Cabeça de Turco Pág 31
Cabeça de Turco Pág 31
Cabeça de Turco Pág 31
Um a viagem n os porões da
sociedade alemã
&DBO
G Ü NTER W A LLR A F F
CABEÇA DE TURCO
Tradução
Nicolino Simone Neto
Prefácio
William Waack
2? Edição
BB GKOPPWÔ
288-2109
Titulo do original alemõo:
Ganz unten
Copyright © 1985 Kiepenheuer & Witsch
Crédito das fotos de miolo: PAN-Foto, Gfinter Zint
Arquivo particular de GOnter Wallraff
Projeto grdfico: Haroldo Jereissati Rodrigues
Composição: Editora Globo
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Brasil.
Sumário
Prefácio 11
por William Waack
Advertência 17
A metamorfose 19
O ensaio geral 22
Os primeiros passos 24
Matéria-prima: o espírito 31
“O prazer de comer" (ou: A última ração) 37
O canteiro de obras 47
A conversão (ou: Cortar cabeças sem bênção) 60
Do lado de cá do Éden 80
O enterro (ou: Livrando-se do corpo) 87
Atolado na lama (ou: “Longe de casa e fora da lei") 94
“É uma emergência*' 110
“É melhor fingir que não entendeu" 114
Conversa no horário de descanso 117
A odisséia de Mehmet 123
Em outro lugar 127
A suspeita 130
Os parapeitos: questão de mícron e “mico” 136
Como no faroeste 141
A fúria de Yüksel 144
“Chuveiro de emergência" 150
O teste 160
Cobaia humana 160
A promoção 173
A assembléia do pessoal 189
A radiação 213
A missão (ou: Pegar e largar) 224
A missão secreta 225
Epflogp (ou: A banalÍ2#ção do crime) 254
Para
Cemal Kemal Altun
Semra Ertam
Selcuk Sevinc
e todos os outros
Agradecimentos
11'
ram imediatamente qualificados pelos conservadores; que vol
taram aopoder em 1982, comoperigosos extremistas; perseguin
do a destruição do sistema político e econômico.
Espeéialmente o surgimento dos Verdes e sua absorção no
sistema parlamentar talvez tenha sido o teste mais importante
para as instituiçõespolíticas que os alemães tiveram de implan
tar no final da década de 40. Foi um importante gesto de reno
vação que coincidiujustamente com um escândalo — ofamoso
caso Flick —, no qual ficou claro que a base comum entre os
democratas alemães era sobretudo o amor àsfinanças ilegaispa
ra todos os partidos. As conseqüências que tudo isso terá para
o comportamento de geraçõesfuturas é outra conversa — ofa
to é que o sistemapolítico alemão, até agora, deu provas de in-
suspeitada vitalidade.
Há mais de 150 anos que a Alemanha se tomou uma im
pressionante história de sücesso econômico. Na segunda meta
de do século XX, após o cataclismo de 1945, as causas dessa
recuperação e vigor são suficientemente conhecidas. A guerra
destruiu, menos do que sepensa, instalações industriais alemãs.
Nas regiões ocidentais, ocupadaspor americanos, ingleses e, mais
tarde, franceses, houve menos desmontagens de instalações a
título de reparação de guerra. Além disso, entre os milhões de
fugitivos dos territórios a leste encontrava-sefarta, barata e bem
treinada mão-de-obra.
Bem cedo, americanos e ingleses iniciaram a integração da
Alemanha Ocidental nos seus respectivos sistemas financeiro,
comercial e monetário. Um programa de ajuda e recuperação
— o Plano Marshall —, habilmente administrado (parte desses
fundos até hoje é redistribuído pelos alemães), permitiu que a
Alemanha tivesse amplo acesso a recursos financeiros, aplica
dos numa economia com enormes possibilidades de expansão.
É fácil perceber que, para os alemães, aparentemente o
mundo nãoprecisa de grandes explicações. Com a economiafun
cionando do jeito que está — não há outro exemplo de potên
cia capitalista capaz de fornecer um padrão de vida tão alto a
tantos milhões de pessoas— eas instituiçõespolíticas razoavel
mente equilibradas, o motivo principal de preocupação nesse
meio social onde reina a opulência é o que fazer com o tempo
livre — cada vez maior, aliás. É que, para o alemão normal,
as grandes linhas do debate histórico e ideológico dos últimos
sessenta anos de conflagração global transformaram-se em as
12'
sunto maçante. Em termos depolítica internacional, por exem
plo, os alemãespreferiram continuar uma potência de segunda
categoria, até mesmo no cenário europeu.
Seria necessário aqui abrir um parêntesepara a Ostpolitik,
a tão famosa política de reaproximação com os países socialis
tas europeus; no começo da década de 70. Ajustada com o rit
mo imposto pelas duas superpotências; esse considerável ato de
coragem política, personificado na figura do Kanzler Willy
Brandi, levou evidentemente a muita reflexão sobre o papel da
Alemanha— ou melhor, dos alemães de leste e oeste — no sis
tema das relações internacionais. Contudo, com o passar dos
anos, os sucessivos governos alemãespreferiram estreitar os la
ços comerciais com todos os países socialistas, especialmente a
Alemanha Oriental, e não parecem seriamente interessados em
nenhum tipo de embate ideológico.
A questão alemã é tão velha quanto as articulações políti
cas na Europa dos últimos duzentos anos, mais ou menos, mas
momentaneamente reina aíabsoluta Ruhe — tranqüilidade. Os
alemães trocaram sua identidade nacionalpor essa calma e pelo
acesso ampliado, irrestrito efantástico a bens de consumo. Mas
o problema da identidade não se restringe a estabelecer que ti
po de papel os alemãespretendem desempenhar no mundo, nem
como a acomodação de seus interesses pode significar ou não
um abalo de proporções sísmicas para seus vizinhos. A busca
de identidade envolve sobretudo uma difícil reflexão e ocupa
ção com o passado recente.
É nesse sentido que se pode dizer que a alma alemã tomou-
sefechada e hermética a tudo que possa parecer constrangedor
ou difícil de ser confrontado. Oferece um dos contrastes mais
interessantes da Alemanha atual: por detrás da aparente inten
sa participação política, entendida como dever cívico de votar,
os alemães mostram-se, no fundo, apáticos. Estão muito mais
interessados em planejar suas férias, cada vez mais exóticas e
caras, e têm horror a qualquer coisa que possa parecer altera
ção de seus hábitos de vida regulamentados, metódicos, a qual
quer coisa que possa significar alteração de sua Ruhe.
13-
um milhão a menos em 1987— que teve acesso a apenas miga
lhas desse sistema, o quejá era algo considerável em se tratan
do de seuspaíses de origem, principalmente no caso dos turcos.
Tomou-se supérfluo, a esta altura» discutir ou quantificar em
número a realparticipação dessaforça de trabalho na realiza
ção do milagre econômico alemão. Ofato é que hápouco reco
nhecimento, por parte da população alemãde um fato razoa
velmente evidente.
Há, isto sim, enorme preocupação com o legado social e
político dessa considerável minoria, que chega a constituir 20%
dapopulação de alguns grandes centros urbanos. Já existe uma
geraçãoperdida defilhos de trabalhadores estrangeiros que não
se sentem em casa em lugar algum:perderam a identificação com
ospaíses de origem de seuspais e não são aceitos na Alemanha,
embora dominem perfeitamente o idioma, por sua aparênciafí
sica ou alguns hábitos culturais. A melhor maneira que muita
gente na Alemanha imagina para poder resolver o problema
apresentado por essa bomba-relógio social é simplesmente
reexportá-lapara o lugar de onde veio —o que é evidentemente
impossível. Assim como no começo do século, quando milha
res de poloneses ocuparam as regiões produtoras de carvão no
Ruhr e se transformaram em mão-de-obra abundante e barata,
novamente a Alemanha virou um país de imigração.
O surgimento de preconceitos contra minorias étnicas não
é característica apenas dos alemães. Basta lembrar os aguçados
sentimentos antiestrangeiros na França (em relação aos árabes),
na Suíça, naÁustria ou na Inglaterra, invadida agorapor aqueles
que os soldados de Sua Majestade (ou os comerciantes, não im
porta) conquistaram há mais de um século. Em todos essespaí
ses esse tipo de manifestação preconceituosa é imediatamente
explorado por grupos radicais de direita. A gravidade do pro
blema alemão reside na relutância com que a opinião pública,
como um todo, se sensibiliza frente a esse tipo de problema.
O livro de Günter Wallraffse propõe a quebrar "a frieza
glacial de uma sociedade que sejulga muito sensata, soberana,
incontestável e imparcial”. Na verdade, Wallraffconfessa que,
após sua aventura pelos porões dessa sociedade, só conseguiu
saber o que um trabalhador estrangeiro tem de suportar e até
onde pode chegar o desprezo humano na Alemanha. Mas está
longe ainda de entender como esse trabalhador consegue engo
lir as humilhações, a hostilidade e o ódio cotidiano.
Para o leitor brasileiro, muitas das denúncias contidas no
livro vão parecer surpreendentementefracas. Parte delas se re
fere à não-observância de regras de segurança e comportamen
to em empresas industriais, ao não-pagamento integral de en
cargos e benefícios sociais; às formas precárias de atendimen
to médico e hospitalar, à exploração incontida de mão-de-obra
barata. Para os brasileiros isso não constitui absolutamente a
menor novidade; e muita gente aqui estaria satisfeita em con
seguir algum tipo de ocupação, pouco se importando se o veí
culo que transporta os trabalhadores de um lugar para outro
tem bancos dignos ou não, ou se ele mora num barraco ao in
vés de numa casa.
Em primeiro lugar, é claro que as denúncias de Wallraff
têm de ser consideradas em relação aospadrões mínimos de sub
sistência na Alemanha e não no Brasil — e diante do abismo
entre aspropostas de um estado assistencialista, como o alemão,
e a realidade vividapela minoria de estrangeiros. A í surge a gra
vidade dos fatos mostrados nessa reportagem. Seu conteúdo,
aliás, não chega a ser novidade muito menos para os alemães.
Existe desde o final da década de 60 abundante literatura pro
duzida por e sobre os Gastarbeiters, incluindo o difícil relacio
namento dos sindicatos alemães com essa questão.
Em segundo lugar, e esse é o ponto mais relevante; os ele
mentos intrínsecos do que acontece a “Ali”, o Gastarbeiter no
qual Günter Wallraffsefantasia para viver sua viagem aospo
rões da Alemanha, não são os mais importantes, e sim a descri
ção da atmosfera defrieza e intolerância que só mesmo o estra
nho, o estrangeiro, consegue perceber com tanta clareza. É in
teressante notar como o próprio Wallraff mostra-se surpreso
com o grau de incompreensão, distância ou desprezo com o qual
“Ali** tem de se acostumar a ser tratado — embora se tivesse
treinado para isso.
O método de Wallraff tem sido tão eficiente quanto polê
mico. Nos anos 80 elejá havia adquirido considerável notorie
dade ao disfarçar-se de repórterpara mostrar como se produzia
a manipulação de notícias no Bild Zeitung, um jornal popular
com tiragem diária de milhões de exemplares. A utilização do
recurso do disfarce vai bem mais adiante, no caso de “Ali**,
para provocar também situações, e não apenas vivê-las.
E o que acontece quando Wallraff, disfarçado de turco,
procura diversos setores da Igreja católica alemã, em busca de
15 *
batismo. Ou quando tenta» através de uma armadilha, mover
um de seus patrões — Adler, o homem que comercializa mão-
de-obra ilegal—a literalmente entregar estrangeirospara a morte
lenta. Houve, na Alemanha, fortíssimo debate sobre alguns dos
aspectos éticos encerrados no comportamento do repórter Wall-
raff — e que, em alguns casos, podiam ser descritos como se
um policial provocasse um crime para depois denunciá-lo.
Para o leitor brasileiro, nem se trata de aprofundar esse as
pecto da questão. Com ou sem provocação, com ou sem exage
ro, com ou sem disfarce, o que Wallraff simplesmente põe em
linguagem simples, direta e acusadora sãofatos que nenhum de
seus críticospensou em contestar. Nofinal do século X X e, ainda
màis, na Alemanha, onde se viveu tragicamente o extremo a que
pode chegar a manifestação incontida de preconceitos e racis
mo, nenhum deles é fácil de explicar.
William Waack
i
Advertência
Ou para:
Günter Wallraff
c/o Verlag Kiepenheuer & Witsch
Rondorfer Strasse 5
5000 Kõln 51
1 W allraff trabalhou sob falsa identidade como repórter do Bild Zeitung para
desmascarar esse jornal sensacionalista (N. do E.).
21 .
A fim de parecer alguns anos mais jovem, passei a
disfarçar o cabelo ralo com uma meia peruca preta. Des
se modo aparentava ter entre 26 e 30 anos. Foi assim que
consegui alguns trabalhos dos quais não teria sequer me
aproximado se tivesse confessado minha idade real: 43
anos. É verdade que nesse papel eu me comportava como
um sujeito mais jovem, vigoroso e produtivo; ao mesmo
tempo, contudo, esse papel me transformou num foras
teiro, no último dos miseráveis. Durante o tempo de mi
nha metamorfose, eu falava um “alemão de estrangeiro” ,
tão tosco e canhestro que quem tivesse se dado ao traba
lho de ouvir um turco ou um grego que mora aqui perce
beria que alguma coisa não soava bem. Eu apenas elimi
nava artigos, deixava de lado a concordância verbal, en
golia certas preposições. Mas ò resultado foi espantoso:
ninguém suspeitou de nada. Eram suficientes as asneiras
que eu dizia. Minha dissimulação fazia com que me en
tendessem precisamente por aquilo que me tomavam. Si
mulando tolices, tomei-me mais esperto; meus olhos se
abriram para o embrutecimento e a frieza glacial de uma
sociedade que se julga muito sensata, soberana, incontes
tável e imparcial. Eu era o tolo a quem se diz a verdade
sem hipocrisia.
É óbvio que eu não era um turco de verdade. No en
tanto, foi necessário usar um disfarce para desmascarar
a sociedade; foi necessário mentir e fingir para descobrir
a verdade.
Continuo, porém, sem saber como um imigrante con
segue engolir as humilhações, as hostilidades e o ódio co
tidianos. Mas agora sei o que ele tem de suportar e até onde
pode chegar o desprezo humano neste país. Reflexos do
apartheid projetam-se aqui entre nós — em nossa demo
cracia. Os fatos ultrapassaram todas as minhas expectati
vas. De modo negativo, é claro. Em plena República Fe
deral da Alemanha vivenciei situações que só estão des
critas nos livros de História do século XIX.
O trabalho foi sujo e extenuante, mais ainda quando
passei a sentir o desprezo e as humilhações; o trabalho pre-
20 ,
judicou minha saúde, mas por outro lado, no plano psí
quico, edificou-me. Nas fábricas e nos canteiros de obras
— lugares muito diferentes da redação do Bild Zeitung1
— recebi solidariedade e fiz amigos, aos quais não podia
revelar minha identidade por motivos de segurança.
Pouco antes da publicação deste livro, compartilhei
meu segredo com alguns deles. E ninguém me censurou
pelo disfarce. Ao contrário: não só compreenderam, co
mo perceberam as intenções libertadoras de meu papel.
Mesmo assim, foi necessário trocar os nomes de muitos
colegas para protegê-los.
Günter Wallraff
Colônia, 7 de outubro de 1985
1 Wallraff trabalhou sob falsa identidade como repórter do Bild Zeitung para
desmascarar esse jornal sensacionalista (N. do E.).
O ensaio geral
24
Ali em seu alojamento no sítio. O balde serve como vaso sanitário
25'
5 CHÜ3ME MODE POIISWEIlt
26
pertal, troquei os estofados das poltronas e ajudei na re
forma do bar. Numa indústria alimentícia, meu trabalho
era remexer com uma pá a farinha de peixe. E em Strau-
bing, na Baviera, tentei a sorte como tocador de realejo:
durante horas ficava parado, tocando inutilmente.
Nada mais me espantava. O ódio habitual aos imi
grantes já não era novidade. Surpreso eu ficava quando
não me hostilizavam. As crianças, principalmente, eram
mais gentis. Paravam diante desse estranho tocador de rea
lejo e de sua tabuleta — T u rco sem tr a b a lh o HÁ o n
z e a n o s n a A l e m a n h a , qu er c o n tin u a r a q u i . O bri
g a d o : — até que os pais vinham arrancá-las dali. E houve
também o casal de saltimbancos que se instalou bem a mi
nha frente, na praça do mercado de Staubing, e também
tocava realejo; pois esse casal me convidou — a mim, seu
concorrente — para visitar sua carroça. Foi uma bela noite.
Em geral, porém, as coisas aconteciam de modo bem
menos agradável. Por exemplo, num dia de carnaval em
Regensburg. Nenhum bar alemão precisa ter na porta um
cartaz dizendo: I m ig ra ntes n ã o são bem -v in d o s .
Quando eu, Ali, entrava num deles, era totalmente igno
rado. Ninguém vinha me atender. Assim, qual não foi mi
nha surpresa quando, num bar de Regensburg, repleto de
bons cristãos fantasiados de bufão, um deles me cumpri
mentou com um sonoro “olá” e disse:
— Agora é a sua vez de nos pagar uma rodada.
— Não — respondi. — Vocês paga. Eu não tem em
prego. Eu já trabalhou para vocês, eu já pagou imposto
para vocês.
O homem ficou rubro, inchou como um sapo (mais
tarde descobri que Franz-Josef Strauss também costuma
fazer isso) e, furioso, atirou-se sobre mim. Querendo pro
teger seu mobiliário, o dono do bar me protegeu. Alguns
fregueses levaram para fora o bávaro que havia perdido
o controle. Durante o incidente, um cidadão (que mais
tarde se apresentou como figurão político da localidade)
ficou sentado, quieto, aparentemente pensativo. Tão lo
go a situação se acalmou, puxou uma faca e, cravando-a
27'
no balcão, disse-me: “Dê o fora! Rápido, seu turco de
merda!”
Raras vezes vi tanto ódio. No entanto, em certo sen
tido, os olhares de desprezo eram ainda piores. Ofendem
tanto como quando se está sentado num ônibus lotado e
o assento ao lado continua vazio.
Já que a tal integração de estrangeiros, evocada por
muitos, não se concretiza nos transportes públicos, fui
testá-la, junto com um amigo turco, num bar alemão. Ten
tamos conseguir uma mesa cativa (Türk Masasi, em tur
co) em qualquer bar onde pudéssemos nos encontrar sem
pre à mesma hora. Chegamos a confeccionar uma flâmu-
la com a inscrição bilingüe, em turco e alemão: “ Serefe!
Prost!**(“Saúde!”). Nem mesmo nossas promessas de con
sumir muito adiantaram. Perguntamos a uma dúzia de do
nos de bar, e nenhum tinha uma mesa livre.
Meu colega Orthan Oztürk, de 27 anos, tem sofrido
experiências semelhantes há quinze ános, desde que chegou
à Alemanha Ocidental. Fala alemão quase sem sotaque.
Tem boa aparência e até tingiu o cabelo de loiro para dis
farçar suas origens. Mas até agora não conseguiu namo
rar uma jovem alemã. Basta dizer seu nome e tudo termina.
Geralmente os imigrantes não são insultados. Ao me
nos não de modo que possam ouvir. Por trás, as pessoas
se queixam do suposto mau cheiro de alho. No entanto, os
gastrônomos alemães comem, hoje em dia, muito mais alho
que a maior parte dos turcos, que se permitem no máximo
um dente desse saudável condimento no fim de semana. Eles
se renegam para ser aceitos. Mas as barreiras continuam.
É claro que algumas vezes os imigrantes são atendi
dos de forma gentil nos bares alemães. Desde que sejam
servidos por outros imigrantes. Passei por essa experiên
cia no Gürzenich, em Colônia, durante as festividades do
carnaval. Minha primeira surpresa foi permitirem que eu,
um “turco” , entrasse. E lá dentro, atendido por garçons
' iugoslavos extremamente amáveis, quase me senti bem. Até
que começou a tradicional cantoria com todo mundo se
balançando de braço dado. E lá fiquei eu, no meio daqueles
28 \
Ali no Estádio Olímpico da Berlim
29 {
to que levei um barrete com o emblema turco e uma pe
quena bandeira. Mas logo tive de dar sumiço nessas coi
sas. Fui parar bem no meio de um grupo de alemães neo
nazistas. Neonazistas? É possível que, individualmente, se
jam bons sujeitos, pelo menos a maior parte deles tem um
rosto simpático, franco. Mas, juntos, na multidão, eram
máscaras de histeria. Nesse dia, trêmulo, pela primeira e
única vez, reneguei minha condição de turco; desisti de meu
idioma estropiado e conversei com os fanáticos torcedo
res num alemão perfeito. Mesmo assim, continuaram a me
tomar por imigrante. Atiravam-me pontas de cigarro no
cabelo e derrubavam cerveja em minha cabeça. Nunca, em
toda a minha vida, senti tamanho alívio ao ver policiais
passando perto de mim. Jamais sonhei que iria vê-los um
dia como verdadeiro poder de ordem. Os torcedores gri
tavam: “Vitória!” , “Morte aos vermelhos!” . E um coro
sem fim vociferava: “Turcos, vão embora do nosso país!
A Alemanha para os alemães!” Felizmente não correu san
gue: houve apenas um pouco mais de feridos do que nas
partidas “normais” . Não quero nem imaginar o que teria
acontecido se o time alemão perdesse. Não sou fanático
por futebol. Porém ali, no Estádio Olímpico, eu berrava,
incentivando o time da Alemanha. De puro medo. ^
Matéria-prima: o espírito
32
As primeiras frases do dirigente da USC são abafa
das pelo barulho. O discurso dura três horas. É difícil
acompanhar o que ele diz, no meio da multidão pingando
suor. E também só é possível acompanhar sua lógica de
pois de três litros de cerveja: “ Somos um partido de pes
soas inteligentes. Temos eleitores inteligentes e, por isso,
somos a maioria no país. Se nossos eleitores não fossem
tão inteligentes, não seriamos a maioria!” Aplausos e pa-
teadas estrondosos. A sala ferve.
As pessoas apinham-se nos banheiros, que não con
seguem dar conta de seu aperto. Nos corredores, poças de
urina. Até mesmo no salão, uns e outros se aliviam pela
perna da calça.
No palanque, Strauss fala muito sobre o espírito:
“ Precisamos fazer melhor uso da nossa matéria-prima, o
espírito. Esse espírito que Deus nos legou, não obstante
todas as tolices ditas por alguns funcionários públicos” .
Antes disso, porém, as cervejas é que precisam ser
mais bem distribuídas. Sanitaristas e assistentes da Cruz
Vermelha têm de se arrastar com dificuldades. Em todas
as mesas há folhetos informativos: “Nós e nosso partido” .
As apresentações são feitas pelos próprios simpatizantes
da USC. Como, por exemplo, a de um comerciante mui
to gordo: “ Nunca tive complexo por ser de direita. Não
conheço outro partido que me caia tão bem como a USC.
É o partido que me convém, assim como Strauss. Gosto
muito dele. Somos bem parecidos. Não há nada, com ex
ceção do futebol, talvez, que me irrite mais que os im
postos” .
Ou talvez um turco sedento, nesse Salão dos Nibe-
lungos branco e azul. Quase de contrabando, consigo uma
cerveja. Assim que o rapaz do balcão olha para o lado,
apanho uma caneca e deixo ali *5 marcos. Strauss está fa
zendo suas ameaças: “ Precisamos voltar a pensar nos ci
dadãos normais, nas mulheres e nos homens normais, e
não em alguns marginais” . Pouco depois, ao falar da
“massa de anônimos” e da “identidade nacional” que ele
quer “ preservar” , e ao vangloriar-se da “ liberdade e da
33'
dignidade de todos na Alemanha” , é que percebo clara
mente que não se refere a mim, Ali.
Tento voltar para o banco e ainda encontro dois lu
gares livres. Sento-me e o lugar ao meu lado fica desocu
pado, embora todos continuem se apertando. “Esse fede
a alho” , diz um sujeito. “ Você é turco?” pergunta outro.
Finalmente o “bávaro feliz” (Strauss falando de
Strauss) termina seu discurso de quaresma. Durante cin
co ou seis horas seus admiradores agüentaram-no. Um cor
dão de segurança protege-o dos fãs. Os pedidos de autó
grafos não podem ser atendidos. Pelo menos não ali. Quem
desejar autógrafo deverá fazer sua solicitação por escrito
num papel adequado e colocá-la numa das umas que cir
culam pelo salão.
Apesar de tantas precauções, consigo me aproximar
com facilidade do dirigente bávaro. Muito simples.
Apresento-me como observador do congresso e emissário
de Türkes, o líder fascista dos Lobos Cinzentos. Esse tal
Türkes, fã entusiasta de Hitler, já havia se encontrado se
cretamente com Strauss alguns anos antes em Munique.
No encontro, segundo Türkes, 'o presidente da USC
garantiu-lhe que, com a propaganda adequada, no futu
ro se criaria na Alemanha um clima político favorável à
MHP, organização turca neofascista, e aos Lobos Cinzen
tos. Eis o grito de guerra de Türkes: “ Morte a todos os
porcos judeus, a todos os comunistas filhos da puta e a
todos os cães gregos!”
Como representante de tal pessoa, tenho acesso livre
a Strauss, que me cumprimenta com cordialidade e põe
o braço em meus ombros, exatamente como um padrinho
poderoso trata um parente pofcre da província. Escreve
uma dedicatória pessoal na página de rosto do livro edi
tado em sua homenagem, Franz-JosefStrauss — Um gran
de livro de fotografias: “Para Ali, com cordiais saudações,
F.-J. Strauss” .
Os fotógrafos presentes não deixam escapar a ocasião
para mais um instantâneo.
De acordo com o prefácio desse livro luxuoso, Strauss
34
Dedicatória de Franz-Josef Strauss a Ali
37
Numa equipe tão feliz, prefiro dizer que tenho 26
anos. Se revelasse minha idade real (43), não teria muita
razão para rir.
Igual aos hambúrgueres, também sou embrulhado
com as embalagens da casa: boné, camiseta e calça. Nos
três, o logotipo McDonakTs. Só falta me colocarem na
grelha. A calça não tem bolsos. Se recebo alguma gorje
ta, corro a mão inutilmente pela costura lateral até que,
por fim, coloco o dinheiro exatamente onde a empresa quer
tê-lo: dentro da caixa registradora. O golpe de mestre da
calça sem bolsos também impede que tenhamos um len
ço. Portanto, se “ o nariz escorrer” , vai escorrer por cima
dos hambúrgueres ou provocar chiados sobre a grelha a
cada pingo.
O gerente logo se mostra satisfeito comigo, elogian
do meu trabalho e minha destreza em virar os hambúr
gueres na chapa.
— Você faz isso muito bem! E rápido! A maioria co
mete erros enormes quando está começando.
— Acho que porque eu faz esporte — digo-lhe.
— Qual?
— Pingue-pongue.
O hambúrguer é uma rodela de carne marrom e sua
da, com 98 milímetros de diâmetro, no mínimo, e de 125
a 145 gramas de peso. Atirado na chapa, pula como uma
ficha de plástico. Congelado, estala como uma moeda ao
bater num vidro. Depois de frito, tem, no máximo, dez
minutos “ de vida” ; porém na maioria da vezes fica mui
to mais tempo nos balcões. Se o deixam degelar, começa
a cheirar mal. Por isso é que, ainda congelado, jogam-no
imediatamente na chapa. Depois, é recoberto com os co
nhecidos condimentos e ingredientes, colocado entre duas
fatias de pão esponjoso e embalado em isopor. “ Há mui
to de gracioso na silhueta delicadamente abobadada de um
pãozinho de hambúrguer! Perceber tal coisa requer um es
tado de espírito muito especial!” , afirma, com seriedade,
Ray Kroc, o fundador da empresa.
38
O Big Mac
“O amor é como um Big Mac: dois corpos que se mistu
ram num movimento harmonioso, tornando-se uma só car
ne. O delicado pãozinho enlaça o corpo num abraço pleno
de ternura. Os beijos são como uma pitada úmida de molho
especial. Os corações amantes se consomem como as cebo
las. A esperança, jovem ainda, verdeja como a salada. E o
queijo e o pepino dão o sabor de querer mais.”
(Extraído do jornal do McDonakTs do Rio de Janeiro,
de abril de 1983.)
3 9'
E já são quase três horas da manhã! O gerente acha
qüè não estoú me adaptando muito bem e que me falta
um pouco de garra. Meu rosto não demonstra felicidade.
E, se cheguei a pensar que não seda vigiado, estou redon
damente enganado. Por exemplo, hoje fiquei cinco minu-
. tos plantado no mesmo lugar. Digo que não é possível,
pois passei ò tempo todo correndo de um lado para o ou
tro. “ Trabalho para mim é esporte” , acrescento.
Lendo uma circular distribuída pela empresa, descu
bro que as horas noturnas e as extras só são computadas
como horas inteiras. Isto significa que qualquer trabalho
extraordinário inferior a trinta minutos não é, considera
do; já os quê ultrapassarem trinta minutos serão arredon-'
dados para uma hora. Na prática, porém, há muito mais
desconto que arredondamento. Só podemos marcar o pon
to depois de vestirmos os uniformes. E na saída é o in
verso: primeiro marcamos o ponto e depois trocamos de
roupa. Desse modo, somos duas vezes roubados.
Estamos na época de Natal. Há um número enorme
de pessoas e, nas horas de pico, atingem-se os recordes de
movimento. Meu salário bruto é de 7,55 marcos por ho
ra, numa atividade comparável a qualquer outro trabalho
de produção em série. Além disso, descontam 1 marco por
hora, a título de alimentação. Depois de oito horas de tra
balho, o gerente comunica-me que agora posso escolher
com calma uma das especialidades do McDonald’s. Quan
do peço os talheres, ele começa a rir. Talheres no McDo
nald^? É algo que não tem o menor sentido. A minha volta
só gargalhadas.
Meu local de trabalho é aberto. Assim como vejo os
fregueses, eles também me vêem. Não tenho sequer a chan
ce de me afastar por alguns minutos e beber alguma coisa
para enfrentar o calor que faz ali. Toda essa fritura e os
molhos— principalmente o de mostarda — provocam mui-,
ta sede.
Uma fatia de pepino para um hambúrguer, duas para
o Big Mac; uma fatia de queijo e as esguichadelas dos vá
rios molhos: de peixe, de galinha, especial para o Big Mac.
40
A toda hora estão nos pressionando, porque os pedi
dos não param: uma torta de maçã aqui, um filé de peixe
ali. £, assim, com os dedos sujos de peixe, passamos para
o próximo hambúrguer.
É no horário de descanso que aproveito para experi
mentar a comida. Como o frango — os tais nuggets —
e sinto o sabor de peixe. Isto deixa um gosto ruim na bo
ca. Como a torta de maçã, a mesma coisa: não é que até
aqui entra em cena o peixe?
Só depois de algum tempo consigo entender por que
isso acontece. As gigantescas cubas para fritura estão sem
pre cheias de óleo em ebulição. Todas as noites esse óleo
é filtrado para ser reaproveitado. Assim, tanto o óleo das
tortas de maçã, quanto o do peixe, quanto o do frango
passam pelo mesmo filtro de papel, que é utilizado nas dez
diferentes cubas.
Nas horas de pico, o trabalho é febril; formam-se fi
las diante do balcão. Por todos os lados ouço gritos para
andarmos mais depressa. Com tanta agitação, penso que
seria mais produtivo retirar os hambúrgueres um pouco
antes do tempo. Mas o gerente — o único que não usa boné
— repreende-me:
— Você não tem que pensar em absolutamente na
da. As máquinas se encarregam disso. Portanto, só retire
o hambúrguer quando a máquina apitar. Não queira se
antecipar!
Faço como ele diz. Não se passam nem cinco minu
tos e ele volta.
— Por que está demorando tanto?
— Senhor disse máquina pensa e eu espera.
— Você espera, mas os fregueses não! Acha que de
vem esperar?
— Mas quem é decide? Senhor ou máquina? Como
eu vai saber? Eu faz como...
— Espere até a máquina apitar, entendeu?
— Sim.
A palavra de ordem por aqui é serviço rápido. O “ob
jetivo final” é que “ninguém fique esperando” . Para tanto,
41*
todos os tipos de truques são recomendados ao gerente.
O lema é o seguinte: “Um minuto de espera no balcão é
tempo demais. É o máximo para quem está na fila. Esta
beleça como meta trinta segundos. Acelerar os serviços é
só uma questão de afinação. Concentre-se na rapidez du
rante os próximos trinta dias. Risque do vocabulário a pa
lavra ‘devagar’. Da maneira como você atua dependem 2°7o
de suas vendas. E viva a rapidez!”
Aqui fa stfo o d quer realmente dizer questão de mi
nuto, embora alguns colegas que nãò entendem muito bem
a língua inglesa achem que fa stfo o d significa “ quase-
comida” 1.
Nossa filial é conhecida por suas vendas recordes. Eu
mesmo vi o diretor regional do McDonakTs entregar a nos
so gerente um troféu com a seguinte inscrição: “ Pelo ex
celente desempenho no tocante aos lucros” .
O McDonakTs também tem em mira as crianças. Nu
ma circular interna, o departamento de marketing da cen
tral de Munique afirma: "Fastfood não é apenas um mer
cado jovem. Na Alemanha, é antes de mais nada um mer
cado da juventude... E pensar que dizem que os jovens
não t§m dinheiro!”
As instalações obedecem a essa diretriz: trincos, me
sas, cadeiras — quase tudo da altura de uma criança. As
filiais recebem instruções especiais: “As crianças multipli
cam suas vendas!” Há diversas programações para atrair
os pequenos e, com eles, toda a família. A mais requisita
da é “A festa de aniversário no McDonakTs” . Um pra
zer programado do início ao fim.
43'
cozinha. Há pouco tempo, uma delas caiu direto sobre a
grelha. De outra vez, um freguês encontrou um belo exem
plar em seu Big Mac.
Alguns fregueses, principalmente os jovens um tanto
tocados pela bebida, costumam jogar no chão o resto das
batatas fritas, que ficam espalhadas e são pisoteadas. E
lá vou eu limpar o chão engordurado.
Uma colega turca tem dificuldades ainda maiores. Por
ser mulher, é cantada; por ser imigrante, é menospreza
da. Vivem atirando cinzeiros no chão quando ela passa.
Isso também já aconteceu comigo. Uma vez jogaram um
cinzeiro bem a minha frente. Eu me abaixei para recolher
os cacos e logo ouvi o barulho de outro cinzeiro sendo que
brado. E depois outro, e mais outro. Não consegui desco
brir o autor. A meu redor, só gargalhadas. Acho que de
ve ser esse tal “ prazer” .
Mesmo no horário de descanso, deve-se permanecer
no serviço. Não é permitido sair para tomar um café ou
uma cerveja. Já tiveram experiências desagradáveis, co
mo a do funcionário que durante o horário de descanso
foi para um bordel.
Uma colega conta que freqüentemente a proíbem de
descansar durante as oito horas de jornada diária. Quan
do ela reclama, recebe como resposta: “Rápido! Rápido!”
A mesma coisa acontece se alguém precisa ir ao mé
dico. O gerente diz: “ Sou eu que decido o horário de ir
ao médico” .
Uma vez perguntei se podia descansar. A resposta já
era minha velha conhecida: “ Sou eu que decido o horário
de descanso!”
Não há comissão de empregados.
Através de uma circular escrita há seis anos, o chefe
do departamento do pessoal dá o seguinte conselho a to
dos os McDonald’s da Alemanha Ocidental: “ Se durante
uma entrevista com um candidato ficar comprovado que
ele é ‘politizado’, faça-lhe outras perguntas e pare por aí.
Prometa-lhe uma resposta para alguns dias depois. E na
turalmente não o contrate em hipótese alguma” .
44 ■»
Bom proveito!
Há algumas razões para que tudo tenha o mesmo gosto.
É a seguinte a opinião da União dos Consumidores de Ham
burgo sobre os produtos McDonald*s: “O sabor provém de
numerosos aromas artificiais que são acrescentados. Para con
servar as bebidas o maior tempo possível, adicionam-se con
servantes” . Um milk-shake contém 22% de açúcar, o equi
valente a cerca de dezesseis porções ou 40 a 45 gramas. Tudo
com um “toquezinho” para torná-lo tragável. Edmund
Brandt, especialista da indústria da carne nos Estados Uni
dos, diz que, para os hambúrgueres, não se podem utilizar
carnes magras, como pescoço ou paleta, pois se despedaça
riam. É preciso então submeter a carne a um tratamento es
pecial, à base de “ sal e proteínas líquidas” . “A carne muito
fresca” , continua Brandt, “é aquosa demais para a produ
ção de hambúrgueres.” A muito velha perde a cor: “Neste
caso, jogam-se cubos de gelo na máquina de moer para que
a carne se tome avermelhada” . E, apesar de seu aspecto per
feitamente magro, a carne de hambúrguer, uma vez prepa
rada, contém ainda 25% de gordura. Na dispendiosa publi
cidade do McDonakTs os consumidores não encontrarão uma
só palavra sobre esses truques. O pseudo-repasto industrial
do McDonald’s destaca-se principalmente por causa de sua
astuciosa embalagem — uma espécie de Bild Zeitung comes
tível. Mas, assim como os leitores do Bild muitas vezes sa
bem, sem maiores informações, que devem estar sendo en
ganados, assim também alguns fregueses do McDonakTs lá
não voltam após uma primeira tentativa. Um dia, limpando
o local, encontrei num guardanapo a seguinte mensagem:
“McDonakTs —vomitar é grátis!” E em outra ocasião: “Pela
primeira vez é pior o que entra pela boca do que o que sai!”
Fast food é um alimento insuficiente que pode causar sérios
danos à saúde: em crianças que abusam de lanches rápidos,
nutricionistas americanos diagnosticaram sinais de elevada
agressividade, insônia, pesadelos. A causa: a gostosafast food
reduz as reservas de tiamina e acarreta carência de vitamina
B-l, que prejudica o sistema nervoso.
Ray Kroc, o criador da rede McDonald’s, sabe exa
tamente o que quer: “ Quero dinheiro, do mesmo modo
como se quer luz ao acionar um interruptor” . E Abrams,
general americano, considera o McDonald’s uma escola-
modelo: “ É muito saudável para um jovem trabalhar no
McDonald’s. O McDonald’s faz dele um homem eficien
te. Se o hambúrguer não está bom, o sujeito é posto na
rua. Este sistema é uma máquina que funciona silenciosa
mente, e nosso Exército deveria inspirar-se nele” .
O canteiro de obras
47
gado, que já trabalha há algum tempo para a GBI, leva-
nos até os vestiários. Mal acabamos de mudar de roupa,
Siggi reaparece.
— Preciso de seus nomes, para o mestre-de-obras —
diz.
— Ali — respondo. É o bastante.
Nossa equipe está subordinada a um mestre-de-obras
da firma Walter Thosti Boswau (WTB), a sexta maior em
presa de construção civil da Alemanha Ocidental, como
descubro mais tarde. As ordens de trabalho nos são da
das exclusivamente por ele. Todo o material utilizado —
da vassoura às chapas metálicas — também é fornecido
pela WTB. A GBI “ simplesmente” se encarrega de con
seguir os operários; nem sequer tem ferramentas e não es
tá encarregada de qualquer construção.
Nenhum de nós entregou os documentos para a GBI;
todos, sem exceção, trabalhamos “clandestinamente” . Não
há seguro de saúde. Pergunto a um colega:
— Que acontece quando a gente tem acidente?
— Eles dizem que você estava aqui só há três dias e
fazem sua inscrição na previdência fora da época. Quan
do muito, só a metade dos trabalhadores... e são cente
nas... está registrada.
Durante os horários de descanso, vamos nos sentar
com mais quinze pessoas num barracão que deve ter uns
doze metros quadrados. Um carpinteiro, recrutado pelo
escritório da GBI de Colônia, conta-nos: “Faz trinta anos
que trabalho em construção e nunca precisei dizer para o
mestre-de-obras quando eu ia cagar!”
Alguns afirmam que, com o tempo gasto no percur
so de ida e volta, a jornada diária de trabalho passa a ser
de quinze horas. “E claro que só pagam por dez horas,
nem um centavo a mais.”
Um dos colegas turcos, com mais ou menos cinqüen
ta anos de idade, é uma das vitimas prediletas do mestre-
de-obras da WTB. Mesmo executando seu serviço no mí
nimo duas vezes mais depressa que os operários alemães,
é sempre xingado de “molóide” . “ Se não trabalhar mais
48 "
depressa, vou despejar você junto com o entulho!” — grita
o mestre-de-obras.
Quase todas as sextas-feiras temos de esperar algu
mas horas além do expediente, até que tragam de fora o
dinheiro de nosso pagamento. Alguns operários parecem
saber como o dinheiro chega ali. Enquanto esperamos no
barracão, um alemão, trabalhador habitual da GBI, não
registrado, conta: “ Primeiro, Klose vai até Langenfeld,
onde eles têm conta; é de lá que vem a nossa grana” . O
colega sabe também por que não sacam o dinheiro de um
dos bancos de Colônia ou Düsseldorf: “ A conta de Lan
genfeld está no nome de um testa-de-ferro que deposita
os cheques da WTB e de outras firmas de construção. Elas
não podem abrir conta em Düsseldorf de jeito nenhum,
porque o imposto de renda vai direto lá e bloqueia tudo” .
Portanto, temos de esperar por nosso pagamento du
rante duas horas, evidentemente não remuneradas.
Mas a nebulosidade não encobre só as contas da em
presa; todo um clima de conspiração contribui para escon
der também nossa presença no canteiro de obras. É claro
que assinamos recibo, porém não temos nenhum compro
vante de pagamento. Inclusive as fichas de controle, em
que o mestre-de-obras anota as horas trabalhadas, são re
colhidas após o pagamento. E isso tem uma razão: na cons
trução civil o trabalho temporário, pago por hora, é proi
bido por lei. Para driblar a proibição, subempreiteiras co
mo a GBI costumam emitir faturas, cobrando das cons
trutoras “ quarenta metros quadrados de cimento” — o
que significa que devem pagar por quarenta horas de tra
balho temporário (em muitos casos, os mestres-de-obras
dispõem de tabelas codificadas para converter as horas de
trabalho dos empregados temporários em metros quadra
dos de cimento ou metros cúbicos de areia). Para poder
comprovar que em nosso canteiro de obras também é há
bito esconder as fichas com os horários anotados, distraio
o mestre-de-obras num momento propício e apanho suas
anotações. Numa delas está escrito: “ WTA S.A., trinta
horas” , logo abaixo a data e sua assinatura.
49 *
Como em Palermo
Somente na construção civil estão empregados ilegalmen
te cerca de 200 mil turcos, paquistaneses, iugoslavos e gre
gos. Isso representa, por ano, um déficit de 10 bilhões de mar
cos em impostos e contribuições sociais.
Os mercadores de homens beneficiam-se não raramente
de proteção política para escapar das penalidades. As leis são
muito frouxas. E o governo federal hesita em pôr fim a tais
tramóias. Os Estados recusam-se a reconhecer como um de
lito esse tráfico ilegal. É por isso que no plano jurídico o trá
fico de alemães e de outros estrangeiros da Comunidade Eu
ropéia continua sendo só uma infração do regulamento.
Polícia, inspetores trabalhistas ou procuradores da re
pública raramente conseguem agarrar os pequenos partidá
rios da máfia da construção civil: “Mal conseguimos dar con
ta do problema’*, queixa-se, por exemplo, o procurador-geral
de Colônia, dr. Franzheim. Atualmente, só na Renânia do
Norte-Vestfália, há 4.000 processos em andamento. Os tra
ficantes de mão-de-obra costumam passar calote nos empre
gados ou, por meio de pancadas e ameaças, tomam dóceis
os imigrantes “insatisfeitos com o trabalho” . Os inquéritos
— pelo menos aqueles que tramitam no Ministério Público
de Düsseldorf — referem-se até mesmo a chantagens, com
tentativas da extorsão e suspeitas de assassinato.
Mas não são apenas os empresários privados que, indi
retamente, apelam para as locadoras de mão-de-obra. Tam
bém nos encargos públicos as “subfirmas” entram no
négocio.
Em 1984, durante a construção do Parlamento de Düs
seldorf, ocorreram várias rusgas: diferentes mercadores de
homens queriam fornecer a mão-de-obra.
Uma fiscalização na recém-construída agência oficial de
empregos de Munique descobriu cinqüenta operários ilegais.
A própria polícia não ignora que operários de empreiteiras
foram recrutados para as obras de ampliação do quartel da
polícia federal em Hilden. A mesma coisa ocorreu quando
da construção do novo Ministério dos Transportes, Correios
e Telecomunicações, em Bonn (Bad Godesberg).
Por ocasião da concorrência, o ministro Christian
Schwarz-Schilling absteve-se de mandar fiscalizar; assim, pelo
menos uma firma de locação ilegal teve lucros gigantescos.
50*
Se tivesse havido real interesse por parte das autoridades, o
négocio teria sido desfeito com facilidade. Os traficantes de
mão-de-obra da DIMA de Düsseldorf forneceram os operá
rios à sexta maior empresa de construção civil da Alemanha
Ocidental, a WTB, que teve papel preponderante na constru
ção do Ministério dos Transportes, Correios e Telecomuni
cações. A própria DIMA é resultante da GBI, a empresa pa
ra a qual trabalhei ilegalmente em Colônia.
51'
grantes, sou obrigado a fazer o que me ordenam sem pro
testar, e ainda agradecendo por ter um emprego. Pensar
assim — agora e em situações posteriores — ajuda-me um
pouco a controlar a repugnância, a humilhação e a vergo
nha e a transformá-las numa fúria solidária para com os
outros.
Enquanto limpo toda esta imundície com panos, es
fregões e baldes, ouço as observações dos alemães que usam
o banheiro. Um deles, ainda jovem, diz num tom amável:
— Até que enfim arranjaram uma faxineira para lim
par o banheiro!
Dois outros, de uns 45 anos, põem-se a conversar:
— O que fede mais que o mijo e a merda? — per
gunta um deles.
— O trabalho! — responde o segundo.
— Não! Os turcos! — grita o primeiro, de seu
mictório.
Outro operário alemão, que está urinando, pergunta-
me qual é minha nacionalidade.
— Turco — respondo.
Ele se mostra simpático:
— Mas, claro! É bem típico. Vocês é que dão sumi-
ço na nossa merda. Nenhum trabalhador alemão aceita
ria tal serviço.
De vez em quando, Hugo Leine, o mestre-de-obras,
vem verificar o que estou fazendo. A distância, consigo
perceber que se aproxima graças a seu radiotransmissor,
que vive chiando, estalando e emitindo outros ruídos. As
sim, acelero o ritmo do trabalho.
— Presto, prestissimo, amigo! — estimula-me.
— Eu não é italiano — explico-lhe num tom amisto
so. — Eu é turco.
Então ele resolve engrossar:
— Mais um bom motivo para já ter terminado o ser
viço. Vocês, tocos, conhecem bem esse trabalho, porque
seus banheiros vivem entupidos!
Sem qualquer aviso, Hugo Leine já mandou embora
vários imigrantes que durante o expediente foram fazer
52 •
uma ligação importante na cabine telefônica situada bem
em frente ao canteiro de obras.
Nos dias seguintes, debaixo de um calor de trinta
graus, arrastamos placas de concreto até o sexto andar.
Somos mais baratos que o guindaste, deslocado para ou
tro canteiro de obras. Leine vigia para impedir descansos
suplementares. Na semana seguinte, sou transferido para
os serviços de transporte do cimento. Minha tarefa é em
purrar os “japoneses” — nome que dão aos enormes car
rinhos de mão — cheios de cimento já preparado para ser
despejado nos alicerces. O carrinho quase arranca os bra
ços da gente, e é preciso apoiar-se com toda a força para
que ele não vire. O encarregado Heinz — um dos homens
da GBI — diverte-se enchendo generosamente meu carri
nho para em seguida assistir ao esforço que faço para man
ter em equilíbrio o “japonês” que vai ficando mais pesa
do. Atribuo meu cansaço ao calor. Durante o trajeto, o
carrinho de mão bate numa tábua e dá um pequeno sola
vanco. Não consigo mais segurá-lo: ele vira e o cimento
espalha-se pelo chão. Alguns trabalhadores correm para
me ajudar a recolher o cimento antes que endureça. O
mestre-de-obras aparece e começa a gritar: “ Você aí, mal
dito gambá! Além de não saber contar nem até três, não
olha por onde anda. Mais uma dessas e pode voltar para
a sua Anatólia e ficar por lá, brincando na areia!” Na via
gem seguinte, o encarregado lança-me um sorriso sardô-
nico e enche o carrinho até a borda, apesar de meus pro
testos. Já no primeiro solavanco, o “japonês” começa a
transbordar. Merda! Mesmo com todo o esforço, não con
sigo mantê-lo equilibrado. Na primeira curva, o carrinho
quase me derruba, e, mais uma vez, toda a carga se espar
rama nos entulhos. Alguns operários alemães põem-se a
dar vivas. Rodeiam-me, porém não me ajudam. E eu, so
zinho com a pá, me esfalfo para separar o cimento dos
entulhos. Enquanto trabalho ferozmente, vigio para ver
se Hugo Leine se aproxima. Por sorte, o mestre-de-obras
enfiou-se em outro lugar. Um dos trabalhadores alemães
avisa-me que o pneu de meu “japonês” está furado. Há
53"
um prego cravado nele. Eis por que eu não conseguia
equilibrá-lo! Ao longe, o encarregado ri sem parar. E,
quando passo novamente a seu lado, diz-me num tom de
triunfo: “Quem sabe assim vocês acabam entendendo que
não têm nada a fazer aqui!”
Mais tarde, supreendendo-o no banheiro rabiscando
a parede com uma caneta hidrográfica: “Morte a todos
os tur... ” Tento pedir explicações, porém ele me cospe
nos pés e sai, deixando incompleta sua obra.
Poucos dias depois, ao remover com a pá o cascalho
do quinto andar, quase caí dentro de um poço para insta
lações elétricas coberto por uma fina placa de isopor. Fe
lizmente só escorreguei e enfiei uma perna dentro do bu
raco. Sofri uma leve luxação, e um tornozelo ficou esfo
lado. Poderia ter quebrado o pescoço, pois o poço tem oito
metros de profundidade. O encarregado Heinz surgiu co
mo por acaso e disse: “ Você teve uma sorte danada! Ima
gine só se tivesse caído lá dentro! Mais uma vaga por aqui!'’
Certa vez, roubaram do armário de um colega ale
mão sua carteira com 100 marcos. Evidentemente, logo
suspeitaram de mim.
— Olhe aqui! Durante o trabalho você sumiu por uns
quinze minutos. Aonde é que foi?
E outro alemão complementou:
— É isso aí! Mande esse cara abrir a carteira!
Um terceiro operário alemão, Alfons, às vezes cha
mado de Alfi, tomou meu partido:
— Mesmo que Ali tenha 100 marcos na carteira, is
so não prova nada. Qualquer um de nós poderia ter rou
bado o dinheiro. Ou até algum estranho. Por que logo ele?
É ainda Alfi quem me estimula a aprender melhor a
lingua alemã, dando-me um tapinha no ombro. “Você fala
melhor do que.pensa” , diz ele. “É só se esforçar mais um
pouco...”
Alfi ficou desempregado durante vários anos porque
a agência oficial de empregos de Düsseldorf lhe arranjara
uma colocação na firma Bastuba. Ele trabalhava o dia in
teiro dentro da água fria, limpando os canais e suas mar-
54’
,
Ali operário clandestino da construção civil
55'
Uma vez perguntei a Klose, chefe da filial de Colô
nia, o que significa GBI. Foi esta a explicação que me deu:
“É a sigla de Giraffe (girafa), Bar (urso) e Igel (ouriço)” 1.
Desse modo, continua ludibriando todo mundo, e a maior
parte dos operários acredita no que ele diz. A empresa já
é tão estranha e seu nome muda com tanta freqüência que
é bem possível acreditar em semelhante explicação.
Temos um novo colega alemão: Fritz, um loiro de vin
te anos que se alistou nas Forças Armadas e aguarda sua
convocação. Para ele esse emprego não passa de uma so
lução provisória. Fritz introduz no canteiro de obras uma
espécie de jogo a dinheiro, que passamos a praticar nos
porões da construção durante o horário de descanso. O
jogo é o seguinte: quem conseguir atirar uma moeda o mais
perto possível da parede sem tocá-la ganha as moedas dos
outros participantes. Estou com sorte e venço sempre. Fritz
se irrita: “ Vocês, turcos, só pensam em embolsar a nossa
grana. Só visam os próprios interesses e, assim que vira
mos as costas, tentam nos passar a perna” .
Em outra ocasião ele me diz: “ Nós, alemães, é que
somos inteligentes. Vocês, não! Vocês se reproduzem co
mo coelhos só para viver à nossa custa!”
E, voltando-se para os outros, acrescenta: “ De vez
em quando eles saem da toca” .
Devido à imprudência dos telhadores, a armação do
telhado se incendeia. Logo chegam várias viaturas do corpo
de bombeiros e da polícia. Com o telhado ainda fumegante,
sou mandado para lá, junto com outros operários, para
remover os escombros. A sola de meu tênis começa a der
reter tão logo piso as vigas que estalam por causa do fogo.
Perto de nós, um grupo de bombeiros e policiais nos
observa enquanto jogamos no chão os objetos ainda
fumegantes. Sem qualquer roupa de proteção, ali esta
mos nós, debatendo-nos sob seus olhos. Tudo absoluta
mente irregular. Não consigo nem imaginar se têm conhe
56"
cimento ou, pelo menos, uma vaga idéia disso. Nada di
zem. Também lucram conosco. Fazemos o trabalho sujo
e perigoso.
Hinrich, um colega alemão de vinte anos, casado, pai
de um filho, inquilino com o aluguel atrasado, já há al
guns dias anda de lá para cá com o rosto inchado. Está
com febre alta e vários dentes supurados. É pressionado
a não procurar um dentista. Até que, não agüentando mais,
pede a Klose, o homem da GBI de Colônia, uma folha de
consulta1. Hinrich ignorava que não havia sido registra
do e, portanto, trabalha ilegalmente. Fica furioso:
— Mas isso é proibido! Vou denunciar todos vocês!
Resposta de IQose:
— Suma daqui! Não quero mais ver a sua cara! Posso
processar você por calúnia, se continuar afirmando que
trabalha aqui ilegalmente. A culpa é sua. Foi você que de
morou para nos entregar os documentos, e por isso não
pudemos registrá-lo. Você mesmo cometeu o delito.
Em face de tudo isso, Hinrich não se atreve a dar parte
à polícia. No dia seguinte, uma ambulância leva-o para
o hospital. Septicemia. Risco de vida.
Numa sexta-feira, após o término do expediente —
havíamos acabado de trocar de roupa —, Hugo Leine apa
rece e diz: “ O serviço mais pesado já foi feito. Não preci
samos mais de vocês” .
E, assim, depois de seis semanas, termina minha pas
sagem pelo canteiro de obras. Alguns operários da equipe
da GBI são enviados para outra construção em Bonn/Bad
Godesberg. Sempre em situação ilegal, são contratados pela
mesma empresa, agora com o nome alterado: DIMA. O
ministro dos Transportes, Correios e Telecomunicações
manda construir um novo ministério. Infelizmente o “ tur
co” Ali não está entre os operários.
57 ‘
Um empresário moderno
Alfred Keitel, cinqüenta anos, natural de Düsseldorf, foi
um dos empresários que, nos últimos anos, levantou uma for
tuna quase incalculável. Em 1971, junto com um sócio, fun
dou a Keitel & Frich S. A. e rapidamente se lançou como in
termediário de mão-de-obra da indústria da construção ci
vil. Desde 1982 esse ramo de atividade é proibido por lei. Pou
co antes, Keitel adquiriu a Sociedade de Construção e Mon
tagem Industrial (ou GBI) e começou a se expandir.
Quando fui trabalhar para a GBI em Colônia, no verão
de 1984, fazia muito tempo que os fiscais do imposto de ren
da estavam atrás de Keitel. Contudo, os negócios ilegais con
tinuaram correndo às mil maravilhas. As investigações pro
varam que Keitel havia desviado mais de 11 milhões de mar
cos entre impostos sobre transações e salários, além de mi
lhões e milhões em contribuições sociais que foram omitidas.
Decretaram a prisão preventiva de Keitel, que, no final de
1984, foi condenado a quatro anos e meio. Mas conseguiu
se safar, sem grandes prejuízos, porque apresentou um ates
tado médico de que era vítima de “paixão patológica pelo
jogo” . Porém, o grande jogo, o que praticava com seus qui
nhentos empregados, segundo informações dos fiscais do im
posto de renda, não foi mencionado.
E hoje em dia Keitel continua a assumir francamente o
que faz: “Não tenham dúvida, conheço muito bem esse ra
mo. Todas as indústrias da construção civil, é .claro, todas
as manhas necessárias... Só que, ao fazer negócios com elas,
tomamos cuidado para não nos comprometer” .
No entanto prossegue: “ Os grandes projetos, as gran
des obras não iriam adiante sem as empreiteiras. Os Centros
de Estudos para Grandes Obras é que se encarregam dessas
coisas, e todos trabalham com as empreiteiras. Não se cons
truiria nada, em grande escala, sem as empreiteiras” .
Eis o que Keitel fala de si mesmo: “ Se eu não tivesse si
do traído, meus negócios continuariam a pleno vapor! Nin
guém conhece todos os truques desse setor, nem os fiscais nem
a previdência social — exceto as pessoas que estão diretamente
envolvidas. Esta é a vantagem quando se é processado: nin
guém pode determinar como as diferentes empresas se inter
ligam. Os contratos com as grandes empresas são apenas for
mais. Faço um acordo com elas — salários por hora sem adi-
58
cionais —, mas, na prática, assinamos outro contrato, já que
os salários por hora são proibidos. Quem vai controlar? No
tribunal se poderia dizer: 'Provem o contrário!’
“ Quem está de fora nem sequer imagina o que aconte
ce. Aliás, não teriam me pegado, se meu sócio, que também
participou de tudo, não tivesse enlouquecido. Já fazia muito
tempo que a polícia e o fisco andavam atrás de mim. Mas
nunca haviam conseguido” .
Keitel também fornece informações a respeito de suas
margens de lucro: “ Os operários recebem um bom dinheiro,
ali, na mão. Bem, nem sempre é um bom dinheiro, mas está
na mão!
“ As firmas de construção civil costumam pagar de 22
a 33 marcos por hora de trabalho. O lucro dos empreiteiros
vai depender de quanto eles pagam para seus operários. De
quantos trabalhadores eles registram, se todos ou só alguns.
“ Hoje em dia, o salário bruto de um operário especiali
zado está por volta de 16 marcos. Quanto aos imigrantes...
bem, são sempre explorados, trabalham por qualquer ninha
ria. Mas os alemães não. Os alemães conhecem seus direitos,
pelo menos em parte. Já os imigrantes... 10,8 marcos... tan
to faz” .
Fazendo um simples cálculo, temos o seguinte:
Para cada hora de trabalho, Keitel embolsa a quantia
de 14 a 25 marcos. Ora, normalmente um operário da cons
trução civil trabalha dez horas por dia o que perfaz a soma
de 140 a 250 marcos por dia e por trabalhador. Um total de
quinhentos operários resulta em algo entre 70 mil e 125 mil
marcos diariamente. Desse dinheiro Keitel deduz um míni
mo para despesas com transporte e contabilidade, encargos
fiscais e contribuições sociais. Ou não.
59
A conversão
(ou: Cortar cabeças sem bênção)
60'
do escalão superior, com cerca de sessenta anos, abre li
geiramente a pesada porta de carvalho, ornamentada com
ferro forjado, e olha para mim com muita reserva.
— Não tenho nada para dar. Procure a assistência
social. — Percebe minha perplexidade (eu não contava com
isso) e, sem me dar tempo para expor meu pedido, expli
ca claramente:' — Muitas pessoas vêm até aqui pedir es
molas, mas não dou. É uma questão de princípio! Esta
é uma residência paroquial e não...
Interrompo-o:
— Eu não quer dinheiro, só batismo.
Ele abre um pouco mais a porta e examina-me com
um olhar crítico e curioso.
— Ah, bom! — exclama. — É que me aparecem tan
tos malandros que querem viver à custa dos outros... Mas
onde o senhor mora? Que idade tem a criança? Quando
será o batismo?
Digo-lhe meu verdadeiro endereço e, como se trata
de uma rua elegante, onde Ali, segundo sua aparência, mal
poderia pagar uma semana de aluguel, acrescento:
— Eu mora lá em porão. Batismo não é para crian
ça. É para mim. Eu é turco, muçulmano. Mas agora eu
quer batismo, porque Cristo é melhor. Mas depressa,
porque...
Ele me fita, espantado e incrédulo, como se, ao invés
do sacramento do batismo, eu tivesse pedido minha cir
cuncisão. Volta a fechar a porta, deixando apenas uma
fresta minúscula, e diz:
— Um momento! Vamos com calma, com muita cal
ma... A coisa não é tão simples. Em primeiro lugar, algu
mas condições precisam ser preenchidas... — E, com um
olhar de desprezo para minha roupa esfarrapada, acres
centa: — Além do mais, não aceitamos qualquer um em
nossa paróquia.
Chamo-lhe a atenção para a urgência de meu pedido
porque corro o risco de ser expulso do país a qualquer mo
mento. Mas isso não o comove.
— Calma, vamos com calma. Não tenha tanta pres
61 4
sa! Antes de mais nada, preciso discutir o assunto com o
conselho paroquial. Enquanto isso, vá providenciando um
atestado de residência, assinado por uma autoridade po
licial, como é de praxe.
Atrevo-me a responder:
— Mas Cristo também sem residência fixa, teto!
Como se ouvisse uma blasfêmia, o padre, sem qual
quer explicação, bate a porta de um só golpe. Toco a cam
painha novamente para convencê-lo da seriedade de mi
nha determinação em tomar-me membro da valorosa co
munidade católica. Ele abre a porta bruscamente e põe-se
a repreender-me:
— Isto aqui não é albergue noturno. Se não me dei
xar em paz, vou chamar a policia!
Pela última vez tento lembrá-lo de sua consciência cris
tã e de seu dever profissional. Caio de joelhos e, com as
mãos postas, suplico:
— Em nome Cristo, batismo!
Como resposta, ele bate a porta com violência.
Eu não contava com isso. É claro que me enganei de
endereço. Há ovelhas negras por toda parte. E aqui, nes
te subúrbio residencial, onde os ricos desejam ficar entre
os ricos, eu como Ali obviamente não teria vez.
Não desisto. Vou procurar outro padre, na paróquia
vizinha, onde as casas não se escondem atrás de muros al
tos nem possuem enormes jardins. Em frente de cada ca
sa, há um pequeno retângulo de terra, um pouco maior
que uma sala de estar, a que todos têm acesso. Aqui vive
a classe média e inclusive operários, nos vários conjuntos
residenciais.
Inseguro por causa da primeira experiência hostil e
querendo me prevenir, peço a AbduUah, um de meus co
legas de trabalho, que me acompanhe para servir de teste
munha e, eventualmente, de protetor.
São cinco horas da tarde. A igreja está deserta. Os si
nos tocam mecanicamente, chamando os fiéis para a missa.
Mas ninguém atende ao chamado, talvez porque faz muito
frio. A igreja não tem aquecimento, e em seu interior o frio
62 *
é tanto que há uma camada de gelo na pia de água benta.
Com passos vagarosos e um pouco embaraçados, Abdul-
lah e eu começamos a caminhar na direção do altar, o que
desperta a atenção do padre, abandonado e sozinho.
Certamente ele já havia se preparado para o fim dos
trabalhos do dia, pois, assim que nos vê, tenta se esguei
rar para a sacristia. Porém, sou mais rápido.
— Desculpa — digo, barrando-lhe o caminho. — Só
uma pergunta. Eu é turco e quer batizar, virar cristão.
Possível?
O padre nos olha espantado.
— Não, não é possível! Não dá! — responde baixi
nho, já sem nos encarar, erguendo o olhar para o céu, co
mo se seu superior hierárquico pudesse abençoá-lo por essa
atitude tão pouco cristã.
— Por que não? — quero saber.
— Não é possível. Isso demanda um ensinamento de
alguns anos — murmura.
— Mas eu conhece bem livro de Cristo, eu sempre lê...
— Não, não posso fazer isso. Sem a autorização do
cardeal, não posso. De jeito nenhum...
— Mas pastor faz batismo, não?
— Não, de jeito nenhum!
— Eles não permite?
— Não, não e não! Ser batizado significa oficialmente
ser admitido na Igreja Católica, não...
— Ah! Senhor não é padre? — provoco-o.
É óbvio que ele não fica contente com a pergunta. Está
ferido em sua vaidade.
— Mas claaaaaro que sou!
— Senhor é chefe desta igreja? — insisto.
— Sim! — responde energicamente.
— Então pode fazer batismo! — insisto.
— Só posso batizar crianças. No caso de um adulto
preciso da autorização do arcebispo de Colônia. Além dis
so, há um curso de ensinamento religioso de no mínimo...
no mínimo... — Hesita. Parece compreender que não sou
tão ignorante. — No mínimo um ano.
63^
— Tanto tempo? Um ano?...
Minha pergunta inquieta e angustiada provoca-lhe no
vo impulso (não sem satisfação) de se desembaraçar de
mim:
— Às vezes pode levar mais tempo ainda. É um pro
cesso vagaroso, gradual...
Aponto para a pia batismal, querendo demonstrar-
lhe meu conhecimento do assunto.
— E depois batismo. Molha corpo todo ou só cabeça?
A seus olhos sou provavelmente o último dos sel
vagens.
— Não — responde lacônico, fingindo não ter ouvi
do minha observação sacrílega.
— Mas quem sabe chefe, arcebispo, pode fazer al
guma coisa.
' O padre não quer que eu tenha nènhuma ilusão:
— É pouco provável! Bem pçuco provável!
Continuo sem entender nada. Tentando encontrar
uma explicação para sua recusa, pergunto-lhe:
— É porque muita gente quer entrar na igreja?
Não parece ser o caso.
— Não, não é isso, mas...
O “ mas” fica suspenso no frio glacial. Não,há ne
nhuma outra explicação. Já que no campo transcenden
tal os argumentos não foram satisfatórios, tento levá-lo
para o lado prático. Indico-lhe com o dedo a grossa ca
mada de gelo na pia de água benta:
— Joga poüco descongelante, e gente logo faz sinal-
de-cruz.
Essa proposta construtiva também não o impressio
na, e ele sai, abandonando-nos. Porém sou mais rápido
e chego antes à residência paroquial, do lado da igreja.
Toco a campainha. Como numa farmácia de plantão, abre-
se uma estreita portinhola. Uma criada velha espia pela
fresta. O padre, que acaba de chegar, ao nos ver ali per
cebe que não ficará livre tão facilmente, tamanha é mi
nha determinação em receber o sacramento do batismo.
Deixa-nos entrar em seu escritório paroquial.
64 »
— Para que o senhor não me perturbe mais, vou lhe
dar um endereço aonde deve ir. Mas, como já lhe disse,
não se iluda. Tudo tem seu tempo!
Com passos lentos, refugia-se atrás de uma imponente
escrivaninha e põe-se a folhear cerimoniosamente um anuá
rio da igreja. Com uns 55 anos, aparência saudável e tran
qüila, não ostenta aquele ar dè desprezo e arrogância de
seu colega da paróquia vizinha. Mais benevolente e sosse
gado, possui algo da nulidade do funcionário que passa
a vida inteira atrás de um guichê, atendendo ao público,
mesmo que não tenha mais selos para vender, ninguém se
interesse por timbres comemorativos e a tabuleta deixada
por ele — Fechado PROVISORIAMENTE — ainda sirva
para prevenir os últimos fregueses extraviados.
Não quero que ele se furte à responsabilidade tão fa
cilmente, até porque, a seus olhos, minha exigência pare
ce uma proposta imoral.
— Se eu era criança, batismo mais rápido? — insisto.
— Sim, seria mais rápido. Se o senhor fosse um be
bê, no colo da mãe, aí, sim! Mesmo nesse caso, não seria
tão rápido. Deveriam assegurar que a criança receberia uma
educação católica...
EU: Hoje muita criança batizada, muito pai não- ca
tólico de verdade!
P adre (franzindo o cenho, severo): Tem razão. Mas
isso não acontece conosco.
EU: Eu tem muito colega batizado, mas não católico
de verdade. Colega ri de mim porque eu acredita em Cris
to e fala de livro de Cristo. Más todo mundo tem Deus,
não é?
P adre (sem se afastar do assunto e com um tom bas
tante formal): Para batizar adultos preciso da autoriza
ção do arcebispo de Colônia, o cardeal Hõffner.
EU: Ele é boa pessoa?
PADRE: É ele quem autoriza e diz se o ensinamento
gradual... enfim, se o ensinamento deverá durar no míni
mo um ano...
EU (contente): Então ele também faz batismo?
65 r
P adre (categórico): Não!
EU: Mas eu ouve dizer qualquer padre pode fazer
batismo...
P adre (folheando sem sucesso o livro, à procura do
endereço): Em princípio, sim, mas...
EU: E eu tem mais um problema. Eu quer casar, mas
pais de moça não deixa ela casar com muçulmano... E se
eu casa com ela, eu pode continuar aqui; senão, eu preci
sa ir embora, expulso para Turquia.
ABDULLAH: (vindo em meu socorro para explicar o
problema deforma convincente): Ele vai parar na prisão
se voltar para a Turquia!
P adre (fingindo nâo ter ouvido essa observação in
cômoda e3sereno, continuando afolhear seu anuário): Mas
onde é que está o endereço do Felicitas?
ABDULLAH: É por isso que ele precisa ser batizado
bem depressa.
EU: Hoje mesmo, era bom! Ou amanhã, depois de
trabalho.
PADRE: Está fora de questão. Não é possível!
EU: Eu pode pagar alguma coisa.
PADRE: Não. É de graça. O batismo não custa na
da. Todos os sacramentos são gratuitos.
Eu: Mas se eu dá um pouco dinheiro para criança pa-
gã, coisa anda mais rápido?
PADRE: Não e não! Não há nada a fazer, absoluta
mente nada!
ABDULLAH: É que ele não quer prestar serviço
militar.
EU: Eu não quer dar tiro em ninguém. Eu não quer
matar gente. Turquia agora igualzinha Alemanha de an
tigamente, com Hitler. Turquia é ditadura...
PADRE: Este assunto não tem nada a ver com o ba
tismo. São motivos alheios às convicções religiosas.
Eu: E quando gente é batizado tem grande festa com
paróquia, e coisa assim, não?
P adre (tentando desiludir-me): Não.
66 v
EU: Não?! Eu achava que tinha grande festa, dança,
tudo.
P adrE: Não, de jeito nenhum. Não. Pelo menos não
aqui, conosco.
Eu: Eu já leu Bíblia trás para frente, frente para trás...
P adre : É o que todos dizem. Acham que já sabem
tudo...
Eu: Senhor, faz pergunta. Qualquer pergunta!
PADRE: Pergunta? Para quê?
EU: Para ver se eu...
P adre : Não é esse o problema. O problema são as
prescrições segundo as quais a Igreja admite pessoas adul
tas. E que perguntas eu deveria fazer?
EU: Sobre Cristo...
P adre (como se eu tivesse dito um disparate): Ah!
Sobre Cristo?
EU: Sobre vida dele, coisa assim...
P adre (como se Cristo nunca tivesse vivido): Ah, a
vida dele? Sei. Bem, vejamos... Espere um pouco... (En
tão, à queima-roupa): Como foi fundada a Igreja?
Eu (sem precisar pensar muito): Cristo fala assim pa
ra Pedro: “ Faz Igreja por mim. Agora!”
Padre: Hum... Hum... Sim, podemos dizer que sim...
EU: E agora pergunta mais difícil!
P adre : Não é preciso. Isso não leva a nada, só lhe
cria falsas esperanças.
Eu: Por favor! Uma só mais!
P adre (com grande sacrifício): Está bem... Por que
hoje em dia existem tantas igrejas que invocam o nome
de Cristo?
EU: Ah, eu sabe! Por causa Lutero. Ele fez revolu
ção. Ele não acreditava em papa. Por isso tem muita igre
ja também boa. Elas quer Cristo vive, mas não sabe mui
ta coisa; Lutero quer fazer igreja própria, porque outra
não era bem dirigida, perde pastores...
P adre (surpreso): Sim, sim, já está bom...
Eu: Eu leu tudo. Eu leu também livro que vem com
Bíblia. Cate... Cate... Como chama?
67'
P adre: Catecismo. Está certo. Acredito que o senhor
conheça bem a Bíblia, sem problemas. Mas isto não serve
para nada neste momento. Preciso da autorização do ar
cebispo para batizar um adulto.
EU: Mas, se agora... se agora eu estava muito doen
te, meu coração não batia mais, e eu pedia: “ Por favor,
batismo” ?
P adre : Em caso de morte, é claro que sim. Quero
dizer, se realmente há risco de vida...
EU: E se eu tinha muita dor agora? Assim, de repen
te? Não podia fazer batismo? Coração não anda bem.
Verdade!
P adre : Sei, sei. Seu coração não anda bem, não é?
EU: É! Não bate direito. Quando eu trabalha pesa
do, eu vê tudo preto em frente. Uma vez eu foi parar em
hospital. Seção intensa terapia. É assim que gente diz?
P a d re (corrigindo): Unidade de terapia intensiva.
Ainda assim, não vejo motivo para abreviar o tempo de
sua formação religiosa. Só através do curso é que sabere
mos se o senhor realmente se firmou na fé cristã, se real
mente faz parte dela.
EU: Mas isso não adianta nada se eu morre antes. Se
eu não casa com noiva alemã, eles me manda voltar para
Turquia. E, quem sabe, eu até morre sem batismo. E daí
eu não fica com Cristo, em céu.
P a d re (suspirando): Eu não disse isso. Claro que po
de haver exceções.
EU: (contente): Então eu vai ter batismo logo?
P a d r e (desesperado com minha lentidão de raciocí
nio): Não, meu Deus! Não! Ainda que o senhor morra sem
ser batizado, isto não significa necessariamente que será
amaldiçoado por toda a eternidade. Em determinadas cir
cunstâncias podemos contar com uma espécie de batismo
inconsciente. E Cristo, em sua bondade incomensurável,
também dá oportunidade a pagãos e adeptos de outras re
ligiões de viverem em seu espírito.
Eu: Mas isso não muito seguro. Melhor ter logo ba
tismo. Vem! Coração nada bom.
68 *
PADRE (indiferente): Já sei, mas a coisa não funcio
na assim. Há alguns empecilhos.
EU: Mas principal é que eu já vai ser católico.
P adre (desesperado): Sim, pode-se dizer que sim.
Mas um batismo sem certificado não vale nada. Mais uma
vez, nãol Não vou batizá-lo porque sei que o senhor está
fingindo.
EU: Mas é verdade! Senhor pode chamar médico!
P adre : Não é preciso. Além disso, se eu o batizas
se, estaria sujeito a medida disciplinar.
EU: Com Maomé coisa é mais fácil. Quem quer po
de logo ser maometano.
P adre (não sem algum desprezo): É... Maomé faci
litou as coisas para vocês.
EU: Qualquer modo, Maomé mais tolerante. (O pa
dre finge não ter ouvido a censura e se cala.) Mas, antiga
mente, missionário chegou com conquistador em país es
trangeiro e foi logo dizendo: “Você, você e você... agora
tudo católico” . Mesmo quem não queria. E por que hoje
leva tanto tempo?
PADRE: É verdade, mas que católicos deveriam ser!
Naquela época, as coisas eram assim... como posso di
zer?... feitas muito mecanicamente. Carlos Magno, por
exemplo, dizia para os saxões: “ Batismo ou a cabeça ro
la!” (Ri com prazer.)
EU: Assim... zás!
PADRE: Mas isso aconteceu no ano 800 depois de
Cristo.
EU: É, mas com índio também zás! E ínclio nem sa
bia por quê.
PADRE: Mas viu no que resultou tudo isso? Eles pas
saram a ter um ódio mortal de todos os cristãos.
Eu: E índio fez mesma coisa (gesto de cortar cabeça)
com cristão?
PADRE: Mas claaaaaro!
EU: E papa abençoou?
PADRE: Abençoou? Que bênção? Ninguém precisa de
bênção para cortar cabeças! (A expressão de seu rosto, até
69 <
então bondosa, dá lugar a um sorriso irônico, infantil, in-
quisitorial.)
Eu: Mas papa falou “tudo bem” ?
PADRE: Não sei qual era a atitude dos papas naque
la época. Eles não deveriam saber o que os missionários
faziam lá na América. (Lembrando-se do propósito de mi
nha visita, muda de assunto): Quem quer expulsá-lo da
Alemanha?
EU: Policia de estrangeiro.
P adre: (bastante impressionado): Ah, a polida de es
trangeiros!
EU: E se gente casa com alemã, eles entra no quarto
para ver se gente dorme junto.
Padre: Aqui em nossa escola temos muitos turcos. Eles
sempre participaram de minhas aulas de religião, mas não
tinham grande interesse... nem sabiam o que é ser católico.
EU: E agora que eles quer batismo?
P adre (horrorizado): Pelo contrário! Nem um úni
co sequer...
EU: E eu? Eu vai ter que aprender muita coisa? Re
za, hino?
PADRE: O senhor tem que aprender é internamente,
com a alma e não externamente. Internamente, entendeu?
Começo a rezar o Pai-Nosso. Quando chego ao fim
— “ livrai-nos de todo mal” — ele me interrompe e volta
a me humilhar:
— Como todo muçulmano, o senhor tem o costume
de ficar repetindo as orações sem ao menos entendê-las,
igual às crianças. Bem, mas agora preciso fechar a igreja.
— Levanta-se, disposto a se livrar de mim, e põe em mi
nha mão um pedaço de papel: — Aí está o endereço do
Centro de Orientação para a Fé, F elicitas . Eles decidi
rão o que fazer.
.70 '
tocrata. Lembra-me um pouco o “ Grande Inquisidor” de
El Greco.
Esta instituição da Igreja Católica, destinada àque
les que desejam se converter, não me parece muito freqüen
tada. Sou a única pessoa na sala de espera e me dou conta
dos imensos escritórios vazios que impressionam por seus
móveis antigos; nada que sugira um local de trabalho.
Vestido com minha surrada roupa de trabalho, sinto-
me um pouco deslocado e miserável neste lugar. Depois
de relatar meu caso de forma convincente, mas um pouco
desesperada, apelo ao padre responsável pela instituição
para que tome uma decisão rápida, não burocrática, e le
ve em conta a urgência da situação.
Eu: Por favor, por isso eu precisa batismo depressa.
P a d r e (não levando a sério meu pedido, reage um
pouco ironicamente): E quanto tempo acha que isso pode
levar? Uma hora, por exemplo?
Eu (alegrando-me): Pode? Muito obrigado! Se leva
mais de uma semana, eu vai para a cadeia, lá em Turquia.
Quando é batismo?
P a d re (lacônico eformal): Sou um especialista, mas
não posso dizer.
Eu*. Então senhor pode fazer pergunta. Eu já leu tu
do que Cristo falou. Eu acha tudo muito bom.
P a d re (sem se impressionar): Quem o mandou aqui?
Eu (dizendo o nome do padre que, para se ver livre
de mim, me deu este endereço): E ele disse que não podia
fazer batismo, mas que aqui pode e eu também ganha cer
tificado.
PADRE: Há quanto tempo o senhor está na
Alemanha?
EU: Dez anos. E eu quer continuar aqui. Porque eu
é curdo e lá em Turquia eu vai para cadeia. Eu fez traba
lho político contra a ditadura.
PADRE: Se o senhor deseja permanecer na Alemanha,
não precisa voltar para a Turquia.
EU: Mas eu vai precisar ir, porque eu não tem traba
lho, e visto de permanência é só para mais três meses. E
71*
eu também acha Cristo melhor que Maomé, Maomé proíbe
muita coisa. Cristo está do lado de perseguido.
P a d re (parece ter outra idéia sobre Cristo): Sei. E
o senhor conhece outros cristãos, além de sua noiva?
EU: Sim. Colegas de trabalho, tudo batizado. Só que
eles sempre dá risada quando eu fala de Cristo. Eles fica
lendo Bild em hora de descanso. Mas eu não, eu fica len
do Bíblia.
PADRE (ignorando a realidade): Tudo vai depender
dos bons contatos com outros cristãos alemães. Aqui não
há propriamente uma aprendizagem, mas um comporta
mento. Importa mais a vida que o estudo.
EU: Sim, eu entende. Eu quer viver e me comportar.
E o que eu precisa fazer para me aceitar?
PADRE: Viver com a Igreja.
EU: Fazer... quê?!
PADRE: Ir à igreja. ■
Eu (com orgulho): Mas eu vai. Eu sempre vai domin
go. (Para que ele acredite em mimt digo-lhe o nome da
paróquia e da igreja.)
PADRE: Sei, sei.
EU: Verdade! E eu também sabe rezar. E canta bem.
PADRE: E quantas vezes o senhor costuma ir à igreja?
EU: Uma vez, domingo.
PADRE: E nestes últimos dois anos, há quanto tem
po o senhor tem ido?
EU: Quatro meses, todo domingo.
P a d re (calculando): Quatro vezes quatro... de
zesseis.
EU: Mas antes também. É que às yezes eu precisa tra
balhar fim de semana. Eu acha bonita missa. E Cristo é
amigo de verdade.
P a d re (que parece ter uma relação um pouco menos
amigável e mais distante com seu Senhor): Mas é difícil
acreditar em Cristo.
Eu (profundamente convencido): Nãããão!
P a d re (incrédulo): Não...?
EU: Cristo mostrou e mostra como gente deve viver,
72"
e não só dentro de livro, mas por ele mesmo. Ele viveu
para nós. Mas senhor pode fazer pergunta, ver se está
certo...
PADRE: Isto aqui não é escola. Vamos conhecendo
os candidatos através dos encontros e de suas próprias vi
das. (Em tom ligeiramente repreensivo): Se o senhor ti
vesse vindo há dez anos, tudo estaria solucionado agora.
EU: Mas senhor não faz pergunta para ver se eu
sabe...
PADRE: O problema não é a aprendizagem. Não se
pode apressar o crescimento de uma planta com adubo.
Tudo tem seu tempo.
EU: Mas quando primeiro cristão chegou Novo Mun
do, foi logo batizando tudo, mesmo quem não queria.
PADRE: É verdade, mas a Igreja tinha uma outra for
ça e outra inspiração. Hoje levamos em conta o contato
com outros cristãos.
EU: Gente não tem muito contato porque alemão não
quer viver com turco.
PADRE: São prescrições do bispo. Todos devemos nos
submeter à mesma disciplina.
Eu: (numa última tentativa desesperada de conven
cer o padre a não agir de forma burocrática): Mas então
eu não vai ter certificado. E polícia de estrangeiro me ex
pulsar, e eu precisa voltar para Turquia, vai para prisão,
e quem sabe eles me tortura...
PADRE: Não posso ser pressionado a batizá-lo por
causa de sua situação política desesperadora. Seria uma
irresponsabilidade. Nenhum bispo responderia por isso.
EU: E se eu pergunta para bispo?
PADRE: O senhor não pode procurar o bispo.
EU: Mas ele também mora aqui!
PADRE: Mas o senhor não pode procurar o bispo!
EU: E se eu telefona e pergunta direto para ele?
PADRE (em tom de desprezo): Certamente ele não re
ceberá alguém como o senhor. Ele não fica em casa, ente-
diado, esperando que lhe telefonem. O bispo é o senhor
supremo de mais de um milhão de católicos nesta dioce
•73'
se. Sua agenda é tão cheia quanto a de um primeiro-
ministro. Os dois, aliás, estão no mesmo nível.
EU: Mas bispo também faz batismo, se ele quer.
P a d re (irritado): É claro que o bispo pode celebrar
batizados a qualquer momento.
EU: E se eu fala com bispo quando ele dá uma volta?
PADRE: Impossível! O senhor pensa que pode sim
plesmente ir agarrando o bispo durante seu passeio? Ele
está sempre cercado de policiais.
Eu: Mas, então, senhor faz pergunta! Para ver se eu
entende bastante de Cristo...
P a d re (depois de suspirar e refletir longamente): Je
sus é Deus?
EU: Ele foi homem e Deus, e junto também com Es
pírito Santo. Uma só em três pessoa...
P a d r e (espantado): É uma boa resposta. A respos
ta, como tal, está correta.
Eu (sem desistir): E Cristo diz que ama todos ho
mens, mesmo que não são de Igreja. E cristão deve amar
até inimigo, só que não faz isso com turco... Eu sei que
Cristo ficava do lado de perseguido. Em Turquia, curdo
é que nem cristão de antigamente. Mandam ele para ca
deia porque querem ter cultura própria. E Cristo também
está do lado deles.
P a d r e (furioso, levantando-se com muita cerimô
nia): Está bem, mas agora precisamos interromper nossa
conversa. Se o senhor fizer a gentileza de retomar à outra
sala, minha secretária o acompanhará até a saída...
A diferença do padre rude de minha primeira visita
e o de agora é que este último me expulsou de forma ele
gantemente aristocrática. Também aqui não sou deseja
do. Embora se trate de uma exceção absoluta — encon
trar na Alemanha um turco que deseja converter-se à fé
católica é um verdadeiro milagre, quando presenciamos
as hostilidades que os servos de Cristo lhes manifestam e
as humilhações que lhes impõem —, não querem, em hi
pótese alguma, admitir-me na comunidade hierarquizaçla
desses cristãos satisfeitos, presunçosos e enfastiados de si
.74*
mesmos. Já é bastante suportá-los nas escolas, nos subúr
bios e nas estações de trem. Mas as igrejas — mesmo que
continuem completamente desertas — devem ficar limpas
e livres de turcos.
75 •
tem o governo que merece. Há povos que ainda não estão
maduros para a democracia parlamentarista. — E, depois
de pensar um instante: — Mas, afinal, o que o senhor de
seja? A Turquia já tem um parlamento eleito.
— Controlado por militar — respondo. — Partido
democrático proibido e perseguido.
— Deve haver alguma razão para isso — prossegue
ele na discussão política. — Só assim é que se pôde aca
bar com o terror e a rebelião.
— Mas polícia e Exército faz terror e tortura preso
político — replico.
— Confesse que o senhor é comunista e quer se in
filtrar entre nós para ter um bom disfarce. Damos assis
tência espiritual nas prisões e confortamos até o pior dos
pecadores, desde que ele se arrependa. Mas aqui não há
lugar para elementos sem consciência... É melhor o senhor
voltar para o lugar de onde veio! — E, como eu fico
olhando-o perplexo, continua em tom mais condescenden
te: — Bem, caso eu tenha me enganado com o senhor, ve
nha procurar-me depois da Páscoa, e então marcaremos
uma entrevista. Assim terei tempo para sondá-lo um pou
co mais e avaliar seus verdadeiros sentimentos com rela
ção a Cristo.
Registro isso. É o bastante para mim. Considero um
despropósito uma segunda conversa. A idéia que esse pa
dre fez de Cristo já me parece suficientemente clara.
— Cumprimento, então, para Cristo, quando senhor
vê ele — despeço-me. E digo mais para mim mesmo que
para meu interlocutor: — Oh, não. Há muito tempo que
Cristo está morto aqui. — E, deixando o padre desnor
teado, desço a escada, assobiando “ Senhor, nós te louva
mos...” , minha canção preferida.
76“
batismo, sem formalidades burocráticas, e o mais rápido
possível.
Dois outros padres que procuro também não levam
em conta a urgência do caso. Um capelão, bem jovem,
manda-me passear: “Não fazemos questão de ter entre nós
pessoas que querem se tomar católicas só para agradar os
outros e obter eventuais benefícios. Não somos uma com
panhia de seguros, fique o senhor sabendo!”
Vou visitar outro padre, já de certa idade, que mora
numa suntuosa residência episcopal e é conhecido como
pastor de almas da classe alta. Ele me faz recitar o Pai-
Nosso, rezar a Ave-Maria e ainda cantar um hino religio
so. Escolho o de Christof von Schmidt: "... e ele morreu,
com o coração cheio de amor, para nos salvar...” E de
pois disso tudo, sou recusado.
Antes, porém, o padre coloca-me numa situação di
fícil, pois deseja saber como se diz “ acólito” em turco.
“Gurtil, GuruF\ invento. “ Gurul, GuruV\ repete ele, ver
dadeiramente impressionado.
PADRE: Onde o senhor mora?
Eu (acrescentando depois de dizer o endereço): Po
rão de família Sonne. Mas ninguém pode saber, porque
proibido alugar porão, sem janela, úmido.
PADRE: Mas o senhor não tem uma declaração de re
sidência registrada na polícia?
Eu (hesitante): Não. Família Sonne não quer. E aqui
ninguém aluga boa moradia para turco.
P adre (num tom severo): Sendo assim, não posso
aceitá-lo no curso de catecismo de nossa paróquia. Antes
de mais nada, o senhor terá que providenciar a declaração
de residência, como é de praxe. Aí sim, poderá participar
do curso de preparação, que dura no mínimo um ano. Vai
ver como esse curso lhe fará bem. O senhor se familiarizará
com a fé cristã e então poderá realmente fazer parte dela!
Eu (protestando): E isso serve para quê? Eu já vai
estar preso em Turquia.
P adre (sem se abalar): Estes são motivos políticos
secundários que não devem influenciar nossas decisões.
77
Já estou a ponto de desistir. Recordo-me das pala
vras da Bíblia: “É mais fácil um camelo passar pelo bura
co de uma agulha que um rico entrar no reino do céu” .
E acho que elas se aplicam exatamente aos padres católicos.
Até então eu havia escolhido as paróquias de forma
aleatória, procurando as que ficavam perto de casa ou em
locais já cqnhecidos. Desta vez decido sair da cidade, ir
para o campo, a uma distância de uns cem quilômetros.
Só paro quando chego a um local bem miserável, com uma
igreja muito pobre. Dirijo-me à casa paroquial. Um ho
mem bastante jovem abre a porta.
Eu pode falar com padre? — pergunto.
— Claro, sou eu! — diz o homem, vestido como uma
pessoa comum, com a camisa aberta. -
É a primeira vez que eu, Ali, vejo um eclesiástico sem
roupas de clérigo. O jovem convida-me a entrar em seu
escritório.
Começo a expor meu problema. Antes mesmo de ter
minar, o padre interrompe-me:
•— Já estou entendendo. E agora o senhor irá me pe
dir para batizá-lo, estou certo?
— Sim, está.
— É claro que vou batizá-lo. Dentro de poucos dias.
E, então como católico, o senhor terá direito ao certifica
do de batismo, que eu mesmo subscreverei. É isso! — Sem
maiores delongas, sem apelar ao bispo, sem perguntas bea
tas, inquisitoriais, hipócritas e pseudocristãs, ele reconhece
a seriedade da situação, compreende o que está em jogo
e age espontaneamente, de forma .cristã. — Precisamos ter
ainda mais uma conversa, e aí o senhor se tomará mem
bro da nossa paróquia. Com o tempo, iremos nos conhe
cendo melhor. E se, depois de tudo isso, o senhor conti
nuar tendo problemas com a polícia de estrangeiros, con
te comigo. Tudo se ajeitará, o senhor vai ver. Não haverá
mais problemas — ele me anima.
Agradeço. Percebo que o jovem padre, que não se
comporta como um funcionário, fala com leve sotaque da
Europa oriental. Mais tarde venho a saber que emigrou
*78 '
da Polônia há quatro anos. Talvez sua própria história de
vida o tenha levado a identificar-se com um estrangeiro
perseguido, ou pelo menos a compreender o. que se sente
em tal situação. Talvez ele mesmo tenha começado a per
ceber em seu pais natal o que significa perseguição, ou,
se não a vivenciou, pelo menos terá trabalhado sob as ré
deas de uma Igreja sufocante e cheia de privilégios. Tal
vez, ainda, sua vocação para compreender os problemas
alheios só tenha se manifestado aqui, nesta nossa Alema
nha “livre” , onde testemunha a acolhida pouco amena que
se dá aos estrangeiros.
Seja como for, prefiro mantê-lo no anonimato, pois
temo que a revelação do nome deste homem, de compor
tamento tão humano e cristão, atraia a ira de seus supe
riores, que podem considerar esse fato como uma trans
gressão da ordem.
79 *
estava internado num hospital católico, com septicemia.
Três semanas depois, desenganado pelos médicos,
relegaram-no a um cubículo chamado, a propósito, de
“ morredouro” . As freiras que cuidavam dele viviam im
portunando-o porque, na qualidade de católico com cer
tidão de batismo, ele ofendera gravemente a Deus por não
ter se casado no religioso e haver batizado seu único filho
— eu — segundo os cânones protestantes. Foi assim que,
num quartinho minúsculo, realizaram uma cerimônia de
casamento e eu fui rebatizado, tudo segundo o ritual ca
tólico. Ainda hoje tenho consciência da hipocrisia e da afe
tação daquele acontecimento. Vestiram-me um camisolão
de batismo, enfiaram uma vela em minha mão e um tra-
pista disse que a partir de agora eu passaria a me chamar
Johannes. Cheguei a protestar, alegando que meu nome
é Günter, mas o ritual continuou, sem interrupção.
Foi uma cerimônia absolutamente desnecessária, por
que, segundo os dogmas católicos, uma vez batizado, ba
tizado para sempre.
E mais ainda: poucas semanas depois desse espetá
culo, meu pai recuperou a saúde. As freiras insistiam em
falar em milagre, graças ao “efetivo arrependimento” de
meu pai. Esqueceram, porém, de mencionar que o dire
tor do hospital havia feito de tudo para conseguir penici
lina junto às autoridades militares da ocupação america
na. Meu pai foi um dos primeiros pacientes de Colônia
a utilizar com sucesso esse medicamento.
Em todo caso, foi assim que me tornei católico.
Do lado de cá do Éden
80
parte das religiões — não reduz a sexualidade ao objetivo
exclusivo da procriação nem a transforma em tabu. Uma
religião lúdica, fácil, ampla sem constrangimentos. É nesse
lugar que espero não sofrer nenhum tipo de preconceito
como o estrangeiro Ali. Meu amigo e colega de trabalho
Abdullah acompanha-me.
Ao contrário de mim, Abdullah nunca teve a menor
ilusão ou expectativa quanto ao cristianismo administra
do pela Igreja oficial. Agora está menos prevenido e tam
bém quer tentar seu ingresso na seita Bhagwan.
O local de encontro fica na Lütticherstrasse, num bair
ro próximo ao centro da cidade. Os diversos imóveis on
de está instalada a administração da Bhagwan pertencem
à Construções Rajneesh, Koch & Cia. A mobília da sala
de recepção é clara, elegante e de bom gosto. Nada do
kitsch enfadonho, tão comum entre as seitas.
Quando chegamos, dois “sannyasins” 1 estão falan
do ao telefone, cada qual em seu aparelho, e tão absortos
que nos ignoram completamente. Ao que parece não se
trata de conversas de evangelização nem de questões de
fé. Um deles discute sobre cifras e repetidamente se justi
fica por não ter convertido as somas previstas em valor
monetário. O outro parece estar dando a seu interlocutor
um curso rápido de investimento. A conversa gira em tor
no de “ donativos antedatados” e de como “ contornar de
maneira perfeitamente legal o imposto sobre herança” .
Além da “ previsão mais recente e merecedora de fé, vin
da dos Estados Unidos: vender, sem falta, os dólares nos
próximos seis meses e aplicar em ouro!”
Os dois “sannyasins” comportam-se como jovens ge
rentes, ou, melhor ainda, como investidores da bolsa, do
tipo descontraído, sossegado, não obstinado mas firme.
Ficamos esperando ali uns bons dez minutos, até que um
deles, que acabou de transmitir suas cifras, se digna a re
parar em nós.
— O que desejam?
i Os membros da seita Bhagwan autodenominam-se “ sannyasins” (N. do T.).
— Eu quer fazer parte daqui — digo-lhe.
Ele me olha com desprezo.
— Ser um adepto? Mas não é tão simples assim. —
Em seguida, examinando-nos ligeiramente, completa: —
Vocês querem é casa e trabalho, não é?
— Também — respondo —, mas não só por dinhei
ro. Eu não quer mais ficar sozinho. Eu quer viver com
outros.
— Mas isso leva algum tempo. Acho mesmo que, pa
ra vocês, vai levar muito tempo.
— Muito quanto?
O jovem não quer adiantar nada.
— Varia muito. Não temos uma regra fixa. Depen
de do conhecimento que se tem da Bhagwan e da intensi
dade do desejo de fazer parte do grupo.
— Desejo muito, muito forte.
— E por que você tem tanta pressa assim? — ele per
gunta, desconfiado.
— Eu quer começar tudo de novo. Senão eles me
manda embora para Turquia, e lá eu vai para cadeia.
Conto-lhe minha história da perseguição política.
Embora jovem e não-dogmático, guiado (como ele
mesmo acredita) pela inspiração, reage como um clérigo:
— Se entendi bem, você quer é encontrar um jeito
de entrar aqui e tirar algum partido da situação, não é?
— Não! Eu só quer ficar aqui e fazer parte disto tudo.
— Sei... Quer vir para cá porque gostaria de ficar
aqui?
— Também.
— Mas não é motivo válido. Se for isso, não pode
mos admiti-lo de jeito nenhum.
— Mas não só isso! Eu também quer viver com ou
tros. E não cada um por si, mas tudo junto, comunidade.
Ah, e tem também mulher. Não uma só para cada um,
mas tudo junto.
— Acho que é melhor você ficar no lugar de onde
veio. Para chegar até nós, o caminho é muito longo.
Mais uma vez meti os pés pelas mãos. A fase frenéti
82'
ca da vida comunitária só foi propalada no início do mo
vimento Bhagwan. Assim, como uma espécie de isca para
fisgar as pessoas frustradas das classes média e alta de to
dos os cantos do mundo. Depois, o Grande Mestre — pre
judicado pela gota e, sem dúvida, com medo da AIDS —
passou a pregar maior abstinência e uma vida a dois. Seu
novo lema já não é o sexo grupai, mas um tipo de prazer
congelado e asséptico: o consumo suntuoso, o luxo pelo
luxo. Por exemplo: os Rolls Royce. Objetivo ambiciona
do: um Rolls Royce diferente para cada dia do ano. Pre
ço por unidade: 300 mil marcos. Não para uso de seus
adeptos, mas só para ele mesmo, para süa tendência me
galomaníaca.
Assim, para esse jovem minha exigência é pretensio
sa e descarada. Viver em comunidade com gurus de esquer
da semiconvertidos (como, por exemplo, Rudolf Bahro,
militante do Partido Verde), ainda é possível. Mas viver
com um turco miserável, sem eira nem beira, extenuado
pelo trabalho é coisa muito diferente; toda a estrutura pre
conceituosa das antigas raças dos senhores vem à tona.
Tentamos o centro da seita na Vennloèrstrasse, ao lado
da Friesenplatz. Na recepção, duas senhoras e um rapaz.
Assim que os dois candidatos turcos entram no lo
cal, as mulheres começam a cochichar e a rir baixinho. Pa
ramos diante delas, que fingem não nos ver e põem-se a
mexer em algumas pastas de documentos.
Decidimos, então, inspecionar um pouco o lugar. Nu
ma das salas, há uns trinta adeptos da Bhagwan, alguns
sentados, outros em pé, olhando fascinados para um tele
visor. Não estão vendo uma partida de futebol nem um
filme de suspense, mas um vídeo sobre o Grande Mestre
de Oregon. Ele está rodeado por um grupo de adeptos en
tusiásticos que o aclamam sem cessar, confortavelmente
instalado em seu Rolls Royce, que avança bem devagar,
acena para os fãs com movimentos parcimoniosos e uma
expressão vaidosa e magnânima.
O conjunto é acompanhado pelo “ lá-lá-lá” repetiti
vo e monótono de uma música oriental, e os “sannyasins”
83
Palavras de Bhagwan
“O egoísmo é natural. Não é uma questão de bem ou de
mal. O mais forte é que sobrevive, e o mais forte é que deve
ter o poder. E quem tem o poder tem a razão. Como alemães,
vocês deviam compreender isso. (...) Amo esse homem [Hi-
tler]. Era um louco. Mas eu sou mais louco ainda. Não ou
via seus generais, apenas seus astrólogos. Mesmo assim, du
rante cinco anos sempre obteve vitórias. Era tão moralista
quanto Mahatma Ghandi. Sua natureza era a de um hindu,
mais que a de Ghandi. Foi um santo. (...) Sou absolutamen
te inatacável. Ataco todo mundo, mas ninguém me ataca. Esta
é a simples verdade.”
(Extraído de Der Spiegel n.° 32, 1985.)
84
A seita Bhagwan é dirigida por Sri Rajneesh, um indiano
que vive nos Estados Unidos. Em junho de 1985, ele decidiu
romper seu longo silêncio e deu uma entrevista ao canal de
televisão ABC, declarando ser “ o guru dos ricos’* e ter co
mo o mais nobre objetivo de seu movimento *'‘enriquecer” .
“ Todas as outras religiões cuidam dos pobres” , respondeu
ao lhe perguntarem por que não usava sua imensa fortuna
para lutar contra a miséria social em lugar de investir em sua
frota de Rolls Royce. “ É problema meu se me preocupo só
com as pessoas ricas.”
Somente na Alemanha comprou uma dúzia de discotecas,
uma cadeia de restaurantes vegetarianos, lanchonetes e em
presas de construção.
85
marcos. Chegando lá, trabalham de graça nas lavouras.
Para elesf no entanto, isso se chama “recolhimento” .)
EU: Tem alemão que vive em comunidade com vo
cês, eu sabe. Então por que não turco?
HOMEM: Não se trata de viver ou não em comunida
de. O problema é que temos um mestre espiritual: Bhag
wan. E isso que conta, o resto não importa. Você pode
viver sozinho e ter um trabalho lá fora e viajar, uma vez
por ano para Oregon, por exemplo. Os que vivem em co
munidade já passaram por um período de adaptação e fo
ram aprovados.
EU: Eu não tem trabalho, eu não tem lugar para mo
rar. Viver com outros bom. Gente não precisa muito di
nheiro.
HOMEM: Sei, sei. Mas aqui as coisas não são assim.
O fato de você não ter casa nem dinheiro não é motivo
para fazer parte da nossa comunidade. É preciso querer
estar com Bhagwan. Entenda que isso se dá em outro pla
no, diferente do que você diz. Eu quase ousaria dizer que
não estamos verdadeiramente prontos um para o outro.
O enterro
(ou: Livrando-se do corpo)
87*
perder tempo com perguntas do tipo: “ Será que não há
mesmo esperança?” Não quer demonstrar nenhuma es
pécie de compaixão e, portanto, vai direto ao assunto:
MULHER: Se o transporte for aéreo, o preço varia
conforme o peso. O caixão é colocado dentro de um Con
tainer e pesamos tudo junto. Por isso é que há variação
de preço, de acordo com o peso e o local para onde será
transportado...
EU: Vai para longe, lá em Turquia. Montanhas Kas-
gar, perto de fronteira com Rússia.
MULHER: Sei, mas o senhor precisa decidir se deseja
transporte aéreo ou rodoviário. Se for de avião, além de
levá-lo ao aeroporto de partida, precisaremos também pegá-
lo no aeroporto de chegada, senão o senhor fica por lá. E
se fizermos a viagem por terra, poderemos levá-lo direto
ao local do enterro... Qual é o seu plano de seguro social?
EU: Plano normal.
M ulher : Como ativo ou aposentado?
EU: Mais de ano eu está doente.
MULHER: O senhor continuou trabalhando depois
que adoeceu?
EU: Sim. Indústria de amianto. Sabe, eles não dava
máscara para gente e...
Mulher (interrompendo com impaciência): Isso não
vem ao caso agora. A questão é saber se o senhor quer
ser transportado de viatura ou de avião. Se for de avião,
vai depender do peso.
EU: Eu não é muito pesado. E médico falou que
quando eu morre, daqui dois meses, eu vai pesar que nem
criança. Todo dia eu emagrece pouquinho.
Mulher : Sei, sei. Mas a estatura continua a mesma,
não é? O preço para crianças é bem inferior porque o cai
xão é menor. Colocamos o caixão dentro de um Contai
ner, para que nem os passageiros nem o pessoal do aero
porto saibam que estão transportando um cadáver.
EU: E se eu não precisa caixão? Se eu queima?
Mulher : O senhor quer dizer se for cremado? Bom,
nesse caso a uma seria enviada pelo correio.
A
88 '
EU: E não custa muito dinheiro?
Mulher: Sai bem mais em conta, porque o transpor
te é eliminado. Se o senhor for cremado aqui, isso custará
uns 2 500 marcos, calculando tudo, menos as despesas do
serviço postal e as taxas de expedição...
EU: E se meu irmão me leva em saco plástico1?
Mulher : De jeito nenhum! Não entregamos isso as
sim. As cinzas devem ser levadas para o local do enterro
mediante solicitação feita por alguém de lá e aprovada aqui.
Só após a aprovação desse pedido a urna é liberada.
A mulher conhece muito bem seu serviço e leva a coisa
na palma da mão. Ela empurra a cadeira de rodas para junto
dos caixões. Quando lhe pergunto: “Qual mais bonito, va
so de cinza ou caixão grandão?” , ela se adapta com espan
tosa rapidez a meu desengonço lingüístico e tenta atrair meu
interesse para os caixões de transporte, mais dispendiosos.
— O senhor quer dizer uma urna ou um caixão? Bem,
já que me pergunta, um caixão. O senhor ficará mais sa
tisfeito. O caixão é outra coisa! Traga-o aqui! — diz para
meu acompanhante alemão e, curvando-se sobre mim, co
meça a tirar minhas medidas. Ouço o rangido da pesada
porta corrediça do depósito onde estocam os caixões e, de
uma sala ao lado, o barulho da serra da marcenaria. —
É melhor o senhor mesmo dar uma espiada em todos e
ver qual lhe agrada mais. Cada pessoa tem um gosto!
Isso me soa como se tivesse dito: “ Se quiser experi
mentar, pode deitar dentro deles para ver em qual se sen
te melhor” .
Ela bate levemente com o nó do dedo num caixão de
carvalho bem modesto e informa:
1 Esta pergunta está muito longe de ser tão absurda quanto parece. Na verda
de, foi-me inspirada por um acontecimento real, fora dos meios turcos. Recen
temente, um industrial de Colônia, com filiais nos Estados Unidos, multimilio
nário e católico fervoroso, passou pela alfândega trazendo numa sacola de plástico
as cinzas do irmão que morrera subitamente no exterior. Isso é, as cinzas esta-
vam numa urna barata, colocada dentro de uma dessas sacolas de free shop
(N. do A.).
— Este é o nosso modelo padrão. Claro que se o se
nhor desejar algo mais sólido, mais forte... O que acha
deste outro? — Sua voz adquire um tom mais suave e in-
sinuante, como se estivesse querendo me vender o leito nup
cial para o resto de minha vida. — Autêntico carvalho ale
mão. Maciço e resistente. No momento é o mais resisten
te que temos. Todo de carvalho maciço. E internamente
forrado de seda!
— Eu pode ver dentro?
Ela se mostra um pouco constrangida como se tives
se lhe pedido para experimentar a cama de casal bem no
meio da loja de móveis.
— Willi, venha me ajudar! — grita para o sócio e/ou
marido, que se encontra na sala ao lado.
Willi vem a seu encontro. Ele se dá ares de importem-
te, embora pareça um pouco constrangido.
— Trata-se de um traslado para a Turquia. Èsse se
nhor só tem dois meses de vida e quer ver o caixão por
dentro. — É assim que sou apresentado.
Os dois levantam a pesada tampa do caixão. Por den
tro, a madeira sem acabamento.
— E onde seda? — reclamo. — Senhora disse tudo
macio dentro.
Eles trocam um olhar igual ao de dois impostores apa
nhados com a boca na botija.
— Vamos forrá-lo, pode ficar tranqüilo — garante
Willi, com um ar sério. — Dou-lhe minha palavra.
— E quanto custa?
— Custa 4 795 marcos — ele responde, depois de con
sultar um catálogo.
Passo a mão de leve pelo caixão e dou uma pancadi
nha com o nó do dedo na madeira que ressoa.
— E dura bastante?
— Claro que sim! É um trabalho de marcenaria de
primeira qualidade. Leva uns cinco, seis anos para se de
sintegrar — tranqüiliza-me.
Mas ainda não encontrei um caixão que me agrade.
90*
Como em vida nunca me deram oportunidade de escolha,
agora que vou morrer quero ao menos poder optar.
— Não tem caixão menos triste... não parecido com
caixão? Coisa colorida, um pouco alegre. Entende? Eu
sempre morou em lugar escuro, úmido... Agora eu gosta
va caixão bonito...
Nova troca de olhares entre os dois, que logo deixam
de lado a consternação em nome do profissionalismo.
— Bem, colorido é um pouco difícil. Não é muito co
mum. Mas que tal este aqui? — pergunta Willi.
A mulher empurra a cadeira de rodas para perto de
uns caixões de mogno, envemizados e reluzentes. Cada um
mais medonho e kitsch que o outro.
EU: Plástico?
WILLI (com ímpeto): Mogno puro, autêntico. Um
dos modelos mais originais e valiosos que possuímos!
EU: E desenho?
WILLI: Como? Ah! O senhor quer dizer entalhe? Cla
ro! Que tal este modelo francês? Está em oferta. Custa
apenas 3 600 marcos. Antes, custava mais de 4 000.
EU: E veio mesmo França?
Willi: Veio! É um artigo francês legítimo.
Eu*. Qual mais bonito?
WILLI: Bem, é uma questão de gosto. Este aqui tem
um estilo bem diferente.
EU: E gente com dinheiro, alemão, que caixão leva?
WILLI: A maioria leva caixões alemães, de carvalho
ou coisas do gênero.
EU: E quem leva desse aí?
Willi: Esse tipo de caixão é mais usado em transpor
te para o exterior. Os franceses e os italianos costumam
comprar..
EU: E dura muito?
WiLLi: Muito! Mas, para a Turquia, é necessário ou
tro caixão, de zinco. Uma espécie de embalagem de zinco...
Eu.* Ah! Eu entende. Lata...
WlLLi: Hum... Soldamos um no outro, com o senhor
dentro, é claro! Caso contrário, não deixam passar pela
91’
fronteira. O serviço é feito aqui mesmo e só depois colo
camos a tampa de madeira.
EU: E quanto custa?
WlLLl: Vejamos... Com o reforço de zinco, mais a
solda... uns 6 000 marcos.
EU: E desconto?
Willl Bem, podemos conversar quanto ao preço.
Desde que o senhor já o encomende e pague adiantado,
podemos dar um desconto de 57o. O preço ficaria então
em 5 700 marcos. Mas só se o senhor pagar adiantado.
Eu (perplexo): Mas, e se eu não morre, depois tudo?
Eu recebe dinheiro de volta?
WlLLl: Não, não fazemos devolução da quantia. O se
nhor compreende, não? É um desconto especial que estamos
lhe dando. Mas... se bem entendi... o senhor tem mesmo cer
teza de... de só ter dois meses... (Gagueja. Não conseguepro
nunciar em minha frente a palavra morte.) E, além disso,
ainda precisamos saber para que local da Turquia devemos
enviar o caixão. Temos de calcular o preço do transporte.
EU: Fica bem alto, montanha em caminho para Rús
sia. País bonito, senhor não acha? Senhor passar férias
lá, com minha família. Não precisa pagar nada.
Ele não demonstra a menor emoção e não se comove
com minha oferta.
— De qualquer modo, não fazemos o transporte pes
soalmente. Contratamos um motorista e precisamos cal
cular... — Faz uma conta rápida de cabeça — ... Sim, 1,30
marco por quilômetro. Ida e volta, é claro! — Pergunta-
me onde fica Kasgar e, depois de fazer as contas, chega
à quantia de aproximadamente 10 mil marcos só para o
transporte de automóvel.
— Mas se eu vai para lá agora, vivo, então mais ba
rato, não?
Ele fica desconcertado.
— Isso não é da nossa alçada! — suspira. — Só po
demos assumir nosso serviço com o atestado de óbito as
sinado por um médico. E, caso o senhor deseje ser crema
do, precisaremos também de uma autorização judicial.
92*
— Ah! Tanto faz! Se gente morre, está morto mes
mo! — Em seguida aponto para uma uma muito bonita
e elegante, exposta ali perto, bem diferente daqueles po
tes horríveis onde se colocam as cinzas. — E aquele? Eu
não pode ficar dentro, depois queimado?
— Não, pelo amor de Deus! É impossível! É uma pe
ça de cerâmica, só para exposição. Não está à venda. É
um objeto antigo.
Já entendi tudo. Enquanto meu acompanhante me le
va embora, tenho certeza de que a loja bate um fio para
a previdência social e discretamente tenta se informar so
bre a indenização do seguro por morte. Para só depois ver
se daria pé...
Atolado na lama
(ou: “Longe de casa e fora da lei”)
'94-v
gens: não enfrenta muitos obstáculos na contratação e, me
nos ainda, na demissão; e gasta bem menos com a aquisi
ção desses novos trabalhadores, quase sempre mais dóceis.
Desde: 1974, cerca de dezessete mil trabalhadores efetivos
foram dispensados e muitos deles passaram a fazer parte
do quadro de pessoal das empreiteiras. Só em Duisburg,
a Thyssen mantém contrato com quatrocentas empresas
desse tipo.
Faço amizade com um operário turco de 27 anos, en
caminhado para a empreiteira Adler pela agência oficial
de empregos. Descubro que a Adler “vende** os operá
rios para a empresa Remmert, a qual, por sua vez, repassa-
os para a ATH. Esse meu amigo turco descreve as condi
ções de trabalho e os métodos de exploração — coisas in
críveis para quem não as presenciou nem dispõe de pro
vas concretas. Sua descrição nos faz voltar à época mais
sombria do capitalismo selvagem. Mas por que vaguear
no tempo? O horror está bem aqui!
Levantar às três da madrugada, para estar às cinco
no local indicado pela Remmert: a saída da rodovia Ober-
tiausen — Buschhausen. A Remmert é uma empresa em
expansão. Em seu letreiro está escrito em verde: PRESTA
ÇÃO De Ser v iç o s . Ou seja, a Remmert elimina sujeira de
toda espécie. Quantidades grandes ou pequenas de pó, la
ma e dejetos tóxicos, óleos fétidos e pútridos, graxa, lim
peza de filtros na Thyssen, na Mannesmann, na Man, on
de quer que seja. Só o estacionamento da Remmert está
avaliado em 7 milhões de marcos. A Adler está integrada
à Remmert como aquelas bonecas russas: uma dentro da
outra. A Adler nos vende à Remmert, que nos aluga para
a Thyssen. Os dois sócios na negociata dividem o grosso
do dinheiro pago pela Thyssen. Conforme a tarefa, a quan
tidade de pó e sujeira ou a periculosidade, o preço varia
entre 35 e 80 marcos por hora e por pessoa. A Adler paga
uma esmola de 5 a 10 marcos àqueles que se matam de
trabalhar para ela.
Muitas vezes o pessoal da Remmert e da Adler é em
pregado para atuar na produção; na coqueria, por exem-
'95*
pio, onde trabalham junto com os operários da Thyssen.
Além do mais, a Remmert também fornece pessoal de lim
peza e manutenção. Há mais de seiscentas faxineiras da
Remmert trabalhando nas grandes indústrias em diferen
tes cidades da República Federal da Alemau£ra>~
Ao lado de um velho e enferrujado microônibus pres
tes a partir está parado o encarregado que anota numa lista
os nomes dos trabalhadores.
— Novo? — pergunta-me secamente.
— Sim — respondo.
— Nunca trabalhou aqui? — Não sabendo que res
posta poderia influir positivamente na contratação, resolvo
encolher os ombros; ele tenta me ajudar: — Não enten
deu o que eu perguntei?
— Novo — respondo, repetindo sua primeira palavra.
— Vá se juntar aos colegas — diz, apontando para
o microônibus.
Só isso. Do modo mais simples sou contratado para
trabalhar numa das mais modernas indústrias metalúrgi
cas da Europa. Ninguém me pede documentos ou pergunta
qual é meu nome. Tampouco minha nacionalidade pare
ce despertar algum tipo de interesse nas pessoas que tra
balham nessa empresa de fama mundial — pelo menos,
até o presente momento. Por enquanto, tudo vai muito
bem.
Nove estrangeiros e dois alemães amontoam-se no mi
croônibus. Os alemães estão instalados no único banco do
veículo. Já os estrangeiros estão sentados no chão de me
tal, gelado e sujo de óleo; afastam-se para dar-me lugar.
Um rapaz de uns vinte anos de idade pergunta-me em tur
co se sou seu conterrâneo. Respondo em alemão: “Nacio
nalidade turca” . Explico-lhe que minha mãe era grega e
que fui criado na Grécia, no Pireu. “ Meu pai era turco.
Abandonou minha mãe quando eu tinha um ano.”
E assim justifico meu conhecimento praticamente nulo
da língua turca. Engolem minha história, que resistirá na
Thyssen durante os próximos seis meses. Caso resolvam
96 ‘
me perguntar sobre o local onde passei a infância, acho
que não terei problema. Posso falar um pouco do Pireu
porque em 1974, durante a ditadura militar fascista, esti
ve preso lá por dois meses e meio.1 Só uma vez me vi em
dificuldade: alguns colegas turcos quiseram a todo custo
ouvir o som da língua grega. O que me ajudou foi um da
queles meus delírios na época de estudante, quando, em
vez da língua francesa, preferi estudar grego clássico. Até
hoje sei de cor trechos de A Odisséia: “Ândra moi énepè
moúsa...” (“Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso
que muito peregrinou...” ). Ninguém desconfiou de nada,
embora o grego clássico esteja tão longe do moderno quan
to o alemão antigo do contemporâneo.
Lotado, batendo os pinos e chacoalhando inteiro, o
ônibus se põe em movimento. A cada curva, o banco, que
está solto, choca-se contra os imigrantes sentados no chão.
O aquecimento não funciona. A porta traseira não fecha
e alguém a prendeu com um arame; se uma freada brusca
jogar alguém para o fundo, a porta poderá ceder e a pes
soa irá parar no meio da rua. Depois de quinze minutos,
a assombrosa viagem chega ao fim. Sacudidos e enregela-
dos, finalmente estamos diante do portão 20 da Thyssen.
O encarregado entrega-me um cartão de ponto; um dos
homens da segurança me dá um passe de ingresso e fica
escandalizado ao ouvir meu nome.
— Mas isso não é nome, é doença!
Sou obrigado a soletrar várias vezes:
— S-i-g-i-r-l-i-o-g-l-u.
Ainda assim, ele erra e escreve “ Sinnlokus” 2. E na
coluna reservada ao primeiro nome. Como sobrenome,
transcreve meu segundo prenome: Levent.
Como é que alguém pode ter um nome desses?! —
resmunga, furioso. Parece ignorar que seu próprio nome
1 Em 1974 Giinter Wallraff foi preso em Atenas por distribuir panfletos con
tra a ditadura; torturado e condenado a longa pena de prisão, foi libertado após
a queda dos coronéis (N. do E.).
2 Em alemão Sinn significa “ sentido” e Lokus, “latrina” (N. do T.).
(Symanowski ou algo parecido) também é estranho para
um turco e sugere certa ascendência polonesa.
Os operários poloneses, chamados para a região do
Ruhr no século passado, também sofreram segregação logo
no início da imigração e foram obrigados a viver em gue
tos, exatamente como acontece agora com os turcos. Ha
via cidades, na região do Ruhr, em que mais da metade
dos habitantes eram poloneses que conservaram sua lín
gua e sua cultura.
Tenho um pouco de dificuldade para bater o ponto,
o que faz com que um operário alemão se atrase alguns
segundos. “ Lá na sua terra, na África, vocês devem bater
o ponto com a cabeça!*’, diz ele.
Mehmet, um operário turco, ensina-me a introdu
zir o cartão no relógio. Percebo que a observação do ope
rário alemão também atinge os outros imigrantes. Vejo
isso nos olhares envergonhados e resignados. Mas nenhum
deles ousa retrucar. Freqüentemente fingem não ouvir
os insultos e procuram afastar-se dos alemães. Temem
que esse tipo de provocação acabe em pancadaria. A ex
periência tem mostrado que a culpa sempre recai sobre
os imigrantes, o que é um bom pretexto para serem demi
tidos. Por isso preferem ficar calados e agüentar as injus
tiças dia após dia, afastando-se para não dar margem a
provocações.
O ônibus prossegue seu percurso por dentro do par
que industrial. Depois de alguns minutos de sacolejos, de
sembarcamos perto de um barracão que serve como pon
to de encontro. É aqui que, com chuva, neve ou frio, de
veremos esperar, todos os dias, a chegada do “xerife** com
seu Mercedes. O “ xerife** é o supervisor-chefe, tipo gros
seiro e atarracado que não se digna a levantar uma palha.
Sua tarefa consiste exclusivamente em dividir o pessoal em
grupos, distribuir os serviços e cuidar para que todos tra
balhem. Chama-se Zentel e deve ter entre 30 e 35 anos.
Faz parte do quadro de pessoal da Remmert. De vez em
quando é convidado para as festas de Adler. Aliás, dizem
que Zentel é dedo-duro e confidente de Adler.
98 '
Já passa um pouco das seis. Os operários do turno
anterior partem nos veículos da Remmert. Duros de frio,
ficamos na escuridão. O barraco não passa de um depósi
to de ferramentas, onde são guardados carrinhos de mão,
pás, picaretas, aparelhos de ar comprimido e bombas de
sucção. Não há espaço para nós.
Ao redor, um barulho inconstante, proveniente das
oficinas vizinhas: estrondos, rugidos e silvos estridentes.
O céu é um tremular de nuvens avermelhadas; não se con
segue vê-lo daqui. No alto das chaminés, cintila uma luz
azulada. Uma cidade industrial de fumaça e fuligem que
se estende até o horizonte, até as zonas residenciais vizi
nhas. São vinte quilômetros de comprimento e quase oito
de largura.
Percebo certa agitação entre os trabalhadores. O “xe
rife” (que lembra muito um mercenário, com sua roupa
cáqui) abaixa ligeiramente o vidro do carro e começa a fazer
a chamada. Todos os dias modifica a composição dos gru
pos. Está sempre colocando ou tirando pessoas, impedin
do, assim, que os grupos se tomem coesos. E isso faz com
que surjam rivalidades e conflitos dentro deles. Não sei
dizer se seu método resulta de arbitrariedade, negligência
ou calculismo. Só sei que, numa equipe em que as pessoas
têm pouco contato, o espírito de concorrência, a descon
fiança e o temor pairam acima de qualquer comportamento
solidário.
Ouço chamar meu nome. Alguém me puxa com for
ça pela orelha. É o encarregado, que desse modo tenta in
dicar o grupo ao qual devo me reunir. Sorri ironicamente
para mostrar que não está irritado. Somos tratados como
animais domésticos; ou melhor: como burros de carga.
Desembarcamos numa torre de extração e subimos al
guns andares na penumbra, munidos de pás, picaretas, car
rinhos de mão e aparelhos de ar comprimido. Nossa tare
fa: retirar as placas de terra que se formam sob as esteiras
rolantes. Venta muito e a temperatura deve estar a uns dez
graus abaixo de zero. Decidimos por conta própria traba
lhar bem depressa para não sentir tanto frio. Uma hora
99 :
depois, quando o encarregado se afasta (como pouco tra
balha, padece muito mais com o frio), resolvemos fazer
uma pequena fogueira para nos aquecer. Falar é fácil...
Ao redor elevam-se as chamas da fundição; o metal em
fusão espalha-se automaticamente nos vagões gigantescos,
que parecem transportar bombas poderosíssimas. É como
lava incandescente, correndo em pequenos canais. Ouvi
mos o borbulhar do metal dentro de cubas altas como uma
casa de vários andares. Mas ali na torre de extração preci
samos de muito esforço e imaginação para fazer um sim
ples foguinho. Tiramos pedaços de coque das esteiras ro
lantes, encontramos algumas tábuas — que os outros co
legas usavam como assento durante o horário de descan
so — e as despedaçamos com as perfuratrizes. Ainda fal
ta papel. Acabamos achando uns maços de cigarro vazios
e uns lenços de papel sujos de ranho. Com o auxílio do
aparelho de ar comprimido, aos poucos avivamos a brasa
que fizemos dentro de um dos carrinhos de mão. Porém
não temos tempo para desfrutar o calor. O encarregado
aparece e ordena: “Todos para baixo! Tragam as ferra
mentas. E rapidinho!” Tentamos salvar nosso fogo, mas
não conseguimos empurrar o carrinho de mão, pois havia
esquentado demais. Passo a entender a dificuldade dos ho
mens da Idade da Pedra em manter o fogo aceso — seu
bem mais precioso e sagrado.
E lá vamos nós, de volta ao velho ônibus. Agacha-
dos e amontoados, sacolejamos na escuridão, por vezes
traspassada pelos clarões pálidos das oficinas. Desembar
camos em Schwelgem, no setor de trituração do coque,
do outro lado do parque industrial. Descemos vários an
dares nas profundezas da terra; a luz infiltra-se cada vez
mais fraca. O ar toma-se mais carregado de pó, mais in
suportável. Isso, no entanto, é só o começo. Entregam-
nos uma pistola de ar comprimido para retirarmos a poeira
que se acumula em grossas camadas nos vãos das máqui
nas. Todo aquele pó eleva-se no ar em segundos e em tal
quantidade que não conseguimos enxergar nossas próprias
mãos; entra-nos pelas narinas e pela boca asfixiando-nos.
100^
Cada inspiração é um martírio. E não há como evitar, não
conseguimos prender a respiração por muito tempo. O tra
balho precisa ser feito. O encarregado fica parado no alto
da escada, onde sopra um pouco de ar fresco. Como um
policial vigiando prisioneiros, grita: “Mais rápido! Se tra
balharem mais depressa, podem terminar o serviço em duas
ou três horas e sair para respirar bastante” .
Três horas! Mais de três mil inspirações, e os pulmões
estarão inteiramente cheios de pó de coque. Como se não
bastasse, ainda há as emanações do gás de coque, que pro
voca tontura. Pergunto pelas máscaras de proteção, e Meh
met explica: “ Eles não dão máscara para a gente, porque
acham que o trabalho ia ser mais lento e também porque
o chefe diz que não tem dinheiro para essas coisas!” Mes
mo os operários que trabalham aqui há mais tempo de
monstram um pouco de medo desse serviço. Helmut, um
alemão de trinta anos que aparenta cinqüenta, faz o se
guinte relato: “ Há um ano atrás, seis colegas morreram
por causa das emanações de gás na área do alto-fomo.
Quando começaram a sentir o cheiro, entraram em pâni
co e, em vez de descerem, subiram. Foi onde erraram, por
que o gás também sobe. Um grande amigo meu trabalha
va naquela equipe. Ele conseguiu se salvar porque, um dia
antes, tinha tomado um porre tão grande que não conse
guiu sair da cama para ir trabalhar” .
Enquanto retiramos a poeira com as pás e a jogamos
dentro de sacos plásticos, no meio de toda uma nuvem,
os montadores da Thyssen, que trabalham alguns metros
abaixo de nós, passam correndo em direção ao ar livre.
Um deles chega a gritar: “ Vocês são burros! Como é que
alguém consègue trabalhar no meio de tanta sujeira?” Meia
hora depois, um encarregado da segurança honra-nos com
sua visita. Tapando o nariz: “Os operários estão reclaman
do. Dizem que não podem trabalhar com toda essa imun-
dície que vocês estão fazendo. Andem logo com isso!” E
retira-se rapidamente. Trabalhamos até quase o final do
turno. A última hora é reservada ao transporte dos sacos
plásticos cheios de pó. Com eles nas costas, subimos a es-
\
\
102'
• “Alguns jovens estrangeiros julgam-se no direito
de usar a Casa da Juventude só porque os pais ou
um parente qualquer recolhem impostos na Alema
nha; isso só é verdade se os jovens estão integra
dos em nossos hábitos e costumes — e apenas sob
essa condição!”
Na Thyssen não há tais‘‘regras de conduta* *, embora
muitos operários alemães insistam em impô-las aos cole
gas turcos, que em geral se submetem para não “provocar**.
No dia seguinte, vamos trabalhar numa altura de dez
metros, em campo aberto, com temperatura de dezessete
graus abaixo de zero. Por toda parte, tabuletas com ca
veiras desenhadas e as inscrições: P roibida a E ntrada
de P essoas Não-Autorizadas, Cuidado : Emanações
DE GÁS!, e, em certos locais: OBRIGATÓRIO o USO DE
Máscaras de P roteção .
Ninguém tinha nos prevenido sobre qualquer tipo de
perigo e também não havia nenhuma “ máscara de prote
ção**. Nem mesmo sabíamos se fazíamos parte das “ pes
soas autorizadas** ou das “ não-autorizadas**.
Sobre as plataformas metálicas, nossa “tropa de cho
que** é obrigada a retirar, com pás e picaretas, montes
de lama semicongelada que transbordam de canos gigan
tescos.
Nesta altura o vento é glacial; temos as orelhas gela-:
das e os dedos completamente entorpecidos, apesar das lu
vas de trabalho. Os próprios operários da Thyssen não são
obrigados a trabalhar aqui fora sob tal temperatura; e o
pessoal dos canteiros de obras recebe pagamento extra de
vido ao mau tempo. Mas para nós nada! Atacamos a la
ma com as picaretas, e pequenas lascas nos batem em cheio
no rosto. Deveríamos estar usando óculos de proteção, mas
quem se atreveria a pedi-los? Uma fumaça compacta eleva-
se de tanta imundície e nos sufoca, por vezes nos cega.
Transportamos a lama nos carrinhos até as calhas. As pás
vergam continuamente sob o peso do lixo e até os carri
nhos de mão precisam ser desentortados a golpes de pás
e picaretas. Mal conseguimos ouvir o som da própria voz
103 *
devido ao barulho infernal proveniente das salas das má
quinas, situadas nas proximidades. Não há necessidade de
vigilância aqui em cima. O encarregado é o primeiro a de
saparecer; com certeza está abrigado em alguma cantina.
Trabalhamos num ritmo louco, porque, se pararmos, não
agüentaremos o frio. De vez em quando, alguém do gru
po vai se refugiar numa pequena sala de máquinas. O ba
rulho lá dentro é ensurdecedor, como se estivéssemos no
meio das cataratas do Niágara. Mas as máquinas pelo me
nos são quentes. Nós nos apertamos contra elas,
abraçando-as, para receber um pouco de calor. Corremos
algum risco, pois há uma biela que gira permanentemente
e, a menor falta de atenção, pode decepar um dedo. As
sim que encosto num lugar impróprio, a máquina põe-se
a estalar, a chiar de modo inquietante, a soltar faíscas co
mo se fosse explodir no instante seguinte.
Depois, voltamos para nosso trabalho forçado, ba
tendo o queixo, roxos de frio. Ao cabo de seis horas, Jus-
suf, um operário tunisiano, dá a palavra final: “ Inferno
de gelo, isto aqui!’*E completa: “Antigamente os escra
vos eram mais bem tratados. Tinham mais valor que nós.
O pessoal cuidava para que durassem muito tempo. Com
a gente não. Tanto faz se a gente se arrebenta ou não. Tem
um montão de homens lá fora querendo nosso lugar*’.
Um engenheiro de segurança da Thyssen está passando
por ali. Anda de um lado para o outro, ao redor dos ca
nos, com um aparelho na mão. Bate no mostrador do apa
relho e murmura:
— Não é possível! — Em seguida, olha para nós, as
sustado.
Aproximo-me e pergunto:
— Que caixinha essa? Que tem dentro?
— E um aparelho para medir o gás. Vocês não têm
um? Então não deviam estar trabalhando nesta área.
Começa a explicar como funciona o aparelho: quan
do o ponteiro ultrapassa uma determinada marca, é sinal
de perigo iminente; deve-se abandonar a área o mais rápi
do possível, caso contrário pode-se até desmaiar. Enquanto
104*
fala, percebo que o ponteiro de seu aparelho se mantém
exatamente além da marca; chamo-lhe a atenção para is
so, mas ele me garante que o aparelho está com defeito,
pois não é possível o ponteiro registrar essa marca. Vai
buscar outro e meia hora depois está de volta. E mais uma
vez o ponteiro insiste em ultrapassar a marca permitida.
Irritado, dá uns tapas na caixinha, enquanto diz:
— Não pode ser! Esta droga está com o mesmo
defeito.
— Está? — pergunto, olhando-o com um ar des
confiado.
E ele me tranqüiliza:
— Tudo bem! Mesmo que o aparelho estivesse fun
cionando bem, não haveria motivo para pânico. O vento
empurra o gás para longe. — Dito isso, vai embora, car
regando sua caixinha mágica embaixo do braço. Quanto
a nós, ficamos ali, consolando-nos com o vento glacial que
nos protegerá das emanações de gás..
Semanas depois, no mesmo local, Helveli Raci, um
dos trabalhadores turcos, participa de um episódio seme
lhante: “A gente também tinha um aparelho desses. De
repente, ele começou a apitar. Perguntei o que queria di
zer todo aquele barulho, e me disseram que quando o apa
relho começa a apitar é porque está escapando gás. Daí
eu disse que o aparelho estava apitando, e isso queria di
zer gás; por que a gente não saía dali? O chefe disse que
era para continuar trabalhando. E a gente continuou. Daí
o chefe foi embora com o aparelho. Tempos depois, ele
voltou, trazendo o tal aparelho., que logo começou a api
tar de novo. Daí eu disse que alguma coisa estava errada,
mas ele falou que o aparelho devia estar com defeito. E
foi embora de novo. Depois voltou e tentou fazer o apa
relho parar de apitar. Mas o aparelho não parava. Ficava
apitando e acendia umas luzes. E isso durou o turno to
do. Alguns colegas começaram a passar mal, mas a gente
foi obrigado a continuar trabalhando. E nem deram más
cara de proteção para nós. É assim. A gente, que é de em
preiteira, fica ali, trabalhando e respirando tudo aquilo,
tranqüilamente, até se arrebentar. Eles não querem saber
de nada, só que a gente faça o serviço".
O regulamento da Thyssen exige que usemos sapatos
com biqueiras de aço e capacetes de proteção. A legisla
ção determina que ambos, além das luvas de trabalho, se
jam fornecidos por Adler, que, no entanto, trapaceia em
tudo, nas coisas grandes como nas pequenas. Vive “ eco
nomizando**. Não é à toa que seu ditado preferido é: “ De
grão em grão a galinha enche o papo” . Quando o pessoal
escasseia, os encarregados e supervisores da Thyssen fa
zem vista grossa e não se importam que os operários en
viados por Adler trabalhem de tênis. Estamos sujeitos a
todos os tipos de perigo: detritos que caem sobre nós, car
rinhos de mão sobrecarregados, empilhadeiras que circu
lam por toda a parte. Durante o tempo em que trabalhei
na TTiyssen, nunca usei sapatos de proteção, como deter
minam as normas de segurança. E muitos outros operá
rios tampouco usaram. Foi muita sorte eu não ter sofrido
nenhum acidente.
Conseguimos luvas de trabalho fuçando nos tambo
res de lixo. Em geral estão sujas de óleo e rasgadas. Per
tencem aos operários da Thyssen que as jogam fora tão
logo recebem luvas novas.
Quanto aos capacetes, devemos comprá-los. A não
ser que um de nós tenha a sorte de encontrar um capacete
velho, todo estragado. As cabeças dos operários alemães
são mais valiosas e merecem mais proteção que as cabe
ças dos imigrantes. Por duas vezes, o “xerife** Zentel ar
rancou meu capacete para dá-lo a um alemão que havia
esquecido o seu. Na primeira vez protestei:
— Ei, momento. Capacete meu! Eu comprou!
Mas Zentel logo me fez ver qual era o meu lugar:
— Nada aqui é seu. Quando muito aquele monte de
lixo! No fim do turno você vai receber o capacete de volta.
É assim: expropriam-nos sem consulta prévia.
Na segunda vez, fui escalado para trabalhar com um
alemão que estava sem seu capacete, dado de graça pela
Remmert. E novamente tive de oferecer minha cabeça.
106 v
Thyssen informa
O arupo Thvssen teve um dólar contribuiu também para últimos anos consolidam a
bom desempenho no exercício um aumento considerável no rentabilidade. A Indústria
1984/85. O s fatores de preço das matérias-primas. As Thyssen prevê um saldo
expansão e crescimento transações cresceram 11% no positivo para o exercfcio
mantiveram-se essencialmente primeiro semestre.Os aços 1984/85. Na Budd. a maior
nos mesmos patamares do ano Thyssen deverão ter parte das empresas continua
anterior. O s setores novamente um saldo positivo em plena atividade e os
retardatários puderam no exercício 1984/85. resultados serão nitidamente
recuperar-se. As transações da Atualmente, todas as positivos. A direção do setor de
Thyssen-Weft no exterior empresas de Acos Especiais ferrovias americanas agora está
cresceram 6 % no primeiro Thvssen estão com suas com a Transit America Inc. Os
semestre. Todos os ramos de atividades em nfvel normal ou encargos provenientes dos
atividade da empresa tiveram melhor. Até o momento, as antigos contratos deficitários já
saldo positivo. Os resultados transações cresceram 8%. Os foram levados em consideração
obtidos pelo grupo no primeiro aumentos consideráveis, no balanço do último ano. As
semestre são previstos para as ligas de metal Pedreiras do Reno mantêm os
comparativamente bem cotadas em dólares, deverão resultados positivos.
melhores que os do mesmo ser suportados. No geral, Aços O setor Comércio e
semestre do ano anterior. Por Especiais Thyssen esperam ter Prestações de Serviço iá há
ocasião da última reunião novamente resultados positivos alguns anos tem ampliado
administrativa, Thyssen no exercício 1984/85. consideravelmente seus
anunciou a renovação do No âmbito dos bens de negócios com o exterior. No
pagamento de um dividendo investimento e de manufatura. primeiro semestre, as
para o corrente ano. foi registrado no primeiro transações tiveram um
Na siderurgia a produção semestre um acréscimo global aumento de 6%.
estabilizou-se no nfvel de transações da ordem de
alcançado no ano anterior. Os ' 7%. Na Indústria Thvssen o
preços puderam restabelecer- volume de encomendas está
se paulatinamente nos últimos em forte expansão. Isso e mais
meses, porque a elevação do os ajustes de programa dos
108*
mente, a Remmert não paga adicional de insalubridade,
ainda que seus empregados trabalhem a maior parte do
tempo manipulando todos os tipos de gordura imunda e
de óleo usado e fétido e ainda engulam todo aquele pó de
mineração.)
Nós, os empregados da Adler, fazemos o mesmo ser
viço por um salário bem menor — muito menor, diga-se
de passagem.
109*
Apesar de tudo, é em Bruckhausen que eu quero me
instalar. Aqui ainda não estou completamente só. Quem
sabe, num dia de verão, eu dê uma festa para os vizinhos
e amigos no pequeno jardim que passei a conservar...
“ É ama emergência!
Í10 *
mana passam o tempo todo dormindo, como mortos. Pe
guemos o jovem F. como exemplo: quase todos os sába
dos e domingos faz dois turnos seguidos. Nunca se revol
ta e nunca se queixa. Está sempre metido nos buracos mais
imundos, esgaravatando camadas de graxa fétida e quen
te, raspando a ferrugem das máquinas — sempre sujo, dos
pés à cabeça. Tem sempre um ar um pouco ausente, e o
rosto, envelhecido, parece guardar certa luz. Pouquíssi
mas vezes consegue formular uma frase coerente. É o mais
velho de uma família de doze filhos, dos quais quatro não
moram mais com os pais num apartamento de cem me
tros quadrados. Está sempre com fome. Se alguém deixar
de comer o lanche, lá está ele! Contribui mensalmente com
100 marcos para ajudar a equilibrar o orçamento do
méstico.
Quando algum colega se queixa do serviço, F. pro
testa: “A gente deve ficar feliz por ter um emprego!” Ou
então costuma dizer: “Eu faço qualquer trabalho” . Cer
ta vez, um vigia da Thyssen nos pegou parados num in
tervalo de descanso que fizemos por conta própria; F. era
o único que continuava trabalhando, e seu exemplo foi lou
vado pelo vigia.
Ele conta que seu recorde de trabalho contínuo é de
quarenta horas, com cinco ou seis de descanso. Há pou
cas semanas chegou a trabalhar 24 horas seguidas. Vive
remexendo no lixo à procura de luvas que os operários da
Thyssen usam e jogam fora. Recolhe inclusive as que não
têm par. Mais cedo ou mais tarde encontrará a que está
faltando. Já deve ter umas vinte. Intrigado, resolvo per
guntar:
— Mas que você faz com elas? Não pode usar tudo
junto.
— Nunca se sabe — responde-me. — A gente não re
cebe luva. Por isso é bom sempre ter algumas. Você nem
imagina quantas coisas eu já tenho. Também é bom ter
muitos capacetes, porque sempre alguma coisa cai na ca
beça da gente.
Sinto pena dele. Está sempre radiante... Algumas se
111 *
manas depois, ao ser novamente escalado para um turno
extra no fim de semana, vejo-o suplicar ao “xerife” :
— Não posso mais! Não posso, não consigo!
— O quê! Você sempre agüentou.
— Mas hoje não, por favor! Hoje não!
— Vou me lembrar disso — diz o “xerife” . — Eu
sempre pude contar com você.
Dou os parabéns a F.:
— Ainda bem você recusou. Você se mata trabalhar.
Na verdade, ele não conseguiria mesmo. Mal podia
ficar em pé. Estava pálido como um cadáver, e suas mãos
tremiam sem parar.
Um colega conta que, no ano passado, durante os fe
riados da Páscoa, trabalharam 36 horas ininterruptas: “A
Remmert ficou encarregada de limpar a linha de monta
gem de pintura da Opel em Bochum. O trabalho devia es
tar pronto antes que a equipe de pintores voltasse para ò
serviço, ou seja, na terça-feira depois da Páscoa, às seis
horas” . Mas essa maratona na fábrica de automóveis não
foi o “ponto culminante” para os operários. “Há dois anos
a gente foi trabalhar na construção de um centro esporti
vo perto de Frankfurt. Junto com outra equipe, que já es
tava lá, trabalhamos cinqüenta horas seguidas, até cair de
cansaço.”
Hermann T., operário alemão de aproximadamente
35 anos, é um dos mais obstinados “recordistas de horas”
da Remmert. E isso está estampado em seu rosto pálido,
cinzento, magérrimo e acabado. Ficou algum tempo de
sempregado e, como poucos, está muito grato por poder
trabalhar até cair. Entrou na Remmert em fevereiro de 1985
e de lá para cá trabalha como um possesso. Ele mesmo
declara: em abril de 1985, pela primeira vez, trabalhou 350
horas no mês. A mesma coisa em junho, quando “ acu
mulou todas as horas” e já havia completado trezentas ho
ras no dia 25, “antes mesmo do fim do mês” . Prossegue
em seu relato: “Na semana passada, trabalhei quatro tur
nos seguidos, sexta e sábado. Cheguei junto com vocês na
Thyssen, às seis da manhã, e só fui sair no sábado, às duas
112 -
e quinze, quando bati o ponto” . Para Hermann, esse ti
po de maratona nada tem de excepcional. É claro que cons
titui uma infração flagrante à legislação do tempo de tra
balho, mas, para não dar na vista, a cada turno Hermann
é escalado para um lugar diferente dentro do imenso par
que industrial da Thyssen. “ Sexta-feira de manhã eu es
tava em Ruhrort, limpando uma oficina. Ao meio-dia, já
estava na Oxy I. À noite, fui para a central elétrica de Voer-
de e no sábado de manhã já estava de volta a Ruhrort.”
Em frangalhos, com as pernas bambas, foi se arrastando
para casa. “ Comi alguma coisa, mas na verdade não ti
nha um pingo de fome. Antes de me atirar na cama, ain
da pedi para minha mulher me acordar às oito e quinze
da noite, porque eu queria ver o filme que ia passar na
televisão. Que ilusão! Cai na cama e só fui acordar ao meio-
dia de domingo!”
Hermann conta como as coisas funcionavam na
Thyssen: “ Trabalhos de dezesseis, doze, treze horas num
único dia — todos os sábados, todos os domingos, todos
os feriados — sem parar. Páscoa, Pentecostes, não impor
ta. Lá estávamos nós. Muita coisa precisava ser feita. Ha
viam desligado o alto-forno para ser totalmente limpo. Já
imaginou? Trabalhamos como escravos, debaixo de chu
va, vento, neve, frio — não importa. Os uniformes fica
vam ensopados. Uma equipe de dez a quinze trabalhado
res da Remmert, mais o pessoal da Adler. No total, tra
balhamos ali quase cinco meses” .
Sezer O. (44 anos), operário turco, afirma deter o re
corde de permanência no mesmo serviço. Foi durante a
construção do metrô de Munique, quando a equipe da qual
participava trabalhou 72 horas num poço subterrâneo. Os
operários aproveitavam os intervalos de trinta minutos para
dormir. Sezer conta que, nessa maratona, muitos se aci
dentaram. Todos eram imigrantes.
É bastante comum o “xerife” nos obrigar a fazer tur
no dobrado (coação é o termo jurídico para isso). Esgo
tados dentro do ônibus, prontos para voltar para casa, al
guns até já dormindo nos assentos, chega o “ xerife” e,
113*
com a maior naturalidade, diz: “ O trabalho não pode ser
interrompido agora. Vamos ter que fazer turno dobrado” .
Alguns protestam, querem ir embora, estão exaustos. Mas
a Thyssen exige que continuemos trabalhando.
T., um operário argelino, precisa impreterivelmente
ir para casa. E demitido na hora. Retiram-no do ônibus
e o abandonam no meio da rua, para que saiba exatamente
qual é seu lugar. Eis o diálogo que precedeu sua demissão:
XERIFE: Vocês têm que continuar trabalhando até as
dez da noite.
Operário Argelino .*Puta que pariu! Eu não sou
robô!
XERIFE: Todos vocês!
Operário Argelino : Mas eu preciso ir para casa
sem falta!
XERIFE: Acontece que é uma emergência. Se você for
para casa não precisa voltar.
Operário Argelino : Mas eu preciso ir...
XERIFE: Então vá! Mas não volte! Chega! Acabou!
Rua! Não quero mais saber. Pode ir embora! (Voltando-
se para os outros, que estão calados e com medo). Preci
so de quarenta homens para amanhã também. Ordens da
Thyssen! Acham que eu também não gostaria de ter uma
noite de descanso? Mas isso ninguém me pergunta, não
é? Hoje à tarde eu deveria ter ido ao dentista, por caiisa
da minha jaqueta, mas não pude. E daí? Então, o que é
que vocês pensam? Queria ver se fosse na guerra... Aí, sim,
seria mil vezes pior.
114“
A aparência oriental de Jussuf faz com que o jovem
supervisor volte a se lembrar das últimas férias:
— Você é da Tunísia?
— Sou — Jussuf responde.
— Que país fantástico! Vamos voltar lá, nas próxi
mas férias, müiha mulher e eu. Lá, sim, a gente pode des
cansar de verdade. E as coisas são bem mais baratas.
Surpreso, Jussuf sorri agradecido. É tão raro ver um
superior, e ainda por cima alemão, conversar com um imi
grante sobre assuntos que não dizem respeito ao trabalho!
E, mais raro ainda, ouvi-lo falar bem do país do outro.
Jussuf conta que seus pais moram perto da praia e dá-lhe
o endereço, convidando-o a visitá-los quando estiver na
Tunísia. O supervisor aceita de imediato:
— Pode estar certo que eu vou! Mas o que eu queria
mesmo é que você me arranjasse outros endereços. Sabe
o que estou querendo dizer, não? As mulheres do seu país
são muito gostosas e trepam como ninguém. É uma ma
ravilha! Quanto elas estão cobrando agora?
— Não sei — responde Jussuf.
— Com 20 marcos a gente tem tudo que quer no seu país!
Ferido em sua honra, Jussuf ainda responde:
— Não sei!
Mas o supervisor insiste, enfiando o polegar da mão
esquerda entre o indicador e o médio da direita:
— As mulheres de lá estão sempre muito excitadas.
Como gatas selvagens. É só puxar o véu, pronto, ficam
logo no cio. Você não tem uma irmã, por acaso? Ou será
que ela ainda é muito criança? Vocês casam tão cedo...
* Jussuf tenta disfarçar a humilhação diante dos colegas.
— Mas o senhor não vai viajar com a sua mulher?
— Isso não tem a menor importância. Ela fica o dia
inteiro na praia e não vê coisa nenhuma. Aliás, é um ho
tel maravilhoso, igual ao Intercontinental daqui. Dois mil
e poucos marcos por duas semanas com tudo incluído. Da
última vez, demos um pulo até um país ali perto... Como
é mesmo o nome?
— Marrocos — Jussuf responde polidamente.
115'
— É claro, Marrocos! Eu tinha esquecido. Também
está cheio de mulheres gostosas. Mas me diga... que lín
gua vocês falam? Espanhol?
Jussuf não agüenta mais:
— Não! Árabe! Com licença, eu vou ao banheiro.
O supervisor aproveita para sentar-se no chão perto
de nós e continuar recordando suas férias com entusiasmo.
— Ah, se eu estivesse no Mediterrâneo agora... Na
da de trabalho, só o sol... E mulheres, é claro, muitas mu
lheres! — De repente, vira-se para mim e pergunta: — É
verdade que na Anatólia a gente pode comprar uma mu
lher com uma cabra? — Resolvo olhar para o outro lado,
mas ele insiste: — Não é verdade? Se não é, como foi que
você se livrou da sua mãe?
— Alemão sempre acha que pode comprar tudo —
respondo. — Mas coisas mais bonita do mundo gente não
consegue com dinheiro. Por isso alemão tão pobre, mes
mo se tem dinheiro.
O supervisor sente-se atacado e desforra:
— Nem de graça eu queria uma daquelas putas dos
seus haréns! São umas porcas, estão sempre fedendo. A
gente primeiro tem que dar um banho nelas. E quando ter
mina de arrancar aqueles trapos que elas vestem, pronto...
a gente já está de pinto mole de novo.
Mais tarde, Jussuf leva-me para um canto e diz: “ Sa
ber alemão não é boa coisa. A gente sempre se aborrece.
É melhor fingir que não entendeu!” E conta o exemplo
de alguns jovens tunisianos que, em virtude das constan
tes humilhações, decidiram não aprender a língua alemã!
“ Só falam ‘sim, senhor’, para qualquer coisa que o chefe
diz. Assim, não tem discussão!”
Vários banheiros da Thyssen vivem rabiscados com
frases e insultos xenófobos. Nas paredes da fábrica tam
bém sempre há alguma pichação ofensiva aos imigrantes,
e ninguém se encarrega de apagá-la. Eis alguns exemplos
típicos dessa literatura de mictÒrio, recolhidos dentre cen
tenas nas instalações Oxygen I: Merda boiando = turco
nadando. Perto dali, na cantina, há a seguinte frase: Fo
116'
ra, turcos! A Alemanha para os alemães! Ao lado, al
guém que gosta de animais teve o bom gosto de pregar um
adesivo com a figura de um ursinho e os dizeres: “ Prote
ja as espécies em extinção!” Vinte metros adiante, uma
inscrição com letras garrafais: M o r te a todos o s tur
cos ! Inscrição que também se encontra no banheiro do
setor de laminação na Kaltwalzstrasse. Anotei algumas,
já meio envelhecidas, o que prova que estão ali há muito
tempo:
118»
Eu (voliando-me para os outros): Eu não ia querer
lenço sujo ranho, eu ter lenço papel.
A lf r e d (sem se perturbar): Nem mesmo um lenço...
EU: Mas aquela época estrangeiro não vivia muito
bem, não?
Alfred : Preste atenção! Naquela época a disciplina
e a ordem imperavam na Alemanha inteira.
EU: É... Mas e judeu? Vocês matou judeu, não
matou?
ALFRED: Vá à merda com os seus judeus! Naquela
época a gente aprendia a respeitar os mais velhos. Era is
so que nos ensinavam, que enfiavam na nossa cabeça. O
professor na escola, e os pais em casa. Você pensa que uma
criança se atrevia a sentar no trem? Meteram na cabeça
da gente que era para deixar o lugar para os mais velhos
e isso estava muito claro!
EU: Você quer dizer que pais era melhor?
A lfred : Na verdade era uma ditadura, mas eu me
sentia bem melhor naquela época do que hoje, com toda
essa merda de gente que vive aqui.
EU: Mas por que vocês matou tanto judeu?
UDO (querendo dar a deixa para Alfred): Porque
eram estrangeiros.
ALFRED: Quer mesmo saber por quê? Quer mesmo
saber?
Eu (como se ignorasse o motivo): Eu quer, sim.
Alfred : Hitler só cometeu um erro... devia ter vivi
do mais uns cinco anos. Então não ia sobrar ninguém, ne
nhum deles, nenhum! Basta um judeu meter o dedo em
alguma coisa para tudo começar a descambar.. E não im
porta se é um judeu rico ou pobre. Tem muito judeu rico
por aí. Por exemplo: Rockefeller, Morgenthau, e outros.
Estão sempre provocando desgraça, desordem e terror; é
só ler os livros de História. Eles têm dinheiro para con
trolar as pesquisas científicas. Têm dinheiro, têm poder
de vida e morte. São assim. Veja bem, se Hitler tivesse vi
vido mais uns cinco anos, se as coisas tivessem corrido bem
para ele, esse tipo de gente não existiria mais, pode crer!
119 *
EU: É... Vocês também màtou cigano.
Michael : Não eram alemães de raça pura, por isso
ele acabou com todos. Só não acabou com os alemães de
raça pura.
UDO: É verdade! Mas não foi só Hitler!
EU: E ele também acabava comigo? (Não obtenho
resposta.)
ALFRED: Você quer saber quem foi que começou com
toda essa história de campo de concentração? Falando bem
sério mesmo? (E, elevando a voz, responde à própria per
gunta.) Foram os ingleses!
UDO: Os americanos! Foram os americanos que co
meçaram tudo isso!
A lf r e d (insistindo): Não e não! Foram os ingleses!
Churchili, sim, Churchill começou tudo isso quando era
primeiro-tenente do Exército inglês. Sabe, na época das
guerras coloniais ele era primeiro-tenente... enfim,
sargento.
MICHAEL: Hitler não devia ter feito uma coisa
dessas!
ALFRED: E sabe o que Churchill fez?
M ic h a e l (insistindo): Não, ele não podia ter feito
essa sujeira!
ALFRED: Churchill lutou em duas frentes.
Michael : Não importa, Hitler não devia...
A lf re d (cortando-lhe afrase): Churchill, com aquele
exército colonialista, nos expulsou do sudoeste da África.
Fez isso com a gente, e também com os bôeres... Você já
ouviu falar dos bôeres, não? Pois Churchill prendia as mu
lheres e crianças bôeres num acampamento no meio do de
serto e deixava todo mundo morrer...
MICHAEL: I sso também não é direito. Mas Hitler foi
o maior assassino de todos os tempos...
A lfre d (irritado com Michael, volta-se contra mim):
Você não é nenhum idiota, é?
EU: Bom, depende...
Alfred : Sabe qual é a diferença entre um turco e um
judeu?
‘ 120 4
EU: Não tem diferença. Dois gente, ser humano.
A lf r e d (triunfantef. Mas claro que tem! Para os ju
deus o pior já passou!
UDO (pede a palavra a Alfred): Ei, conheço uma
melhor.
ALFRED: Então conte!
U do (voltando-separa mim): Quantos turcos cabem
dentro de um fusca?
EU: Eu não sabe.
UDO: Vinte mil. Não acredita?
EU: Se você diz...
UDO: Não quer saber como?
EU: Melhor não.
UDO: É muito simples. Dois na frente, dois atrás, e
o resto no cinzeiro.
A lf re d (rispidamente): Muito engraçado! Fazia tem
po que eu não ria tanto. Essa é tão velha que tem barba,
já a escutei no mínimo cem vezes. Mas vocês conhecem
a última? Um garotinho turco está passeando com o ca
chorro, um pastor alemão. De repente, eles passam por
um homem, um alemão, que pergunta: *'‘Aonde é que vo
cê vai com esse porco?** E o turquinho responde: “ Não
é porco, é cão de raça, pastor alemão, com pedigree e tu
do!** Então o homem diz: “ Cale a boca, não estou falan
do com você!** (E cai na risada, acompanhado por Udo.)
Michael : Não acho legal vocês contarem essas coi
sas diante do Ali. Ele pode não entender muito bem.
EU: Eu não acha graça. E também eu não acha gra
ça piada com judeu. (Voltando-mepara Alfred): Eu acha
vocês não têm muita coisa rir, por isso vocês faz piada com
outro.
A lf r e d (irritado): Foi só uma brincadeira. E não se
metam nos nossos assuntos, porque aí é que não vão ter
do que rir. (Provocando-me): Você conhece Mengele?
EU: Sim. Médico assassino de campo concentração.
ALFRED: Mengele não era tão burro. Por exemplo,
nunca usou turcos nas experiências que fazia. E sabe por
quê? (Percebendo que prefiro ficar calado, lança-me um
' 121 9
olhar cheio de ódio.) Porque vocês não servem para na
da, nem para ser usados em experiências. .
MlCHAEL: Toda vez que eu vejo e escuto coisas da
quela época, sinto vergonha de ser alemão. No duro!
A lf r e d (com certo prazer): Mengele prendia as pes
soas no gelo e ficava observando quanto tempo elas agüen
tavam ali, agachadas. (Voltando-se para mm): Você não
é um turco de verdade, é? O que você é, afinal? Sua mãe
é meio negra, não?
Eu: Minha mãe grega, meu pai turco.
A lfred : Sei. Mas e você? O que você é? Turco ou
grego?
Eu: Duas coisas. E também pouco alemão. Eu já es
tá aqui dez anos.
A lf r e d (para os outros): Ouviram só o que esse idio
ta disse? Ele se acha um pouco de tudo. É isso que acontece
quando começam a misturar as raças.. Chega uma hora que
já não são mais nada. Não têm mais pátria. Que nem os
comunistas. Aliás, lá no lugar de onde ele veio está assim
de comunistas! Parece um formigueiro. Sabe o que estão
fazendo na Mannesmann? Pondo todos os turcos no olho
da rua. Aqui na Remmert também a gente pode tocar fogo
em todos os turcos; é só olhar para eles que dá vontade de
vomitar... (Voltando-separa mim): Lembra o que eu disse
ontem? Se não me obedecer direitinho, dou-lhe um tama
nho pontapé no rabo que você vai parar no olho da rua.
MlCHAEL: O que podemos fazer? Não podemos che
gar e dizer: “Tudo bem, vocês trabalham aqui, precisá
vamos de vocês, mas agora fim, acabou!" Eles estão aqui!
Eu: Gente não veio assim, livre vontade. Vocês foi
buscar gente. Vocês foi lá, com conversa: “ Vem, vem!
Gente ganha muito dinheiro lá. Vem, nós precisa vocês!"
Ninguém veio sozinho, porque quis.
MlCHAEL: É verdade! E nós devíamos recom-
pensá-los.
UDO: É... Como a Mannesmann está fazendo.
MlCHAEL: Tem muita gente sem emprego. Estamos .
atolados em plena crise.
122'
UDO: Na Mannesmann o pessoal foi logo falando:
“ Vamos dar a cada um uma ajuda de custo no valor de
10 a 30 mil marcos para voltarem para os seus países” .
EU: Mas se todo imigrante vai embora, acaba dinhei
ro para pagar vocês. Vocês não têm nada para receber,
se eles paga para gente esse dinheiro.
ALFRED: Não diga besteira! Não tem tanto turco por
aqui!
EU: Milhão e meio. Vocês fica arruinado!
A lfred : Sabe como é na Suíça? Se você trabalha na
Suíça como imigrante, assina um contrato por onze me
ses. No décimo-segundo mês, quando você está de férias
lá no seu país, eles mandam uma carta dizendo se você
pode voltar ou não. É ássim que a Suíça resolve essas coi
sas. Durante as férias, eles decidem se você volta ou fica
lá mesmo na sua terra, tomando conta dos camelos.
A odisséia de Mehmet
123 *
mam: Mehmet sofreu mesmo três acidentes graves. O pri
meiro nâo ocorreu dentro da Thyssen, mas na luxuosa vi
la que Remmert possui em Mülheim. Mehmet e um tra
balhador alemão estavam instalando uma sauna no porão
da casa. Tiveram de cafar a terra e derrubar algumas
paredes. +
“Foi assim que aconteceu’%conta um dos trabalha*
dores. “O alemão estava cavando, e Mehmet percebeu que
uma parede ia ruir. Rapidamente conseguiu tirar o alemão,
que de outro modo teria morrido, e a parede caiu em cheio
em cima do seu ombro esquerdo.” O médico tirou algu
mas radiografias e constatou que o osso estava esmigalha-
do. Mehmet teria sua capacidade de trabalho reduzida em
46%. Precisou ficar no hospital mais de dois meses. A
Remmert não lhe pagou um centavo de indenização nem
de seguro. Em compensação, o próprio Remmert, aquele
mercador de seres humanos, prometeu arranjar-lhe uma
colocação na Thyssen, a despeito do grave ferimento.
No mês de fevereiro, Mehmet estava de novo na equi
pe, escalado para trabalhar na concreção no turno da noite,
em pleno estado de alerta devido à poluição e debaixo de
um frio de matar. Ele escorregou e, tentando instintiva
mente proteger o braço fraturado, caiu bem em cima do
outro. Deslocou a omoplata, que teve de ser imobilizada.
Nem bem se restabeleceu, Mehmet voltou ao trabalho, no
turno da noite (afinal, tem mulher e três filhos, um deles
com deformidade física congênita). Depois de catorze noi
tes consecutivas, atirou-se na cama, morto de cansaço.
Duas horas depois, telefonaram para sua casa exigindo que
se apresentasse para o turno do dia. Mehmet foi. Às oito
das noite, quis ir para casa. O encarregado ordenou-lhe
que voltasse para a fábrica imediatamente após o jantar,
pois estava escalado para o turno da noite. Mehmet voltou.
Numa instalação subterrânea, Mehmet limpava os ca
nos por onde escoa o metal em fusão; o trabalho provoca
muitas nuvens de vapor e impede que se enxergue um pal
mo adiante do nariz. Exausto e combalido, Mehmet en
fiou o pé dentro de um buraco e caiu. No hospital diag
124 '
nosticaram: rotura dos ligamentos. Mehmet foi submeti
do a duas operações, mas sua perna não se recuperou to
talmente. E ele continuou trabalhando.
Ao voltar das férias, Mehmet me diz: “ O que pode
fazer? Eu precisa trabalhar. Criança, dívida...”
É muito difícil conversar com ele. Poucos dias depois
de seu retomo, já está novamente exausto e combalido.
Só consegue medir o tempo em turnos de trabalho e fre
qüentemente se esquece do que aconteceu durante meses
inteiros. Só é capaz de lembrar se fazia;muito frio ou era
um daqueles serviços nojentos que a Thyssen oferece. Mora
na Alemanha desde 1960, mas seu alemão é canhestro. A
luta pela sobrevivência não lhe dá tempo para aprender
corretamente a língua. Sendo assim, precisei “ arrancar”
dele uma conversa (um colega turco serviu de intérprete).
A duras penas, Mehmet conseguiu realizar aquilo que
os alemães consideram uma virtude: instalar-se com a fa
mília num país estranho. Ele conta que, durante os dez
primeiros anos, trabalhou em todos os lugares onde ha
via serviço. Até que, em 1970, conseguiu uma colocação
estável como motorista de empilhadeira na Thyssen, em
Duisburg. Ganhava um salário líquido de 1 600,1 700 mar
cos, em turnos alternados. Por isso, arranjou outro
emprego.
Depois de muitos anos de economia e com emprésti
mo bancário, finalmente pôde comprar uma casinha ge
minada, meio decrépita, em Duisburg-Mettmann. “ Se eu
tivesse continuado na Thyssen, ela já estaria totalmente
paga.” Seu chefe liquidou-lhe as modestas pretensões. “Foi
no ano de 1980. Eu ia sair de férias. O chefe do turno apa
receu e falou para nós: ‘Eu quero que me tragam um ta
pete da Turquia. Mas autêntico!’ Então eu disse: ‘Olhe,
um autêntico tapete turco deve custar uns 5 000 marcos.
Eu não tenho tanto dinheiro’. ‘Não quero nem saber! Se
você não me trouxer um daqueles tapetes, vai ver só uma
coisa!’ ”
Assim que Mehmet voltou da Turquia, o chefe pas
sou a esfolar-lhe a pele como “reprimenda” pelo “ pre
125 è
sente” recusado. “Um dia ele me disse: ‘Venha até meu
escritório!’ Chegando lá, começou a me xingar, e eu fi
quei quieto. Três horas depois, apareceu um dos guardas
de segurança da fábrica, agarrou meu braço e disse para
eu ir embora. Foram falar que eu tinha batido no chefe.
Mas claro que eu não fiz isso.”
Depois de dez anos de trabalho, Mehmet foi despe
dido sem nenhuma prova concreta contra ele e sem rece
ber aviso prévio. Tampouco foi intimado a depor para ex
plicar as “lesões corporais” que supostamente provoca
ra. A repartição de assistência judiciária recusou-se a
defendê-lo porque a administração da Thyssen alegara
“ agressão a colega” para justificar sua demissão. Meh
met chegou a apresentar testemunhas — entre as quais,
alguns operários alemães —, e todos depuseram a seu fa
vor, dizendo que o motivo da dispensa era uma farsa.
“ Fiquei muito chocado com essa história. Comecei
a procurar emprego em todos os lugares. Durante dois ou
três meses não encontrei nada. Até que consegui uma co
locação numa fábrica de aparas de chapa, em Duisburg-
Homberg. Motorista de empilhadeira. Já estava lá fazia
uns cinco meses, e tudo corria muito bem, sem nenhum
problema. Mas um dia chegou um telegrama dizendo que
minha mãe tinha morrido. Fui procurar o chefe e pergun
tei se podia tirar uma semana de licença, para ir ao enter
ro. ‘Como é que é? Tirar férias com cinco meses de em
prego? Onde já se viu uma coisa dessas?’ Insisti: ‘Mas é
que minha mãe morreu...’ Ele respondeu que não tinha
nada a ver com isso. Mesmo assim, decidi ir; quando vol
tei uma semana depois... rua!”
Pressionado pelas dívidas feitas com a compra da casa,
Mehmet pôs-se novamente a procurar emprego. Em vão.
Mais uma vez ficou desempregado durante três meses. “En
tão fui tirar uma carteira de motorista profissional para
poder dirigir caminhão. Preenchi fichas de pedido de em
prego em toda parte. Acabei conseguindo uma colocação
numa firma pequena, como motorista de furgão e com sa
lário bem baixo. Dois dias depois, recebi uma proposta
126*
da Rheinperle, onde eu já havia trabalhado consertando
encerados de caminhões. Procurei o chefe do pessoal, e
ele me disse: ‘Você pode começar imediatamente, mas co
mo motorista de empilhadeira. Mais tarde, quem sabe, po
derá dirigir um caminhão’. Fiquei nessa firma durante qua
tro anos.”
Uma proposta “melhor” fez Mehmet mudar de em
prego: 13 marcos por hora numa transportadora de Düs-
seldorf. “E mais 18 marcos para as despesas gerais. Cla
ro que aceitei!” Cinco semanas depois, foi demitido:
“ Contenção de despesas” . “E mais uma vez corri pa
ra todo canto. Na agência oficial de empregos disseram
para eu voltar dali a três ou quatro meses. ‘Não há na
da no momento!’ Comecei a procurar em todas as em
presas. Então um vizinho me falou que a Remmert esta
va precisando de motorista. ‘E onde é que fica essa tal
Remmert?’ ‘Pergunte na Mannesmann!’, ele respondeu.
Fui até lá: todos os dias, durante uma semana. E nada
de o encarregado da Remmert aparecer. E eu ali, parado
diante do portão quatro. Até que perguntei para um dos
soldados: ‘Onde é que fica o escritório da Remmert?’ ‘Em
Oberhausen.’ Fui correndo para lá. Cheguei em Oberhau-
sen por volta das três ou quatro horas da tarde. O encar
regado me disse: ‘Tudo bem, pode começar agora mes
mo. Só que é um serviço pesado, nojento*. E eu falei:
‘Gosto de trabalhar, não faz mal que seja um serviço pe
sado ou nojento. Preciso trabalhar. Tenho que sustentar
minha família*.”
A Remmert paga-lhe um salário bruto de 12,24 mar
cos por hora; e Mehmet paga com sua saúde.
Em outro lugar
128*
A Mannesmann também costuma empregar esse tipo
de mão-de-obra quase sempre em “missões suicidas” : onde
quer que trabalhe, o pessoal está sempre imerso em pó e
fumaça. Conseqüentemente, o risco de acidentes é muito
grande. Um dos membros do conselho de empregados da
Mannesmann faz o seguinte relato: “Aqueles que são es
calados para trabalhar com os maçaricos passam todo o
turno numa posição incômoda, encurvados. Sem falar no
calor constante que provém dos maçaricos” .
“ Como antigamente, na época das galés” , diz Ali K.,
“ quem não tem mais forças é jogado ao mar! Mehmet,
um trabalhador turco da Remmert, prestava serviços na
Mannesmann. Um dia, ao carregar o ferro fundido, uma
corrente bateu-lhe em cheio nos joelhos. Mehmet quebrou
as duas pernas e teve que ficar seis ou sete meses no hos
pital. Depois de tudo isso, a Remmert jogou o coitado no
olho da rua. Nem bem sarou direito, ele foi até a fábrica
perguntar se poderia ser readmitido para um serviço de
quatro ou cinco horas, porque depois do acidente não po
dia ficar muito tempo em pé. Mehmet nem terminou de
falar; o chefe simplesmente o mandou embora.”
Freqüentemente a Remmert obriga seus empregados
a dobrar ou triplicar os turnos, razão pela qual os aciden
tes ocorrem de modo quase automático. Colegas contam
que alguns motoristas chegaram a fazer 36 horas conse
cutivas dirigindo seus caminhões. Isso é perigoso não só
para eles mesmos, como para todos que circulam pela em
presa. “ Se um cara passa 36 horas na boléia de um cami
nhão, é evidente que, mais dia menos dia, vai acontecer
um acidente sério” , diz Ali K., inquieto.
A empresa Staschel, de Duisburg (especializada, co
mo a Remmert, em fornecer mão-de-obra temporária pa
ra a Mannesmann), costuma fazer seus empregados tra
balharem na coqueria de manhã, na fundição à tarde e nu
ma filial de laminação de tubos, em Mülheim, à noite. O
que totaliza 24 horas de trabalho ininterrupto.
Esse “tráfico de escravos” teve início na Mannes-
mann, logo que o truste começou a dispensar em série os
129'
imigrantes que faziam parte de seu quadro de pessoal efe
tivo. Para livrar-se deles, a Mannesmann chegou a ofere
cer 40 mil marcos como “ajuda de retorno” . O objetivo
era reduzir seu efetivo em seiscentas pessoas. Ao mesmo
tempo, a direção da empresa persuadia os operários ale
mães de que seus empregos estariam ameaçados se um nú
mero suficiente de imigrantes não retornasse a seus paí
ses. O medo provocou um clima de tensão dentro da fir
ma; muitos operários alemães passaram a querer a saída
imediata dos turcos. Imaginavam que assim conseguiriam
uma colocação estável para seus filhos, que haviam feito
estágio na Mannesmann como aprendizes. Os turcos mais
antigos foram submetidos a testes de língua alemã — uma
tentativa de provar suas “ qualificações deficientes” . E
aqueles que, apesar de tudo, insistiam em não “ regressar
voluntariamente” , eram pressionados com redução do ho
rário de trabalho ou dispensa pura e simples, sob a justi
ficativa de “ plano de reclassificação” . Desse modo, mais
de mil turcos foram obrigados a deixar a Mannesmann.
Foi o ponto de partida para que as empresas como a Rem
mert crescessem dentro da Mannesmann.
A suspeita
“Todo o pessoal da Adler, venha aqui!” Batendo pal
mas, o “ xerife” nos chama durante um intervalo de des
canso. “ O sr. Adler mandou dizer a todos que hoje à tar
de, depois do serviço, vai encontrar vocês, às quatro ho
ras no bar Cantinho dos Esportistas, na Skagerrakstras-
se. Ele vai falar sobre a organização do trabalho e resol
ver problemas de pagamento. Sejam pontuais, porque ele
não tem tempo a perder!”
Exatamente em nosso horário livre; claro que não nos
pagará um centavo sequer. Somos obrigados a ficar mais
uma hora no serviço para chegar pontualmente ao local
indicado. Então aguardamos quinze minutos, meia hora,
e nada de Adler. “Ele faz a gente de bobo” , diz Mehmet.
“ Vamos para casa.”
130 4
Wormland, o fiel encarregado da Adler, seu irmão
Fritz (23 anos) e eu, Ali, somos os únicos a permanecer
no bar, sentados junto ao balcão. De repente, dois poli
ciais fardados e um à paisana entram no local e começam
a encarar os fregueses, aproximadamente uns vinte. Um
dos policiais pergunta:
— Alguém viu entrar aqui um sujeito loiro, de mais
ou menos quarenta anos, um metro e setenta de altura?
O Banco do Comércio, aÚ na esquina, acaba de ser assal
tado e levaram quase 40 mil marcos.
O homem a meu lado, que deve ter uns sessenta anos
e já está na oitava cerveja, põe-se a rir baixinho.
— Mesmo que o tivesse visto, eu não diria nada —
declara num tom de voz suficientemente alto para que os
policiais escutem. — Ele dividiria o dinheiro comigo, e eu
ficaria de boca fechada.
— De quem é aquele carro verde, com placa de Co
lônia, estacionado ali em frente? — pergunta rispidamen
te o guarda mais velho.
Olho pela janeja e vejo uma viatura parada bem em
frente de meu enferrujado calhambeque, que alguns poli
ciais examinam com curiosidade. Droga, se me identifi
cam aqui, vai tudo por água abaixo. Claro que eu preca-
vidamente licenciei o veículo em nome de outra pessoa;
mas o problema é que não estava com os documentos.
De fato, meu carro parece bastante suspeito (para
mim, um automóvel não é um objeto de prestígio, mas um
simples meio de transporte), corresponde perfeitamente ao
clichê policial: quem anda num calhambeque desses só pode
ser mesmo um assaltante de bancos.
Não esboço nenhuma reação e olho para o outro la
do. Mas meu colega Fritz me cutuca e diz:
— Ei! Aquele não é o seu carro? Por que não fala
para eles?
— Cala a boca! Eu não tem documento em ordem,
eles vai multar.
Fritz prontamente resolve tirar vantagem da situação
em que me encontro.
1315
— O que é que eu ganho se ficar com a boca fecha
da? Você me dá 100 marcos, ou conto tudo — ameaça,
lançando um olhar eloqüente para os policiais.
— Eu não tem tanto dinheiro — respondo, e consi
go baixar o preço para uma caixa de cerveja.
Nesse interim, os policiais começam a perguntar a cada
freguês se sabe a quem pertence o carro suspeito. Tam
bém nos interrogam, mas não podemos ajudar, não sabe
mos de nada. Eles deixam o bar. Respiro aliviado e já penso
em sumir dali quando aparece um novo destacamento po
licial: três guardas uniformizados e dois à paisana. A gran
de operação de captura não parece minto bem coordena
da, porque o chefe da patrulha começa a fazer exatamen
te a mesma pergunta que seu colega formulara pouco an
tes: se alguém viu entrar um sujeito loiro, mais ou menos
quarenta anos, cerca de um metro e setenta, com uma sa
cola de plástico branca contendo 40 mÜ marcos. Alguns
fregueses riem alto e passam a fazer uma grande piada.
— Ele acabou de entrar no banheiro. Foi dar uma
mijada! — diz um quarentão ligeiramente embriagado cuja
aparência corresponde à do criminoso.
— Não é hora para gracinhas — replica o chefe da
patrulha, que parece não ter gostado da brincadeira. —
Posso prendê-lo por desacato à autoridade e perturbação
da ordem pública. — Seu olhar percorre todo o local e pára
em mim. Sou o único estrangeiro e, ainda por cima, estou
todo sujo de graxa, com a roupa de trabalho quase em far
rapos. Enfim, um verdadeiro molambo!
— Você, aí! Acompanhe-me! — aponta-me para seus
dois jovens subordinados, que correm para meu lado, ávi
dos de ação.
Sinto-me esmorecer, vejo todo o meu trabalho cair
por terra. Por um instante penso em sair correndo, pro
curar a salvação na fuga. Mas a rua está apinhada de po
liciais, e qualquer um deles poderia me dar um tiro nas
costas. “ Calma, muita calma” , digo para mim mesmo.
“ Nada de nervosismo. A lei está do meu lado, com certe
za! Não podem ter nada contra mim.” E passo à ofensiva:
132 ^
— Acompanhar? Como assim? Eu tem 28 anos, um
metro e oitenta e três, cabelo preto. O ladrão é mais ve
lho, mais baixo. — Tento mostrar o despropósito de sua
suspeita.
Mas o chefe da patrulha não se guia pela lógica. Ao
que tudo indica, meu aspecto deu-lhe uma boa pista.
— Acompanhe-me — repete asperamente. — E
limite-se a responder quando lhe perguntarem alguma
coisa!
Um de seus subordinados tenta segurar-me pelo bra
ço, porém me desvencilho, dizendo:
— Não precisa disso! Eu vai.
Lá fora, sou cercado pelos outros policiais e também
por alguns civis. “ Puta merda, como vou sair dessa?” Os
guardas estão frustrados, pois o verdadeiro criminoso de
sapareceu. Agora precisam de um bode expiatório.
— Documentos! — exige o chefe da patrulha.
— Eu não tem. Tudo com Adler, meu chefe. Eu tra
balha em Thyssen todo dia, mas ele não paga dinheiro de
gente.— Tento confundi-los, mudando de assunto.
O chefe da patrulha, porém, não se deixa enganar:
— Nome? Endereço? — interroga-me.
Lentamente soletro: ‘‘S-i-n-i-r-l-i-o-g-l-u’’ e sorrio de
modo amistoso ao ouvi-lo xingar enquanto tenta escrever
meu nome. Procuro animá-lo:
' 133 r
para cadeia! Vão pegar chefe! — Em seguida, desvio o as
sunto para a Thyssen: — Vocês pode ir junto lá, portão
vinte. Tem meu cartão de ponto. Vocês pode ver que eu
trabalha lá.
Os policiais ficam um pouco irritados, mas nem por
um instante pensam em averiguar os negócios de meu pa
trão, embora tudo que eu disse cheire bastante a “tráfico
de escravos". Aparentemente o envolvimento da Thyssen
não constitui um ato delituoso; com certeza, não querem
se queimar.
— Acho melhor levá-lo até o banco e fazer a confron
tação — um dos policiais propõe ao chefe.
— Boa idéia! Eu concorda! — digo, já entrando na
viatura com meu uniforme sujo de graxa.
O chefe da patrulha rapidamente me puxa para forà,
gritando:
— Saia dai! Vai emporcalhar 9 assento com essa gra
xa toda!
Entrementes, formou-se uma roda de curiosos a nos
sa volta.
— Ele tentou atacar uma moça alemã! — grita uma
dona-de-casa cinqüentona que deixou a sacola de compras
encostada a um muro.
Um senhor de seus 65 anos concorda com ela:
— Vejam só que olhos frios e cruéis! Um verdadeiro
zumbi enlouquecido! Foi uma sorte ele ter sido preso!
— Não é nada disso! Ele só assaltou um banco —
corrige um rapaz sentado em sua bicicleta.
Começa uma polêmica no grupo. A maioria dá ra
zão ao jovem da bicicleta; outros preferem a teoria da vio
lação — uma mulher chega a afirmar que ouviu a vítima
“ gritar" enquanto era transportada na ambulância.
Todo o interrogatório prolonga-se por uns vinte mi
nutos — durante os quais o verdadeiro ladrão sem dúvida
fugiu tranqüilamente —, até que o chefe da patrulha to
ma uma decisão:
— Volte para o bar e aguarde nosso regresso com as
testemunhas para fazermos a confrontação! E não tente
134 *
fugir! Vou deixar um homem vigiando a porta. Você não
conseguirá escapar!
Espero durante quase uma hora, e nada de testemu
nhas. Os policiais devem ter achado sua suspeita tão ab
surda que desistiram de fazer um papel ridículo. Assim que
o vigia desaparece, esgueiro-me cautelosamente até meu
carro e dou o fora. Que alívio!
Antes de partir, ainda me dirijo aos fregueses do bar:
— Vocês viu? Só porque eu é estrangeiro eles queria
me levar. Ladrão verdadeiro era loiro, tinha só um metro
e setenta, era mais velho...
— É, mas você podia estar usando uma peruca! —
caçoa um velhote funcionário da Fazenda, sentado junto
ao balcão. Todos riem. — Se bem entendi — confidencia-
me ele, já do lado de fora —, você trabalha na Thyssen
ilegalmente. Mas você não é o único! Há um número in
crível de histórias como a sua que nos chegam aos ouvi
dos, mas os meus superiores não se atrevem a tomar pro
vidências. Mesmo que eu resolvesse denunciar a sua his
tória, não adiantaria nada!
136 v
Adler atrapalha-se um pouco com uma pergunta tão
inoportuna. Finge fazer alguns cálculos e depois responde:
— Digamos 1 marco por metro.
Na manhã seguinte apresento-me a um encarregado
que já está a par de tudo. Digo-lhe que Adler me man
dou, e ele, com um sorriso complacente, pergunta-me pe
lo pagamento estipulado.
— Eu vai ganhar 1 marco cada metro.
— Então você vai ter que trabalhar feito louco se qui
ser ganhar algum dinheiro. Nem pense em parar para des
cansar!
Tudo indica que a empresa de Theo Remmert está com
os prazos estourando. Os parapeitos devem estar prontos
e montados numa nova instalação da Ruhrchemie o mais
breve possível.
Durante quase uma semana, trabalho como um con
denado, de manhã à noite, com um descanso de no máxi
mo dez minutos. E só consigo pintar cinqüenta metros,
por dia, quando muito. Os parapeitos têm um metro e vinte
e cinco de altura, cada um possui três arcos, e há também
toda a moldura. Nos cantos e nas fendas diminutas é ne
cessário utilizar um pincel menor. E mais: depois de pintá-
los, devo transportá-los para o outro lado da oficina com
o auxílio de um guindaste. Por esse serviço, não recebo
um centavo. Também não ganho nada quando o chefe re
clama que alguns parapeitos não estão bem pintados ou
que falta um pouco de tinta nuns cantinhos minúsculos.
O que significa remover os pesados parapeitos novamen
te com o guindaste.
Para ganhar tempo, trabalho com um pincel em ca
da mão. E ainda não é o bastante. Um alemão, operário
estável da Remmert, que pintava os parapeitos recebendo
como diarista, olha para mim com comiseração e diz:
“Ninguém agüenta um ritmo desses durante um dia intei
ro. Você vai se arrebentar. Não tenha tanta pressa!” E,
ao saber quanto ganho, sacode a cabeça: “Por esse dinheiro
eu largaria o serviço na hora. Não daria uma pincelada” .
De bom grado, admite trabalhar no máximo a metade do
137 r
que eu trabalho e receber 13 marcos por hora. Nesse rit
mo, porém, vou receber entre 5 e 7 marcos.
A despeito do salário miserável, percebo que aqui tra
balho com outro estado de espírito. E claro que sou pres
sionado, mas é uma forma diferente de pressão. Não há
ninguém o tempo todo atrás de mim, gritando e dando or
dens. Não há o medo permanente de chefes, superiores,
supervisores. O ambiente é um pouco mais agradável que
na Thyssen. Ainda que, ao voltar para casa, eu esteja com
pletamente moído. Olho para o relógio e surpreendo-me
ao ver que já é tão tarde. Preferiria que fosse mais cedo.
Exatamente o oposto do que acontecia na Thyssen, onde
as horas se arrastavam. Lá eu ficava muito contente ao
perceber que elas estavam passando! Contava-as uma a
uma e me agoniava ao verificar que ainda faltavam qua
tro horas para o fim do expediente. O trabalho por em
preitada é a categoria mais baixa e aviltante da pretensa
atividade independente, já que não apresenta quaisquer
vantagens reais ligadas a essa condição.
Todos os dias o encarregado da Remmert vem con
trolar e cronometrar meu serviço. Às vezes obriga-me a
pintar novamente algumas partes dos parapeitos ou a ar
rancar as bolhas que se formaram e depois dar outra de
mão de tinta. Ninguém me paga pelo tempo gasto com esse
trabalho.
Digo que é impossível viver com os 5 ou 6 marcos que
me pagam por hora e que me sinto explorado. Ele sim
plesmente me responde: “ Não temos nada com isso. Pa
gamos diretamente a Adler, que recebe um bom dinheiro.
Vá reclamar com 616!**
Não me revela o lucro de Adler. Calculo, porém, que
ele deve cobrar umas três ou cinco vezes o que eu ganho
só para servir de intermediário entre seus escravos e a Rem
mert. Sem precisar mover um dedo.
Minha tarefa está terminada: 210 metros de parapei
to pintados de ocre (de alto a baixo, atrás, na frente, por
toda a volta). Sapatos, calça e camisa inteiramente respin-
gados de tinta. O encarregado da Remmert avisa-me que
138'
os parapeitos serão instalados o mais rápido possível nu
ma nova construção da Ruhrchemie. E só dali a algumas
semanas serão montados novos parapeitos.
Eis o ano de trabalho estável que Adler prometeu! Te
lefono para ele, informando-o sobre minha situação.
— Não tem importância! — diz. — Apresente-se
amanhã de manhã, às cinco horas, na Thyssen. Há uma
equipe nova.
— E quando senhor paga para mim pintura de para
peito? — pergunto.
— Vamos acertar isso quando a Remmert me fizer
o pagamento — responde. — De qualquer modo, você já
pode pintar parapeitos nos fins de semana!
Passam-se três semanas e nada dos 210 marcos a que
tenho direito pela tarefa especial e pesada. Vou pedir ex
plicações a Adler, que me diz sem o menor constrangimen
to: “ Você não fez o serviço direito. Por que eu deveria
lhe pagar, se tive muitos aborrecimentos por sua causa?
E até agora também não recebi o dinheiro” .
Pergunto qual foi o problema, e ele começa a me ta
pear, fala de um tal “ medida mícron” que aparentemen
te tem a ver com a camada de tinta empregada, que não
era bastante espessa. Considero isso mais um de seus tru
ques habituais. Contudo, mesmo que fosse o caso, a cul
pa não seria minha. O encarregado da Remmert fiscali
zou o serviço e disse que estava tudo em ordem. Decido
ir pessoalmente cobrar do sr. Remmert. Para impressioná-
lo, vou logo depois do trabalho, com a roupa e o rosto
negros de sujeira. Dirijo-me ao prédio administrativo da
empresa Remmert. Logo no salão de entrada e bem à vis
ta do público, os dizeres de um quàdro gigantesco resu
mem a filosofia de vida de Theo Remmert:
A l g u m a s p e sso a s c o n s id e r a m o p a t r ã o u m c ã o s a r n e n
to QUE DEVE SER ABATIDO. OUTRAS PENSAM QUE O PATRÃO
É UMA VACA QUE SE PODE PUXAR PELO CABRESTO. POUCOS
VÊEM NELE O HOMEM QUE CONDUZ A CARROÇA.
139 *
E, assim, Ali, o comedor de pó, o lustrador de ferro,
o burro de carga, o trabalhador explorado, vai ao encon
tro de Theo Remmert, o condutor da carroça e criador de
máximas. Sem ser visto, consigo passar pela recepcionis
ta e subir até o andar onde se localiza o escritório do pa
trão. Remmert não está, mas encontro um de seus direto
res, que fala ao telefone sobre uma transação milionária.
Ele arregala os olhos ao ver-me entrar.
— Que história essa mico? — pergunto-lhe à queima-
roupa. — Eu fez trabalho, chefe falou “tudo bem” , mas
agora, dinheiro nada. Por quê?
— “Mico” ?! Ah, o senhor deve estar querendo di
zer “mícron” — corrige-me. — É a espessura da tinta. Mas
não estou a par do assunto. Procure Adler; é ele quem deve
lhe pagar!
O empurra-empurra continua. Adler manda-me pa
ra a Ruhrchemie, “repintar tudo” . Do contrário, “nem
um centavo!”
Durante horas, procuro os parapeitos naquele imen
so parque industrial, nos confins de Oberhausen, um lu
gar fétido e de difícil acesso. Até que, finalmente, encontro-
os instalados sobre uma armação metálica, numa altura
vertiginosa. Um vigia impede-me de subir até lá, dizendo
que é muito perigoso. Quando lhe falo do tal “ mícron”
ou “ mico” , ele pergunta: “ O que é isso? O que importa
é que os parapeitos já estão lá em cima” .
Volto a reclamar com Adler (por telefone):
— É, é Ali, outra vez! Chefe diz “mico” não tem im
portância. Diz parapeito lá e ninguém mais vai cair.
— Primeiro, repintar tudo — responde, irritado. —
E só me apareça aqui a semana que vem! Caso contrário,
nada de dinheiro!
Minha visita seguinte à Ruhrchemie também não pro
duz nenhum resultado. Se fosse realmente necessário re
pintar os parapeitos já instalados, teria um desconto de
2 marcos por hora em meu salário, uma vez que deman
daria muito tempo trabalhar pendurado naquela altura.
Como sempre, não recebi um centavo por essa tarefa
140 '
especial. E foi um serviço duro e imponente. Colocados
lado a lado, os parapeitos cercariam metade de um cam
po de futebol.
Como no faroeste
144 '
EU: Erro fabricação! Ele queria coisa diferente e
errou.
YÜKSEL: Se Deus existe, não pode errar. Deus é Deus.
Não tem direito de errar.
EU: Quem sabe ele é tapado, doido. Ou vai ver que
aquele dia estava muito cansado. Senão Adler não exis
tia, nem trabalho de merda.
YÜKSEL: É, é uma merda! Trabalho maldito!
Yüksel Atasayar é um dos mais argutos observado
res dentre os colegas turcos. Sabe muito bem reconhecer
os alemães que têm preconceito contra os turcos, mesmo
quando não o manifestam abertamente. Consegue até pres
sentir o estado de espírito dos encarregados e superviso
res e previne os amigos contra o mau humor e as amea
ças. “Tomem cuidado, Zentel hoje está procurando uma
vítima” , nos diz logo de manhã cedo, em nosso local de
encontro, enquanto o “xerife” ainda cochila, sentado em
seu carro. Yüksel percebe nos mínimos sinais a aproxima
ção da tempestade. Realmente, algumas horas depois, Zen
tel tem um acesso de raiva e põe na rua um operário turco
que ousou deixar o local de trabalho durante o horário de
folga (não remunerado, é claro).
Na verdade, Yüksel Atasayar só tem de turco o no
me. Cresceu na Alemanha, fala alemão sem sotaque e
sente-se mesmo alemão. Até seu aspecto não corresponde
ao estereótipo de um turco: tem cabelo ligeiramente loiro
e olhos castanho-azulados. Somente seu nome o impele pa
ra o grupo de operários turcos, com os quais, aliás, tem
algumas dificuldades de comunicação. Tivesse ele um no
me alemão e certamente escaparia do ódio de Alfred, o
encarregado, que por qualquer ninharia despeja sua agres
sividade sobre Yüksel e outros imigrantes. Uma vez Yük
sel ousa lembrar a Alfred (que, trabalhando como um pos-
sesso, perdeu completamente a noção do tempo) que o ho
rário de descanso já passou. Alfred planta-se diante dele
e grita:
— Primeiro o trabalho! Depois o descanso! Sempre
foi assim na Alemanha. Nós, alemães, crescemos apren
145'
dendo isso. E quer saber o que você é? Um filho da puta,
grandessíssimo filho da puta! — Mais tarde, durante o in
tervalo, volta à carga com maior intensidade: — Escute
bem! Se um dia desses você se encontrasse com Menge-
le... Sabe quem é, não? Mengele foi um dos nossos me
lhores médicos e cientistas. Tenho certeza de que ainda está
vivo. Ninguém conseguiu pegá-lo até hoje. Então, se Men
gele estivesse naquela rampa e você passasse por ali, sabe
o que ele iria dizer? “Ei, você! Saia pela direita! Direto
para a câmera de gás! Não se pode fazer nenhuma expe
riência com você!” E sabe por quê!
Pálido, Yüksel não ousa replicar. Apenas balbucia:
— Não. Por quê?
— Porque você não serve para nada! Absolutamen
te nada! Você veio para cá só para escapar da ditadura
militar no seu país. Para ser criado num jardim-de-infância
da Alemanha, para ser mimado e bem tratado. Se tivesse
ficado por lá, então, sim, você ia ver o que é bom! Vocês,
turcos, nunca souberam o que é uma democracia. Não fa
zem a menor idéia. Primeiro deviam aprender a viver nu
ma ditadura militar. E não vir para cá para serem papari
cados e viverem à nossa custa!
Yüksel já desistiu de se defender contra explosões desse
tipo. Sabe quanto vale a lei do mais forte. Prefere afastar-se
dos insultos. Pega seu sanduíche e, sem dizer uma pala
vra, vai sentar-se do outro lado da oficina, longe da vista
e do alcance de seu perseguidor. Quinze minutos depois,
ao retomar ao trabalho, há em seu rosto empoeirado duas
listras claras, traçadas pelas lágrimas.
A propósito, Yüksel é o único a reparar que fico es
crevendo durante os curtos intervalos. As vezes, pisca um
olho para mim dando a entender que está de acordo, que
me ajudará. Mesmo assim, fico inseguro e preocupado.
Não sei se ele não acabaria contando para os outros.
Um dia, depois de trabalhar na área do alto-fomo,
num calor infernal, sentamo-nos no chão, com as costas
apoiadas na parede, à espera do microônibus. Yüksel en
tão resolve me perguntar:
146 *
— Você toma nota de tudo?
— Por favor, não conte a ninguém — respondo,
aproveitando a oportunidade. — Ainda não posso falar
sobre isso, mas logo você vai saber de tudo.
Ele percebe meu temor e vê que a coisa é mesmo sé
ria. Não me pergunta mais nada. Saberá guardar segredo
durante meses e meses.
— Você deve tomar nota de tudo que esses porcos
fazem conosco — murmura-me no ouvido. — Não deixe
passar nada!
Yüksel parece pressentir meus propósitos e muitas ve
zes me passa informações oportunas sem perguntar nada.
É apolítico, mas — quase uma criança ainda — respeita
a disciplina do silêncio, movido por um profundo senti
mento de humilhação e desespero, do qual provém o sen
so de solidariedade.
Yüksel Atasayar descreve sua situação:
“ Quando meus pais vieram para a Alemanha, eu ti
nha acabado de nascer. Isso foi há vinte anos. Somos de
Amassia. Não sei exatamente onde fica; sei que é para os
lados da Armênia. Mas onde, ao certo, não sei.
“Em casa conversamos em turco; isto é, as coisas mais
simples. Mas não sei falar fluentemente. Não consigo
acompanhar os assuntos mais complexos. Quando leio jor
nais turcos, só entendo a metade. Meus pais falam turco
perfeitamente; só conversam em turco. Não sabem muito
bem alemão. Eu me sinto mais alemão do que turco.
“ Meu pai também trabalha na Thyssen, no setor de
laminação. E também ganha uma miséria: 1 200, 1 300
marcos.
“ Como vim parar nesse trabalho? Um amigo me deu
a indicação. Só precisei me apresentar ao encarregado. Esse
meu amigo me disse para eu vir com uniforme de traba
lho. Foi o que fiz. Perguntei se estavam precisando de em
pregados. Disseram que sim, era só subir no ônibus. Su
bi, o ônibus seguiu para a Thyssen e depois fomos dividi
dos em grupos, cada um para um canteiro de obras.
“ O primeiro dia foi um inferno. Sujeira, pó, fuma
147 ’
ça: um verdadeiro inferno; terrível para a saúde. Fomos
trabalhar na fundição. Limpamos as máquinas e as ferra
mentas e engolimos fumaça e poeira. Alguns começaram
a vomitar e houve um que até desmaiou. Outros caíram,
não conseguiam mais respirar.
“Dámuita raiva trabalhar num local tão imundo. Não
nos dão nem sapatos de proteção. Adler não tem a menor
compaixão das pessoas. Pouco se importa se um de nós
se arrebenta. Para ele, tanto faz se alguém morrer. E to
da aquela lenga-lenga, quando ele fala do salário: ‘Você
não precisa de tanto dinheiro. Você é solteiro, devia ficar
feliz por trabalhar aqui*.
“Não quer nem saber se a gente está bem ou mal. Para
ele é a mesma coisa se você está ferrado ou não. Na ver
dade, Adler não passa de um cafetão, é isso que ele é. A
única coisa que lhe interessa é o dinheiro que damos para
ele. É um bandido, mas está limpo, porque sempre age por
baixo do pano.
“Nunca me pagou o salário corretamente. Ainda ago
ra me deve mais de 800 marcos.
“ Há dias em que a gente fica completamente moído,
só deseja morrer. E na verdade é quase sempre por causa
do pó e da fumaça. Tudo isso vai enfraquecendo a gente.
Ataca diretamente os pulmões. Eu sinto isso porque gos
to de praticar esportes. Antes eu vivia correndo, no míni
mo uma hora. Mas hoje... basta correr alguns minutos e
os pulmões começam a queimar. O pessoal mais antigo
também tem um aspecto horrível. Inclusive os da Remmert.
“ Os que já estão trabalhando há três ou quatro anos
parecem muito debilitados. Têm trinta, quarenta anos de
idade, mas aparentam cinqüenta. Ou mesmo sessenta. O
cabelo caiu quase todo, o rosto é magro, encovado, páli
do. Às vezes, acho que estou com câncer, câncer nos pul
mões, por causa de tudo isso que respiramos. Uma cama
da tão grossa de pó que é impossível enxergar um palmo
adiante do nariz. Lá no setor Oxy é pavoroso. Eu tenho
medo de sofrer muito com uma morte assim.
“ Um dia, eu tive a exata sensação de estar bem no
148â
meio de uma guerra atômica: pó, fumaça e tudo mais. Igual
aos filmes de guerra que a gente costuma ver.
“ Sem falar naqueles outros locais extremamente pe
rigosos. Por exemplo? Os lugares onde escapa o gás. A
gente pode se ferrar num local desses. E é obrigado a tra
balhar lá dentro, nesses locais superperigosos. Por toda
parte há tabuletas avisando que a gente pode se ferrar se
escapar muito gás. O pior é que nem conseguimos perce
ber, nem conseguimos sentir o cheiro do gás. Tem aquele
aparelho para indicar se há perigo. Eu freqüentemente te
nho tontura, vontade de vomitar. Há dias que não dá pa
ra agüentar. Muitas vezes perco a fome, não coloco nada
na boca, o tempo todo só engulo aquele pó. Dá até para
mastigar o pó, de tão espesso que é. Cheio de chumbo,
cádmio e um monte de outra coisa, quem sabe ao certo?
Às vezes vou para um canto e vomito; depois me sento
um pouco para respirar.
“ É preciso mesmo ver para crer... Mesmo depois do
banho, quando você chega do trabalho, aquilo tudo ain
da fica depositado nos pulmões. Por fora, você está lim
po; mas por dentro... fica tudo lá dentro. Essa merda te
deixa imundo. Daí você vai e faz ela desaparecer. Mas,
no dia seguinte, lá está você de novo no meio de toda essa
merda. E assim sem parar.
“ Não entendo como podem pagar tão pouco por um
trabalho desses. Eles querem enriquecer depressa. Querem
ganhar mais e mais, e já são tão ricos... Mesmo que pren
dessem Adler, não ia mudar nada. A Remmert continua
ria com o serviço, e a gente continuaria a se ferrar. E a
Thyssen sabe de tudo, claro! É ela que nos dá emprego,
portanto deve saber de tudo.
“ Para mim a vida não tem nenhum valor. Não tem
nada de significativo. Antes, com catorze, quinze anos,
já quase um adulto, a gente tem uma namorada e quer ir
para a cama com ela, não é? Mas, depois, o que sobra?
Não, isso não é o máximo! Só quando a gente tenta con
seguir alguma coisa, quando tem um objetivo, é que a vi
da passa a ter sentido. A gente sente vontade de fazer al
149'
guma coisa... mas, se não for assim, a vida não tem senti
do. Para que é que ela serve, hein?
“ Quando eu fui mais feliz? Quando viajei de férias
para a Turquia, junto com meus pais. Eu tinha doze anos.
Foi muito legal. Tive uma sensação ótima, completamen
te diferente. E quando me senti pior? Agora, trabalhan
do para Adler, aqui na Thyssen. É a pior coisa. Eu prefe
ria estar morto” .
“ Chuveiro de emergência”
150*
Assustado, um operário turco quis afastar-se da zona pe
rigosa. O encarregado da Thyssen ordenou-lhe que conti
nuasse a trabalhar; do contrário sua atitude seria consi
derada como abandono do posto de serviço e ele poderia
ir definitivamente para casa.
Um dos encarregados explica-nos para que servem tan
tos dispositivos: “Uma vez houve um acidente na área do
conversor, e por isso a empresa foi obrigada a instalar es
se sistema de alarme e prevenção. Se acontecer alguma coi
sa, a Thyssen não será responsável. Vocês foram muito
bem informados de que não deviam trabalhar naquele se
tor” . É desse modo que a Thyssen se isenta de responsa
bilidade. Se algo acontecer, nós mesmos seremos os cul
pados — graças a nossa estupidez, já que a advertência
foi bem clara. Mas, para nossa tranqüilidade, instalaram
vários chuveiros na zona perigosa. Em caso de incêndio,
basta correr para baixo da água. Mesmo os imigrantes que
não sabem alemão entendem para que servem os chuvei
ros: há tabuletas esmaltadas com a silhueta de um operá
rio munido de equipamento completo de segurança e ro
deado pelas chamas sob o jato de água. Nas tabuletas es
tá escrito: Chuveiro de E mergência .
Finalmente uma tarefa agradável perto da concreção
III: do alto do telhado baixamos, através de cordas, cai
xotes com baldes repletos de pó e lama. É um trabalho
cansativo, que nos faz suar às bicas, mas pelo menos per
mite que respiremos um ar suportável. E ainda nos dá a
chance de admirar toda a paisagem industrial que se es
tende ao redor. Conseguimos até avistar o Reno ao lon
ge! A vida adquire novo brilho quando a gente escapa da
quelas masmorras sombrias e empoeiradas. Até a chuva
é bem-vinda. É mesmo um prazer desfrutar aquela visão
ampla, e sem sofrer crises de asfixia. Sentimo-nos como
se tivéssemos saído de uma prisão. Depois de quase três
horas de deleite nessa liberdade relativa, somos obrigados
a regressar repentinamente ao setor Oxygen. Acomodamo-
nos no ônibus como podemos, agachados entre ferramentas
e carrinhos de mão. Um turco de certa idade quase foi atro
151'
pelado devido à pouca visibilidade. Comentário do encar
regado a nosso motorista turco: “ Passe por cima, rápi
do! Há uma recompensa para cada turco a menos!”
O “xerife” Zentel, expõe o problema: a máquina de
transbordo do ferro-bruto — um monstro gigantesco —
enguiçou. Toda a produção está parada. Cada minuto que
passa representa um prejuízo imenso para a siderúrgica.
O bloqueio provocou ainda a ruptura de uma peça da má
quina. Já providenciaram uma nova e estão tentando
colocá-la. Nossa tarefa: entrar nos estreitos dutos de as
piração do pó e desobstruir a máquina.
“Apressem-se e dêem duro lá dentro!” diz o “xeri
fe” . “Só poderão sair quando o equipamento voltar a fun
cionar. Quero que tudo esteja em ordem até uma da tar
de, no máximo!”
Empoleirados nas oscilantes escadas de mão, precisa
mos fazer muita ginástica para nos espremer naquelas aber
turas que mal têm a largura de nossos ombros. A golpes
de pés-de-cabra, pás e malhos gigantescos, tentamos remo
ver o minério de ferro ali incrustado, mas ele não se solta,
está grudado. Alfred, o encarregado, que está ali apenas
para acelerar o trabalho, espuma de ódio ao ver que só con
seguimos retirar uma pequena parte daquela massa espessa.
— Bando de macacos africanos, cambada de capa-
dócios, turcos de merda, judeus dos infernos! — põe-se
a enumerar aos berros. — Vocês não servem para nada
mesmo! Devíamos encostar todos vocês na parede e me
ter um tiro na nuca de cada um! — Quando perde o fôle
go de tanto gritar, passa às vias de fato e joga um pé-de-
cabra na cabeça de um operário indiano, felizmente
atingindo-o só de raspão. — Da próxima vez, fique em
casa! — esbraveja. — Não tenha medo, que eu não vou
trabalhar na Turquia.
— Ele não é turco — tento explicar-lhe. — Indiano.
Mas Alfred não desiste:
— Conheço de longe quem vem da Anatólia! Todos
têm a mesma cara de burro! Esse aí também é de lá, desse
lugar onde o pessoal apaga a luz com o martelo!
152*
(Um dia, Alfred fez um comentário sobre mim para
um dos trabalhadores alemães. Disse que eu também sou
da Anatólia porque sempre faço “perguntas cretinas, des
sas que nem passam pela cabeça da gente” . E certa vez
perguntou-me por que não fiz a gentileza de ficar na Tur
quia. “ Motivo político” , respondo, “ ditadura militar.”
Minha resposta levou-o a dizer a um colega alemão: “Ali
não pode mais voltar para a terra dele, por isso é que tra
balha aqui. Na Turquia eles têm um Khomeini enlou
quecido!” )
Depois de uma hora de ofensas e tormentos, o “xeri
fe” aparece e constata que é impossível prosseguir com
essas ferramentas primitivas. Manda buscar perfuratrizes,
brocas e compridas raspadeiras. Sem máscaras, voltamos
a atacar a massa compacta, provocando nuvens de pó. Sob
os constantes insultos dos dois chefes, rastejamos para o
interior da máquina. O barulho estrondoso das perfura
trizes ecoa nos estreitos dutos metálicos, ensurdece-nos
completamente. Protetor de ouvidos? Nunca ouvimos fa
lar nisso... os olhos ardem, o nariz escorre, todos come
çam a escarrar. É o inferno! Mais tarde, Mehmet conta-
me que, em situações como essa, é preferível passar alguns
meses na prisão a suportar tanto horror por algumas ho
ras. Em tais situações, imaginamos os piores métodos pa
ra assassinar Adler; em tais situações, como quem arrisca
tudo numa cartada, tomamos algumas decisões: um rou
bo mirabolante ou um assalto a banco. Porque quem se
enfia neste buraco não tem nada a perder, não tem nem
medo da prisão!
Os joelhos estão ensangüentados; as calças, esfarra
padas; as luvas de trabalho, despedaçadas. E a máquina
de transbordo continua parada! Já fez treze, catorze, quin
ze horas que estamos aqui dentro, batendo com estas fer
ramentas pesadas e engolindo todo este pó.
Nesse meio tempo, um dos chefões da Thyssen apa
rece e põe-se a xingar todo mundo, porque a equipe do
turno seguinte está esperando para colocar a máquina em
153"
A li e alguns colegas de trabalho
154
A dra. Jutta Wetzel, gastroenterologista, relata a situa
ção de seus pacientes imigrantes:
“ Em geral, os operários imigrantes trabalham nas con
dições mais desfavoráveis. E não estamos falando só dos fa
mosos trabalhos insalubres, mas também — e isso tem um
peso ainda maior — daquelas atividades em que o operário
é obrigado a permanecer durante horas em posturas força
das. A conseqüência disso são os fenômenos de desgastes pre
maturos na coluna vertebral e nas articulações. Da mesma
forma, a presença maciça de fumaça e pó favorece o apare
cimento de bronquite e gastrite. E há ainda o perigo de en
trar em contato com substâncias altamente nocivas, como,
por exemplo, o amianto.
“ Entretanto só conheço tais locais de trabalho através
das descrições fiéis de alguns pacientes. Pois sempre que ma
nifestei desejo de visitar esses locais, impediram-me de fazê-
lo. A despeito do alto índice de desemprego, as indústrias ra
ramente encontram alemães dispostos a aceitar esse tipo de
serviço. As empresas (companhia de mineração, siderúrgica,
fábrica de automóveis, pavimentadora, estaleiro, indústria
química) precisam tanto de operários imigrantes que aceitam
como inevitável a taxa relativamente alta de enfraquecimen
to doentio. Portanto, é imprescindível relacionar o enfraque
cimento doentio dos operários alemães e imigrantes com suas
diferentes condições de trabalho” .
157"
tro nervoso e manifestam-se através de formigamento e en
torpecimento das mãos e dos pés seguidos de crescente insen
sibilidade na região bucal. Simultaneamente aparecem lesões
oculares, com redução do campo de visão. O sistema nervo
so central é afetado, provocando redução da mobilidade mus
cular e perturbação da função coordenadora, além de graves
danos ao equilíbrio. Braços e pernas agitam-se em espasmos
freqüentes, e os músculos são atacados por tétano. O cére
bro atrofia-se em 35%...”
Mesmo as “ concentrações mais diminutas*' desses ele
mentos podem produzir efeitos tóxicos (venenosos). Por isso
a legislação autoriza “no máximo" 1 mg de mercúrio por qui
lo (1 ppm) e 10 mg de chumbo por quilo (10 ppm) nos pro
dutos alimentícios. Nossa “refeição” indesejada da Thyssen
contém oitenta vezes mais mercúrio (77,12 ppm, exatamen
te) e 2 500 vezes mais chumbo (2 501 ppm).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que
a absorção semanal de 3 mg de chumbo por pessoa é o máxi
mo tolerável. Ironicamente, a expressão “ter os braços (ou
as pernas) pesados como chumbo" corresponde à realidade,
pois 90% da quantidade de chumbo absorvida concentram-
se nos ossos.
A mesma coisa vale para o mercúrio, que também se con
centra no corpo.
Só com um exame de sangue pode-se determinar a quan
tidade em que essas substâncias nocivas estão concentradas
nos pulmões, sangue e ossos dos operários da siderúrgica. A
maior parte de meus colegas queixa-se regularmente de difi
culdades respiratórias, náuseas, falta de apetite, vômito, dis
túrbios circulatórios e bronquite aguda. Entre os cientistas
não há a menor dúvida: a bronquite está diretamente rela
cionada com a irritação provocada pela absorção do pó. Ou
tros distúrbios manifestados são sintomas clássicos de into
xicação por metais pesados — e especialmente pelo chumbo.
“ Uma vez doente, sempre doente'*
Há décadas, os cientistas que estudam as causas das
doenças têm pesquisado os perigos que ameaçam a saúde dos
operários nas coquerias do mundo inteiro. Não há nenhuma
dúvida: trabalhar em coqueria afeta a saúde.
O maior perigo provém do pó em suspensão produzido
pelo gás de coque, porque contém alcatrão. “ O alcatrão e
todas as substâncias que ele engloba têm efeito cancerígeno” ,
escreve na revista especializada Arbeitsmedizin o prof. dr. A.
Manz, da Universidade de Hamburgo.
Diversas estatísticas têm sido publicadas sobre a ocor
rência de doenças cancerosas entre os operários de coqueria.
Até o momento, porém, somente o câncer da pele foi reco
nhecido pelas autoridades da República Federal da Alema
nha como doença do trabalho, conseqüência do contato com
o alcatrão de hulha. Esse, porém, não é o maior problema.
Os operários de coqueria contraem em média três vezes
mais câncer dos pulmões que o resto da população masculi
na alemã e duas vezes mais câncer da bexiga, do estômago
e do intestino. Os números são ainda mais alarmantes quan
do se comparam os operários de coqueria com os emprega
dos de escritório: os operários morrem de câncer da bexiga
numa proporção dez vezes maior e contraem câncer dos pul
mões numa proporção oito vezes maior.
A ciência conhece a causa: o benzopireno, substância al
tamente cancerígena contida no alcatrão de hulha. O benzo
pireno também é encontrado na fumaça do cigarro; só que
na coqueria sua concentração é de trezentas a quatrocentas
vezes maior.
Um estudo minucioso feito com operários de coquerias
da Polônia revelou estreita relação entre “ certas afecções crô
nicas das vias respiratórias” (por exemplo, bronquite crôni
ca) e o gás de coque. Mas não é só: quem já sofreu de bron
quite está particularmente propenso a contrair outras doen
ças, porque o gás das coquerias afeta o sistema imunológico
do corpo.
“ Uma vez doente, sempre doente", reza o dito popular.
O prof. dr. Manz nos dá a conclusão: os operários que
trabalham nas coquerias têm uma expectativa de vida signi
ficativamente menor.
159<
O teste
Parem de usar animais como
cobaias — usem os turcos!
(Grafite num muro em
Disburg/Wedau)
Cobaia humana
Osman Tokar (22 anos), um de meus colegas turcos,
foi despejado. Há algum tempo Adler prometeu-lhe pagar
os salários atrasados. Seu senhorio, porém, não quis espe
rar mais: Osman teve de sair do local onde morava. Sua
mobília humilde ficou lá como penhor, trancada no po
rão, até o proprietário receber os 620 marcos de aluguel
atrasado. A partir daí Osman não tem residência fixa. Às
vezes dorme na casa de um primo, num colchão colocado
no corredor; às vezes procura amigos que o abrigam por
algumas noites. Mas não pode fícar muito tempo, pois não
há espaço suficiente nem mesmo para os moradores.
Osman confessa, envergonhado, que chegou a passar
a noite num banco de jardim. Corre o risco de ser expulso
do país porque não pode comprovar um endereço fixo, além
de já ter recorrido aos serviços de assistência social. Mas
não quer voltar para a Turquia, para onde só ia como visi
tante. Sente-se mais em casa nesta Alemanha glacial, onde
não passa de um estranho, que em seu país de origem, on
de passou apenas os dois primeiros anos de sua vida. Fala
alemão um pouco melhor que turco, mas as duas línguas
continuam sendo estrangeiras para ele. Desconhece seu ver
dadeiro lugar; é como se lhe tivessem “ roubado a alma” .
Proponho-lhe que venha morar comigo, na Diesels-
trasse, mas ele recusa. Devido ao trabalho na Thyssen, ad
quiriu uma tosse crônica e agora tem medo de dormir “nu
ma cama envenenada pela proximidade da coqueria” . Às
vezes pensa em se matar. Um dia, depois de trabalhar um
turno inteiro num depósito de carvão e inalar quilos de
sujeira até vomitar, fomos descansar um pouco ao ar li-
160 4
vre. Foi então que ele me disse: “Às vezes eu penso em
me atirar dentro do alto-forno. Faria um pequeno chiado
e não sentiria nada mais*'. Eu me calo, consternado, e Os-
man continua: “A gente só tem medo porque é novidade
e ninguém ainda tentou. Mas se arrastar no pó feito ver
me e ao mesmo tempo ser espezinhado é mil vezes pior” .
Conta-me a história de um operário que caiu aciden
talmente no alto-forno e num segundo virou brasa. Co
mo nada restou, pegaram simbolicamente um pouco de
aço fundido e entregaram à família para o “ enterro” . Na
verdade, o corpo do operário fundiu-se no aço e foi parar
na laminação, onde se transformou em chapa para auto
móveis, panelas ou tanques.
Osman anuncia que vai visitar o tio em Ulm. Pode
ficar morando lá com ele e conseguir um serviço que no
a mínimo será tão nocivo quanto o da Thyssen, mas pelo
menos será remunerado. No começo, não diz exatamente
do que se trata, apenas comenta que “na Thyssen, temos
que engolir o pó e trabalhar como escravos; nesse outro
serviço, só temos que engolir e dar o sangue” . Conta-me
que requisitam muitos estrangeiros — turcos, indonésios,
refugiados políticos sul-americanos, paquistaneses — pa
ra esse trabalho especial que consiste em servir de “cobaia”
para a indústria farmacêutica. Pergunto se posso tomar
seu lugar num teste que deverá ter início dentro de alguns
dias; como compensação, eu lhe daria a metade do salá
rio: 1 000 marcos. Ele concorda. O tal serviço vem mes
mo a calhar. Com os ombros doloridos e uma bronquite
que aos poucos se toma crônica, eu já deveria ter aban
donado o trabalho pesado na Thyssen há muito tempo.
Osman me dá o endereço do Instituto LAB em Neu
Ulm. É um prédio imponente, um pouco sombrio, com
o mau cheiro característico dos albergues de juventude dos
anos 50. Um jovem de seus 25 anos, bem-humorado, está
sentado na recepção como o autêntico *‘pai do albergue* *.
Ele se esforça para tornar o ambiente mais descontraído
e tranqüilizar a todos. Na sala de espera estão algunspunks
(fregueses habituais), estrangeiros do tipo mediterrâneo,
1611
O LAB, em Ulm, é um dos maiores institutos de testes da
Europa. Em seus fichários há os nomes de 2 800 provadores
— ou seja, cobaias humanas. Isto também pode ser dito de
outra forma: testam em nós o que é bom para os lucros da
indústria farmacêutica e os efeitos colaterais que podem apa
recer nos pacientes.
Apenas uma ínfima percentagem das novas substâncias é
realmente testada. De acordo com a lei de medicamentos de
1976, milhares de remédios antigos devem ser novamente tes
tados. Mas na verdade o que se faz é um sem-número de estu
dos apenas para descobrir melhores estratégias de venda. Pes
quisas sérias e significativas são muito raras. Estudam-se cam
panhas de publicidade, ampliação de mercado ou um modo de
lançar um novo medicamento totalmente supérfluo, igual a de
zenas de outros que se encontram à venda sob nomes diferen
tes, mas contêm, quase todos, as mesmas substâncias químicas.
Muitas pessoas insurgem-se — e com razão — contra os
testes dolorosos e desnecessários realizados em anim ais. Mas
quase ninguém se incomoda com os testes inúteis e perigosos
realizados em pessoas. Nenhum serviço público os fiscaliza.
Está mais que comprovado que as indústrias farmacêu
ticas adulteram e até mesmo copiam os pareceres emitidos
por clínicas conceituadas, ainda que estes se fundamentem
em testes realizados em hospitais públicos. Já imaginou co
mo devem ser os testes feitos nos diversos institutos particu
lares que, na prática, dependem totalmente da indústria far
macêutica e experimentam os medicamentos em cobaias até
então *'‘saudáveis" pagas para isso?
Uma coisa está muito clara: os resultados negativos ou
alarmantes são prejudiciais aos negócios — não importando
se chegam ao conhecimento do público através dos médicos
que trabalham em hospitais ou através dos “institutos" que
fazem o teste em suas cobaias.
O prof. Eberhard Greiser, diretor do conhecido Institu
to de Bremen para Pesquisa e Medicina Preventiva — órgão
que critica esse método da indústria farmacêutica —, decla
ra o seguinte: “ Na prática, testes com resultados negativos
concernentes a determinado medicamento não são publica
dos. Foi o que relataram muitos especialistas que encontrei
ao longo do tempo na ‘comissão de transparência' (comis
são especializada dentro do Ministério da Saúde)".
162'
Os trustes farmacêuticos encomendam inumeráveis sé
ries de testes com os devidos pareceres de peritos, mas apre
sentam aos organismos federais da Saúde Pública apenas os
resultados favoráveis. As autoridades só tomam conhecimento
dos resultados negativos quando alguns médicos e/ou cola
boradores desse truste econômico não podem mais se respon
sabilizar por tal prática e acabam soltando essas informações.
Os serviços encarregados da autorização e vigilância dos me
dicamentos n'à República Federal da Alemanha não sabem
sequer o nome do instituto em que tais testes são realizados.
O poder dos trustes farmacêuticos em nosso país é tão gran
de que torna isso possível. Em outros países há uma legisla
ção severa, que os obriga a declarar todos os testes realizados.
166 *
“ Música até o amanhecer". Desligo o rádio e apago a luz
que me ofusca.
Na estação ferroviária, os vagões são manobrados
ininterruptamente, com um barulho ensurdecedor. Atra
vés da janela aberta chega o ruído dos copinhos de papel
arrastados pelo vento. Alguém se masturba incansavelmen
te sob o cobertor.
Às seis horas da manhã, abre-se a porta. “Levantar!”
Obedecemos em silêncio, sem nos cumprimentar. Cada um
de nós está muito ocupado consigo mesmo. Meu frasco
de urina recebe o número quatro. Isto significa: às 6h04,
cateter no braço; às 7h04, medicamentos; às 8h04, coleta
de sangue e assim por diante.
Nas primeiras vezes ficamos em fila. Depois, conhe
cendo já os que estão à frente e atrás, sabemos quandò
é nossa vez. O homem que está atrás de mim acabou de
sair da prisão e não conseguiu arranjar emprego em lugar
nenhum. Aqui ninguém lhe faz perguntas. Dois sujeitos
jovens, que nos enfiam os cateteres nos braços, conver
sam sobre os próximos exames na faculdade. Ainda não
terminaram seus estudos de medicina. Vigiam-nos para
certificar-se de que todos nós tomamos os remédios. Te
nho de engolir as duas pílulas debaixo de seus olhares. A
primeira coisa que sinto é que meu campo visual se reduz.
Tento olhar para o pátio, mas o sol me ofusca, dói-me a
vista. Deito-me na cama sonolento e apático. De hora em
hora vou como um sonâmbulo para a coleta de sangue.
Os outros também estão pálidos e abatidos. Com freqüên
cia cada vez maior deixam de comparecer aos exames e
precisam ser arrancados da cama. Uma mulher queixa-se
de calor, vertigem e distúrbios circulatórios. Tem o braço
frio, áspero e dormente.
No dia seguinte encontro-me num estado ainda mais
lastimável. Esses testes são absurdos, pois já se conhecem
todos os efeitos colaterais. Já os sentimos: vertigem vio
lenta, fortes dores de cabeça e distúrbios de percepção,
além de estupor permanente. A gengiva sangra muito. O
sangue é coletado sete vezes por dia e devemos estar sem
' 1674
pre à disposição. Os outros também se queixam. Basta um
de nós se queixar para praticamente todos admitirem que
têm fortes dores de cabeça. Evidentemente não dizem na
da diante dos funcionários, pois temem não ser aceitos em
outros testes. Um deles conta: “Muitas vezes eu me sen
tia um trapo. Numa ocasião participei de dois testes dife
rentes ao mesmo tempo, porque precisava de dinheiro com
urgência. Ai, sim, me ferrei por completo. O coração dis
parou, batendo como louco. Até pensei que fosse pifar..."
Um sujeito mais jovem diz que não ficou até o final de
um teste porque lhe aplicavam tranqüilizantes muito for
tes. Tranqüilizantes são sedativos que rapidamente levam
ao vício. Depois do teste, todos os participantes ficaram
meio “ abobalhados” . “Alguns caíam, sem conseguir fi
car em pé e precisavam ser carregados. Se por acaso você
puder dar uma olhada no relatório a seu respeito, vai ver
que na coluna ‘efeitos colaterais' tem uma cruz no ‘não’.”
Depois dessa “ primeira série” — isto é, depois de 24
horas — decido interromper o teste. Eu deveria ficar
“ aquartelado” ainda mais três vezes nas onze semanas se
guintes. Com os efeitos colaterais agravando-se. Sem con
tar que durante esse período deveria estar no instituto to
dos os dias — inclusive sábados e domingos —, às sete da
manhã, para coleta de sangue e entrega dos recipientes plás
ticos com minha urina. Abandonando os testes antes do
término, não recebo um centavo.
Para Eberhard Greiser, professor da Universidade de
Bremen, “aproximadamente, dois terços desses estudos far-
macológicos são desnecessários. São estudos que têm pro
pósitos comerciais, e não há nenhuma relação entre sua
utilização e as despesas que acarretam” .
Há dois anos esses testes provocaram a morte de Neill
Rush, jovem “ cobaia profissional” de Dublin, que estava
“testando” para a firma Kali-Chemie, de Hannover, um
medicamento para arritmia cardíaca. A firma não quis se
responsabilizar pela morte de Rush. Para ela, “tratou-se de
um ato irresponsável por parte do voluntário” , pois um
dia antes Neill havia testado em outro instituto um sedativo
168'
A li submete-se ao teste
169’
Ao contrário do LAB, o Bio-Design está instalado num
prédio futurista semelhante a uma estação espacial. A re
cepcionista faz a mesma pergunta precavida que Adler cos
tuma fazer aos novatos, só que usa palavras mais elaboradas:
— Quem nos recomendou ao senhor?
Digo-lhe o nome do meu colega do LAB e imediata
mente recebo uma proposta tentadora: 2 500 marcos por
quinze dias — mas, é claro, não posso sair dali. Então
pergunto:
— Desconta imposto?
Responde a mulher:
— Não, não. Não declaramos imposto. Esse serviço
é considerado como de saúde pública.
Tenho a impressão de que não andam conseguindo
muitos voluntários, pois tentam atrair-me com uma nova
proposta:
— Caso o senhor resolva participar dos testes, po
deremos excepcionalmente falar de um adiantamento. —
E mais ainda: — O senhor será bem tratado. A comida
é de graça.
— E por que tanto dinheiro? O que vocês fazem?
Uma jovem funcionária dá algumas explicações,
acompanhadas, segundo me parece, de um sorriso pérfido:
— Trata-se de uma substância chamada mesperinon,
antagonista do aldosteron. É um mineral corticóide que
influi no sistema hormonal. Já está sendo comercializado
um produto desse tipo pertencente ao grupo dos espiro-
nolactons. Sabe-se que o uso prolongado dessa substân
cia provoca uma espécie de... digamos... efeminação, ou
seja, um desenvolvimento de seios nos homens. Mas isso
não acontece com um uso terapêutico de duas semanas.
— E isso é seguro? — pergunto.
— É o que esperamos. Mas esse é exatamente o ob
jetivo do teste. Nunca se tem certeza com essas coisas —
responde a moça.
— E se acontece, depois some?
— Claro — diz ela, tranqüilizando~me. — Tudo volta
para o seu devido lugar.
170 *
É evidente que está mentindo. Uma ginecomastia —
nome correto na linguagem médica para a formação de
seios nos homens — só é removido por cirurgia. Pelo me
nos essa é a opinião unânime dos especialistas.
Sobre outro ponto ela também não diz a verdade.
Pergunto:
— E a potência sexual? Tudo bem?
Resposta:
— Claro, com relação a isso não há nada a temer.
Na realidade, ainda não há resultados precisos quan
to ao uso de mesperinon em homens. Um texto explicati
vo que acompanha o teste sublinha expressamente que se
deve esperar efeitos colaterais como “ dor de cabeça, ton
tura, confusão mental, dor de estômago, reações cutâneas”
e, nas doses mais elevadas, “ginecomastia e impotência” .
O Bio-Design não mede esforços para prender suas cobaias
humanas. Uma cláusula do contrato diz: “ No caso de
abandono sem aviso prévio, a Sociedade Bio-Design po
de exigir dos voluntários uma indenização pelas despesas
provenientes da realização dessa pesquisa...” O Bio-Design
está bem pouco preocupado com o fato de esse contrato
atar as mãos de quem o assina e ser, sem dúvida alguma,
imoral. As “ cobaias” são completamente pressionadas a
resistir, apesar de eventuais dores e sintomas.
Por trás da amável e elegante fachada de uma firma
de beleza, esconde-se um dr. Mabuse; que, servindo aos
grandes trastes farmacêuticos, convenientemente encami
nha aos testes químicos pessoas necessitadas para chegar-
se a uma conveniente estratégia comercial.
Felizmente posso me reservar o direito de recusar tal
proposta tentadora e a grande soma oferecida pela Bio-
Design. Outros, contudo, não podem fazer o mesmo. Fir
mas como a LAB e a Bio-Design lucram com a crise eco
nômica, que obriga mais e mais pessoas a procurá-las.
Os responsáveis por esses institutos escusam-se nas
chamadas “ comissões de ética” , das quais tomam parte
cientistas e até eclesiásticos. Comissões de ética são comis
sões de controle voluntárias, cujas resoluções devem ser
171'
cumpridas sob forma de lei. É o que ocorre em países co
mo os Estados Unidos e o Japão, mas não na República
Federal da Alemanha.
Nesse contexto, ética não passa de cinismo. Os res
ponsáveis pelas firmas podem a qualquer momento subs
tituir essas condições a seu bel-prazer ou colocá-las ime
diatamente de lado sem a menor cerimônia. E mesmo que
se tratasse de organismos oficiais, como é o caso em ou
tros países, nada se alteraria: quando muito, as comissões
de “ ética” só podem julgar questões médicas. Mas a éti
ca humana exigiria, no mínimo, que se preocupassem com
esses homens desesperados que foram impelidos para a
margem da sociedade e por esse motivo se candidatam ao
suicídio a prazo.
Minha proposta: promulgar uma lei que obrigue to
dos aqueles que têm grandes lucros nas indústrias farma
cêuticas a submeter-se aos testes. As vantagens dessa so
lução seriam ilimitadas: a maior parte dessas pessoas tem
condições físicas muito melhores que as “ cobaias profis
sionais” (geralmente extenuadas); e, graças aos lucros, po
deriam tirar férias maiores e fazer tratamentos adequados.
Assim, o número de testes cairia verticalmente, limitando-se
ao mínimo necessário.
Não é uma proposta leviana. Há cerca de sessenta anos
os pesquisadores de medicamentos testavam em si mesmos
as substâncias novas que descobriam.
Pude sentir na pele os efeitos colaterais que, segundo
me diziam, aparecem muito “raramente” . Ao regressar
dessa viagem pelos laboratórios farmacêuticos, minha gen
giva inferior começou a inchar e supurar. O dentista diag
nosticou “gengivite” e, presumindo corretamente, pergun
tou-me: “ O senhor tem tomado algum remédio à base de
fenitoína?” (Fenitoína era um dos compostos do medica
mento testado no LAB em Ulm.) Respondi que sim, e ele,
relacionando esse efeito colateral com minha suposta doen
ça, perguntou de imediato: “O senhor é epiléptico?”
A promoção
'174*
portanto, são todos assassinos em potencial. Para que não
desconfie de nada, peço que repita alguns nomes, como
se entre eles estivesse o procurado. Mas logo sacudo a ca
beça negativamente: o nome do vingador não consta da
lista. Evitando que ele passe a suspeitar de algum dos meus
colegas, invento um vingador fantasma, um “ árabe sócio
de academia de boxe turca e com pata em lugar de mão”
(com um gesto mostro o tamanho das mãos). Há pouco
tempo esse árabe “com murro só, quebrou cara de ale
mão” que o tinha feito de idiota. “ Sujeito fica todo arre
bentado, com olho que não abria mais e cara torta.”
Adler está verdadeiramente impressionado. Aproveito
para falar de meus outros méritos especiais. Conto que,
além de lutar caratê, também já fui motorista de táxi du
rante muito tempo e antes disso trabalhei como chofer par
ticular do proprietário de uma grande fábrica.
— Que tipo de fábrica? — pergunta Adler, fazendo-
se de profundo conhecedor do asssunto.
— Fábrica faz maquininha para gente falar com ou
tro — explico.
— Você quer dizer walkie-talkies?
Confirmo, orgulhoso. Se for necessário, posso con
seguir uma carta de referência, assinada pelo dono da fá
brica, que evidentemente é um velho conhecido meu.
— Eu ainda tem uniforme em guarda-roupa — con
tinuo, vaidoso. — E também quepe bonito, bom pano!
— Interessante... E você dirige bem?
— Eu dirige sim. Não tem problema. Chefe sempre
dormia quando eu dirigia. E eu também sabe consertar car
ro quando quebra.
Mentira deslavada. Mas confio em que o Mercedes 280
SE de Adler, quase novo, com acessórios especiais e todos
os equipamentos imagináveis, nunca precise de conserto.
— Está certo! Podemos falar sobre isso — diz ele. —
Estou mesmo precisando de um motorista. Além disso vo
cê poderá me manter afastado desses sujeitos chatos. É só
me dizer os nomes. Bato um fio imediatamente para a po
lida de estrangeiros, e eles são expulsos num piscar de olhos.
.175'
— Senhor deixa para Ali — declaro, tentando desviá-
lo do assunto. — Senhor não precisa ter medo. Eu conta
para eles que eu é homem de Adler, e eles fica calminho.
Um soco de Ali, e pronto! Melhor que polícia.
— Está bem, Venha na segunda-feira, às dez e meia
da manhã. Faremos um teste.
Foi assim que consegui minha “promoção” : de en-
golidor de pó e trabalhador braçal a motorista particular
e guarda-costas. Prova de que em nossa sociedade ainda
há oportunidade de ascensão inesperada. Mesmo para o
último dos operários imigrantes.
Por sua vez, Adler logo tenta um de seus habituais
golpes.
— Você ainda está doente — diz. — Preste atenção...
vou registrá-lo na previdência. Depois você procura um
médico e pede um atestado. Então a previdência paga o
seu salário. E você fica trabalhando para mim.
Precisei de muita abnegação para trabalhar como mo
torista de Adler nas semanas seguintes. Bastava eu tocar
no volante para ele começar com sua rabugice. “Faça o
favor de prestar atenção!” Ou: “ Pare de me pôr em ris
co” . Ou então: “ Quantas vezes preciso dizer que isso que
você está dirigindo é um objeto de valor?” Ou ainda:
“ Gostaria muito que você guiasse com segurança e serie
dade quando estou no carro. Sua responsabilidade é nos
deixar, a mim e ao carro, sãos e salvos em casa” .
Assim, sou obrigado a dirigir bem devagar e pruden
temente, três vezes mais devagar do que dirijo meu pró
prio carro. Já nem se pode chamar isso de dirigir: é como
um leve balanço de rede. Mas Adler continua apavorado.
Ou quem sabe se essa mania de resmungar não é apenas
uma necessidade de auto-afirmação?
A cada dia ele me convoca para estar em sua casa mais
cedo. Sinto-me usado como “serviço de despertador” . To
co a campanhia. Passam-se alguns minutos até que Adler,
com voz de sono, grite lá de cima: “Espere aí! Só demoro
dez minutos!” E espero, espero, espero... Fora, diante da
casa, não há nenhum local coberto em que eu possa me
176'
abrigar se chover. Não ocorre a Adler jogar-me as chaves
do carro para que eu possa ficar lá dentro.
Por volta das oito, nove horas é que o bairro começa
a se animar. Persianas são erguidas, janelas se abrem com
lentidão. Automaticamente, as portas das garagens vão se
levantando, e empresários bem-sucedidos, em suas limu
sines impecáveis, partem rumo ao mundo dos negócios.
Uma mulher coloca ao lado da janela uma gaiola luxuosa
com pássaros exóticos. Todos os jardins são bem cuida
dos, a grama perfeitamente aparada.
É muito raro Adler exigir que eu apareça em sua ca
sa às sete ou oito da manhã. Quando isso acontece, fico
esperando trinta minutos, às vezes uma hora, para só en
tão sair com meu senhor. Em geral, o dia para Adler não
começa antes das dez ou onze e termina às duas ou três,
no máximo às quatro da tarde — e muitas vezes com um
intervalo de uma hora para o almoço. Seu trabalho coti
diano resume-se em ir aos vários bancos, em Oberhausen
e Dislaken, para consultar os depósitos de dinheiro. Cu
riosamente todos esses bancos não ficam no bairro onde
ele mora. De vez em quando, Adler vai visitar Remmert,
seu amigo e sócio. Quase sempre no horário em que os
empregados não estão voltando de seus turnos, para evi
tar as costumeiras “ perguntas insolentes” e “ absurdas exi
gências salariais” . Adler costuma ligar o sistema de alar
me do automóvel, porque nunca se sabe...
Na volta, às vezes passamos por seu clube de tênis em
Duisburg, onde há um restaurante, para que ele possa “dar
uma olhada no que está acontecendo” ou encontrar seu
“ fraudador de impostos” — isto é, seu consultor fiscal e
amigo intimo. Adler declara oficialmente como rendimento
anual alguma coisa “ entre 500 mil e 1 milhão de marcos”
— quantia que mal daria para seus gastos reais. Se somás
semos apenas as contribuições sociais não recolhidas de to
dos os seus operários que se encontram em situação ilegal,
obteríamos com certeza um múltiplo desse total.
É um martírio ser seu motorista. Ele sempre encon
tra alguma coisa para criticar, sempre acha que sua vida
177'
corre perigo. Tenho a impressão de estar transportando
não um ser humano de carne e osso, mas uma múmia aper-
gaminhada, extremamente frágil, conservada numa caixa
de vidro e capaz de se desmanchar a uma simples freada.
Irritado, Adler continua botando defeitos em seu moto
rista, quando não berra de uma vez: “Não ultrapasse! Di
rija devagar, seu estúpido!” Ou então sua fórmula corri
queira adaptada para a situação: “Faça o favor de pres
tar atenção!” Ou mais ainda: “ Sejamos sérios! Não so
mos provocadores!” E tudo isso a menos de 50 quilôme
tros por hora na cidade e a menos de 140 na rodovia. Po
rém ele não está preocupado com a segurança alheia; é mais
o medo abstrato por sua própria vida, preciosa e muito
cara. A polícia provoca-lhe uma fobia instantânea. Basta
avistar um guarda ou uma viatura policial para ordenar
que eu desvie ou mude de caminho e ficar fora do alcance
o mais depressa possível.
Adler nunca olha para trás, seria um desperdício.
Aliás, é um dos lemas de sua vida, pois, fiel à letra de sua
música favorita — a “ Canção do mercenário” — deixa
para trás “ a terra queimada” : “ Cem homens e um só co-
mando/E um caminho que ninguém deseja/Dia após dia,
quem sabe para onde?/Terra queimada, qual é a razão?”
Certa vez quase sou desmascarado. Adler percebe que
fiz um sinal para o fotógrafo que, do outro lado da rua,
ia perdendo nossa saída.
— Para quem você fez sinal? — pergunta desconfiado.
— Não é sinal — respondo, tentando afastar suas sus
peitas. — É exercício caratê. Gente fica muito tempo sen
tado, precisa fazer exercício, mexer braço, perna, mão, bem
rápido.
E para fornecer-lhe uma prova evidente do que aca
bo de dizer começo a fazer movimentos espasmódicos com
os braços e as mãos, enquanto dirijo. Isso o deixa assom
brado. E ainda como reforço de minha dedicação ao exer
cício (e também para mantê-lo afastado de mim, caso me
desmascare), conto-lhe que, na academia de caratê, todos
têm medo de meus reflexos, rápidos como um raio:
178
— Uma vez colega de academia fez movimento fal
so e levou golpe sem querer. Resultado... quatro dias co
ma. — E para que me respeite digo-lhe que sou capaz de
quebrar tijolos com um golpe de caratê, mas tijolo velho,
não novo! Um golpe, e pronto, tudo acabado! — Faço
um gesto brusco em sua direção. E, para não continuar
assustando-o, acrescento: — Gente precisou assinar pa
pel lá em academia. Gente só pode brigar se alguém ataca
primeiro, nunca pode começar briga! — Se ele soubesse
que sou, por princípio, contra golpes e armas de qualquer
espécie e em tais situações minha bravura é sair correndo...
— Faça o favor de não se agitar assim dentro do carro!
Vai estragar todo o banco. Quando estiver lá fora, então
pode fazer essas coisas — começa a gritar de repente. Sem
motivo, porque os bancos são tão firmes que meus movi
mentos inofensivos não poderiam causar nenhum dano.
De qualquer forma, reforçando a seriedade de meus
exercícios de caratê e afastando suas suspeitas, ponho-me a
simular um lutador diante do carro, enquanto ele visita a
empresa Ruhrkohle-Wãrmetechnik, em Essen. Meus mo
vimentos atraem a atenção das secretárias que trabalham do
outro lado da rua, nos escritórios da União dos Médicos
Previdenciários. Apinhadas nas janelas do prédio, elas co
meçam a fazer sinais, encorajando esse guarda-costas que
se agita como um louco diante da limusine. Respondo a
seus acenos, o que provoca uma interrupção de no míni
mo quinze minutos no expediente da União dos Médicos.
Assim que retoma e vê toda a pantomima, Adler fi
ca furioso.
— Pare com isso imediatamente, seu idiota! Você ain
da vai me comprometer. Deixe para fazer essas coisas lá na
sua jaula de macacos da Dieselstrasse ou na academia turca!
— Tudo bem! Mas senhor disse que fora de carro eu
podia fazer... — argumento e corro a abrir a porta do au
tomóvel; depois, submisso, volto a sentar-me ao volante.
Às vezes, ouço o chefe despedindo pelo telefone do
carro alguns empregados “incômodos” ou “insubordina
dos” . Ao contrário do que se poderia supor, sua voz nunca
179
se altera, não demonstra menor irritação; há, sim, um tom
meio lascivo. “Alô, meu bem, escute só” , sussurra, “acabo
de me livrar de uma daquelas moscas varejeiras. Foi ain
da há pouco, na Ruhrkohle. O T. vai ser despedido ama
nhã. Não é fantástico?11
Ao convidar industriais e políticos — entre os quais
um deputado federal — para um fim de semana em seu
iate, na Holanda, relata a um sócio: “Um peso a menos!
Hoje o botei na rua! Assim, zap! O que esse sujeitinho
me irritou!”
Em outra ocasião, sempre pelo telefone, ele se põe
a filosofar: “Às vezes é preciso virar a mesa. Então todos
se pelam! O pior de tudo é amolecer. Aí eles montam em
cima, e você pode ir fazendo a trouxa...”
De fato. Adler pode pôr gente na rua segundo sua von
tade e seu humor. O desemprego, cada vez maior, atira-
lhe nos braços novos desesperados, que procuram qual
quer trabalho sob qualquer condição — ou quase. Ele es
tá longe de conhecer todas as vítimas de sua exploração;
quando muito, sabe o nome desses infelizes. Só quer o di
nheiro que lucra com eles.
Novamente ao telefone: “O pessoal da Ruhrkohle me
procurou. Eles montaram uma nova instalação e me disse
ram: ‘Olhe, as contratações estão suspensas, mas precisa
mos de eletricistas1. Então foram a uma agência oficial de
empregos, lá para os lados de Colônia, aplicaram um golpe
qualquer e pronto! Conseguiram os eletricistas como se ti
vessem sido contratados por mim. Eu nunca os vi, só rece
bo meu dinheiro todo mês.” Ri. “É, a gente precisa saber
se ajudar. É só querer e sempre se acha uma solução.”
Mais uma de suas conversas: “Para mim as melho
res são as grandes como Steag. Já trabalhamos com todas
as centrais elétricas: Thyssen, Ruhrkohle, Ruhechemie, Ge
neral Electric da Holanda. Todas empresas de fama mun
dial. Por isso é que, em geral, nem a inspeção do trabalho
nem fiscais de outras repartições ousam se meter nos ne
gócios delas. Assim, podemos fazer ou deixar de fazer o
que bem entendemos. Os empregados podem trabalhar até
180*
cair. Elas não querem nem saber; só querem que a gente
faça o trabalho depressa e discretamente. Quanto menos
empregados, melhor para elas, porque não dá na vista. E
dai eu tenho que me virar com menos empregados, o que
se reflete nos ganhos**.
Às vezes ele reconhece, com muito despeito, que al
guns de seus concorrentes conseguem superá-lo em maté
ria de cinismo e trapaça. Conta como alguns deles, encar
regados pelas grandes empresas de se “ livrar” dos deje
tos tóxicos, “ ganham duas vezes” pelo serviço: “ O F. es
tá encarregado pela Ruhrkohle de remover o lixo despe
jado no rio Emscher. Só com esse serviço ele já está ga
nhando um dinheirão no mole. Mas dobra toda essa gra
na com os dejetos de carvão, que ele passa num tritura-
dor, pulveriza e revende como combustível. O único pro
blema é que não pode armazenar o pó em silos porque
produz gases e vapores que podem provocar uma explo
são. A mesma coisa acontece com toda aquela montanha
de resíduos de minérios de Oberhausen. A cidade conce
deu a posse a um holandês, que transporta até a estrada
os resíduos não aproveitáveis de minério e recebe por me
tro cúbico. E sabe o que o sujeito faz? Mói todo o mate
rial e revende por um bom preço para as quadras de tênis.
É o negócio do momento essa história com as quadras de
tênis. Só que com isso elas têm muito ácido venenoso. Se
alguém cai numa quadra dessas fica com feridas nojen
tas. Mas todas essas coisas são necessárias: ganhar dinheiro
com a merda e se tornar mais caro. É assim, meu jovem,
tem gente que enfia o dedo na merda e quando o tira...
pronto, transformou tudo em ouro!”
Adler construiu sua fortuna sobre o lixo, o pó e a su
jeira — ou, para usar sua própria terminologia, sobre a
merda. Mas isso não o impede de zelar meticulosamente
por sua higiene pessoal. Tem um pavor histérico de con
taminar-se com a sujeira desse mundo. Seus trabalhado
res, verdadeiros escravos, representam para ele a casta dos
impuros, dos intocáveis, dos repugnantes, e bem que Adler
gostaria de mantê-los o mais longe possível. E quando pre
181'
cisa recebê-lost sua indignação não se baseia apenas na
perspectiva ameaçadora de se desfazer de algum dinheiro
para pagar salários atrasados, mas também no confronto
direto com o suor, a sujeira e a miséria — embora todos
sempre tenham se apresentado em sua casa limpos e cor
retamente vestidos. A única exceção sou eu. Muitas vezes
fiz questão de aparecer por lá com minha roupa de traba
lho coberta de graxa e lama, o rosto preto de fuligem e
pó. E, para seu pavor, ficava parado sobre o capacho co
mo um escravo que volta do trabalho, esfarrapado e
prostrado.
Mas adaptei meu novo uniforme ao Mercedes: calça
com vinco, camisa branca ou cinza, sempre impecável, gra
vata e sapatos de couro reluzentes de tão engraxados (não
mais aqueles enlameados calçados de trabalho). No entan
to, Adler continua considerando-me como um de seus es
cravos, vindos do submundo proletário. Só meu endere
ço — Dieselstrasse — já é um estigma. Para Adler, devo
ser a última das criaturas para viver naquela sujeira e tra
balhar bem ao lado numa imundície ainda maior.
Um dia lá pelas sete e meia da manhã, estou planta
do diante de casa de Adler, esperando-o há bem uns trin
ta minutos, quando de repente sinto vontade de ir ao ba
nheiro. Toco a campainha e pergunto se poderia usar o
toalete.
Adler : Vai cagar ou mijar?
EU: Tudo.
A d le r (com repugnância): Pois faça tudo aí fora
mesmo.
EU: Fora?! Mas onde?
ADLER: Num canto qualquer, mas longe daqui,
EU: Mas qual canto?
Adler : Tanto faz!
(Sou enxotado como um cachorro. E não há nenhum
local onde eu possa me aliviar. O jardim inteiro é desco
berto. Tenho vontade de dar uma bela cagada no capô do
Mercedes, bem em cima da estrela. Dez minutos depois,
Adler finalmente aparece.)
182*
Eu: Banheiro de senhor quebrado?
A dler : Não, não está quebrado. É que não gosta
mos disso. Vou ser bem franco... tenho medo de pegar
doença, entende? É uma questão de princípios. Não faze
mos essas coisas na casa de estranhos. Há tantas doenças
espalhadas por aí... Nunca se sabe onde a gente pode se
contaminar, não é mesmo? E é bem grande o perigo de
contaminação desse modo.
EU: E quando vem visita? Também vai fora fazer isso?
Adler (embaraçado, hesita antes de responder): Eu
já disse, nunca recebo visitas. Os empregados ou qualquer
outra pessoa não entram no meu banheiro. Mas eles já sa
bem disso. Ninguém pede. Em relação a essas coisas, eu
sou muito cuidadoso!
EU: O senhor tem medo de “ OIDS” ?
ADLER: Você quer dizer AIDS, não é? Bem, todos
têm medo. Mas eu... tomo meus cuidados. Por exemplo,
nunca vou ao banheiro na casa de estranhos ou num lu
gar que não conheço direito. Não vou mesmo.
EU: Sim...
Adler: Não vou mesmo. Tento me segurar para só
fazer em casa. Não entro em banheiro que não conheço.
EU: Sim...
Adler : Nem público nem na casa dos outros. (E
prossegue ponderando): Também quase não dou a mão
para ninguém. Se preciso cumprimentar alguém, imedia
tamente vou lavar as mãos.
Eu: Gente fazendo assim, não acontece nada?
ADLER: Claro que não! Assim não haveria mais doen
ças. Só que nem todos pensam como eu. Muitas pessoas
são bem porcas nesse aspecto. Pensar nisso até faz mal.
Eu deveria levá-lo para visitar os banheiros da Rem
mert, assim como se leva um criminoso ao local do crime.
Só há dois banheiros para todos os operários. Asquerosa
mente imundos. A firma nunca os limpa nem fornece pa
pel higiênico. Um dos banheiros não tem nem mesmo por
ta. Mesmo assim, é bastante concorrido; o pessoal preci
sa se agachar, exposto a todos os olhares. Um alemão es
183
creveu num deles, com uma dessas canetas hidrográficas:
“ Exclusivo para os broncos” .
Às vezes, durante o trajeto entre Oberhausen e Essen
ou rumo a Wesel, Adler esquece o telefone por um instante
e, contemplando a paisagem, põe-se a filosofar. Sintoniza
a rádio Luxemburg, sua emissora favorita, que ouve de
manhã à noite, acalentado pela atmosfera de um mundo fe
liz e sem problemas. Só baixa o volume durante os boletins
noticiosos, transmitidos de hora em hora. Ele, que em geral
é tão pouco comunicativo, de repente sente vontade de
compartilhar com seu motorista turco, a quem vê cinco ou
seis vezes por semana, confidências e convicções sobre a
situação política do país. Tudo isso em frases intermináveis.
Nesse momento, começa a tocar no rádio a enérgica
canção: “ Bom dia, Alemanha, eu te amo...”
EU: (aproveitando a ocasião): Faz tempo que senhor
é chefe e patrão de senhor mesmo?
Adler: Cinco anos. Antes, fui chefe de compras da
siderúrgica Gutehoffnung Man. Durante esses cinco anos,
aprendi muito mais do que em toda minha vida. E tam
bém em relação aos embusteiros e outras coisas do gênero.
EU: Mas agora senhor ganha mais dinheiro que an
tes, não? Que é embusteiro?
Adler : É verdade. Ganhar dinheiro faz parte do jo
go. Mas aqui na Alemanha há uma porção de trapaceiros
que não querem nada com o trabalho e só querem é ficar
bem perto da carteira da gente. Só pensam em passar a
perna nos outros. Em termos de assiduidade e competên
cia, os operários de hoje não têm nada a ver com o operá
rio alemão de antigamente. É verdade que Hitler foi um
ditador, mas em relação ao...
EU: Ele matou gente.
ADLER: É, e também provocou guerras que na ver
dade não eram necessárias.
EU: E por que ele perdeu?
ADLER: Bem... ele se lançou a todos os tipos de con
quistas e quis continuar a expandir mais e mais... O que
ele fez com os judeus... você pode concordar ou não... mas,
184"
enfim, os judeus não são mesmo bem-vistos em lugar ne
nhum... As pessoas hoje em dia esquecem muito depressa
que ele deu pão e trabalho para todo mundo. Onde ele pu
nha a mão, acabava o desemprego. E agora, que temos
um ou dois milhões de desempregados, logo vai aparecer
um novo Hitler. Pode ter certeza! Todas essas manifesta
ções políticas, essas agitações e coisas do gênero!
EU: Agora é gente que está em lugar de judeu.
A dler (ri): Não tenha medo, não vamos mandá-los
para as câmaras de gás. Não acredito nisso. Precisamos
de vocês para o trabalho. Com os judeus foi diferente, era
uma coisa que estava enraizada fazia séculos. Você sabe,
os judeus estão sempre metidos no comércio, sempre fa
zendo os outros trabalharem para eles. Compram por uma
ninharia o que os outros fabricam e depois vendem muito
caro. É esse o método dos judeus. São preguiçosos de nas
cença, não gostam de trabalhar e enriquecem à custa dos
outros. É por isso que ninguém os tolera em lugar nenhum,
nem na Alemanha, nem na América, nem na Rússia, nem
na Polônia. Mas com os turcos a história é outra. Você
sabe melhor que ninguém que podem trabalhar duro aqui.
Portanto, não tenha medo! O que pode acontecer é alguém
fazer uma lei dizendo que vocês têm que deixar a Alema
nha no prazo de um ano. Isso, por exemplo, se mais um
milhão de pessoas perder seus empregos.
EU: E senhor acha que vai ter mais gente sem emprego?
ADLER: É o que dizem os que entendem do assunto,
os políticos e os figurões das indústrias. Claro que não fa
lam assim, abertamente, para qualquer um. Por exemplo,
há cada vez mais computadores e robôs nas empresas. Se
eu pudesse substituir pessoas por máquinas... cada máqui
na custaria 100 mil marcos... isso representa três homens
a menos. Se eu pudesse, bem que eu faria. Com as má
quinas eu não teria aborrecimentos.
EU: É...
ADLER: Você compreende? A máquina é mais con
fiável, trabalha sem problemas. E essa é a tendência ge
ral. Olhe as grandes empresas... tudo é automático. E ca
185'
da vez mais. E países como a Nigéria ou a Alemanha Orien
tal produzem serviços mais baratos; por exemplo, nas cons
truções metálicas, nas tubulações... Aqui na Alemanha Oci
dental o custo da mão-de-obra é muito elevado. Por isso
não somos capazes de concorrer com eles. Vivem dizendo
que precisamos reduzir o desemprego, mas com este siste
ma econômico não é possível. Ao contrário. Todo ano mais
e mais jovens saem da escola e querem trabalhar, porém
não há trabalho. Os figurões da política só fazem é tapar
buracos, com aponsentadorias prematuras e coisasassim.
É como no Egito antigo... “Sete anos de vacas gordas, sete
anos de vacas magras.” Tivemos quarenta anos de vacas
gordas, e agora temos que estar preparados para os anos
de vacas magras. Até que venha uma nova guerra ou al
guma coisa assim, e então tudo precisará ser reerguido.
EU: Senhor acha que vem guerra nova?
A d ler: Se o desemprego continuar aumentando, pe
lo menos uma guerra civil na Alemanha. Pode acreditar.
Se aparecer mais um milhão de desempregados, vão to
dos para a rua e montam barricadas. Então será o caos,
o fim da nossa democracia! (Cala-separa ouvir uma notí
cia transmitida pelo rádio do carro.)
RÁDIO: Os estrangeiros que se divorciaram de espo
sas alemãs poderão ter sua autorização de permanência re
duzida ou suspensa...
ADLER: Está ouvindo?
RÁDIO: ... rejeitou a ação judicial de um turco que
vive na República Federal da Alemanha há cinco anos. Sua
esposa, uma alemã, requereu o divórcio e obteve a guar
da do filho. A cidade de Kassel decidiu que a autorização
de permanência do estrangeiro será válida somente até o
final de agosto deste ano.
Adler : Está ouvindo? Por toda parte já se fala nisso!
EU: Mas e senhor, o que senhor acha? Agora são ca
sados, depois talvez ela arranja outro homem, e aí fim,
acaba. Mandam ele embora. E ele não pode mais ver o
próprio filho?
Adler (impassível): É, o sujeito vai ter que voltar pa
186 '
ra a terra dele. Você acabou de ouvir. De qualquer modo,
foi um erro da política alemã. Quando estávamos em ple
no milagre econômico, escancaramos as portas do país,
e entraram todos os turcos que quiseram vir, todos os ita
lianos que quiseram vir... Foi mesmo um grande erro! Os
políticos não poderiam ter feito uma coisa dessas.
EU: É, mas gente não veio sozinho, eles foi buscar
gente. E aquela época nada computador. Eles precisavam
mesmo gente.
A dler : Mas isso foi uma faca de dois gumes. Hoje
nos arrependemos. Chegaram os turcos, e todo trabalho
duro passou a ser feito pelos imigrantes. E o alemão, que
não trabalhou mais, ficou prejudicado. Essa mentalidade
existe até hoje. O alemão não quer mais trabalhar e cria
muitas dificuldades. Foi um grande erro deixar os estran
geiros virem para cá. Mas também estou convencido de que,
se todos os turcos partissem, não resolveria o problema.
Supondo que todos eles partissem, teríamos talvez cem mil
desempregados a menos, o que não adiantaria nada.
Rádio (interrompendo novamente a conversa) : ... é
acusado de corrupção. Veba, Klõckner, Krupp, Mannes-
mann e mais onze grandes trastes... Esses donativos ser
viriam para suborná-lo...1
EU: Então ministro da Economia vai para cadeia?2
A dler : De jeito nenhum. Metade do governo teria
que ir junto. Não vai mesmo, é impossível!
Eu*. Ele ganhou milhão e milhão, e ainda queria mais.
A dler : Ora, é evidente! Você também. Está sempre
reclamando de dinheiro. Isso faz parte da natureza huma
na, você não acha?
187 '
INDUSTRIEMONTAQEN KQ
BRHAU8CN
tndustriemontagen
- RchrfeEttmgsbau
• Behfltterbau
- Stahtbau
Entrostung und Anstrlch
HV/UH 26,7.1985
V
Z8 u g n i s
191 *
gado, restam-lhe ainda 16 marcos por hora; multiplicado
por três mil horas no mês, isso dá 48 mil marcos — para
Adler, é claro.
— Pois bem, vamos tomar nota dos nomes de um por
um — diz ele. Ao olhar, porém, os rostos desanimados
e abatidos de seus “guerreiros” , procura em seu repertó
rio habitual algumas palavras de consolo: — Sei que não
é muito no momento, porém, como já disse, estou disposto
a rever isso. Ainda não nos conhecemos muito bem, mas
em seis meses, quando nos conhecermos melhor, falare
mos sobre aumento de salário. E estou certo de que pode
rei fazer alguma coisa a respeito.
“Todos que o conhecem um pouco sabem que se tra
ta de promessas vazias” , penso.
— Muito bem, tenho outra coisa a dizer. — Adler
levanta a mão para exigir silêncio. — Não vou mais tole
rar que faltem ao serviço. A partir de hoje, infelizmente
teremos que demitir quem faltar e pegaremos outra pes
soa para ocupar o lugar. Está bem claro? A minha em
presa não é botequim para vocês ficarem com entra-e-sai!
— A esse ponto volta-se para Mustafá (23 anos), lançando-
lhe um olhar crítico. — Isto vale principalmente para vo
cê. Anteontem foi a última vez que você faltou.
— Desculpa, senhor. Eu precisei levar a mulher no
hospital. Ela foi dar à luz.
Ao invés de felicitá-lo, Adler finge não ter ouvido e
repete:
— A última vez! Esteja certo disso!
Nunca recebemos qualquer espécie de auxílio-doença
e várias vezes, chegando ao trabalho, éramos mandados
de volta para casa porque não havia serviço. E mesmo as
sim Adler dispõe de nosso tempo e de nossa vida como
se fossemos seus servos. Irritado, dirige-se asperamente a
Walter Recht:
— Você deve parar duma vez por todas com essas
suas faltas constantes, do contrário...
— Mas, senhor, de sábado para domingo trabalha
mos vinte horas seguidas — argumenta Walter, cabisbai-
192'
xo. — Só cheguei em casa às quinze para as três, e às três
e meia tive que ir buscar uma ambulância para a minha
mulher, que precisou ser operada com urgência. Mas eu
logo comuniquei ao sr. Flachmann.
Adler finge não ouvir e põe-se a esclarecer as coisas:
— Se vocês não entrarem na linha, volto a fazer co
mo antes. Ao receber um atestado médico, vou até a casa
do sujeito e vejo se ele está mesmo com febre. Se não esti
ver, ponho-o no olho da rua! — Em seguida retoma sua
cumplicidade social: — Quando nos conhecermos melhor,
nos acostumarmos uns aos outros, saberemos o que fa
zer. E quando nos reunirmos de novo... para uma festi-
nha de Natal, por exemplo... se ainda estivermos juntos
até lá... talvez possamos assinar contratos definitivos. En
tão está tudo certo. A partir de agora vocês são uma equi
pe, e eu não quero mais ouvir choradeiras por causa de
dinheiro. Amanhã e sábado vocês poderão fazer horas ex
tras, virar o dia trabalhando! Isso é tudo. — Despede-se
de sua gente. — Amanhã cedo, todo mundo lá, pontual
mente. Banho tomado, pescoço limpo e outras partes tam-.
bém... — Depois volta-se para Mustafá e pergunta: — Vo
cê pagou as suas cervejas? Só me faltava deixar a conta
das bebidas para eu pagar! Muito bem, tudo acertado —
diz para Wormland, seu futuro cunhado, funcionário e
confidente. Manda-me levar sua pasta de documentos para
o carro e aproveita para explicar para Wormland: — Ali
agora é o meu guarda-costas. Pode dizer para os rapazes.
Ele sabe lutar caratê e tem um revólver.1 — Ficou o tem
po todo sentado atrás de mim, sem despregar os olhos.
Daí apareceram dois sujeitos que queriam dinheiro. Pen
sei que estava mesmo frito!
Meio divertido, Wormland comenta:
— Ouvi dizer que você agora vai registrar o pessoal
todo.
— Não leve tudo tão ao pé da letra — Adler respon
de, piscando o olho. — O importante é que haja. um pou-
1 Na verdade eu havia lhe mostrado só um canivete (N. do A.).
193
co de paz nos negócios. — E esquiva-se para o canto do
balcão ao ver entrar no bar um casal de jovens. O homem
olha-o com fúria, e a mulher, uma loira, ostensivamente
vira o rosto para o lado. — Fique atento — diz-me Adler.
— Talvez você tenha que me defender. — E volta-se para
Wormland num tom fanfarrão: — Está vendo? Sou mais
conhecido que o papa!
Sua preocupação, porém, é infundada; não há nenhu
ma provocação.
Mais tarde, chega ao bar um de seus amigos de negó
cio, e Adler põe-se a falar sobre a assembléia do pessoal:
— E então consegui regatear os preços. Agora estão
todos animados a fazer horas extras e turnos dobrados.
E para não que ficassem tagarelando e discutindo, mandei-
os voltar imediatamente para casa. “ Você vai por aqui,
você por ali” , disse-lhes. A gente precisa ter muito cuida
do com esse pessoal.
À outra ponta do balcão está sentado um colega no
vo: Walter, um alemão de seus vinte e poucos anos, ma
gro e pálido. Bebe uma cerveja atrás da outra e, levantan
do o copo para um brinde, evidentemente procura cha
mar a atenção de Adler, que, contudo, finge não vê-lo.
Depois de tomar umas dez cervejas para ganhar coragem,
Walter vai ao encontro de Adler e, num tom patético e
um pouco alto demais, implora:
— Por favor, me dê uma chance. Eu fiz o curso de
mecânico numa fábrica, mas fiquei doente nas vésperas
do exame. Então me puseram na rua. Estou falando fran
camente... Na época eu ainda não era casado... mas ago
ra é diferente; tenho dois filhos para alimentar. Na outra
firma onde trabalhei, eu precisava ficar o tempo todo cor
rendo atrás do meu dinheiro. — Põe-se a gritar imitando
seu antigo patrão: — “ Você não quer trabalhar, só quer
meter a mão no meu dinheiro” , ele berrava. E depois me
empreguei num estaleiro que faliu enquanto eu estava ainda
no período de experiência. Sei fazer muita coisa. Sou qua
lificado como soldador, sei soldar até pó de zinco. E tam
bém sei trabalhar com projetos... Por favor, me dê uma
194 ‘
chance, um trabalho qualificado. Não posso sustentar a
família e pagar aluguel ganhando 6 marcos por hora.
Adler mostra-se claramente aborrecido. Por que o in
comodam em seu momento de lazer, quando está já na
décima quinta cerveja? Por que o perturbam com essas
bobagens? Num tom repreensivo, livra-se de Walter:
— Comece por chegar no horário no trabalho. Aliás,
por que você faltou hoje?
— Mas ainda há pouco eu disse que precisei levar mi
nha mulher para o hospital — explica o rapaz, muito agi
tado. — Ela teve que ser operada com urgência.
— Comece por chegar no horário ao trabalho e de
pois falaremos sobre o assunto — diz Adler, dando a en
tender que não acredita na explicação.
— Pode confiar em mim. Todos os dias levanto às
três da madrugada e vou para o serviço de bicicleta, que
é para não correr o risco de me atrasar. Sempre chego na
hora. Pedalo uns trinta ou quarenta quilômetros por dia.
Pode confiar em mim! — E continua implorando, como
um disco quebrado: — Por favor, me dê uma chance!
Cada vez mais irritado, Adler despacha-o dizendo:
— Quem trabalha e chega sempre na hora recebe seu
dinheiro. Portanto, é só andar direito! — E vira-lhe as cos
tas, voltando-se para Wormland.
Mais tarde, no banheiro, Walter me diz:
— Viu só? O seu chefe não me deixou na mão. Ele
não é nada daquilo que você me contou no primeiro dia.
— E, vendo-me calado, pois não quero desiludi-lo, pros
segue: — Você reparou como ele ficou me olhando quan
do ele percebeu que o meu temo é igual ao dele?
Também resolvo não dizer nada sobre isso. É verda
de que ambos vestiam um temo azul de listras. Só que o
de Adler foi confeccionado sob medida e deve ter custado
uma fortuna, enquanto o de Walter foi comprado por uma
ninharia numa lojinha qualquer. A fim de defender me
lhor sua última oportunidade, Walter chegou a usar ca
misa branca e gravata, como se fosse fazer um pedido de
casamento. Até que na décima oitava cerveja finalmente
195 ‘
percebe que Adler não quer mais conversa com ele. Cam
baleando, deixa o bar e monta em sua bicicleta, pronto para
pedalar os quinze quilômetros que o separam de sua casa.
Nesse meio tempo, Adler chegou à vigésima cerveja e
começa a discutir com Wormland. Pouco antes ainda proferia
frases enérgicas, imaginando estratégias empresariais: “Ago
ra é preciso manter tudo nos eixos!’’ “Cuido do meu quadro
de pessoal como de um tesouro!” “Considerem como pode
mos diminuir os custos!” Agora, porém, ataca Wormland
violentamente só porque o outro se atreveu a contrariá-lo:
— Você não pode tratar o pessoal desse jeito. Se o
H. processar você, até será com razão. Eu mesmo teria
feito isso há muito tempo se não fosse seu parente. — E
grita,, irritado: — Você é um traidor! Fica do lado desses
miseráveis, desses vagabundos, desses bandidos! Você per
tence mesmo a essa gentalha!
Wormland mantém-se calmo. No serviço, nunca fui
muito com a cara dele, mas aqui demonstra ter alguma
personalidade. Faz Adler perceber o desprezo que sente
por ele e mantém sua opinião. Indiferente, várias vezes tra
ta o chefe de senhor, para manter distância, e responde:
— Não estou do lado deles, mas quando alguém es
tá no seu direito...
Adler não suporta que se atrevam a contrariá-lo.
— Para mim você morreu. Está despedido. A partir
de amanhã, pode ir para Hannover trabalhar na montagem!
— Não vou fazer nada disso. Continuarei trabalhan
do na Thyssen. O senhor não pode se livrar de mim!
Wormland dá a entender que sabe de algumas ilega
lidades e sujeiras cometidas por Adler... De fato, embora
Adler, vermelho de raiva, continue repetindo que o futu
ro cunhado está demitido ou será transferido para
Ruhrkohle1, em Hannover, Wormland mostra-se bastante
tranqüilo — e continuará ocupando seu cargo de encarre
gado na Thyssen.
1 Adler tem um contrato firmado com a Ruhrkohle Wárme de Essen e presta
serviços no quartel Freiherr-von-Fritsch em Hannover (N. do A.).
196 ‘
Quase chegando à vigésima quinta cerveja, Adler en
tra em sua fase “ sentimental” . Olhando para mim com
olhos vítreos e um pouco à maneira de Puntilla1, diz:
— Esse aí, sim, está do meu lado. Seria capaz de me
proteger com sua própria vida. — E acrescenta com um
gesto grandioso, patético: — Um dia vou tirá-lo da misé
ria, daquele buraco imundo da Dieselstrasse. Vou lhe dar
roupas novas, que combinem de verdade com o meu Mer
cedes. — Comovido com a própria generosidade, põe-se
a meditar: — Se ao menos eu soubesse o quanto Ali vale
no plano intelectual... — Lança-me um olhar encoraja-
dor*. Comporto-me como se não estivesse compreenden
do a conversa. — Você sabe o que quero dizer? Sabe o
que significa “ intelectual” ?
— Eu sabe — respondo. — É quando gente entende
tudo.
— Isso mesmo! Até que você tem algum nível. Sabe
o que quer dizer “ nível” ?
— Eu sabe. É quando gente faz parte pessoal de
bem. Mas isso depende onde gente está metido. Maior parte
de pessoa pode fazer mais quando gente deixa elas fazer.
Wormland intromete-se na conversa:
— Você não percebe que ele não está entendendo na
da? O cara fala mal e devagar.
Adler tenta tirar proveito de nossa rivalidade:
— São só os efeitos secundários dos remédios que ele
andou testando. Ali não é tão estúpido assim e entende
bem mais do que você imagina!
— Eu não consegue dizer sempre tudo que eu pensa
— declaro, reforçando a opinião de Adler. — Mas mui
tas vezes eu entende mais do que eu diz.
— Sim?... — Por um instante Adler lança-me um
olhar inquisitivo e penetrante, como se buscasse em mi
nhas palavras um significado mais profundo. No entan
to, parece acalmar-se à medida que vou falando.
197*
— Eu não sabe se entende tudo certinho. Eu não pode
saber tudo... Mas é só fazer pergunta para ver o que eu
sabe.
Depois de pensar por alguns momentos, Adler deci
de submeter-me a um teste de inteligência criado por ele
mesmo. Sua primeira pergunta:
— Quem é o colosso de Rodes?
Para testar o autor do teste, deliberadamente dou uma
resposta errada, como se tivesse confundido o deus do Sol,
uma das sete maravilhas do mundo, com Atlas, o gigante
que sustenta o céu:
— Ele precisa carregar o mundo em costas. Mundo
pesa muito, e ele fica assim, meio torto, quase não conse
gue segurar peso todo.
— Correto! Excelente! — Adler felicita-me, dando-
me a impressão de que desconhece a resposta certa. E dis
para a segunda pergunta: — Como se chama o nosso
chanceler?
Respondo corretamente. E também digo corretamente
o nome do chanceler anterior quando ele me pergunta. E
sei ainda o nome do secretário-geral do Partido Comunista
soviético. Para seu espanto, sei o nome do presidente da
França. Adler fica admirado. Para ele, seus escravos não
passam de selvagens, de homens pré-históricos, de ralé.
Adler sente-se superior a todos não só no plano espiritual
como também no plano cultural.
Um funcionário de uma financeira, sentado um pou
co distante de nós, junto ao balcão, começa a implicar com
o interrogatório:
— Mas, afinal, para que serve tanta pergunta idiota?
Adler reage com irritação:
— É uma conversa de negócios, e não admito suas
alusões! — E prossegue com o teste: — Quem é o gover
nador da Renânia do Norte-Vestfália?
Respondo corretamente. Mas em seguida ele quer sa
ber quem é o ministro do Meio Ambiente. Fico embara
çado. Conheço Klaus Matthiesen porque participei com
ele de alguns congressos em Schleswig-Holstein e considero-
198*
o um dos políticos mais progressistas do PSD. Uma per
gunta dessas pode ser uma armadilha, e temo que Adler
desconfie de mim se mostrar que sei o nome de uma pes
soa tão declaradamente de esquerda.
— Esse eu não sabe — respondo por precaução.
— Não faz mal — diz Adler. — Não é mesmo preci
so conhecê-lo. É só alguém que quer reformar o mundo
e provoca muitos transtornos. O anterior, Báumer, é um
grande amigo meu, de longa data. Tem faro certo e tino
empresarial. Esteve lá em casa no meu aniversário. Nele
a gente pode confiar!
(Bom saber quem são os “padrinhos" políticos de
Adler que estão nos bastidores. Como presidente do PSD
de Niederrhein durante muitos anos, Bàumer tomou-se co
nhecido por suas intrigas contra os social-democratas pro
gressistas. A ele, por exemplo, deve-se a exclusão de Karl-
Heinz Hansen1 do partido, com a conivência do ex-chan-
celer Helmut Schmidt.)
Não se deve imaginar, sob nenhuma hipótese, que
Adler seja uma flor do lodo, muito rara e colorida, den
tro de nossa paisagem social. Ao contrário. Ele está per
feitamente integrado, é reconhecido e considerado. Os que
o conhecem bem sabem como ele ganha seu dinheiro. No
entanto, generosamente não fazem caso dessas “repugnân-
cias" flagrantes. A partir de uma certa ordem de grande
za, nesses círculos prevalece a seguinte máxima: “ Dinhei
ro não foi feito para dele se falar, foi feito para se ter!"
Como o consegue, à custa de quem e a preço de que cri
mes — isso eu tenho quase certeza de que Bãumer jamais
discutiu com seu amigo Adler.
São coisas que a gente sabe e guarda para si mesmo;
de resto, é tratar do lado agradável da vida, freqüentan
do clubes, viajando de iate. Talvez, algum dia, umas fé
rias no Havaí, um dos locais prediletos de Adler. Aqui na
panelinha do Ruhr, ser membro do PSD favorece os ne
199
gócios e facilita a carreira. Estou certo de que, se vivesse
na Baviera, Adler seria membro da USC.
Uma vez, ouvi-o gabar-se de ter gasto 200 mil mar
cos em gratificações só nos últimos cinco anos para obter
certos contratos. Na maioria das vezes, porém, subornos
diretos são desnecessários. Basta fazer parte do mesmo “es
tábulo” para trocar sinecuras e trabalhos. Não é sem mo
tivo que Adler é sócio do finíssimo clube de golfe de Düs-
seldorf. Quem o apresentou? Seu velho amigo Alfred Gãrt-
ner, vice-govemador da Renânia do Norte-Vestfália.
— Se você fizer por merecer — diz-me Adler —, eu
lhe darei um cargo de chefia. — E, como o fito sem en
tender, explica: — Basta fazer tudo o que eu lhe disser.
E outras coisinhas também! — E, como ainda não enten
do, resolve falar claro: — Você tem que ficar de olho nos
seus colegas turcos. Você se dá bem com eles. Então é só
vigiá-los e me contar o que se passa. Por exemplo... se um
deles anda fazendo intrigas contra mim... ou se alguém
resolve abrir o bico. Ponho o cara na rua imediatamente.
Antes que a laranja podre estrague as outras. Os jovens
são bonzinhos por natureza, mas não podemos tirar os
olhos de cima deles, senão provocam agitações antes mes
mo que a gente consiga fazer alguma coisa. Só me per
gunto se você está à altura desse serviço.
Vou mesmo é morrer de fome. Não desejo ir tão lon
ge com este papel. Aos poucos aproxima-se o instante em
que devo pular fora. Encontro-me numa situação muito
delicada perante meus colegas e amigos. Não posso mais
titubear. Sinto-me como um mestiço da África do Sul que
sempre ficou do lado dos negros, talvez até lutando junto
com eles, e, agora, de um momento para o outro, é atraí
do pelos brancos exatamente porque tem a confiança dos
negros. Espião e dedo-duro: esse é o papel que Adler me
reservou. Além de minha tarefa de gorila adestrado e
guarda-costas!
— Se for necessário, você tomará medidas drásticas.
Portanto, continue com os seus treinos de caratê — pros
segue Adler, tentando me estimular. — Se tudo correr bem,
200 '
monto uma casinha para você perto da minha e mais tar
de lhe dou um carro. Basta ficar sempre perto de mim e
estar pronto para entrar em ação a qualquer momento.
Sabe, a Dieselstrasse não é um bom lugar para você. Lá
você pode se estragar. — E, percebendo minha repulsa,
vai mais fundo: — Não há necessidade de você abando
nar seus conterrâneos já. No momento, tenho menos rai
va deles do que de uns alemães que vivem fazendo caga
das. Dois deles tiveram o desplante de me chamar na Jus
tiça para tentar me arrancar dinheiro. Um dia, mando você
cuidar deles. Entende o que quero dizer? Esses porcos de
merda tiveram coragem de me caluniar no tribunal. Você
vai lá e cuida deles, até que retirem a denúncia contra mim.
— Dá o nome e o endereço dos dois operários alemães que
há algum tempo não trabalham mais conosco.
— Mas em academia caratê eu prometeu usar espor
te só legítima defesa — tento explicar.
— Certo, certo. E precisamente é esse o caso. Eu me
encontro em situação de absoluta legítima defesa. Eles me
ameaçam, e você me protege. — Como persisto em meu
ceticismo, acaba cedendo: — Tudò bem! Então fique fora
disso por enquanto. Afinal, vivemos num estado de direi
to. E eu tenho ótimos advogados. Vamos aguardar o pro
nunciamento da Justiça. Mas, se não reconhecerem os meus
direitos, não restará outra alternativa. Você irá procurá-
los e cuidará deles. Estou cheio dessas disposições legais!
204'
“ mas eu pensava que pelo menos tinha um emprego, era
melhor que nada. E quando o encarregado precisava de
alguém, perguntava se a gente queria dobrar. No come
ço, eu disse claramente que se precisassem de alguém pa
ra trabalhar nos sábados e domingos podiam contar co
migo, porque eu ganhava muito pouco e precisava fazer
horas extras, senão o dinheiro não dava para as despesas.
Com os outros trabalhadores, os turcos — quase só havia
turcos na Adler —, era bem pior. O encarregado simples
mente dizia: ‘Ei, você ai! Pode ficar parâ fazer um turno
dobrado. Se não quiser, não precisa voltar amanhã. Ama
nhã?! Pode se mandar hoje mesmo!' ”
Jürgen viu o chefe pouquíssimas vezes. “Ele quase
não aparece na nossa frente e vive nos enganando, man
dando dizer que não está. Eu o vi pela primeira vez no
dia em que fui contratado; depois tomei a vê-lo num can
teiro de obras; e a última vez na audiência do tribunal.
Só quando ele queria alguma coisa é que telefonava para
a gente, intimando: ‘Você tem que vir trabalhar hoje à noi
te! É um turno extraordinário!’ Ele nunca dizia: ‘Será que
você pode?*, mas: ‘Você tem que!...’ Quem se recusava
já sabia: ia parar no olho da ma! É um trabalho para con
denados, para gente que esfaqueou os pais ou os filhos.
“ Um dia, estávamos agarrados no permutador tér
mico, limpando as espirais. Um calor e um pó infernais;
e o pó é alcalino, bastante venenoso. Trabalhamos ali du
rante dias. Os operários da Thyssen perguntavam: ‘Mas
como é? Nunca substituem vocês?*
“ Lá dentro devia fazer uns trinta, quarenta graus. E
quanto mais a gente se aproximava das espirais, mais au
mentava o calor. Tínhamos que limpar as espirais sem ne
nhuma ferramenta especial, só com as mãos e umas bar
ras de ferro. Elas estavam cobertas de escória da fundi
ção, que normalmente sai pela chaminé e se liqüefaz. Mas
a coisa ali estava dura como pedra. Chegou a grudar até
no forno do subsolo. Imagine só ficar naquele calor in
fernal durante dezesseis horas! Os outros dois que traba
lhavam comigo foram parar na enfermaria duas vezes se
205'
guidas; eu fui uma única vez: meus olhos estavam com
pletamente inflamados por causa de tanto pó. Não tínha
mos máscaras de proteção; cobríamos a boca com um pa
no fino para não engolir a poeira. Ninguém nem falou em
máscara de proteção para a cabeça toda... E também não
havia sistema de ventilação. O pó ficava suspenso no ar.
Claro que a gente não podia sair correndo de dois em dois
minutos. O pior é que.o serviço devia estar pronto no co
meço da tarde, quando muito às duas horas, porque iam
encher tudo de gás. Trabalhamos como uns condenados!
No espaço de dois dias, 36 horas. E alternando: um dia
lá embaixo, naquele calor sufocante, outro lá fora, em ple
no inverno, até com vinte graus abaixo de zero, arrancan
do a sujeira com a picareta. Esse trabalho me arruinou
completamente as costas, sem falar nas mudanças de tem
peratura. Houve dias em que cheguei a rastejar, tanto a
coluna me doía, mas eu precisava do dinheiro.
“ Ainda em pleno inverno, arranjaram outro servici-
nho para nós: limpar as esteiras rolantes por onde corre
o coque, empoleirados num andaime coberto de lama. Eu
mal conseguia me mexer, tamanho era o frio. Um colega
turco escorregou, caiu e quebrou o braço. Seis semanas
depois, estava de volta como se nada tivesse acontecido.
“ Foi um erro largar a mina onde eu trabalhava. Ga
nhava mais dinheiro e com mais facilidade. Em compara
ção com a Adler, a mina é um paraíso. Trabalhar lá em
baixo, num cilindro de decantação, é moleza perto desse
outro serviço. É claro que de vez em quando a gente pre
cisava dar duro se aparecia algum pepino. Mas na Thyssen
só aparece pepino, e para a gente resolver com as próprias
mãos. Como arrastar barras de ferro superpesadas, por
que sai mais em conta que usar guindastes.”
Graças à tática de “ ir empurrando” , típica de Adler,
Jürgen acabou recebendo 861 marcos por nove semanas
de trabalho escravo. Já não conseguia sustentar a família
(dois filhos pequenos). Sua mãe precisou trabalhar como
faxineira para não passarem fome de verdade. E ele co
meçou a fazer dívidas, uma atrás da outra.
*206 r
Já no mês de fevereiro, Jürgen começou a entender
o jogo desumano de Adler e resolveu anunciar-lhe sua in
tenção de demitir-se. O outro, porém, acenou-lhe com no
vas promessas: “ 'Falo sério, se as coisas continuarem as
sim, eu me demito*. Então ele me disse: ‘Ora, venha cá!
Você sabe, vou lhe pagar 12 marcos líquidos!’ Eu falei que
isso não passava de palavras e que eu ia buscar o meu di
nheiro na segunda-feira. Ele concordou; disse que o di
nheiro estaria nas minhas mãos, e que pagaria a diferen
ça. Nunca vi a cor do dinheiro.”
No dia 20 de março, Jürgen resolveu desistir do
emprego.
“ Eu já tinha pedido demissão por telefone e, no dia
seguinte, resolvi escrever uma carta, confirmando a mi
nha decisão e avisando que se não recebesse meu ordena
do daria parte dele na Justiça do Trabalho. Nenhuma rea
ção. Voltei a telefonar e fui atendido pela secretária ele
trônica. Repeti o texto da minha carta. Nenhuma reação.
Alguns dias depois, liguei de novo. Adler perguntou quem
estava falando, e respondi: 'Jürgen K .\ Então ele apenas
me disse o seguinte: 'Converse com o meu advogado!’ Fui
à Justiça do Trabalho. A primeira audiência foi terrível.
Adler não compareceu, é esperto demais para isso. Eu me
senti como se fosse o próprio acusado. A audiência du
rou dois minutos e meio. E lá estava eu, outra vez do lado
de fora. Só me disseram isso: 'O senhor está processando
a empresa errada!* ‘Como?*, perguntei. Não existia uma
Sociedade Adler-Heisterkramp, mas só uma Sociedade
Adler em Oberhausen. ‘Um momento’, falei, ‘não é pos
sível. Eu trouxe os envelopes de pagamento da empresa
Adler-Heisterkramp.’ Mas de que iria adiantar? Quem não
conhece muito bem as leis e não tem advogado está perdi
do. Um tipo como Adler só precisa abrir uma boa falên
cia para se safar de qualquer dificuldade. Resolvi contra
tar imediatamente um advogado, o que também custa al
gum dinheiro. Eu não conseguiria assistência jurídica por
que estava trabalhando. Arrisquei pagar uns bons mil mar
cos de honorários. Então finalmente fiz um acordo com
207
Adler e só recebi algumas centenas de marcos. Um em
presário como ele, esperto e sem escrúpulos, sempre con
segue tirar vantagens de tudo, mesmo diante dos tribunais.
“ Ele apareceu na segunda audiência e quis me arra
sar, dizendo que eu era um vigarista mentiroso. E que as
fichas com as horas trabalhadas eram falsas. Elas tinham
sido assinadas pelo encarregado em duas vias: uma para
a Remmert e a outra para mim. Foi assim que pude pro
var que só até o dia 20 de março (em fevereiro eu não ti
nha sido tão esperto) eu trabalhei 129 horas, sendo 36
direto.
“ Mas ele apresentou na audiência o meu cartão de
contribuição1, onde estava anotado que eu tinha recebi
do 434 marcos. Não havia carimbo da empres'a. Ele con
seguiu dar sumiço no resto. Diante do tribunal, Adler se
comportou como se fosse dono da Justiça. O próprio juiz
chegou a repreendê-lo, por ofender os vogais. Adler fa
lou que só porque era patrão já o acharam culpado desde
o começo e que ele não tinha meios de fazer valer seus di
reitos. E me chamou de vigarista... falsificador de docu
mentos.
“O advogado me aconselhou a fazer um acordo, pois
do contrário o processo ia se arrastar por meses, talvez
anos. E eu precisava do dinheiro. Assim, em vez dos 2 735
marcos que ele me devia, tomando como base o salário
bruto de 9,50 marcos por hora (o outro preço foi combi
nado só de boca, sem nada escrito), acabei aceitando o pa
gamento de 1 750 marcos.
“Depois da audiência, tive que devolver a Adler o car
tão de contribuição. Isso já faz quase um mês e até agora
não o recebi de volta. E também não vi um centavo do
que ele me deve. Como o obrigaram a pagar os encargos
sociais, ele fica protelando. Não há nem como processá-
lo criminalmente. A Justiça do Trabalho o trata como um
208>»
homem honrado, apenas um pouco confuso. E a gente é
que passa por ignorante!
“Hoje em dia, os patrões podem se permitir qualquer
coisa. Do mesmo modo que os subempreiteiros. Há mui
ta gente desempregada, esse que é o problema. E são bem
poucos os que resolvem botar a boca no trombone e se
defender."
Jürgen não conseguiu arranjar outro emprego por
que Adler, num procedimento bem típico, não lhe devol
veu o cartão de contribuição.
“O mês de abril passou, maio chegou na metade e na
da de eu receber o meu cartão de contribuição. Fui con
versar com a firma Remmert sobre a minha contratação,
e lá me disseram que tudo bem, eu podia começar a tra
balhar com eles, só que precisava apresentar a documen
tação. O problema é que os documentos não estão comi
go, estão com Adler. Consegui uma cópia do cartão de
contribuição e voltei lá na Remmert. Disseram que, como
eu já tinha trabalhado com eles, devia apresentar o car
tão original... Sem dúvida foi só um pretexto, já que Rem
mert e Adler são carne e unha.
“Acho que Adler se saiu dessa fácil demais. Com cer
teza outros otários vão cair na armadilha, pois sempre vejo
no jornal: ‘Firma Adler precisa de...' Fico me perguntan
do como consegue contratar alguém... não entendo! Ele
mesmo declarou publicamente na audiência: ‘Não contrato
ninguém com salário bruto superior a 9 marcos por hora’."
Resta um pequeno consolo para Jürgen: “Existem imi
grantes que estão em condições piores ainda. Por exem
plo, os paquistaneses que trabalhavam lá por um salário
bruto de 6 marcos. E nem sequer tinham visto de perma
nência".
209'
Eis os depoimentos de alguns colegas turcos que com
provam as práticás habituais de Adler e o perigo a que estão
sujeitos no trabalho.
Hüseyin Atsis (56 anos), que já fez os piores serviços na
Turquia, diz o seguinte: “Deve ser bem melhor trabalhar na
Sibéria do que aqui". Ele nunca vira “locais de trabalho mais
perigosos” .
“ Por exemplo, no alto-forno recém-construído obriga
vam a gente a arrastar os tubos de lá do sétimo andar. Eu
me lembro que havia necessidade de dois homens para arras
tar um único tubo. E tínhamos que prestar uma atenção da
nada durante o trajeto, porque sabíamos que estávamos cor
rendo risco de vida.
“ Também nos fizeram subir num guindaste de uns se
tenta metros de altura para varrer todo o pó que havia lá em
cima. Depois tínhamos que arrastar para baixo os sacos cheios
de pó, que pesavam bem uns cinqüenta quilos. Era um tra
balho perigoso e prejudicial à saúde. Fui perguntar ao encar
regado por que é que eu devia fazer aquele serviço. A respos
ta dele: (Você pelo menos tem seguro e seus documentos es
tão em ordem. Diferente dos outros. Se acontecer um acidente
poderemos fazer alguma coisa por você’. Foi então que eu
soube que Adler tem poucos empregados registrados legal
mente, com a documentação em ordem.”
Hüseyin Atsis também precisava correr atrás de seu pa
gamento. Quando finalmente conseguia receber, depois de
muita insistência, verificava que o salário estava muito aquém
do que esperava tomando como base o valor combinado do
pagamento por hora e as constantes horas extras que fazia.
Em lugar dos 10 marcos combinados recebeu apenas 9 mar
cos por hora, sem falar nos descontos misteriosos. Por 184
horas de trabalho recebeu somente 724,28 marcos. “Assim
que peguei o dinheiro, disse para mim mesmo: ‘Não dá para
se meter com essa gente. E, se bobear, ainda me expulsam
do país’. Resolvi pegar meus documentos e me dar por satis
feito com o dinheiro. Mas aí Adler falou: ‘Não vou lhe en
tregar os documentos. Primeiro você tem que assinar um pa
pel dizendo que recebeu tudo o que lhe devíamos. Só depois
eu devolvo seus documentos’.”
Sait Tümen (25 anos) e Osman Tokar (22) passaram pe
la mesma experiência.
Sait Tümen: “ Eu estava trabalhando com Adler fazia
três meses e nunca me pagavam a soma exata que eu deveria
receber. Eram 100 marcos a menos aqui, 200 ali... E olhe que
eu trabalhava quase todos os dias! Comecei a pedir dinheiro
emprestado para poder viver e prometia aos amigos que pa
garia tão logo recebesse o meu salário. Adler vivia dizendo
que eu ficasse sossegado, pois ia me pagar no dia seguinte.
Como não pude pagar as dívidas, os amigos acharam que eu
estava mentindo e nunca mais falaram comigo. Por causa dis
so perdi os amigos. Tentei arranjar emprego em outrò lugar.
Mas precisava levar os documentos, ou nada de serviço. Pro
curei Adler e disse que eu tinha conseguido outro emprego,
mas precisava dos documentos e do dinheiro que ainda tinha
para receber. Ele falou: ‘Só lhe entrego os documentos se você
assinar um papel dizendo que não tem mais nada para rece
ber aqui’. Daí eu pensei: ‘Se eu não levar os documentos ama
nhã, perco o emprego. Que fazer? E o novo chefe é muito
amigo de Adler! *Então assinei o papel, que já estava até da
tilografado. O Adler tinha um montão deles. No papel, bem
no alto, estava escrito: ‘Declaração'. Dizia que a firma Adler
— Montagem Industrial não me devia nada e que eu, como
empregado temporário, já havia recebido tudo a que tinha
direito” .
E Osman Tokar: “Toda semana Adler descontava algu
mas horas do nosso salário. Então fomos falar com ele e ou
vimos a seguinte resposta: ‘A diferença será paga no próxi
mo ordenado'. Mas isso nunca acontecia. E ele vivia repetin
do: ‘Na próxima vez, na próxima vez!’ Era assim que conse
guia se livrar da gente. Então eu decidi tirar a coisa a limpo.
Ele me disse: ‘Se você não quiser receber 9 marcos por hora,
menos 40% de descontos, só preciso botar um anúncio no
jornal para aparecerem mil pessoas no portão. Vocês deviam
ficar felizes por ter um emprego, afinal são estrangeiros’. Foi
isso o que ele falou” .
Osman também descreve as condições de trabalho e os
efeitos nocivos sobre sua saúde:
“ Obrigaram a gente a trabalhar num lugar onde não se
enxergava quase nada por causa da poeira. E nem se podia
respirar direito, era terrível. Depois de alguns dias, comecei
a sentir umas dores medonhas, como se estivessem me furando
o coração e os pulmões. Foi então que um colega da Thyssen
me contou que o pó de ferro é muito perigoso e pode provo
211"
car a morte. E que eu devia arranjar com urgência uma más
cara de proteção. Fui falar com o chefe da Thyssen. Ele me
disse que não era tão grave e que eu fosse trabalhar em vez
de dizer asneiras. Viviam nos chantageando: se não acabás
semos o serviço em vinte horas, eles nos obrigariam a conti
nuar trabalhando lá dentro. E realmente não pudemos sair.
“ Depois do serviço fui procurar um médico, porque eu
estava com uma tosse horrível. O médico me examinou e foi
logo perguntando onde eu trabalhava. Respondi que numa em
preiteira da Thyssen. Então ele quis saber se no local havia
gás, pó de ferro ou coisas do gênero, que são nocivas aos pul
mões. Falei que havia pó de ferro. Daí ele me disse que eu não
era o único da Thyssen que o procurava por causa desse pro
blema. E que se eu quisesse ficar bom de verdade tinha que
procurar outro emprego. E me receitou os remédios".
212
A radiação
213'
Toda vez que um dos tubos condutores de vapor co
meça a vazar e precisa ser vedado, o responsável pelo rea
tor prefere chamar trabalhadores turcos. Segundo seus de
poimentos, por um “ salário semanal de 400 marcos” , os
turcos trabalham até receber a dose anual de 5 000 mili-
rem, o que pode demorar de meio a dois minutos, con
forme a intensidade da radiação. Se o tubo continuar mal
vedado, outros turcos são enviados para a área de radia
ção. No jargão nuclear, essa prática recebe o nome de
“ queimar” . Em princípio, eles ficam “impedidos” de tra
balhar pelo resto do ano. “Mas existem meios de conti
nuar fazendo esse serviço em outros locais” , explica-me
um dos trabalhadores, que, no entanto, não quis descre
ver tais meios. “ Se a gente não der um jeito não arranja
mais emprego em lugar nenhum.”
Para entender melhor esse trabalho perigoso e mui
tas vezes fatal e poder dar um testemunho fiel do que acon
tece lá dentro, decido procurar uma colocação na central
de Würgassen. O problema é que fazem uma investigação
prévia a título de segurança. Dou o nome e o endereço de
meu duplo, além de relacionar os diferentes domicílios que
ele ocupou nos últimos dez anos, para que o Serviço Es
tadual de Defesa da Constituição possa checar todos os
dados e vasculhar “ minha” vida. Os computadores usam
suas “ memórias de elefante” : participação em passeatas?
atividades suspeitas? Entram também em contato com a
polícia federal.
Normalmente essa investigação costuma demorar seis
semanas; em casos mais complicados, pode estender-se por
até três meses. Comigo — isto é, com meu duplo —, os
investigadores parecem muito minuciosos, porque levam
dois meses sem me dar resposta positiva ou negativa. Tal
vez por estarem em período de férias? De qualquer mo
do, essa demora vem mesmo a calhar. Excepcionalmente
resolvo proceder de forma diferente da que previra. (Um
amigo médico, radiologista e especialista em problemas de
radiação, a quem eu havia confiado meu intuito de traba
lhar na central nuclear como turco, preveniu-me seriamente
‘214 *
sobre o que poderia acontecer. Meu estado de saúde já es
tava bastante deteriorado graças à bronquite crônica pro
vocada por todo aquele pó na Thyssen e às seqüelas dos
testes farmacêuticos. E ainda por cima eu queria me ex
por a radiações? Isso poderia causar lesões permanentes.
É bem verdade que não estou vivendo uma fase mui
to brilhante — ao contrário, sinto-me no fim, pois cada
vez mais me identifico com meu papel e me desanimo por
ver a situação praticamente desesperadora de meus ami
gos e colegas de trabalho. Ainda assim tenho medo de que
um câncer provocado pela radiação me corroa e eu preci
se lutar contra a morte talvez durante anos.
“Pode ser o tiro de misericórdia!” , advertiu-me o ami
go radiologista. Pois bem, admitindo que sou um covar
de e um privilegiado, afasto-me dali. Existem, porém, cen
tenas e milhares de imigrantes que, mesmo estando em con
dições físicas piores que as minhas, aceitam esse tipo de
trabalho e colocam em risco sua saúde e, por vezes, até
a própria vida. Como se trata de um trabalho que não re
quer grandes esforços, pessoas doentes, mais velhas ou
completamente extenuadas julgam-se aptas a realizá-lo.
Acrescente-se que a maior parte dos imigrantes ignora to
dos os perigos decorrentes de tal serviço. Eu mesmo, quan
do me candidatei a uma vaga na central de Würgassen,
cheguei a fazer a seguinte pergunta:
— Não há perigo nesse trabalho?
O chefe do pessoal me tranqüilizou:
— Tanto quanto em outras indústrias.
Eis alguns depoimentos que mostram como é realmen
te o trabalho em Würgassen. Frank M., encarregado, con
ta: “ Por um lado é um trabalho que dá dinheiro fácil e
rápido. Como encarregado recebi no último pagamento
2 SOO marcos líquidos. Por outro lado, eu não trabalha
ria nisso mais que cinco anos. Preferiria ficar parado e re
correr ao seguro-desemprego. Há muita radioatividade, e
as instalações são muito velhas. Além do mais, como o
reator é de água fervente, as radiações são muito mais for
tes que as de um reator de água pressurizada. Tenho cer
215*
teza de que tudo está contaminado, até o café que toma
mos. É só entrar na usina, e o dosímetro já se põe a mar
car 10 milirem, antes mesmo de a gente começar a tra
balhar” .
Dosímetro é um aparelho de medição que todos de
vem portar dentro das “áreas quentes” , indica a quanti
dade de radiação existente no local ao longo do dia. Mas
os operários o manipulam com medo de não poder preen
cher sua cota de horas. Sobre isso diz um ex-operário de
Würgassen: “É uma questão de autocontrole. A gente sim
plesmente põe o dosímetro de lado; no armário, por exem
plo. Ninguém percebe. Durante todo o tempo que traba
lhei em Würgassen nunca me perguntaram pelo dosíme
tro. Se você não está com ele, não há nada para registrar....
Através da subempreiteira Reinhold & Mahler eu soube
que mandaram para lá uma porção de trabalhadores iu
goslavos — uns dezesseis caras, mais ou menos —, todos
em situação ilegal, sem nenhum tipo de documento. Eles
não dão muita importância às normas de segurança. Quan
do o trabalho acabou, foram obrigados a partir: discreta
mente voltaram para o seu país... Outro exemplo: na usi
na nuclear de Grohnde só 20% dos soldadores são alemães.
O resto é imigrante” .
E Frank M. prossegue: “Na subempreiteira onde tra
balho há cerca de 2 500 empregados; no mínimo, 1 500
são imigrantes. A empresa contrata os estrangeiros para
os serviços de revisão da usina nuclear; quando terminam
a tarefa, são mandados embora. A maior parte só fica al
gumas semanas. É a turma que vai ser ‘queimada’. En
tram, recebem a dose máxima de radiação e partem. Na
minha empresa, os mestres-de-obras e os encarregados ge
ralmente ficam mais tempo. Todos os outros estão só de
passagem. Fazem um contrato de trabalho por prazo de
terminado, o tempo de um serviço de revisão. Em duas
semanas já recebem um quarto da dose de radiação admi
tida num ano. Daí o serviço de segurança da usina diz que
não podem mais continuar ali, e eles são demitidos.
“Também há muitos turcos que foram mandados pra
216 *
cá. Vieram de avião para uma breve estada. Ficam soldan
do até receber a dose completa. Se a central precisa de sol
dadores para uma área onde a radiação é de 1 000 mili-
rem por hora, digamos, eles trabalham duas horas; depois
são substituídos e mandados pra casa. Os outros traba
lham mais duas horas, recebem os 2 000 milirem nas cos
tas e são mandados para casa. E assim vai, até que o ser
viço esteja pronto.
“A coisa costuma acontecer da seguinte maneira:
quando os operários estrangeiros chegam, não têm a me
nor idéia do que seja uma usina nuclear e não entendem
por que devem parar de trabalhar depois de dois dias ou,
às vezes, duas horas apenas. Só lhes dizem: 'Bom, a par
tir de agora vocês estão dispensados!’ Então, eles têm que
sair e voltar pra casa".
Depois Frank M. fala sobre o trabalho de limpeza das
bacias do reator: “ Quando a usina desliga tudo, cerca de
30% dos bastões combustíveis são substituídos e deposi
tados na bacia de sedimentação, onde ficam por mais de
um ano, até a radiação não produzir mais efeito. Ao subs
tituir os bastões, a água que há dentro deles escorre. Isso
obriga os operários a manterem sempre limpo o chão ao
redor da bacia, para que a contaminação não se espalhe
por toda a usina1. Assim, um operário trabalha direta
mente dentro da bacia e um outro o agarra, isto é, fica
segurando-o com uma corda. Porque se o primeiro cair,
deverá ser retirado em dez segundos, já que é impossível
nadar naquela água” .
Dragan V., operário iugoslavo, declara: “ Quando me
contrataram ninguém falou nada sobre os riscos da radia
ção. Só me disseram que a minha dose trimestral era de
2 500 milirem e a anual de 5 000. Foi tudo. Agora, o quan
to era perigoso e mesmo se era perigoso, não me disseram
nada” .
No dia 20 de agosto de 1982, catorze operários de uma
empreiteira foram expostos a fortes radiações enquanto
i O que se chama “ radiação indireta” (N. do A.)-
217^
substituíam um chamado “ filtro de areia’* na instalação
de escape de gás. Fortemente contaminados, precisaram
ser levados às pressas para uma clínica de Düsseldorf es
pecializada no tratamento de contaminação nuclear. A di
reção da usina determinou silêncio absoluto sobre o aci
dente, mas um operário que o presenciou faz o seguinte
depoimento: “ Sempre fico com medo quando tenho que
trabalhar lá dentro. Principalmente depois do acidente. Em
princípio, eles decidiram fechar temporariamente a usina.
Mas o pessoal continuou trabalhando lá dentro ainda meia
hora. E então, de repente, ocorreu o fechamento comple
to. Nossos polidores estavam a sete metros de profundi
dade. Os outros estavam sentados no vão da escada. A es
cada dava para uma abertura por onde desciam as ferra
mentas. O pessoal tinha colocado ali suas caixas de ferra
menta, e também havia alguns cabos que corriam para fo
ra. Assim, a porta estava obrigatoriamente aberta. Nin
guém percebeu nada até que chegou a ordem de fechamen
to completo. Na saída, todos quiseram passar pelas má
quinas, por aqueles aparelhos de controle1. E então des
cobriram que estavam completamente contaminados.
“Então aconteceu o seguinte: todos tiveram que tomar
um banho atrás do outro. Mas de nada adiantou. Já está-
vamos lá fora, e eles continuavam debaixo do chuveiro. Das
onze e meia às três da tarde ficaram tomando banho e se
esfregando como loucos. Das onze e meia às três da tarde.
Nós havíamos entrado um pouco antes das três. Pudemos
voltar ao trabalho. Só a sala das máquinas e o portão de
entrada ficaram interditados. No dia seguinte, sábado, fo
mos trabalhar para compensar as horas paradas. E os ca
ras estavam lá, tomando banho até meio-dia. Das sete da
manhã até meio-dia! Mas não adiantava, a coisa não di
minuía! Então, na segunda-feira, foram mandados para a
clínica especializada em Düsseldorf. Mas lá só mediram a
radioatividade. E quase todos ficaram proibidos de entrar
na usina pelo resto do ano. Não puderam mais voltar” .
1 Aparelhos que medem o grau de radiação (N. do A.).
218
Horst T., operário alemão, também sofreu um aci
dente: “ Um dia, na câmara de condensação, meu maca
cão de proteção se rasgou. Continuei trabalhando e, na
saída, ao passar pelo monitor, o quadro inteiro se ilumi
nou. ‘Não é possível*, pensei. Fui tomar um banho. E du
rante quase duas horas fiquei nisso: banho, monitor, ba
nho, monitor! No fim, já nem secava mais o cabelo. A
coisa penetra nos poros, e, uma vez lá dentro, você pode
se esfregar durante horas. Disseram que eu devia ter rece-
bido uns 2 800 milirem. Mas como é que eu vou saber se
não foi muito mais? Depois me mandaram embora, as
sim, sem mais nem menos! Alegaram contenção de des
pesas! E disseram que eu não estava preparado para aquele
tipo de atividade! Então exigi minha caderneta de radia
ção, onde são registradas todas as exposições a que você
foi submetido. Depois de muitas idas e vindas, por fim me
entregaram a caderneta — totalmente em branco! O que
significa que eu deveria mandá-la para a subempreiteira
de Kassel. Foi o que fiz. E catorze dias mais tarde, me te
lefonaram perguntando se eu não queria voltar ao traba
lho. Mandaram-me uma nova caderneta de radiação. Ao
assiná-la, percebi que também estava em branco. Como
se eu nunca tivesse trabalhado numa usina nuclear...”
É muito raro haver um controle oficial das caderne
tas de radiação, como a lei prevê. Elas costumam ficar nos
escritórios das subempreiteiras. Quando as autoridades
aparecem para o controle, muitas já foram perdidas ou
adulteradas. Os próprios chefes dessas empresas assumem
a responsabilidade diante de seus empregados.
Sempre que tem oportunidade, a indústria atômica
minimiza os perigos decorrentes das grandes ou pequenas
exposições à radiação. Por exemplo, quem é contratado
para trabalhar na “área quente” da central nuclear de Wür-
gassen tem suas dúvidas “ esclarecidas” através de um fil
me colorido, gravado em videocassete. “A radiação é com
parável à luz do sol” , anuncia uma voz enérgica, típica
dos filmes de publicidade. E na tela cintilante aparece a
imagem de uma jovem bronzeada, deitada sob um guarda-
219
sol em alguma praia do Mediterrâneo. Os trabalhadores
contam como os encarregados costumam tranqüilizá-los:
“É a mesma intensidade de radiação que duas semanas
de férias no mar do Norte” . O slogan da Würgassen, re
petido algumas vezes ao longo desse filme “ esclarecedor” ,
diz o seguinte: “Evitar as exposições radioativas desneces
sárias e reduzir, tanto quanto possível, as exposições ine-
vitáveisl”
De fato, a indústria nuclear costuma prever certo nú
mero de óbitos. No papel! Pois ninguém tem controle do
que realmente acontece com o pessoal.
A prof.a dra. Inge Schmitz-Feuerhake, pesquisado
ra da Universidade de Bremen e especialista nessas ques
tões, diz o seguinte: “Hoje em dia sabemos que qualquer
dose de radiação, grande ou pequena, pode causar danos
graves à saúde. Pode propiciar a formação de um câncer
ou provocar lesões genéticas nos descendentes. E o mais
terrível é que na maior parte das vezes as seqüelas dessas
radiações só aparecem muito tempo depois, às vezes até
depois de vinte ou trinta anos. A tecnologia nuclear na Re
pública Federal da Alemanha é muito recente para que pos
samos realmente estudar seus efeitos” .
Mas quem irá provar, depois de tanto tempo, que o
fato de a vítima ter trabalhado numa das “ áreas quentes”
de uma usina nuclear pudesse provocar tal câncer? Antes
de começar a prestar serviços numa usina nuclear, os ope
rários são submetidos a exames médicos — mas depois,
não! Morte a prazo? Sem dúvida. Morte secreta, sem tes
temunhas, sem provas e em massa. Dezenas de milhares
de soldadores e faxineiros anualmente vão trabalhar nas
centrais nucleares alemãs (só para as áreas perigosas de
Würgassen são enviadas cinco mil pessoas por ano). Apro
ximadamente a metade são imigrantes que com freqüên
cia retomam a seus países de origem antes de começar a
sentir as seqüelas provocadas por essa atividade.
Na República Federal da Alemanha, o órgão responsá
vel pela segurança das centrais nucleares (inclusive dos locais
de trabalho) é o Serviço de Fiscalização Técnica (SFT). O Ins
tituto de Pesquisa sobre Acidentes, do SFT da Renânia, com
sede em Colônia, enviou ao Ministério do Interior um rela
tório sobre os “ fatores humanos na central nuclear” que nun
ca foi publicado. Nesse relatório, os especialistas do SFT exa
minam os “ problemas" decorrentes do emprego nas usinas
nucleares do chamado “ pessoal estrangeiro" — problemas
que causam transtornos às indústrias, não ao pessoal em
questão.
“ Os problemas surgem, em primeiro lugar, ao nível da
colaboração com o pessoal auxiliar não-qualificado, forne
cido pelas empresas de prestação de serviços e contratado para
trabalhar nas áreas de forte radiação —, poupando, assim,
os próprios operários da usina nuclear. Segundo declarações
dos responsáveis pelas centrais nucleares, essa gente freqüen
temente tem pouca motivação e trabalha de má vontade..."
Claro: quem trabalharia de bom grado, num local como esse?
Outra passagem do relatório diz o seguinte: “ É impen
sável deixarmos de contratar os serviços desse pessoal estran
geiro, se quisermos levar em consideração o cronograma da
empresa". E, freqüentemente, as centrais nucleares “têm falta
de pessoal, devido à carga radioativa e às restrições quanto
à utilização de operários próprios e estáveis". E mais: “As
doses de radiação admitidas são absorvidas em pouco tempo
(alguns minutos)". Mais adiante pode-se ler: “ Uma das ta
refas desses operários estáveis é treinar os trabalhadores es
trangeiros — especialmente nos serviços que implicam forte
exposição à radiação, onde precisão e rapidez são fundamen
tais (...) Muitas vezes não é possível um treinamento correto
(em virtude das altas doses de radiação); outras vezes, o gas
to com esse pessoal estrangeiro é desproposital e sua utiliza
ção não corresponde aos objetivos determinados".
O instituto declara secamente: “A maioria dos estran
geiros empregados ignora os riscos a que estão sujeitos. O
precário conhecimento das instalações e do sistema de fun
cionamento é computado como um fator negativo suplemen
tar (...) principalmente porque é impossível exercer uma vi
gilância eficaz nos locais onde esse pessoal é empregado pa
ra poupar (reduzindo as doses de radiação) os operários es-
'221*
táveis (...) Quando são encarregados de algumas tarefas em
áreas de radiação intensa, os estrangeiros experimentam uma
sensação de impotência em face de um perigo que desconhe
cem. Isso pode provocar comportamentos de extrema impru
dência” .
222 *
Taxas de câncer mais elevadas nas centrais nucleares
Na Grã-Bretanha os operários das centrais nucleares e
de outras instalações atômicas correm maiores riscos de con
trair câncer da próstata que a média dos cidadãos. Um estu
do publicado pelo Conselho Britânico para Pesquisa Médica
revela que, num grupo de mil operários expostos a índices
de radiação relativamente elevados, o número de vítimas é
oito vezes maior.
Os pesquisadores, que publicaram suas conclusões no
British Medicai Journal, uma revista especializada, ocuparam-
se de 3 373 casos fatais dentre os 40 mil homens e mulheres
que haviam trabalhado no Centro de Energia Atômica da Grã-
Bretanha, entre 1946 e 1979.
Segundo esse estudo, o número de casos fatais decorren
tes de leucemia, câncer da tireóide e câncer dos testículos tam
bém está acima da média. Os médicos descobriram ainda que
entre as mulheres expostas por muito tempo a radiação in
tensa o número de vítimas de câncer dos ovários e da bexiga
é maior que a média.
(Informação tirada da Frankfurter Rundschau de 21 de
agosto dê 1985.)
223*
A missão
(ou: Pegar e largar)
224*’
tempos técnicos” de uma indústria nuclear. A mercado
ria: turcos que serão “ queimados” .
Monto uma encenação para ver até que ponto ele che
garia num caso muito grave. Amigos e colegas estão pron
tos para entrar em ação: Heinrich Pachl, ator profissio
nal de Colônia, assumirá o papel de Schmidt, encarrega
do de segurança da usina nuclear; meu amigo Uwe Her-
zog será Hansen, perito-assistente.
A missão secreta
226'
ADLER: Certo!
SCHMIDT: Eles devem ser enviados para o local. Es
se é o primeiro ponto. É possível que tudo possa ser repa
rado em pouco tempo. Ou não.
Essas frases preliminares, ligeiramente alusivas à “mis
são quente” , bastam para que Adler se sinta à vontade.
Apressa-se em afirmar que “ amanhã mesmo” pode man
dar para a usina “ oito ou dez homens de total confian
ça” e aproveita para formular uma questão que trai todo
o profissionalismo do negócio: — E as cadernetas de ra
diação? Podemos fazer alguma coisa quanto a isso?
Schmidt já esperava por algo semelhante e faz sua pri
meira exigência ilegal:
— É claro. Nada de cadernetas de radiação! Não há
tempo para isso. Todo esse transtorno deve estar resolvi
do até sexta-feira no final da tarde.
Adler não vacila:
— Como quiser... Pois bem, amanhã mesmo lá es
tarão oito trabalhadores sem caderneta. Eu faço minha par
te, e o senhor faz a sua. E tudo na surdina, supersecreto.
Schmidt continua então com suas exigências. Deixa
claro que só interessam pessoas que “não sejam do local” ,
portanto “ mão-de-obra estrangeira” , porque podem “ ser
imediatamente despachadas para seus países” . Em segui
da explica que o principal motivo para o rápido desapare
cimento dos trabalhadores é a possibilidade de acontecer
alguma coisa, porém logo o tranqüiliza:
— Se alguém acabar canceroso, ninguém poderá di
zer que foi por esse ou aquele motivo... Além do mais um
câncer pode ficar latente bem por uns vinte anos.
ADLER (aliviado): Mas claro!
SCHMIDT (num tom paternal): Ninguém jamais po
derá provar nada.
HANSEN (mostrando alguns croquis que indicam, sem
a menor sombra de dúvida, tratar-se de uma missão suici
da): Veja! Estes são os encanamentos. Têm 67 centíme
tros de diâmetro. O pessoal deve entrar aqui...
Adler : Mas onde fica o... núcleo?
227 ‘
HANSEN: Aqui fica o depósito de pressão; os canos que
conduzem o vapor radioativo para a turbina fazem a liga
ção entre o depósito de pressão e a sala de máquinas. E é
bem no meio deste cano que o nosso “ rato” está entalado.
ADLER: Como?...
HANSEN: O “ rato” é um pequeno aparelho a laser
que circula no interior dos canos detectando eventuais ava
rias. O problema é que o “ rato” agora está entalado não
sabemos onde. Por isso o pessoal tem que entrar lá. O tra
balho não exige esforço físico, mas os homens devem ter
boa saúde...
ADLER: Ah, eles têm! Claro que têm!
HANSEN:... para entrar lá. O outro problema é que,
por motivos técnicos, desconhecemos o índice de radioa
tividade na área. Pode ser infernalmente elevado.
ADLER: Um momento! Teremos que levar aparelhos
de detecção ou coisa do gênero?
HANSEN: Não, nós fornecemos os dosímetros. Isso
não é problema. E também damos roupas de proteção. En
fim, tudo. Só não sabemos qual é o índice de radiação no
local. Só vamos saber quando eles saírem de lá.
A dler (falando de seus empregados como um pro-
xeneta): Bem, vejamos! Tenho gente trabalhando na Thys
sen. Posso selecionar oito homens, os melhores. Damos
o transporte, e amanhã cedo eles estarão lá. É claro que
são... estrangeiros. Pode haver um alemão no meio mas,
em princípio, são todos estrangeiros. Não entendem nada
dessas coisas. Além do mais, mando todo mundo ficar de
bico fechado, e na semana seguinte já voltam para a pra
teleira. A propósito... como homem de négocios, estou in
teressado em conseguir novos contratos para os trabalha
dores. Seria ótimo para mim. Serviços de limpeza e coisas
do gênero, por um período superior...
SCHMIDT (interrompendo-o): Proponho fechar este
negócio primeiro. Se tudo correr bem, tanto para o senhor
quanto para nós, então tomaremos a entrar em contato
para outras tarefas. Está bem assim? Ah, outra coisa...
se ocorrer algum... digamos... algum problema...
228 ' \
ADLER: Sim?...
SCHMIDT:... o senhor eventualmente teria outras pes
soas disponíveis...
A dler : Claro, claro! Tenho um fichário completo.
Posso trocar os empregados quantas vezes forem neces
sárias.
SCHMIDT: Eu me refiro a pessoas que, por um moti
vo ou outro, precisem ser despachadas para seus países em
pouco tempo.
H a n s e n : Devemos estar preparados para qualquer
eventualidade. O risco é grande. Talvez pudéssemos esti
mular o pessoal a voltar para a Turquia oferecendo uma
gratificação, por exemplo.
A dler : Talvez... Se for uma quantia razoável.
SCHMIDT (mostrando-se bastante generoso): O que
acha de uns 120 mil, 150 mil marcos?...
A d le r: Está bem. Os senhores já expuseram o pro
blema. Vou lhes dizer uma coisa. Esse é o meu serviço.
Como empresário, faço de tudo. Quero ganhar dinheiro,
e o pessoal deve ganhar seu dinheirinho suado. Agora que
estou a par de tudo, posso montar a equipe de que os se
nhores precisam. Muito bem... Vejamos... quais as pes
soas disponíveis? As que estão na lista negra do consula
do? Conheço algumas. As que têm problemas com a polí
cia de estrangeiros? Também conheço algumas. É esse o
tipo de gente que vamos usar, não? (Já entendeu clara
mente. Mais uma vez confirma os nomes dos dois “en
carregados de segurança”.) Sr. Schmidt e sr.?...
HANSEN: Hansen!
A d le r (parecendo meditar por alguns instantes):
Mas claro! Já ouvi seu nome... Hansen... de Würgassen,
claro... (O negócio rendoso reforça sua confiança. Nova
mente garante aos “sócios” que tudo correrá bem e por
fim chega ao ponto essencial: o dinheiro.) Os meus em
pregados já estão acostumados comigo. Quando os man
do para um cliente, é para trabalhar! De olhos e bico fe
chados. Trabalhar, apenas isso! Quem se atreve a olhar
para os lados e abrir a boca... rua! É assim em todo-togat
• 229'
onde trabalhamos. Na Thyssen, por exemplo, já fizemos
um servicinho, e ninguém abriu o bico... Fica tudo morto
e sepultado... Mas vejamos... começamos a trabalhar ama
nhã, dia 8 de agosto de 1985. Quanto os senhores preten
dem investir?
SCHMIDT: Calculamos algo em torno de 120 mil, 150
mil marcos. Mas os riscos correm por sua conta. Portan
to, se acontecer qualquer coisa, mesmo depois de tudo ter
minado, o senhor é quem vai bancar. E os empregados já
deverão estar longe.
Adler : Só mais uma pergunta, para não haver dú
vidas... O meu pessoal estará bem quando sair de lá, não?
SCHMIDT: Pensei que já tivéssemos nos entendido.
Estamos pagando por isso também. Os operários vão re
ceber uma dose de radiação e talvez posteriormente ne
cessitem de tratamento médico. E é aí que está o proble
ma. Não podemos permitir que comecem a perguntar pa
ra eles quanto tempo trabalharam lá e coisas desse tipo.
Nem podemos deixar que eles mesmos dêem com a língua
nos dentes. Precisamos evitar isso por todos os meios.
H a n s e n : Os operários deverão partir imediatamen
te! Imediatamente!
ADLER: Certo! Mas... vamos falar com franqueza.
O meu trabalho é montar uma equipe e enviá-la para os
senhores, que, por sua vez, vão mandá-la para as zonas
de perigo. É isso, não? Então não há problema.
Claro que não há problema. Enviar os empregados
para as zonas de perigo nunca foi verdadeiramente um
“ problema” para Adler. Agora só falta fazer os últimos
acertos. A questão do transporte é resolvida: Schmidt man
dará um microônibus da central nuclear apanhar o pes
soal em Duisburg na manhã seguinte. Adler ainda escla
rece que no momento tem uma equipe trabalhando em
Würgassen e alojada no hotel Na Curva. E está disposto
a ir encontrar esses homens no dia seguinte para resolver
de vez o problema do pagamento.
Os três saem juntos do restaurante. Ao perceber o ar
satisfeito de Adler, deduzo que teve êxito na transação de
230Í
sua mercadoria. Abro-lhe a porta do automóvel, como exi
ge de mim. Sem dizer uma palavra, ele aciona o mecanis
mo automático do assento estofado e macio até ajustá-lo
à posição mais confortável e relaxante.
— Vamos voltar para Oberhausen — ordena e no
vamente fica em silêncio, meditando.
Começo a pensar que estou sendo injusto. Ele não é
tão inescrupuloso. Nenhum homem, sem exceção, pode
ser tão insensível. Adler não vai pôr em perigo a vida de
seres humanos... Claro que seu pessoal que trabalha na
Thyssen também “se queima” de certo modo — mais lento
e indireto — e também pode ter câncer, ingerindo todo
aquele pó espesso de metal pesado que é uma espécie de
bomba de efeito retardado. Porém, a situação na Thyssen
é bem mais clara: todos podem falar do pó, embora pou
cos saibam exatamente o que isso acarreta para a saúde.
Em compensação, os que vão trabalhar na usina atômica
nem desconfiam de que serão vítimas de radiações muito
perigosas, por vezes letais. Quem sabe se neste exato mo
mento Adler não está lutando consigo mesmo? Quem sa
be se não irá recusar a proposta?
Logo percebo que seus pensamentos se inclinam pa
ra outra direção. Ele rabisca alguns números em seu ca
derno de anotações e põe-se a fazer contas. De repente,
rompendo o silêncio, pergunta:
— Você consegue me arranjar até amanhã, sem fal
ta, sete ou oito conterrâneos seus que queiram ganhar al
gum dinheiro? É um bom trabalho, mas eles têm que es
tar em perfeitas condições. — E, enquanto finjo pensar,
declara: — Se você achar que tem pouco tempo para isso,
vou falar com o K. Ele sempre tem gente disponível. —
Refere-se a um trabalhador turco que foi elevado ao car
go de “pau para toda obra” . Quando precisa de empre
gados, K. sempre arranja.
— Eu pode conseguir pessoal — digo. — Mas que
eles precisa saber?
— Nada de especial. Basta que sejam pobres. Você
pode inclusive dizer que eu também já fui pobre.
231'
— Senhor, pobre? — pergunto, espantado.
— Quando?
— Depois da guerra, é claro. Todo mundo era po
bre naquela época. Bem, mas o que eu preciso é de pes
soas que tenham medü de ser expulsas do país. — E, per
cebendo minha perplexidade, rapidamente apresenta um
motivo: — É que eu quero ajudá-los, porque estão muito
mal aqui, entende? Você sabe, sempre tive idéias sociais
avançadas. Afinal, sou social-democrata. E isso vem de
família.
— Que é social-democrata?
— E um partido que luta pelos operários. Sou mem
bro dele.
— E que tipo trabalho eles precisa fazer? Quanto eles
vai ganhar?
— Um bom dinheiro... 500 marcos em dois dias.
Quanto ao trabalho... bem... é fácil, coisa de limpeza. Eles
nem vão sujar as mãos.
— E onde fica?
Ele me enrola e mente de novo, encurtando em mais
ou menos dois terços a distância real:
— A uns cem quilômetros. E embora não tenha a me
nor importância eles viverem aqui ilegalmente — prosse
gue —, tão logo terminem o serviço, precisarão voltar pa
ra a Turquia. Se me arranjar esse tipo de gente, você tam
bém ganha 500 marcos.
— E pode ser gente de Exército de Salvação?
— Pode, só que nada disso é oficial, entende? — Pro
cura defender-se. — Você precisa saber. Nada é oficial.
Tudo black, até o dinheiro.
— “ Bleque?” O que é isso?
— Negro, sem impostos, por baixo do pano. Eles re
cebem em dinheiro vivo, ali, na mão. Em troca, não preci
sam mostrar documento nem nada. Inclusive é melhor para
eles. Ganham dinheiro para voltar para a Turquia e reco
meçar a vida por lá. Ah, sim... diga para trazerem roupas
de dormir... pijama, coisas do gênero. O resto a gente for
nece. Mas onde é que você vai encontrar esses caras?
232k
— Eles vive tudo escondido em porão.
— Ótimo! Se moram em porões é porque não têm
muitos contatos. E quantos são?
— Uns cinco.
— Hum... Procure direitinho. Quem sabe você con
segue reunir os oito. E pode me telefonar a qualquer ho
ra. Inclusive lá para o clube de tênis. Mas preste muita aten
ção numa coisa... não leve esse pessoal ao meu escritório!
É melhor levá-los para a sua casa, na Dieselstrasse. Eu vou
me encontrar com vocês, pode deixar. Outra coisa muito
importante também... eles precisam sumir depois que ter
minarem o trabalho. Quero que isso fique bem claro! Vão
ter que desaparecer! Afinal, mais dia menos dia, deverão
mesmo deixar o país, não é verdade? A polícia de estran
geiros não anda na cola deles?
— Anda.
— Pois então... Está claro? Eles precisam se man
dar. Ai de quem eu encontrar depois vagabundeando por
aqui... É esta a condição para o emprego!
— Mas qual é trabalho? — insisto em saber.
— Deixa para lá. Você não entenderia mesmo. Eu ex
plico direitinho para eles. Não haverá problema. O impor
tante é ajudar essa gente que vive em dificuldades. — Adler
fala como um pastor, com qualquer coisa de melífluo e
solene na voz. Isso, no entanto, dura pouco e ele volta a
falar como o patrão: — Então? Posso contar com você?
— Pode! — respondo.
Fico de telefonar à noite para informá-lo sobre as ne
gociações. Às nove horas consigo localizá-lo no restauran
te do clube. Nesse ínterim, Schmidt já lhe comunicara que
seis homens eram suficientes. (Em tão pouco tempo eu não
conseguiria reunir um número maior.) Aparentemente, Adler
não pode falar à vontade pelo telefone. Diante de seus ami
gos e de empregados — que o conhecem muito bem —, é
impossível representar o papel de benfeitor dos turcos ou
confessar, em plena região do Ruhr, sua filiação ao “parti
do que luta pelos operários” . Todos cairiam na gargalha
da. Tentando colocá-lo em situação embaraçosa, pergunto:
233'
— Que diz para colega acreditar?
— No momento não posso falar — responde um pou
co reticente. — Ligue para a minha casa daqui a uma hora.
Já em casa, sua voz adquire novamente aquele tom
de pastor. Insisto na pergunta:
— O que eu diz para colega? Eles quer saber por que
senhor é tão bom.
Um novo ímpeto de generosidade: põe-se a falar não
dos “ pobres” , e sim dos “ mais pobres dos pobres” , aos
quais gostaria muito de “poder ajudar” . Aproveito a oca
sião para pintar-lhe um quadro eloqüente da miséria em
que vivem certos trabalhadores turcos. É muito, no en
tanto, para ele, que já não consegue disfarçar sua falta de
interesse pelo relato. Temendo que eu desista da tarefa,
ainda se dá ao trabalho de dizer:
— Voltaremos a falar sobre isso. — E áté promete
que vai arranjar visto de permanência e autorização de tra
balho para os “ mais pobres dos pobres” . Embora tenha
prometido aos “ encarregados de segurança” que se livra
ria dos estrangeiros!
Nove e meia da manhã do dia seguinte.
Schmidt, o encarregado de segurança da central nu
clear, liga para Adler e pergunta se está tudo arranjado
conforme combinaram.
— Sim, já reuni o pessoal. Estão prontos para en
trar em ação. Mas me diga uma coisa com toda a honesti
dade... Quem é o senhor? Não é Schmidt, encarregado de
segurança da central nuclear de Würgassen. Sei que não
é. O que está planejando? Quem é o senhor? Com quem
estou negociando? Só vamos tratar de negócios depois que
responder a essas perguntas.
Havíamos contado com a possibilidade de Adler te
lefonar para Würgassen e descobrir que o verdadeiro en
carregado de segurança não se ausentou da usina. Prevendo
isso, Schmidt responde:
— Não tente ligar para o meu escritório! O negócio
que estamos fazendo é supersecreto. Se o senhor ligar, se
rei obrigado a dizer que não o conheço, que nunca o vi
234 v
e que jamais lhe encomendei um serviço dessa espécie. En
tenda, somos um setor extremamente sensível, uma área
de segurança extrema, e o inimigo está em toda parte, até
mesmo dentro de casa.
Aparentemente Adler conseguiu as informações atra
vés não de um telefonema à usina, mas de terceiros. Tam
bém havíamos previsto essa possibilidade e preparamos
uma versão adequada.
SCHMIDT: Fique descansado. Compreenda, devemos
agir o mais discretamente possível. E, para sua informa
ção, devo dizer que este seu amigo Schmidt é muito pe
queno para tratar de uma coisa tão grande. Está tudo nas
mãos da diretoria.
Adler : Compreendo.
Schmidt : E para agir discretamente é necessário um
mínimo de confiança!
Adler : É claro, mas eu confio...
Schmidt : Se o senhor não confiar em nós, reconsi
deraremos todo o trato. Entenda, para nós é uma situação...
ADLER: Sim...
Schmidt (elevando a voz num tom patético): Exa
tamente porque estamos encarregados de fornecer ener
gia à Alemanha não nos resta outra solução...
ADLER: Sim...
SCHMIDT: Ontem mesmo eu lhe disse que se o senhor
me telefonasse esbarraria no serviço de segurança. Está
compreend...
Adler (interrompendo-o): Claro! Claro! (Suas sus
peitas dissipam-se aos poucos, graças à atitude segura de
Schmidt; mesmo assim , ele procura se garantir.): Diga-me
mais uma coisa... Eu poderia receber uma confirmação
do serviço por escrito?
SCHMIDT: Por escrito? De jeito nenhum! Será que
não entende?
ADLER: Sim...
Schmidt : Preste atenção! Em primeiro lugar, vamos
usar só seis dos oito trabalhadores. Portanto, a quantia
estipulada de 130 mil passou a ser 95 mil marcos...
235'
ADLER: Hum...
SCHMIDT: Bem, digamos... 110 mil marcos...
A dler.: Hum...
Schmidt : ... incluindo, é claro, a gratificação de re
tomo ao país, aquele pequeno estímulo para voltarem à
terra natal.
Adler : Sim, claro.
Schmidt : De acordo com os nossos cálculos a aju
da de custo para a viagem ficaria em tomo de uns 5 000
marcos por pessoa. Esperamos que tudo dê certo e que o
senhor se encarregue de pagar ao pessoal.
Adler : Mas é lógico!
SCHMIDT: Em segundo lugar precisamos ter a garan
tia de que os operários sejam realmente fortes.
A dler : São, sim.
SCHMIDT: Não queremos que o mais leve contato
com alguns milirem os derrube.
Adler : Não, não! Não se preocupe, eles podem su
portar. Não são derrubados tão facilmente!
SCHMIDT: E se houver necessidade de um encarrega
do, este também deverá ser um imigrante...
A d le r (cortando-lhe a frase): Certo! Mas o traba
lho é mesmo para a usina central nuclear de Würgassen?
SCHMIDT: Lógico!
ADLER: Não é que a coisa ainda não esteja muito
clara...
SCHMIDT: O senhor já entendeu perfeitamente. Quais
são suas dúvidas? O senhor me pediu para' ser franco. Já
lhe mostrei o máximo de boa vontade.
ADLER: Claro!
SCHMIDT: E quanto ao senhor? Será que não vai sair
por aí contando para Deus e o mundo esse nosso negó
cio? Se ainda tem alguma dúvida, vamos conversar mais
um pouco. Mas antes é preciso que...
A d le r (cortando-lhe a frase): Sei, sei, compreendo
que tudo deve ser feito o mais discretamente possível. En
tendo perfeitamente que em determinados negócios deve-
se permanecer incógnito. O problema é que de repente me
236 *
aparece alguém dizendo que é Schmidt, da usina nuclear
de Würgassen, e eu percebo que não é bem assim... O se
nhor entende, tenho as minhas dúvidas... ou reservas, co
mo o senhor costuma dizer... Será que estou mesmo ne
gociando com a Central Geral de Energia? Eu não gosta
ria nada de me meter em negócios imprudentes ou crimi
nosos... (tosse) Enfim, eu não sei... como vou dizer... eu
gostaria de saber se estou mesmo negociando com a Cen
tral Geral de Energia.
SCHMIDT: Não entendi direito o que o senhor quis di
zer com imprudentes...
ADLER: Mas é que...
SCHMIDT: ... ou criminosos. A menos que o senhor
mesmo esteja acostumado a agir dessa forma...
ADLER: Eu?! Nunca!
SCHMIDT: Neste caso, eu é que gostaria muito de
saber...
ADLER: Não, não, não há problema! Mandarei o pes
soal amanhã. (Propõe um novo encontro, dessa vez na ro
doviária , diante da estação de trem .)
SCHMIDT: Às duas horas? Ótimo! Lá acertaremos
a questão do dinheiro e a forma de pagamento. Com
binado?
Adler (satisfeito): Claro, claro! Combinado!
(Todas as suspeitas foram destruídas. A ganância pelo
lucro impele-o a cometer imprudências.)
Quinta-feira, 8 de agosto, meio-dia.
Adler contratou provisoriamente um motorista tur
co que o levará em seu Mercedes 280-SE para Duisburg-
Bruckhausen, ao encontro de seu comando suicida. Or
dena ao chofer que, em vez de entrar na Dieselstrasse,
pare um pouco mais afastado, na Kaiser-Wilhelm-Strasse,
a rua principal, bem em frente à coqueria das indústrias
Thyssen.
O automóvel luxuoso provoca sensação neste bairro
miserável. Por trás das cortinas, as mulheres turcas esprei
tam, assustadas. Temem que a invasão esteja associada à
demolição de uma casa ou a um despejo forçado, quando,
, 237
alegando razões de higiene, vedam com muro as portas
e janelas de uma das casas em ruína. As crianças turcas
admiram o carro a distância, sem coragem de aproximar-
se. Adler não sabe como agir. Fuma um cigarro atrás'do
outro e não pára de olhar ao redor.
As chaminés da Thyssen expelem nuvens de fuligem
praticamente ininterruptas e basta uma leve brisa para espa
lhar toda a sujeira sobre o bairro. As pessoas não só respi
ram a fuligem, como a engolem, literalmente mastigando
os grãos concentrados nela. Por vezes os olhos inflamam
e ardem, tamanha é a poluição. Dependendo da hora e das
condições meteorológicas, há no ar uma concentração tão
grande de gás sulfuroso que realmente sufoca as pessoas.
Aqui o número de asmáticos e portadores de bronquite
é bem superior à média. A palidez das crianças salta aos
olhos. Lembro-me bem de um menino franzino — devia
ter uns cinco ou seis anos — cujo rosto infinitamente sé
rio e esgotado lhe dava a aparência de um adulto.
No centro de Duisburg, o sol com certeza está brilhan
do; aqui, no entanto, paira uma luz cinzenta, sombria. O
sol está atrás da cortina de fumaça, porém não consegue
romper o bloqueio. Do outro lado da rua, observo Adler
já há um bom tèmpo e percebo como se sente pouco à von
tade. A Dieselstrasse e suas imediações representam para
ele as portas do inferno. Mas o inferno real situa-se atrás
das cercas e dos muros vigiados pelo serviço de segurança
da Thyssen, onde o ar é ainda mais poluído, e o barulho
é ensurdecedor.
Adler nunca se desviou de seu trajeto em nosso local
de trabalho: isso poderia pesar em sua alma sensível e,
quem sabe, provocar-lhe pesadelos. Aqui, trajando um ter
no sob medida, ele parece totalmente deslocado, quase obs
ceno, irreal como as fotografias dos candidatos das últi
mas eleições, espalhadas pelo bairro. A propaganda não
funciona muito por aqui, a não ser, talvez, para algumas
marcas de cerveja e cigarro.
Nossa “ última oferta” consiste em seis amigos tur
cos, todos de confiança. Para minha surpresa, estão mui
238’
to menos espantados que eu com o tipo e a finalidade desta
missão e com a descarada falta de escrúpulos de Adler.
Já há muito tempo convivem com esta realidade e
conhecem-na bastante bem. Evito contar-lhes que sou ale
mão. Isto poderia não só criar uma distância muito gran
de entre nós como despertar a desconfiança de Adler.
Sem que ele nos veja, discretamente conduzo o pe
queno grupo por uma rua paralela até meu apartamento
da Dieselstrasse. Depois vou buscá-lo. Seria melhor que
o “ pessoal" — como ele diz — viesse encontrá-lo na rua,
mas eu me oponho.
— Não bom. Perigoso, porque eles não têm docu
mentos. — Ao dizer isso, começo a tramar o final da his
tória, sobre o qual só falarei no momento oportuno.
— Bem, se é mesmo perigoso... — Adler segue-me
até a Dieselstrasse, 10. Logo na entrada do prédio sente
um forte cheiro de urina, pois os banheiros ficam todos
do lado de fora, e um deles está entupido. Adler apressa-
se e sobe a escada. No primeiro andar, abro a porta do
apartamento e apresento-lhe meus amigos turcos, pron
tos para entrar em ação. — Bom dia — cumprimenta se
camente ao entrar na sala e põe-se a contar: — Dois... qua
tro... seis... Ótimo! Agora prestem atenção no que vou
dizer. Antes, porém, só uma coisa... todos entendem
alemão?
— Sim, maioria — respondo. Não é verdade, mas
com isso obrigo-o a pronunciar um pequeno discurso no
qual pouco a pouco ele se revela.
— Como vocês já devem saber, somos uma empresa
de montagem industrial sediada em Oberhausen — assim
começa sua apresentação. — Nossa missão é executar al
guns reparos na central nuclear de Würgassen. Um servi
ço fácil, que não levará mais de dois dias. Para tanto, pre
cisamos de cinco ou seis homens. Vão nos pagar um bom
dinheiro, o que significa que vocês também serão bem pa
gos. Se tiverem alguma dúvida, não hesitem. Estou pron
to a responder todas as questões.
Adler tem um ar simpático, franco. Quem não o co
239'
nhece deixa-se levar facilmente. Para que ele se revelasse
ainda mais, combinei com meus amigos que lhe fizessem
algumas perguntas em turco. Quanto a mim, não sei uma
palavra de turco, mas me ofereci para traduzir “livremen
te” as questões mais relevantes. Nunca ocorreu a Adler
que eu jamais tenha conversado em turco com meus cole
gas turcos; e muito menos que meu alemão não seja co
mo o alemão falado pelos imigrantes. Ele não se surpreen
deu com minhas palavras esdrúxulas, meus verbos mal con
jugados, meus artigos omitidos. Por vezes tais embustes
lingüísticos dão bons resultados, arrancando-lhe as mais
extraordinárias declarações. Adler nada percebe: para ele,
“ seus imigrantes” não passam de burros de carga. Desde
que trabalhem como animais e sejam dóceis na execução
dos serviços, nada tem contra eles; ao contrário! É um dos
poucos que, em certo sentido, até sabe valorizá-los. Mas
a partir do instante em que começam a se defender, exi
gindo o pagamento dos salários atrasados, passam a ser
“ gentalha, corja, bandidos, vagabundos” .
. — Colega quer saber — digo-lhe — como gente vai
até local de trabalho.
Adler põe-se falar da viagem como o dono de uma
agência de turismo promovendo excursões de ônibus com
direito a café e bolo grátis.
— Tudo é de graça! — exclama. — Às três horas,
um ônibus irá apanhá-los na rodoviária de Duisburg e os
trará de volta dois dias depois. O alojamento é grátis, a
alimentação é grátis, tudo é grátis!
Isso me lembra o refrão de sua cantiga preferida: “ ...
longe de casa e fora da lei/ cem homens, e eu entre eles...”
— Outro colega — digo. — Ele quer saber por que
SOO marcos? Muito dinheiro, pouco trabalho...
Desta vez a águia abre as asas, pronta para voar.
— Prestem atenção! Vocês conhecem a Alemanha e
sabem que temos diferentes tipos de usinas. Vamos tra
balhar numa usina nuclear. No momento ela está parada,
não produz energia. Ficou comprovado que algumas coi
sas precisam de conserto. E esse conserto deve ser feito
em pouco tempo, porque a usina voltará a funcionar na
próxima semana. E tem outra coisa... nada disso pode ser
comentado. Os jornais não devem saber do defeito, por-
que senão aparecem os caras do Partido Verde e aí já sa
bem... vem aquela lenga-lenga toda e ainda por cima con
seguem fechar a usina. — E com sincero desprezo: — Vo
cês conhecem bem esses grupinhos políticos que existem
na Alemanha... Bom, mas o importante é que o trabalho
deve ser feito imediatamente para que tudo esteja funcio
nando direitinho na próxima semana. É por isso que es
tão nos pagando bem. E, naturalmente, vocês também vão
receber um bom dinheiro!
— Mas ele diz que não confia alemão — insisto. —
Alemão sempre engana gente.
Adler engole em seco. Para ganhar tempo, finge não
ter compreendido:
— Como assim?
— Ele diz que alemão engana ele.
— Pergunte-lhe se alguma vez eu o enganei.
É uma pena que ainda não seja o momento propício
para o ajuste de contas, para enumerar-lhe na cara todos
os seus trambiques: os 2 000 marcos que ele ainda me de
ve, os constantes calotes no pagamento dos empregados,
o fato de embolsar dinheiro dos impostos e contribuições
sociais, e “ outras coisas do gênero” , como costuma dizer.
— Conta para eles tudo que senhor faz para turcos
— consigo dizer, disfarçando o mal-estar provocado pela
situação.
Era a deixa que Adler esperava. Endireitando-se na
cadeira, pede fogo a seu novo motorista e começa a re
presentar o papel de benfeitor dos humilhados e ofendi
dos, ou seja de todos os que são explorados por ele e por
outros da mesma laia. Assume os modos de um doador
de empregos — ele, que passa a vida devorando e explo
rando a saúde e os meios de subsistência de seus em
pregados!
— Desde que passei a trabalhar como autônomo,
sempre tive colaboradores turcos. E até o presente momen
24 f
to nunca me deixaram na mão. Sempre me dei muito bem
com eles, ao contrário do que tem acontecido com os co
laboradores alemães... Portanto, quero continuar traba
lhando com os turcos e é por isso que lhes ofereço emprego.
Trabalhar “ com” os turcos... Explorá-los, isso sim!
Obrigá-los a se esfalfar como escravos até que caiam de
cansaço ou estiquem as canelas. Ele realmente doura a pí
lula tratando-os de “colaboradores” ... A palavra deve soar
como bálsamo aos ouvidos dos massacrados e oprimidos.
— Bom, esta turma que a gente vai expulsar para a
Turquia — digo, procurando trazê-lo ao assunto principal.
— Talvez não seja necessário — declara magnânimo.
— Vou dizer uma coisa com toda a honestidade... não que
remos alemães para esse serviço porque eles falam demais.
Fazem o trabalho e depois contam para todo mundo. Co
nheço bem os trabalhadores turcos e sei que vocês ficam
de boca fechada. Estão entendendo por que eu não quero
trabalhadores alemães? Não vale a pena!
— Ayth lá — aponto para um dos colegas turcos —
mora em porão e...
Adler interrompe-me com um gesto.
— Não faz mal. Não tem importância. Vou fingir que
não sei de nada.
— Mas gente não podia ajudar ele?
Pronto! Mais uma vez Adler assume o papel de me
lhor patrão do pós-guerra.
— Ajudá-lo? Mas sem dúvida! Estou sempre pron
to a ajudar os mais necessitados... Saibam que isso é uma
tradição da minha família. Somos social-democratas, mem
bros do PSD. Costumamos lutar pelos operários. Sempre
que podemos ajudamos as pessoas a ganhar um pouco de
dinheiro. Como estou fazendo agora. E se vocês tiverem
mesmo que voltar para a Turquia, pelo menos já têm 500
marcos... Já é alguma coisa...
— Aquele, ó — aponto para Sinan, outro colega turco
—, quer saber se trabalho perigoso.
Mais uma deixa para Adler, que se põe a falar como
verdadeiro porta-voz de uma central nuclear:
242
— Perigoso? De jeito nenhum! É uma grande usina,
e as normas de segurança são extremamente rigorosas, co
mo em todas as centrais nucleares da Alemanha. Vocês
sabem que as centrais nucleares alemãs são as mais segu
ras do mundo. Milhares de pessoas trabalham nelas. Co
mo estão vendo, não há o menor perigo!
— Mas nunca aconteceu acidente? — pergunto.
— Numa usina nuclear da Alemanha? Nunca!
Dentro da usina pode ser que não... Mas um avião
de caça já caiu bem perto de Würgassen: se tivesse caído
sobre as instalações, teria certamente provocado uma ca
tástrofe de gigantescas proporções. Em caso de acidente,
as pessoas que trabalham dentro das usinas são atingidas
mais rapidamente. Até o momento a indústria atômica da
Alemanha Ocidental admite, oficialmente, cinco casos fa
tais nas centrais nucleares do país.
De qualquer forma, o trabalho “ não é perigoso", se
gundo Adler. Nem mesmo difícil, como também nos as
segura.
— Gente precisa subir lugar alto? — pergunto.
— Não. Isto é, sim... Quero dizer... não sei. Você
sabe, uma central nuclear tem vários andares, entende?
— Sinan quer saber qual é mesmo serviço de gente
— insisto.
— São trabalhos de reparação, trabalhos com solda...
coisas simples que precisam ser feitas. Por isso há neces
sidade de cinco ou seis homens. Para tudo estar termina
do em dois dias. Já fizemos os cálculos. Está tudo acerta
do. Vocês vão ver que lá dentro o que mais importa é o
ser humano! — Suas palavras devem ter lhe soado tão
monstruosas que ele prefere continuar falando, na tenta
tiva de ocultar o desprezo e o desrespeito que sente pelo
ser humano: — E é evidente que não há nenhum perigo
para quem trabalha lá dentro. As normas de segurança são
rigorosíssimas. É verdade que uma central nuclear, mes
mo desligada, sempre tem um pouco de radioatividade.
Mas fiquem tranqüilos. O pessoal de lá vai dizer aonde
vocês podem ir sem o menor risco. E, caso haja algum pro
243'
blema, mínimo que seja, o trabalho é suspenso. Sua saú
de não corre perigo. Vocês mesmos terão oportunidade de
comprovar o que estou dizendo. Se as coisas não forem
assim, nem precisam vir me contar. Podem abandonar o
serviço. Mas uma coisa é muito importante... Vocês fa
zem o trabalho, pegam o dinheiro e esquecem tudo. Nada
de ficar por aí contando para todo mundo que a usina ti
nha um pequeno defeito. É muito importante que essas
coisas não sejam divulgadas. Portanto... trabalho termi
nado, tudo esquecido! Claro, antes disso, vocês pegam o
dinheiro! E depois ficam esperando o próximo serviço. Pre
cisamos desse tipo de trabalho. Por isso é que devemos
ser discretos e ficar de boca fechada. Então... trabalho ter
minado, tudo esquecido! Combinado? Partimos hoje de
pois do almoço e sábado à tarde, no máximo, o ônibus
os trará de volta para a rodoviária de Duisburg. Vocês vão
voltar para suas casas, e encerramos o assunto. Recebem
o dinheiro e não se fala mais nisso. Não é razoável?
Silêncio consternado. De repente ninguém mais tem
prazer na encenação.
Como todo mentiroso contumaz, Adler novamente
reitera sua honestidade:
— As pessoas que eu contrato sempre recebem seu
dinheiro. Quanto a isso nunca houve o menor problema.
Amanhã mesmo vocês receberão 250 marcos. O restante
será pago quando terminarem o serviço. E em dinheiro vi
vo! Ali, o meu motorista, irá com vocês. Confiem nele,
pois é a garantia de que receberão o seu dinheiro. — E
mais uma vez exalta a perfeição e a segurança da indús
tria atômica alemã: — Vocês receberão uniforme de se
gurança. Sapatos, capacete, tudo. Mas repito, não comen
tem nada sobre o serviço. Principalmente com esses pa
lhaços da imprensa. Senão... — Com um gesto teatral, ti
ra da carteira uma nota de 50 marcos passa-a para mim,
dizendo: — Este dinheiro é para você levar o pessoal para
comer alguma coisa. Vocês devem se alimentar para não
perder logo a força quando começarem o trabalho. Não
é verdade? — E antes de sair ainda nos diz, com um ar
244 '
paternal e protetor: — Tudo de bom, meus jovens! Até
às três da tarde! Conto com vocês. Combinado?
Dividindo 50 marcos por sete, cada um de nós terá
direito à última refeição no valor de 7,14 marcos.
Lembro-me novamente daquela canção piegas que ele
não se cansa de ouvir: “ Cem homens e um só comando/E
um caminho que ninguém deseja/Dia após dia, quem sa
be para onde?/Terra queimada, qual é a razão?” E por
aí afora. Talvez seja sua canção predileta pela alusão a seu
nome. Mas ele não faz caso do patético e, cinicamente,
vai repetindo o refrão: “longe de casa e fora da lei...” 1.
As duas da tarde, Adler encontra o encarregado de
segurança Schmidt e o perito-assistente Hansen no restau
rante da estação ferroviária de Duisburg. Os dois repas
sam com clareza e precisão todos os detalhes do negócio
para que mais tarde Adler não possa dizer que não enten
deu muito bem.
HANSEN: Hoje cedo fomos medir mais uma vez os
índices de radiação. E os resultados superaram as nossas
piores expectativas. Assim, o trabalho passa a ser muito
mais delicado. A radiação junto aos encanamentos, onde
eles irão trabalhar... (olhapara as mesas ao lado e baixa
a voz)... a radiação eqüivale a trinta vezes a dose anual
máxima, e seu pessoal vai receber tudo isso de um só gol
pe... A coisa pode acabar mal.
ADLER: E se não fizermos o serviço?
HANSEN: Não poderemos acoplar a usina à rede elé
trica. Impossível! E todos os canos poderão ficar destruí
dos. Milhões, bilhões de marcos de prejuízo!
Adler : É, isso não é bom... Eles precisam entrar lá
e botar tudo em ordem, (em seguida, para isentar-se, de
clara): De qualquer forma, oficialmente não sei de nada.
Os senhores me pediram alguns trabalhadores, eu montei
uma equipe e a coloquei dentro de um ônibus. Os se-
1 ‘Tora da lei** corresponde ao alemão Vogeffrei, que literalmente também quer
dizer “ pássaro livre” . A palavra Vogel alude ao nome de Adler, “ águia” (N.
do T.).
245*
Equipe da Adler na central nuclear
246
A dler (ávido): Enfim, como é que os senhores vão
me pagar? Em cheque ou em dinheiro?
Schmidt (firm e em sua posição): A primeira meta
de, em dinheiro; a segunda, em cheque cruzado.
ADLER: Cheque da central de Würgassen?
SCHMIDT: Não, não pode ser às claras... O cheque
é de um terceiro...
A dler : Não quero que nada apareça e o imposto de
renda fique sabendo.
H ansen : O senhor já teve algum problema com as
autoridades?
ADLER: Eeeeu?... Nunca! Os senhores sabem quan
do devem cumprir com seus deveres. Estou sempre limpo
com a previdência e com o imposto de renda. A própria
agência oficial de empregos sempre manda pessoas para
a minha empresa... oficialmente. (Ri.) Só querem é ver a
grana! Se pagamos pontualmente, eles nos deixam em paz!
H ansen : E o que acontece quando um dos seus em
pregados sofre um acidente de trabalho? Como é que o
senhor se vira? Estou perguntando porque não queremos
que procurem um médico ou qualquer coisa assim.
ADLER: Pode deixar. Eu me encarrego disso. Os meus
clientes nunca foram incomodados por essas coisas. Elas
não aparecem nas estatísticas de acidente. Há pouco tem
po tivemos um acidente na Ruhrchemie. O cliente nem pre
cisou se preocupar... Mas o que pode acontecer na pior
das hipóteses? Cair todo mundo morto de repente?
H ansen .- Seria muito ruim se um deles perdesse o
equílibrio e caísse dentro do tubo. O infeliz iria parar a
uns dez metros de profundidade.
Adler (com desenvoltura): E não se poderia puxá-
lo com um cabo ou qualquer coisa do gênero?
HANSEN: Poderíamos tentar, mas seria terrivelmen
te difícil. O tubo é cheio de curvas. Precisaríamos ver se
o sujeito não ficou entalado lá... preso pelos ombros.
Adler (tranqüilizando-o): Eles não têm ombros lar
gos. Na verdade são uns pobres-diabos que nem se alimen
tam direito. A gente consegue até ver as costelas deles!
247 ’’
HANSEN: Vamos torcer para que ninguém perca o
equilíbrio. Teoricamente, quando uma pessoa sofre uma
forte dose de radiação, os sintomas agudos de contami
nação começam a aparecer em quatro semanas... queda
de cabelo, impotência, vômitos, diarréia, prostração... É
imprescindível que eles já tenham dado o fora. Quanto aos
efeitos a longo prazo, não há como provar, não há mais
controle. Mesmo que um deles, anos mais tarde, venha a
ter um câncer, já nem se lembrará que trabalhou conosco.
ADLER: Nada disso me intimida. Essas coisas não me
dão medo. Não gelam meu sangue. Trabalho é trabalho,
e sei que o que acontece dentro dessas usinas não pode vir
a público. Eu faço a minha parte, e cada um faça a sua!
HANSEN: No nosso meio costumam dizer que Wür
gassen é uma sucata.
Adler : E u sei. É porque é muito antiga. Mas... por
acaso o senhor é o mesmo Hansen com quem fiz negócio
há alguns anos?
H ansen (enigmático): Não vá acreditar que eu seja
a pessoa que está a sua frente.
Adler (vendo que me aproximo da mesa): Ah, aí es
tá ele! Senhores, este é Ali. Ele reuniu a equipe e vai
acompanhá-la e cuidar de tudo. (Voltando-se para mim):
O que esses senhores disserem é lei, compreendeu? Está
tudo bem com o pessoal?
EU: Eles continua fazer perguntas. Eles quer saber de
tudo, que nem criança. Pergunta e mais pergunta. Eles pen
sa que precisa lutar com dragão... Eles acha que serviço
vai ser muito perigoso.
Adler : Pare com isso! Nossas centrais nucleares são
muito seguras; na verdade são as mais seguras do mundo.
Já disse isso a eles hoje de manhã. Não há o menor risco,
todas as normas de segurança são cumpridas.
EU: Certo!
Adler : Volte para sua tropa de choque. (Depois que
saio, diz aos encarregados da usina atômica): É evidente
que esse aí não sabe de nada. O pessoal da equipe confia
minto nele. Basta Ali dizer que boi voa para que todos acre
248 1
ditem. De mais a mais, ele vai tomar conta do pessoal. Não
quero saber de corpo mole. Estão lá para trabalhar direi
to. São como crianças, dá para entender? Querem se sen
tir seguros, por isso é que fazem tantas perguntas!
H ansen : Nós também podemos confiar no tal Ali?
Adler (posando novamente de benfeitor e começan
do uma de suas incríveis histórias): O pobre-diabo! Se os
senhores vissem o estado em que o encontrei, há um ano
e meio... Sabem o que precisou fazer para ganhar a vida?
SCHIMIDT: Não.
ADLER: Foi servir de cobaia humana nesses testes far
macêuticos. Tomou um monte de injeções e...
HANSEN: Lá na Turquia?
ADLER: Aqui mesmo, na Alemanha! Não sei muito
bem como essas coisas funcionam. Só sei que já é bastan
te ruim fazerem isso com animais.
H ansen : E fizeram mesmo essas coisas com ele?
ADLER: Fizeram! Um dia, ele chegou completamen
te tonto, cambaleando. Foi o que me chamou a atenção.
Resolvi perguntar o que tinha acontecido. O infeliz me con
tou que um médico lhe aplicava injeções em troca de 800
marcos por semana. Decidi cuidar dele e falei que tudo
estava acabado a partir daquele momento. Disse que o que
fizeram com ele foi uma sujeira, mas que agora havia ter
minado. Ali é um bom sujeito.•
HANSEN: E o que foi que o senhor disse, exatamen
te, para o pessoal da equipe, quando lhe perguntaram so
bre o tipo de trabalho?
Adler (como que lendo um relatório): Que eles vão pa
ra uma usina nuclear; que farão trabalhos de reparação in
dispensáveis para a usina voltar a funcionar; que o serviço
deve ser feito o mais rápido possível; que tudo deve ficar em
sigilo, especialmente em relação à imprensa; que não devem
imaginar que a coisa seja um bicho de sete cabeças... Disse
também que tudo foi devidamente planejado; que as cen
trais nucleares alemãs são as mais seguras do mundo... o que
é uma verdade, não?... E falei que eles vão receber unifor
mes de segurança e estarão muito bem protegidos.
249*
SCHMIDT: Com a condição de que desapareçam nos
próximos catorze dias!
A dler : Mas claro! Em catorze dias terão partido!
SCHMIDT: Levados pelo vento!
ADLER: Claro, claro! Não se preocupem. Além do
mais, é uma equipe pequena. Nenhum deles sabe exata
mente do que se trata. Eu sou o único que estou a par de
tudo, e é muito bom que seja assim! Já imaginaram se eu
tivesse que ficar explicando todo o serviço para umas dez
pessoas, por exemplo? Eu desistiria do negócio. Confiem
em mim! Nós fazemos de tudo!
“ Nós fazemos de tudo” é a máxima de Adler e da
maioria de seus comparsas, de todos aqueles que forne
cem mão-de-obra aos trustes das indústrias e da constru
ção civil.
“Nós fazemos de tudo” 1é a palavra de ordem do ca
pitalismo e a ela deveria acrescentar-se “ ... tudo que dê
lucro” . E se até agora o III Reich foi o único a fazer sa
bão de despojos humanos (de prisioneiros assassinados nos
campos de concentração; 11,50 marcos era o preço do ca
dáver; e com a gordura e os ossos ainda faziam cola), não
é porque essa prática se choque contra os princípios hu
'250*
manitários, mas porque fazer sabão com despojos huma
nos não dá lucro.
Adler sai do restaurante com Schmidt e Hansen para
despachar a “tropa” que está à espera do ônibus.
O problema é que não podemos prosseguir com a en
cenação: arranjar um ônibus e partir para Würgassen. No
dia seguinte Adler estaria lá — sem a menor sombra de
dúvida — para receber parte de seus “ honorários” : cash
e black, como ele mesmo diz... Por um momento consi
derei a idéia de provocar-lhe um grande susto: exibir-lhe
os resultados do que ele supõe que provocará. Eichmann
também nunca chegou a ver as pilhas de cadáveres; “ so
mente” organizava o transporte das pessoas ainda vivas
para os campos de extermínio em massa... Em princípio,
planejei levar Adler a um dos pequenos cômodos do ho
tel Na Curva, em Würgassen, e apresentar-lhe alguns co
legas turcos “ deformados” pela radiação. É claro que to
dos estariam devidamente maquilados — com “ pedaços
de pele” desprendendo-se do rosto, tufos de cabelos cain
do — e totalmente apáticos, deitados nas camas e no chão.
Porém seria demais. Só falta é uma cena final para
que ele não desconfie de que tudo não passou de uma re
presentação teatral e acabe fugindo do país — evidente
mente depois de apagar os vestígios e destruir documen
tos comprometedores.
O melhor mesmo é que todo o negócio desapareça
diante de seus olhos tão rapidamente quanto uma cuspi-
dela seca ao sol. Assim como o gênio que, para retomar
à garrafa, se dissolve em fumaça e num zás-trás é arro-
lhado dentro dela.
Logo que Adler, Hansen, Schmidt e Ali se aproximas
sem da “tropa” , “ policiais à paisana” deveriam entrar
bruscamente em cena, exibindo suas “ credenciais” . Uma
batida para averiguação de documentos. Dois turcos sai
riam correndo e os outros seriam “encanados” . Tudo num
ritmo bem lento, como no teatro, num primeiro ensaio im
provisado. Adler deveria viver essa cena em câmera len
ta, como num pesadelo.
r 251*
Mas um imprevisto quase dificultou as coisas. Um
amigo meu — diretor de colégio e pastor — deveria re
presentar o papel de um dos policiais e, por precaução,
vem equipado com um par de algemas e um revólver de
brinquedo. Só que confunde Adler com nosso fotógrafo,
Günter Zint, escondido ali por perto, e cumprimenta o pri
meiro. Schmidt rapidamente inventa uma desculpa e con
segue tirar partido da situação. Faz as apresentações:
— Este senhor é do serviço de segurança da usina.
Foi destacado para essa missão especial a fim de se certi
ficar de que nada sairá errado.
Adler tece elogios:
— Realmente, tudo muito bem organizado.
É, tudo muito bom... Mas e agora? Como represen
tar a cena final? Pergunto a meus amigos turcos se se im
portariam de ser interrogados por policiais de verdade. Al
guns estão sem documento, porém isso contribuiria para
dar maior verossimilhança à história se tivesse mesmo que
parar na delegacia.
Um de nós telefona para a policia e descreve com exa
tidão o local onde está havendo tráfico de mão-de-obra
com a participação de turcos que vivem em situação ile
gal na Alemanha. Pronto! Cinco minutos depois, dois veí
culos de passeio param a nossa frente, seis policiais sal
tam na calçada e caminham em direção ao grupo de tur
cos. Mas avistam o fotógrafo Günter Zint, postado a uns
quinze metros de distância e apontando a câmera. Obvia
mente imaginam que estão sob o foco da câmera e supõem
— como descubro mais tarde através de informações extra-
oficiais na delegacia de Duisburg — que um jornal qual
quer deseja criar um caso com eles demonstrando a de
senvoltura e os métodos pelos quais intimam os estrangeiros
após uma simples denúncia. Retornam a seus veículos e
partem rapidamente.
Voltamos à estaca zero. E o tempo urge.
Adler começa a ficar inquieto, pois o “ ônibus da usi
na” ainda não chegou. Gesine, namorada de Sinan, um
dos membros de nossa “tropa” , tem uma idéia brilhante:
252 v
vai até um bar de estudantes, localizado perto da estação
ferroviária, e arruma dois novos participantes. Como não
dispomos de muito tempo, não podemos contar-lhes toda
a história com riqueza de detalhes. Só lhes dizemos que
se trata de desmascarar um grande especialista no tráfico
de mão-de-obra simulando sua captura. Ambos mostram-
se dispostos a cooperar. Mais tarde descobrimos que um
deles é conselheiro municipal do Partido Verde.
Da forma mais antiautoritária e amigável, “prendem”
nossos amigos turcos. Exatamente o oposto da brutalida
de policial. De acordo com as regras habituais, pegam nos
sos amigos pelo braço como se os conduzissem. Mesmo
assim, Adler engole a encenação.
Para tomar as coisas mais reais, um dos “ policiais”
aplica uma chave de braço em Ayth que “ se rebela” . Sem
acreditar nos próprios olhos — afinal, vê todo o seu ne
gócio cair por terra —, Adler me pergunta, assustado:
— Mas o que está acontecendo?
— Polícia pega eles porque não têm documento —
respondo e saio correndo.
Ligeiramente cabisbaixo, olhando para todos os la
dos, Adler dirige-se a passos acelerados para o carro esta
cionado diante de um ponto de ônibus. Evita correr para
não atrair a atenção dos outros e também porque o pudor
o impede.
Simplesmente abandona os sócios ali na ma. Schmidt
ainda corre atrás dele, exigindo uma explicação:
— O que que houve? Por que todos saíram corren
do? Como foi que isso aconteceu? O senhor mesmo nos
disse que não haveria nenhum problema!
Sem diminuir suas passadas largas, Adler responde
ofegante:
— Está tudo bem! Telefone para mim sem demora!
— E pula para dentro do carro, que parte impetuosamen
te. Schmidt ainda grita:
— Mas temos um trabalho a fazer...
Epílogo
(ou: A banalização do crime)
254a
começar tudo de novo. Mas sem o senhor! Até logo! (Ba
te o telefone.)
(Meia hora depois, apresento-me na casa de Adler e
já vou levando uma descompostura.)
ADLER: Que raio de gente foi aquela que você me ar
rumou? Viu só o rolo que deu?
EU: Mas eu disse para senhor que aqueles dois não
tinha documento. Polícia pegou eles.
A dler (ri, achando a coisa engraçada): É, eu vi.
EU: Outros quer dinheiro. Eles não têm culpa. Eles
deixou serviço que tinha para pegar aquele outro, e agora
nada.
A dler (com desdém): Mas que caras-de-pau! Diga
que o negócio está morto e enterrado. Acabou!
EU: Mas senhor disse que ajudava eles.
ADLER: Só depois do serviço feito.
EU: A polícia foi em minha casa me procurar. Eles
quer saber de tudo. Eu não estava. E agora eu precisa de
por e...
Adler (interrompendo-me): Obviamente você não
pronunciará o meu nome, está entendendo? Não tenho na
da a ver com aquela história, percebe?
Eu (fazendo-me de inocente): Mas que eu vai contar
em polícia?
ADLER: Diga, por exemplo, que um tal Müller... ou
qualquer outro nome... prometeu um serviço aos rapazes.
Daí você foi procurá-los e então...
EU: Mas e se eles pergunta como é Müller? O que eu
fala?
(Silêncio).
ADLER: Diga que não sabe de nada!
EU: Que eu não sabe nada?
ADLER: É! Finja que não entende. Ou melhor, aja co
mo se não soubesse uma palavra de alemão.
Eu: Tudo bem. Mas gente não podia fazer coisinha
para eles?
A dler : Para os rapazes? Não! Mas para você...
quem sabe? Falaremos disso mais tarde... O meu cliente
255'
deve ter se borrado de medo quando viu tudo aquilo. De
ve ter cagado na calça. Mas que merda... Bom, se alguém
perguntar alguma coisa, diga que foi um tal Müller, ou
qualquer outro nome, de Duisburg... Você não sabe onde
ele mora, não sabe onde fica seu escritório, não sabe na
da. Ele só pediu que você arranjasse umas pessoas para
um servicinho.
Eu*. E eu fala aquelas coisa de radiação?
ADLER: Claro que não! Não, não, não, não! (Em se
guida começa a rir.) Quais foram os rapazes que eles
prenderam?
EU: Aqueles dois que mora em porão. Agora policia
mandam eles para Turquia.
A d le r (satisfeito, feliz e tranqüilo ao mesmo tem
po): Pobres diabos! Mandados para a Turquia... Mas que
merda! Como é que eu podia adivinhar que os policiais
estavam circulando pela estação ferroviária?...
Eu: Mas senhor falou para encontrar em estação de
trem.
A d le r (repreensivo): Você devia ter sugerido outra
coisa... Outro lugar para o encontro...
Sexta-feira, 9 de agosto (o dia seguinte).
Adler manda seu novo motorista Abdullah (meu “ir
mão”) apanhá-lo às dez horas. Como de hábito, percorre os
bancos, verificando, com satisfação, os depósitos feitos em
sua conta. Depois recolhe sua parte do saque na Remmert.
Durante o percurso, revela a Abdullah suas preocupações:
— Os prazos para entrega são muito longos... Você
precisa encomendar um Mercedes último tipo quase um
ano antes, se quiser receber a tempo.
É, o crescimento a qualquer preço continua sendo a
divisa do capitalismo contemporâneo, mesmo que a sua
expansão e suas explosões não aparentem ser tão selva
gens como realmente são. “ Quem não avança, recua” é
a máxima que exprime a angústia original de todos os se
nhores da guerra, de todos os conquistadores e capitalis
tas, ainda em vigor em nossa época. Diante da conjuntu
ra econômica, Adler se resigna:
256*
— Vou trocar de Mercedes. Em vez deste 280 SE, vou
comprar o 300 SE, último tipo. Mas só no outono. Até
lá, este já terá um ano e meio. (Com todos os acessórios
e equipamentos, seu carro atual custou 100 mil marcos;
o novo será bem mais caro.)
A bdullah (tentando atrair Adler para o assunto que
lhe interessa)\ Os dois turcos estão na cadeia.
AdleR: Provavelmente já foram expulsos do país. Eu
tenho muita pena deles. Mas, por outro lado, quer saber
de uma coisa? Deve ter sido bem melhor para eles. Afi
nal, o que é que conseguiram aqui na Alemanha? Não po
diam nem andar livremente pelas ruas, não é verdade?
Abdullah : Lá isso é l G o clima é bem melhor na
Turquia.
ADLER: É verdade! O que eles querem aqui? Moram
em porões, vivem com medo da polícia, não têm empre
gos, não conseguem se manter, não têm nada!
Abdullah .*É... não têm emprego...
AdleR: E o que os prende aqui?
Abdullah : Mas Ali está bem triste...
AdleR: Claro. Deve estar se cagando de medo. A gente
devia ter marcado o encontro em outro local, não na esta
ção. Que merda! A polícia está sempre circulando por ali.
Abdullah *. É... esse foi o problema.
ADLER: Foi mesmo!
Abdullah : O senhor acha que ainda vai receber al
gum tipo de trabalho daquele pessoal da usina?
Adler : Claro! Há muito tempo que trabalho para
eles. Todos os anos...
Abdullah : Eles devem pagar uma nota, não?
Adle R: Pagam. E sempre nos dão serviço. Não te
mos problemas com eles. Bem, claro que no momento a
coisa está preta. Mas é um trabalho sério. Raramente nos
convocam para uma missão um pouco duvidosa. Têm me
do que a coisa transpire e os jornais comecem a publicar
que a usina pifou e coisas desse gênero.
Abdullah: É, mas os dois sujeitos ficaram com mui
to medo. (Ri.)
257*
Adler (rindo também): Com muito medo! Saíram
na disparada... cagando na calça... Ah, ah... Normalmen
te, só quem tem caderneta de radiação em ordem pode en
trar numa usina nuclear. É o Estado que determina isso.
Mas a direção da usina manda a lei à merda, e o pessoal
entra sem caderneta. O que já caracteriza um delito. Por
tanto, deve-se tomar muito cuidado! Eles infringem as leis!
Por isso têm tanto medo da polícia... (Ri.)
ABDULLAH: Mas eles pagam bem pelos serviços, não
pagam?
A dler : Pagam, pagam bem. Mas é porque violam
as leis. A gente, não! A gente só viola as leis pela metade.
É por isso que eles pagam bem. E é uma coisa boa para
nós. Se as autoridades soubessem o que eles fizeram e o
que andam fazendo, botavam as mãos em cima deles ra-
pidinho. É uma merda mesmo! A gente está sempre apren
dendo, todos os dias. Você não acha? (Ri.)
Abdullah : Eu também fiquei com medo quando os
guardas pegaram os colegas.
ADLER: Eu vi um dos policiais agarrar dois homens
de uma vez só. Assim, ó! (Faz o gesto.) Por pouco não
me levaram também. Daí eu ia ter que responder a um
monte de perguntas cretinas... E um homem na minha po
sição não pode passar por isso. Não quero nada com a po
lícia ou com qualquer outra coisa do gênero.
Abdullah : Lá no nosso país, na Turquia, não tem
leis como essa...
ADLER: Eu sei. Lá há muito mais liberdade. Mas
aqui... para cada coisinha existe uma lei. Muitas vezes você
comete uma infração sem saber. É assim que acontece na
Alemanha. E estão sempre atrás da gente, querendo apli
car um castigo severo. Se toda essa nossa história viesse
à tona, o diretor geral da usina nuclear iria para a cadeia
por um ano e meio, no mínimo. É fogo! Por isso que a
gente deve prestar atenção para não ser pego lá dentro.
Para continuar com a ficha limpa... Bem, de qualquer mo
do, não me aconteceria nada. Se houvesse algum delito,
o pessoal da usina é que o teria cometido. Foram eles que
258
me pediram para arrumar seis homens para um serviço de
reparo. Eu só arrumei os caras, mas nem quis saber o que
iam fazer com eles. Se iam deixar os fulanos entrar na usina
sem caderneta ou qualquer coisa do gênero, isso era da
conta deles. Não é verdade?
AbdullaH: Não entendo nada dessas coisas.
ADLER: Deixe para lá. De qualquer forma, aprende
mos uma lição. Na próxima vez, nada de encontros na es
tação de trem. Pode ter certeza. Merda!
259
Ali Sinirlioglu é um dos milhares de imigrantes turcos que vivem
na República Federal da Alemanha. Para sobreviver, sujeita-se aos
mais duros trabalhos. Hostilizado, sofre toda espécie de discri
minação. Mas, por trás desse operário marginalizado, esconde-se
Günter Wallraff, jornalista alemão de fama internacional. Disfar
çado de turco, Wallraff passou dois anos registrando suas expe
riências e recolhendo depoimentos para a elaboração de Cabeça
de turco, um relato assombroso sobre o cotidiano das minorias ét
nicas na Alemanha. Ousado, polêmico, corajoso, recordista de ven
da, Cabeça de turco é uma reportagem literária que põe a nu “ a
frieza glacial de uma sociedade que se julga bastante sensata, so
berana, incontestável e imparcial” .
©
E O I T O R A
QTOBO
Günter Wallraff nasceu em 1942,
filho de um funcionário público
e de uma mulher proveniente da
alta burguesia. Em 1963 recu
sou-se a prestar serviço militar
e foi convocado ao serviço psi
quiátrico das Forças Armadas
Federais. Datam dessa época
suas primeiras reportagens.
Após vinte anos de intensa atua
ção na área jornalística — e com
várias matérias editadas em li
vros —, Wallraff ultrapassou o
status de escritor bem-sucedido
e tornou-se personagem da his
tória contemporânea alemã. Ele
já se disfarçou em porteiro de
uma grande organização finan
ceira sob suspeita de práticas
ilegais, camuflou-se de repórter
para apurar denúncias de mani
pulação de informações e inves
tigou a situação dos imigrantes
no papel de um operário turco.
Uma versatilidade que não ocul
ta o ideal maior: desvendar as
pectos pouco divulgados da rea
lidade social.
Sucesso absoluto — mais de
dois milhões de exemplares ven
didos na República Federal da
Alemanha — , Cabeça de turco
é a narrativa de uma incursão
nos sórdidos porões de uma ci
vilização moderna.
O jornalista Günter Wallraff pre
tendia escrever sobre a situação
de milhões de estrangeiros — em
especial turcos, iugoslavos, gre
gos, espanhóis — que vivem na
Alemanha. Então, assumiu a apa
rência de um turco, provavelmen
te o ser humano que ocupa o lu
gar mais baixo na escala de va
lores da sociedade alemã con
temporânea. Após intenso treina
mento para aprender a falar ale
mão como um turco, Wallraff
completou seu disfarce com len
tes de contato escuras, peruca de
cabelos pretos, bigode, docu
mentos falsos, e saiu a campo.
O resultado dessa investiga
ção é Cabeça de turco, um do
cumento inesquecível que de
monstra até que ponto podem
chegar a incompreensão, a dis
tância e o desprezo de um ho
mem pelo seu semelhante.