redor do corpo, apertando-a bem
forte. Em algum tempo a atenção da mãe se dispersa e ela começa a
conversar com as outras parentas, mas ele não se importa. Continua firme
com o nariz colado em sua blusa. Quando cansa da posição, uns dez minutos
mais tarde, ele prende a mão dela entre as duas mãozinhas juntas com uma
força que parece desproporcional para um menino daquele tamanho.
Safira percebe que estou observando a cena e diz algo como “ele é um fofo”,
mas minha cabeça já está longe. Estou pensando no que a Júlia uma vez me
contou sobre as saidinhas.
- Você sabe o que é você voltar de uma saidinha? Na primeira vez, eu fiquei
quatro dias em casa e, quando cheguei aqui, dormi o dia inteiro revoltada.
Você tem nojo do lugar. Acorda e acha que ainda tá na sua cama...
Mal a mãe tinha chegado e o pequeno já estava prevendo a perda. Por isso
devia agarrá-la tão forte, como se pudesse impedir que a separação chegasse.
Eu viro para ele e digo:
- Tudo bem, meu anjo, hoje ainda é Dia das Mães.30
_______________
29
Palestra do Encontro Nacional do Encarceramento Feminino, em junho de 2011, realizado pelo Conselho
Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/57252-trafico-de-drogas-estaligado-a-
70-das-prisoes-de-mulheres-no-brasil>. Acesso em: jan. 2017.
30
QUEIROZ, Nana, op. cit., p. 291.
24

Observa-se que houve avanço na legislação. Assim, por exemplo, o artigo 318 do
Código de Processo Penal, em seu inciso V, incluído pela Lei nº 13.257/2016 (Estatuto da
Primeira Infância), passou a prever a possibilidade de o juiz substituir a prisão preventiva pela
domiciliar quando o agente for gestante; mulher com filho de até 12 anos de idade
incompletos, ou homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 anos
de idade incompletos.
Essas iniciativas de apresentação de medidas alternativas, por si só, revelam,
entretanto, a fragilidade da pena privativa de liberdade. Aliás, abre-se espaço para uma
inquietação, a saber, se tais recursos, na verdade, não serviriam, em última análise, para
reforçar a aplicação da pena privativa de liberdade.
O que se percebe em instrumentos como a liberdade vigiada, limitação de final de
semana, penas restritivas de direito é que se constituem, na sua essência, em medidas
acessórias, tanto que estabelecidas como medidas cautelares.
Não se desconsidera que em alguns casos – se atendidos os pressupostos do artigo 44
do Código Penal31 – substituem-se as penas privativas de liberdade. Mas não há, também,
como se afastar a constatação de que são poucas as situações em que se alcança o
cumprimento de tais exigências.
Isso não obstante, tem-se iniciado o exercício de olhar a prisão de mães como um mal
para a infância. Assim, tem-se decisão do poder judiciário de Santa Catarina na ação de
execução de pena nº 0002363-46.2013.8.24.0038 em que se invocou a absoluta prioridade da
criança (artigo 227 da Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Primeira Infância – Lei nº
13.257/16 e as Regras de Bangkok) para conceder pedido de prisão domiciliar deduzido pela
defensoria pública em favor de uma detenta mesmo condenada à pena de reclusão em regime
fechado para restabelecer os laços familiares com os seus quatro filhos, sendo três deles
menores de 12 anos de idade.
No julgado, o magistrado fez referência ao laudo social que apontou consequências
negativas no comportamento das crianças ante a ausência da mãe. O juiz levou em
consideração que a questão envolvia administração de danos, uma vez que não seria possível
reunir as crianças com a mãe no ambiente insalubre do cárcere.

_______________
31
Art. 44. As penas restritivas de direito são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou
grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II – o réu não for reincidente em crime doloso;
III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta seja suficiente.
25

Lê-se da decisão que:


Este juízo tem a compreensão de que problemas sociais, comportamentais e
de segurança pública são muito mais complexos, tanto que leis penais de
emergência, recrudescedoras das penas, nunca conseguirão resolver. Porém,
no caso deste novo dispositivo, com outro viés, veio a legislação na esteira
das Regras de Bangkok, mais abaixo detalhadas, sobre o tratamento de
mulheres presas que complementam as regras mínimas para tratamento de
reclusos. Sem confundir a situação da mulher encarcerada com segurança
pública, o objetivo desse ordenamento é levar o estado a olhar a questão de
gênero, sem discriminações. Muitas das mulheres presas, assim o estão por
tráfico e associação para o tráfico, como resultado em boa parte do histórico
de violência familiar, abandono material na maternidade e uso de drogas.32

De toda sorte, a prisão domiciliar para mulheres encarceradas como método para se
evitar o rompimento do vínculo com os seus filhos já traz em si uma inovação significativa.
Há de se atentar, porém, que posta na lei como uma possibilidade e não como uma garantia,
acabe por permitir julgamentos morais de resquício patriarcal que impeçam o seu exercício.

4 Conclusão

A partir da análise dos dados estatísticos levantados por órgãos voltados para a
dinâmica do sistema penitenciário brasileiro, pode-se verificar o alto índice do crescimento da
população carcerária feminina no país se comparada ao crescimento da população carcerária
masculina no mesmo período.
Essa constatação gerou a necessidade de questionamento quanto à significativa
diferença entre os índices dos homens e das mulheres. A busca de resposta para a
desigualdade verificada inclinou a necessidade de a problemática ser vista sob a perspectiva
do gênero.
A revisão bibliográfica realizada neste trabalho no âmbito da sociologia, filosofia e
antropologia colheu textos, estudos e pesquisas para a compreensão da construção histórica e
cultural do ideal feminino esperado pelo patriarcado. Aqui, cabe lembrar a célebre frase de
Simone de Beauvoir de que “não se nasce mulher, torna-se mulher.”33
A linha da pesquisa do artigo serve para o entendimento do perfil das mulheres
encarceradas no país, máxime no que se refere à seletividade penal - jovens, mães, pretas e
pobres -, conforme os dados estatísticos referidos.
_______________
32
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ação de execução de pena numero 0002363-
46.2013.8.24.0038, da circunscrição judiciária de Joinville, 16 de março de 2016. Disponível em:
<http://emporiododireito.com.br/tag/prisao-domiciliar>. Acesso em: jan. 2017.
33
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo. v. II. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de J: Nova Fronteira, 1980.
p. 9.
26

Não houve como não se acrescentar à inquietação original a questão da elevação


assustadora do aprisionamento da mulher causado pelo seu envolvimento com o tráfico de
drogas, o que perpassa também o tema da criminalização do narcotráfico.
Os estudos aqui registrados servem de apoio, ainda que de forma incipiente, à
continuidade dos debates sobre gênero, máxime quanto ao complexo tema da criminologia
feminista. Aliás, o processo de realização do artigo realça a necessidade de ampliação dos
estudos no tocante à criminologia feminista, pois na linha da proposição de Soraia Mendes, “o
reconhecimento da criminologia feminista como um referencial autônomo permite
compreender os diferentes contextos de vitimização e de criminalização das mulheres.”34
O trabalho registrou, ainda que superficialmente, as teorias que tentam justificar a
pena privativa de liberdade e, ainda, as teorias que buscam a quebra do paradigma da prisão.
Há de se incentivar a discussão na sociedade para que não se responda a um fato
desviante com a resposta pronta e fácil do paradigma do encarceramento se uma tal resposta
pune duplamente a mulher, não serve a sua ressocialização e ainda afeta o direito dos seus
filhos ao convívio familiar.
Enquanto não eliminadas as prisões, fato que pode levar décadas ou séculos, apesar da
constatação do fracasso da instituição, que ao menos se implementem, na prática, de imediato,
as medidas alternativas à prisão para as mulheres. E que isso aconteça acompanhado de
políticas públicas visando a reinserção social da mulher na sociedade, o que, se ocorrer de
forma eficiente reduzirá ou fará sumir a discussão quanto à segurança pública.
O trabalho se prestou ainda, a tornar claro que as medidas alternativas à prisão acabam
por reforçar o paradigma do encarceramento, uma vez que não rompe com o sistema
retributivo da pena.
Certo que essas leis vêm reconhecendo a situação de vulnerabilidade das mulheres
encarceradas e de seus filhos. Porém, a própria inovação legislativa que tem por finalidade a
manutenção do vínculo familiar prescinde de reformulação quanto ao seu alcance para que
não se permita ao operador de direito negar o benefício calcado em preconceitos quanto ao
merecimento de uma mulher infratora se reunir ao seu filho.
A mulher infratora requer atenção específica para as suas necessidades de saúde
física, mental e social voltada para a sua efetiva reabilitação, que não prescinde de programas
e serviços harmônicos com as situações inerentes ao gênero feminino.

_______________
34
MENDES, op. cit., p. 215-216.
27

Assim, a composição da problematização apresentada neste trabalho quanto às formas


de cumprimento de pena pelas mulheres infratoras adequadas à condição feminina,
notadamente para aquelas que possuem filhos menores de idade para que se efetive o
princípio da dignidade da pessoa humana tanto em relação à progenitora quanto em relação
aos seus filhos não ocorrerá de forma eficaz se a sociedade não se comprometer com a
reunião de esforços para tornar possível a opção por medidas não privativas de liberdade para
as mulheres grávidas ou com filhos sob a sua dependência.
Ademais, antes de se cogitar a aplicação de medidas privativas de liberdade, o
operador do direito deve ter em mente o interesse superior da criança como pontuam as
legislações nacionais e estrangeiras, especialmente a Convenção sobre os Direitos da Criança
e, no âmbito das legislações nacionais, a Lei de Proteção à Infância.
É necessário quebrar paradigmas e se lançar a busca de instrumentos mais eficazes e
menos danosos, renunciar ao caminho mais fácil, usual ou de satisfação política de clamores
da população e de um sistema que não responde aos conflitos postos e persevera na produção
de seletividade penal alcançando resultados de sofrimento e nutrindo outras formas de
violência.
Dessa forma, parece claro que a superação das violações aos direitos da mulher
infratora, especialmente no que concerne à maternidade, não se reduz às inovações legais,
ainda que se deva celebrar o avanço.
É necessário que a sociedade abandone a proposta de segregação de pessoas que crê
serem prejudiciais a ela e passe a enxergar a similitude que a une a essas pessoas, qual seja a
dignidade humana. Mais, há de sopesar, ainda, se o desejo de se retribuir a conduta desviante
do modelo com uma penalidade se sobrepõe ao direito de uma criança ao convívio com a sua
mãe.
É provável que este trabalhado não tenha alcançado resposta a todos os
questionamentos de uma problemática tão fortemente sedimentada. Servirá, entretanto, como
colaboração e incentivo à propagação da necessidade urgente de retirar da condição de
invisibilidade a mulher que se encontra encarcerada e deve ser olhada de forma
individualizada como cumprimento ao princípio da dignidade humana.
Em última análise, exige-se a compreensão dos papéis sociais do indivíduo sob a ótica
do gênero, dos direitos fundamentais e dos direitos humano, e de um entendimento, ao mesmo
tempo lógico e transcendental, de que a benignidade a um indivíduo se reflete na benesse a
toda sociedade.
28

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