10 - Arquivos, Patrimônio e Memória

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ne,Ses, 01- 13

FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

Presidente do Conselho Curador


José Carlos Souza Trindade

Diretor-Presidente
José Castilho Marques Neto

Assessor Editorial
Jézio Hernani Bomfim Gutierre
Conselho Editorial Acadêmico
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Maria Sueli Parreira de Arruda
E MEMÓRIA
Raul Borges Guimarães
Roberto Kraenkel
Rosa Maria Feiteiro Cavalari
Trajetórias e perspectivas
Editora-Executiva
Christine Rbhrig

Organizadora
Zélia Lopes da Silva

V Reimpressão
DEDALUS - Acervo - FFLCH-HI
SBD-FFLCH-USP

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21200044065

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Apresentação
Zélia Lopes da Silva 7
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIF)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Parte 1
Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas / orga- As Armadilhas da memória.
nizadora Zélia Lopes da Silva. - São Paulo: Editora UNESP: FAPESP, 1999. Os Arquivos e Centros de Documentação - Trajetórias
- (Seminários 61 Debates)
Vários autores.
1 A crise da Memória, História e Documento:
Bibliografia.
ISBN 85-7139-268-4 (Editora UNESP) reflexões para um tempo de transformações
Acervos (Dados bibliográficos) - Usuários 2. Arquivos - Usuários Ulpiano T. Bezerra de Meneses 11
3. Centros de documentação - Usuários 4. Documentação 5. História -
Fontes I. Silva, Zélia Lopes da. II. Titulo. III. Série. 2 História oral e Arquivos
Verena Alheai 31
99-4770 CDD-025.5

3 Preservação da Memória literária


lndices para catálogo sistemático: Eliane Vasconcellos 41

1. Acervos documentais: Usuários: Acesso: Ciências da informação 025.5


4 Os Centros de Documentação das universidades:
Arquivos: Usuários: Acesso: Ciências da informação 025.5
Centros de documentos: Usuários: Acesso: Ciências da informação 025.5 tendências e perspectivas
Célia Reis Camargo 49

5 Preservação da Memória e pesquisa:


a experiência do Arquivo Edgard Leuenroth (EL)
Editora afiliada:
Angela Maria Carneiro Araújo, Cláudio H. M. Batalha 65

euanD REEI)
Asociaelán de Editoriales Universitarias Associação Brasileira de
"
1"%
AISSIE%,
6 Os Centros de Documentação e Memória da UNESP.
O Centro de Documentação e Memória (CEDEM)
de América Latina y el Caribe Editoras Universitárias 0,7 Anna Maria Martinez Corrêa 79

5
1 A CRISE DA MEMÓRIA, HISTÓRIA E DOCUMENTO:
REFLEXÕES PARA UM TEMPO DE TRANSFORMAÇÕES

Ulpiano T. Bezerra de Meneses I

Introdução

A problemática da memória vem-se transformando, nos últimos


anos, em foco privilegiado de atenção, seja do ponto de vista das ciências
biológicas (Neurofisiologia, Etologia), seja das ciências humanas (Antro-
pologia, Sociologia e, sobretudo, História e Psicologia Social e estudos cog-
nitivos). Apesar disso, o campo de problemas a descoberto é ainda muito
vasto. Apenas para nos atermos ao ângulo da História, poderiam ser apon-
tadas muitas questões cruciais que contam com bibliografia inexistente
ou insatisfatória: a amnésia social, a apropriação da memória alheia, as
práticas comemorativas (que têm sido examinadas sobretudo do ângulo
do estado) etc. etc. Muito esforço, em vez disso, tem sido ainda dedicado a
estabelecer fronteiras entre a História e a memória - o que só tem sentido
não do ponto de vista epistemológico, mas tomando-se a memória (e as
diversas práticas de seu contexto) como objetos da análise e do entendi-
mento do historiador. Em suma, já seria tempo - e tem havido apelos nes-
se sentido - de começar a fazer uma História da memória, que seria não
apenas a história das teorias sobre a memória, mas se imbricasse nas prá-
ticas e representações mnemônicas e rememorativas das sociedades e
grupos, incluindo seus suportes e estratégias de apropriação, tendên-
cias, móveis, conflitos, efeitos, reciclagens etc. etc. Nesta perspectiva, pes-

1 Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - SP,

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guisar o universo de gestão da memória e, em particular, daquilo que se Imaginons chague citoyen transforrné en collecteur et en conservateur,
poderia chamar de economia política da memória seria de extrema opor- duque objet devenant son propre symbole, et la nation entière figée dans sa
tunidade. propre image, comme les tableaux vivants au théâtre le pollen ne s'échappant
É nessa direção que me pareceu pertinente propor algumas reflexões plus desfieurs mais conserve pour des botannistes futurs, le manuscrit archivé
avant Ia publication, la matriconservée pour plus de süreté - clút-elle pour cela
sobre a memória como modalidade de representação social, num quadro
n'avoir jamais produit aucun exemplaire. L'Histoire enfin produite pour le seul
de práticas que caracterizam a sociedade capitalista avançada, ressaltan-
intérêt des historiens, et pour eux-mêmes bloquée, comme un chirurgien im-
do os problemas documentais que a "sociedade da informação" vem acu- mobilise son patient pour mieux pouvoir opérer. 2 (1986a, p.14)
mulando. Ao final, sugere-se um rumo para enfrentar transformações ra-
dicais que a nova ordem das coisas está impondo.
A problemática em causa é muito vasta e exigiria capacidades e com- A crise da memória
petências diversificadas. Por isso, para chegar a algum resultado seguro,
procedi a cortes que selecionassem um número reduzido de questões
A memória, pois, tanto como prática, como representação, está viva
que, porém, considero relevantes para o tema. Além de uma caracteriza-
e atuante entre nós. Isso, porém, não significa estabilidade e nem mes-
ção do campo da memória, a atenção também se dirigiu aos problemas
mo situação de equilíbrio e tranqüilidade. Pelo contrário, seu status é ex-
documentais que ele coloca para a pradução do conhecimento (histórico).
tremamente problemático, a ponto de muitos especialistas, como Richard
Terdiman (1993), diagnosticarem, no mesmo quadro acima delineado,
uma verdadeira crise da memória na sociedade ocidental.
A efervescência da memória
Para esboçarmos rapidamente o perfil deste caráter problemático no
quadro geral da memória, conviria apontar suas marcas mais salientes. Fo-
A memória está em voga e não só como tema de estudo entre espe- ram selecionadas apenas as dimensões que pareceram de maior relevân-
cialistas. Também a memória como suporte dos processos de identidade cia: a epistemológica, a técnica, a existencial, a política e a socioeconômica.
e reivindicações respectivas está na ordem do dia. Estado (principalmente
por intermédio de organismos documentais e de proteção ao patrimônio
cultural), entidades ptivadas, empresas, imprensa, partidos políticos, mo- A dimensão epistemológica
vimentos sindicais, de minorias e de marginalizados, associações de bair-
ro, escolas, e assim por diante, todos têm procurado destilar sua auto- O que está em causa é a própria noção de passado e as relações com
imagem - mais raramente e com dificuldade a da sociedade como um ele tecidas, em particular a do conhecimento e da representação intuitiva.
todo. Palavras-chave são "resgate", "recuperação" e "preservação" - todas "The past is a foreign country". Com estas palavras extraídas de um
pressupondo uma essência frágil que necessita de cuidados especiais para romancista inglês David Lowenthal (1985) quis marcara ruptura entre pas-
não se deteriorar ou perder uma substância preexistente. A comunicação sado e presente, a possibilidade de reconhecer um conteúdo de pastness
de massa e o mercado (antiquariato, moda) reforçam esta reificação. A in- no passado, nas percepções que se vão sedimentando, do século xviii em
dústria do patrimônio cultural - denominação proposta por Hewison (1987), diante, no Ocidente.
ao estudar o fenômeno na Inglaterra - passa por um verdaderio boom: a
continuar o ritmo frenético que ele detectou, em pouco tempo a Grã-
2 "Imaginemos cada cidadão transformado em coletor e em conservador, cada objeto toman-
Bretanha seria um único grande museu ao ar livre, em que o mapa e o tem- do-se seu próprio símbolo e a nação inteira fixada em sua própria imagem, como os ta-
tório teriam a mesma escala, como no famoso conto de Jorge L Borges. blea ux vivanrs no teatro: doravante sem o pólen a escapar das flores, mas conservado para

No campo dos arquivos esse risco de se produzir um duplo fragmen- os botânicos futuros, o manuscrito arquivado antes da publicação, a matriz conservada para
maior segurança - mesmo se, para tanto, ela tiver que jamais produzir um exemplar. A His-
tado e parcelar do presente empírico está na mira de Michel Melot, que
tória, enfim, produzida para interesse exclusivo dos historiadores e por eles mesmos blo-
fala de uma verdadeira pulsão documental alucinatória: queada, como um cirurgião imobiliza seu paciente para melhor poder operar."

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Edward Gibbon, o grande historiador setecentista da Roma antiga, é, Cortar o cordão umbilical que pareda unir a um passado sem desconti-
por exemplo, um dos responsáveis pela idéia de Antigüidade que hoje nos nuidade é trauma comparável ao da descoberta, pela criança, de que o
parece óbvia, de um tempo e de sociedades que não são o estágio ante- mundo já existia antes dela. A isto se acrescentam, agora, a reificação e a
rior de nosso presente, mas um outro tempo, outras sociedades. Não se amnésia.
tem mais a imagem sincrônica, como na foto de família, em que na mesma
superfície convivem harmoniosamente, apesar das marcas diferenciais
cronológicas, gerações, estilos, conteúdos de épocas sucessivas, como se A dimensão técnica
o passado fosse apenas um antes, com relação ao agora.
Ora, essa percepção nova do passado não é característica apenas da A dimensão técnica da crise diz respeito a um progressivo processo
historiografia, mas se estende como fenômeno de ampla expressão cultu- de extemalização da memória, que começa a operar já na transformação
ral na Europa. Após a Revolução Francesa, com efeito, a memória passou a das sociedades orais em quirográficas e se acentua com a difusão da alfa-
ser fonte de inquietação intensa, que se manifesta na percepção radical betização e da escrita, reforça-se poderosamente com a invenção da im-
da natureza opaca do passado e, conseqüentemente, da incerteza com prensa e chega a seu cume com os registros eletrônicos.
relação a esse passado. Nesta linha, e tomando como referências diagnós- Platão já havia lançado o anátema sobre a escrita, por enfraquecer a
ticas (embora não exclusivas) Musset, Baudelaire, Proust e Freud, é que memória, alojando-a "fora do homem". A crítica de Platão (principalmente
Terdiman assinala a ruptura que foi "the loss of a sense of timeS continu- no Fedro, 274-5) era conservadora, pois a memória assim objetivada, e que
ous flow and of our unproblematic place within it, the disruption of ele rejeita, reduz a autoridade de quem fala e garante condições para o
organic
connection with the past"3 (1993, p.5). (Esta crise está, pois, vinculada à cri- exercício da crítica e da abstração, desatrelando sujeito e objeto. Da mes-
se da representação, na modernidade.) Retomando Lukács, o mesmo Ter- ma forma, penso que se deva considerar conservadora a crítica indiferen-
diman (p.29) aponta como, com a Revolução Fancesa, a História se trans- ciada e radical à memória plenamente artificial que a informática permite
forma pela primeira vez em experiência de massa: as massas são, de fato, constituir e operar. O problema não está, em verdade, na presença domi-
forçadas a desnaturalizar a visão dos acontecimentos e a questionara im- nante das bases de dados eletrônicos (sem lembranças, recordações, re-
pressão de "ocorrência natural" para uma tão grande alteração da ordem miniscências), nem na intermediação extrema e intensa, mas na qualifica-
vigente e que elas puderam apreender em seu próprio curso. ção do juizo crítico e sensibilidade política desse homem, que poderá ser
Por outro lado, o processo de transformação de qualquer bem em desmemoriado, embora detentor de poderosa memória artificial; aliena-
mercadoria, a que o capitalismo induziu e a sociedade de consumo sedi- do, apesar de hiperinformado; e anti-social, apesar de imerso numa rede
mentou, traz consigo a necessidade de esquecimento, que impede reco- fabulosa de comunicação.
nhecer o processo de produção e suas implicações. É o que já postulava a Vale aqui, pois, assinalar que são posturas igualmente injustificáveis,
visão de Marx sobre os mecanismos da fetichização. Mais que isso, voltan- por deterministas, tanto a visão satanizada da técnica/tecnologia quanto
do a Terdiman, tal processo é uma das formas mais insidiosas de pertur- sua irresistivel sedução ou força sedutora (em si, reificada).
bação mnemônica:
To understand what we have mude, we have Co be able
to remember it
Because commodities suppress the mémory of theirown A dimensão existencial
process, they subvert
ar violate this fundamental tenet of the mnemonic economy. (1993, p.12)
4
Tem estreitas vinculações com a dimensão anterior, mas também
uma especificidade marcada, que se refere às práticas sociais e intervém
3 "a perda de um sentido do fluxo continuo do tempo e de nosso lugar não-problemático den- profundamente na determinação das funções e eficácia da memória.
tro dele, a ruptura da conexão orgânica com o passado".
Pierre Nora, em tom um tanto passadista, ressalta a importância as-
4 "Para entender o que fizemos, temos que ser capazes de lembrá-lo. Visto como as mercado-
rias suprimem a memória de seu próprio processo, elas subvertem ou violam este preceito sumida, em nossa sociedade, pelos lugares de memória (pontos de con-
fundamental da economia mnemônica." densação tópica da memória, de sentido material, simbólico e funcional),

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para compensar a perda, que lhe parece irrecuperável, da memória como
experiência coletiva, coletivamente vivenciada: como diz Kundera (citado por Middleton & Edwards, 1990, p.vii), os even-
tos históricos ocorrem com tal rapidez e em tal escala de massa que não
Les temos des lieux, c'est ce moment podem ser adequadamente assimilados pela experiência cotidiana. Nos-
precis ot) un immense capital que
nous vivions dans l'intimité d'une mémoire sas estruturas perceptivas são históricas, socioculturalmente instituídas e
disparait pour ne plus vivre que
sous le regard
d'une histoire reconstituée ... Les lieux de mémoire, ce sont sujeitas a transformações. Nós as tratamos, porém, como se fossem "na-
d'abord des restes. La forme extrême oú subsiste une conscience
commêmora- turais", imutáveis: nada existe, por exemplo, em nossos quadros encultu-
tive dans une histoire qui l'appelle,
parce qu'elle l'ignore. ['est la déritualisation rativos, que nos prepare os sentidos para trabalhar com a velocidade, um
de notre monde qui fait apparattre Ia notion
Musées, archives, cimetières et traço identificador de nosso tempo.
collections, fêtes, anniversa ires traités, proces verbaux,
res, associations, ce sont les buttes témoins monuments, sanctuai- Seria oportuno, ainda, examinar, mesmo que rapidamente, o proble-
d'un autre 'age, des illusions
d'étemité. D'oú l'aspect nostalgique de ma das comemorações, para dimensionar sua variedade e ambigüidade.
ces entreprises de piété, pathétiques et
glaciales. Ce sont les rituels d'une société É inegável que as comemorações, em particular as cerimônias de
sans rituel... des signes de reconnais-
sance et d'appartenance de "culto aos aniversários", têm um peso ainda considerável em nossos tem-
goupe dans une société qui tend ô ne reconnaitre
que des individus égaux et identiques. 5 (1984, p.XXIII, XXIV) pos, como vetores de integração social e legitimação. A comemoração pa-
radoxalmente dispensa a recordação, já que a imanência do comemorado
Porque não mais existiria a memória "espontânea" é que seria preci- se abriga nos veículos que o suportam, favorecendo a partilha
da memó-
so criar, fora das práticas, a memória vicária e seus "artificialismos", como ria alheia. Na comemoração, a recordação pode existir, mas o "essencial é
os arquivos, museus e monumentos. Parece-me que, aqui também, have- o papel dos outros" (Casey, 1987, p.47). Por isso, seja com vistas a fixar me-
ria um eco da crítica platônica, nesse ressentimento com que Nora ignora tas a serem atingidas ou, ao inverso, para definir um sentimento de con-
ou desqualifica novas formas possíveis de sociabilidade e, portanto, de sumação, de página virada, seja para dar a perceber aos cidadãos o lugar
memória vivida fora dos parâmetros vigentes nas estruturas de comuni- do país/grupo no fluxo geral abstrato do tempo, a comemoração tem
dade e nas sociedades de comunicação oral. As formas de memória das "quase eclipsado as demais formas de memória coletiva", na expressão de
sociedades tradicionais não são melhores que as da sociedade de massas Johnston (1987, p.80), um especialista do tema.
(nem piores, o problema não é esse), mas são hoje, definitivamente, obso- É claro que as modalidades, a eficácia, os interesses em causa, assim
letas. Afinal, para retomar a clássica e ainda útil distinção de Tonnies, a como a importância dos rituais comemorativos são muito variáveis: há
meinschaft Ge-
(a comunidade, a sociedade de comunicação direta, face a uma polaridade, por exemplo, entre a "goetheficação" - a tendência,
face, o grupo orgânico que, no horizonte utópico de um outro grego, Aris- como nas festividades com que a Alemanha celebrou o bicentenário de
tóteles, deveria limitar-se ao número de cidadãos que a voz humana pu- Goethe, de fixar paradigmas inimitáveis - e a "disneyficação" - a tendên-
desse atingir), esta Gemeinschaft deu lugar cia de eliminar qualquer distância entre celebrante e celebrado. Seja
à Gesellschaft (associação me-
cânica de interesses, as sociedades mediatizadas como a nossa). Nesta, como for, uma constante atual apontada por Johnston é a vasta e bem or-
questrada articulação de intelectuais, estado, mecenas privados, institui-
ções especializadas, meios de comunicação, massas populares, gestores
5 "Os tempos dos lugares são esse momento preciso em que um imenso capital que vivíamos
"culturais" e burocráticos etc. num terreno fértil que é o da sociedade de
na intimidade de uma memória desaparece para .viver apenas sob o olhar de uma história
reconstituída ... Os lugares de memória são, antes de mais nada, restos. A forma extrema em
consumo. Além disso, na sua perspectiva, o pós-modemismo forneceu
que subsiste uma consciência comemorativa numa história que a convoca, pois a ignora. ta combustível novo às comemorações, por atender quer à recusa de me-
desritualização de nosso mundo que fez aparecer a noção.... Museus, arquivos, cemitérios e dir-se às vanguardas precedentes quer como rearranjo eclético de ele-
coleções, festas, aniversários, tratados, averbações, monumentos, santuários, associações, mentos disparatados, para reavaliar autoridades passadas (Johnston,
são os remanescentes testemunhos de uma outra era, ilusões de eternidade. Daí o aspecto 1987, p.6).
nostálgico desses empreendimentos de piedade, patéticos e glaciais. São rituais de uma so-
ciedade sem ritual ... signos de reconhecimento e de pertença de grupo numa sociedade que
No entanto, nesse peso todo da comemoração, transparece, mais
tende a reconhecer tão-somente indivíduos iguais e idênticos." uma vez, uma relação problemática com o tempo e, sobretudo, com a His-
tória. Se a comemoração pode "desprivatizar a memória", como o próprio

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Johnston reconhece (p.15), pode também, como John Bodnar (1992,
A dimensão política
p.123) demonstra num estudo sobre o memorial dos veteranos da guer-
ra do Vietnã, em Washington, caminhar rumo à privatização e à despoli-
Por dimensão política refiro-me, em particular, às pressões de amné-
tização (ainda que permaneçam e se manifestem as tensões). Também
sia vigentes em sociedades como a nossa, em todas as suas esferas.
valeria lembrar, aqui, as tentativas de desmaterialização e desritualiza-
Atente-se, por exemplo, para o fenômeno da autofagia que marca
ção da memória, juntamente com o alargamento do espaço da subjetivi-
nosso desenvolvimento urbano e que, fundado na lógica impecável da es-
dade, no chamado movimento antimonumento, que se tem desenvolvi-
peculação imobiliária, provoca a instabilidade da relação entre o lote ur-
do na Europa e nos Estados Unidos desde a década de 1970 (Gillis, 1994,
p.16-7). bano e a estrutura edificada e entre esta e seu programa, sua função. Esta
substituição do uso pelo consumo do espaço alimenta a ideologia do novo
Finalmente, para encerrar esse painel complexo e aparentemente
e privilegia as incessantes substituições. Atenua-se, assim, ou se anula a
contraditório (mas, na realidade, sobretudo problemático), merece men- possibilidade de pertencer a um espaço e situar-se no tempo: a mobilida-
ção a questão das tentativas de museificar o chamado "patrimônio cultu-
de inevitável e a amnésia conduzem à alienação.
ral", ao que se poderiam acrescentar (pois são fenômenos paralelos) as
Doutra parte, o contexto mais amplo das práticas sociais da memória
propostas de fazer "museus vivos" - que procurem atrair visitantes pela
é o da comunicação de massa e da indústria cultural, que priorizam a ex-
encenação e dramatização da "memória". A chamada Living History, tão
periência do transitório e abominam a memória longa. Por isso, têm cará-
em moda nos Estados Unidos, por seu caráter pretensamente pedagógico,
ter estruturalmente anestésico:
tem merecido as mais acerbas restrições (Wilkinson, 1983; Wallace, 1989;
Leon & Piatt, 1989; Meneses, 1994, p.33-7), precisamente pelas ilusões que
É um elemento definido dessa indústria (cultural) ser essendalmenteam-
produz e por sua tendência absolutamente a-histórica e, com freqüência, nésica: oferece a ilusão da possibilidade de participação total e instantânea en-
anti-histórica. Na verdade, ao pretender anular distâncias com o passado, tre produtor e consumidor (neste sentido, realizando tecnologicamente um
acaba reduzindo-o a mero presente anacrônico: eis um outro caso de "dis- dos ideais da cultura folk ..., mas sem a possibilidade de acumulação. Não enfa-
neyficação" da História. Supor que se possa "visitar o passado" - um passa- tiza a dimensão hermenêutica, mas o puro impacto semiológico ou a pura vi-
do fetichizado e congelado, oferecido à visão, confundida com o conheci- vência .... Se quero resumira que está por trás de toda essa promessa de felici-
mento - é postura confortavelmente anti-histórica e antipedagógica, pois dade da indústria cultural (a moda, a TV, os brinquedos eletrônicos, os adornos
plastificados, os fetiches do consumo industrial) é basicamente a experiência
nos aprisiona no presente e, incapaz de nos fazê-lo apreender no confron-
do transitório: ajuda as pessoas, numa vida cada dia mais acelerada e cambi-
to critico com o diverso, o outro, a alteridade, transforma-o no único ter-
ante, tal como é ocaso na moderna urbe industrial, a se livrarem do peso e da
mômetro capaz de tudo medir. responsabilidade da memória. (Carvalho, 1992, p.32)
A raiz destes modismos está na permanência de um realismo ingê-
nuo, que ainda domina as práticas museológicas e cuja ruptura, como ad- Assim, a imagem de comunicação de massa, principalmente televisi-
verte Néstor Garcia Canclini, é impositiva e urgente: va, nega-se como representação. O telejornal leva ao paroxismo a estraté-
gia da naturalização, em que o espontâneo (penhor de verdade e de reali-
dade, porque visível), a coincidência do fato com sua comunicação, a
Asi como el conocimiento cientifico no puede reflejar la vida, tampoco la
restauracián, ni la museografia, ni la difusión más contextualizada y didáctica apresentação do processo de produção da informação mascarado como
logrará abolir Ia distancia entre realidad y representación. Toda operacián ci- produto, o arbitrário, assim usurpando o status da necessidade, configuram
entífica o pedagógica sobre el patrimonio es un metalenguaje, no hace hablar um contexto em que a memória não pode subsistir e em que, no fim das
alas cosas sino que habla de y sobre ellas. El museo g cualquier política patri- contas, como diz Régis Debray (1992, p.372-3), a fetichização do instante e
monial tratan los objetos, los edificios g ias costumbres de tal modo que, más do imediato elimina as continuidades explicativas, o signo se transmuta
que exhibirlos, hacen inteligibles las relaciones entre ellos, proponen hipóte-
em mero sinal e a hiperinformação redunda em desinformação.
sis sobre lo que significan para quienes hoy los vemos y evocamos. (1989,
p.189) Toda reificação, como lembram Adorno e Horkheimer (explorados
por Jacoby, 1977, p.79), é uma forma de esquecimento.

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A dimensão socioeconômica sociedade: a sociedade em si, como tal, toma-se um campo aplicativo da
tecnologia da informação. E não se poderia ter no próprio uso que Webs-
A discussão desta dimensão tem por objetivo apenas acentuar algu-
ter faz de Castells - sem querermos futurologicamente prever o fim ou
mas de suas especifiddades, pois, a rigor, ela está presente em todas as
destino da cidade - um sintoma de que as bases pelas quais surgiu esta
dimensões de que se tratou anteriormente. O foco, aqui, é a sociedade de
forma de assentamento humano encontram-se hoje nuclearmente alte-
informação e, principalmente, a economia da informação, cujas variáveis radas pelo "fluxo de informações"?
interferem direta e indiretamente no campo da memória.
Aqui se coloca outra questão, que tem sido tratada, às vezes, com in-
Conviria reconhecer que a expressão "sociedade de informação" é
genuidade e freqüentemente com superficialidade, quando se alude à de-
problemática, como transparece da análise exaustiva e cética levada a
mocratização da informação. É inequívoco que existe aí enorme potencial
efeito pelo sociólogo inglês Frank Webster (1995). Ao invés de "revolução
de democratização que, porém, entra em choque com as estruturas assi-
informática" ele prefere falar de informatização da vida, ampliando, larga-
métricas de nossa sociedade. É, no mínimo, a ambigüidade do acesso à in-
mente, processos históricos em curso havia tempo. Nesse sentido é que
formação que deve ser trazida à discussão. A difusão da comunicação
ele incorpora, por exemplo, contribuições como as de Daniel Bell (a predo-
mascara condições de centralização na produção. Doutra parte, a indús-
minância dos serviços nas sociedades do pós-guerra é que conduziria à
tria cultural, a comunicação de massa e a circulação capilar de documen-
expansão das ocupações associadas à informação), Anthony Giddens (a raiz
tos e dados (Internet, por exemplo) fariam supor trocas intrinsecamente
das "sociedades de informação" está nas funções de vigilância exigidas pela
igualitárias. São conhecidos, porém, seus efeitos de controle e eliminação,
organização dos estados-nação), Herbert Schiller (produto da marcha inexo-
por filtros técnicos, econômicos, políticos e sociais (ver, por exemplo,
rável do capitalismo industrial), Jürgen Habermas (restrição da esfera pú-
duma já vasta bibliografia, Jardim, 1992, p.58, ou Golding, 1990).
blita interferindo na qualidade da informação nas democracias), Jean Bau-
drillard (colapso do sentido pelo excesso de informação e simbolização),
Manuel Castells (e a perspectiva da "cidade informacional") etc. etc. A crise da memória e o problema
Ora, esse mesmo quadro, ainda que se privilegiem as continuidades
da documentação histórica
históricas, configura transformações radicais. Basta apontar que a tecnolo-
gia eletrônica não apenas ampliou quantitativamente as condições de
produção, circulação e consumo da informação, mas introduziu novos pa- O quadro global acima delineado serve de moldura para melhor si-
drões perceptivos e ontológicos. Expõem-se, com isto, problemas axiológi- tuar as condições peculiares da prática da História, hoje em dia. Todavia,
cos e éticos de dimensões muito amplas. E é o estatuto mesmo da infor- dessas questões somente serão consideradas as de natureza documental.
mação que está, hoje, em causa e o próprio Webster (1995, p.26-9) não Antes, porém, a fim de evitar dúvidas, conviria deixar claro o entendimen-
deixa de lembrar a conotação matemática, não-qualitativa, que o concei- to básico de que a memória deve ser o objeto da História e não o seu obje-
tivo - ainda que, por vezes, a militância do historiador possa gerar super-
to assume, esvaziando-se de qualquer compromisso semântico.
Por outro lado, a transformação da informação em mercadoria tem, posições e paralelismos, sobretudo depois que a História-problema abriu
contudo, implicações estruturais e funcionais profundas - o que atinge di- espaço para a História-narrativa, reabilitada e rejuvenescida. Reitero a
retamente nosso campo espedficó de interesse, como arquivos, museus, conclusão de um texto em que procurava resenhar o problema da memó-
coleções e, em suma, tudo aquilo recoberto pela expressão "patrimônio ria no campo das ciências sociais:
cultural", sem esquecer as práticas e representações da memória. O título
da obra de Hewison (1987), The heritage industry, dá bem a medida, nesse De todo o exposto, até aqui, evidencia-se como imprópria qualquer coin-
cidência entre memória e História. A memória, como construção social, é for-
campo, do problema em tela.
mação de imagem necessária para os processos de constituição e reforço da
O que tudo isso representa em termos de reorganização de socieda-
identidade individual, coletiva e nadonal. Não se confunde com a História, que
de não é menos visível. W. Steinmuller (citado por Taddei Elmi, 1995, p.208) é forma intelectual de conhecimento, operação cognitiva. A memória, ao in-
tomou a industrialização da informação como industrialização de toda a vés, é operação ideológica, processo psíquico-sodal de representação de si

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próprio, que reorganiza simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, Acredito que, no campo arquivistico, começam a aparecer propostas
imagens e relações, pelas legitimações que produz. A memória fornece qua- confiáveis para adaptar-se à "onda eletrônica". Assim, Charles Dollar
dros de orientação, de assimilação do novo, códigos para classificação e para
(1994a e 1994b) elenca várias possibilidades relativas aos registros eletrô-
intercâmbio sodal. Nessa perspectiva, o estudo da memória ganharia muito se
nicos, quando se muda a ênfase da forma ou conteúdo físico para a "ope-
fosse conduzido no domínio das representações sociais.... A História não deve
ser o duplo científico da memória; o historiador não pode abandonar sua fun- ração". Daí a importância que ele atribui à informação de sistema, aos me-
ção crítica; a memória precisa ser tratada como objeto da História. (Meneses, tadata (sistemas de informação sobre informação), incorporáveis aos
1992, p.22-3) registros e assim capazes de equacionar problemas como o da autentici-
dade, que não pode mais ser atributo físico, nem de conteúdo (1994b,
Os problemas que a moldura acima referida permite formular não se p.8-9). Da mesma forma, o conceito de ordem original, no registro eletrôni-
restringem à especificidade do arquivo, em sentido estrito, mas incluem ge- co, passa a ter significado do ponto de vista das relações lógicas subjacen-
nericamente todo o campo documental, envolvendo quaisquer vetores e tes de informação (p.9). E a preservação assume outras finalidades: asse-
arranjos institucionais associados à produção do conhecimento histórico: gurar a legibilidade e inteligibilidade dos documentos para facilitar a
quais as questões novas, motivadas pela "crise da memória", que merece- permuta de dados através do tempo (p.20). Além disso, Dollar criteriosa-
riam consideração especial? Do vasto e heterogêneo leque de problemas, mente não vê nos registros eletrônicos "impedimentos tecnológicos ine-
para maior eficácia de tratamento, foram selecionados apenas três, por sua rentes para se capturar informações contextuais apropriadas que atestem
relevância e abrangência: as implicações dos suportes, os riscos da des- a unicidade dos documentos digitalizados", sendo viável a "inclusão dessa
contextualização e os efeitos de escala do fenômeno da informatização. função no próprio sistema de informação" (1994a, p.74). Recursos como
uma "arquitetura cliente-servidor segura" ou o "carimbo numerador de
duas fases para autenticar documentos digitalizados" poderão agir de
Os suportes documentais modo a evitar alterações ilegítimas, a "reinvenção da realidade" (p.75).
Conviria colocar algumas destas preocupações relativas ao conteúdo/
O quadro geral que se acabou de expor permite compreendera redu-
formato do documento também no horizonte dos suportes tradicionais,
ção, hoje em dia, da presença e eficácia de dois suportes fundamentais da
inclusive da documentação escrita. Com efeito, como explicitaram Fen-
memória nas sociedades de tipo comunitário: o corpo (sua natureza fisica
tress & Wickham (1992, p.2), prevalece entre os historiadores um modelo
e a corporalidade, a performance) e a narrativa oral, a ele intimamente
textual de memória, que é uma forma de reificação (é significativo, aliás,
vinculada. Em nossa sociedade restam apenas bolsões, além dos espaços
que os praticantes da História Oral também falem com freqüência em "re-
complementares abertos, por exemplo, pela História Oral.
gistros" e "documentos falados"). Tal modelo seria "itself an expression of
A externalização progressiva da memória, de que já se falou, trouxe ã
a general predisposition of modem, literate culture to define knowledge in
tona os registros gráficos, visuais e eletrônicos (inclusive sob a forma não-
terrns of statements expressed in language, oras propositions in some lo-
linear dos hipermfdia) e os objetos fisicos (cultura material).
giCal or sciendfic notation"6 (p.3). Por sua vez, enquanto as culturas letra-
Os especialistas em arquivos, como José Maria jardim (1992), com ra-
das tendem a semantizar coisas em significados, as culturas não letradas
zão têm apontado que o "choque informático" e a gestão dos recursos de
tendem a reificar palavras em coisas (p.20).
informação estão a exigir uma Mudança visceral da parte dos profissio-
nais. A natureza da documentação eletrônica altera a concepção de su- Além disso, se a problemática das fontes materiais na pesquisa histó-
porte material de informação, já que agora temos que operá-la não como rica demanda, obviamente, encaminhamento que leve em conta a mate-
entidades físicas, mas lógicas. Daí a necessidade de rever conceitos bási- rialidade do suporte, é preciso estar atento, igualmente, para outra esfera
cos da Arquivologia, como os de ordem original e documento original, pro-
veniência e instituições arquivisticas enquanto depósitos centralizados de
6 "ele próprio uma expressão de uma predisposição geral da cultura moderna, letrada, para
documentos, assim como práticas quais a avaliação, arranjo e descrição, definir o conhecimento em termos de enunciados expressos em linguagem, ou como propo-
preservação e uso (p.254). sições em alguma notação lógica ou cientifica".

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de questões presentes nas práticas da memória, assim como nas da Histó-
ria: a fetichização, a metonimização ou a metaforização dos objetos (Rad- tonomia esquizofrência que Jameson (1992) associa à sociedade pós-
ley, 1990; Meneses, 1994, p.26-30). moderna.

Seria útil, finalmente, acrescentar algo sobre o problema do original, As conseqüências diretas destes fenômenos no campo documen-
da proveniência, do singular. Ao contrário do que vaticinou Walter Benja- tal são graves. Terdiman infere, com propriedade, a desorganização da
min, a "aura" dos objetos não foi suprimida na era de sua reprodutibilida- consciência, que já começou a ser induzida, por exemplo, pela prática do
de técnica (é verdade que ele salienta sobretudo as "obras de arte"). O que jornal impresso, "which is a structured experience of confusion that
natu-
ocorreu foi que se constituíram outros tipos ou fundamentos da "aura" - ralizes new forms of cultural and perceptual contents: newspapers trai-
sem contar a ação instituinte do mercado. Assim, por exemplo, os efeitos ned their readers in the apprehension of detached independent,
reified,
dos mecanismos de "singularização" de que fala Kopytoff (1986) - e não descontextualized 'articles-.7 Estes elementos discretos, desconectados
propriedades imanentes do suporte - é que isolam unidades no interior, conceitualmente, mas justapostos pelas exigências do lay-out, criaram
suponhamos, de uma documentação serial. É sintomático que o merca- uma newspaper culture que "puts the paradigms of cultural memory in
do artístico já tenha começado a singularizar a própria a-topia e suposta crisis by excluding the context that makes such memory functional for
imaterialidade do suporte informatizado: no ano passado, o Hôtel Drouot, us".8 Criam-se, assim, condições para formas mais abstratas de memória,
em Paris, leiloou disquetes ''originais" da obra de artistas informáticos (lac- que ele identifica como uma archival consciousness, cujo princípio seria
ques Hainard, 1996, comunicação pessoal)... "the increasingly randomized isolation of the individual item of informati-
on, to the detriment of its relation to any whole, and the consignment of
Uma reflexão exaustiva sobre esta questão teria que incluir tópicos
such information to ... extra-individual mnemonic mechanisms"9 (Terdi-
que aqui ficam apenas mencionados: a réplica da aura, a aura da autenti-
man, 1993, p.37).
cidade, os sons facsimilares (Lowenthal, 1992), o simulacro, o hiper-rea-
lismo, a ideologia daquilo que os americanos designam, miticamente, por De forma paralela atuam instituições documentais que exploram a
the real thing (Baudrillard, 1981; Eco, 1984; Orvell, 1989), a noção de origi- cultura material, como os museus, formalizando a descontextualização da
nalidade como forma de excluir ou (mascarar) a divisão do trabalho (Melot, informação. Pior ainda é que as tentativas de contextualização - por
1986b) e assim por diante. exemplo, em exposições museologicas - por mais generosos que sejam
seus intentos, têm agravado os efeitos negativos da descontextualização,
A conclusão cautelar de todas estas considerações é simples e nem
comporta ineditismo, mas requer reiteração constante: a produção do co- por reproduzirem, sob forma de cenário, contextos de mera aparência.
nhecimento histórico deve ser indissociável do conhecimento (histórico) da Assim, ao invés de tomar as relações aparentes como constituindo apenas
produção do documento, no seu sentido mais amplo. A complexidade in- "dados" iniciais a serem trabalhados, rompendo-se a unidade superficial e
troduzida pela sociedade de informação não acarreta tanto novas exigên- ilusória do que está empiricamente à "vista", a fim de apreender relações
cias técnicas ao conhecimento, quanto as torna mais diversificadas, em subjacentes, invisíveis mas fundantes, ao invés desse esforço crítico, essa
relação à documentação tradicional, pela maior amplitude do horizonte exposição "descritiva" desde o início somente reforça aquilo que já estava
à disposição da visão (Meneses, 1994, p.30-3).
sociocultural em que se situam.

Descontextualiza çã o 7 "que é uma experiênda estruturada de confusão que naturaliza novas formas de conteúdo
culturais e perceptivas: os jornais treinaram seus leitores na apreensão de 'artigos' destaca-
dos, independentes, reificados, descontextualizados".
O contexto, como insistem Middleton & Edwards (1990, p..11) não é
8 "coloca os paradigmas da memória cultural em crise ao excluir o contexto que toma tal me-
simples background, mas substância da memória coletiva. No entanto, o mória fundonal para nós".
quadro geral da "crise da memória" é de molde a privilegiar a fragmenta- 9 "o isolamento crescentemente aleatório da unidade de informação individual, em detrimen-
ção do sujeito e do universo sobre o qual ele opera, agravando aquela au- to de sua relação com qualquer todo, e a alocação de tal informação a ... mecanismos mne-
mônicos extra-individuais".

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Aos bancos de dados informatizados está sem dúvida reservado uni afrontar a quantidade oceânica de fontes e a saturação da informação.
papel estratégico na resolução destes problemas. A ingenuidade, porém, Isto implica, mais uma vez, que o trabalho documental e o trabalho de
com que temos enfrentado seus dilemas e controvérsias merece caução. pesquisa são as faces de uma só e mesma moeda.
Em primeiro lugar, é preciso rever a pertinência, conveniência e, mesmo, No que diz respeito aos arquivos, em sentido estrito, parece-me legí-
viabilidade de bancos de dados de âmbito "universal"; no pólo oposto, um tima a reivindicação geral (d. Duranti, 1994, p.57) de que os arquivistas de-
banco de dados também não pode confundir-se com o universo empírico veriam não só participar da escolha dos registros, mas também de sua
(referenciado) de um projeto específico de pesquisa. A seguir, no tocante produção. (Cumpre, porém, amenizar os quadros autonomizados em que
especificamente à contextualização, mais uma vez é preciso conven- Duranti situa tais propostas, já que sua visão do arquivo é reducionistica-
cer-se de que a organização documental e a organização do conhecimen- mente institucional e exclusivamente jurídico-administrativa a ponto de
to deveriam ser operações simbióticas, que precisam caminhar integra- deformação.)
das. Caso contrário, apenas se cristalizarão contextos empíricos.
No tocante aos arquivos, cumpre concluir da natureza não material
dos registros eletrônicos que eles precisam ser identificados não por Conclusões
séries, mas por sistemas de dados informacionais. É o contexto relacional
dinâmico de que fala Luciana Duranti (1994, p.59).
Do exposto conclui-se que a crise da memória, tal como caracteriza-
da, cria uma situação problemática no que diz respeito à documentação e
Escala à prática da História. Isto não tem conotação forçosamente negativa. O
núcleo de sentido da palavra crise, aliás, assim como de palavras que lhe
A escala da documentação eletrônica é de tal ordem que suscita pro- são aparentadas (crítica, critério, crivo, discemimento, discriminação etc.),
blemas angustiantes para a produção do conhecimento histórico, ainda expressa necessidade de distinguir, separar, selecionar, em suma, esco-
longe de equacionamento. Tais problemas se referem não apenas ao vo- lher. Esta situação, potanto, é favorável a uma renovação de perspectivas
lume e ubiqüidade da informação e sua dispersão, à heterogeneidade téc- e à superação de seqüelas positivistas que ainda rondam nosso domínio.
nica, às formas aleatórias de obsolescência e de eliminação, aos graus di- Do exposto igualmente se conclui a necessidade de historicizar a me-
ferenciais de conservação etc., mas também às dificuldades de avaliação mória (e, portanto, multiplicar as contribuições que se insiram numa linha
do interesse. de História da memória). Necessidade, também, de estreitar a solidarieda-
Nesta perspectiva, são delicados os problemas da seleção documen- de do trabalho documental (em todas as suas instâncias) e da produção
tal. M experiências em museus com documentação material da socieda- do conhecimento histórico.
de contemporânea revelam, por exemplo, desorientação que redunda em
desperdício de recursos e esforços - ainda que a existência de efeitos be-
néficos deva ser apontada (Ambrose & Kavanagh, 1987). A falta de vincu- Referências bibliográficas
lação a projetos de pesquisa histórica definidos toma a coleta museológi-
ca contemporânea uma aventura. errática e extenuante.
AMBROSE, T., KAVANAGH, G. (Eds.) Recording society today. Edinburgh: Scottish
Novamente, a conclusão é similar às anteriores. Tem-se que prosse-
Museums Coundi, 1987.
guir - mobilizando critérios melhor calibrados, é claro - com a coleta, or-
BAUDRILLARD, J. Simulacres et simulation. Paris: Galilée, 1981.
ganização e processamento da documentação nas origens e em todas as
suas rotas institucionais. Entretanto, estes procedimentos não bastam. É BODNAR,J. Remaking Amehca. Public memory, commemoration and patriotism
indispensável também partir, ao invés do horizonte documental, do hori- in the 20th. century. Princeton: Princeton University Press, 1992.
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