Curso Online de Filosofia: Olavo de Carvalho Aula 250 24 de Maio de 2014

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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 250
24 de maio de 2014

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor, não cite nem divulgue este material.

Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.

Durante a semana, prometi dar alguns esclarecimentos sobre o caso do Otto Maria Carpeaux — que
é tão significativo para a história da cultura nacional e que não deixa de conter algumas indicações
sobre o estado presente das coisas —, assim como nos sugerir algo que possa ser feito para os
próximos anos no sentido de levantar o que resta da cultura brasileira.

O episódio foi suscitado por uma matéria que saiu na revista Ciência Hoje 1assinada por um tal de
João Antônio de Paula, na qual ele dizia o seguinte:

“O legado do Otto Maria Carpeaux tem sido reivindicado por extremado direitismo, que o
quer, malgré lui, exato representante de um catolicismo conservador, de valores
tradicionalistas, em perfeita dissonância com tudo o que mobilizou a sua vida no Brasil.”

Então, coloquei lá um comentário, em primeiro lugar, dizendo que ninguém jamais havia tratado de
caracterizar o Carpeaux como um direitista, o que seria realmente impossível em face da sua
atuação no Brasil que foi tão caracteristicamente esquerdista, pelo menos a partir do quinto ou sexto
ano da sua vida no , tão impossível que duvido que alguém tentasse mudar esta imagem. O que
aconteceu foi que o próprio Carpeaux e o seu círculo de amigos esquerdistas esconderam todo o
passado austríaco dele, inclusive os livros que ele publicou lá nunca foram publicados no Brasil até
hoje, só agora que estamos promovendo uma tradução, e ele sempre se recusava a falar dessa parte
da sua história. Curiosamente, a vida do Carpeaux tem, pelo menos, três etapas nitidamente
separadas : parece que, quando ele largava uma coisa, largava para sempre e enterrava aquilo como
se nunca tivesse acontecido.

A primeira etapa foi a vida dele na Áustria, da qual não se soube absolutamente nada até que um
cidadão chamado Mauro Ventura fosse até lá e lesse os textos que ele havia publicado até 1930 e
pouco (1934, 1935) e chegasse a algumas conclusões. Mas, antes mesmo desta pesquisa do Mauro
Ventura, analisando os primeiros trabalhos que o Carpeaux publicou no Brasil, eu ainda via nele
vários traços de um conservador católicos, ainda remanescentes, e isto é bem nítido no livro As
Cinzas do Purgatório e Origens e Fins. Pelo menos você observa ali que ele não tem nenhuma linha
ideológica nítida, mas, que ele é um indivíduo que está, por assim dizer, em conflito entre várias
linhas ideológicas e sabe que é impossível qualquer pessoa séria, qualquer intelectual sério se
definir inteiramente por uma linha ou por outra. Isso tem a haver com as contradições da realidade,
mesmo porque não podemos nos esquecer da formação do Carpeaux: a grande influência sobre ele
1
CIÊNCIA HOJE. Otto Maria Carpeaux. Disponível em:
<http://www.cienciahoje.org.br/noticia/v/ler/id/4188/n/otto_maria_carpeaux >, Acesso em : 24 abr. 2018.
foi Benedetto Croce, cuja grande especialidade era exatamente o raciocínio dialético, onde as várias
parcelas de verdade saídas dos vários pontos de vista se entrecruzavam e acabavam indicando, se
não uma conclusão, pelo menos, uma linha de investigação possível.

O Carpeaux, então, desde a sua formação universitária, sempre foi uma mente complexa. Há um
trecho dele onde ele menciona que existe alguma verdade no marxismo, alguma verdade no
fascismo, alguma verdade, até, no racismo, e assim por diante. Ele tinha essa sensibilidade de
perceber os elementos de verdade que pudessem haver, não só em diferentes linhas ideológicas
propriamente ditas, mas, também, em correntes filosóficas e em correntes de opinião. Se não fosse
isso, seria impossível ele escrever uma obra como a História da Literatura Ocidental onde todas as
perspectivas possíveis vão se sucedendo ao longo da história e se entrechocando, se fundindo, se
mesclando. Tentar, então, reduzir tudo isso a uma explicação ideológica uniforme seria uma
estupidez fora do comum; na verdade seria impossível na prática. Então, a própria abrangência do
universo de referência dele tornaria impossível qualquer definição unilateral desse tipo. E quando
ele chega ao Brasil, você vê que ainda tem muito nele do católico conservador que ele era; vemos
isso, sobretudo, na correspondência dele com Álvaro Lins.

A história foi a seguinte: o Carpeaux saiu da Áustria fugido, logo após o assassinato do chanceler
Dollfuss. O Dollfuss era um católico conservador mesmo, típico TFP, o qual tinha promulgado uma
constituição autoritária na Áustria; constituição sobre a qual, aliás, Eric Voegelin escreveu um livro
brilhante. Essa constituição fora adotada como medida de emergência para bloquear as duas
revoluções que estavam em curso: havia uma revolução comunista e uma revolução nazista
acontecendo concomitantemente, ambas fomentadas de fora: uma pela União Soviética, outra pela
Alemanha. E a única maneira de preservar a integridade do Estado austríaco foi baixar uma
constituição autoritária a qual funcionou momentaneamente. Ela teria obtido êxito, não fosse a
invasão da Áustria pela Alemanha — a qual estava militarmente muito mais forte —, e, junto com a
invasão, ocorreu o assassinato do Dollfuss.

O Carpeaux, durante toda a existência adulta dele — como jornalista, escritor —, havia apoiado o
governo Dollfuss e escrito dois livros muito importantes sob esse aspecto, nos quais considera que o
catolicismo é a espinha dorsal da civilização européia e acreditava que a Áustria, como herdeira
dessa tradição católica, tinha a missão de restaurar a ordem na Europa, por assim dizer, pelo menos
a ordem intelectual. Essa era a idéia dele, daí o título do livro A Missão Européia da Áustria e o
outro livro era mais católico ainda: chamava Caminhos para Roma. A idéia dele, então, era
restaurar, realmente, a função da Igreja como eixo da civilização européia. Os livros não deixam a
menor dúvida quanto a isto. Ninguém desse pessoal da esquerda que está falando leu esses livros.
Eu li, eu sei o que está lá e é impossível negar o caráter católico conservador do Otto Maria
Carpeaux nessa época — conservador exatamente no mesmo sentido do Dollfuss, quer dizer, um
homem que se opunha a todo e qualquer movimento revolucionário de qualquer fonte que viesse.

Quando Dollfuss é assassinado e o governo austríaco cai sob a invasão nazista, o Carpeaux,
evidentemente, tem de fugir e ele consegue vir para o Brasil com uma carta de recomendação do
Vaticano para o Alceu Amoroso Lima. Mas o Alceu Amoroso Lima era aquele tipo grão-senhor,
um homem muito importante e ele viu aquele sujeito que era feio, parecia um macaco e, além disso,
gago — até o Carlos Drummond de Andrade conta a história de que ele estava viajando de trem e o
Carpeaux foi citar Kierkegaard, e ele diz que ele começou a falar Kierke-ke-ke-ke-ke-ke em Juiz de
Fora e só terminou em Barbacena —, então o Alceu não percebeu quem estava diante dele e
arrumou lhe um emprego medíocre numa biblioteca do interior do Paraná, onde o homem vivia num
completo isolamento, uma miséria intelectual desgraçada. Ele tentou viver lá, mas não conseguiu,
acabou largando aquele emprego e veio para o Rio, onde durante algum tempo ele viveu de vender
livros da biblioteca que ele tinha trazido e acabou encontrando uma saída quando tomou
conhecimento do Álvaro Lins, que era o crítico literário do Correio da Manhã. Ele escreveu umas
cartas para o Álvaro Lins e você vê a afinidade dos dois na religião católica, onde inclusive eles
prometem quando se encontrar eles vão rezar juntos para Nossa Senhora, uma coisa assim, quer
dizer, é uma manifestação obviamente entre dois amigos católicos.

O Álvaro Lins era um católico de esquerda, um católico progressista, mas era um católico de
qualquer maneira. E o Álvaro Lins, então, abre as portas do Correio da Manhã para que Carpeaux
estreie como crítico literário, inicialmente escrevendo em francês e tendo os artigos traduzidos e,
aos poucos, ele vai aprendendo a língua portuguesa, mas sempre com um revisor que ajeitava, aqui
e ali, os detalhes estilísticos mas, algum francesismo sempre perdurou. A língua natal do Carpeaux
era o alemão, mas ele falava francês desde pequeno e o próprio fato de ter adotado o sobrenome
Carpeaux, que é de um famoso escultor — o nome original dele era Karpfen, que quer dizer
“carpa”, não sei se o nome Carpeaux tem algo a ver com carpa também, mas era o nome de um
escultor famoso —, mostra que ele também achava que afrancesar o nome tornaria a coisa mais
fácil para o leitor brasileiro, uma vez que, naquela época, a influência francesa era muito grande.
Então, ele começa essa segunda etapa da sua vida.

Aluno: Já que você falou do nome, e Maria?

Olavo: Ele adotou Maria em homenagem a Nossa Senhora, isso é importante. O nome dele era Otto
Karpfen. Ele era filho de um pai judeu e de uma mãe católica, de modo que, oficialmente, ele não
era judeu porque, em família judaica, a hereditariedade é por linha materna, por isto mesmo, na
Europa ele não conseguiu apoio das organizações judaicas para poder se exilar, eles disseram:
“Você não é judeu”, e não era mesmo. Além de ser de mãe católica, toda educação dele tinha sido
católica, então ele recorre justamente à Igreja e obtém essa carta de recomendação para o Alceu
Amoroso Lima.

O Alceu Amoroso Lima não entendeu do que se tratava. Imagino que o Alceu era um homem muito
importante, não era assim de prestar atenção em qualquer um. Então, isso acontece através do
Álvaro Lins. Ele começa a escrever essa série de ensaios longos que, hoje, jamais seriam
publicados. Isso é importante porque o jornalismo brasileiro vem se tornando cada vez mais
minimalista: o tamanho dos artigos vai diminuindo, diminuindo, diminuindo até que, no fim, sobra
só o título, não precisa ter a matéria, tem o título, já está bom. Lembro-me que, no próprio Diário
do Comércio, também os meus artigos foram sendo encurtados, encurtados e aumentava o número
de articulistas, todo mundo querendo dar palpite. Hoje os artigos são, aproximadamente, um terço
do que eram no começo, mas isso é um processo normal no jornalismo brasileiro e, também, já está
se tornando um processo universal.

Os artigos que Carpeaux publicou no Correio da Manhã eram, aproximadamente, dez vezes o
tamanho de um artigo normal de hoje em dia no jornalismo brasileiro. Não eram artigos, eram
ensaios, realmente. Nesse período, Carpeaux escreve vários artigos que são francamente católicos:
artigos sobre Santa Teresa, sobre São Bernardo e você percebe que se trata de um erudito europeu
clássico. Ele me lembra muito o historiador católico Friedrich Heer, o qual escreveu essa
maravilhosa História Intelectual da Europa [The Intellectual History of Europe], onde você nota
uma visão tipo Carpeaux, onde todos os fatores estão entrelaçados e onde não há, na verdade, a
menor possibilidade de se chegar a uma conclusão, quer dizer, está totalmente aberto à
complexidade da realidade.

Esse segundo período é o da grande criatividade do Carpeaux e tudo que ele publicou de bom no
Brasil foi entre 1940 e 1956, quer dizer, em dezesseis anos ele produz todos os ensaios que depois
foram reunidos — foram publicados dois volumes, faltando, ainda falta, um terceiro: há material
(mais de oitocentas a mil páginas) de Carpeaux ainda por sair —, e mais a História da Literatura
Ocidental, a qual ele escreveu numa velocidade fora do comum, sem ter uma biblioteca na qual se
escorar — praticamente todas as citações que ele faz são meio de memória. Existem, é claro,
algumas citações que estão erradas, bem como os anos de publicação, mas isso é o de somenos, esse
é um serviço para um revisor e, não, para um autor; não se pode cobrar isto dele.

Esses dezesseis anos são, então, o período da grande criatividade do Carpeaux no Brasil. Depois ele
continua, de vez em quando ainda escreve algum ensaio maravilhoso, mas você vê depois uma
terceira fase, sobretudo a partir do golpe de 1964, onde ele se dedica cada vez mais à redação de
artigos políticos e vai abandonando os ensaios literários, até que, quando a Civilização Brasileira
publica uma antologia chamada “Vinte e Cinco Anos de Literatura” na qual estão alguns dos
melhores ensaios dele (o ensaio sobre Santa Teresa, o ensaio sobre Jacob Burckhardt, o ensaio dele
sobre a cidade de Basiléia é uma coisa fantástica), e reúne o que ele tinha publicado de melhor
nessa área. E no prefácio deste livro 2, que sai em 1968, ele diz que a fase dele de crítico literário
tinha sido encerrada e que, daí por diante, iria se dedicar exclusivamente à militância política.

Percebem-se, então, três fases nítidas: (a) o Carpeaux na Áustria, (b) o Carpeaux como grande
crítico literário brasileiro, sem dúvida o maior da época — muito melhor do que o próprio Álvaro
Lins, aliás —, e depois (c) a fase da militância política. Nesse ínterim, aconteceu também um
fenômeno muito estranho, o qual, penso, foi determinante para o destino do Carpeaux no Brasil:
logo que ele desembarcou houve uma campanha contra ele movida por um grupo de comunistas,
salvo engano (posso estar enganado, minha memória pode estar falhando), chefiado pelo Octávio
Brandão: um comunista que residiu durante muito tempo na União Soviética — não sei se, por
nessa época, ainda não tinha ido à União Soviética ou se já tinha voltado —, o qual fica sabendo
que o Carpeaux tinha sido adepto do regime Dollfuss, publica, então, uma série de artigos e incita
outros a fazerem o mesmo, dizendo que o Carpeaux é um perigoso agente fascista, quer dizer, é
algo totalmente irônico : o sujeito sai correndo de um regime nazista e chega aqui é acusado de ser
parceiro de quem o está perseguindo; mas tudo isso é possível. Nessa campanha, eles conseguiram
ganhar a adesão do Georges Bernanos. A capacidade que os comunistas têm de espalhar notícia
falsa é uma coisa extraordinária. Georges Bernanos era outro exilado, o qual estava no Brasil depois
da invasão da França e, como eles conseguiram ficar zumbindo na orelha dele, o jogaram contra o
Carpeaux. Ele chegou a escrever um artigo contra o Carpeaux, mais ou menos no mesmo sentido
em que eles estavam escrevendo, quer dizer, o Bernanos foi usado como agente de desinformação
sem ter a menor consciência disto. Não tenho notícia de que o Bernanos tenha se arrependido ou se
corrigido posteriormente mas, de qualquer modo, o Carpeaux respondeu vigorosamente e conseguiu
limpar a sua imagem.

Acontece que, daí por diante, toda a carreira do Carpeaux ficou inteiramente na mão do pessoal
comunista, não sei se por intermédio do Álvaro Lins ou de outros amigos que ele fez. Houve
alguma pacificação entre ele e o Partido Comunista, de modo que o pessoal do Partido, o qual, num
primeiro instante havia tentado demolir a sua reputação, no instante seguinte percebe que ele é uma
pessoa de muito valor e decide, então, se apropriar do Carpeaux. Deste momento em diante, todos
os empregos que o Carpeaux teve no Brasil foram através de pessoal comunista: Ênio Silveira,
Antônio Houaiss; comunista ou pessoas do Partido Socialista também — o Álvaro Lins parece que
foi militante do Partido Socialista um tempo. Ele vai, então, sendo cercado por esse pessoal da
esquerda e fazendo amizade praticamente só nos meios esquerdistas , de modo que, imagine você a
situação de um exilado que chegue no Brasil com uma mão na frente e a outra atrás, já homem
feito, quer dizer, não é um jovem que possa iniciar uma carreira, depende inteiramente da ajuda do
meio, chega totalmente desguarnecido, quer dizer, a própria carta de recomendação do Vaticano
simplesmente não tinha funcionado, ele não foi bem recebido no meio católico na época, graças ao

2
CARPEAUX, Otto Maria. - Vinte e Cinco Anos de Literatura - 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1968.
Alceu, e o primeiro círculo de amizades que ele faz é no meio comunista, os mesmos que haviam
tentado destruir a sua reputação.

A partir daí, o Carpeaux passa a dar sinais cada vez mais acentuados de esquerdismo sem nunca
chegar a uma definição nesse sentido. Mesmo no período mais esquerdista do seu jornalismo, ele
ainda continua aquele homem de mente rica, complexa, capaz de ver as coisas por vários lados; ele
nunca perde isso totalmente, exceto a partir do momento em que ele é alvo pessoal de uma
perseguição — uma ameaça de perseguição, na verdade nada houve contra ele, abriram um
inquérito porque ele tinha escrito uma série de artigos contra o regime militar, após ter escrito dois
editoriais do Correio da Manhã a favor da derrubada do Jango. Ele foi a favor da derrubada do
Jango mas, contra o regime militar, o qual se instaura seis meses depois. Esse é outro aspecto que
tenho ressaltado bastante, quer dizer, uma coisa é o golpe de 1964, outra coisa é a ditadura. O golpe
de 1964 não instaurou ditadura nenhuma, foi inteiramente aprovado pelo Congresso, porém seis
meses depois a cúpula militar decide prorrogar o mandato do Castelo Branco e, como bem advertiu
o Carlos Lacerda em artigos publicados na época: “Se vocês fizerem isso, vocês vão criar uma
ditadura que vai durar vinte anos”, e durou vinte anos mesmo.

Carpeaux, então, após ter apoiado a derrubada do João Goulart, se colocou também contra o novo
regime que se improvisou seis meses depois e acabou sendo investigado: o nome dele aparece num
inquérito mas, quando o inquérito chega às mãos do promotor, este o interroga durante algumas
horas e manda arquivar o processo. Isso foi tudo o que houve contra o Carpeaux. Absolutamente
falso dizer, também, que ele foi proibido de escrever na imprensa — isso jamais aconteceu. O que
houve foi que, o Correio da Manhã, o qual já estava mal das pernas na época, decreta falência logo
em seguida e toda sua equipe de redatores ficou desempregada. O Carlos Heitor Cony, por
exemplo, foi trabalhar na Manchete, o que lhe valeu, também, ser esfolado pelo pessoal da
esquerda, porque o dono da Manchete, Adolpho Bloch, era um judeu russo exilado, o qual odiava a
União Soviética e tudo que ela representava, então era uma espécie de monstro da direita e o Carlos
Heitor Cony, como todo jornalista, não podia escolher patrão: onde lhe oferecessem emprego, lá
estava ele. Além disso, os grandes nomes da mídia na época eram todos pessoas de direita: Roberto
Marinho, Júlio Mesquita, Adolpho Bloch, Assis Chateaubriand — todos direitistas na época. Então,
se você fosse escolher emprego só na esquerda, você estaria muito mal: praticamente, teria só o
Jornal Última Hora aonde trabalhar, o qual era um jornal do Samuel Wainer, que também nunca
esteve muito bem das pernas, já que vivia de dinheiro do governo enquanto o Getúlio estava por
cima.

A partir dali, o Carpeaux vai trabalhar na Enciclopédia Britânica, escrevendo vários verbetes para a
Enciclopédia Barsa e continua a escrever aqui e ali, porém, o que se observa nesses artigos
políticos, em primeiro lugar, é que são extremamente medíocres; não há nenhum esforço de
interpretação da situação, simplesmente repetem-se as palavras de ordem do Partido Comunista: ele
segue à risca, exatamente, as informações que vêm do Partido Comunista.

O caso mais característico foi o da famosa operação Thomas Mann: essa operação foi aquele
famoso caso de uma mensagem falsa, redigida pelo pessoal da KGB no Rio de Janeiro, simulando
uma correspondência entre o chefe do FBI Edgard Hoover e um agente do FBI no Brasil,
cumprimentando-o pelo sucesso da operação — a operação teria sido o golpe de 1964. A coisa já é
absurda em si para quem tem um pouco de conhecimento, uma vez o FBI não pode atuar no
exterior, assim como a CIA também não pode atuar no território americano. No caso de um agente
do FBI no Rio de Janeiro, ou ele estava em férias, ou alguma outra coisa, entretanto, nos conta o
chefe do escritório soviético no Brasil, Ladislav Bittman: “Na época não sabíamos de nenhum
agente da CIA lotado no Brasil; sabíamos apenas desse homem do FBI, então fizemos a carta
dirigida a ele”. E, como o secretário de Estado americano chamava-se Thomas Mann — não
confundir com o romancista alemão —, isso se tornou a operação Thomas Mann, quer dizer, uma
coisa inteiramente forjada pela KGB e que qualquer estudioso sério identificaria como uma farsa já
no primeiro momento. Acontece que, no Brasil, simplesmente não havia estudiosos para isso.
Praticamente toda a mídia comprou essa história e, daí, surge a idéia de que foi o governo
americano quem preparou o golpe de 1964, coisa que não é verdadeira, é absolutamente falsa.

Houve também a operação Brother Sam da qual já expliquei em outros artigos e o Carpeaux
comprou essa história como lhe passaram e, incrível, é como um homem como o Carpeaux não
sabia que o FBI não atua no exterior? Os Estados Unidos não tiveram uma agência de inteligência
operando no exterior até a Segunda Guerra: só quando do advento da Segunda Guerra eles criaram a
OSS (Organização de Serviço Secreto), a qual, depois, virou a CIA. A OSS estava repleta de
comunista porque, na época, a União Soviética era aliada dos Estados Unidos, então, não havia
nada contra a presença destes ali e, evidentemente, quando ela se transforma na CIA, ela já vem
com a sua carga de comunistas; isto é o suficiente para explicar o fracasso da CIA em inúmeros
episódios da história.

O Carpeaux, então, trabalhando com informações que, obviamente, ele recebia de fontes
comunistas, não tinha meios de pesquisar essa coisa por si mesmo e, tanto ignorava o assunto, que
cai nessa esparrela do FBI —, então, é óbvio que todas as informações que ele usava vinham do
pessoal do Partido Comunista. E, quando ele finalmente decide largar a sua carreira de crítico
literário e se tornar apenas um jornalista político — diz ele, para apoiar a luta dos estudantes
brasileiros; na época o movimento estudantil era o principal foco de resistência à ditadura —,
evidentemente, ele se torna um ídolo das esquerdas, do dia para a noite; recebe homenagens por
tudo quanto é lado, todo mundo fala bem dele mas, ao mesmo tempo, a inteligência dele tinha
declinado muito. Se você compara a produção dele entre 1940 e 1956 com o que veio depois e,
sobretudo, com o que veio depois do golpe de 1964 e da sua decisão de concentrar os seus esforços
na militância política, a coisa é deprimente e, conta um dos seus mais próximos amigos, acho que
primeiro foi o Antônio Houaiss e, depois, o Cony me confirmou: o Carpeaux, por dentro,
continuava católico, mas ele rezava em segredo, para que o pessoal comunista não soubesse disso.
Veja você, então, a situação de fragilidade deste homem.

A fragilidade era tal que a gente observa na correspondência que ele trocava com o melhor amigo
dele, chamado Pedro Trompovsky, também conhecido como Pedro Touloá, o qual morava na
França, que foi quem me deu essa correspondência; eu a tenho aqui e pretendo publicá-la um dia.

Há algumas cartas da esposa do Carpeaux onde você percebe que ela está totalmente aterrorizada e
acreditando que a sua casa está cercada por tanques de guerra. Ela estava, então, revivendo a
situação que eles tinham vivido na Áustria quando, de fato, nada disso estava acontecendo. O que
houve foi apenas um processo, o qual foi arquivado pelo próprio promotor. Não houve mais nada.
Carpeaux foi interrogado uma única vez pelo promotor e este imediatamente arquivou o inquérito, o
qual jamais virou um processo.

É evidente que isso é sempre desagradável, o fato de ser interrogado. Eu, por exemplo, já fui
interrogado durante seis horas por um tenente japonês na academia de polícia militar, o que me
deixou realmente aterrorizado, mas durou apenas seis horas — fui pra casa, nunca mais aconteceu
nada e, eu não posso concluir, a partir daí, que a minha casa está cercada por tanques de guerra que
irão me matar a qualquer momento. Mas, você vê que o estado de espírito da mulher, pelo menos,
era de terror completo. Imagine os dois, velhinhos a essa altura, já tendo em vida a experiência na
Áustria, tinham motivos para estarem assim, porque, é aquele ditado: cachorro mordido de cobra
tem medo de lingüiça.

Nessas cartas, então, você vê o medo exagerado que eles estavam vivenciando e, é justamente esse
medo, que faz com que o Carpeaux, cada vez mais, se apoie na ajuda dos comunistas e acabe
dedicando o resto da sua vida a trabalhar para eles, ao mesmo tempo em que a sua capacidade
criativa vai declinando, declinando, declinando até o seu último livro, um livro sobre o Alceu
Amoroso Lima.

O Alceu Amoroso Lima, naquela época, também passou para a esquerda, assim como muita gente,
não porque fosse esquerdista, mas porque não tolerava mais com o regime militar. Todo mundo, na
verdade, inclusive eu. Você, então, acaba se aproximava de outros que também estavam contra, sem
precisar de uma definição ideológica muito clara. O Alceu, então, tornou-se o líder da
intelectualidade católica de esquerda e, evidentemente, foi cada vez mais badalado.

Isso já mostra qual era a corrente que dominava a mídia já durante o regime militar. O Gustavo
Corção, o qual não estava muito interessado em problemas políticos, mas se colocou frontalmente
contra o Concílio Vaticano II, escreve uma série de artigos contra as mudanças na Igreja Católica,
acaba sendo declarado a encarnação da direita e, o Alceu, o da esquerda.

Gustavo Corção foi sendo cada vez mais marginalizado, até ser totalmente demitido d’O Globo,
caindo, ele sim, num total isolamento, não tenho onde mais escrever na grande mídia, ficando
completamente sem acesso a ela.

Veja só, durante aquele período, o único jornalista que foi realmente marginalizado foi um homem
da direita. Os outros não; estes sempre tiveram acesso e sempre obtiveram, por assim dizer, o
aplauso da mídia, sobretudo o Otto Maria Carpeaux e o Alceu Amoroso Lima.

No fim da vida, então, o Carpeaux escreve esse livro sobre o Alceu Amoroso Lima, — um livro
hagiográfico, beatificando o Alceu. Um livro de uma mediocridade tal que dá vontade de chorar.
Veja você: o homem que escreveu aqueles ensaios brilhantes termina escrevendo um livro de
puxação de saco explícita para alguém que não o merecia de maneira alguma, quer seja como
crítico literário, quer seja como pensador católico. O Alceu nunca teve nada de original, nem de
criativo — simplesmente era um homem que escrevia e falava muito bem: um homem elegante.

O Alceu nunca foi assim a grande figura do pensamento católico no Brasil. A maior figura do
pensamento católico, a meu ver, foi João Camilo de Oliveira Torres, levando-se em conta apenas o
livro A Teoria da História, um verdadeiro clássico. O João Camilo, esse sim, mereceria que se
escrevesse um livro a respeito dele. Nem mesmo o Corção mereceria ser exaltado daquela maneira,
pois nunca fora um grande pensador — fora um excelente articulista, um grande escritor e uma
personalidade moral admirável, de certo modo, mas, intelectualmente, ele e o Alceu estavam mais
ou menos no mesmo plano. Não se pode dizer que nenhum deles fosse um gênio, mas João Camilo
o era, sem sombra de dúvida.

Quando se vê essa decadência intelectual do Carpeaux, começamos a entender porque, no fim de


sua vida, quando já estava para morrer, ele fazia exercícios de mnemotécnica permanentemente: o
medo que tinha de perder a memória e se tornar incapaz — ele tinha uma memória extraordinária,
uma memória de elefante.

Boa parte de todas daquelas citações da História da Literatura Ocidental havia sido feita puramente
de memória— um verdadeiro prodígio —, o que o levava a fazer sempre exercícios para manter a
memória, pois tinha medo de perdê-la.

Ao final da vida, quando já estava muito doente, ele fora visitado, no hospital, pelo seu grande
amigo Franklin de Oliveira, o qual disse, depois, que o Carpeaux estava chorando e dizendo que
havia jogado a vida dele fora.
As suas obras do período de 1940 a 1956 desmentem claramente isso: ele justificou plenamente a
sua existência, mas, estava cônscio da sua decadência, a qual, acredito, estava intimamente ligada à
sua concessão ao pessoal comunista. Os artigos que escrevera na fase política realmente não são
dignos da grande inteligência que ele era — qualquer jornalista de esquerda poderia tê-los escrito,
pois todas as posições eram sistematicamente pró-soviéticas.

Ele se torna, então, ao fim e ao cabo, num agente de desinformação.

Tenho a impressão de que ele vivera disto; muito provavelmente, houve algum tipo de acordo, com
promessa de proteção, dinheiro ou salário, talvez, para que ele fizesse esse trabalho, mas não há
provas.

A leitura de dois dos livros que ele publicou: A Batalha da América Latina e O Brasil no Espelho
do Mundo torna nítido que aquilo era, realmente, desinformação soviética — muita informação
falsa que sai diretamente da KGB e chega até a América Latina e que é repassa como se fosse a
realidade pura e simples.

Não é possível você dizer: “não, o Carpeaux foi direitista”. Ele havia sido direitista mas, ainda
assim, nunca fora um direitista extremado, mesmo na sua fase austríaca. Depois, durante o melhor
período da sua vida — o período mais criativo— ele tem aquela ambigüidade que é característica
dum homem que é sensível à complexidade do real e que não quer simplesmente simplificar nada.

Carpeaux, às vezes, simplifica, outras vezes exagera no julgamento de autores individuais. Ele não
era um bom crítico judicativo, mas sim, um crítico explicativo. A sua especialidade era
compreender o que estava em jogo na obra de tal ou qual escritor, mas, na hora, digamos, de louvar
ou achincalhar, sobretudo com relação a esse último, frequentemente exagerava. Carpeaux era um
homem irascível e, às vezes, elogiava um escritor para, dois ou três anos depois, descer-lhe o
malho. No caso do Charles Morgan, por exemplo — no qual estou muito interessado agora —, num
momento ele o chama de grande romancista e, noutro, diz: “não, esses livros são só conversa mole,
pseudo-filosófica”.

Percebe-se, então, que algo havia provocado a sua ira. Como todo gago, Carpeaux era um homem
nervoso, em que, para partir para a porrada não pensava duas vezes — ele trocou uns sopapos com
o Jorge Amado, o qual era o escritor oficial do Partido Comunista, possivelmente no tempo em que
os comunistas o estavam perseguindo.

Nessa mudança da hostilidade comunista para o cerco protetor, o qual acabou por conquistar-lhe
totalmente o coração, houve um processo muito profundo de modificação que não pode ser
compreendido por estas definições ideológicas, esses carimbos ideológicos — não dá pra fazer isso.
Otto Maria Carpeaux era uma mente rica, complexa; um homem de altíssima sensibilidade e, ao
mesmo tempo, sem dúvida, uma pessoa neurótica, muito nervosa e, filosoficamente falando, nunca
fora uma mente clara.

Carpeaux estudava tudo e aquilo formava um panorama, um entrechoque de mil ideias na mente
dele, o qual ele pintava com uma exatidão e com uma delicadeza e sutileza extraordinárias, mas
nunca fora uma mente filosófica; nunca fora um homem para se elevar ao nível do conceito
abstrato — esse não era o ponto dele: ele era, eminentemente, um historiador; secundariamente, um
explicador de literatura e, como crítico judicativo, era um pouco tendente a expressar sua birra.

Mesmo como crítico musical ele, por exemplo, pegou uma birra contra o Puccini, dizendo “o
Puccini se vendeu”. Como assim “se vendeu?” O que quer dizer, ele fazia óperas que obtinham
muito sucesso, como Verdi também fazia, assim como Wagner. Wagner ganhou muito mais
dinheiro do que ele; então, Wagner havia se vendido muito mais, não?

Ele tinha essas birras que, de vez em quando, empanavam um pouco a sua inteligência, mas, só
como crítico judicativo, como crítico de autores singulares.

Não podemos seguir muito os julgamentos do Carpeaux quanto a autores contemporâneos ou


recentes, isso é importante de se ressaltar, entretanto, quando se trata de literatura antiga, ele é quase
infalível. Eu mesmo, no começo da minha vida, o que eu fiz foi ler A História da Literatura
Universal de cabo a rabo e anotar, praticamente, todos os livros que eu iria ler daí em diante e, até
hoje, não acabei de lê-los.

Do próprio Charles Morgan, por exemplo, eu só havia lido uma coleção de ensaios que se chamava
Liberties of The Mind, a qual é uma obra profética sobre esta questão do domínio psíquico das
multidões, que ele escreveu em 1951 e, hoje, você percebe que tudo o que ele anunciou ali se
concretizou, mas não havia lido nenhum dos romances dele. Caiu em minhas mãos, então, esse
River Line, o qual foi publicado no Brasil com o título de Rota de Fuga, que é uma das coisas mais
lindas que eu li na minha vida — uma coisa absolutamente fantástica.

Charles Morgan era um dos muitos autores que eu havia anotado quando tinha dezoito anos e que,
só agora, meio século depois, eu estou lendo; e ainda falta muito.

Giovanni Papini, também, de quem ele fala muito e eu só o li durante minha viagem à Polônia —
levei os livros dele embaixo do braço e ainda troquei muitas ideias a respeito com o Bronislaw
Wildstein, o qual é um escritor polonês em cuja casa eu estava e que era, também, um entusiasta do
Papini.

Montei essa lista, então, e acho que as indicações do Carpeaux foram muito úteis e muito precisas,
mas, quando se chega aos autores contemporâneos, de vez em quando, ele comete alguns
equívocos. Implicou, por exemplo, com o Mauriac, o qual ele reconhece que é um “grande escritor
e que domina a técnica”, mas do qual ele não gosta.

Esses detalhes menores não podem, de maneira alguma, diminuir o valor da sua obra.

A História da Literatura do Carpeaux é a melhor que foi escrita no mundo até a data da sua
publicação: desconheço o que foi feito depois, não sou capaz de dizer, mas quando comparado com
outras histórias da literatura que conheço, como, por exemplo, A História da Literatura Inglesa do
Walter Allen, a do Carpeaux ganha de mil a zero, e de muitos outros.

Pena que não tenha sido traduzida para o alemão e publicada na Áustria, numa espécie de retorno à
pátria.

Os dois livros que ele publicou na Áustria já estão traduzidos e, provavelmente — não; certamente
—, vão entrar num terceiro volume dos ensaios reunidos que iremos publicar junto com outros
materiais coletados, mas, ainda existe mais material que não foi coligido ainda.

Veja como é o Brasil: este material está arquivado na Biblioteca Municipal de São Paulo, a qual o
adquiriu; então, vem o diretor desta biblioteca, quando nós publicamos os “Ensaios Reunidos”,
reclamando, falando contra o livro, dizendo “não, vocês não coletaram tudo, tá faltando”, mas
espere um momento : o material está nas mãos de quem? De quem seria a obrigação? Não seria sua
(dele), ora?
O material que lá se encontra ainda não foi nem pesquisado. O que pesquisamos foi extraído dos
arquivos dos jornais do Rio de Janeiro. Lembro-me que, por exemplo, havia um jornal chamado O
Jornal, cujo arquivo estava no porão da “Tribuna da Imprensa” e o nosso assistente, o Ronaldo
Alves prontificou-se a ir lá pegá-lo, entretanto, estava tão velho que o papel estava esfarelado, não
dava para tirar xérox; ele, então, copiou à mão, artigo por artigo, um negócio incrível. Um terceiro
volume, então, está para vir a lume, a qualquer momento.

Esta tese, então, do João Antônio de Paula, de que a direita tem reivindicado o Carpeaux é
absolutamente falsa, de um simplismo mental, digamos assim, subginasiano, na verdade. Você
acha, olhando bem nos meus olhos, que eu seria capaz de pegar uma obra do Carpeaux e maquiá-la
para favorecer a direita? Ah, tenha a Santa Paciência! Jamais faria uma coisa dessas; sou um
homem sério, não estou aqui para brincadeira.

Eis aí, então, o caso do Carpeaux.

***********************************************************************

Vamos às perguntas. Aqui tem uma mensagem do Evandro Ferreira que diz que está interessado em
fazer uma pesquisa sobre os milagres, a qual eu mesmo já disse ser necessária.

Pretendo começar, claro, pela sua conferência O que é o milagre? e talvez pelo livro Miracles de
C.S. Lewis, no entanto, nem faço ideia de que outros livros posso consultar, se é que algum há.

Sugiro, em primeiro lugar, todos os livros de uma autora chamada Joan Carroll Cruz. Ela escreveu
vários livros sobre milagres, todos eles muito bem documentados. Em segundo lugar, que você
procure livros sobre a vida do Padre Pio. Existem muitos, todos eles muito interessantes e,
sobretudo, veja o filme sobre a vida dele feito com o ator Sergio Castellitto. O Filme é excelente e
muito fiel à história. Em terceiro lugar, consulte a Enciclopédia Católica. Se você puder, caso
consiga ler em italiano, utilize a edição de 1956, a qual foi a melhor. Acho que, com isso, você já
terá material suficiente; posteriormente você pode ler a série de livros americanos que tem saído
mais recentemente sobre aspectos médicos dos milagres; mais tarde citarei alguns, mas, por
enquanto, é o bastante para você começar.

Aluno: No curso Como Tornar-se um Leitor Inteligente, o senhor afirma que a língua não é um
sistema, mas uma sistematização de algo que está em aberto no mundo. Notei, entretanto, que
grandes estudiosos, como Evanildo Bechara ainda entendem ser a língua um sistema. (...)

Acontece o seguinte: do ponto de vista da lingüística, a língua tem que ser estudada como um
sistema, não há outro jeito, entretanto, uma coisa é o ponto de vista especificamente lingüístico, que
vai partir de certas premissas fixadas por Ferdinand de Saussure que irá estudar a língua como um
sistema; ao mesmo tempo, o próprio fato de haver a possibilidade de um estudo diacrônico, isto é,
da sua evolução no tempo, mostra que este sistema se dilui e se renova o tempo todo; portanto, não
se fecha jamais em si mesma. Se a língua fosse um sistema seria, mais ou menos, como os axiomas
da geometria, os quais não têm como mudar. Ela não pode ser isso — não há a menor possibilidade
de que seja—, pelo simples fato da língua estar em constante renovação e mudança.

Essa mudança reflete o anseio de sistematizar, de reduzir a multiplicidade da experiência à


coerência de algo expressável pelo ser humano, correto? Mas esse é um esforço permanente e
permanentemente frustrado. Se a língua fosse realmente um sistema, ela não poderia mudar, não
teria jeito de mudar.

Aluno: (...) Gostaria de aprofundar meu estudo sobre o conceito de sistema.


Você tem à disposição a Teoria Geral dos Sistemas do Ludwig von Bertalanffy.

Aluno: Quero apenas fazer uma observação sobre porque me parece que publicar muitos e bons
livros antes de entrar no debate público cobre todas as áreas, em se tratando de sanear o ambiente
brasileiro (...)

Não há menor dúvida. O livro é um instrumento fundamental. Não há como mensurar a diferença
do poder de disseminação que há entre um livro e, digamos, um vídeo, um debate ou um artigo de
jornal. São coisas absolutamente incomparáveis: a durabilidade do livro é algo de impressionante.

Um livro pode, por assim dizer, marcar uma época; um artigo de jornal ou um debate, jamais. Além
disso, nos livros estão as referências, as premissas que irão orientar o resultado de um debate. Para
entrar num debate, a documentação amealhada é que lhe dará o respaldo. Ademais, se você for
entrar num debate com um sujeito e caso seja o autor de cinco ou seis livros, o seu adversário terá,
por obrigação, que ler os seus livros antes, caso contrário, irá fazer o papel de palhaço. Aliás,
aconteceu muitas vezes comigo: pessoas que não tinham lido uma única linha do que eu havia
escrito e eu havia lido tudo o que eles escreveram — se deram sempre muito mal.

Gustavo Alves Souza: às vezes, vejo pessoas na USP dizerem que jamais aceitariam um debate com
“extremistas de direita”, acreditando que são infinitamente mais sérios para se sujarem numa
discussão. E pela postura de botador de banca do prof. Igor Fuser, acho que ficou claro que essa é
a tendência; mais cinco ou seis debates como esses e eles logo vão parar de participar.

Ótimo, pois daí nós debatemos entre nós, exatamente como eles fazem. Nunca ninguém da direita
— os liberais e conservadores — recusou espaço para eles dizerem o que quisessem. Nunca. No
Fórum da Liberdade, o qual era organizado por um pessoal liberal e conservador do Rio Grande do
Sul, sempre tinha, pelo menos, um ou dois convidados de esquerda para debater. É evidente que
eles sempre se saíam mal. Houve um, o Oded Grajew, o qual, convidado a debater comigo,
discursou por dez minutos, levantou-se e foi embora, para não ter que agüentar o debate — tive,
então, que falar pelas costas dele.

Gustavo Alves Souza: Então, nesse caso o livro entra como um forçador do debate, simplesmente
porque se há um livro, os estudantes estão lendo e se sentido chocados com a quebra do que estão
habituados a ouvir, então vai ser impossível os professores se esquivarem da discussão.

Você veja, tem um professor num colégio — isso saiu na minha página no Facebook — o qual
descobriu a solução ideal para isso: ele pegou um exemplar do Mínimo 3e rasgou. Pronto, estava
resolvido o problema. Agora ele não existe mais. O argumento sumiu. Tá certo. Aliás, eu botei lá
uma nota: “você pode rasgar o meu livro com a condição que, depois, você compre outro e rasgue
também, e depois, de preferência, um terceiro.”

Gustavo Alves Souza: O que se pode concluir imediatamente disso é que na verdade o livro é todo o
processo.

Perfeito, é exatamente o que eu estou dizendo. O livro é todo o processo. Quer dizer, veja o que
aconteceu com o Imbecil Coletivo em 1996 e, agora, com o Mínimo. Eles criaram uma espécie de
muro de resistência, o qual você não tem como derrubar. Para tal você precisaria escrever outro
livro; pelo menos um, mas eles não são capazes de fazer isso.

3
CARVALHO, Olavo de. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota / Olavo de Carvalho; organização
Felipe Moura Brasil. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Record,. 2013.
O livro tem realmente, então, um poder que nada mais tem. É por isso que, nos EUA, o debate
político — nem vou comentar do debate cultural — é travado, eminentemente, por meio de livros.
Significa que, se uma idéia qualquer não é expressa primeiramente num livro, ela não tem acesso à
mídia. Tem-se, primeiro, que publicar um livro para provar que não se trata de brincadeira, que
você estudou o assunto, que você está seriamente interessado. Compreende?

Gustavo Alves Souza: Depois de escrito eles vão deixar outras perspectivas no ar, todas defendidas
por estudiosos, com status igual na vida pública. No caso, status de escritores. Então o debate será
apenas a desmoralização daquele que está sendo realmente desonesto.

Gustavo, o que você está dizendo é absolutamente perfeito. Por isso que eu digo que é prematuro
vocês entrarem em debate com essa gente. Aliás, entrar em qualquer discussão. Uma discussão só é
frutífera quando é mantida entre pessoas igualmente honestas e que dispõem, em termos, do mesmo
círculo de informações e do mesmo nível de conhecimento, as quais estão seriamente empenhadas
na busca da verdade e estão expressando uma dúvida verdadeira. Isso, por assim dizer, é como se
fossem os diálogos platônicos ou a dialética tal como a entendia Aristóteles. Fora disso, a coisa é
uma disputa psicológica — sempre entendi dessa forma, isto é, na verdade você não está
enfrentando uma idéia; não há idéia nenhuma ali — você está enfrentando um personalidade que
está tentando se impor e pressionar a platéia e a sua função é, simplesmente, estourar o balão, tirar o
sujeito da tomada e dizer “não, você não vai aparecer aqui às minhas custas, desculpe-me.”

Aluno: qual a sua opinião sobre a obra de Teilhard de Chardin e sobre a Teologia Evolucionista?

Aquilo é uma epopéia poética cósmica — tudo ali é imaginário. Não há nenhum fundamento,
nenhum sequer. Se você quer resolver o problema, leia o livro do professor Wolfgang Smith a
respeito de Teilhard de Chardin. Como é que se chama mesmo o livro? Esqueci agora. É… Não é o
Cosmos and Transcendence; é outro livro4, no qual ele escreve sobre Teilhard de Chardin. Faz
vinte anos que o li, o nome não me vem à memória, você me desculpe, mas eu acho que o problema
está inteiramente resolvido nele. O Titus Burckhardt também escreveu um ensaio maravilhoso sobre
isso, o qual foi publicado em várias coletâneas, uma delas é The Sword of Gnosis (A Espada da
Gnose), a qual é uma antologia de artigos publicados na revista Studies and Comparative Religion e
que contém a tradução deste ensaio.

Teilhard de Chardin era um homem de muita imaginação e nada mais. Inclusive, a sua única
realização como paleontologista foi a de cair vítima de uma fraude — o Arthur Conan Doyle havia
enterrado uma caveira de macaco, a qual ele havia limado e adicionado algumas substâncias
químicas, deformando um pouco a cabeça do animal e a enterrou para aprontar uma cama de gato
para algum futuro paleontologista e, aconteceu que, foi justamente o Teilhard de Chardin o
premiado.

Esse episódio ficou conhecido como o famoso Homem de Piltdown, o qual nunca existiu: era
apenas um macaco limado por Sir Arthur Conan Doyle, que era um tremendo gozador.

Teilhardism and the New Religion é o nome do livro do Wolfgang Smith.

Antes de responder a outra pergunta, gostaria de esclarecer uma outra coisa, a qual coloquei no
Facebook 5, a respeito da famosa teoria do Roscelino de Compiègne, segundo a qual nós
apreendemos as essências universais por comparação entre indivíduos singulares. Isso se espalhou

4
O Prof. Olavo buscava lembrar-se do livro Teilhardism and The New Religion: A Thorough Analysis of the
Teachings of Pierre Teilhard de Chardin., o qual lhe é referido em seguida.
5
https://www.facebook.com/carvalho.olavo/posts/318633168288764
de tal modo no mundo que, até hoje, é repetido; até em manuais de lógica. E, há nisso uma confusão
entre o processo lógico de formação dos conceitos e o processo de apreensão das essências.

O processo lógico é exatamente isso: você vai anotando as características que aparecem num e
noutro e as vai dividindo por semelhança e diferença, criando, assim, o conceito verbal, ou seja,
você a expressa verbalmente, porém, toda esta operação seria impossível se não houvesse, primeiro,
a apreensão da própria essência da espécie. E, essa essência, não se pode apreender por
comparação — comparação é fazer pares e o par se define pela sua semelhança. Como é que
alguém vai notar a semelhança entre uma coisa que não percebeu e outra que, também não? Logo, é
absolutamente necessário que a apreensão da essência da espécie aconteça já na presença do seu
primeiro representante quando este for avistado.

Ou seja, a primeira vez que você vê um gato, tá certo, é claro, você vê o gato singular - nós
apreendemos objetos singulares, entes singulares - porém o que nós apreendemos dele não é só a
sua singularidade, é a sua forma. E essa forma o que é? É a forma da espécie. Porque para que um
gato seja um gato, ele precisa ter todas as características da espécie “gato” e não só metade delas, ou
três quartos.

Quer dizer, a espécie tem que estar dada inteira no seu primeiro exemplar. E depois aparece um
exemplar, um segundo exemplar um pouco diferente e um terceiro um pouco diferente. Significa
que são variações internas à noção da espécie e que não afetam essa noção.

Por exemplo, um gato é preto, outro gato é branco. Quer dizer, pode haver gatos pretos e pode haver
gatos brancos, correto? O simples fato de você perceber um exemplar com determinadas diferenças
individuais já insinua a possibilidade de outras diferenças.

Outro exemplo, quando você vê um gato preto, ele é uniformemente preto? Ele é preto como se
fosse uma lousa preta? Não, ele tem reflexos, ele tem variações, etc., etc. Então, dentro do próprio
indivíduo, você há diferenças que insinuam a possibilidade da variação dele mesmo.

Outra coisa, quando você vê um gato adulto, ele sempre foi adulto? Você não percebe
imediatamente que é um ser vivo e que o ser vivo implica, necessariamente, o desenvolvimento e o
crescimento? Portanto, aquele gato já foi diferente. Ele não pode ser constantemente igual a si
mesmo, compreende?

Qualquer objeto é assim. Por exemplo, quando você apreende uma bola: bom, a bola pode ser
grande, pode ser pequena, correto? Mas não há nada, na presença da bola, que insinue que só pode
haver bolas daquele tamanho, porque quando você vê uma segunda bola de outro tamanho, o que é
que você compara entre elas? Tomemos uma bola feita de borracha e, outra, de couro. Você
compara o material de que elas são feitas ou você compara a forma? A forma é a forma da espécie.
Não há uma fórmula da singularidade “esta bola”. A forma é, necessariamente, a forma da espécie.
As diferenças individuais se recortam dentro da espécie. Portanto, o primeiro exemplar que você vê,
ele já é a imagem completa, acabada, da sua espécie. Logo, é impossível que isto se forme por
comparação. A própria possibilidade da comparação depende de que você tenha apreendido, já na
primeira, a forma da espécie. Senão, a comparação seria entre elementos fortuitos: você compararia
o rabo de um gato com a cabeça de outro, ou a cor de um gato com o tamanho de outro.

Como, então, você sabe comparar tamanho com tamanho, órgão com órgão, cor com cor etc., por
exemplo? É porque você já apreendeu a forma da espécie. Isto, então, é muito importante: uma
coisa é a apreensão da essência, outra é a formação lógica de um conceito, que é um processo
reflexivo posterior, baseado nesta essência que já foi apreendida.
Essa diferenciação é uma coisa fundamental, correto? Entretanto, os manuais continuam
disseminando este erro. Por quê?

Isso deve-se à nefanda divisão em especialidades. É como o sujeito que vai estudar linguística,
como visto agora há pouco, e que, então, olha e encara a língua apenas do ponto de vista da sua
ciência, a qual tem um recorte limitado. Ele delimita um certo ângulo e o descreve como se ele
fosse a realidade. Acaba-se, então, tomando um elemento abstrato como se fosse uma realidade
concreta. A formação dos conceitos é feita por comparação entre formas que você já apreendeu e
percebe nelas aquilo que é constante e aquilo que é variável.

Se você compara um gato com outro, o que é constante? A forma. O que é variável? São variações
intrínsecas como, por exemplo, de cor, de tamanho, de idade, etc., etc., as quais não têm
absolutamente nada a ver com a forma da espécie e que são compatíveis com essa forma.

Não precisamos de muita imaginação para perceber que, quando vemos o primeiro exemplar de
uma espécie qualquer, assimilamos, instantaneamente, quais são as variações possíveis e quais as
impossíveis.

Por exemplo, você vê uma bola. Você já sabe que não vai haver uma bola cúbica. Então, na hora
que você apreendeu aquela forma, você já entendeu o elemento de constância que existe nela e a
possibilidade da variação interna que não afeta a forma. Isso tudo é instantâneo. Você não precisa
raciocinar.

Por outro lado, para transformar isto num conceito verbal, a dificuldade é enorme. Primeiro, você
precisa ser capaz de verbalizar a sua impressão — veja que coisa; isso já é difícil. Depois de
verbalizar as suas impressões, vai ter que compará-las para ver aquilo que é constante e aquilo que é
variável, não na forma em si, mas na sua expressão verbal sobre ela.

São dois processos completamente diferentes. A apreensão de essências é uma coisa, que é um
processo psicológico ou gnoseológico, se você quiser, e o processo lógico de formação do conceito,
que é uma atividade inteiramente construtiva da mente — não uma atividade de percepção.

Entre a percepção e a construção, então, realmente há uma inversão. Por exemplo, quando você vê
uma casa, você a vê toda de uma vez, você vê a casa inteira. Agora, para construí-la, você teve que
construir tijolo por tijolo ou tábua por tábua, não há jeito. Do mesmo modo, por assim dizer, a nossa
apreensão das essências é uma atividade instantânea de percepção e a construção do conceito que a
expressa verbalmente é uma atividade, digamos assim, complexa, a qual é feita na base da análise.

Análise do quê? De um conteúdo que já foi percebido antes. Se não há conteúdo, não há o que se
analisar.

Então, este é um erro devido à especialização. O sujeito está escrevendo um livro de lógica e, então,
pensa que só existe a construção lógica do conceito. Ele não está interessado em gnoseologia. Ele
está interessado, apenas, em lógica. Daí ele escreve sobre este aspecto.

Se você espremer o autor, ele vai dizer “Ah, é verdade, não é disso que eu estou falando, é de outra
coisa.” Mas, para o leitor que chega ali com a maior inocência e sem, digamos, ter recebido esta
formação verdadeiramente básica que é preciso em filosofia e que ninguém dá — todo mundo já dá
tudo recortado segundo pautas disciplinares já recebidas prontas — esse leitor acaba acreditando
que aquela abstração, às vezes convencional, adotada por esta ou aquela ciência, está expressando
uma realidade concreta, quando não está.
Alguém perguntou o que significa conceito abstrato em filosofia? O conceito abstrato consiste,
sempre, em olhar uma coisa por um determinado aspecto, esquecendo propositadamente outro.
Quando, por exemplo, suponhamos, você vai desenhar um gato e seu perfil. No gato, entretanto,
este perfil já está junto com uma forma, com um volume, com uma perspectiva, etc. e tal. Ele tem
tudo isso junto. Como não dá para desenhar tudo isso junto, então você os separa.

Existem vários tipos de abstração. Por exemplo, separar uma coisa de outra coisa que sempre vem
acompanhado dela, como é o caso dos animais que andam: eles andam sobre um solo, não andam
no ar, mas você pode concebê-los independentemente do solo onde estão caminhando. Ao desenhar,
o animal fica como se estivesse no ar. Não há necessidade de se desenhar todo o panorama ao redor
dele. Aliás, até para se desenhar o panorama, será necessário fazer um recorte deste. Não há como
se desenhar 360º — um limite tem que ser imposto.

Abstração, então, é a capacidade que temos de recortar a realidade em pedaços que são distintos,
embora não estejam realmente separados. Ela é uma grande capacidade do ser humano. Se não
fosse isso, não conseguiríamos pensar, porque nós teríamos que pensar tudo junto ao mesmo tempo.

Nossa percepção é assim: percebemos tudo junto, tudo misturado. A figura (desenho) e o fundo não
estão separados, mas, para pensá-los, temos que fazê-lo uma coisa de cada vez, inclusive por uma
imposição da nossa linguagem. Temos que dizer uma palavra de cada vez e pensar as coisas numa
certa seqüência.

Quando pensamos, às vezes, temos uma intuição. Essa intuição capta várias coisas ao mesmo
tempo, só que não as conseguimos verbalizar. Verbalizar uma simples impressão de conjunto, por
exemplo, é uma coisa que só um grande escritor consegue fazer, outras pessoas não.

O que temos que fazer, então? Partir dessa impressão de conjunto e separá-la em pequenos pedaços.
Dessa separação é que surge a possibilidade das várias ciências, as quais recortam certos aspectos e
dizem: “vamos abordar isto sob este aspecto”.

Peguemos o estudo da botânica, como exemplo: faz-se a abstração do preço das flores no mercado,
pois isso lhe diz respeito, assim como o estudo de economia não irá se delongar num conhecimento
aprofundado do processo natural da formação, digamos, dos animais, das plantas ou dos vegetais
que estão sendo comercializados.

A abstração, por conseguinte, é a nossa capacidade de analisar as coisas sob certos aspectos,
esquecendo-nos, provisoriamente, de outros. Só que, se queremos chegar a uma realidade e, não
apenas, fazer um discurso coerente com os pressupostos de uma dada ciência, teremos que,
posteriormente, integrar o abstrato no concreto, por mais trabalhoso que isso seja. E esta capacidade
de se trabalhar com o abstrato e o concreto é fundamental em filosofia.

Entretanto, para as ciências, isso não tem tanta importância. Por quê? Porque, uma vez recortado o
ângulo sobre o qual a ciência vai analisar o seu objeto, daí por diante ela só se interessa por esse
aspecto. Como diziam os escolásticos, temos aí, por assim dizer, o objeto material da ciência.
Tomemos o ser humano como exemplo. Ele é o objeto material da antropologia social e da
antropologia física, só que uma vai se interessar somente por um aspecto e outra por outro, embora
o objeto material seja o mesmo.

Veja, ambas têm o mesmo objeto material, mas o que define o campo da ciência é o objeto formal,
isto é, aqueles aspectos seletivos que foram escolhidos para analisar o objeto. Isso não quer dizer
que o homem exista socialmente sem existir fisicamente nem que exista fisicamente sem existir
socialmente. É impossível que essas duas coisas sejam separadas na realidade, mas, para que se
possa criar uma ciência organizada, faz-se necessário selecionar aquele objeto.

Assim, além da distinção entre objeto material e objeto formal, existe a distinção entre o que os
escolásticos chamavam de objeto formal-motivo, isso é, qual é a pergunta que se está fazendo, e o
objeto formal-terminativo, isso é, qual é a pergunta final a que essa ciência pretende responder.
Tudo isso é a abstração.

No caso supracitado do Roscelino, o problema é que a abstração, isto é, a distinção entre percepção
de essência e construção do conceito, é, evidentemente, uma distinção puramente formal posterior,
porque é impossível formar um conceito se não se apreendeu, antes, a sua essência. Não há material
com o qual trabalhar. E, também, para o ser humano, é impossível se contentar somente com a
percepção ou com o objeto intuitivo em si, sem tentar expressá-lo ou conceituá-lo, de uma maneira
ou de outra. Essas duas coisas, então, vêm sempre juntas — juntas, porém, distintas.

Filipe Augusto: “Este ano mergulhei na leitura da poesia, especialmente do soneto, começando
pelos portugueses. Fico admirado com a beleza das obras, porém vejo que os poetas portugueses
estão repletos de poemas tristes e saudosos. Gostaria de saber quais poetas têm uma atitude mais
positiva?”

Em Portugal, nenhum. Veja, a melancolia é um dos traços mais profundos da mente portuguesa. O
gênero mais popular da música em Portugal é o fado — o destino, o fato. Aquilo do qual não há
escapatória. Isso é um dos seus traços, ou seja, é um povo profundamente melancólico. Como dizia
Antônio Nobre: “que desgraça, maninho, nascer em Portugal”. Infelizmente, então, é o que nos
coube, mas é uma grande literatura, sem dúvida.

Dangus Raid pergunta: “o senhor fala bastante que, há muito tempo no Brasil, o pessoal só
consegue raciocinar através da definição das palavras.”

O que eu quis dizer com isso: a palavra tem um sentido dicionarizado que se compõe de quê? De
outras palavras, correto? Pode-se pode conhecer perfeitamente a definição da palavra, saber seu
significado convencional sem nunca ter visto o objeto, sem nunca ter pensado nele, nem sequer tê-
lo imaginado. Isso é perfeitamente possível.

Só que, numa conversa assim, está se trocando palavras por outras e a realidade não é convocada a
participar. Isso no Brasil tem se tornado comum: quanto mais a alta cultura decai, mais as pessoas
tendem para um puro verbalismo. Estão falando somente de palavras, porque não se tem a vivência
efetiva. Por conseguinte, quando uma pessoa fala e a outra ouve, só se entende o significado verbal
imediato. Não se é capaz de captar a experiência cognitiva do outro. O que o outro viu?, o que ele
experimentou?, o que ele sentiu?

O empobrecimento da imaginação é um problema. Sem ela, só poderia dar nisso mesmo, porque
não podemos, à medida que falamos, trazer os objetos fisicamente para exibi-los, então, eles têm
que ser evocados pela imaginação — tanto de quem fala quanto de quem ouve. E a imaginação tem
que preencher aqueles conceitos abstratos, aquelas definições abstratas com um conteúdo sensível,
os quais se possam imaginar e visualizar, ao menos em pensamento — ao menos na imaginação.
Essa capacidade de examinar as coisas dessa forma, está ficando cada vez mais difícil no país. As
pessoas não têm o treino para tal.

Em seguida, ele pergunta: “gostaria de saber se a visão holística da natureza é algo possível ou
totalmente irreal, que só existe no dicionário?”
Veja, a visão holística existe como uma presunção, como algo que se pretende alcançar, mas que
nunca vai ser alcançada. Visão holística significa: levar em conta todos os fatos ao mesmo tempo.

Lembro-me que, anos atrás, li um livro magistral sobre isso, o qual considero ser o melhor livro que
já se escreveu sobre esse tema; chama-se Le Macroscope (O Macroscópio6) de um biólogo francês
chamado Joël de Rosnay. Ele citava o seguinte exemplo: “ah, mas nós podemos ter uma visão
integral da natureza fazendo o seguinte: pega-se uma garrafa, põe-se um pouco de água; joga-se
umas pedrinhas e, em cima, põe-se uma plantinha. Tem-se aí, então, a hidrosfera, a litosfera, a
biosfera e a atmosfera, tudo numa garrafa. Isso é uma visão integral.”

Só que isso não é uma visão integral, isso é uma visão abstrativa. Está se resumindo tudo nesses
quatro aspectos, como se fossem o todo. Está se falando de um modelo recortado e, não, de uma
visão integral. Perceba que toda visão integral é baseada num modelo. Esse, por sua vez, é
abstrativo e disso não podemos escapar. Uma visão holística significa uma visão do todo. Uma
visão total do todo só Deus tem, nós nunca chegaremos a tal. Sempre teremos que raciocinar por
meio de modelos e analogias.

O que o Joël de Rosnay está fazendo é exatamente uma analogia. Pegando uma garrafa e colocando
nela os quatro reinos da natureza, correspondentes aos quatro elementos da física antiga e dizendo:
“isto é a natureza”. Mas isso não é a natureza; isso é um modelo da natureza que guarda para com
ela uma relação analógica.

O que é analogia? É uma síntese de semelhanças e diferenças: é semelhante sobre certos aspectos e
é diferente sobre outros.

Aliás, o conceito de analogia é fundamental para todo e qualquer conhecimento. A Susanne K.


Langer, no livro de introdução à lógica simbólica, começa dizendo assim “todo e qualquer
conhecimento começa com a percepção de alguma analogia”, Uma coisa é parecida com a outra,
correto?

Um gato, então, pode ser parecido com outro gato, o qual pode ser parecido com um cachorro, sob
certos aspectos. Tomemos, por exemplo, um gato preto e um cachorro preto e, de outro lado, um
gato branco. Sob o ponto de vista da cor, o gato é mais parecido com o cachorro, mas, sob o ponto
de vista da forma da espécie, é mais parecido com o gato. De que forma, então, estamos
raciocinando aqui? Analogicamente.

Até a semana que vem, muito obrigado.

Transcrição: Cláudia Makia e Filipe Catapan.


Revisão: Saulo von Randow Júnior.

6
ROSNAY, Joël de. O Macroscópico – Para Uma Visão Global. Ed. Estratégias Criativas. Lisboa, 2006.

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