Cabeça de Turco Pág 31

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GUNTER W A L L R A F F

Um a viagem n os porões da
sociedade alemã

&DBO
G Ü NTER W A LLR A F F

CABEÇA DE TURCO
Tradução
Nicolino Simone Neto
Prefácio
William Waack

2? Edição

BB GKOPPWÔ
288-2109
Titulo do original alemõo:
Ganz unten
Copyright © 1985 Kiepenheuer & Witsch
Crédito das fotos de miolo: PAN-Foto, Gfinter Zint
Arquivo particular de GOnter Wallraff
Projeto grdfico: Haroldo Jereissati Rodrigues
Composição: Editora Globo

CIP-BnaU. C*Uüogaç2o-na-íonte — Câmara Brasileira do Livro, SP

Wallraff, Gfinter, 1942-


W187c Cabeça dc turco / Güntcr Wallraff: tradução Nicolino Simonc Neto; pre-
2.ed. fádo William Waadc. —2. ed. — Rio de Janeiro : Globo, 1988.
ISBN 85-250-0599-1
1. Discriminaçto racial - Alemanha 2. Trabalhadores estrangeiros turcos
• Alemanha 3. Turcos • Emprego • Alemanha I. Título
CDD-305.89435043
e»-i606 -331.62561043

íodtecs pxia catálogo sistm átko:


1. Alemanha : Discriminação contra turcos : Sociologia 305.89435043
2. Alemanha : Trabalhadores Turcos 331.62561043
3. Turcos : Trabalhadores na Alemanha 331.62561043
4. Turcos na Alemanha : Discriminação racial: Sodologia 305.89435043

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Td.: (021)273-5522, telex: (021)23365, RJ.
Brasil.
Sumário

Prefácio 11
por William Waack
Advertência 17
A metamorfose 19
O ensaio geral 22
Os primeiros passos 24
Matéria-prima: o espírito 31
“O prazer de comer" (ou: A última ração) 37
O canteiro de obras 47
A conversão (ou: Cortar cabeças sem bênção) 60
Do lado de cá do Éden 80
O enterro (ou: Livrando-se do corpo) 87
Atolado na lama (ou: “Longe de casa e fora da lei") 94
“É uma emergência*' 110
“É melhor fingir que não entendeu" 114
Conversa no horário de descanso 117
A odisséia de Mehmet 123
Em outro lugar 127
A suspeita 130
Os parapeitos: questão de mícron e “mico” 136
Como no faroeste 141
A fúria de Yüksel 144
“Chuveiro de emergência" 150
O teste 160
Cobaia humana 160
A promoção 173
A assembléia do pessoal 189
A radiação 213
A missão (ou: Pegar e largar) 224
A missão secreta 225
Epflogp (ou: A banalÍ2#ção do crime) 254
Para
Cemal Kemal Altun
Semra Ertam
Selcuk Sevinc
e todos os outros
Agradecimentos

Gostaria de agradecer a todos os amigos e colaboradores


que me ajudaram na elaboração deste livro.

Levent (Ali) Sinirlioglu, que me emprestou seu nome.

Taner Alday, Mathias Altenburg, Frank Berger, Anna Bõ-


deker, Levent Direkoglu, Emine Erdem, Hüseyin Erdem, Sük-
rü Eren, Paul Esser, Jõrg Gfrõrer, Uwe Herzog, Bekir Karade-
niz, Rõza Krug, Gesine Lassen, Klaus Liebe-Harkort, Claudia
Marquardt, Hans-Peter Martin, Weraer Merz, Heinrich Pachl,
Franz Pelster, Frank Reglin, Ilse Rilke, Harry Rosina, Ayetel
Sayin, Klaus Schmidt, Günter Zint.

Agradecimento especial ao prof. dr. Armin Klümper, de


Freiburg, que com sua assistência médica “fortaleceu minhas
costas", permitindo que eu realizasse os trabalhos mais pesa­
dos, não obstante uma lesão no disco vertebral.
Prefácio

A Alemanha não éfácil de explicar. Nem se trata só do pro­


blema de se enveredar por seu passado recente, que apesar dos
esquemas mentais consagrados ainda oferece enorme campo
aberto à reflexão. Buscar as causas do impressionanteprocesso
de recuperação econômica do país até agorafoi o menos árduo,
mas interpretar essa complexa sociedade pós-industrial é tarefa
que só começou muito mais tarde. Infelizmente, terminou cedo
demais para alguns que se consagraram tentando entendê-la:
Heinrich Bõll e Wemer Fassbinder, ambos já mortos.
Talvez um dos aspectos mais enigmáticos, falando em tom
estritamente pessoal, associado à Alemanha e aos alemães, se­
ja a dificuldade de ir afundo nas regras e motivos que regem
o comportamento de pessoas naquele país. Seria injusto afir­
mar que a sociedade alemã atual é hermética e fechada, prin­
cipalmente se comparada às barreiras que determinados círcu­
los na França e Inglaterra opõem à integração de qualquer es­
tranho. Quem concede submeter-se àforma metódica e organi­
zada com que os alemães trocam idéias vai achá-los até bastan­
te comunicativos.
Parafacilitar as coisas, convém começarpor aquilo que me­
lhor se compreende em relação à Alemanha: seus sistemas for­
mais econômico e político. É um caso único, deve-se reconhe­
cer. O país foi praticamente outorgado pelas potências de ocu­
pação ocidentais (o mesmo processo, às avessas, ocorreu nos
territórios ocupados pelo Exército Vermelho) com um modelo
político de representação parlamentarpraticamente inédito pa­
ra as condições alemãs. Ele provou ser até agora, a despeito de
muitas críticas até bemfundamentadas, suficientemente maleá­
vel e flexível.
Surpresos? Todos deveriam estar, de verdade. Basta lem­
brar o auge da revolta antiautoritária da década de 60, a qual
um governo de coligação entre socialdemocratas e liberais rea­
giu impondo restrições à admissão ao serviço público de pes­
soas consideradas radicais. Ou o surgimento dosfortíssimos mo­
vimentos de ecologistas e pacifistas, quase dez anos depois. Fo­

11'
ram imediatamente qualificados pelos conservadores; que vol­
taram aopoder em 1982, comoperigosos extremistas; perseguin­
do a destruição do sistema político e econômico.
Espeéialmente o surgimento dos Verdes e sua absorção no
sistema parlamentar talvez tenha sido o teste mais importante
para as instituiçõespolíticas que os alemães tiveram de implan­
tar no final da década de 40. Foi um importante gesto de reno­
vação que coincidiujustamente com um escândalo — ofamoso
caso Flick —, no qual ficou claro que a base comum entre os
democratas alemães era sobretudo o amor àsfinanças ilegaispa­
ra todos os partidos. As conseqüências que tudo isso terá para
o comportamento de geraçõesfuturas é outra conversa — ofa­
to é que o sistemapolítico alemão, até agora, deu provas de in-
suspeitada vitalidade.
Há mais de 150 anos que a Alemanha se tomou uma im­
pressionante história de sücesso econômico. Na segunda meta­
de do século XX, após o cataclismo de 1945, as causas dessa
recuperação e vigor são suficientemente conhecidas. A guerra
destruiu, menos do que sepensa, instalações industriais alemãs.
Nas regiões ocidentais, ocupadaspor americanos, ingleses e, mais
tarde, franceses, houve menos desmontagens de instalações a
título de reparação de guerra. Além disso, entre os milhões de
fugitivos dos territórios a leste encontrava-sefarta, barata e bem
treinada mão-de-obra.
Bem cedo, americanos e ingleses iniciaram a integração da
Alemanha Ocidental nos seus respectivos sistemas financeiro,
comercial e monetário. Um programa de ajuda e recuperação
— o Plano Marshall —, habilmente administrado (parte desses
fundos até hoje é redistribuído pelos alemães), permitiu que a
Alemanha tivesse amplo acesso a recursos financeiros, aplica­
dos numa economia com enormes possibilidades de expansão.
É fácil perceber que, para os alemães, aparentemente o
mundo nãoprecisa de grandes explicações. Com a economiafun­
cionando do jeito que está — não há outro exemplo de potên­
cia capitalista capaz de fornecer um padrão de vida tão alto a
tantos milhões de pessoas— eas instituiçõespolíticas razoavel­
mente equilibradas, o motivo principal de preocupação nesse
meio social onde reina a opulência é o que fazer com o tempo
livre — cada vez maior, aliás. É que, para o alemão normal,
as grandes linhas do debate histórico e ideológico dos últimos
sessenta anos de conflagração global transformaram-se em as­
12'
sunto maçante. Em termos depolítica internacional, por exem­
plo, os alemãespreferiram continuar uma potência de segunda
categoria, até mesmo no cenário europeu.
Seria necessário aqui abrir um parêntesepara a Ostpolitik,
a tão famosa política de reaproximação com os países socialis­
tas europeus; no começo da década de 70. Ajustada com o rit­
mo imposto pelas duas superpotências; esse considerável ato de
coragem política, personificado na figura do Kanzler Willy
Brandi, levou evidentemente a muita reflexão sobre o papel da
Alemanha— ou melhor, dos alemães de leste e oeste — no sis­
tema das relações internacionais. Contudo, com o passar dos
anos, os sucessivos governos alemãespreferiram estreitar os la­
ços comerciais com todos os países socialistas, especialmente a
Alemanha Oriental, e não parecem seriamente interessados em
nenhum tipo de embate ideológico.
A questão alemã é tão velha quanto as articulações políti­
cas na Europa dos últimos duzentos anos, mais ou menos, mas
momentaneamente reina aíabsoluta Ruhe — tranqüilidade. Os
alemães trocaram sua identidade nacionalpor essa calma e pelo
acesso ampliado, irrestrito efantástico a bens de consumo. Mas
o problema da identidade não se restringe a estabelecer que ti­
po de papel os alemãespretendem desempenhar no mundo, nem
como a acomodação de seus interesses pode significar ou não
um abalo de proporções sísmicas para seus vizinhos. A busca
de identidade envolve sobretudo uma difícil reflexão e ocupa­
ção com o passado recente.
É nesse sentido que se pode dizer que a alma alemã tomou-
sefechada e hermética a tudo que possa parecer constrangedor
ou difícil de ser confrontado. Oferece um dos contrastes mais
interessantes da Alemanha atual: por detrás da aparente inten­
sa participação política, entendida como dever cívico de votar,
os alemães mostram-se, no fundo, apáticos. Estão muito mais
interessados em planejar suas férias, cada vez mais exóticas e
caras, e têm horror a qualquer coisa que possa parecer altera­
ção de seus hábitos de vida regulamentados, metódicos, a qual­
quer coisa que possa significar alteração de sua Ruhe.

Esse paraíso não está aberto, evidentemente, para todos;


Há uma parcela substancial de trabalhadores estrangeiros, os
famosos Gastarbeiters — cerca de 2,5 milhões em 1973, quase

13-
um milhão a menos em 1987— que teve acesso a apenas miga­
lhas desse sistema, o quejá era algo considerável em se tratan­
do de seuspaíses de origem, principalmente no caso dos turcos.
Tomou-se supérfluo, a esta altura» discutir ou quantificar em
número a realparticipação dessaforça de trabalho na realiza­
ção do milagre econômico alemão. Ofato é que hápouco reco­
nhecimento, por parte da população alemãde um fato razoa­
velmente evidente.
Há, isto sim, enorme preocupação com o legado social e
político dessa considerável minoria, que chega a constituir 20%
dapopulação de alguns grandes centros urbanos. Já existe uma
geraçãoperdida defilhos de trabalhadores estrangeiros que não
se sentem em casa em lugar algum:perderam a identificação com
ospaíses de origem de seuspais e não são aceitos na Alemanha,
embora dominem perfeitamente o idioma, por sua aparênciafí­
sica ou alguns hábitos culturais. A melhor maneira que muita
gente na Alemanha imagina para poder resolver o problema
apresentado por essa bomba-relógio social é simplesmente
reexportá-lapara o lugar de onde veio —o que é evidentemente
impossível. Assim como no começo do século, quando milha­
res de poloneses ocuparam as regiões produtoras de carvão no
Ruhr e se transformaram em mão-de-obra abundante e barata,
novamente a Alemanha virou um país de imigração.
O surgimento de preconceitos contra minorias étnicas não
é característica apenas dos alemães. Basta lembrar os aguçados
sentimentos antiestrangeiros na França (em relação aos árabes),
na Suíça, naÁustria ou na Inglaterra, invadida agorapor aqueles
que os soldados de Sua Majestade (ou os comerciantes, não im­
porta) conquistaram há mais de um século. Em todos essespaí­
ses esse tipo de manifestação preconceituosa é imediatamente
explorado por grupos radicais de direita. A gravidade do pro­
blema alemão reside na relutância com que a opinião pública,
como um todo, se sensibiliza frente a esse tipo de problema.
O livro de Günter Wallraffse propõe a quebrar "a frieza
glacial de uma sociedade que sejulga muito sensata, soberana,
incontestável e imparcial”. Na verdade, Wallraffconfessa que,
após sua aventura pelos porões dessa sociedade, só conseguiu
saber o que um trabalhador estrangeiro tem de suportar e até
onde pode chegar o desprezo humano na Alemanha. Mas está
longe ainda de entender como esse trabalhador consegue engo­
lir as humilhações, a hostilidade e o ódio cotidiano.
Para o leitor brasileiro, muitas das denúncias contidas no
livro vão parecer surpreendentementefracas. Parte delas se re­
fere à não-observância de regras de segurança e comportamen­
to em empresas industriais, ao não-pagamento integral de en­
cargos e benefícios sociais; às formas precárias de atendimen­
to médico e hospitalar, à exploração incontida de mão-de-obra
barata. Para os brasileiros isso não constitui absolutamente a
menor novidade; e muita gente aqui estaria satisfeita em con­
seguir algum tipo de ocupação, pouco se importando se o veí­
culo que transporta os trabalhadores de um lugar para outro
tem bancos dignos ou não, ou se ele mora num barraco ao in­
vés de numa casa.
Em primeiro lugar, é claro que as denúncias de Wallraff
têm de ser consideradas em relação aospadrões mínimos de sub­
sistência na Alemanha e não no Brasil — e diante do abismo
entre aspropostas de um estado assistencialista, como o alemão,
e a realidade vividapela minoria de estrangeiros. A í surge a gra­
vidade dos fatos mostrados nessa reportagem. Seu conteúdo,
aliás, não chega a ser novidade muito menos para os alemães.
Existe desde o final da década de 60 abundante literatura pro­
duzida por e sobre os Gastarbeiters, incluindo o difícil relacio­
namento dos sindicatos alemães com essa questão.
Em segundo lugar, e esse é o ponto mais relevante; os ele­
mentos intrínsecos do que acontece a “Ali”, o Gastarbeiter no
qual Günter Wallraffsefantasia para viver sua viagem aospo­
rões da Alemanha, não são os mais importantes, e sim a descri­
ção da atmosfera defrieza e intolerância que só mesmo o estra­
nho, o estrangeiro, consegue perceber com tanta clareza. É in­
teressante notar como o próprio Wallraff mostra-se surpreso
com o grau de incompreensão, distância ou desprezo com o qual
“Ali** tem de se acostumar a ser tratado — embora se tivesse
treinado para isso.
O método de Wallraff tem sido tão eficiente quanto polê­
mico. Nos anos 80 elejá havia adquirido considerável notorie­
dade ao disfarçar-se de repórterpara mostrar como se produzia
a manipulação de notícias no Bild Zeitung, um jornal popular
com tiragem diária de milhões de exemplares. A utilização do
recurso do disfarce vai bem mais adiante, no caso de “Ali**,
para provocar também situações, e não apenas vivê-las.
E o que acontece quando Wallraff, disfarçado de turco,
procura diversos setores da Igreja católica alemã, em busca de

15 *
batismo. Ou quando tenta» através de uma armadilha, mover
um de seus patrões — Adler, o homem que comercializa mão-
de-obra ilegal—a literalmente entregar estrangeirospara a morte
lenta. Houve, na Alemanha, fortíssimo debate sobre alguns dos
aspectos éticos encerrados no comportamento do repórter Wall-
raff — e que, em alguns casos, podiam ser descritos como se
um policial provocasse um crime para depois denunciá-lo.
Para o leitor brasileiro, nem se trata de aprofundar esse as­
pecto da questão. Com ou sem provocação, com ou sem exage­
ro, com ou sem disfarce, o que Wallraff simplesmente põe em
linguagem simples, direta e acusadora sãofatos que nenhum de
seus críticospensou em contestar. Nofinal do século X X e, ainda
màis, na Alemanha, onde se viveu tragicamente o extremo a que
pode chegar a manifestação incontida de preconceitos e racis­
mo, nenhum deles é fácil de explicar.
William Waack

i
Advertência

Grande parte dos honorários recebidos pela venda des­


te livro foi colocada à disposição do recém-criado Fundo
de Solidariedade aos Estrangeiros. Esses recursos serviram
para financiar serviços gratuitos de aconselhamento e as­
sistência jurídica, campanhas de esclarecimento e um pro­
jeto de habitação comunitária para alemães e estrangeiros.
Nem todas as experiências e nem todos os documen­
tos disponíveis puderam ser explorados neste livro; longe
disso. Alguns amigos e colaboradores, cada qual em sua
área, continuam trabalhando sobre o mesmo tema. Quem
deseja relatar suas próprias experiências e fornecer infor­
mações, por favor, escreva para o seguinte endereço:
Hilfsfond ‘‘Auslàndersolidaritàt’’
Postfach 30 14 43
5000 Kõln 30

Ou para:
Günter Wallraff
c/o Verlag Kiepenheuer & Witsch
Rondorfer Strasse 5
5000 Kõln 51

Prevendo eventuais processos, novos capítulos foram


preparados com o material inédito para completar este li­
vro, assegurando edições ampliadas.
Colônia, 7 de outubro de 1985.
A metamorfose

Durante dez anos afastei de mim este papel. Sem dú­


vida porque já pressentia o que iria me acontecer. Eu sim­
plesmente estava com medo.
Através de relatos de amigos e de várias publicações
eu já podia fazer uma idéia da vida dos estrangeiros na
República Federal da Alemanha. Sabia que mais da me­
tade dos imigrantes jovens sofre de doenças psíquicas. Não
conseguem mais digerir os inúmeros desaforos. Pratica­
mente não têm chances no mercado de trabalho. Para eles,
que aqui cresceram, não há possibilidade de regresso a seus
países de origem. São apátridas.
O aviltamento do direito de asilo, o ódio aos estran­
geiros, os confinamentos crescentes em guetos — tudo is­
so eu conhecia, mas nunca havia vivenciado.
Em março de 1983 publiquei em diversos jornais o
seguinte anúncio:

Estrangeiro, robusto, procura qualquer


tipo de trabalho, mesmo que seja muito
pesado e sujo, mesmo que paguem
pouco. Propostas sob n? 358 458

Não foi preciso muito para me marginalizar, para fa­


zer parte de uma minoria rejeitada, para ficar na pior.
Mandei um especialista fazer um par de lentes de contato
bem escuras, que eu podia usar dia e noite. “Agora o se­
nhor tem o mesmo olhar penetrante dos meridionais",
surpreendeu-se o oculista. E que normalmente seus clien­
tes só desejam olhos azuis.
1*

1 W allraff trabalhou sob falsa identidade como repórter do Bild Zeitung para
desmascarar esse jornal sensacionalista (N. do E.).

21 .
A fim de parecer alguns anos mais jovem, passei a
disfarçar o cabelo ralo com uma meia peruca preta. Des­
se modo aparentava ter entre 26 e 30 anos. Foi assim que
consegui alguns trabalhos dos quais não teria sequer me
aproximado se tivesse confessado minha idade real: 43
anos. É verdade que nesse papel eu me comportava como
um sujeito mais jovem, vigoroso e produtivo; ao mesmo
tempo, contudo, esse papel me transformou num foras­
teiro, no último dos miseráveis. Durante o tempo de mi­
nha metamorfose, eu falava um “alemão de estrangeiro” ,
tão tosco e canhestro que quem tivesse se dado ao traba­
lho de ouvir um turco ou um grego que mora aqui perce­
beria que alguma coisa não soava bem. Eu apenas elimi­
nava artigos, deixava de lado a concordância verbal, en­
golia certas preposições. Mas ò resultado foi espantoso:
ninguém suspeitou de nada. Eram suficientes as asneiras
que eu dizia. Minha dissimulação fazia com que me en­
tendessem precisamente por aquilo que me tomavam. Si­
mulando tolices, tomei-me mais esperto; meus olhos se
abriram para o embrutecimento e a frieza glacial de uma
sociedade que se julga muito sensata, soberana, incontes­
tável e imparcial. Eu era o tolo a quem se diz a verdade
sem hipocrisia.
É óbvio que eu não era um turco de verdade. No en­
tanto, foi necessário usar um disfarce para desmascarar
a sociedade; foi necessário mentir e fingir para descobrir
a verdade.
Continuo, porém, sem saber como um imigrante con­
segue engolir as humilhações, as hostilidades e o ódio co­
tidianos. Mas agora sei o que ele tem de suportar e até onde
pode chegar o desprezo humano neste país. Reflexos do
apartheid projetam-se aqui entre nós — em nossa demo­
cracia. Os fatos ultrapassaram todas as minhas expectati­
vas. De modo negativo, é claro. Em plena República Fe­
deral da Alemanha vivenciei situações que só estão des­
critas nos livros de História do século XIX.
O trabalho foi sujo e extenuante, mais ainda quando
passei a sentir o desprezo e as humilhações; o trabalho pre-
20 ,
judicou minha saúde, mas por outro lado, no plano psí­
quico, edificou-me. Nas fábricas e nos canteiros de obras
— lugares muito diferentes da redação do Bild Zeitung1
— recebi solidariedade e fiz amigos, aos quais não podia
revelar minha identidade por motivos de segurança.
Pouco antes da publicação deste livro, compartilhei
meu segredo com alguns deles. E ninguém me censurou
pelo disfarce. Ao contrário: não só compreenderam, co­
mo perceberam as intenções libertadoras de meu papel.
Mesmo assim, foi necessário trocar os nomes de muitos
colegas para protegê-los.
Günter Wallraff
Colônia, 7 de outubro de 1985

1 Wallraff trabalhou sob falsa identidade como repórter do Bild Zeitung para
desmascarar esse jornal sensacionalista (N. do E.).
O ensaio geral

Para testar meu disfarce e verificar se minha aparên­


cia era convincente, fui a alguns bares que costumo fre­
qüentar. Ninguém me reconheceu.
Mesmo assim, ainda não me sentia seguro. Tinha
medo de que pudessem me desmascarar num momento
crucial.
Na noite de 6 de março de 1983, a alta cúpula da União
Democrata-Cristã comemorava no Salão Konrad Ade-
nauer, em Bonn, a vitória da direita nas eleições. Apro­
veitei a oportunidade para meu ensaio geral. Evitando des­
pertar suspeitas logo na chegada, muni-me de um refletor
manual e, misturando-me a um pessoal da televisão, con­
segui entrar no edifício. O salão estava repleto, e a luz cin­
tilante dos refletores alcançava até os cantos mais escon­
didos. E lá estava eu, bem no meio do salão, vestido com
meu único temo escuro (que já devia ter uns quinze anos),
iluminando aqui e ali uma e outra autoridade. Alguns fun­
cionários estranharam meu comportamento. Vieram me
perguntar qual era minha nacionalidade, certamente para
assegurar-se de que eu nada tinha a ver com um atentado
anunciado pelos iranianos. Uma mulher, num elegante ves­
tido de noite, perguntou, olhando-me de soslaio:
— Mas o que um tipo como esse está fazendo aqui?
E um velhote com jeito de funcionário público respondeu:
— Isto aqui está bem internacional. Até o Cáucaso
veio festejar!
Eu me entendi muito bem com os figurões. Apresentei-
me ao membro dirigente da UDC Kurt Biedenkopf como
emissário de Türkes, um dos políticos dirigentes dos fas­
cistas turcos. Conversamos animadamente sobre a vitória
da coalizão de direita nas eleições. Norbert Blüm, minis­
tro do Trabalho, é favorável ao entendimento entre os po­
22 f
vos; espontaneamente, tomou-me pelo braço e, junto com
os outros, cantou a plenos pulmões: “ Que dia maravilho­
so o de hoje” .
Enquanto Helmut Kohl fazia seu discurso de vitória,
aproximei-me bastante do palanque. Depois de prestar vá­
rias homenagens aos outros e a si mesmo, ele fez menção
de descer. Estive prestes a oferecer meus ombros para
carregá-lo pelo salão numa volta triunfal. Mas preferi de­
sistir de tal propósito para não sucumbir sob o peso con­
siderável do chanceler.
Os inúmeros agentes de segurança, todos treinados
para desmascarar impostores, não perceberam meu dis­
farce. Após passar nesse teste, meu medo de futuras difi­
culdades diminuiu. Eu me senti mais seguro e confiante:
já não temia ser reconhecido pelas várias pessoas que iria
encontrar.
Os primeiros passos

Em resposta ao anúncio que publiquei, recebi, de fa­


to, algumas ofertas de “emprego” : quase todas para ser­
viços pesados e com salários que variavam de 5 a 9 mar­
cos por hora1. Nenhuma delas era para um emprego fi- *
xo. Experimentei algumas para ao mesmo tempo ensaiar
meu papel.
Uma dessas ofertas, por exemplo, era para reformar
uma estrebaria nos arredores residenciais de Colônia. Por
7 marcos a hora e sob o nome de Ali, consegui um traba­
lho “ de alto nível” : balançava-me nos andaimes para pin­
tar o teto. Meus colegas eram poloneses, todos em situa­
ção irregular. Não sei se era impossível comunicar-me com
eles ou se simplesmente não desejavam falar comigo. Ig­
noravam-me, deixavam-me de lado. Até a patroa, que pos­
suía também uma loja de antiguidades, evitava qualquer
contato comigo; limitava-se a dar ordens curtas: “Faça is­
so, faça aquilo, rápido” . Naturalmente eu tomava minhas
refeições sozinho, afastado dos outros. Tive contatos mais
próximos com uma cabra que costumava andar pela es­
trebaria do que com os outros empregados. A cabra vi­
nha roer minha sacola de plástico para devorar as fatias
de pão com manteiga.
Um dia o sistema de alarme da loja de antiguidades
enguiçou. Naturalmente puseram a culpa no turco. Depois
de muitos interrogatórios, resolveram chamar a polícia,
que também passou a suspeitar de mim. No começo, ig­
noravam-me; agora me hostilizavam abertamente. Depois
de algumas semanas, larguei esse emprego.
Minha próxima parada foi num sítio na Baixa Saxô-

10 salário-referênda por hora na Alemanha Ocidental é de aproximadamente


11 marcos (N. do T.).

24
Ali em seu alojamento no sítio. O balde serve como vaso sanitário

nia, perto da usina nuclear de Grohnde. A proprietária e


sua filha, refugiadas do Leste, cuidavam de tudo sozinhas
e decidiram recorrer à mão-de-obra masculina. Tendo certa
vez empregado um turco, sabiam exatamente como falar
com um deles: “ Qualquer coisa que você já tenha feito
não nos interessa. Mesmo que tenha matado alguém, não
queremos saber. O importante é que faça seu serviço. Em
troca, pode morar e comer aqui, e ainda vai receber um
dinheirinho para as despesas pequenas” .
Do “ dinheirinho” não vi nem a cor. Em compensa­
ção, trabalhei dez horas por dia, arrancando urtigas e ti­
rando a lama dos canais de irrigação. Quanto ao aloja­
mento, ela até me permitiu escolher entre um calhambe­
que enferrujado que estava parado diante da casa e um
malcheiroso estábulo em ruínas que deveria repartir com
um gato. Aceitei uma terceira opção: um espaço numa
construção abandonada com o chão ainda coberto de en­

25'
5 CHÜ3ME MODE POIISWEIlt

Ali e seu realejo

tulhos e a porta sem chave. E dentro da casa havia vários


cômodos quentes, limpos e desocupados...
Eu era obrigado a me esconder dos vizinhos para que
ninguém pudesse xingar a propriedade de “ o sítio do tur­
co” . Também estava proibido de aparecer na cidade; não
podia mostrar a cara nas lojas ou no bar. Tratavam-me
como um animal de carga. Mas para a sitiante isso certa­
mente era um ato cristão de amor ao próximo. Perceben­
do estar diante de alguém que pertence à “ minoria mu­
çulmana” , ela foi mais longe ainda: prometeu-me alguns
pintinhos. Eu deveria criá-los, já que não podia comer car­
ne de porco. Diante de tamanha caridade, resolvi fugir.
Durante quase um ano tentei me manter com os mais
diversos serviços. Fosse eu realmente Ali, com certeza não
teria sobrevivido. Por isso mesmo é que eu estava literal­
mente preparado para aceitar qualquer função. Para o do­
no de um restaurante e de uma cadeia de cinemas de Wup-

26
pertal, troquei os estofados das poltronas e ajudei na re­
forma do bar. Numa indústria alimentícia, meu trabalho
era remexer com uma pá a farinha de peixe. E em Strau-
bing, na Baviera, tentei a sorte como tocador de realejo:
durante horas ficava parado, tocando inutilmente.
Nada mais me espantava. O ódio habitual aos imi­
grantes já não era novidade. Surpreso eu ficava quando
não me hostilizavam. As crianças, principalmente, eram
mais gentis. Paravam diante desse estranho tocador de rea­
lejo e de sua tabuleta — T u rco sem tr a b a lh o HÁ o n ­
z e a n o s n a A l e m a n h a , qu er c o n tin u a r a q u i . O bri ­
g a d o : — até que os pais vinham arrancá-las dali. E houve
também o casal de saltimbancos que se instalou bem a mi­
nha frente, na praça do mercado de Staubing, e também
tocava realejo; pois esse casal me convidou — a mim, seu
concorrente — para visitar sua carroça. Foi uma bela noite.
Em geral, porém, as coisas aconteciam de modo bem
menos agradável. Por exemplo, num dia de carnaval em
Regensburg. Nenhum bar alemão precisa ter na porta um
cartaz dizendo: I m ig ra ntes n ã o são bem -v in d o s .
Quando eu, Ali, entrava num deles, era totalmente igno­
rado. Ninguém vinha me atender. Assim, qual não foi mi­
nha surpresa quando, num bar de Regensburg, repleto de
bons cristãos fantasiados de bufão, um deles me cumpri­
mentou com um sonoro “olá” e disse:
— Agora é a sua vez de nos pagar uma rodada.
— Não — respondi. — Vocês paga. Eu não tem em­
prego. Eu já trabalhou para vocês, eu já pagou imposto
para vocês.
O homem ficou rubro, inchou como um sapo (mais
tarde descobri que Franz-Josef Strauss também costuma
fazer isso) e, furioso, atirou-se sobre mim. Querendo pro­
teger seu mobiliário, o dono do bar me protegeu. Alguns
fregueses levaram para fora o bávaro que havia perdido
o controle. Durante o incidente, um cidadão (que mais
tarde se apresentou como figurão político da localidade)
ficou sentado, quieto, aparentemente pensativo. Tão lo­
go a situação se acalmou, puxou uma faca e, cravando-a
27'
no balcão, disse-me: “Dê o fora! Rápido, seu turco de
merda!”
Raras vezes vi tanto ódio. No entanto, em certo sen­
tido, os olhares de desprezo eram ainda piores. Ofendem
tanto como quando se está sentado num ônibus lotado e
o assento ao lado continua vazio.
Já que a tal integração de estrangeiros, evocada por
muitos, não se concretiza nos transportes públicos, fui
testá-la, junto com um amigo turco, num bar alemão. Ten­
tamos conseguir uma mesa cativa (Türk Masasi, em tur­
co) em qualquer bar onde pudéssemos nos encontrar sem­
pre à mesma hora. Chegamos a confeccionar uma flâmu-
la com a inscrição bilingüe, em turco e alemão: “ Serefe!
Prost!**(“Saúde!”). Nem mesmo nossas promessas de con­
sumir muito adiantaram. Perguntamos a uma dúzia de do­
nos de bar, e nenhum tinha uma mesa livre.
Meu colega Orthan Oztürk, de 27 anos, tem sofrido
experiências semelhantes há quinze ános, desde que chegou
à Alemanha Ocidental. Fala alemão quase sem sotaque.
Tem boa aparência e até tingiu o cabelo de loiro para dis­
farçar suas origens. Mas até agora não conseguiu namo­
rar uma jovem alemã. Basta dizer seu nome e tudo termina.
Geralmente os imigrantes não são insultados. Ao me­
nos não de modo que possam ouvir. Por trás, as pessoas
se queixam do suposto mau cheiro de alho. No entanto, os
gastrônomos alemães comem, hoje em dia, muito mais alho
que a maior parte dos turcos, que se permitem no máximo
um dente desse saudável condimento no fim de semana. Eles
se renegam para ser aceitos. Mas as barreiras continuam.
É claro que algumas vezes os imigrantes são atendi­
dos de forma gentil nos bares alemães. Desde que sejam
servidos por outros imigrantes. Passei por essa experiên­
cia no Gürzenich, em Colônia, durante as festividades do
carnaval. Minha primeira surpresa foi permitirem que eu,
um “turco” , entrasse. E lá dentro, atendido por garçons
' iugoslavos extremamente amáveis, quase me senti bem. Até
que começou a tradicional cantoria com todo mundo se
balançando de braço dado. E lá fiquei eu, no meio daqueles
28 \
Ali no Estádio Olímpico da Berlim

alucinados, como um rochedo no mar ondulante. Ninguém


quis me dar o braço.
De vez em quando o ódio aos imigrantes revela-se
abertamente. Quase sempre nas partidas internacionais de
futebol. Fazia algumas semanas que se temia o pior du­
rante o jogo Alemanha Ocidental x Turquia, realizado no
Estádio Olímpico de Berlim, nesse verão de 1983. Num
tom claramente suplicante, Richard von Weizsácker1
dirigiu-se a todos pela televisão: “ Vamos fazer deste jogo
um exemplo da convivência pacífica entre alemães e tur­
cos em nossa cidade. Vamos transformá-lo numa prova
de compreensão entre os povos” . Para tanto foi mobili­
zada uma força policial jamais vista.
Ainda como Ali, comprei um ingresso na arquiban­
cada da torcida alemã. Queria aparecer como turco, tan-

1 Em julho de 1984, Richard von Weizsácker tornou-se presidente da Repúbli­


ca Federal da Alemanha (N. do T.).

29 {
to que levei um barrete com o emblema turco e uma pe­
quena bandeira. Mas logo tive de dar sumiço nessas coi­
sas. Fui parar bem no meio de um grupo de alemães neo­
nazistas. Neonazistas? É possível que, individualmente, se­
jam bons sujeitos, pelo menos a maior parte deles tem um
rosto simpático, franco. Mas, juntos, na multidão, eram
máscaras de histeria. Nesse dia, trêmulo, pela primeira e
única vez, reneguei minha condição de turco; desisti de meu
idioma estropiado e conversei com os fanáticos torcedo­
res num alemão perfeito. Mesmo assim, continuaram a me
tomar por imigrante. Atiravam-me pontas de cigarro no
cabelo e derrubavam cerveja em minha cabeça. Nunca, em
toda a minha vida, senti tamanho alívio ao ver policiais
passando perto de mim. Jamais sonhei que iria vê-los um
dia como verdadeiro poder de ordem. Os torcedores gri­
tavam: “Vitória!” , “Morte aos vermelhos!” . E um coro
sem fim vociferava: “Turcos, vão embora do nosso país!
A Alemanha para os alemães!” Felizmente não correu san­
gue: houve apenas um pouco mais de feridos do que nas
partidas “normais” . Não quero nem imaginar o que teria
acontecido se o time alemão perdesse. Não sou fanático
por futebol. Porém ali, no Estádio Olímpico, eu berrava,
incentivando o time da Alemanha. De puro medo. ^
Matéria-prima: o espírito

Eu, Ali, vou a Passau, assistir ao espetáculo da quarta-


feira de cinzas que Franz-Josef Strauss, dirigente da União
Sodal-Crístã, organizou para sete mil pessoas. Não sei se
um cigano que tomasse parte de um congresso nazista na
Bürgerbrãukeller, a tradicional cervejaria de Munique., não
teria sentido o mesmo que sinto agora. Pelo menos tenho
uma pista. Ali é o leproso, de quem todos se afastam.
Nove horas da manhã em Passau. Nem foi preciso
procurar o Salão dos Nibelungos. Por todas as ruas, o aflu-
xo dos partidários de Strauss — muitos deles nitidamente
não-bávaros — levava diretamente ao grande salão. Às on­
ze horas, Strauss deverá inaugurar sua “ quarta-feira po­
lítica” ; duas horas antes, porém, praticamente todos os
bancos ao longo das mesas compridas estão ocupados. O
gigantesco salão está tomado pela fumaça de cigarros. To­
dos já devem ter bebido dois ou três litros de cerveja. Pei­
xe e queijo são servidos em abundância. É o primeiro dia
da quaresma.
Encaminho-me para um dos poucos lugares ainda de­
socupados. Antes, porém, que eu consiga me espremer na
ponta do banco, meu vizinho de mesa se estica inteiro, ocu­
pando todo o espaço, e assim me cumprimenta:
— Mas o que é isso? Onde estamos, afinal? Nem aqui
a gente fica livre desses carroceiros? Vocês não conhecem
seu lugar?
Olham-me com espanto de todos os lados. O cidadão
politicamente engajado que está a minha esquerda baba
cerveja, tão cheio já está. Tento deixá-los de bom humor.
— Eu é grande amigo Strauss. Homem forte!
Em resposta, uma chuva de gargalhadas.
— Como é que é? Vocês ouviram isso? Ele diz que
é amigo de Strauss! Essa é muito boa.
31
Ali e os bebedores de cerveja

Só me deixam em paz quando passa por ali uma mu­


lher robusta, servindo as bebidas. Seu traje típico, bem
decotado, e principalmente o líquido que ela carrega são
bem mais interessantes que eu.
Até que um gole de cerveja cairia bem agora. Mas...
nada. A garçonete simplesmente me ignora. Resolvo en­
tão ir ao balcão das bebidas: ninguém me escuta. Depois
de uma terceira tentativa, o rapaz do balcão me diz com
um chiado áspero:
— Dê o fora daqui. Rapidinho!
Nesse instante, Strauss entra no salão sob grande ova­
ção e o rufar dos metais da marchinha bávara. Os organi­
zadores do comício esforçam-se para abrir caminho entre
a multidão ensandecida e chegar até o palanque, onde já
se encontra a mulher de Strauss, Marianne. Os não-bávaros
são os que mais gritam e agitam seus cartazes (NÓS, DE
P e i n e , A q u i P e l a S é t im a V e z ).

32
As primeiras frases do dirigente da USC são abafa­
das pelo barulho. O discurso dura três horas. É difícil
acompanhar o que ele diz, no meio da multidão pingando
suor. E também só é possível acompanhar sua lógica de­
pois de três litros de cerveja: “ Somos um partido de pes­
soas inteligentes. Temos eleitores inteligentes e, por isso,
somos a maioria no país. Se nossos eleitores não fossem
tão inteligentes, não seriamos a maioria!” Aplausos e pa-
teadas estrondosos. A sala ferve.
As pessoas apinham-se nos banheiros, que não con­
seguem dar conta de seu aperto. Nos corredores, poças de
urina. Até mesmo no salão, uns e outros se aliviam pela
perna da calça.
No palanque, Strauss fala muito sobre o espírito:
“ Precisamos fazer melhor uso da nossa matéria-prima, o
espírito. Esse espírito que Deus nos legou, não obstante
todas as tolices ditas por alguns funcionários públicos” .
Antes disso, porém, as cervejas é que precisam ser
mais bem distribuídas. Sanitaristas e assistentes da Cruz
Vermelha têm de se arrastar com dificuldades. Em todas
as mesas há folhetos informativos: “Nós e nosso partido” .
As apresentações são feitas pelos próprios simpatizantes
da USC. Como, por exemplo, a de um comerciante mui­
to gordo: “ Nunca tive complexo por ser de direita. Não
conheço outro partido que me caia tão bem como a USC.
É o partido que me convém, assim como Strauss. Gosto
muito dele. Somos bem parecidos. Não há nada, com ex­
ceção do futebol, talvez, que me irrite mais que os im­
postos” .
Ou talvez um turco sedento, nesse Salão dos Nibe-
lungos branco e azul. Quase de contrabando, consigo uma
cerveja. Assim que o rapaz do balcão olha para o lado,
apanho uma caneca e deixo ali *5 marcos. Strauss está fa­
zendo suas ameaças: “ Precisamos voltar a pensar nos ci­
dadãos normais, nas mulheres e nos homens normais, e
não em alguns marginais” . Pouco depois, ao falar da
“massa de anônimos” e da “identidade nacional” que ele
quer “ preservar” , e ao vangloriar-se da “ liberdade e da

33'
dignidade de todos na Alemanha” , é que percebo clara­
mente que não se refere a mim, Ali.
Tento voltar para o banco e ainda encontro dois lu­
gares livres. Sento-me e o lugar ao meu lado fica desocu­
pado, embora todos continuem se apertando. “Esse fede
a alho” , diz um sujeito. “ Você é turco?” pergunta outro.
Finalmente o “bávaro feliz” (Strauss falando de
Strauss) termina seu discurso de quaresma. Durante cin­
co ou seis horas seus admiradores agüentaram-no. Um cor­
dão de segurança protege-o dos fãs. Os pedidos de autó­
grafos não podem ser atendidos. Pelo menos não ali. Quem
desejar autógrafo deverá fazer sua solicitação por escrito
num papel adequado e colocá-la numa das umas que cir­
culam pelo salão.
Apesar de tantas precauções, consigo me aproximar
com facilidade do dirigente bávaro. Muito simples.
Apresento-me como observador do congresso e emissário
de Türkes, o líder fascista dos Lobos Cinzentos. Esse tal
Türkes, fã entusiasta de Hitler, já havia se encontrado se­
cretamente com Strauss alguns anos antes em Munique.
No encontro, segundo Türkes, 'o presidente da USC
garantiu-lhe que, com a propaganda adequada, no futu­
ro se criaria na Alemanha um clima político favorável à
MHP, organização turca neofascista, e aos Lobos Cinzen­
tos. Eis o grito de guerra de Türkes: “ Morte a todos os
porcos judeus, a todos os comunistas filhos da puta e a
todos os cães gregos!”
Como representante de tal pessoa, tenho acesso livre
a Strauss, que me cumprimenta com cordialidade e põe
o braço em meus ombros, exatamente como um padrinho
poderoso trata um parente pofcre da província. Escreve
uma dedicatória pessoal na página de rosto do livro edi­
tado em sua homenagem, Franz-JosefStrauss — Um gran­
de livro de fotografias: “Para Ali, com cordiais saudações,
F.-J. Strauss” .
Os fotógrafos presentes não deixam escapar a ocasião
para mais um instantâneo.
De acordo com o prefácio desse livro luxuoso, Strauss
34
Dedicatória de Franz-Josef Strauss a Ali

“ entrou para a política obedecendo ao apelo instintivo


do dever” (da Providência, talvez?). Em todo caso, foi
um privilégio para mim chegar bem perto de um dos po­
líticos do pós-guerra mais obcecados pelo poder, um dos
maiores inimigos da democracia, um homem que me le­
vou várias vezes às barras dos tribunais. A primeira vez
em que me encontrei pessoalmente com ele foi há mais
de dez anos, durante um debate organizado pela Acade­
mia Católica de Munique (tema dò debate: “ Jornalista
ou agitador?” ). Sentei-me entre ele e Wischnewski, polí­
tico do Partido Social-Democrata. Strauss estava num de
seus bons dias e quis brilhar diante do público mais libe­
ral da academia. E, evidentemente, quis se mostrar sim­
pático para comigo.
— Até que enfim tenho a oportunidade de lhe per­
guntar uma coisa. O senhor é parente do padre Josef Wall-
raff, o jesuíta?
35.
Não permiti que por trás de tanta “familiaridade” ele
pudesse ocultar dos presentes sua hostilidade para com pes­
soas como eu.
— Sou seu filho ilegítimo — respondi. — Mas, por
favor, não diga nada a ninguém.
Durante todo o resto da discussão, Strauss manteve-
se fiel a si mesmo.
“O prazer de comer”
(ou: A última ração)

Muitos de nossos críticos são verdadeiros mestres na técnica do aves­


truz. Nem sequer se dão ao trabalho de investigar corretamente o que
há por trás dos bastidores do McDonald ‘s. Quem não enxerga direi­
to não pode se aproximar da verdade.
Texto publicado em página inteira no jornal Die Zeit, de 10 de maio
de 198S.

Recentemente o McDonald’s deu início a uma gran­


de ofensiva contra seus detratores nas associações de con­
sumidores e sindicatos: “Esses ataques não nos impedi­
rão de continuar a nos expandir e a oferecer a um número
ainda grande de desempregados uma colocação sólida e
com todas as possibilidades de ascensão” .
Uma oportunidade para os imigrantes e os refugia­
dos políticos? Nada como ir até lá, digo a mim mesmo.
Na Alemanha, já existem 207 McDonald's. Em pouco tem­
po, esse número deverá dobrar. Vou tentar a sorte em
•Hamburgo, numa das maiores filiais do McDonald’s na
Alemanha. Consigo o emprego. Agora não me faltará mais
o prazer, já que nosso lema é “ o prazer de comer” . Pelo
menos é o que está escrito no prospecto de boas-vindas.
Mas o que isso realmente significa?

“O McDonald’s é um restaurante familiar, onde se pode co­


mer bem e barato, num ambiente extremamente limpo, e on­
de todos se sentem bem e se divertem — este é o sucesso do
McDonald’s. Estamos felizes por tê-lo em nossa equipe e de­
sejamos a você muito sucesso e prazer!”

37
Numa equipe tão feliz, prefiro dizer que tenho 26
anos. Se revelasse minha idade real (43), não teria muita
razão para rir.
Igual aos hambúrgueres, também sou embrulhado
com as embalagens da casa: boné, camiseta e calça. Nos
três, o logotipo McDonakTs. Só falta me colocarem na
grelha. A calça não tem bolsos. Se recebo alguma gorje­
ta, corro a mão inutilmente pela costura lateral até que,
por fim, coloco o dinheiro exatamente onde a empresa quer
tê-lo: dentro da caixa registradora. O golpe de mestre da
calça sem bolsos também impede que tenhamos um len­
ço. Portanto, se “ o nariz escorrer” , vai escorrer por cima
dos hambúrgueres ou provocar chiados sobre a grelha a
cada pingo.
O gerente logo se mostra satisfeito comigo, elogian­
do meu trabalho e minha destreza em virar os hambúr­
gueres na chapa.
— Você faz isso muito bem! E rápido! A maioria co­
mete erros enormes quando está começando.
— Acho que porque eu faz esporte — digo-lhe.
— Qual?
— Pingue-pongue.
O hambúrguer é uma rodela de carne marrom e sua­
da, com 98 milímetros de diâmetro, no mínimo, e de 125
a 145 gramas de peso. Atirado na chapa, pula como uma
ficha de plástico. Congelado, estala como uma moeda ao
bater num vidro. Depois de frito, tem, no máximo, dez
minutos “ de vida” ; porém na maioria da vezes fica mui­
to mais tempo nos balcões. Se o deixam degelar, começa
a cheirar mal. Por isso é que, ainda congelado, jogam-no
imediatamente na chapa. Depois, é recoberto com os co­
nhecidos condimentos e ingredientes, colocado entre duas
fatias de pão esponjoso e embalado em isopor. “ Há mui­
to de gracioso na silhueta delicadamente abobadada de um
pãozinho de hambúrguer! Perceber tal coisa requer um es­
tado de espírito muito especial!” , afirma, com seriedade,
Ray Kroc, o fundador da empresa.

38
O Big Mac
“O amor é como um Big Mac: dois corpos que se mistu­
ram num movimento harmonioso, tornando-se uma só car­
ne. O delicado pãozinho enlaça o corpo num abraço pleno
de ternura. Os beijos são como uma pitada úmida de molho
especial. Os corações amantes se consomem como as cebo­
las. A esperança, jovem ainda, verdeja como a salada. E o
queijo e o pepino dão o sabor de querer mais.”
(Extraído do jornal do McDonakTs do Rio de Janeiro,
de abril de 1983.)

O local de trabalho, atrás do balcão, é estreito; o chão,


engordurado e escorregadio; e a chapa mantém permanen­
temente uma temperatura de 180°. Não há medida de se­
gurança. Na realidade, deveríamos usar luvas — pelo me­
nos é o que prevêem as normas de segurança. Mas não te­
mos luva nenhuma: diminuiria o ritmo de nossa ativida­
de. Muitas pessoas que trabalharam ou trabalham aqui têm
ferimentos e cicatrizes de queimaduras. Pouco antes de eu
começar neste emprego, um dos colegas foi levado para
o hospital porque, na pressa, tinha colocado a mão direto
na grelha. Logo na primeira noite, ganhei algumas bolhas
de queimadura, graças às gotas de óleo fervente que es­
pirram da chapa.
Ingenuamente imagino que meu expediente termine
às duas e meia da madrugada, conforme o combinado. Só
então percebo que começam a falar de mim, de Ali, o no­
vato. O gerente trata-me com rispidez e pergunta por que
estou saindo antes de terminar o serviço. Explico-lhe que
estou só fazendo o que me disseram. Mas eu deveria tê-lo
avisado pessoalmente de que ia embora. Ameaçando-me,
pergunta se limpei a calçada. Respondo que sim, pois aca­
bava de voltar de lá — só de camiseta, em plena madru­
gada de dezembro. Mas um empregado particularmente
atencioso avisa que ainda há papéis espalhados lá fora.

3 9'
E já são quase três horas da manhã! O gerente acha
qüè não estoú me adaptando muito bem e que me falta
um pouco de garra. Meu rosto não demonstra felicidade.
E, se cheguei a pensar que não seda vigiado, estou redon­
damente enganado. Por exemplo, hoje fiquei cinco minu-
. tos plantado no mesmo lugar. Digo que não é possível,
pois passei ò tempo todo correndo de um lado para o ou­
tro. “ Trabalho para mim é esporte” , acrescento.
Lendo uma circular distribuída pela empresa, descu­
bro que as horas noturnas e as extras só são computadas
como horas inteiras. Isto significa que qualquer trabalho
extraordinário inferior a trinta minutos não é, considera­
do; já os quê ultrapassarem trinta minutos serão arredon-'
dados para uma hora. Na prática, porém, há muito mais
desconto que arredondamento. Só podemos marcar o pon­
to depois de vestirmos os uniformes. E na saída é o in­
verso: primeiro marcamos o ponto e depois trocamos de
roupa. Desse modo, somos duas vezes roubados.
Estamos na época de Natal. Há um número enorme
de pessoas e, nas horas de pico, atingem-se os recordes de
movimento. Meu salário bruto é de 7,55 marcos por ho­
ra, numa atividade comparável a qualquer outro trabalho
de produção em série. Além disso, descontam 1 marco por
hora, a título de alimentação. Depois de oito horas de tra­
balho, o gerente comunica-me que agora posso escolher
com calma uma das especialidades do McDonald’s. Quan­
do peço os talheres, ele começa a rir. Talheres no McDo­
nald^? É algo que não tem o menor sentido. A minha volta
só gargalhadas.
Meu local de trabalho é aberto. Assim como vejo os
fregueses, eles também me vêem. Não tenho sequer a chan­
ce de me afastar por alguns minutos e beber alguma coisa
para enfrentar o calor que faz ali. Toda essa fritura e os
molhos— principalmente o de mostarda — provocam mui-,
ta sede.
Uma fatia de pepino para um hambúrguer, duas para
o Big Mac; uma fatia de queijo e as esguichadelas dos vá­
rios molhos: de peixe, de galinha, especial para o Big Mac.
40
A toda hora estão nos pressionando, porque os pedi­
dos não param: uma torta de maçã aqui, um filé de peixe
ali. £, assim, com os dedos sujos de peixe, passamos para
o próximo hambúrguer.
É no horário de descanso que aproveito para experi­
mentar a comida. Como o frango — os tais nuggets —
e sinto o sabor de peixe. Isto deixa um gosto ruim na bo­
ca. Como a torta de maçã, a mesma coisa: não é que até
aqui entra em cena o peixe?
Só depois de algum tempo consigo entender por que
isso acontece. As gigantescas cubas para fritura estão sem­
pre cheias de óleo em ebulição. Todas as noites esse óleo
é filtrado para ser reaproveitado. Assim, tanto o óleo das
tortas de maçã, quanto o do peixe, quanto o do frango
passam pelo mesmo filtro de papel, que é utilizado nas dez
diferentes cubas.
Nas horas de pico, o trabalho é febril; formam-se fi­
las diante do balcão. Por todos os lados ouço gritos para
andarmos mais depressa. Com tanta agitação, penso que
seria mais produtivo retirar os hambúrgueres um pouco
antes do tempo. Mas o gerente — o único que não usa boné
— repreende-me:
— Você não tem que pensar em absolutamente na­
da. As máquinas se encarregam disso. Portanto, só retire
o hambúrguer quando a máquina apitar. Não queira se
antecipar!
Faço como ele diz. Não se passam nem cinco minu­
tos e ele volta.
— Por que está demorando tanto?
— Senhor disse máquina pensa e eu espera.
— Você espera, mas os fregueses não! Acha que de­
vem esperar?
— Mas quem é decide? Senhor ou máquina? Como
eu vai saber? Eu faz como...
— Espere até a máquina apitar, entendeu?
— Sim.
A palavra de ordem por aqui é serviço rápido. O “ob­
jetivo final” é que “ninguém fique esperando” . Para tanto,
41*
todos os tipos de truques são recomendados ao gerente.
O lema é o seguinte: “Um minuto de espera no balcão é
tempo demais. É o máximo para quem está na fila. Esta­
beleça como meta trinta segundos. Acelerar os serviços é
só uma questão de afinação. Concentre-se na rapidez du­
rante os próximos trinta dias. Risque do vocabulário a pa­
lavra ‘devagar’. Da maneira como você atua dependem 2°7o
de suas vendas. E viva a rapidez!”
Aqui fa stfo o d quer realmente dizer questão de mi­
nuto, embora alguns colegas que nãò entendem muito bem
a língua inglesa achem que fa stfo o d significa “ quase-
comida” 1.
Nossa filial é conhecida por suas vendas recordes. Eu
mesmo vi o diretor regional do McDonakTs entregar a nos­
so gerente um troféu com a seguinte inscrição: “ Pelo ex­
celente desempenho no tocante aos lucros” .
O McDonakTs também tem em mira as crianças. Nu­
ma circular interna, o departamento de marketing da cen­
tral de Munique afirma: "Fastfood não é apenas um mer­
cado jovem. Na Alemanha, é antes de mais nada um mer­
cado da juventude... E pensar que dizem que os jovens
não t§m dinheiro!”
As instalações obedecem a essa diretriz: trincos, me­
sas, cadeiras — quase tudo da altura de uma criança. As
filiais recebem instruções especiais: “As crianças multipli­
cam suas vendas!” Há diversas programações para atrair
os pequenos e, com eles, toda a família. A mais requisita­
da é “A festa de aniversário no McDonakTs” . Um pra­
zer programado do início ao fim.

>Em alemão fast significa “quase” (N. do T.).


“As sete etapas de uma festa de aniversário:
1.a etapa: preparativos..............................aprox. 15 min
2.a etapa: receber os convidados............... aprox. 10 min
3.a etapa: anotar os pedidos.....................aprox. 5 min
4.a etapa: retirar os pedidos.....................aprox. 10 min
5.a etapa: o prazer de comer.....................aprox. 15 min
6.a etapa: jogos ou passeio pela
lanchonete................................................ aprox. 10 min
7.a etapa: despedida........................................................
Anotar, em seguida, no quadro de avaliações.’*
(Documento interno do McDonakTs)

Depois de passar pela fritura, pela chapa e pelo aten­


dimento no balção, sou iniciado, no terceiro dia, na téc­
nica dos “serviços no salão” : recolher as embalagens e lim­
par os restos de comida deixados sobre as mesas. Para es­
sa tarefa, entregam-me dois panos: um para as mesas e
o outro para os cinzeiros. Na pressa costumeira, freqüen­
temente os confundo. Mas ninguém se importa. Muitas
vezes limpamos os banheiros com os mesmos panos. É a
forma de encerrarmos o ciclo da alimentação. O que me
dá nojo. Porém, se peço outro pano, respondem-me com
arrogância que os que tenho já são mais que suficientes.
Um dia, o gerente mandou um colega diretamente da
cozinha para um banheiro entupido. Com o raspador da
chapa na mão, ele se apressou em executar meticulosamente
sua tarefa, o que lhe valeu uma bronca descomunal por
parte do subgerente.
A limpeza externa também é motivo de atenção rigo­
rosa. Cinqüenta metros à direita e cinqüenta metros à es­
querda da porta de entrada, tudo deve estar minuciosa­
mente limpo. Um trabalho insano, pois os fregueses vi­
vem jogando as embalagens na calçada.
Na sala de descanso, a gente se diverte com as bara­
tas, que ninguém consegue eliminar. No começo, elas só
andavam pelo sótão, mas agora já aparecem também na

43'
cozinha. Há pouco tempo, uma delas caiu direto sobre a
grelha. De outra vez, um freguês encontrou um belo exem­
plar em seu Big Mac.
Alguns fregueses, principalmente os jovens um tanto
tocados pela bebida, costumam jogar no chão o resto das
batatas fritas, que ficam espalhadas e são pisoteadas. E
lá vou eu limpar o chão engordurado.
Uma colega turca tem dificuldades ainda maiores. Por
ser mulher, é cantada; por ser imigrante, é menospreza­
da. Vivem atirando cinzeiros no chão quando ela passa.
Isso também já aconteceu comigo. Uma vez jogaram um
cinzeiro bem a minha frente. Eu me abaixei para recolher
os cacos e logo ouvi o barulho de outro cinzeiro sendo que­
brado. E depois outro, e mais outro. Não consegui desco­
brir o autor. A meu redor, só gargalhadas. Acho que de­
ve ser esse tal “ prazer” .
Mesmo no horário de descanso, deve-se permanecer
no serviço. Não é permitido sair para tomar um café ou
uma cerveja. Já tiveram experiências desagradáveis, co­
mo a do funcionário que durante o horário de descanso
foi para um bordel.
Uma colega conta que freqüentemente a proíbem de
descansar durante as oito horas de jornada diária. Quan­
do ela reclama, recebe como resposta: “Rápido! Rápido!”
A mesma coisa acontece se alguém precisa ir ao mé­
dico. O gerente diz: “ Sou eu que decido o horário de ir
ao médico” .
Uma vez perguntei se podia descansar. A resposta já
era minha velha conhecida: “ Sou eu que decido o horário
de descanso!”
Não há comissão de empregados.
Através de uma circular escrita há seis anos, o chefe
do departamento do pessoal dá o seguinte conselho a to­
dos os McDonald’s da Alemanha Ocidental: “ Se durante
uma entrevista com um candidato ficar comprovado que
ele é ‘politizado’, faça-lhe outras perguntas e pare por aí.
Prometa-lhe uma resposta para alguns dias depois. E na­
turalmente não o contrate em hipótese alguma” .
44 ■»
Bom proveito!
Há algumas razões para que tudo tenha o mesmo gosto.
É a seguinte a opinião da União dos Consumidores de Ham­
burgo sobre os produtos McDonald*s: “O sabor provém de
numerosos aromas artificiais que são acrescentados. Para con­
servar as bebidas o maior tempo possível, adicionam-se con­
servantes” . Um milk-shake contém 22% de açúcar, o equi­
valente a cerca de dezesseis porções ou 40 a 45 gramas. Tudo
com um “toquezinho” para torná-lo tragável. Edmund
Brandt, especialista da indústria da carne nos Estados Uni­
dos, diz que, para os hambúrgueres, não se podem utilizar
carnes magras, como pescoço ou paleta, pois se despedaça­
riam. É preciso então submeter a carne a um tratamento es­
pecial, à base de “ sal e proteínas líquidas” . “A carne muito
fresca” , continua Brandt, “é aquosa demais para a produ­
ção de hambúrgueres.” A muito velha perde a cor: “Neste
caso, jogam-se cubos de gelo na máquina de moer para que
a carne se tome avermelhada” . E, apesar de seu aspecto per­
feitamente magro, a carne de hambúrguer, uma vez prepa­
rada, contém ainda 25% de gordura. Na dispendiosa publi­
cidade do McDonakTs os consumidores não encontrarão uma
só palavra sobre esses truques. O pseudo-repasto industrial
do McDonald’s destaca-se principalmente por causa de sua
astuciosa embalagem — uma espécie de Bild Zeitung comes­
tível. Mas, assim como os leitores do Bild muitas vezes sa­
bem, sem maiores informações, que devem estar sendo en­
ganados, assim também alguns fregueses do McDonakTs lá
não voltam após uma primeira tentativa. Um dia, limpando
o local, encontrei num guardanapo a seguinte mensagem:
“McDonakTs —vomitar é grátis!” E em outra ocasião: “Pela
primeira vez é pior o que entra pela boca do que o que sai!”
Fast food é um alimento insuficiente que pode causar sérios
danos à saúde: em crianças que abusam de lanches rápidos,
nutricionistas americanos diagnosticaram sinais de elevada
agressividade, insônia, pesadelos. A causa: a gostosafast food
reduz as reservas de tiamina e acarreta carência de vitamina
B-l, que prejudica o sistema nervoso.
Ray Kroc, o criador da rede McDonald’s, sabe exa­
tamente o que quer: “ Quero dinheiro, do mesmo modo
como se quer luz ao acionar um interruptor” . E Abrams,
general americano, considera o McDonald’s uma escola-
modelo: “ É muito saudável para um jovem trabalhar no
McDonald’s. O McDonald’s faz dele um homem eficien­
te. Se o hambúrguer não está bom, o sujeito é posto na
rua. Este sistema é uma máquina que funciona silenciosa­
mente, e nosso Exército deveria inspirar-se nele” .
O canteiro de obras

Logo que cheguei ao bairro de Pempelfort, em Düs-


seldorf, às seis da manhã, meia dúzia de pessoas espera­
vam diante da porta da GBI, uma empreiteira localizada
na Franklinstrasse. Como eu, também se dirigiram para
lá depois de ler um anúncio publicado no jornal. Um fun­
cionário abre a porta. O escritório fica logo ali, no tér­
reo: duas escrivaninhas — uma ao lado da outra — e um
telefone. Nem arquivos nem armários. E mesmo as escri­
vaninhas parecem nunca ter sido ocupadas. No quadro de
aviso, uma mensagem: “ Esta firma registra seus empre­
gados de acordo com a legislação vigente! **Mas ninguém
me pede documentos e nem chego a dizer meu nome.
Antes de nos enviarem, em pequenos grupos, a nos­
sos locais de trabalho, ficamos aguardando num dos dois
cômodos ao lado, que serve como sala de espera. Papéis
de parede descolados, janelas engorduradas, nenhum ba­
nheiro: eis o novo status que conquistamos.
Siggi, um sujeito grosseirão, de cabelo encaracolado,
as mãos e o pescoço cobertos de ouro, precisa de quatro
ajudantes “para uma bela construção em Colônia” .
Apresento-me como candidato, e ele me inclui na equipe
de operários. Só nos fala a respeito do salário e das con­
dições de trabalho dentro do veículo, a caminho do local
de serviço.
— O mestre-de-obras quer que vocês trabalhem dez
horas por dia — explica-nos. — Vocês vão receber 9 mar­
cos por hora; portanto, 90 marcos por dia.
M eia hora depois, ao desembarcarmos no canteiro de
obras em Hohenstaufenring, em Colônia, leio num a ta ­
buleta: A qu i E stão Sen d o C on stru ída s as C asas
M a is b o n it a s e as M an sões M a is E l eg a n t es , T odas
C om Vista P a r a um T r a n q ü ilo P a r q u e . O encarre

47
gado, que já trabalha há algum tempo para a GBI, leva-
nos até os vestiários. Mal acabamos de mudar de roupa,
Siggi reaparece.
— Preciso de seus nomes, para o mestre-de-obras —
diz.
— Ali — respondo. É o bastante.
Nossa equipe está subordinada a um mestre-de-obras
da firma Walter Thosti Boswau (WTB), a sexta maior em­
presa de construção civil da Alemanha Ocidental, como
descubro mais tarde. As ordens de trabalho nos são da­
das exclusivamente por ele. Todo o material utilizado —
da vassoura às chapas metálicas — também é fornecido
pela WTB. A GBI “ simplesmente” se encarrega de con­
seguir os operários; nem sequer tem ferramentas e não es­
tá encarregada de qualquer construção.
Nenhum de nós entregou os documentos para a GBI;
todos, sem exceção, trabalhamos “clandestinamente” . Não
há seguro de saúde. Pergunto a um colega:
— Que acontece quando a gente tem acidente?
— Eles dizem que você estava aqui só há três dias e
fazem sua inscrição na previdência fora da época. Quan­
do muito, só a metade dos trabalhadores... e são cente­
nas... está registrada.
Durante os horários de descanso, vamos nos sentar
com mais quinze pessoas num barracão que deve ter uns
doze metros quadrados. Um carpinteiro, recrutado pelo
escritório da GBI de Colônia, conta-nos: “Faz trinta anos
que trabalho em construção e nunca precisei dizer para o
mestre-de-obras quando eu ia cagar!”
Alguns afirmam que, com o tempo gasto no percur­
so de ida e volta, a jornada diária de trabalho passa a ser
de quinze horas. “E claro que só pagam por dez horas,
nem um centavo a mais.”
Um dos colegas turcos, com mais ou menos cinqüen­
ta anos de idade, é uma das vitimas prediletas do mestre-
de-obras da WTB. Mesmo executando seu serviço no mí­
nimo duas vezes mais depressa que os operários alemães,
é sempre xingado de “molóide” . “ Se não trabalhar mais
48 "
depressa, vou despejar você junto com o entulho!” — grita
o mestre-de-obras.
Quase todas as sextas-feiras temos de esperar algu­
mas horas além do expediente, até que tragam de fora o
dinheiro de nosso pagamento. Alguns operários parecem
saber como o dinheiro chega ali. Enquanto esperamos no
barracão, um alemão, trabalhador habitual da GBI, não
registrado, conta: “ Primeiro, Klose vai até Langenfeld,
onde eles têm conta; é de lá que vem a nossa grana” . O
colega sabe também por que não sacam o dinheiro de um
dos bancos de Colônia ou Düsseldorf: “ A conta de Lan­
genfeld está no nome de um testa-de-ferro que deposita
os cheques da WTB e de outras firmas de construção. Elas
não podem abrir conta em Düsseldorf de jeito nenhum,
porque o imposto de renda vai direto lá e bloqueia tudo” .
Portanto, temos de esperar por nosso pagamento du­
rante duas horas, evidentemente não remuneradas.
Mas a nebulosidade não encobre só as contas da em­
presa; todo um clima de conspiração contribui para escon­
der também nossa presença no canteiro de obras. É claro
que assinamos recibo, porém não temos nenhum compro­
vante de pagamento. Inclusive as fichas de controle, em
que o mestre-de-obras anota as horas trabalhadas, são re­
colhidas após o pagamento. E isso tem uma razão: na cons­
trução civil o trabalho temporário, pago por hora, é proi­
bido por lei. Para driblar a proibição, subempreiteiras co­
mo a GBI costumam emitir faturas, cobrando das cons­
trutoras “ quarenta metros quadrados de cimento” — o
que significa que devem pagar por quarenta horas de tra­
balho temporário (em muitos casos, os mestres-de-obras
dispõem de tabelas codificadas para converter as horas de
trabalho dos empregados temporários em metros quadra­
dos de cimento ou metros cúbicos de areia). Para poder
comprovar que em nosso canteiro de obras também é há­
bito esconder as fichas com os horários anotados, distraio
o mestre-de-obras num momento propício e apanho suas
anotações. Numa delas está escrito: “ WTA S.A., trinta
horas” , logo abaixo a data e sua assinatura.
49 *
Como em Palermo
Somente na construção civil estão empregados ilegalmen­
te cerca de 200 mil turcos, paquistaneses, iugoslavos e gre­
gos. Isso representa, por ano, um déficit de 10 bilhões de mar­
cos em impostos e contribuições sociais.
Os mercadores de homens beneficiam-se não raramente
de proteção política para escapar das penalidades. As leis são
muito frouxas. E o governo federal hesita em pôr fim a tais
tramóias. Os Estados recusam-se a reconhecer como um de­
lito esse tráfico ilegal. É por isso que no plano jurídico o trá­
fico de alemães e de outros estrangeiros da Comunidade Eu­
ropéia continua sendo só uma infração do regulamento.
Polícia, inspetores trabalhistas ou procuradores da re­
pública raramente conseguem agarrar os pequenos partidá­
rios da máfia da construção civil: “Mal conseguimos dar con­
ta do problema’*, queixa-se, por exemplo, o procurador-geral
de Colônia, dr. Franzheim. Atualmente, só na Renânia do
Norte-Vestfália, há 4.000 processos em andamento. Os tra­
ficantes de mão-de-obra costumam passar calote nos empre­
gados ou, por meio de pancadas e ameaças, tomam dóceis
os imigrantes “insatisfeitos com o trabalho” . Os inquéritos
— pelo menos aqueles que tramitam no Ministério Público
de Düsseldorf — referem-se até mesmo a chantagens, com
tentativas da extorsão e suspeitas de assassinato.
Mas não são apenas os empresários privados que, indi­
retamente, apelam para as locadoras de mão-de-obra. Tam­
bém nos encargos públicos as “subfirmas” entram no
négocio.
Em 1984, durante a construção do Parlamento de Düs­
seldorf, ocorreram várias rusgas: diferentes mercadores de
homens queriam fornecer a mão-de-obra.
Uma fiscalização na recém-construída agência oficial de
empregos de Munique descobriu cinqüenta operários ilegais.
A própria polícia não ignora que operários de empreiteiras
foram recrutados para as obras de ampliação do quartel da
polícia federal em Hilden. A mesma coisa ocorreu quando
da construção do novo Ministério dos Transportes, Correios
e Telecomunicações, em Bonn (Bad Godesberg).
Por ocasião da concorrência, o ministro Christian
Schwarz-Schilling absteve-se de mandar fiscalizar; assim, pelo
menos uma firma de locação ilegal teve lucros gigantescos.

50*
Se tivesse havido real interesse por parte das autoridades, o
négocio teria sido desfeito com facilidade. Os traficantes de
mão-de-obra da DIMA de Düsseldorf forneceram os operá­
rios à sexta maior empresa de construção civil da Alemanha
Ocidental, a WTB, que teve papel preponderante na constru­
ção do Ministério dos Transportes, Correios e Telecomuni­
cações. A própria DIMA é resultante da GBI, a empresa pa­
ra a qual trabalhei ilegalmente em Colônia.

Já no primeiro dia de trabalho, fazem-me compreen­


der qual é meu verdadeiro lugar. Há mais de uma semana
os banheiros dos operários estão entupidos. A poça de uri­
na chega quase à altura do tornozelo. “ Vá pegar um bal­
de, um esfregão e panos de limpeza! Quero tudo isso lim­
po e bem depressa!” Vou ao depósito e retiro o material
contra recibo. “ Basta assinar com três cruzes” , diz o res­
ponsável pelo almoxarifado, um alemão que, enfiado ali,
parece não se esforçar muito no serviço.
Os trailers onde ficam os banheiros exalam um chei­
ro horrível. Todo o encanamento está entupido. Tenho a
impressão de que este trabalho é um trote. O motivo de
tanta inundação — os canos entupidos — nunca é resol­
vido satisfatoriamente, já que esse serviço nunca é feito
por um profissional competente. Portanto, logo tudo volta
a alagar. No canteiro de obras há vários encanadores, mas
seu trabalho é muito caro. Estão ali para instalar os lu­
xuosos banheiros dos futuros proprietários.
Os mestres-de-obras e os encarregados usam banhei­
ros particulares, que são trancados a chave. Os operários
estão proibidos de entrar lá. Só as faxineiras, que os lim­
pam diariamente, têm acesso a eles. Procuro o mestre-de-
obras e digo-lhe que meu trabalho não faz sentido, por­
que primeiro deveriam mandar um encanador verificar o
problema. “Você não foi contratado para pensar, mas para
fazer o que lhe mandam. Deixe isso para os burros. Eles
pensam melhor porque têm a cabeça maior que a sua!” ,
diz sem rodeios. Muito bem! Como inúmeros outros imi­

51'
grantes, sou obrigado a fazer o que me ordenam sem pro­
testar, e ainda agradecendo por ter um emprego. Pensar
assim — agora e em situações posteriores — ajuda-me um
pouco a controlar a repugnância, a humilhação e a vergo­
nha e a transformá-las numa fúria solidária para com os
outros.
Enquanto limpo toda esta imundície com panos, es­
fregões e baldes, ouço as observações dos alemães que usam
o banheiro. Um deles, ainda jovem, diz num tom amável:
— Até que enfim arranjaram uma faxineira para lim­
par o banheiro!
Dois outros, de uns 45 anos, põem-se a conversar:
— O que fede mais que o mijo e a merda? — per­
gunta um deles.
— O trabalho! — responde o segundo.
— Não! Os turcos! — grita o primeiro, de seu
mictório.
Outro operário alemão, que está urinando, pergunta-
me qual é minha nacionalidade.
— Turco — respondo.
Ele se mostra simpático:
— Mas, claro! É bem típico. Vocês é que dão sumi-
ço na nossa merda. Nenhum trabalhador alemão aceita­
ria tal serviço.
De vez em quando, Hugo Leine, o mestre-de-obras,
vem verificar o que estou fazendo. A distância, consigo
perceber que se aproxima graças a seu radiotransmissor,
que vive chiando, estalando e emitindo outros ruídos. As­
sim, acelero o ritmo do trabalho.
— Presto, prestissimo, amigo! — estimula-me.
— Eu não é italiano — explico-lhe num tom amisto­
so. — Eu é turco.
Então ele resolve engrossar:
— Mais um bom motivo para já ter terminado o ser­
viço. Vocês, tocos, conhecem bem esse trabalho, porque
seus banheiros vivem entupidos!
Sem qualquer aviso, Hugo Leine já mandou embora
vários imigrantes que durante o expediente foram fazer
52 •
uma ligação importante na cabine telefônica situada bem
em frente ao canteiro de obras.
Nos dias seguintes, debaixo de um calor de trinta
graus, arrastamos placas de concreto até o sexto andar.
Somos mais baratos que o guindaste, deslocado para ou­
tro canteiro de obras. Leine vigia para impedir descansos
suplementares. Na semana seguinte, sou transferido para
os serviços de transporte do cimento. Minha tarefa é em­
purrar os “japoneses” — nome que dão aos enormes car­
rinhos de mão — cheios de cimento já preparado para ser
despejado nos alicerces. O carrinho quase arranca os bra­
ços da gente, e é preciso apoiar-se com toda a força para
que ele não vire. O encarregado Heinz — um dos homens
da GBI — diverte-se enchendo generosamente meu carri­
nho para em seguida assistir ao esforço que faço para man­
ter em equilíbrio o “japonês” que vai ficando mais pesa­
do. Atribuo meu cansaço ao calor. Durante o trajeto, o
carrinho de mão bate numa tábua e dá um pequeno sola­
vanco. Não consigo mais segurá-lo: ele vira e o cimento
espalha-se pelo chão. Alguns trabalhadores correm para
me ajudar a recolher o cimento antes que endureça. O
mestre-de-obras aparece e começa a gritar: “ Você aí, mal­
dito gambá! Além de não saber contar nem até três, não
olha por onde anda. Mais uma dessas e pode voltar para
a sua Anatólia e ficar por lá, brincando na areia!” Na via­
gem seguinte, o encarregado lança-me um sorriso sardô-
nico e enche o carrinho até a borda, apesar de meus pro­
testos. Já no primeiro solavanco, o “japonês” começa a
transbordar. Merda! Mesmo com todo o esforço, não con­
sigo mantê-lo equilibrado. Na primeira curva, o carrinho
quase me derruba, e, mais uma vez, toda a carga se espar­
rama nos entulhos. Alguns operários alemães põem-se a
dar vivas. Rodeiam-me, porém não me ajudam. E eu, so­
zinho com a pá, me esfalfo para separar o cimento dos
entulhos. Enquanto trabalho ferozmente, vigio para ver
se Hugo Leine se aproxima. Por sorte, o mestre-de-obras
enfiou-se em outro lugar. Um dos trabalhadores alemães
avisa-me que o pneu de meu “japonês” está furado. Há

53"
um prego cravado nele. Eis por que eu não conseguia
equilibrá-lo! Ao longe, o encarregado ri sem parar. E,
quando passo novamente a seu lado, diz-me num tom de
triunfo: “Quem sabe assim vocês acabam entendendo que
não têm nada a fazer aqui!”
Mais tarde, supreendendo-o no banheiro rabiscando
a parede com uma caneta hidrográfica: “Morte a todos
os tur... ” Tento pedir explicações, porém ele me cospe
nos pés e sai, deixando incompleta sua obra.
Poucos dias depois, ao remover com a pá o cascalho
do quinto andar, quase caí dentro de um poço para insta­
lações elétricas coberto por uma fina placa de isopor. Fe­
lizmente só escorreguei e enfiei uma perna dentro do bu­
raco. Sofri uma leve luxação, e um tornozelo ficou esfo­
lado. Poderia ter quebrado o pescoço, pois o poço tem oito
metros de profundidade. O encarregado Heinz surgiu co­
mo por acaso e disse: “ Você teve uma sorte danada! Ima­
gine só se tivesse caído lá dentro! Mais uma vaga por aqui!'’
Certa vez, roubaram do armário de um colega ale­
mão sua carteira com 100 marcos. Evidentemente, logo
suspeitaram de mim.
— Olhe aqui! Durante o trabalho você sumiu por uns
quinze minutos. Aonde é que foi?
E outro alemão complementou:
— É isso aí! Mande esse cara abrir a carteira!
Um terceiro operário alemão, Alfons, às vezes cha­
mado de Alfi, tomou meu partido:
— Mesmo que Ali tenha 100 marcos na carteira, is­
so não prova nada. Qualquer um de nós poderia ter rou­
bado o dinheiro. Ou até algum estranho. Por que logo ele?
É ainda Alfi quem me estimula a aprender melhor a
lingua alemã, dando-me um tapinha no ombro. “Você fala
melhor do que.pensa” , diz ele. “É só se esforçar mais um
pouco...”
Alfi ficou desempregado durante vários anos porque
a agência oficial de empregos de Düsseldorf lhe arranjara
uma colocação na firma Bastuba. Ele trabalhava o dia in­
teiro dentro da água fria, limpando os canais e suas mar-

54’
,
Ali operário clandestino da construção civil

gens, por ordem do Estado da Renânia do Norte-Vestfália.


Só algum tempo depois percebeu que a Bastuba não o re­
gistrara e, portanto, ele trabalhava ali ilegalmente, na mes­
ma situação de seus colegas iugoslavos. Quando levantou
essa questão junto ao chefe, foi posto na rua. Tempos de­
pois um amigo deu-lhe o endereço da GBI.

55'
Uma vez perguntei a Klose, chefe da filial de Colô­
nia, o que significa GBI. Foi esta a explicação que me deu:
“É a sigla de Giraffe (girafa), Bar (urso) e Igel (ouriço)” 1.
Desse modo, continua ludibriando todo mundo, e a maior
parte dos operários acredita no que ele diz. A empresa já
é tão estranha e seu nome muda com tanta freqüência que
é bem possível acreditar em semelhante explicação.
Temos um novo colega alemão: Fritz, um loiro de vin­
te anos que se alistou nas Forças Armadas e aguarda sua
convocação. Para ele esse emprego não passa de uma so­
lução provisória. Fritz introduz no canteiro de obras uma
espécie de jogo a dinheiro, que passamos a praticar nos
porões da construção durante o horário de descanso. O
jogo é o seguinte: quem conseguir atirar uma moeda o mais
perto possível da parede sem tocá-la ganha as moedas dos
outros participantes. Estou com sorte e venço sempre. Fritz
se irrita: “ Vocês, turcos, só pensam em embolsar a nossa
grana. Só visam os próprios interesses e, assim que vira­
mos as costas, tentam nos passar a perna” .
Em outra ocasião ele me diz: “ Nós, alemães, é que
somos inteligentes. Vocês, não! Vocês se reproduzem co­
mo coelhos só para viver à nossa custa!”
E, voltando-se para os outros, acrescenta: “ De vez
em quando eles saem da toca” .
Devido à imprudência dos telhadores, a armação do
telhado se incendeia. Logo chegam várias viaturas do corpo
de bombeiros e da polícia. Com o telhado ainda fumegante,
sou mandado para lá, junto com outros operários, para
remover os escombros. A sola de meu tênis começa a der­
reter tão logo piso as vigas que estalam por causa do fogo.
Perto de nós, um grupo de bombeiros e policiais nos
observa enquanto jogamos no chão os objetos ainda
fumegantes. Sem qualquer roupa de proteção, ali esta­
mos nós, debatendo-nos sob seus olhos. Tudo absoluta­
mente irregular. Não consigo nem imaginar se têm conhe­

1 GBI é, na verdade, a sigla de Gesellschaft für Bauausfuhrungen und Indus-


triemontage (Sociedade de Construção e Montagem Industrial) (N. do E.).

56"
cimento ou, pelo menos, uma vaga idéia disso. Nada di­
zem. Também lucram conosco. Fazemos o trabalho sujo
e perigoso.
Hinrich, um colega alemão de vinte anos, casado, pai
de um filho, inquilino com o aluguel atrasado, já há al­
guns dias anda de lá para cá com o rosto inchado. Está
com febre alta e vários dentes supurados. É pressionado
a não procurar um dentista. Até que, não agüentando mais,
pede a Klose, o homem da GBI de Colônia, uma folha de
consulta1. Hinrich ignorava que não havia sido registra­
do e, portanto, trabalha ilegalmente. Fica furioso:
— Mas isso é proibido! Vou denunciar todos vocês!
Resposta de IQose:
— Suma daqui! Não quero mais ver a sua cara! Posso
processar você por calúnia, se continuar afirmando que
trabalha aqui ilegalmente. A culpa é sua. Foi você que de­
morou para nos entregar os documentos, e por isso não
pudemos registrá-lo. Você mesmo cometeu o delito.
Em face de tudo isso, Hinrich não se atreve a dar parte
à polícia. No dia seguinte, uma ambulância leva-o para
o hospital. Septicemia. Risco de vida.
Numa sexta-feira, após o término do expediente —
havíamos acabado de trocar de roupa —, Hugo Leine apa­
rece e diz: “ O serviço mais pesado já foi feito. Não preci­
samos mais de vocês” .
E, assim, depois de seis semanas, termina minha pas­
sagem pelo canteiro de obras. Alguns operários da equipe
da GBI são enviados para outra construção em Bonn/Bad
Godesberg. Sempre em situação ilegal, são contratados pela
mesma empresa, agora com o nome alterado: DIMA. O
ministro dos Transportes, Correios e Telecomunicações
manda construir um novo ministério. Infelizmente o “ tur­
co” Ali não está entre os operários.

1 Na Alemanha Ocidental, o empregado recebe do empregador uma folha de


consulta, que lhe dá direito a tratamento médico e remédios gratuitos (N. do T.).

57 ‘
Um empresário moderno
Alfred Keitel, cinqüenta anos, natural de Düsseldorf, foi
um dos empresários que, nos últimos anos, levantou uma for­
tuna quase incalculável. Em 1971, junto com um sócio, fun­
dou a Keitel & Frich S. A. e rapidamente se lançou como in­
termediário de mão-de-obra da indústria da construção ci­
vil. Desde 1982 esse ramo de atividade é proibido por lei. Pou­
co antes, Keitel adquiriu a Sociedade de Construção e Mon­
tagem Industrial (ou GBI) e começou a se expandir.
Quando fui trabalhar para a GBI em Colônia, no verão
de 1984, fazia muito tempo que os fiscais do imposto de ren­
da estavam atrás de Keitel. Contudo, os negócios ilegais con­
tinuaram correndo às mil maravilhas. As investigações pro­
varam que Keitel havia desviado mais de 11 milhões de mar­
cos entre impostos sobre transações e salários, além de mi­
lhões e milhões em contribuições sociais que foram omitidas.
Decretaram a prisão preventiva de Keitel, que, no final de
1984, foi condenado a quatro anos e meio. Mas conseguiu
se safar, sem grandes prejuízos, porque apresentou um ates­
tado médico de que era vítima de “paixão patológica pelo
jogo” . Porém, o grande jogo, o que praticava com seus qui­
nhentos empregados, segundo informações dos fiscais do im­
posto de renda, não foi mencionado.
E hoje em dia Keitel continua a assumir francamente o
que faz: “Não tenham dúvida, conheço muito bem esse ra­
mo. Todas as indústrias da construção civil, é .claro, todas
as manhas necessárias... Só que, ao fazer negócios com elas,
tomamos cuidado para não nos comprometer” .
No entanto prossegue: “ Os grandes projetos, as gran­
des obras não iriam adiante sem as empreiteiras. Os Centros
de Estudos para Grandes Obras é que se encarregam dessas
coisas, e todos trabalham com as empreiteiras. Não se cons­
truiria nada, em grande escala, sem as empreiteiras” .
Eis o que Keitel fala de si mesmo: “ Se eu não tivesse si­
do traído, meus negócios continuariam a pleno vapor! Nin­
guém conhece todos os truques desse setor, nem os fiscais nem
a previdência social — exceto as pessoas que estão diretamente
envolvidas. Esta é a vantagem quando se é processado: nin­
guém pode determinar como as diferentes empresas se inter­
ligam. Os contratos com as grandes empresas são apenas for­
mais. Faço um acordo com elas — salários por hora sem adi-

58
cionais —, mas, na prática, assinamos outro contrato, já que
os salários por hora são proibidos. Quem vai controlar? No
tribunal se poderia dizer: 'Provem o contrário!’
“ Quem está de fora nem sequer imagina o que aconte­
ce. Aliás, não teriam me pegado, se meu sócio, que também
participou de tudo, não tivesse enlouquecido. Já fazia muito
tempo que a polícia e o fisco andavam atrás de mim. Mas
nunca haviam conseguido” .
Keitel também fornece informações a respeito de suas
margens de lucro: “ Os operários recebem um bom dinheiro,
ali, na mão. Bem, nem sempre é um bom dinheiro, mas está
na mão!
“ As firmas de construção civil costumam pagar de 22
a 33 marcos por hora de trabalho. O lucro dos empreiteiros
vai depender de quanto eles pagam para seus operários. De
quantos trabalhadores eles registram, se todos ou só alguns.
“ Hoje em dia, o salário bruto de um operário especiali­
zado está por volta de 16 marcos. Quanto aos imigrantes...
bem, são sempre explorados, trabalham por qualquer ninha­
ria. Mas os alemães não. Os alemães conhecem seus direitos,
pelo menos em parte. Já os imigrantes... 10,8 marcos... tan­
to faz” .
Fazendo um simples cálculo, temos o seguinte:
Para cada hora de trabalho, Keitel embolsa a quantia
de 14 a 25 marcos. Ora, normalmente um operário da cons­
trução civil trabalha dez horas por dia o que perfaz a soma
de 140 a 250 marcos por dia e por trabalhador. Um total de
quinhentos operários resulta em algo entre 70 mil e 125 mil
marcos diariamente. Desse dinheiro Keitel deduz um míni­
mo para despesas com transporte e contabilidade, encargos
fiscais e contribuições sociais. Ou não.

59
A conversão
(ou: Cortar cabeças sem bênção)

(...) fuiforasteiro, e me abrigastes (...). Em verdade vos digo, quan­


tas vezes fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, a
mim o fizestes.
(Mateus 25, 35 e 40).

Sempre na pele de Ali, tento a sorte junto à Igreja


Católica, pois, como muçulmano, ouvi dizer que também
Jesus foi expulso de sua terra, conviveu com estrangeiros
e condenados de sua época e expôs-se aos ataques e às per­
seguições mais injuriosas. Mesmo assim, não procuro a
Igreja na condição de suplicante — o que seria presumí­
vel. Não vou pedir asilo nem ajuda material. Não tenho
a intenção de exigir demais do funcionário do Senhor nem
de levá-lo a cair em tentação. Só quero o batismo! Por quê?
a) Porque desejo ser membro da Igreja, não por opor­
tunismo, mas porque depois de muito tempo familiarizei-
me com a vida e os ensinamentos de Cristo e achei-os con­
vincentes.
b) Porque minha namorada — alemã e católica — só
pode casar comigo depois que eu pertencer à comunidade
dos fiéis, como os pais dela exigem.
c) Porque espero escapar da ameaça de expulsão imi­
nente tomando-me católico.
(Ficarão no anonimato os padres e dignitários católi­
cos. As conversas com os membros da Igreja são au­
tênticas.)
Visto-me como operário, com uma roupa miserável.
Na sacola a tiracolo, levo uma garrafa térmica.
Primeira visita: residência paroquial num bairro ele­
gante, com jardins que lembram um parque. Um padre

60'
do escalão superior, com cerca de sessenta anos, abre li­
geiramente a pesada porta de carvalho, ornamentada com
ferro forjado, e olha para mim com muita reserva.
— Não tenho nada para dar. Procure a assistência
social. — Percebe minha perplexidade (eu não contava com
isso) e, sem me dar tempo para expor meu pedido, expli­
ca claramente:' — Muitas pessoas vêm até aqui pedir es­
molas, mas não dou. É uma questão de princípio! Esta
é uma residência paroquial e não...
Interrompo-o:
— Eu não quer dinheiro, só batismo.
Ele abre um pouco mais a porta e examina-me com
um olhar crítico e curioso.
— Ah, bom! — exclama. — É que me aparecem tan­
tos malandros que querem viver à custa dos outros... Mas
onde o senhor mora? Que idade tem a criança? Quando
será o batismo?
Digo-lhe meu verdadeiro endereço e, como se trata
de uma rua elegante, onde Ali, segundo sua aparência, mal
poderia pagar uma semana de aluguel, acrescento:
— Eu mora lá em porão. Batismo não é para crian­
ça. É para mim. Eu é turco, muçulmano. Mas agora eu
quer batismo, porque Cristo é melhor. Mas depressa,
porque...
Ele me fita, espantado e incrédulo, como se, ao invés
do sacramento do batismo, eu tivesse pedido minha cir­
cuncisão. Volta a fechar a porta, deixando apenas uma
fresta minúscula, e diz:
— Um momento! Vamos com calma, com muita cal­
ma... A coisa não é tão simples. Em primeiro lugar, algu­
mas condições precisam ser preenchidas... — E, com um
olhar de desprezo para minha roupa esfarrapada, acres­
centa: — Além do mais, não aceitamos qualquer um em
nossa paróquia.
Chamo-lhe a atenção para a urgência de meu pedido
porque corro o risco de ser expulso do país a qualquer mo­
mento. Mas isso não o comove.
— Calma, vamos com calma. Não tenha tanta pres­
61 4
sa! Antes de mais nada, preciso discutir o assunto com o
conselho paroquial. Enquanto isso, vá providenciando um
atestado de residência, assinado por uma autoridade po­
licial, como é de praxe.
Atrevo-me a responder:
— Mas Cristo também sem residência fixa, teto!
Como se ouvisse uma blasfêmia, o padre, sem qual­
quer explicação, bate a porta de um só golpe. Toco a cam­
painha novamente para convencê-lo da seriedade de mi­
nha determinação em tomar-me membro da valorosa co­
munidade católica. Ele abre a porta bruscamente e põe-se
a repreender-me:
— Isto aqui não é albergue noturno. Se não me dei­
xar em paz, vou chamar a policia!
Pela última vez tento lembrá-lo de sua consciência cris­
tã e de seu dever profissional. Caio de joelhos e, com as
mãos postas, suplico:
— Em nome Cristo, batismo!
Como resposta, ele bate a porta com violência.
Eu não contava com isso. É claro que me enganei de
endereço. Há ovelhas negras por toda parte. E aqui, nes­
te subúrbio residencial, onde os ricos desejam ficar entre
os ricos, eu como Ali obviamente não teria vez.
Não desisto. Vou procurar outro padre, na paróquia
vizinha, onde as casas não se escondem atrás de muros al­
tos nem possuem enormes jardins. Em frente de cada ca­
sa, há um pequeno retângulo de terra, um pouco maior
que uma sala de estar, a que todos têm acesso. Aqui vive
a classe média e inclusive operários, nos vários conjuntos
residenciais.
Inseguro por causa da primeira experiência hostil e
querendo me prevenir, peço a AbduUah, um de meus co­
legas de trabalho, que me acompanhe para servir de teste­
munha e, eventualmente, de protetor.
São cinco horas da tarde. A igreja está deserta. Os si­
nos tocam mecanicamente, chamando os fiéis para a missa.
Mas ninguém atende ao chamado, talvez porque faz muito
frio. A igreja não tem aquecimento, e em seu interior o frio

62 *
é tanto que há uma camada de gelo na pia de água benta.
Com passos vagarosos e um pouco embaraçados, Abdul-
lah e eu começamos a caminhar na direção do altar, o que
desperta a atenção do padre, abandonado e sozinho.
Certamente ele já havia se preparado para o fim dos
trabalhos do dia, pois, assim que nos vê, tenta se esguei­
rar para a sacristia. Porém, sou mais rápido.
— Desculpa — digo, barrando-lhe o caminho. — Só
uma pergunta. Eu é turco e quer batizar, virar cristão.
Possível?
O padre nos olha espantado.
— Não, não é possível! Não dá! — responde baixi­
nho, já sem nos encarar, erguendo o olhar para o céu, co­
mo se seu superior hierárquico pudesse abençoá-lo por essa
atitude tão pouco cristã.
— Por que não? — quero saber.
— Não é possível. Isso demanda um ensinamento de
alguns anos — murmura.
— Mas eu conhece bem livro de Cristo, eu sempre lê...
— Não, não posso fazer isso. Sem a autorização do
cardeal, não posso. De jeito nenhum...
— Mas pastor faz batismo, não?
— Não, de jeito nenhum!
— Eles não permite?
— Não, não e não! Ser batizado significa oficialmente
ser admitido na Igreja Católica, não...
— Ah! Senhor não é padre? — provoco-o.
É óbvio que ele não fica contente com a pergunta. Está
ferido em sua vaidade.
— Mas claaaaaro que sou!
— Senhor é chefe desta igreja? — insisto.
— Sim! — responde energicamente.
— Então pode fazer batismo! — insisto.
— Só posso batizar crianças. No caso de um adulto
preciso da autorização do arcebispo de Colônia. Além dis­
so, há um curso de ensinamento religioso de no mínimo...
no mínimo... — Hesita. Parece compreender que não sou
tão ignorante. — No mínimo um ano.
63^
— Tanto tempo? Um ano?...
Minha pergunta inquieta e angustiada provoca-lhe no­
vo impulso (não sem satisfação) de se desembaraçar de
mim:
— Às vezes pode levar mais tempo ainda. É um pro­
cesso vagaroso, gradual...
Aponto para a pia batismal, querendo demonstrar-
lhe meu conhecimento do assunto.
— E depois batismo. Molha corpo todo ou só cabeça?
A seus olhos sou provavelmente o último dos sel­
vagens.
— Não — responde lacônico, fingindo não ter ouvi­
do minha observação sacrílega.
— Mas quem sabe chefe, arcebispo, pode fazer al­
guma coisa.
' O padre não quer que eu tenha nènhuma ilusão:
— É pouco provável! Bem pçuco provável!
Continuo sem entender nada. Tentando encontrar
uma explicação para sua recusa, pergunto-lhe:
— É porque muita gente quer entrar na igreja?
Não parece ser o caso.
— Não, não é isso, mas...
O “ mas” fica suspenso no frio glacial. Não,há ne­
nhuma outra explicação. Já que no campo transcenden­
tal os argumentos não foram satisfatórios, tento levá-lo
para o lado prático. Indico-lhe com o dedo a grossa ca­
mada de gelo na pia de água benta:
— Joga poüco descongelante, e gente logo faz sinal-
de-cruz.
Essa proposta construtiva também não o impressio­
na, e ele sai, abandonando-nos. Porém sou mais rápido
e chego antes à residência paroquial, do lado da igreja.
Toco a campainha. Como numa farmácia de plantão, abre-
se uma estreita portinhola. Uma criada velha espia pela
fresta. O padre, que acaba de chegar, ao nos ver ali per­
cebe que não ficará livre tão facilmente, tamanha é mi­
nha determinação em receber o sacramento do batismo.
Deixa-nos entrar em seu escritório paroquial.
64 »
— Para que o senhor não me perturbe mais, vou lhe
dar um endereço aonde deve ir. Mas, como já lhe disse,
não se iluda. Tudo tem seu tempo!
Com passos lentos, refugia-se atrás de uma imponente
escrivaninha e põe-se a folhear cerimoniosamente um anuá­
rio da igreja. Com uns 55 anos, aparência saudável e tran­
qüila, não ostenta aquele ar dè desprezo e arrogância de
seu colega da paróquia vizinha. Mais benevolente e sosse­
gado, possui algo da nulidade do funcionário que passa
a vida inteira atrás de um guichê, atendendo ao público,
mesmo que não tenha mais selos para vender, ninguém se
interesse por timbres comemorativos e a tabuleta deixada
por ele — Fechado PROVISORIAMENTE — ainda sirva
para prevenir os últimos fregueses extraviados.
Não quero que ele se furte à responsabilidade tão fa­
cilmente, até porque, a seus olhos, minha exigência pare­
ce uma proposta imoral.
— Se eu era criança, batismo mais rápido? — insisto.
— Sim, seria mais rápido. Se o senhor fosse um be­
bê, no colo da mãe, aí, sim! Mesmo nesse caso, não seria
tão rápido. Deveriam assegurar que a criança receberia uma
educação católica...
EU: Hoje muita criança batizada, muito pai não- ca­
tólico de verdade!
P adre (franzindo o cenho, severo): Tem razão. Mas
isso não acontece conosco.
EU: Eu tem muito colega batizado, mas não católico
de verdade. Colega ri de mim porque eu acredita em Cris­
to e fala de livro de Cristo. Más todo mundo tem Deus,
não é?
P adre (sem se afastar do assunto e com um tom bas­
tante formal): Para batizar adultos preciso da autoriza­
ção do arcebispo de Colônia, o cardeal Hõffner.
EU: Ele é boa pessoa?
PADRE: É ele quem autoriza e diz se o ensinamento
gradual... enfim, se o ensinamento deverá durar no míni­
mo um ano...
EU (contente): Então ele também faz batismo?

65 r
P adre (categórico): Não!
EU: Mas eu ouve dizer qualquer padre pode fazer
batismo...
P adre (folheando sem sucesso o livro, à procura do
endereço): Em princípio, sim, mas...
EU: E eu tem mais um problema. Eu quer casar, mas
pais de moça não deixa ela casar com muçulmano... E se
eu casa com ela, eu pode continuar aqui; senão, eu preci­
sa ir embora, expulso para Turquia.
ABDULLAH: (vindo em meu socorro para explicar o
problema deforma convincente): Ele vai parar na prisão
se voltar para a Turquia!
P adre (fingindo nâo ter ouvido essa observação in­
cômoda e3sereno, continuando afolhear seu anuário): Mas
onde é que está o endereço do Felicitas?
ABDULLAH: É por isso que ele precisa ser batizado
bem depressa.
EU: Hoje mesmo, era bom! Ou amanhã, depois de
trabalho.
PADRE: Está fora de questão. Não é possível!
EU: Eu pode pagar alguma coisa.
PADRE: Não. É de graça. O batismo não custa na­
da. Todos os sacramentos são gratuitos.
Eu: Mas se eu dá um pouco dinheiro para criança pa-
gã, coisa anda mais rápido?
PADRE: Não e não! Não há nada a fazer, absoluta­
mente nada!
ABDULLAH: É que ele não quer prestar serviço
militar.
EU: Eu não quer dar tiro em ninguém. Eu não quer
matar gente. Turquia agora igualzinha Alemanha de an­
tigamente, com Hitler. Turquia é ditadura...
PADRE: Este assunto não tem nada a ver com o ba­
tismo. São motivos alheios às convicções religiosas.
Eu: E quando gente é batizado tem grande festa com
paróquia, e coisa assim, não?
P adre (tentando desiludir-me): Não.

66 v
EU: Não?! Eu achava que tinha grande festa, dança,
tudo.
P adrE: Não, de jeito nenhum. Não. Pelo menos não
aqui, conosco.
Eu: Eu já leu Bíblia trás para frente, frente para trás...
P adre : É o que todos dizem. Acham que já sabem
tudo...
Eu: Senhor, faz pergunta. Qualquer pergunta!
PADRE: Pergunta? Para quê?
EU: Para ver se eu...
P adre : Não é esse o problema. O problema são as
prescrições segundo as quais a Igreja admite pessoas adul­
tas. E que perguntas eu deveria fazer?
EU: Sobre Cristo...
P adre (como se eu tivesse dito um disparate): Ah!
Sobre Cristo?
EU: Sobre vida dele, coisa assim...
P adre (como se Cristo nunca tivesse vivido): Ah, a
vida dele? Sei. Bem, vejamos... Espere um pouco... (En­
tão, à queima-roupa): Como foi fundada a Igreja?
Eu (sem precisar pensar muito): Cristo fala assim pa­
ra Pedro: “ Faz Igreja por mim. Agora!”
Padre: Hum... Hum... Sim, podemos dizer que sim...
EU: E agora pergunta mais difícil!
P adre : Não é preciso. Isso não leva a nada, só lhe
cria falsas esperanças.
Eu: Por favor! Uma só mais!
P adre (com grande sacrifício): Está bem... Por que
hoje em dia existem tantas igrejas que invocam o nome
de Cristo?
EU: Ah, eu sabe! Por causa Lutero. Ele fez revolu­
ção. Ele não acreditava em papa. Por isso tem muita igre­
ja também boa. Elas quer Cristo vive, mas não sabe mui­
ta coisa; Lutero quer fazer igreja própria, porque outra
não era bem dirigida, perde pastores...
P adre (surpreso): Sim, sim, já está bom...
Eu: Eu leu tudo. Eu leu também livro que vem com
Bíblia. Cate... Cate... Como chama?
67'
P adre: Catecismo. Está certo. Acredito que o senhor
conheça bem a Bíblia, sem problemas. Mas isto não serve
para nada neste momento. Preciso da autorização do ar­
cebispo para batizar um adulto.
EU: Mas, se agora... se agora eu estava muito doen­
te, meu coração não batia mais, e eu pedia: “ Por favor,
batismo” ?
P adre : Em caso de morte, é claro que sim. Quero
dizer, se realmente há risco de vida...
EU: E se eu tinha muita dor agora? Assim, de repen­
te? Não podia fazer batismo? Coração não anda bem.
Verdade!
P adre : Sei, sei. Seu coração não anda bem, não é?
EU: É! Não bate direito. Quando eu trabalha pesa­
do, eu vê tudo preto em frente. Uma vez eu foi parar em
hospital. Seção intensa terapia. É assim que gente diz?
P a d re (corrigindo): Unidade de terapia intensiva.
Ainda assim, não vejo motivo para abreviar o tempo de
sua formação religiosa. Só através do curso é que sabere­
mos se o senhor realmente se firmou na fé cristã, se real­
mente faz parte dela.
EU: Mas isso não adianta nada se eu morre antes. Se
eu não casa com noiva alemã, eles me manda voltar para
Turquia. E, quem sabe, eu até morre sem batismo. E daí
eu não fica com Cristo, em céu.
P a d re (suspirando): Eu não disse isso. Claro que po­
de haver exceções.
EU: (contente): Então eu vai ter batismo logo?
P a d r e (desesperado com minha lentidão de raciocí­
nio): Não, meu Deus! Não! Ainda que o senhor morra sem
ser batizado, isto não significa necessariamente que será
amaldiçoado por toda a eternidade. Em determinadas cir­
cunstâncias podemos contar com uma espécie de batismo
inconsciente. E Cristo, em sua bondade incomensurável,
também dá oportunidade a pagãos e adeptos de outras re­
ligiões de viverem em seu espírito.
Eu: Mas isso não muito seguro. Melhor ter logo ba­
tismo. Vem! Coração nada bom.

68 *
PADRE (indiferente): Já sei, mas a coisa não funcio­
na assim. Há alguns empecilhos.
EU: Mas principal é que eu já vai ser católico.
P adre (desesperado): Sim, pode-se dizer que sim.
Mas um batismo sem certificado não vale nada. Mais uma
vez, nãol Não vou batizá-lo porque sei que o senhor está
fingindo.
EU: Mas é verdade! Senhor pode chamar médico!
P adre : Não é preciso. Além disso, se eu o batizas­
se, estaria sujeito a medida disciplinar.
EU: Com Maomé coisa é mais fácil. Quem quer po­
de logo ser maometano.
P adre (não sem algum desprezo): É... Maomé faci­
litou as coisas para vocês.
EU: Qualquer modo, Maomé mais tolerante. (O pa­
dre finge não ter ouvido a censura e se cala.) Mas, antiga­
mente, missionário chegou com conquistador em país es­
trangeiro e foi logo dizendo: “Você, você e você... agora
tudo católico” . Mesmo quem não queria. E por que hoje
leva tanto tempo?
PADRE: É verdade, mas que católicos deveriam ser!
Naquela época, as coisas eram assim... como posso di­
zer?... feitas muito mecanicamente. Carlos Magno, por
exemplo, dizia para os saxões: “ Batismo ou a cabeça ro­
la!” (Ri com prazer.)
EU: Assim... zás!
PADRE: Mas isso aconteceu no ano 800 depois de
Cristo.
EU: É, mas com índio também zás! E ínclio nem sa­
bia por quê.
PADRE: Mas viu no que resultou tudo isso? Eles pas­
saram a ter um ódio mortal de todos os cristãos.
Eu: E índio fez mesma coisa (gesto de cortar cabeça)
com cristão?
PADRE: Mas claaaaaro!
EU: E papa abençoou?
PADRE: Abençoou? Que bênção? Ninguém precisa de
bênção para cortar cabeças! (A expressão de seu rosto, até
69 <
então bondosa, dá lugar a um sorriso irônico, infantil, in-
quisitorial.)
Eu: Mas papa falou “tudo bem” ?
PADRE: Não sei qual era a atitude dos papas naque­
la época. Eles não deveriam saber o que os missionários
faziam lá na América. (Lembrando-se do propósito de mi­
nha visita, muda de assunto): Quem quer expulsá-lo da
Alemanha?
EU: Policia de estrangeiro.
P adre: (bastante impressionado): Ah, a polida de es­
trangeiros!
EU: E se gente casa com alemã, eles entra no quarto
para ver se gente dorme junto.
Padre: Aqui em nossa escola temos muitos turcos. Eles
sempre participaram de minhas aulas de religião, mas não
tinham grande interesse... nem sabiam o que é ser católico.
EU: E agora que eles quer batismo?
P adre (horrorizado): Pelo contrário! Nem um úni­
co sequer...
EU: E eu? Eu vai ter que aprender muita coisa? Re­
za, hino?
PADRE: O senhor tem que aprender é internamente,
com a alma e não externamente. Internamente, entendeu?
Começo a rezar o Pai-Nosso. Quando chego ao fim
— “ livrai-nos de todo mal” — ele me interrompe e volta
a me humilhar:
— Como todo muçulmano, o senhor tem o costume
de ficar repetindo as orações sem ao menos entendê-las,
igual às crianças. Bem, mas agora preciso fechar a igreja.
— Levanta-se, disposto a se livrar de mim, e põe em mi­
nha mão um pedaço de papel: — Aí está o endereço do
Centro de Orientação para a Fé, F elicitas . Eles decidi­
rão o que fazer.

O responsável pelo Centro de Orientação para a Fé,


F elicitas, é um padre magro, alto, de certa idade. Tem
os modos elegantes e ligeiramente distanciados de um aris­

.70 '
tocrata. Lembra-me um pouco o “ Grande Inquisidor” de
El Greco.
Esta instituição da Igreja Católica, destinada àque­
les que desejam se converter, não me parece muito freqüen­
tada. Sou a única pessoa na sala de espera e me dou conta
dos imensos escritórios vazios que impressionam por seus
móveis antigos; nada que sugira um local de trabalho.
Vestido com minha surrada roupa de trabalho, sinto-
me um pouco deslocado e miserável neste lugar. Depois
de relatar meu caso de forma convincente, mas um pouco
desesperada, apelo ao padre responsável pela instituição
para que tome uma decisão rápida, não burocrática, e le­
ve em conta a urgência da situação.
Eu: Por favor, por isso eu precisa batismo depressa.
P a d r e (não levando a sério meu pedido, reage um
pouco ironicamente): E quanto tempo acha que isso pode
levar? Uma hora, por exemplo?
Eu (alegrando-me): Pode? Muito obrigado! Se leva
mais de uma semana, eu vai para a cadeia, lá em Turquia.
Quando é batismo?
P a d re (lacônico eformal): Sou um especialista, mas
não posso dizer.
Eu*. Então senhor pode fazer pergunta. Eu já leu tu­
do que Cristo falou. Eu acha tudo muito bom.
P a d re (sem se impressionar): Quem o mandou aqui?
Eu (dizendo o nome do padre que, para se ver livre
de mim, me deu este endereço): E ele disse que não podia
fazer batismo, mas que aqui pode e eu também ganha cer­
tificado.
PADRE: Há quanto tempo o senhor está na
Alemanha?
EU: Dez anos. E eu quer continuar aqui. Porque eu
é curdo e lá em Turquia eu vai para cadeia. Eu fez traba­
lho político contra a ditadura.
PADRE: Se o senhor deseja permanecer na Alemanha,
não precisa voltar para a Turquia.
EU: Mas eu vai precisar ir, porque eu não tem traba­
lho, e visto de permanência é só para mais três meses. E

71*
eu também acha Cristo melhor que Maomé, Maomé proíbe
muita coisa. Cristo está do lado de perseguido.
P a d re (parece ter outra idéia sobre Cristo): Sei. E
o senhor conhece outros cristãos, além de sua noiva?
EU: Sim. Colegas de trabalho, tudo batizado. Só que
eles sempre dá risada quando eu fala de Cristo. Eles fica
lendo Bild em hora de descanso. Mas eu não, eu fica len­
do Bíblia.
PADRE (ignorando a realidade): Tudo vai depender
dos bons contatos com outros cristãos alemães. Aqui não
há propriamente uma aprendizagem, mas um comporta­
mento. Importa mais a vida que o estudo.
EU: Sim, eu entende. Eu quer viver e me comportar.
E o que eu precisa fazer para me aceitar?
PADRE: Viver com a Igreja.
EU: Fazer... quê?!
PADRE: Ir à igreja. ■
Eu (com orgulho): Mas eu vai. Eu sempre vai domin­
go. (Para que ele acredite em mimt digo-lhe o nome da
paróquia e da igreja.)
PADRE: Sei, sei.
EU: Verdade! E eu também sabe rezar. E canta bem.
PADRE: E quantas vezes o senhor costuma ir à igreja?
EU: Uma vez, domingo.
PADRE: E nestes últimos dois anos, há quanto tem­
po o senhor tem ido?
EU: Quatro meses, todo domingo.
P a d re (calculando): Quatro vezes quatro... de­
zesseis.
EU: Mas antes também. É que às yezes eu precisa tra­
balhar fim de semana. Eu acha bonita missa. E Cristo é
amigo de verdade.
P a d re (que parece ter uma relação um pouco menos
amigável e mais distante com seu Senhor): Mas é difícil
acreditar em Cristo.
Eu (profundamente convencido): Nãããão!
P a d re (incrédulo): Não...?
EU: Cristo mostrou e mostra como gente deve viver,
72"
e não só dentro de livro, mas por ele mesmo. Ele viveu
para nós. Mas senhor pode fazer pergunta, ver se está
certo...
PADRE: Isto aqui não é escola. Vamos conhecendo
os candidatos através dos encontros e de suas próprias vi­
das. (Em tom ligeiramente repreensivo): Se o senhor ti­
vesse vindo há dez anos, tudo estaria solucionado agora.
EU: Mas senhor não faz pergunta para ver se eu
sabe...
PADRE: O problema não é a aprendizagem. Não se
pode apressar o crescimento de uma planta com adubo.
Tudo tem seu tempo.
EU: Mas quando primeiro cristão chegou Novo Mun­
do, foi logo batizando tudo, mesmo quem não queria.
PADRE: É verdade, mas a Igreja tinha uma outra for­
ça e outra inspiração. Hoje levamos em conta o contato
com outros cristãos.
EU: Gente não tem muito contato porque alemão não
quer viver com turco.
PADRE: São prescrições do bispo. Todos devemos nos
submeter à mesma disciplina.
Eu: (numa última tentativa desesperada de conven­
cer o padre a não agir de forma burocrática): Mas então
eu não vai ter certificado. E polícia de estrangeiro me ex­
pulsar, e eu precisa voltar para Turquia, vai para prisão,
e quem sabe eles me tortura...
PADRE: Não posso ser pressionado a batizá-lo por
causa de sua situação política desesperadora. Seria uma
irresponsabilidade. Nenhum bispo responderia por isso.
EU: E se eu pergunta para bispo?
PADRE: O senhor não pode procurar o bispo.
EU: Mas ele também mora aqui!
PADRE: Mas o senhor não pode procurar o bispo!
EU: E se eu telefona e pergunta direto para ele?
PADRE (em tom de desprezo): Certamente ele não re­
ceberá alguém como o senhor. Ele não fica em casa, ente-
diado, esperando que lhe telefonem. O bispo é o senhor
supremo de mais de um milhão de católicos nesta dioce­

•73'
se. Sua agenda é tão cheia quanto a de um primeiro-
ministro. Os dois, aliás, estão no mesmo nível.
EU: Mas bispo também faz batismo, se ele quer.
P a d re (irritado): É claro que o bispo pode celebrar
batizados a qualquer momento.
EU: E se eu fala com bispo quando ele dá uma volta?
PADRE: Impossível! O senhor pensa que pode sim­
plesmente ir agarrando o bispo durante seu passeio? Ele
está sempre cercado de policiais.
Eu: Mas, então, senhor faz pergunta! Para ver se eu
entende bastante de Cristo...
P a d re (depois de suspirar e refletir longamente): Je­
sus é Deus?
EU: Ele foi homem e Deus, e junto também com Es­
pírito Santo. Uma só em três pessoa...
P a d r e (espantado): É uma boa resposta. A respos­
ta, como tal, está correta.
Eu (sem desistir): E Cristo diz que ama todos ho­
mens, mesmo que não são de Igreja. E cristão deve amar
até inimigo, só que não faz isso com turco... Eu sei que
Cristo ficava do lado de perseguido. Em Turquia, curdo
é que nem cristão de antigamente. Mandam ele para ca­
deia porque querem ter cultura própria. E Cristo também
está do lado deles.
P a d r e (furioso, levantando-se com muita cerimô­
nia): Está bem, mas agora precisamos interromper nossa
conversa. Se o senhor fizer a gentileza de retomar à outra
sala, minha secretária o acompanhará até a saída...
A diferença do padre rude de minha primeira visita
e o de agora é que este último me expulsou de forma ele­
gantemente aristocrática. Também aqui não sou deseja­
do. Embora se trate de uma exceção absoluta — encon­
trar na Alemanha um turco que deseja converter-se à fé
católica é um verdadeiro milagre, quando presenciamos
as hostilidades que os servos de Cristo lhes manifestam e
as humilhações que lhes impõem —, não querem, em hi­
pótese alguma, admitir-me na comunidade hierarquizaçla
desses cristãos satisfeitos, presunçosos e enfastiados de si
.74*
mesmos. Já é bastante suportá-los nas escolas, nos subúr­
bios e nas estações de trem. Mas as igrejas — mesmo que
continuem completamente desertas — devem ficar limpas
e livres de turcos.

Vou visitar outro padre. Todos os andares da residên­


cia paroquial estão equipados com retrovisores de cami­
nhão. Ao lado de cada uma das aproximadamente doze
janelas foi colocado um desses retrovisores, cuja função
é permitir examinar atentamente o visitante que está jun­
to à porta de entrada.
Toco a campainha; a porta não abre. Resolvo tentar
novamente meia hora depois. Assim que toco a campai­
nha, afasto-me e colo-me à porta, escapando, assim, do
retrovisor.
A porta abre automaticamente, e, entrincheirado no
primeiro andar, vejo um padre de meia-idade. Impassível
e indiferente, escuta meu pedido, mas não me convida a
entrar.
— Isso é idéia fixa! — repreende-me. — Quem lhe
sugeriu tal coisa?
— Cristo me chamou — respondo, no melhor estilo
daquelas biografias de santos escritas para crianças. — Eu
quer seguir Cristo.
— O senhor está fingindo só para conseguir a auto­
rização de permanência com mais facilidade. Admita que
são motivos políticos que o levam a procurar'guarida na
Igreja. O senhor só quer tirar proveitos pessoais de tudo
isso.
— Cristo também ajudou perseguido político —
respondo.
— Se o senhor se rebela contra as leis do Estado, se­
rá perseguido em qualquer lugar. Aqui na Alemanha tam­
bém é exatamente assim.
— Turquia não é democracia, é ditadura — digo, em
objeção.
— Isso não passa de um chavão político. Cada povo

75 •
tem o governo que merece. Há povos que ainda não estão
maduros para a democracia parlamentarista. — E, depois
de pensar um instante: — Mas, afinal, o que o senhor de­
seja? A Turquia já tem um parlamento eleito.
— Controlado por militar — respondo. — Partido
democrático proibido e perseguido.
— Deve haver alguma razão para isso — prossegue
ele na discussão política. — Só assim é que se pôde aca­
bar com o terror e a rebelião.
— Mas polícia e Exército faz terror e tortura preso
político — replico.
— Confesse que o senhor é comunista e quer se in­
filtrar entre nós para ter um bom disfarce. Damos assis­
tência espiritual nas prisões e confortamos até o pior dos
pecadores, desde que ele se arrependa. Mas aqui não há
lugar para elementos sem consciência... É melhor o senhor
voltar para o lugar de onde veio! — E, como eu fico
olhando-o perplexo, continua em tom mais condescenden­
te: — Bem, caso eu tenha me enganado com o senhor, ve­
nha procurar-me depois da Páscoa, e então marcaremos
uma entrevista. Assim terei tempo para sondá-lo um pou­
co mais e avaliar seus verdadeiros sentimentos com rela­
ção a Cristo.
Registro isso. É o bastante para mim. Considero um
despropósito uma segunda conversa. A idéia que esse pa­
dre fez de Cristo já me parece suficientemente clara.
— Cumprimento, então, para Cristo, quando senhor
vê ele — despeço-me. E digo mais para mim mesmo que
para meu interlocutor: — Oh, não. Há muito tempo que
Cristo está morto aqui. — E, deixando o padre desnor­
teado, desço a escada, assobiando “ Senhor, nós te louva­
mos...” , minha canção preferida.

Mas não desisto. Preciso encontrar ao menos um pa­


dre que leve a sério minha missão cristã; que não tenha,
por comodismo, preconceitos; que não seja um xenófo­
bo mal disfarçado. Um padre que aceite a evidência do

76“
batismo, sem formalidades burocráticas, e o mais rápido
possível.
Dois outros padres que procuro também não levam
em conta a urgência do caso. Um capelão, bem jovem,
manda-me passear: “Não fazemos questão de ter entre nós
pessoas que querem se tomar católicas só para agradar os
outros e obter eventuais benefícios. Não somos uma com­
panhia de seguros, fique o senhor sabendo!”
Vou visitar outro padre, já de certa idade, que mora
numa suntuosa residência episcopal e é conhecido como
pastor de almas da classe alta. Ele me faz recitar o Pai-
Nosso, rezar a Ave-Maria e ainda cantar um hino religio­
so. Escolho o de Christof von Schmidt: "... e ele morreu,
com o coração cheio de amor, para nos salvar...” E de­
pois disso tudo, sou recusado.
Antes, porém, o padre coloca-me numa situação di­
fícil, pois deseja saber como se diz “ acólito” em turco.
“Gurtil, GuruF\ invento. “ Gurul, GuruV\ repete ele, ver­
dadeiramente impressionado.
PADRE: Onde o senhor mora?
Eu (acrescentando depois de dizer o endereço): Po­
rão de família Sonne. Mas ninguém pode saber, porque
proibido alugar porão, sem janela, úmido.
PADRE: Mas o senhor não tem uma declaração de re­
sidência registrada na polícia?
Eu (hesitante): Não. Família Sonne não quer. E aqui
ninguém aluga boa moradia para turco.
P adre (num tom severo): Sendo assim, não posso
aceitá-lo no curso de catecismo de nossa paróquia. Antes
de mais nada, o senhor terá que providenciar a declaração
de residência, como é de praxe. Aí sim, poderá participar
do curso de preparação, que dura no mínimo um ano. Vai
ver como esse curso lhe fará bem. O senhor se familiarizará
com a fé cristã e então poderá realmente fazer parte dela!
Eu (protestando): E isso serve para quê? Eu já vai
estar preso em Turquia.
P adre (sem se abalar): Estes são motivos políticos
secundários que não devem influenciar nossas decisões.

77
Já estou a ponto de desistir. Recordo-me das pala­
vras da Bíblia: “É mais fácil um camelo passar pelo bura­
co de uma agulha que um rico entrar no reino do céu” .
E acho que elas se aplicam exatamente aos padres católicos.
Até então eu havia escolhido as paróquias de forma
aleatória, procurando as que ficavam perto de casa ou em
locais já cqnhecidos. Desta vez decido sair da cidade, ir
para o campo, a uma distância de uns cem quilômetros.
Só paro quando chego a um local bem miserável, com uma
igreja muito pobre. Dirijo-me à casa paroquial. Um ho­
mem bastante jovem abre a porta.
Eu pode falar com padre? — pergunto.
— Claro, sou eu! — diz o homem, vestido como uma
pessoa comum, com a camisa aberta. -
É a primeira vez que eu, Ali, vejo um eclesiástico sem
roupas de clérigo. O jovem convida-me a entrar em seu
escritório.
Começo a expor meu problema. Antes mesmo de ter­
minar, o padre interrompe-me:
•— Já estou entendendo. E agora o senhor irá me pe­
dir para batizá-lo, estou certo?
— Sim, está.
— É claro que vou batizá-lo. Dentro de poucos dias.
E, então como católico, o senhor terá direito ao certifica­
do de batismo, que eu mesmo subscreverei. É isso! — Sem
maiores delongas, sem apelar ao bispo, sem perguntas bea­
tas, inquisitoriais, hipócritas e pseudocristãs, ele reconhece
a seriedade da situação, compreende o que está em jogo
e age espontaneamente, de forma .cristã. — Precisamos ter
ainda mais uma conversa, e aí o senhor se tomará mem­
bro da nossa paróquia. Com o tempo, iremos nos conhe­
cendo melhor. E se, depois de tudo isso, o senhor conti­
nuar tendo problemas com a polícia de estrangeiros, con­
te comigo. Tudo se ajeitará, o senhor vai ver. Não haverá
mais problemas — ele me anima.
Agradeço. Percebo que o jovem padre, que não se
comporta como um funcionário, fala com leve sotaque da
Europa oriental. Mais tarde venho a saber que emigrou

*78 '
da Polônia há quatro anos. Talvez sua própria história de
vida o tenha levado a identificar-se com um estrangeiro
perseguido, ou pelo menos a compreender o. que se sente
em tal situação. Talvez ele mesmo tenha começado a per­
ceber em seu pais natal o que significa perseguição, ou,
se não a vivenciou, pelo menos terá trabalhado sob as ré­
deas de uma Igreja sufocante e cheia de privilégios. Tal­
vez, ainda, sua vocação para compreender os problemas
alheios só tenha se manifestado aqui, nesta nossa Alema­
nha “livre” , onde testemunha a acolhida pouco amena que
se dá aos estrangeiros.
Seja como for, prefiro mantê-lo no anonimato, pois
temo que a revelação do nome deste homem, de compor­
tamento tão humano e cristão, atraia a ira de seus supe­
riores, que podem considerar esse fato como uma trans­
gressão da ordem.

Post-scriptum. Quase sem querer, aprendo que o sa­


cramento do batismo pode ser ministrado, em certos ca­
sos, com muito liberalismo e não tão burocraticamente.
Por exemplo, se um não-católico, um “ ateu” , se candi­
data ao cargo de diretor de um colégio comandado pela
Igreja Católica e seu nome recebe acolhida unânime nos
círculos sociais, a Igreja admite-o em poucos dias, para
mérito de süa carreira.
Igualmente, quando o futuro diretor de um hospital
católico não é batizado, tornam-se desnecessários curso
de catecismo ou exames para testar seus conhecimentos bí­
blicos. Em três dias realiza-se um batismo-relâmpago, me­
diante uma pequena e espontânea contribuição jogada na
caixinha da igreja.
Com certeza, reprovam-me por ter poupado os ecle­
siásticos protestantes. Talvez isto esteja relacionado com
a própria história de minha vida: aos cinco anos de idade
fui forçado a uma cerimônia católica de batismo, desne­
cessária e extremamente penosa.
As coisas aconteceram da seguinte maneira: meu pai

79 *
estava internado num hospital católico, com septicemia.
Três semanas depois, desenganado pelos médicos,
relegaram-no a um cubículo chamado, a propósito, de
“ morredouro” . As freiras que cuidavam dele viviam im­
portunando-o porque, na qualidade de católico com cer­
tidão de batismo, ele ofendera gravemente a Deus por não
ter se casado no religioso e haver batizado seu único filho
— eu — segundo os cânones protestantes. Foi assim que,
num quartinho minúsculo, realizaram uma cerimônia de
casamento e eu fui rebatizado, tudo segundo o ritual ca­
tólico. Ainda hoje tenho consciência da hipocrisia e da afe­
tação daquele acontecimento. Vestiram-me um camisolão
de batismo, enfiaram uma vela em minha mão e um tra-
pista disse que a partir de agora eu passaria a me chamar
Johannes. Cheguei a protestar, alegando que meu nome
é Günter, mas o ritual continuou, sem interrupção.
Foi uma cerimônia absolutamente desnecessária, por­
que, segundo os dogmas católicos, uma vez batizado, ba­
tizado para sempre.
E mais ainda: poucas semanas depois desse espetá­
culo, meu pai recuperou a saúde. As freiras insistiam em
falar em milagre, graças ao “efetivo arrependimento” de
meu pai. Esqueceram, porém, de mencionar que o dire­
tor do hospital havia feito de tudo para conseguir penici­
lina junto às autoridades militares da ocupação america­
na. Meu pai foi um dos primeiros pacientes de Colônia
a utilizar com sucesso esse medicamento.
Em todo caso, foi assim que me tornei católico.

Do lado de cá do Éden

Porque eles têm um ar tão feliz e sereno, com seüs


pequenos distintivos ovais de madeira, seus trajes verme­
lhos e sua despreocupação infantil, resolvo dar um pulo
no lugar onde os jovens da Bhagwan se reúnem.
Um movimento novo, que se define como religião uni­
versal, que se propõe experimentar novas formas de vida
e de trabalho em comum, que — diferentemente da maior

80
parte das religiões — não reduz a sexualidade ao objetivo
exclusivo da procriação nem a transforma em tabu. Uma
religião lúdica, fácil, ampla sem constrangimentos. É nesse
lugar que espero não sofrer nenhum tipo de preconceito
como o estrangeiro Ali. Meu amigo e colega de trabalho
Abdullah acompanha-me.
Ao contrário de mim, Abdullah nunca teve a menor
ilusão ou expectativa quanto ao cristianismo administra­
do pela Igreja oficial. Agora está menos prevenido e tam­
bém quer tentar seu ingresso na seita Bhagwan.
O local de encontro fica na Lütticherstrasse, num bair­
ro próximo ao centro da cidade. Os diversos imóveis on­
de está instalada a administração da Bhagwan pertencem
à Construções Rajneesh, Koch & Cia. A mobília da sala
de recepção é clara, elegante e de bom gosto. Nada do
kitsch enfadonho, tão comum entre as seitas.
Quando chegamos, dois “sannyasins” 1 estão falan­
do ao telefone, cada qual em seu aparelho, e tão absortos
que nos ignoram completamente. Ao que parece não se
trata de conversas de evangelização nem de questões de
fé. Um deles discute sobre cifras e repetidamente se justi­
fica por não ter convertido as somas previstas em valor
monetário. O outro parece estar dando a seu interlocutor
um curso rápido de investimento. A conversa gira em tor­
no de “ donativos antedatados” e de como “ contornar de
maneira perfeitamente legal o imposto sobre herança” .
Além da “ previsão mais recente e merecedora de fé, vin­
da dos Estados Unidos: vender, sem falta, os dólares nos
próximos seis meses e aplicar em ouro!”
Os dois “sannyasins” comportam-se como jovens ge­
rentes, ou, melhor ainda, como investidores da bolsa, do
tipo descontraído, sossegado, não obstinado mas firme.
Ficamos esperando ali uns bons dez minutos, até que um
deles, que acabou de transmitir suas cifras, se digna a re­
parar em nós.
— O que desejam?
i Os membros da seita Bhagwan autodenominam-se “ sannyasins” (N. do T.).
— Eu quer fazer parte daqui — digo-lhe.
Ele me olha com desprezo.
— Ser um adepto? Mas não é tão simples assim. —
Em seguida, examinando-nos ligeiramente, completa: —
Vocês querem é casa e trabalho, não é?
— Também — respondo —, mas não só por dinhei­
ro. Eu não quer mais ficar sozinho. Eu quer viver com
outros.
— Mas isso leva algum tempo. Acho mesmo que, pa­
ra vocês, vai levar muito tempo.
— Muito quanto?
O jovem não quer adiantar nada.
— Varia muito. Não temos uma regra fixa. Depen­
de do conhecimento que se tem da Bhagwan e da intensi­
dade do desejo de fazer parte do grupo.
— Desejo muito, muito forte.
— E por que você tem tanta pressa assim? — ele per­
gunta, desconfiado.
— Eu quer começar tudo de novo. Senão eles me
manda embora para Turquia, e lá eu vai para cadeia.
Conto-lhe minha história da perseguição política.
Embora jovem e não-dogmático, guiado (como ele
mesmo acredita) pela inspiração, reage como um clérigo:
— Se entendi bem, você quer é encontrar um jeito
de entrar aqui e tirar algum partido da situação, não é?
— Não! Eu só quer ficar aqui e fazer parte disto tudo.
— Sei... Quer vir para cá porque gostaria de ficar
aqui?
— Também.
— Mas não é motivo válido. Se for isso, não pode­
mos admiti-lo de jeito nenhum.
— Mas não só isso! Eu também quer viver com ou­
tros. E não cada um por si, mas tudo junto, comunidade.
Ah, e tem também mulher. Não uma só para cada um,
mas tudo junto.
— Acho que é melhor você ficar no lugar de onde
veio. Para chegar até nós, o caminho é muito longo.
Mais uma vez meti os pés pelas mãos. A fase frenéti­

82'
ca da vida comunitária só foi propalada no início do mo­
vimento Bhagwan. Assim, como uma espécie de isca para
fisgar as pessoas frustradas das classes média e alta de to­
dos os cantos do mundo. Depois, o Grande Mestre — pre­
judicado pela gota e, sem dúvida, com medo da AIDS —
passou a pregar maior abstinência e uma vida a dois. Seu
novo lema já não é o sexo grupai, mas um tipo de prazer
congelado e asséptico: o consumo suntuoso, o luxo pelo
luxo. Por exemplo: os Rolls Royce. Objetivo ambiciona­
do: um Rolls Royce diferente para cada dia do ano. Pre­
ço por unidade: 300 mil marcos. Não para uso de seus
adeptos, mas só para ele mesmo, para süa tendência me­
galomaníaca.
Assim, para esse jovem minha exigência é pretensio­
sa e descarada. Viver em comunidade com gurus de esquer­
da semiconvertidos (como, por exemplo, Rudolf Bahro,
militante do Partido Verde), ainda é possível. Mas viver
com um turco miserável, sem eira nem beira, extenuado
pelo trabalho é coisa muito diferente; toda a estrutura pre­
conceituosa das antigas raças dos senhores vem à tona.
Tentamos o centro da seita na Vennloèrstrasse, ao lado
da Friesenplatz. Na recepção, duas senhoras e um rapaz.
Assim que os dois candidatos turcos entram no lo­
cal, as mulheres começam a cochichar e a rir baixinho. Pa­
ramos diante delas, que fingem não nos ver e põem-se a
mexer em algumas pastas de documentos.
Decidimos, então, inspecionar um pouco o lugar. Nu­
ma das salas, há uns trinta adeptos da Bhagwan, alguns
sentados, outros em pé, olhando fascinados para um tele­
visor. Não estão vendo uma partida de futebol nem um
filme de suspense, mas um vídeo sobre o Grande Mestre
de Oregon. Ele está rodeado por um grupo de adeptos en­
tusiásticos que o aclamam sem cessar, confortavelmente
instalado em seu Rolls Royce, que avança bem devagar,
acena para os fãs com movimentos parcimoniosos e uma
expressão vaidosa e magnânima.
O conjunto é acompanhado pelo “ lá-lá-lá” repetiti­
vo e monótono de uma música oriental, e os “sannyasins”

83
Palavras de Bhagwan
“O egoísmo é natural. Não é uma questão de bem ou de
mal. O mais forte é que sobrevive, e o mais forte é que deve
ter o poder. E quem tem o poder tem a razão. Como alemães,
vocês deviam compreender isso. (...) Amo esse homem [Hi-
tler]. Era um louco. Mas eu sou mais louco ainda. Não ou­
via seus generais, apenas seus astrólogos. Mesmo assim, du­
rante cinco anos sempre obteve vitórias. Era tão moralista
quanto Mahatma Ghandi. Sua natureza era a de um hindu,
mais que a de Ghandi. Foi um santo. (...) Sou absolutamen­
te inatacável. Ataco todo mundo, mas ninguém me ataca. Esta
é a simples verdade.”
(Extraído de Der Spiegel n.° 32, 1985.)

de Colônia se balançam, soltos e descontraídos, no mes­


mo ritmo que os discípulos de Oregon. Alguns acompa­
nham o compasso com as mãos. Ninguém diz uma única
palavra.
Para não perturbar o recolhimento daquele grupo, vol­
tamos para a recepção, onde novamente me apresento.
Mais uma vez somos ignorados por um bom tempo. To­
dos fingem não nos ver, porém ficam espiando pelo can­
to dos olhos. Finalmente, um homem de uns trinta anos
se aproxima. Abdullah já há algum tempo tamborila ner­
vosamente no balcão da recepção.
Exponho meu problema, e ele replica, no velho esti­
lo antiautoritário:
— Não, não. As coisas não são assim. Isto aqui não
é um clube ao qual você pode se filiar. Você deve come­
çar pela meditação. Leva algum tempo, e cada sessão de
“ dinâmica" custa 5 marcos (por hora, naturalmente). De­
pois de fazer isso por um tempo suficiente, marcamos uma
entrevista com a coordenadora do centro, que verá se po­
de lhe dar um “ nome de Sannya” .
EU: O que é isso?
HOMEM (brusco e enigmático): É o que fazemos aqui.

84
A seita Bhagwan é dirigida por Sri Rajneesh, um indiano
que vive nos Estados Unidos. Em junho de 1985, ele decidiu
romper seu longo silêncio e deu uma entrevista ao canal de
televisão ABC, declarando ser “ o guru dos ricos’* e ter co­
mo o mais nobre objetivo de seu movimento *'‘enriquecer” .
“ Todas as outras religiões cuidam dos pobres” , respondeu
ao lhe perguntarem por que não usava sua imensa fortuna
para lutar contra a miséria social em lugar de investir em sua
frota de Rolls Royce. “ É problema meu se me preocupo só
com as pessoas ricas.”
Somente na Alemanha comprou uma dúzia de discotecas,
uma cadeia de restaurantes vegetarianos, lanchonetes e em­
presas de construção.

— Eu é turco muito sozinho. Eu quer viver em co­


munidade, com alemão e outros tudo.
H om em (reservado): Mas não é você que pode jul­
gar o que é melhor. São os outros que determinam por
você. Mas antes de tudo, precisa começar a sentir...
EU: Mas eu já sente...
HOMEM: Mas você não tem nenhum critério que lhe
permita julgar.
EU: Chefe, Bhag, também estrangeiro.
H om em (ofendido): Bhagwan é nosso mestre. Veio
da índia.
EU: Então muitos de vocês veio da índia?
H om em (pensando um pouco): Não, na realidade
não. H á mais alemães e americanos.1
Eu: E onde mora Bhag?
HOMEM: Atualmente na América. Pode-se visitá-lo
na América. (Regularmente, numerosos adeptos viajam pa­
ra os Estados Unidos, em vôos fretados, por dez dias, desde
que depositem nos cofres de Bhagwan a quantia de 3 000

1Não há adeptos indianos de Bhagwan, considerado um charlatão em seu pró­


prio círculo cultural. Eis porque, para ele, a índia é um “país física e espiritual­
mente morto” (N. do A.).

85
marcos. Chegando lá, trabalham de graça nas lavouras.
Para elesf no entanto, isso se chama “recolhimento” .)
EU: Tem alemão que vive em comunidade com vo­
cês, eu sabe. Então por que não turco?
HOMEM: Não se trata de viver ou não em comunida­
de. O problema é que temos um mestre espiritual: Bhag­
wan. E isso que conta, o resto não importa. Você pode
viver sozinho e ter um trabalho lá fora e viajar, uma vez
por ano para Oregon, por exemplo. Os que vivem em co­
munidade já passaram por um período de adaptação e fo­
ram aprovados.
EU: Eu não tem trabalho, eu não tem lugar para mo­
rar. Viver com outros bom. Gente não precisa muito di­
nheiro.
HOMEM: Sei, sei. Mas aqui as coisas não são assim.
O fato de você não ter casa nem dinheiro não é motivo
para fazer parte da nossa comunidade. É preciso querer
estar com Bhagwan. Entenda que isso se dá em outro pla­
no, diferente do que você diz. Eu quase ousaria dizer que
não estamos verdadeiramente prontos um para o outro.
O enterro
(ou: Livrando-se do corpo)

Com uma única exceção, eu, Ali, fui rejeitado pelos


funcionários de Deus, que me mandaram às favas, e cen­
surado pelos monomaníacos da seita de Bhagwan, que
zombaram de mim. Mas quero ser aceito em algum lugar
e fazer parte dele. Já que entre os vivos sou repelido co­
mo um estranho e me impõem um silêncio de morte, des­
ta vez vou tentar a sorte diretamente entre os mortos. É
assim que me sinto... Como se diz: “A gente paga até pa­
ra morrer!”
Como preparativo para a viagem ao reino dos mortos,
visto meu sombrio temo de domingo e, para reforçar ainda
mais a fragilidade, peço emprestado uma cadeira de rodas.
Assim, com um amigo empurrando a cadeira, vou a uma
das maiores e mais famosas agências funerárias da cidade.
Chego sem hora marcada. Meu acompanhante me em­
purra, loja adentro, onde a proprietária me recebe com
cortesia. A mulher, aparentando quase quarenta anos, à
primeira vista não se comporta de modo antipático. Ex­
ponho o problema: trabalhei numa indústria de amianto
(a Jurid) e, por isso, estou com câncer nos pulmões. O mé­
dico informou-me que tenho dois meses de vida. Portan­
to, estou aqui para tratar pessoalmente de meu funeral e
do traslado do corpo para a Turquia.
A conversa abaixo (ligeiramente reduzida, mas repro­
duzida de forma literal) é um testemunho do desumano,
insensível e macabro culto à morte, nos dias de hoje, quan­
do um ser ainda vivo é tratado como um objeto morto,
algo não mais humano que deve ser removido como lixo.
A proprietária da loja nem pergunta como estou, embora
eu não tenha a aparência de um moribundo. Não deseja

87*
perder tempo com perguntas do tipo: “ Será que não há
mesmo esperança?” Não quer demonstrar nenhuma es­
pécie de compaixão e, portanto, vai direto ao assunto:
MULHER: Se o transporte for aéreo, o preço varia
conforme o peso. O caixão é colocado dentro de um Con­
tainer e pesamos tudo junto. Por isso é que há variação
de preço, de acordo com o peso e o local para onde será
transportado...
EU: Vai para longe, lá em Turquia. Montanhas Kas-
gar, perto de fronteira com Rússia.
MULHER: Sei, mas o senhor precisa decidir se deseja
transporte aéreo ou rodoviário. Se for de avião, além de
levá-lo ao aeroporto de partida, precisaremos também pegá-
lo no aeroporto de chegada, senão o senhor fica por lá. E
se fizermos a viagem por terra, poderemos levá-lo direto
ao local do enterro... Qual é o seu plano de seguro social?
EU: Plano normal.
M ulher : Como ativo ou aposentado?
EU: Mais de ano eu está doente.
MULHER: O senhor continuou trabalhando depois
que adoeceu?
EU: Sim. Indústria de amianto. Sabe, eles não dava
máscara para gente e...
Mulher (interrompendo com impaciência): Isso não
vem ao caso agora. A questão é saber se o senhor quer
ser transportado de viatura ou de avião. Se for de avião,
vai depender do peso.
EU: Eu não é muito pesado. E médico falou que
quando eu morre, daqui dois meses, eu vai pesar que nem
criança. Todo dia eu emagrece pouquinho.
Mulher : Sei, sei. Mas a estatura continua a mesma,
não é? O preço para crianças é bem inferior porque o cai­
xão é menor. Colocamos o caixão dentro de um Contai­
ner, para que nem os passageiros nem o pessoal do aero­
porto saibam que estão transportando um cadáver.
EU: E se eu não precisa caixão? Se eu queima?
Mulher : O senhor quer dizer se for cremado? Bom,
nesse caso a uma seria enviada pelo correio.
A

88 '
EU: E não custa muito dinheiro?
Mulher: Sai bem mais em conta, porque o transpor­
te é eliminado. Se o senhor for cremado aqui, isso custará
uns 2 500 marcos, calculando tudo, menos as despesas do
serviço postal e as taxas de expedição...
EU: E se meu irmão me leva em saco plástico1?
Mulher : De jeito nenhum! Não entregamos isso as­
sim. As cinzas devem ser levadas para o local do enterro
mediante solicitação feita por alguém de lá e aprovada aqui.
Só após a aprovação desse pedido a urna é liberada.
A mulher conhece muito bem seu serviço e leva a coisa
na palma da mão. Ela empurra a cadeira de rodas para junto
dos caixões. Quando lhe pergunto: “Qual mais bonito, va­
so de cinza ou caixão grandão?” , ela se adapta com espan­
tosa rapidez a meu desengonço lingüístico e tenta atrair meu
interesse para os caixões de transporte, mais dispendiosos.
— O senhor quer dizer uma urna ou um caixão? Bem,
já que me pergunta, um caixão. O senhor ficará mais sa­
tisfeito. O caixão é outra coisa! Traga-o aqui! — diz para
meu acompanhante alemão e, curvando-se sobre mim, co­
meça a tirar minhas medidas. Ouço o rangido da pesada
porta corrediça do depósito onde estocam os caixões e, de
uma sala ao lado, o barulho da serra da marcenaria. —
É melhor o senhor mesmo dar uma espiada em todos e
ver qual lhe agrada mais. Cada pessoa tem um gosto!
Isso me soa como se tivesse dito: “ Se quiser experi­
mentar, pode deitar dentro deles para ver em qual se sen­
te melhor” .
Ela bate levemente com o nó do dedo num caixão de
carvalho bem modesto e informa:

1 Esta pergunta está muito longe de ser tão absurda quanto parece. Na verda­
de, foi-me inspirada por um acontecimento real, fora dos meios turcos. Recen­
temente, um industrial de Colônia, com filiais nos Estados Unidos, multimilio­
nário e católico fervoroso, passou pela alfândega trazendo numa sacola de plástico
as cinzas do irmão que morrera subitamente no exterior. Isso é, as cinzas esta-
vam numa urna barata, colocada dentro de uma dessas sacolas de free shop
(N. do A.).
— Este é o nosso modelo padrão. Claro que se o se­
nhor desejar algo mais sólido, mais forte... O que acha
deste outro? — Sua voz adquire um tom mais suave e in-
sinuante, como se estivesse querendo me vender o leito nup­
cial para o resto de minha vida. — Autêntico carvalho ale­
mão. Maciço e resistente. No momento é o mais resisten­
te que temos. Todo de carvalho maciço. E internamente
forrado de seda!
— Eu pode ver dentro?
Ela se mostra um pouco constrangida como se tives­
se lhe pedido para experimentar a cama de casal bem no
meio da loja de móveis.
— Willi, venha me ajudar! — grita para o sócio e/ou
marido, que se encontra na sala ao lado.
Willi vem a seu encontro. Ele se dá ares de importem-
te, embora pareça um pouco constrangido.
— Trata-se de um traslado para a Turquia. Èsse se­
nhor só tem dois meses de vida e quer ver o caixão por
dentro. — É assim que sou apresentado.
Os dois levantam a pesada tampa do caixão. Por den­
tro, a madeira sem acabamento.
— E onde seda? — reclamo. — Senhora disse tudo
macio dentro.
Eles trocam um olhar igual ao de dois impostores apa­
nhados com a boca na botija.
— Vamos forrá-lo, pode ficar tranqüilo — garante
Willi, com um ar sério. — Dou-lhe minha palavra.
— E quanto custa?
— Custa 4 795 marcos — ele responde, depois de con­
sultar um catálogo.
Passo a mão de leve pelo caixão e dou uma pancadi­
nha com o nó do dedo na madeira que ressoa.
— E dura bastante?
— Claro que sim! É um trabalho de marcenaria de
primeira qualidade. Leva uns cinco, seis anos para se de­
sintegrar — tranqüiliza-me.
Mas ainda não encontrei um caixão que me agrade.

90*
Como em vida nunca me deram oportunidade de escolha,
agora que vou morrer quero ao menos poder optar.
— Não tem caixão menos triste... não parecido com
caixão? Coisa colorida, um pouco alegre. Entende? Eu
sempre morou em lugar escuro, úmido... Agora eu gosta­
va caixão bonito...
Nova troca de olhares entre os dois, que logo deixam
de lado a consternação em nome do profissionalismo.
— Bem, colorido é um pouco difícil. Não é muito co­
mum. Mas que tal este aqui? — pergunta Willi.
A mulher empurra a cadeira de rodas para perto de
uns caixões de mogno, envemizados e reluzentes. Cada um
mais medonho e kitsch que o outro.
EU: Plástico?
WILLI (com ímpeto): Mogno puro, autêntico. Um
dos modelos mais originais e valiosos que possuímos!
EU: E desenho?
WILLI: Como? Ah! O senhor quer dizer entalhe? Cla­
ro! Que tal este modelo francês? Está em oferta. Custa
apenas 3 600 marcos. Antes, custava mais de 4 000.
EU: E veio mesmo França?
Willi: Veio! É um artigo francês legítimo.
Eu*. Qual mais bonito?
WILLI: Bem, é uma questão de gosto. Este aqui tem
um estilo bem diferente.
EU: E gente com dinheiro, alemão, que caixão leva?
WILLI: A maioria leva caixões alemães, de carvalho
ou coisas do gênero.
EU: E quem leva desse aí?
Willi: Esse tipo de caixão é mais usado em transpor­
te para o exterior. Os franceses e os italianos costumam
comprar..
EU: E dura muito?
WiLLi: Muito! Mas, para a Turquia, é necessário ou­
tro caixão, de zinco. Uma espécie de embalagem de zinco...
Eu.* Ah! Eu entende. Lata...
WlLLi: Hum... Soldamos um no outro, com o senhor
dentro, é claro! Caso contrário, não deixam passar pela

91’
fronteira. O serviço é feito aqui mesmo e só depois colo­
camos a tampa de madeira.
EU: E quanto custa?
WlLLl: Vejamos... Com o reforço de zinco, mais a
solda... uns 6 000 marcos.
EU: E desconto?
Willl Bem, podemos conversar quanto ao preço.
Desde que o senhor já o encomende e pague adiantado,
podemos dar um desconto de 57o. O preço ficaria então
em 5 700 marcos. Mas só se o senhor pagar adiantado.
Eu (perplexo): Mas, e se eu não morre, depois tudo?
Eu recebe dinheiro de volta?
WlLLl: Não, não fazemos devolução da quantia. O se­
nhor compreende, não? É um desconto especial que estamos
lhe dando. Mas... se bem entendi... o senhor tem mesmo cer­
teza de... de só ter dois meses... (Gagueja. Não conseguepro­
nunciar em minha frente a palavra morte.) E, além disso,
ainda precisamos saber para que local da Turquia devemos
enviar o caixão. Temos de calcular o preço do transporte.
EU: Fica bem alto, montanha em caminho para Rús­
sia. País bonito, senhor não acha? Senhor passar férias
lá, com minha família. Não precisa pagar nada.
Ele não demonstra a menor emoção e não se comove
com minha oferta.
— De qualquer modo, não fazemos o transporte pes­
soalmente. Contratamos um motorista e precisamos cal­
cular... — Faz uma conta rápida de cabeça — ... Sim, 1,30
marco por quilômetro. Ida e volta, é claro! — Pergunta-
me onde fica Kasgar e, depois de fazer as contas, chega
à quantia de aproximadamente 10 mil marcos só para o
transporte de automóvel.
— Mas se eu vai para lá agora, vivo, então mais ba­
rato, não?
Ele fica desconcertado.
— Isso não é da nossa alçada! — suspira. — Só po­
demos assumir nosso serviço com o atestado de óbito as­
sinado por um médico. E, caso o senhor deseje ser crema­
do, precisaremos também de uma autorização judicial.

92*
— Ah! Tanto faz! Se gente morre, está morto mes­
mo! — Em seguida aponto para uma uma muito bonita
e elegante, exposta ali perto, bem diferente daqueles po­
tes horríveis onde se colocam as cinzas. — E aquele? Eu
não pode ficar dentro, depois queimado?
— Não, pelo amor de Deus! É impossível! É uma pe­
ça de cerâmica, só para exposição. Não está à venda. É
um objeto antigo.
Já entendi tudo. Enquanto meu acompanhante me le­
va embora, tenho certeza de que a loja bate um fio para
a previdência social e discretamente tenta se informar so­
bre a indenização do seguro por morte. Para só depois ver
se daria pé...
Atolado na lama
(ou: “Longe de casa e fora da lei”)

Não acredito que sçfa possível conseguir mudanças profundas sem


ter metido os pés na lama Junto com os outros. Desconfio terrivel­
mente de toda ação “externa", pois corre o risco de não passar de
palavrório vazio.
(Odile Simon, Diário de uma operária.)

Estou tentando arrumar um emprego nas indústrias


Jurid em Glinde, perto de Hamburgo. Alguns amigos tur­
cos contam-me que os postos mais insalubres são ocupa­
dos exclusivamente por turcos. Lá dentro as normas de
segurança — rigorosas para a manufatura de amianto —
não valem nada. Com o vento, o pó dessa fibra, cancerí­
geno e letal, propaga-se pelo ar. Raramente os trabalha­
dores usam máscaras de proteção. Conheci alguns ex-
operários que, depois de um ano e meio ou dois, contraí­
ram graves lesões broncopulmonares. E até hoje tentam
provar, sem sucesso, que tais lesões foram provocadas pelo
tipo de serviço que executavam.
Deparo-me, porém, com um problema: a admissão
de operários está suspensa no momento. É verdade que
alguns conseguem ser contratados, lançando mão de dois
expedientes: subornam os chefes de equipe com dinheiro
vivo ou os “presenteiam” com autênticos tapetes turcos
ou moedas de ouro. Trato logo de conseguir de um nu-
mismata uma moeda de ouro do antigo Império Otoma-
no, um verdadeiro tesouro de família. No entanto descu­
bro sem querer que há outro modo de obter o emprego:
depois de algum tempo, as indústrias August-Thyssen-
Hütte (ATH) costumam demitir parte de seu pessoal efe­
tivo e contratar, por intermédio de uma empreiteira, tra­
balhadores temporários. Assim usufrui de maiores vanta­

'94-v
gens: não enfrenta muitos obstáculos na contratação e, me­
nos ainda, na demissão; e gasta bem menos com a aquisi­
ção desses novos trabalhadores, quase sempre mais dóceis.
Desde: 1974, cerca de dezessete mil trabalhadores efetivos
foram dispensados e muitos deles passaram a fazer parte
do quadro de pessoal das empreiteiras. Só em Duisburg,
a Thyssen mantém contrato com quatrocentas empresas
desse tipo.
Faço amizade com um operário turco de 27 anos, en­
caminhado para a empreiteira Adler pela agência oficial
de empregos. Descubro que a Adler “vende** os operá­
rios para a empresa Remmert, a qual, por sua vez, repassa-
os para a ATH. Esse meu amigo turco descreve as condi­
ções de trabalho e os métodos de exploração — coisas in­
críveis para quem não as presenciou nem dispõe de pro­
vas concretas. Sua descrição nos faz voltar à época mais
sombria do capitalismo selvagem. Mas por que vaguear
no tempo? O horror está bem aqui!
Levantar às três da madrugada, para estar às cinco
no local indicado pela Remmert: a saída da rodovia Ober-
tiausen — Buschhausen. A Remmert é uma empresa em
expansão. Em seu letreiro está escrito em verde: PRESTA­
ÇÃO De Ser v iç o s . Ou seja, a Remmert elimina sujeira de
toda espécie. Quantidades grandes ou pequenas de pó, la­
ma e dejetos tóxicos, óleos fétidos e pútridos, graxa, lim­
peza de filtros na Thyssen, na Mannesmann, na Man, on­
de quer que seja. Só o estacionamento da Remmert está
avaliado em 7 milhões de marcos. A Adler está integrada
à Remmert como aquelas bonecas russas: uma dentro da
outra. A Adler nos vende à Remmert, que nos aluga para
a Thyssen. Os dois sócios na negociata dividem o grosso
do dinheiro pago pela Thyssen. Conforme a tarefa, a quan­
tidade de pó e sujeira ou a periculosidade, o preço varia
entre 35 e 80 marcos por hora e por pessoa. A Adler paga
uma esmola de 5 a 10 marcos àqueles que se matam de
trabalhar para ela.
Muitas vezes o pessoal da Remmert e da Adler é em­
pregado para atuar na produção; na coqueria, por exem-

'95*
pio, onde trabalham junto com os operários da Thyssen.
Além do mais, a Remmert também fornece pessoal de lim­
peza e manutenção. Há mais de seiscentas faxineiras da
Remmert trabalhando nas grandes indústrias em diferen­
tes cidades da República Federal da Alemau£ra>~
Ao lado de um velho e enferrujado microônibus pres­
tes a partir está parado o encarregado que anota numa lista
os nomes dos trabalhadores.
— Novo? — pergunta-me secamente.
— Sim — respondo.
— Nunca trabalhou aqui? — Não sabendo que res­
posta poderia influir positivamente na contratação, resolvo
encolher os ombros; ele tenta me ajudar: — Não enten­
deu o que eu perguntei?
— Novo — respondo, repetindo sua primeira palavra.
— Vá se juntar aos colegas — diz, apontando para
o microônibus.
Só isso. Do modo mais simples sou contratado para
trabalhar numa das mais modernas indústrias metalúrgi­
cas da Europa. Ninguém me pede documentos ou pergunta
qual é meu nome. Tampouco minha nacionalidade pare­
ce despertar algum tipo de interesse nas pessoas que tra­
balham nessa empresa de fama mundial — pelo menos,
até o presente momento. Por enquanto, tudo vai muito
bem.
Nove estrangeiros e dois alemães amontoam-se no mi­
croônibus. Os alemães estão instalados no único banco do
veículo. Já os estrangeiros estão sentados no chão de me­
tal, gelado e sujo de óleo; afastam-se para dar-me lugar.
Um rapaz de uns vinte anos de idade pergunta-me em tur­
co se sou seu conterrâneo. Respondo em alemão: “Nacio­
nalidade turca” . Explico-lhe que minha mãe era grega e
que fui criado na Grécia, no Pireu. “ Meu pai era turco.
Abandonou minha mãe quando eu tinha um ano.”
E assim justifico meu conhecimento praticamente nulo
da língua turca. Engolem minha história, que resistirá na
Thyssen durante os próximos seis meses. Caso resolvam

96 ‘
me perguntar sobre o local onde passei a infância, acho
que não terei problema. Posso falar um pouco do Pireu
porque em 1974, durante a ditadura militar fascista, esti­
ve preso lá por dois meses e meio.1 Só uma vez me vi em
dificuldade: alguns colegas turcos quiseram a todo custo
ouvir o som da língua grega. O que me ajudou foi um da­
queles meus delírios na época de estudante, quando, em
vez da língua francesa, preferi estudar grego clássico. Até
hoje sei de cor trechos de A Odisséia: “Ândra moi énepè
moúsa...” (“Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso
que muito peregrinou...” ). Ninguém desconfiou de nada,
embora o grego clássico esteja tão longe do moderno quan­
to o alemão antigo do contemporâneo.
Lotado, batendo os pinos e chacoalhando inteiro, o
ônibus se põe em movimento. A cada curva, o banco, que
está solto, choca-se contra os imigrantes sentados no chão.
O aquecimento não funciona. A porta traseira não fecha
e alguém a prendeu com um arame; se uma freada brusca
jogar alguém para o fundo, a porta poderá ceder e a pes­
soa irá parar no meio da rua. Depois de quinze minutos,
a assombrosa viagem chega ao fim. Sacudidos e enregela-
dos, finalmente estamos diante do portão 20 da Thyssen.
O encarregado entrega-me um cartão de ponto; um dos
homens da segurança me dá um passe de ingresso e fica
escandalizado ao ouvir meu nome.
— Mas isso não é nome, é doença!
Sou obrigado a soletrar várias vezes:
— S-i-g-i-r-l-i-o-g-l-u.
Ainda assim, ele erra e escreve “ Sinnlokus” 2. E na
coluna reservada ao primeiro nome. Como sobrenome,
transcreve meu segundo prenome: Levent.
Como é que alguém pode ter um nome desses?! —
resmunga, furioso. Parece ignorar que seu próprio nome

1 Em 1974 Giinter Wallraff foi preso em Atenas por distribuir panfletos con­
tra a ditadura; torturado e condenado a longa pena de prisão, foi libertado após
a queda dos coronéis (N. do E.).
2 Em alemão Sinn significa “ sentido” e Lokus, “latrina” (N. do T.).
(Symanowski ou algo parecido) também é estranho para
um turco e sugere certa ascendência polonesa.
Os operários poloneses, chamados para a região do
Ruhr no século passado, também sofreram segregação logo
no início da imigração e foram obrigados a viver em gue­
tos, exatamente como acontece agora com os turcos. Ha­
via cidades, na região do Ruhr, em que mais da metade
dos habitantes eram poloneses que conservaram sua lín­
gua e sua cultura.
Tenho um pouco de dificuldade para bater o ponto,
o que faz com que um operário alemão se atrase alguns
segundos. “ Lá na sua terra, na África, vocês devem bater
o ponto com a cabeça!*’, diz ele.
Mehmet, um operário turco, ensina-me a introdu­
zir o cartão no relógio. Percebo que a observação do ope­
rário alemão também atinge os outros imigrantes. Vejo
isso nos olhares envergonhados e resignados. Mas nenhum
deles ousa retrucar. Freqüentemente fingem não ouvir
os insultos e procuram afastar-se dos alemães. Temem
que esse tipo de provocação acabe em pancadaria. A ex­
periência tem mostrado que a culpa sempre recai sobre
os imigrantes, o que é um bom pretexto para serem demi­
tidos. Por isso preferem ficar calados e agüentar as injus­
tiças dia após dia, afastando-se para não dar margem a
provocações.
O ônibus prossegue seu percurso por dentro do par­
que industrial. Depois de alguns minutos de sacolejos, de­
sembarcamos perto de um barracão que serve como pon­
to de encontro. É aqui que, com chuva, neve ou frio, de­
veremos esperar, todos os dias, a chegada do “xerife** com
seu Mercedes. O “ xerife** é o supervisor-chefe, tipo gros­
seiro e atarracado que não se digna a levantar uma palha.
Sua tarefa consiste exclusivamente em dividir o pessoal em
grupos, distribuir os serviços e cuidar para que todos tra­
balhem. Chama-se Zentel e deve ter entre 30 e 35 anos.
Faz parte do quadro de pessoal da Remmert. De vez em
quando é convidado para as festas de Adler. Aliás, dizem
que Zentel é dedo-duro e confidente de Adler.

98 '
Já passa um pouco das seis. Os operários do turno
anterior partem nos veículos da Remmert. Duros de frio,
ficamos na escuridão. O barraco não passa de um depósi­
to de ferramentas, onde são guardados carrinhos de mão,
pás, picaretas, aparelhos de ar comprimido e bombas de
sucção. Não há espaço para nós.
Ao redor, um barulho inconstante, proveniente das
oficinas vizinhas: estrondos, rugidos e silvos estridentes.
O céu é um tremular de nuvens avermelhadas; não se con­
segue vê-lo daqui. No alto das chaminés, cintila uma luz
azulada. Uma cidade industrial de fumaça e fuligem que
se estende até o horizonte, até as zonas residenciais vizi­
nhas. São vinte quilômetros de comprimento e quase oito
de largura.
Percebo certa agitação entre os trabalhadores. O “xe­
rife” (que lembra muito um mercenário, com sua roupa
cáqui) abaixa ligeiramente o vidro do carro e começa a fazer
a chamada. Todos os dias modifica a composição dos gru­
pos. Está sempre colocando ou tirando pessoas, impedin­
do, assim, que os grupos se tomem coesos. E isso faz com
que surjam rivalidades e conflitos dentro deles. Não sei
dizer se seu método resulta de arbitrariedade, negligência
ou calculismo. Só sei que, numa equipe em que as pessoas
têm pouco contato, o espírito de concorrência, a descon­
fiança e o temor pairam acima de qualquer comportamento
solidário.
Ouço chamar meu nome. Alguém me puxa com for­
ça pela orelha. É o encarregado, que desse modo tenta in­
dicar o grupo ao qual devo me reunir. Sorri ironicamente
para mostrar que não está irritado. Somos tratados como
animais domésticos; ou melhor: como burros de carga.
Desembarcamos numa torre de extração e subimos al­
guns andares na penumbra, munidos de pás, picaretas, car­
rinhos de mão e aparelhos de ar comprimido. Nossa tare­
fa: retirar as placas de terra que se formam sob as esteiras
rolantes. Venta muito e a temperatura deve estar a uns dez
graus abaixo de zero. Decidimos por conta própria traba­
lhar bem depressa para não sentir tanto frio. Uma hora
99 :
depois, quando o encarregado se afasta (como pouco tra­
balha, padece muito mais com o frio), resolvemos fazer
uma pequena fogueira para nos aquecer. Falar é fácil...
Ao redor elevam-se as chamas da fundição; o metal em
fusão espalha-se automaticamente nos vagões gigantescos,
que parecem transportar bombas poderosíssimas. É como
lava incandescente, correndo em pequenos canais. Ouvi­
mos o borbulhar do metal dentro de cubas altas como uma
casa de vários andares. Mas ali na torre de extração preci­
samos de muito esforço e imaginação para fazer um sim­
ples foguinho. Tiramos pedaços de coque das esteiras ro­
lantes, encontramos algumas tábuas — que os outros co­
legas usavam como assento durante o horário de descan­
so — e as despedaçamos com as perfuratrizes. Ainda fal­
ta papel. Acabamos achando uns maços de cigarro vazios
e uns lenços de papel sujos de ranho. Com o auxílio do
aparelho de ar comprimido, aos poucos avivamos a brasa
que fizemos dentro de um dos carrinhos de mão. Porém
não temos tempo para desfrutar o calor. O encarregado
aparece e ordena: “Todos para baixo! Tragam as ferra­
mentas. E rapidinho!” Tentamos salvar nosso fogo, mas
não conseguimos empurrar o carrinho de mão, pois havia
esquentado demais. Passo a entender a dificuldade dos ho­
mens da Idade da Pedra em manter o fogo aceso — seu
bem mais precioso e sagrado.
E lá vamos nós, de volta ao velho ônibus. Agacha-
dos e amontoados, sacolejamos na escuridão, por vezes
traspassada pelos clarões pálidos das oficinas. Desembar­
camos em Schwelgem, no setor de trituração do coque,
do outro lado do parque industrial. Descemos vários an­
dares nas profundezas da terra; a luz infiltra-se cada vez
mais fraca. O ar toma-se mais carregado de pó, mais in­
suportável. Isso, no entanto, é só o começo. Entregam-
nos uma pistola de ar comprimido para retirarmos a poeira
que se acumula em grossas camadas nos vãos das máqui­
nas. Todo aquele pó eleva-se no ar em segundos e em tal
quantidade que não conseguimos enxergar nossas próprias
mãos; entra-nos pelas narinas e pela boca asfixiando-nos.

100^
Cada inspiração é um martírio. E não há como evitar, não
conseguimos prender a respiração por muito tempo. O tra­
balho precisa ser feito. O encarregado fica parado no alto
da escada, onde sopra um pouco de ar fresco. Como um
policial vigiando prisioneiros, grita: “Mais rápido! Se tra­
balharem mais depressa, podem terminar o serviço em duas
ou três horas e sair para respirar bastante” .
Três horas! Mais de três mil inspirações, e os pulmões
estarão inteiramente cheios de pó de coque. Como se não
bastasse, ainda há as emanações do gás de coque, que pro­
voca tontura. Pergunto pelas máscaras de proteção, e Meh­
met explica: “ Eles não dão máscara para a gente, porque
acham que o trabalho ia ser mais lento e também porque
o chefe diz que não tem dinheiro para essas coisas!” Mes­
mo os operários que trabalham aqui há mais tempo de­
monstram um pouco de medo desse serviço. Helmut, um
alemão de trinta anos que aparenta cinqüenta, faz o se­
guinte relato: “ Há um ano atrás, seis colegas morreram
por causa das emanações de gás na área do alto-fomo.
Quando começaram a sentir o cheiro, entraram em pâni­
co e, em vez de descerem, subiram. Foi onde erraram, por­
que o gás também sobe. Um grande amigo meu trabalha­
va naquela equipe. Ele conseguiu se salvar porque, um dia
antes, tinha tomado um porre tão grande que não conse­
guiu sair da cama para ir trabalhar” .
Enquanto retiramos a poeira com as pás e a jogamos
dentro de sacos plásticos, no meio de toda uma nuvem,
os montadores da Thyssen, que trabalham alguns metros
abaixo de nós, passam correndo em direção ao ar livre.
Um deles chega a gritar: “ Vocês são burros! Como é que
alguém consègue trabalhar no meio de tanta sujeira?” Meia
hora depois, um encarregado da segurança honra-nos com
sua visita. Tapando o nariz: “Os operários estão reclaman­
do. Dizem que não podem trabalhar com toda essa imun-
dície que vocês estão fazendo. Andem logo com isso!” E
retira-se rapidamente. Trabalhamos até quase o final do
turno. A última hora é reservada ao transporte dos sacos
plásticos cheios de pó. Com eles nas costas, subimos a es-
\
\

cada de ferro e vamos jogá-los num tambor. Embora es­


tafante, considero essa parte do trabalho uma redenção
— pelo menos podemos respirar um pouco de ar “puro” .
Pausa de vinte minutos para descanso. Vamos nos sen­
tar na escada de ferro, onde há um pouco menos de pó. Os
trabalhadores turcos percebem que eu não trouxe nada para
comer. Insistem em repartir seus sanduíches comigo. Ne-
dim, o mais velho deles, oferece-me um pouco de chá quen­
te, qué traz numa garrafa térmica. Dividem, entre si, o pou­
co que têm e conversam num tom suave e amistoso — o
que raríssimas vezes vi entre os trabalhadores alemães. Ou­
tra coisa que me chama a atenção é o fato de sentarem-se
longe dos alemães durante o horário de descanso. E qua­
se nunca conversam em turco. Normalmente falam um ale­
mão sofrível e preferem ficar calados, enquanto os alemães
contam bravatas. Mais tarde Nedim me explica por que
quase não conversam em turco: “É que os alemães pen­
sam que a gente está falando mal deles. E uns acham que
a gente fica mais forte se falar turco. Os alemães querem
entender tudo para poder mandar melhor na gente*’.
Tempos depois vejo Alfred, um dos porta-vozes dos
alemães, ficar furioso durante um intervalo de descanso
ao ouvir os operários turcos conversando em sua língua:
“ Se querem conversar, que seja em alemão! Ainda fala­
mos alemão na Alemanha! Vocês vão ter muito tempo para
falar essa língua de merda quando voltarem para o seu país
de merda! E espero que isso não demore muito!”
Mais tarde conto a Nedim a cena que presenciei, e ele
me mostra um pequeno cartaz que um colega turco havia
encontrado na Casa da Juventude, uma instituição muni­
cipal situada em Lünen. O cartaz contém um texto intitu­
lado “Regras de conduta para visitantes estrangeiros” , no
qual se lê:
• “Na presença de alemães ou pelo menos ao discor­
rer sobre alemães [deve-se] falar alemão.
• “Na Alemanha temos por hábito não nos apresen­
tar diante dos outros durante dois dias após comer
alho. Esperamos o mesmo de nossos hóspedes.

102'
• “Alguns jovens estrangeiros julgam-se no direito
de usar a Casa da Juventude só porque os pais ou
um parente qualquer recolhem impostos na Alema­
nha; isso só é verdade se os jovens estão integra­
dos em nossos hábitos e costumes — e apenas sob
essa condição!”
Na Thyssen não há tais‘‘regras de conduta* *, embora
muitos operários alemães insistam em impô-las aos cole­
gas turcos, que em geral se submetem para não “provocar**.
No dia seguinte, vamos trabalhar numa altura de dez
metros, em campo aberto, com temperatura de dezessete
graus abaixo de zero. Por toda parte, tabuletas com ca­
veiras desenhadas e as inscrições: P roibida a E ntrada
de P essoas Não-Autorizadas, Cuidado : Emanações
DE GÁS!, e, em certos locais: OBRIGATÓRIO o USO DE
Máscaras de P roteção .
Ninguém tinha nos prevenido sobre qualquer tipo de
perigo e também não havia nenhuma “ máscara de prote­
ção**. Nem mesmo sabíamos se fazíamos parte das “ pes­
soas autorizadas** ou das “ não-autorizadas**.
Sobre as plataformas metálicas, nossa “tropa de cho­
que** é obrigada a retirar, com pás e picaretas, montes
de lama semicongelada que transbordam de canos gigan­
tescos.
Nesta altura o vento é glacial; temos as orelhas gela-:
das e os dedos completamente entorpecidos, apesar das lu­
vas de trabalho. Os próprios operários da Thyssen não são
obrigados a trabalhar aqui fora sob tal temperatura; e o
pessoal dos canteiros de obras recebe pagamento extra de­
vido ao mau tempo. Mas para nós nada! Atacamos a la­
ma com as picaretas, e pequenas lascas nos batem em cheio
no rosto. Deveríamos estar usando óculos de proteção, mas
quem se atreveria a pedi-los? Uma fumaça compacta eleva-
se de tanta imundície e nos sufoca, por vezes nos cega.
Transportamos a lama nos carrinhos até as calhas. As pás
vergam continuamente sob o peso do lixo e até os carri­
nhos de mão precisam ser desentortados a golpes de pás
e picaretas. Mal conseguimos ouvir o som da própria voz

103 *
devido ao barulho infernal proveniente das salas das má­
quinas, situadas nas proximidades. Não há necessidade de
vigilância aqui em cima. O encarregado é o primeiro a de­
saparecer; com certeza está abrigado em alguma cantina.
Trabalhamos num ritmo louco, porque, se pararmos, não
agüentaremos o frio. De vez em quando, alguém do gru­
po vai se refugiar numa pequena sala de máquinas. O ba­
rulho lá dentro é ensurdecedor, como se estivéssemos no
meio das cataratas do Niágara. Mas as máquinas pelo me­
nos são quentes. Nós nos apertamos contra elas,
abraçando-as, para receber um pouco de calor. Corremos
algum risco, pois há uma biela que gira permanentemente
e, a menor falta de atenção, pode decepar um dedo. As­
sim que encosto num lugar impróprio, a máquina põe-se
a estalar, a chiar de modo inquietante, a soltar faíscas co­
mo se fosse explodir no instante seguinte.
Depois, voltamos para nosso trabalho forçado, ba­
tendo o queixo, roxos de frio. Ao cabo de seis horas, Jus-
suf, um operário tunisiano, dá a palavra final: “ Inferno
de gelo, isto aqui!’*E completa: “Antigamente os escra­
vos eram mais bem tratados. Tinham mais valor que nós.
O pessoal cuidava para que durassem muito tempo. Com
a gente não. Tanto faz se a gente se arrebenta ou não. Tem
um montão de homens lá fora querendo nosso lugar*’.
Um engenheiro de segurança da Thyssen está passando
por ali. Anda de um lado para o outro, ao redor dos ca­
nos, com um aparelho na mão. Bate no mostrador do apa­
relho e murmura:
— Não é possível! — Em seguida, olha para nós, as­
sustado.
Aproximo-me e pergunto:
— Que caixinha essa? Que tem dentro?
— E um aparelho para medir o gás. Vocês não têm
um? Então não deviam estar trabalhando nesta área.
Começa a explicar como funciona o aparelho: quan­
do o ponteiro ultrapassa uma determinada marca, é sinal
de perigo iminente; deve-se abandonar a área o mais rápi­
do possível, caso contrário pode-se até desmaiar. Enquanto

104*
fala, percebo que o ponteiro de seu aparelho se mantém
exatamente além da marca; chamo-lhe a atenção para is­
so, mas ele me garante que o aparelho está com defeito,
pois não é possível o ponteiro registrar essa marca. Vai
buscar outro e meia hora depois está de volta. E mais uma
vez o ponteiro insiste em ultrapassar a marca permitida.
Irritado, dá uns tapas na caixinha, enquanto diz:
— Não pode ser! Esta droga está com o mesmo
defeito.
— Está? — pergunto, olhando-o com um ar des­
confiado.
E ele me tranqüiliza:
— Tudo bem! Mesmo que o aparelho estivesse fun­
cionando bem, não haveria motivo para pânico. O vento
empurra o gás para longe. — Dito isso, vai embora, car­
regando sua caixinha mágica embaixo do braço. Quanto
a nós, ficamos ali, consolando-nos com o vento glacial que
nos protegerá das emanações de gás..
Semanas depois, no mesmo local, Helveli Raci, um
dos trabalhadores turcos, participa de um episódio seme­
lhante: “A gente também tinha um aparelho desses. De
repente, ele começou a apitar. Perguntei o que queria di­
zer todo aquele barulho, e me disseram que quando o apa­
relho começa a apitar é porque está escapando gás. Daí
eu disse que o aparelho estava apitando, e isso queria di­
zer gás; por que a gente não saía dali? O chefe disse que
era para continuar trabalhando. E a gente continuou. Daí
o chefe foi embora com o aparelho. Tempos depois, ele
voltou, trazendo o tal aparelho., que logo começou a api­
tar de novo. Daí eu disse que alguma coisa estava errada,
mas ele falou que o aparelho devia estar com defeito. E
foi embora de novo. Depois voltou e tentou fazer o apa­
relho parar de apitar. Mas o aparelho não parava. Ficava
apitando e acendia umas luzes. E isso durou o turno to­
do. Alguns colegas começaram a passar mal, mas a gente
foi obrigado a continuar trabalhando. E nem deram más­
cara de proteção para nós. É assim. A gente, que é de em­
preiteira, fica ali, trabalhando e respirando tudo aquilo,
tranqüilamente, até se arrebentar. Eles não querem saber
de nada, só que a gente faça o serviço".
O regulamento da Thyssen exige que usemos sapatos
com biqueiras de aço e capacetes de proteção. A legisla­
ção determina que ambos, além das luvas de trabalho, se­
jam fornecidos por Adler, que, no entanto, trapaceia em
tudo, nas coisas grandes como nas pequenas. Vive “ eco­
nomizando**. Não é à toa que seu ditado preferido é: “ De
grão em grão a galinha enche o papo” . Quando o pessoal
escasseia, os encarregados e supervisores da Thyssen fa­
zem vista grossa e não se importam que os operários en­
viados por Adler trabalhem de tênis. Estamos sujeitos a
todos os tipos de perigo: detritos que caem sobre nós, car­
rinhos de mão sobrecarregados, empilhadeiras que circu­
lam por toda a parte. Durante o tempo em que trabalhei
na TTiyssen, nunca usei sapatos de proteção, como deter­
minam as normas de segurança. E muitos outros operá­
rios tampouco usaram. Foi muita sorte eu não ter sofrido
nenhum acidente.
Conseguimos luvas de trabalho fuçando nos tambo­
res de lixo. Em geral estão sujas de óleo e rasgadas. Per­
tencem aos operários da Thyssen que as jogam fora tão
logo recebem luvas novas.
Quanto aos capacetes, devemos comprá-los. A não
ser que um de nós tenha a sorte de encontrar um capacete
velho, todo estragado. As cabeças dos operários alemães
são mais valiosas e merecem mais proteção que as cabe­
ças dos imigrantes. Por duas vezes, o “xerife** Zentel ar­
rancou meu capacete para dá-lo a um alemão que havia
esquecido o seu. Na primeira vez protestei:
— Ei, momento. Capacete meu! Eu comprou!
Mas Zentel logo me fez ver qual era o meu lugar:
— Nada aqui é seu. Quando muito aquele monte de
lixo! No fim do turno você vai receber o capacete de volta.
É assim: expropriam-nos sem consulta prévia.
Na segunda vez, fui escalado para trabalhar com um
alemão que estava sem seu capacete, dado de graça pela
Remmert. E novamente tive de oferecer minha cabeça.

106 v
Thyssen informa
O arupo Thvssen teve um dólar contribuiu também para últimos anos consolidam a
bom desempenho no exercício um aumento considerável no rentabilidade. A Indústria
1984/85. O s fatores de preço das matérias-primas. As Thyssen prevê um saldo
expansão e crescimento transações cresceram 11% no positivo para o exercfcio
mantiveram-se essencialmente primeiro semestre.Os aços 1984/85. Na Budd. a maior
nos mesmos patamares do ano Thyssen deverão ter parte das empresas continua
anterior. O s setores novamente um saldo positivo em plena atividade e os
retardatários puderam no exercício 1984/85. resultados serão nitidamente
recuperar-se. As transações da Atualmente, todas as positivos. A direção do setor de
Thyssen-Weft no exterior empresas de Acos Especiais ferrovias americanas agora está
cresceram 6 % no primeiro Thvssen estão com suas com a Transit America Inc. Os
semestre. Todos os ramos de atividades em nfvel normal ou encargos provenientes dos
atividade da empresa tiveram melhor. Até o momento, as antigos contratos deficitários já
saldo positivo. Os resultados transações cresceram 8%. Os foram levados em consideração
obtidos pelo grupo no primeiro aumentos consideráveis, no balanço do último ano. As
semestre são previstos para as ligas de metal Pedreiras do Reno mantêm os
comparativamente bem cotadas em dólares, deverão resultados positivos.
melhores que os do mesmo ser suportados. No geral, Aços O setor Comércio e
semestre do ano anterior. Por Especiais Thyssen esperam ter Prestações de Serviço iá há
ocasião da última reunião novamente resultados positivos alguns anos tem ampliado
administrativa, Thyssen no exercício 1984/85. consideravelmente seus
anunciou a renovação do No âmbito dos bens de negócios com o exterior. No
pagamento de um dividendo investimento e de manufatura. primeiro semestre, as
para o corrente ano. foi registrado no primeiro transações tiveram um
Na siderurgia a produção semestre um acréscimo global aumento de 6%.
estabilizou-se no nfvel de transações da ordem de
alcançado no ano anterior. Os ' 7%. Na Indústria Thvssen o
preços puderam restabelecer- volume de encomendas está
se paulatinamente nos últimos em forte expansão. Isso e mais
meses, porque a elevação do os ajustes de programa dos

— Capacete meu. Eu não pode dar. Se eu não tem


capacete, vai para rua.
Mas Zentel apareceu e ordenou:
— Dê o capacete para ele. Senão eu é que ponho vo­
cê no olho da rua. E ande logo!
Tive de obedecer e trabalhei o dia inteiro sem capa­
cete, num setor da Brammenstrasse onde fragmentos de
minério incandescente caíam com estrondo a alguns me­
tros de distância. Se um deles caísse sobre mim, no míni­
mo provocaria queimaduras graves.
Werner, o operário alemão, aceita com naturalidade
que sua segurança dependa de minha insegurança. Digo-
lhe isso, mas ele se contenta em responder: “ Não posso
107"
TCW Í m Thyssen-Welt 1983/84 (1.° de outubro de 1983 — 30 de
setembro de 1984)______
Total de transações dos Empregados
setores industriais efetivos em
Aço 10,3 BM' mécüa anual 132.950
Aço especial 3,5 BM
Bens de
investimento
e manufatura , 9,8 BM
Comércio e
prestações
de serviço 17,6 BM
A receita permanece estável, Total de
transações do Do Balanço
e a empresa fechará o ano
com lucro. grupo Thyssen 41,2 BM Total do balanço 19,2 BM
Quanto às participações Transações internas 8,8 BM Capital próprio 2,6 BM
ainda não consolidadas pelo Total de Investimentos 986 MM*'
balanço, a Thyssen também transações da Amortizações 1.120 MM
espera resultados positivos. Thyssen-Welt 32,4 BM Superávit anual 181 MM

' BM » baiões da marcos


* * MM *• nrâhões de marcos

THYSSEN SOCIEDADE ANÔNIMA

fazer nada. Só faço o que me dizem. Você bateu em porta


errada, vá se queixar em outra freguesia” . Pouco depois,
tem a oportunidade de demonstrar seu desprezo por mim:
“ Esse pessoal da Adler não vale nada, absolutamente na­
da! Ninguém pode levar vocês a sério. Eu não mexeria uma
palha se recebesse a miséria que vocês ganham” . Na rea­
lidade, o que ele está me dizendo é o seguinte: “ Você não
tem nenhum direito aqui. Oficialmente, você não existe:
não tem documentos, nem contrato de trabalho, nem na­
da” . É por isso que me olha com desprezo. É alemão e
trabalha para a Remmert: é um privilegiado, portanto. Tem
direito a horas extras e descanso semanal remunerados;
seu salário bruto é de 11,28 marcos por hora. (Evidente-

108*
mente, a Remmert não paga adicional de insalubridade,
ainda que seus empregados trabalhem a maior parte do
tempo manipulando todos os tipos de gordura imunda e
de óleo usado e fétido e ainda engulam todo aquele pó de
mineração.)
Nós, os empregados da Adler, fazemos o mesmo ser­
viço por um salário bem menor — muito menor, diga-se
de passagem.

Alugo um apartamento de um cômodo e meio na Die-


selstrasse em Duisburg. Assim, aproximo-me um pouco
mais de Ali; quero viver realmente como um operário turco
vive na Alemanha Ocidental, e não ficar “ pulando” de
emprego em emprego. Cada vez mais me identifico com
meu papel. Já me peguei, durante o sono, falando um ale­
mão canhestro. Agora sei quanta energia é preciso ter pa­
ra suportar provisoriamente aquilo que meus colegas imi­
grantes suportam ao longo de suas vidas. Não foi muito
difícil arranjar esse apartamento: Bruckhausen é um bairro
que está morrendo. Durante muitos anos praticamente só
turcos moravam aqui, mas a grande maioria voltou para
seu país. Muitas casas estão abandonadas ou tão velhas
que não servem mais para habitação. Meu apartamento
não tem pia nem chuveiro; o banheiro é coletivo e fica no
corredor. Pago 180 marcos de aluguel. Com uma peque­
na reforma pude me permitir o luxo de ter uma banheira
bem no meio do quarto, instalada por um amigo meu.
Procuro tornar meu novo lar mais confortável. Con­
sigo arranjar dois caixotes de lixo para colocar no jardim.
Os vizinhos viviam atirando lixo no jardim, consideran­
do que isso não poderia piorar a “qualidade de vida” do
local. Bruckhausen fica bem perto da Thyssen. Se alguém
desejar envelhecer neste bairro precisará ter uma saúde de
ferro. Por todos os lados há cartazes instruindo a popula­
ção para chamar um certo número de telefone, caso o mau
cheiro se torne insuportável. Mas ele é quase sempre insu­
portável.

109*
Apesar de tudo, é em Bruckhausen que eu quero me
instalar. Aqui ainda não estou completamente só. Quem
sabe, num dia de verão, eu dê uma festa para os vizinhos
e amigos no pequeno jardim que passei a conservar...

“ É ama emergência!

Alguns operários trabalham o mês inteiro sem um dia


de folga. São tratados como bestas de carga. Não têm vi­
da privada. Vão para casa depois do trabalho porque fica
mais barato para a empresa (para eles, é claro, seria mais
prático pernoitar na fábrica ou mesmo na Remmert). Em
geral são jovens. Depois de alguns anos trabalhando no
meio de tanta sujeira, ficam extenuados e doentes — muitas
vezes pelo resto da vida. Para os patrões não passam de
pessoas descartáveis, que podem ser substituídas a qual­
quer momento, já que nas portas das indústrias sempre
há extensas filas de desempregados à espera de um servi­
ço qualquer, pelo qual ficariam imensamente gratos. Es­
se tipo de trabalho desgastante explica por que raramente
alguém consegue suportá-lo por um ano ou dois. Depois
de um par de meses a saúde já está comprometida para
o resto da vida. Principalmente quando se tem de dobrar
ou mesmo triplicar o horário de trabalho. Um colega meu,
de apenas vinte anos, trabalha até 350 horas por mês. Os
supervisores da Thyssen sabem disso, a siderúrgica lucra
com isso, e os relógios de ponto comprovam isso.
É muito comum a Thyssen requisitar as “ tropas de
choque” da Remmert de uma hora para outra. O “xeri­
fe” tira os operários do chuveiro, depois que já se mata­
ram de trabalhar, e manda-os voltar de Duisburg para
Oberhausen, para toda aquela imundície, pois é necessá­
rio cumprir mais um turno. Ou então um telefonema
arranca-os da cama, convocando-os para o serviço, pre­
cisamente quando acabaram de pegar no sono. Interro­
gada, a maioria dos trabalhadores (inclusive os mais jo­
vens e robustos) afirma não agüentar mais de quinze ou
dezesseis turnos semanais. E nas raras folgas de fim de se

Í10 *
mana passam o tempo todo dormindo, como mortos. Pe­
guemos o jovem F. como exemplo: quase todos os sába­
dos e domingos faz dois turnos seguidos. Nunca se revol­
ta e nunca se queixa. Está sempre metido nos buracos mais
imundos, esgaravatando camadas de graxa fétida e quen­
te, raspando a ferrugem das máquinas — sempre sujo, dos
pés à cabeça. Tem sempre um ar um pouco ausente, e o
rosto, envelhecido, parece guardar certa luz. Pouquíssi­
mas vezes consegue formular uma frase coerente. É o mais
velho de uma família de doze filhos, dos quais quatro não
moram mais com os pais num apartamento de cem me­
tros quadrados. Está sempre com fome. Se alguém deixar
de comer o lanche, lá está ele! Contribui mensalmente com
100 marcos para ajudar a equilibrar o orçamento do­
méstico.
Quando algum colega se queixa do serviço, F. pro­
testa: “A gente deve ficar feliz por ter um emprego!” Ou
então costuma dizer: “Eu faço qualquer trabalho” . Cer­
ta vez, um vigia da Thyssen nos pegou parados num in­
tervalo de descanso que fizemos por conta própria; F. era
o único que continuava trabalhando, e seu exemplo foi lou­
vado pelo vigia.
Ele conta que seu recorde de trabalho contínuo é de
quarenta horas, com cinco ou seis de descanso. Há pou­
cas semanas chegou a trabalhar 24 horas seguidas. Vive
remexendo no lixo à procura de luvas que os operários da
Thyssen usam e jogam fora. Recolhe inclusive as que não
têm par. Mais cedo ou mais tarde encontrará a que está
faltando. Já deve ter umas vinte. Intrigado, resolvo per­
guntar:
— Mas que você faz com elas? Não pode usar tudo
junto.
— Nunca se sabe — responde-me. — A gente não re­
cebe luva. Por isso é bom sempre ter algumas. Você nem
imagina quantas coisas eu já tenho. Também é bom ter
muitos capacetes, porque sempre alguma coisa cai na ca­
beça da gente.
Sinto pena dele. Está sempre radiante... Algumas se­

111 *
manas depois, ao ser novamente escalado para um turno
extra no fim de semana, vejo-o suplicar ao “xerife” :
— Não posso mais! Não posso, não consigo!
— O quê! Você sempre agüentou.
— Mas hoje não, por favor! Hoje não!
— Vou me lembrar disso — diz o “xerife” . — Eu
sempre pude contar com você.
Dou os parabéns a F.:
— Ainda bem você recusou. Você se mata trabalhar.
Na verdade, ele não conseguiria mesmo. Mal podia
ficar em pé. Estava pálido como um cadáver, e suas mãos
tremiam sem parar.
Um colega conta que, no ano passado, durante os fe­
riados da Páscoa, trabalharam 36 horas ininterruptas: “A
Remmert ficou encarregada de limpar a linha de monta­
gem de pintura da Opel em Bochum. O trabalho devia es­
tar pronto antes que a equipe de pintores voltasse para ò
serviço, ou seja, na terça-feira depois da Páscoa, às seis
horas” . Mas essa maratona na fábrica de automóveis não
foi o “ponto culminante” para os operários. “Há dois anos
a gente foi trabalhar na construção de um centro esporti­
vo perto de Frankfurt. Junto com outra equipe, que já es­
tava lá, trabalhamos cinqüenta horas seguidas, até cair de
cansaço.”
Hermann T., operário alemão de aproximadamente
35 anos, é um dos mais obstinados “recordistas de horas”
da Remmert. E isso está estampado em seu rosto pálido,
cinzento, magérrimo e acabado. Ficou algum tempo de­
sempregado e, como poucos, está muito grato por poder
trabalhar até cair. Entrou na Remmert em fevereiro de 1985
e de lá para cá trabalha como um possesso. Ele mesmo
declara: em abril de 1985, pela primeira vez, trabalhou 350
horas no mês. A mesma coisa em junho, quando “ acu­
mulou todas as horas” e já havia completado trezentas ho­
ras no dia 25, “antes mesmo do fim do mês” . Prossegue
em seu relato: “Na semana passada, trabalhei quatro tur­
nos seguidos, sexta e sábado. Cheguei junto com vocês na
Thyssen, às seis da manhã, e só fui sair no sábado, às duas

112 -
e quinze, quando bati o ponto” . Para Hermann, esse ti­
po de maratona nada tem de excepcional. É claro que cons­
titui uma infração flagrante à legislação do tempo de tra­
balho, mas, para não dar na vista, a cada turno Hermann
é escalado para um lugar diferente dentro do imenso par­
que industrial da Thyssen. “ Sexta-feira de manhã eu es­
tava em Ruhrort, limpando uma oficina. Ao meio-dia, já
estava na Oxy I. À noite, fui para a central elétrica de Voer-
de e no sábado de manhã já estava de volta a Ruhrort.”
Em frangalhos, com as pernas bambas, foi se arrastando
para casa. “ Comi alguma coisa, mas na verdade não ti­
nha um pingo de fome. Antes de me atirar na cama, ain­
da pedi para minha mulher me acordar às oito e quinze
da noite, porque eu queria ver o filme que ia passar na
televisão. Que ilusão! Cai na cama e só fui acordar ao meio-
dia de domingo!”
Hermann conta como as coisas funcionavam na
Thyssen: “ Trabalhos de dezesseis, doze, treze horas num
único dia — todos os sábados, todos os domingos, todos
os feriados — sem parar. Páscoa, Pentecostes, não impor­
ta. Lá estávamos nós. Muita coisa precisava ser feita. Ha­
viam desligado o alto-forno para ser totalmente limpo. Já
imaginou? Trabalhamos como escravos, debaixo de chu­
va, vento, neve, frio — não importa. Os uniformes fica­
vam ensopados. Uma equipe de dez a quinze trabalhado­
res da Remmert, mais o pessoal da Adler. No total, tra­
balhamos ali quase cinco meses” .
Sezer O. (44 anos), operário turco, afirma deter o re­
corde de permanência no mesmo serviço. Foi durante a
construção do metrô de Munique, quando a equipe da qual
participava trabalhou 72 horas num poço subterrâneo. Os
operários aproveitavam os intervalos de trinta minutos para
dormir. Sezer conta que, nessa maratona, muitos se aci­
dentaram. Todos eram imigrantes.
É bastante comum o “xerife” nos obrigar a fazer tur­
no dobrado (coação é o termo jurídico para isso). Esgo­
tados dentro do ônibus, prontos para voltar para casa, al­
guns até já dormindo nos assentos, chega o “ xerife” e,

113*
com a maior naturalidade, diz: “ O trabalho não pode ser
interrompido agora. Vamos ter que fazer turno dobrado” .
Alguns protestam, querem ir embora, estão exaustos. Mas
a Thyssen exige que continuemos trabalhando.
T., um operário argelino, precisa impreterivelmente
ir para casa. E demitido na hora. Retiram-no do ônibus
e o abandonam no meio da rua, para que saiba exatamente
qual é seu lugar. Eis o diálogo que precedeu sua demissão:
XERIFE: Vocês têm que continuar trabalhando até as
dez da noite.
Operário Argelino .*Puta que pariu! Eu não sou
robô!
XERIFE: Todos vocês!
Operário Argelino : Mas eu preciso ir para casa
sem falta!
XERIFE: Acontece que é uma emergência. Se você for
para casa não precisa voltar.
Operário Argelino : Mas eu preciso ir...
XERIFE: Então vá! Mas não volte! Chega! Acabou!
Rua! Não quero mais saber. Pode ir embora! (Voltando-
se para os outros, que estão calados e com medo). Preci­
so de quarenta homens para amanhã também. Ordens da
Thyssen! Acham que eu também não gostaria de ter uma
noite de descanso? Mas isso ninguém me pergunta, não
é? Hoje à tarde eu deveria ter ido ao dentista, por caiisa
da minha jaqueta, mas não pude. E daí? Então, o que é
que vocês pensam? Queria ver se fosse na guerra... Aí, sim,
seria mil vezes pior.

“ É melhor fingir que não entendeu”

Durante um intervalo para descanso, num daqueles


quilométricos corredores sombrios e desertos da oficina
de concreção III, aparece o supervisor da Thyssen acom­
panhado de seu encarregado. Vem verificar a quantidade
de lama e pó de concreção que já havíamos desentulha-
do. A instalação só voltaria a funcionar depois que tivés­
semos terminado o serviço.

114“
A aparência oriental de Jussuf faz com que o jovem
supervisor volte a se lembrar das últimas férias:
— Você é da Tunísia?
— Sou — Jussuf responde.
— Que país fantástico! Vamos voltar lá, nas próxi­
mas férias, müiha mulher e eu. Lá, sim, a gente pode des­
cansar de verdade. E as coisas são bem mais baratas.
Surpreso, Jussuf sorri agradecido. É tão raro ver um
superior, e ainda por cima alemão, conversar com um imi­
grante sobre assuntos que não dizem respeito ao trabalho!
E, mais raro ainda, ouvi-lo falar bem do país do outro.
Jussuf conta que seus pais moram perto da praia e dá-lhe
o endereço, convidando-o a visitá-los quando estiver na
Tunísia. O supervisor aceita de imediato:
— Pode estar certo que eu vou! Mas o que eu queria
mesmo é que você me arranjasse outros endereços. Sabe
o que estou querendo dizer, não? As mulheres do seu país
são muito gostosas e trepam como ninguém. É uma ma­
ravilha! Quanto elas estão cobrando agora?
— Não sei — responde Jussuf.
— Com 20 marcos a gente tem tudo que quer no seu país!
Ferido em sua honra, Jussuf ainda responde:
— Não sei!
Mas o supervisor insiste, enfiando o polegar da mão
esquerda entre o indicador e o médio da direita:
— As mulheres de lá estão sempre muito excitadas.
Como gatas selvagens. É só puxar o véu, pronto, ficam
logo no cio. Você não tem uma irmã, por acaso? Ou será
que ela ainda é muito criança? Vocês casam tão cedo...
* Jussuf tenta disfarçar a humilhação diante dos colegas.
— Mas o senhor não vai viajar com a sua mulher?
— Isso não tem a menor importância. Ela fica o dia
inteiro na praia e não vê coisa nenhuma. Aliás, é um ho­
tel maravilhoso, igual ao Intercontinental daqui. Dois mil
e poucos marcos por duas semanas com tudo incluído. Da
última vez, demos um pulo até um país ali perto... Como
é mesmo o nome?
— Marrocos — Jussuf responde polidamente.

115'
— É claro, Marrocos! Eu tinha esquecido. Também
está cheio de mulheres gostosas. Mas me diga... que lín­
gua vocês falam? Espanhol?
Jussuf não agüenta mais:
— Não! Árabe! Com licença, eu vou ao banheiro.
O supervisor aproveita para sentar-se no chão perto
de nós e continuar recordando suas férias com entusiasmo.
— Ah, se eu estivesse no Mediterrâneo agora... Na­
da de trabalho, só o sol... E mulheres, é claro, muitas mu­
lheres! — De repente, vira-se para mim e pergunta: — É
verdade que na Anatólia a gente pode comprar uma mu­
lher com uma cabra? — Resolvo olhar para o outro lado,
mas ele insiste: — Não é verdade? Se não é, como foi que
você se livrou da sua mãe?
— Alemão sempre acha que pode comprar tudo —
respondo. — Mas coisas mais bonita do mundo gente não
consegue com dinheiro. Por isso alemão tão pobre, mes­
mo se tem dinheiro.
O supervisor sente-se atacado e desforra:
— Nem de graça eu queria uma daquelas putas dos
seus haréns! São umas porcas, estão sempre fedendo. A
gente primeiro tem que dar um banho nelas. E quando ter­
mina de arrancar aqueles trapos que elas vestem, pronto...
a gente já está de pinto mole de novo.
Mais tarde, Jussuf leva-me para um canto e diz: “ Sa­
ber alemão não é boa coisa. A gente sempre se aborrece.
É melhor fingir que não entendeu!” E conta o exemplo
de alguns jovens tunisianos que, em virtude das constan­
tes humilhações, decidiram não aprender a língua alemã!
“ Só falam ‘sim, senhor’, para qualquer coisa que o chefe
diz. Assim, não tem discussão!”
Vários banheiros da Thyssen vivem rabiscados com
frases e insultos xenófobos. Nas paredes da fábrica tam­
bém sempre há alguma pichação ofensiva aos imigrantes,
e ninguém se encarrega de apagá-la. Eis alguns exemplos
típicos dessa literatura de mictÒrio, recolhidos dentre cen­
tenas nas instalações Oxygen I: Merda boiando = turco
nadando. Perto dali, na cantina, há a seguinte frase: Fo­

116'
ra, turcos! A Alemanha para os alemães! Ao lado, al­
guém que gosta de animais teve o bom gosto de pregar um
adesivo com a figura de um ursinho e os dizeres: “ Prote­
ja as espécies em extinção!” Vinte metros adiante, uma
inscrição com letras garrafais: M o r te a todos o s tur ­
cos ! Inscrição que também se encontra no banheiro do
setor de laminação na Kaltwalzstrasse. Anotei algumas,
já meio envelhecidas, o que prova que estão ali há muito
tempo:

Melhor mil ratos na cama que um turco no porão!


Enforquem todos os turcos e todas as alemãs que andaram
com eles!
Com outra caligrafia:
Turcos de merda, nenhumaforca é bastante alta para vocês!
Fuzilem todos esses turcos de merda!
E em outra caligrafia:
Tenho orgulho de ser alemão!
A Alemanha para nós, alemães!
E em outra ainda:
Antes a merda de um nazista que um turco de merda!
Nunca houve um alemão melhor que Adolf Hitler!
Seja um bom alemão: mate um turco no porão!

Conversa no horário de descanso

Os operários alemães Michael (34 anos), Udo (26) e


Alfred (53), seu porta-voz, montaram uma espécie de ponto
de encontro num compartimento subterrâneo da Bramm-
strasse. Improvisaram um banco, colocando uma tábua
sobre dois barris, e nele se instalaram para beber e fumar.
Sentado sobre uma página do jornal turco Hürriyet (“ Li­
berdade”), vejo-me condenado ao papel de ouvinte. A con­
versa é interrompida sem cêssar pelo estrondo do minério
caindo na terra.
ALFRED: Podem crer! Na época de Hitler quem rou-
bava qualquer coisa de um companheiro, nem que fosse
um cadarço, era levado para o paredão e fuzilado. É ver­
dade, podem crer! E era bem feito! Quem roubava de um
companheiro, era linchado ou fuzilado. Devia ser assim
ainda hoje. Não se rouba nada dos amigos, isso não se faz!
EU: Mas chefe pode roubar você?
Alfred: Isso não tem nada a ver! Agora, quem dá
cabo de um companheiro ou lhe rouba...
EU: Mas chefe também vai para paredão se roubar?
A lfre d (ligeiramente ameaçador): As coisas deviam
ser como no tempo de Hitler. Aí, sim, a Europa estaria
em ordem!
EU: Muita gente fuzilada?
Alfred: Você precisava estar lá para ver.
UdO: Naquela época os velhos podiam andar na rua.
A lfred : É verdade. Naquela época uma vovozinha
de setenta anos podia andar à noite pela rua com 10 mil
marcos na bolsa que nada acontecia.
EU: Com tanto dinheiro, vovozinha ia de carro, não
a pé sozinha...
Alfred: Meu pai morava numa cidade grande, mui­
to grande... Leipzig, a cidade das feiras, onde eu nasci. Meu
pai tini» moto, carro e bicicleta. A bicicleta ficava no quintal,
o ano inteiro e quando enferrujava ele comprava uma no­
va. Então deixava essa nova no quintal. Nunca foi roubada.
EU: E quem ia querer bicicleta estragada?
A lfre d (tentando apelarpara minha consciência, co­
mo se todos os imigrantes fossem ladrões em potencial):
Limpe bem essas suas orelhas de jumento e preste aten­
ção no que eu digo!
EU: Como assim?
ALFRED: Sobre quem rouba, quem surrupia! Veja
bem, antigamente não era como hoje, que todo mundo
tem máquina de lavar. A gente tinha uma lavadeira, a sra.
Müller, porque meus pais tinham uma lojinha. Todos os
meses era aquele montão de roupa, entende? No inverno,
ela estendia a roupa no chão; no verão, pendurava no quin­
tal. E nunca sumiu nada, nem mesmo um lenço.

118»
Eu (voliando-me para os outros): Eu não ia querer
lenço sujo ranho, eu ter lenço papel.
A lf r e d (sem se perturbar): Nem mesmo um lenço...
EU: Mas aquela época estrangeiro não vivia muito
bem, não?
Alfred : Preste atenção! Naquela época a disciplina
e a ordem imperavam na Alemanha inteira.
EU: É... Mas e judeu? Vocês matou judeu, não
matou?
ALFRED: Vá à merda com os seus judeus! Naquela
época a gente aprendia a respeitar os mais velhos. Era is­
so que nos ensinavam, que enfiavam na nossa cabeça. O
professor na escola, e os pais em casa. Você pensa que uma
criança se atrevia a sentar no trem? Meteram na cabeça
da gente que era para deixar o lugar para os mais velhos
e isso estava muito claro!
EU: Você quer dizer que pais era melhor?
A lfred : Na verdade era uma ditadura, mas eu me
sentia bem melhor naquela época do que hoje, com toda
essa merda de gente que vive aqui.
EU: Mas por que vocês matou tanto judeu?
UDO (querendo dar a deixa para Alfred): Porque
eram estrangeiros.
ALFRED: Quer mesmo saber por quê? Quer mesmo
saber?
Eu (como se ignorasse o motivo): Eu quer, sim.
Alfred : Hitler só cometeu um erro... devia ter vivi­
do mais uns cinco anos. Então não ia sobrar ninguém, ne­
nhum deles, nenhum! Basta um judeu meter o dedo em
alguma coisa para tudo começar a descambar.. E não im­
porta se é um judeu rico ou pobre. Tem muito judeu rico
por aí. Por exemplo: Rockefeller, Morgenthau, e outros.
Estão sempre provocando desgraça, desordem e terror; é
só ler os livros de História. Eles têm dinheiro para con­
trolar as pesquisas científicas. Têm dinheiro, têm poder
de vida e morte. São assim. Veja bem, se Hitler tivesse vi­
vido mais uns cinco anos, se as coisas tivessem corrido bem
para ele, esse tipo de gente não existiria mais, pode crer!

119 *
EU: É... Vocês também màtou cigano.
Michael : Não eram alemães de raça pura, por isso
ele acabou com todos. Só não acabou com os alemães de
raça pura.
UDO: É verdade! Mas não foi só Hitler!
EU: E ele também acabava comigo? (Não obtenho
resposta.)
ALFRED: Você quer saber quem foi que começou com
toda essa história de campo de concentração? Falando bem
sério mesmo? (E, elevando a voz, responde à própria per­
gunta.) Foram os ingleses!
UDO: Os americanos! Foram os americanos que co­
meçaram tudo isso!
A lf r e d (insistindo): Não e não! Foram os ingleses!
Churchili, sim, Churchill começou tudo isso quando era
primeiro-tenente do Exército inglês. Sabe, na época das
guerras coloniais ele era primeiro-tenente... enfim,
sargento.
MICHAEL: Hitler não devia ter feito uma coisa
dessas!
ALFRED: E sabe o que Churchill fez?
M ic h a e l (insistindo): Não, ele não podia ter feito
essa sujeira!
ALFRED: Churchill lutou em duas frentes.
Michael : Não importa, Hitler não devia...
A lf re d (cortando-lhe afrase): Churchill, com aquele
exército colonialista, nos expulsou do sudoeste da África.
Fez isso com a gente, e também com os bôeres... Você já
ouviu falar dos bôeres, não? Pois Churchill prendia as mu­
lheres e crianças bôeres num acampamento no meio do de­
serto e deixava todo mundo morrer...
MICHAEL: I sso também não é direito. Mas Hitler foi
o maior assassino de todos os tempos...
A lfre d (irritado com Michael, volta-se contra mim):
Você não é nenhum idiota, é?
EU: Bom, depende...
Alfred : Sabe qual é a diferença entre um turco e um
judeu?

‘ 120 4
EU: Não tem diferença. Dois gente, ser humano.
A lf r e d (triunfantef. Mas claro que tem! Para os ju­
deus o pior já passou!
UDO (pede a palavra a Alfred): Ei, conheço uma
melhor.
ALFRED: Então conte!
U do (voltando-separa mim): Quantos turcos cabem
dentro de um fusca?
EU: Eu não sabe.
UDO: Vinte mil. Não acredita?
EU: Se você diz...
UDO: Não quer saber como?
EU: Melhor não.
UDO: É muito simples. Dois na frente, dois atrás, e
o resto no cinzeiro.
A lf re d (rispidamente): Muito engraçado! Fazia tem­
po que eu não ria tanto. Essa é tão velha que tem barba,
já a escutei no mínimo cem vezes. Mas vocês conhecem
a última? Um garotinho turco está passeando com o ca­
chorro, um pastor alemão. De repente, eles passam por
um homem, um alemão, que pergunta: *'‘Aonde é que vo­
cê vai com esse porco?** E o turquinho responde: “ Não
é porco, é cão de raça, pastor alemão, com pedigree e tu­
do!** Então o homem diz: “ Cale a boca, não estou falan­
do com você!** (E cai na risada, acompanhado por Udo.)
Michael : Não acho legal vocês contarem essas coi­
sas diante do Ali. Ele pode não entender muito bem.
EU: Eu não acha graça. E também eu não acha gra­
ça piada com judeu. (Voltando-mepara Alfred): Eu acha
vocês não têm muita coisa rir, por isso vocês faz piada com
outro.
A lf r e d (irritado): Foi só uma brincadeira. E não se
metam nos nossos assuntos, porque aí é que não vão ter
do que rir. (Provocando-me): Você conhece Mengele?
EU: Sim. Médico assassino de campo concentração.
ALFRED: Mengele não era tão burro. Por exemplo,
nunca usou turcos nas experiências que fazia. E sabe por
quê? (Percebendo que prefiro ficar calado, lança-me um

' 121 9
olhar cheio de ódio.) Porque vocês não servem para na­
da, nem para ser usados em experiências. .
MlCHAEL: Toda vez que eu vejo e escuto coisas da­
quela época, sinto vergonha de ser alemão. No duro!
A lf r e d (com certo prazer): Mengele prendia as pes­
soas no gelo e ficava observando quanto tempo elas agüen­
tavam ali, agachadas. (Voltando-se para mm): Você não
é um turco de verdade, é? O que você é, afinal? Sua mãe
é meio negra, não?
Eu: Minha mãe grega, meu pai turco.
A lfred : Sei. Mas e você? O que você é? Turco ou
grego?
Eu: Duas coisas. E também pouco alemão. Eu já es­
tá aqui dez anos.
A lf r e d (para os outros): Ouviram só o que esse idio­
ta disse? Ele se acha um pouco de tudo. É isso que acontece
quando começam a misturar as raças.. Chega uma hora que
já não são mais nada. Não têm mais pátria. Que nem os
comunistas. Aliás, lá no lugar de onde ele veio está assim
de comunistas! Parece um formigueiro. Sabe o que estão
fazendo na Mannesmann? Pondo todos os turcos no olho
da rua. Aqui na Remmert também a gente pode tocar fogo
em todos os turcos; é só olhar para eles que dá vontade de
vomitar... (Voltando-separa mim): Lembra o que eu disse
ontem? Se não me obedecer direitinho, dou-lhe um tama­
nho pontapé no rabo que você vai parar no olho da rua.
MlCHAEL: O que podemos fazer? Não podemos che­
gar e dizer: “Tudo bem, vocês trabalham aqui, precisá­
vamos de vocês, mas agora fim, acabou!" Eles estão aqui!
Eu: Gente não veio assim, livre vontade. Vocês foi
buscar gente. Vocês foi lá, com conversa: “ Vem, vem!
Gente ganha muito dinheiro lá. Vem, nós precisa vocês!"
Ninguém veio sozinho, porque quis.
MlCHAEL: É verdade! E nós devíamos recom-
pensá-los.
UDO: É... Como a Mannesmann está fazendo.
MlCHAEL: Tem muita gente sem emprego. Estamos .
atolados em plena crise.

122'
UDO: Na Mannesmann o pessoal foi logo falando:
“ Vamos dar a cada um uma ajuda de custo no valor de
10 a 30 mil marcos para voltarem para os seus países” .
EU: Mas se todo imigrante vai embora, acaba dinhei­
ro para pagar vocês. Vocês não têm nada para receber,
se eles paga para gente esse dinheiro.
ALFRED: Não diga besteira! Não tem tanto turco por
aqui!
EU: Milhão e meio. Vocês fica arruinado!
A lfred : Sabe como é na Suíça? Se você trabalha na
Suíça como imigrante, assina um contrato por onze me­
ses. No décimo-segundo mês, quando você está de férias
lá no seu país, eles mandam uma carta dizendo se você
pode voltar ou não. É ássim que a Suíça resolve essas coi­
sas. Durante as férias, eles decidem se você volta ou fica
lá mesmo na sua terra, tomando conta dos camelos.

A odisséia de Mehmet

Mehmet, um dos trabalhadores turcos, já com certa


idade, sempre me impressionou por sua calma. É com uma
paciência quase estóica que se encarrega das tarefas mais
pesadas e perigosas. Gentil, com os cabelos embranqueci­
dos e o rosto redondo e enrugado, tem um ar paternal.
Fico chocado ao saber, por intermédio de Klaus, um ope­
rário da Remmert, que Mehmet tem exatamente 49 anos.
Eu lhe dava uns sessenta.
Um dia, Mehmet vem despedir-se pois segue para a
Turquia em “ férias de cinco semanas” . Pergunto a um
colega:
— Remmert costuma dar tanto tempo férias? Em
Adler, impossível! Se gente pede cinco semanas eles põem
gente em olho de rua.
— Aqui também — diz o empregado da Remmert.
— Ninguém consegue cinco semanas de férias. Só Meh­
met. É porque só num ano ele sofreu três acidentes gra­
ves. Por isso o chefão resolveu ser bonzinho!
Vou me informar direito, e todos os colegas confir­

123 *
mam: Mehmet sofreu mesmo três acidentes graves. O pri­
meiro nâo ocorreu dentro da Thyssen, mas na luxuosa vi­
la que Remmert possui em Mülheim. Mehmet e um tra­
balhador alemão estavam instalando uma sauna no porão
da casa. Tiveram de cafar a terra e derrubar algumas
paredes. +
“Foi assim que aconteceu’%conta um dos trabalha*
dores. “O alemão estava cavando, e Mehmet percebeu que
uma parede ia ruir. Rapidamente conseguiu tirar o alemão,
que de outro modo teria morrido, e a parede caiu em cheio
em cima do seu ombro esquerdo.” O médico tirou algu­
mas radiografias e constatou que o osso estava esmigalha-
do. Mehmet teria sua capacidade de trabalho reduzida em
46%. Precisou ficar no hospital mais de dois meses. A
Remmert não lhe pagou um centavo de indenização nem
de seguro. Em compensação, o próprio Remmert, aquele
mercador de seres humanos, prometeu arranjar-lhe uma
colocação na Thyssen, a despeito do grave ferimento.
No mês de fevereiro, Mehmet estava de novo na equi­
pe, escalado para trabalhar na concreção no turno da noite,
em pleno estado de alerta devido à poluição e debaixo de
um frio de matar. Ele escorregou e, tentando instintiva­
mente proteger o braço fraturado, caiu bem em cima do
outro. Deslocou a omoplata, que teve de ser imobilizada.
Nem bem se restabeleceu, Mehmet voltou ao trabalho, no
turno da noite (afinal, tem mulher e três filhos, um deles
com deformidade física congênita). Depois de catorze noi­
tes consecutivas, atirou-se na cama, morto de cansaço.
Duas horas depois, telefonaram para sua casa exigindo que
se apresentasse para o turno do dia. Mehmet foi. Às oito
das noite, quis ir para casa. O encarregado ordenou-lhe
que voltasse para a fábrica imediatamente após o jantar,
pois estava escalado para o turno da noite. Mehmet voltou.
Numa instalação subterrânea, Mehmet limpava os ca­
nos por onde escoa o metal em fusão; o trabalho provoca
muitas nuvens de vapor e impede que se enxergue um pal­
mo adiante do nariz. Exausto e combalido, Mehmet en­
fiou o pé dentro de um buraco e caiu. No hospital diag­
124 '
nosticaram: rotura dos ligamentos. Mehmet foi submeti­
do a duas operações, mas sua perna não se recuperou to­
talmente. E ele continuou trabalhando.
Ao voltar das férias, Mehmet me diz: “ O que pode
fazer? Eu precisa trabalhar. Criança, dívida...”
É muito difícil conversar com ele. Poucos dias depois
de seu retomo, já está novamente exausto e combalido.
Só consegue medir o tempo em turnos de trabalho e fre­
qüentemente se esquece do que aconteceu durante meses
inteiros. Só é capaz de lembrar se fazia;muito frio ou era
um daqueles serviços nojentos que a Thyssen oferece. Mora
na Alemanha desde 1960, mas seu alemão é canhestro. A
luta pela sobrevivência não lhe dá tempo para aprender
corretamente a língua. Sendo assim, precisei “ arrancar”
dele uma conversa (um colega turco serviu de intérprete).
A duras penas, Mehmet conseguiu realizar aquilo que
os alemães consideram uma virtude: instalar-se com a fa­
mília num país estranho. Ele conta que, durante os dez
primeiros anos, trabalhou em todos os lugares onde ha­
via serviço. Até que, em 1970, conseguiu uma colocação
estável como motorista de empilhadeira na Thyssen, em
Duisburg. Ganhava um salário líquido de 1 600,1 700 mar­
cos, em turnos alternados. Por isso, arranjou outro
emprego.
Depois de muitos anos de economia e com emprésti­
mo bancário, finalmente pôde comprar uma casinha ge­
minada, meio decrépita, em Duisburg-Mettmann. “ Se eu
tivesse continuado na Thyssen, ela já estaria totalmente
paga.” Seu chefe liquidou-lhe as modestas pretensões. “Foi
no ano de 1980. Eu ia sair de férias. O chefe do turno apa­
receu e falou para nós: ‘Eu quero que me tragam um ta­
pete da Turquia. Mas autêntico!’ Então eu disse: ‘Olhe,
um autêntico tapete turco deve custar uns 5 000 marcos.
Eu não tenho tanto dinheiro’. ‘Não quero nem saber! Se
você não me trouxer um daqueles tapetes, vai ver só uma
coisa!’ ”
Assim que Mehmet voltou da Turquia, o chefe pas­
sou a esfolar-lhe a pele como “reprimenda” pelo “ pre­
125 è
sente” recusado. “Um dia ele me disse: ‘Venha até meu
escritório!’ Chegando lá, começou a me xingar, e eu fi­
quei quieto. Três horas depois, apareceu um dos guardas
de segurança da fábrica, agarrou meu braço e disse para
eu ir embora. Foram falar que eu tinha batido no chefe.
Mas claro que eu não fiz isso.”
Depois de dez anos de trabalho, Mehmet foi despe­
dido sem nenhuma prova concreta contra ele e sem rece­
ber aviso prévio. Tampouco foi intimado a depor para ex­
plicar as “lesões corporais” que supostamente provoca­
ra. A repartição de assistência judiciária recusou-se a
defendê-lo porque a administração da Thyssen alegara
“ agressão a colega” para justificar sua demissão. Meh­
met chegou a apresentar testemunhas — entre as quais,
alguns operários alemães —, e todos depuseram a seu fa­
vor, dizendo que o motivo da dispensa era uma farsa.
“ Fiquei muito chocado com essa história. Comecei
a procurar emprego em todos os lugares. Durante dois ou
três meses não encontrei nada. Até que consegui uma co­
locação numa fábrica de aparas de chapa, em Duisburg-
Homberg. Motorista de empilhadeira. Já estava lá fazia
uns cinco meses, e tudo corria muito bem, sem nenhum
problema. Mas um dia chegou um telegrama dizendo que
minha mãe tinha morrido. Fui procurar o chefe e pergun­
tei se podia tirar uma semana de licença, para ir ao enter­
ro. ‘Como é que é? Tirar férias com cinco meses de em­
prego? Onde já se viu uma coisa dessas?’ Insisti: ‘Mas é
que minha mãe morreu...’ Ele respondeu que não tinha
nada a ver com isso. Mesmo assim, decidi ir; quando vol­
tei uma semana depois... rua!”
Pressionado pelas dívidas feitas com a compra da casa,
Mehmet pôs-se novamente a procurar emprego. Em vão.
Mais uma vez ficou desempregado durante três meses. “En­
tão fui tirar uma carteira de motorista profissional para
poder dirigir caminhão. Preenchi fichas de pedido de em­
prego em toda parte. Acabei conseguindo uma colocação
numa firma pequena, como motorista de furgão e com sa­
lário bem baixo. Dois dias depois, recebi uma proposta

126*
da Rheinperle, onde eu já havia trabalhado consertando
encerados de caminhões. Procurei o chefe do pessoal, e
ele me disse: ‘Você pode começar imediatamente, mas co­
mo motorista de empilhadeira. Mais tarde, quem sabe, po­
derá dirigir um caminhão’. Fiquei nessa firma durante qua­
tro anos.”
Uma proposta “melhor” fez Mehmet mudar de em­
prego: 13 marcos por hora numa transportadora de Düs-
seldorf. “E mais 18 marcos para as despesas gerais. Cla­
ro que aceitei!” Cinco semanas depois, foi demitido:
“ Contenção de despesas” . “E mais uma vez corri pa­
ra todo canto. Na agência oficial de empregos disseram
para eu voltar dali a três ou quatro meses. ‘Não há na­
da no momento!’ Comecei a procurar em todas as em­
presas. Então um vizinho me falou que a Remmert esta­
va precisando de motorista. ‘E onde é que fica essa tal
Remmert?’ ‘Pergunte na Mannesmann!’, ele respondeu.
Fui até lá: todos os dias, durante uma semana. E nada
de o encarregado da Remmert aparecer. E eu ali, parado
diante do portão quatro. Até que perguntei para um dos
soldados: ‘Onde é que fica o escritório da Remmert?’ ‘Em
Oberhausen.’ Fui correndo para lá. Cheguei em Oberhau-
sen por volta das três ou quatro horas da tarde. O encar­
regado me disse: ‘Tudo bem, pode começar agora mes­
mo. Só que é um serviço pesado, nojento*. E eu falei:
‘Gosto de trabalhar, não faz mal que seja um serviço pe­
sado ou nojento. Preciso trabalhar. Tenho que sustentar
minha família*.”
A Remmert paga-lhe um salário bruto de 12,24 mar­
cos por hora; e Mehmet paga com sua saúde.
Em outro lugar

Adler adoraria tomar-se “ tão grande quanto Rem­


mert’*. Esse é seu sonho.
Na realidade, a distância que separa Adler de Rem­
mert não é tão grande. É a mesma distância que separa
a ralé das pessoas de reputação duvidosa: Adler “vende”
127 4
seus empregados de forma totalmente ilegal, enquanto Rem­
mert — pelo menos algumas vezes — trabalha dentro dálei.
Os negócios de Alfred Remmert, proprietário da em­
presa do mesmo nome, enriqueceram-no tanto que ele pra­
ticamente não faz outra coisa senão contar o dinheiro pro­
veniente da Sociedade de Limpeza Industrial (para a qual
Adler vende seus trabalhadores), com 170 empregados, e
da SWI, firma de limpeza de edifícios, com seiscentas fa­
xineiras e mais o pessoal de manutenção.
Os que trabalham para Remmert na Thyssen ou na
Mannesmann (tarefa tão árdua quanto um trabalho de de­
molição de imóveis ou de construção civil) recebem 11,28
marcos por hora — ou seja, a tarifa em vigor para o pes­
soal de manutenção. Quem consegue agüentar o serviço
mais de um ano recebe um aumento de 60 centavos. O sa­
lário para operários qualificados na construção civil é de
14,09 marcos por hora.
Os trinta imigrantes da Sociedade de Limpeza Indus­
trial estão em piores condições. Um turco obrigado a tra­
balhar pela Remmert na Mannesmann descreve as condi­
ções de trabalho e as falsas promessas que viviam fazen­
do. “ Disseram que se a gente queimasse mais de vinte to­
néis por dia, nos pagariam um adicional de 2 marcos por
tonel. Trabalhamos feito loucos e, no final do mês, tínha­
mos queimado 1 600 tonéis suplementares, o que daria
3 200 marcos. Como éramos onze — oito turcos e três ale­
mães — cada um de nós receberia quase 300 marcos. Mas
a Remmert não nos pagou nem um centavo a mais.”
Eis o relato de Ylmaz G.: “ Os colegas que trabalha­
vam na coqueria, todos da Remmert, não estavam satis­
feitos com o salário, porque a grande parte dos trabalha­
dores de outras empreiteiras ganhava mais para fazer o
mesmo serviço. Havia gente que veio de uma firma de de­
molição de Duisburgganhando até 3,50 marcos pór hora” .
Tanto na Thyssen quanto na Mannesmann, as horas
extras são feitas “ regularmente” . Ylmaz calcula que um
operário da Remmert trabalha na Mannesmann cerca de
230 a 250 horas por mês.

128*
A Mannesmann também costuma empregar esse tipo
de mão-de-obra quase sempre em “missões suicidas” : onde
quer que trabalhe, o pessoal está sempre imerso em pó e
fumaça. Conseqüentemente, o risco de acidentes é muito
grande. Um dos membros do conselho de empregados da
Mannesmann faz o seguinte relato: “Aqueles que são es­
calados para trabalhar com os maçaricos passam todo o
turno numa posição incômoda, encurvados. Sem falar no
calor constante que provém dos maçaricos” .
“ Como antigamente, na época das galés” , diz Ali K.,
“ quem não tem mais forças é jogado ao mar! Mehmet,
um trabalhador turco da Remmert, prestava serviços na
Mannesmann. Um dia, ao carregar o ferro fundido, uma
corrente bateu-lhe em cheio nos joelhos. Mehmet quebrou
as duas pernas e teve que ficar seis ou sete meses no hos­
pital. Depois de tudo isso, a Remmert jogou o coitado no
olho da rua. Nem bem sarou direito, ele foi até a fábrica
perguntar se poderia ser readmitido para um serviço de
quatro ou cinco horas, porque depois do acidente não po­
dia ficar muito tempo em pé. Mehmet nem terminou de
falar; o chefe simplesmente o mandou embora.”
Freqüentemente a Remmert obriga seus empregados
a dobrar ou triplicar os turnos, razão pela qual os aciden­
tes ocorrem de modo quase automático. Colegas contam
que alguns motoristas chegaram a fazer 36 horas conse­
cutivas dirigindo seus caminhões. Isso é perigoso não só
para eles mesmos, como para todos que circulam pela em­
presa. “ Se um cara passa 36 horas na boléia de um cami­
nhão, é evidente que, mais dia menos dia, vai acontecer
um acidente sério” , diz Ali K., inquieto.
A empresa Staschel, de Duisburg (especializada, co­
mo a Remmert, em fornecer mão-de-obra temporária pa­
ra a Mannesmann), costuma fazer seus empregados tra­
balharem na coqueria de manhã, na fundição à tarde e nu­
ma filial de laminação de tubos, em Mülheim, à noite. O
que totaliza 24 horas de trabalho ininterrupto.
Esse “tráfico de escravos” teve início na Mannes-
mann, logo que o truste começou a dispensar em série os

129'
imigrantes que faziam parte de seu quadro de pessoal efe­
tivo. Para livrar-se deles, a Mannesmann chegou a ofere­
cer 40 mil marcos como “ajuda de retorno” . O objetivo
era reduzir seu efetivo em seiscentas pessoas. Ao mesmo
tempo, a direção da empresa persuadia os operários ale­
mães de que seus empregos estariam ameaçados se um nú­
mero suficiente de imigrantes não retornasse a seus paí­
ses. O medo provocou um clima de tensão dentro da fir­
ma; muitos operários alemães passaram a querer a saída
imediata dos turcos. Imaginavam que assim conseguiriam
uma colocação estável para seus filhos, que haviam feito
estágio na Mannesmann como aprendizes. Os turcos mais
antigos foram submetidos a testes de língua alemã — uma
tentativa de provar suas “ qualificações deficientes” . E
aqueles que, apesar de tudo, insistiam em não “ regressar
voluntariamente” , eram pressionados com redução do ho­
rário de trabalho ou dispensa pura e simples, sob a justi­
ficativa de “ plano de reclassificação” . Desse modo, mais
de mil turcos foram obrigados a deixar a Mannesmann.
Foi o ponto de partida para que as empresas como a Rem­
mert crescessem dentro da Mannesmann.

A suspeita
“Todo o pessoal da Adler, venha aqui!” Batendo pal­
mas, o “ xerife” nos chama durante um intervalo de des­
canso. “ O sr. Adler mandou dizer a todos que hoje à tar­
de, depois do serviço, vai encontrar vocês, às quatro ho­
ras no bar Cantinho dos Esportistas, na Skagerrakstras-
se. Ele vai falar sobre a organização do trabalho e resol­
ver problemas de pagamento. Sejam pontuais, porque ele
não tem tempo a perder!”
Exatamente em nosso horário livre; claro que não nos
pagará um centavo sequer. Somos obrigados a ficar mais
uma hora no serviço para chegar pontualmente ao local
indicado. Então aguardamos quinze minutos, meia hora,
e nada de Adler. “Ele faz a gente de bobo” , diz Mehmet.
“ Vamos para casa.”

130 4
Wormland, o fiel encarregado da Adler, seu irmão
Fritz (23 anos) e eu, Ali, somos os únicos a permanecer
no bar, sentados junto ao balcão. De repente, dois poli­
ciais fardados e um à paisana entram no local e começam
a encarar os fregueses, aproximadamente uns vinte. Um
dos policiais pergunta:
— Alguém viu entrar aqui um sujeito loiro, de mais
ou menos quarenta anos, um metro e setenta de altura?
O Banco do Comércio, aÚ na esquina, acaba de ser assal­
tado e levaram quase 40 mil marcos.
O homem a meu lado, que deve ter uns sessenta anos
e já está na oitava cerveja, põe-se a rir baixinho.
— Mesmo que o tivesse visto, eu não diria nada —
declara num tom de voz suficientemente alto para que os
policiais escutem. — Ele dividiria o dinheiro comigo, e eu
ficaria de boca fechada.
— De quem é aquele carro verde, com placa de Co­
lônia, estacionado ali em frente? — pergunta rispidamen­
te o guarda mais velho.
Olho pela janeja e vejo uma viatura parada bem em
frente de meu enferrujado calhambeque, que alguns poli­
ciais examinam com curiosidade. Droga, se me identifi­
cam aqui, vai tudo por água abaixo. Claro que eu preca-
vidamente licenciei o veículo em nome de outra pessoa;
mas o problema é que não estava com os documentos.
De fato, meu carro parece bastante suspeito (para
mim, um automóvel não é um objeto de prestígio, mas um
simples meio de transporte), corresponde perfeitamente ao
clichê policial: quem anda num calhambeque desses só pode
ser mesmo um assaltante de bancos.
Não esboço nenhuma reação e olho para o outro la­
do. Mas meu colega Fritz me cutuca e diz:
— Ei! Aquele não é o seu carro? Por que não fala
para eles?
— Cala a boca! Eu não tem documento em ordem,
eles vai multar.
Fritz prontamente resolve tirar vantagem da situação
em que me encontro.
1315
— O que é que eu ganho se ficar com a boca fecha­
da? Você me dá 100 marcos, ou conto tudo — ameaça,
lançando um olhar eloqüente para os policiais.
— Eu não tem tanto dinheiro — respondo, e consi­
go baixar o preço para uma caixa de cerveja.
Nesse interim, os policiais começam a perguntar a cada
freguês se sabe a quem pertence o carro suspeito. Tam­
bém nos interrogam, mas não podemos ajudar, não sabe­
mos de nada. Eles deixam o bar. Respiro aliviado e já penso
em sumir dali quando aparece um novo destacamento po­
licial: três guardas uniformizados e dois à paisana. A gran­
de operação de captura não parece minto bem coordena­
da, porque o chefe da patrulha começa a fazer exatamen­
te a mesma pergunta que seu colega formulara pouco an­
tes: se alguém viu entrar um sujeito loiro, mais ou menos
quarenta anos, cerca de um metro e setenta, com uma sa­
cola de plástico branca contendo 40 mÜ marcos. Alguns
fregueses riem alto e passam a fazer uma grande piada.
— Ele acabou de entrar no banheiro. Foi dar uma
mijada! — diz um quarentão ligeiramente embriagado cuja
aparência corresponde à do criminoso.
— Não é hora para gracinhas — replica o chefe da
patrulha, que parece não ter gostado da brincadeira. —
Posso prendê-lo por desacato à autoridade e perturbação
da ordem pública. — Seu olhar percorre todo o local e pára
em mim. Sou o único estrangeiro e, ainda por cima, estou
todo sujo de graxa, com a roupa de trabalho quase em far­
rapos. Enfim, um verdadeiro molambo!
— Você, aí! Acompanhe-me! — aponta-me para seus
dois jovens subordinados, que correm para meu lado, ávi­
dos de ação.
Sinto-me esmorecer, vejo todo o meu trabalho cair
por terra. Por um instante penso em sair correndo, pro­
curar a salvação na fuga. Mas a rua está apinhada de po­
liciais, e qualquer um deles poderia me dar um tiro nas
costas. “ Calma, muita calma” , digo para mim mesmo.
“ Nada de nervosismo. A lei está do meu lado, com certe­
za! Não podem ter nada contra mim.” E passo à ofensiva:

132 ^
— Acompanhar? Como assim? Eu tem 28 anos, um
metro e oitenta e três, cabelo preto. O ladrão é mais ve­
lho, mais baixo. — Tento mostrar o despropósito de sua
suspeita.
Mas o chefe da patrulha não se guia pela lógica. Ao
que tudo indica, meu aspecto deu-lhe uma boa pista.
— Acompanhe-me — repete asperamente. — E
limite-se a responder quando lhe perguntarem alguma
coisa!
Um de seus subordinados tenta segurar-me pelo bra­
ço, porém me desvencilho, dizendo:
— Não precisa disso! Eu vai.
Lá fora, sou cercado pelos outros policiais e também
por alguns civis. “ Puta merda, como vou sair dessa?” Os
guardas estão frustrados, pois o verdadeiro criminoso de­
sapareceu. Agora precisam de um bode expiatório.
— Documentos! — exige o chefe da patrulha.
— Eu não tem. Tudo com Adler, meu chefe. Eu tra­
balha em Thyssen todo dia, mas ele não paga dinheiro de
gente.— Tento confundi-los, mudando de assunto.
O chefe da patrulha, porém, não se deixa enganar:
— Nome? Endereço? — interroga-me.
Lentamente soletro: ‘‘S-i-n-i-r-l-i-o-g-l-u’’ e sorrio de
modo amistoso ao ouvi-lo xingar enquanto tenta escrever
meu nome. Procuro animá-lo:

— Nome difícil, não? Senhor pode me chamar Ali.


Longe de se acalmar, ele me lança um olhar mais fu­
rioso ainda. Dou-lhe meu endereço — Dieselstrasse, 10 —,
mesmo não o tendo registrado na polícia. Pelo rádio, lo­
go verificam que não existe nenhum Ali Sinirlioglu regis­
trado em tal endereço. O policial jovem agarra-me nova­
mente pelo braço:
— Vamos até a sua casa. Lá você poderá nos mos­
trar seus documentos!
— Documentos com chefe, ele vem logo. Chefe gran­
de bandido, vive roubando dinheiro de gente, precisa ir

' 133 r
para cadeia! Vão pegar chefe! — Em seguida, desvio o as­
sunto para a Thyssen: — Vocês pode ir junto lá, portão
vinte. Tem meu cartão de ponto. Vocês pode ver que eu
trabalha lá.
Os policiais ficam um pouco irritados, mas nem por
um instante pensam em averiguar os negócios de meu pa­
trão, embora tudo que eu disse cheire bastante a “tráfico
de escravos". Aparentemente o envolvimento da Thyssen
não constitui um ato delituoso; com certeza, não querem
se queimar.
— Acho melhor levá-lo até o banco e fazer a confron­
tação — um dos policiais propõe ao chefe.
— Boa idéia! Eu concorda! — digo, já entrando na
viatura com meu uniforme sujo de graxa.
O chefe da patrulha rapidamente me puxa para forà,
gritando:
— Saia dai! Vai emporcalhar 9 assento com essa gra­
xa toda!
Entrementes, formou-se uma roda de curiosos a nos­
sa volta.
— Ele tentou atacar uma moça alemã! — grita uma
dona-de-casa cinqüentona que deixou a sacola de compras
encostada a um muro.
Um senhor de seus 65 anos concorda com ela:
— Vejam só que olhos frios e cruéis! Um verdadeiro
zumbi enlouquecido! Foi uma sorte ele ter sido preso!
— Não é nada disso! Ele só assaltou um banco —
corrige um rapaz sentado em sua bicicleta.
Começa uma polêmica no grupo. A maioria dá ra­
zão ao jovem da bicicleta; outros preferem a teoria da vio­
lação — uma mulher chega a afirmar que ouviu a vítima
“ gritar" enquanto era transportada na ambulância.
Todo o interrogatório prolonga-se por uns vinte mi­
nutos — durante os quais o verdadeiro ladrão sem dúvida
fugiu tranqüilamente —, até que o chefe da patrulha to­
ma uma decisão:
— Volte para o bar e aguarde nosso regresso com as
testemunhas para fazermos a confrontação! E não tente

134 *
fugir! Vou deixar um homem vigiando a porta. Você não
conseguirá escapar!
Espero durante quase uma hora, e nada de testemu­
nhas. Os policiais devem ter achado sua suspeita tão ab­
surda que desistiram de fazer um papel ridículo. Assim que
o vigia desaparece, esgueiro-me cautelosamente até meu
carro e dou o fora. Que alívio!
Antes de partir, ainda me dirijo aos fregueses do bar:
— Vocês viu? Só porque eu é estrangeiro eles queria
me levar. Ladrão verdadeiro era loiro, tinha só um metro
e setenta, era mais velho...
— É, mas você podia estar usando uma peruca! —
caçoa um velhote funcionário da Fazenda, sentado junto
ao balcão. Todos riem. — Se bem entendi — confidencia-
me ele, já do lado de fora —, você trabalha na Thyssen
ilegalmente. Mas você não é o único! Há um número in­
crível de histórias como a sua que nos chegam aos ouvi­
dos, mas os meus superiores não se atrevem a tomar pro­
vidências. Mesmo que eu resolvesse denunciar a sua his­
tória, não adiantaria nada!

Três meses depois vivo nova experiência com a polí­


cia, desta vez mais arriscada.
Uma tarde, saio do trabalho, morto de cansaço, en­
tro no calhambeque (estacionado a alguns quarteirões de
.distância) e, ao manobrar em marcha à ré, bato num car­
ro novinho em folha. Num abrir e fechar de olhos, forma-
se uma multidão a meu redor. Bastante agitada, a proprie­
tária do veículo aproxima-se. Imediatamente reconheço mi­
nha culpa, prometo pagar todos os prejuízos e proponho-
me a assinar quantos papéis forem necessários. Mas, de­
sinteressados, os alemães gritam:
— Não acredite nele, é estrangeiro e está mentindo!
Chame a polícia!
Estou com a carta de motorista de um operário tur­
co, cuja fotografia nem de longe se parece comigo. Se a
135 *
polícia vier e descobrir minha verdadeira identidade, to­
da a minha representação terminará de maneira bem es­
túpida. Imploro à mulher:
— Por favor, polícia não! Eu já tem questão com po­
lícia Flensburg. Eu vai levar outra multa e perde carta mo­
torista. E, quem sabe, eles me expulsa para Turquia!
A mulher hesita, mas a multidão é unânime:
— Chame a polícia!
Um sujeito sai correndo e entra numa loja. Telefo­
na. Logo em seguida aparece um policial de meia-idade.
Olha-me da cabeça aos pés, bastante desconfiado, toma
nota da ocorrência e intima-me a acompanhá-lo à delega­
cia mais próxima.
— Se houver alguma coisa contra ele, a senhora fi­
cará sabendo imediatamente — garante à mulher.
Compara a fotografia da carta de motorista com mi­
nha fisionomia e balança a cabeça, como se quisesse di­
zer: “ Está certo!” , mesmo não havendo o menor traço
de semelhança. Checa as outras informações pelo compu­
tador da delegacia e mostra-se realmente surpreso ao ver
que nada consta contra Ali Sigirlioglu.
— Não há nada, pode ir embora!
— Bom trabalho — cumprimento-o. — Em Turquia
gente precisa dois dias para saber tudo isso.
— Mas estamos na Alemanha! — diz com orgulho.
— É, eu sabe — replico. — Mesmo assim, parabéns!
E fico radiante ao colocar os pés na rua.

Os parapeitos: questão de mícron e “ mico”


Para variar um pouco, Adler arranja para mim uma
coisa muito especial.
— Apresente-se amanhã, às sete horas, na firma de
Theo Remmert, o irmão do nosso Remmert. Você vai pin­
tar parapeitos. Pagamento por empreitada.
— Muito trabalho? — pergunto. — Quanto tempo leva?
— Você pode trabalhar lá durante um ano.
— E quanto eu recebe?

136 v
Adler atrapalha-se um pouco com uma pergunta tão
inoportuna. Finge fazer alguns cálculos e depois responde:
— Digamos 1 marco por metro.
Na manhã seguinte apresento-me a um encarregado
que já está a par de tudo. Digo-lhe que Adler me man­
dou, e ele, com um sorriso complacente, pergunta-me pe­
lo pagamento estipulado.
— Eu vai ganhar 1 marco cada metro.
— Então você vai ter que trabalhar feito louco se qui­
ser ganhar algum dinheiro. Nem pense em parar para des­
cansar!
Tudo indica que a empresa de Theo Remmert está com
os prazos estourando. Os parapeitos devem estar prontos
e montados numa nova instalação da Ruhrchemie o mais
breve possível.
Durante quase uma semana, trabalho como um con­
denado, de manhã à noite, com um descanso de no máxi­
mo dez minutos. E só consigo pintar cinqüenta metros,
por dia, quando muito. Os parapeitos têm um metro e vinte
e cinco de altura, cada um possui três arcos, e há também
toda a moldura. Nos cantos e nas fendas diminutas é ne­
cessário utilizar um pincel menor. E mais: depois de pintá-
los, devo transportá-los para o outro lado da oficina com
o auxílio de um guindaste. Por esse serviço, não recebo
um centavo. Também não ganho nada quando o chefe re­
clama que alguns parapeitos não estão bem pintados ou
que falta um pouco de tinta nuns cantinhos minúsculos.
O que significa remover os pesados parapeitos novamen­
te com o guindaste.
Para ganhar tempo, trabalho com um pincel em ca­
da mão. E ainda não é o bastante. Um alemão, operário
estável da Remmert, que pintava os parapeitos recebendo
como diarista, olha para mim com comiseração e diz:
“Ninguém agüenta um ritmo desses durante um dia intei­
ro. Você vai se arrebentar. Não tenha tanta pressa!” E,
ao saber quanto ganho, sacode a cabeça: “Por esse dinheiro
eu largaria o serviço na hora. Não daria uma pincelada” .
De bom grado, admite trabalhar no máximo a metade do
137 r
que eu trabalho e receber 13 marcos por hora. Nesse rit­
mo, porém, vou receber entre 5 e 7 marcos.
A despeito do salário miserável, percebo que aqui tra­
balho com outro estado de espírito. E claro que sou pres­
sionado, mas é uma forma diferente de pressão. Não há
ninguém o tempo todo atrás de mim, gritando e dando or­
dens. Não há o medo permanente de chefes, superiores,
supervisores. O ambiente é um pouco mais agradável que
na Thyssen. Ainda que, ao voltar para casa, eu esteja com­
pletamente moído. Olho para o relógio e surpreendo-me
ao ver que já é tão tarde. Preferiria que fosse mais cedo.
Exatamente o oposto do que acontecia na Thyssen, onde
as horas se arrastavam. Lá eu ficava muito contente ao
perceber que elas estavam passando! Contava-as uma a
uma e me agoniava ao verificar que ainda faltavam qua­
tro horas para o fim do expediente. O trabalho por em­
preitada é a categoria mais baixa e aviltante da pretensa
atividade independente, já que não apresenta quaisquer
vantagens reais ligadas a essa condição.
Todos os dias o encarregado da Remmert vem con­
trolar e cronometrar meu serviço. Às vezes obriga-me a
pintar novamente algumas partes dos parapeitos ou a ar­
rancar as bolhas que se formaram e depois dar outra de­
mão de tinta. Ninguém me paga pelo tempo gasto com esse
trabalho.
Digo que é impossível viver com os 5 ou 6 marcos que
me pagam por hora e que me sinto explorado. Ele sim­
plesmente me responde: “ Não temos nada com isso. Pa­
gamos diretamente a Adler, que recebe um bom dinheiro.
Vá reclamar com 616!**
Não me revela o lucro de Adler. Calculo, porém, que
ele deve cobrar umas três ou cinco vezes o que eu ganho
só para servir de intermediário entre seus escravos e a Rem­
mert. Sem precisar mover um dedo.
Minha tarefa está terminada: 210 metros de parapei­
to pintados de ocre (de alto a baixo, atrás, na frente, por
toda a volta). Sapatos, calça e camisa inteiramente respin-
gados de tinta. O encarregado da Remmert avisa-me que

138'
os parapeitos serão instalados o mais rápido possível nu­
ma nova construção da Ruhrchemie. E só dali a algumas
semanas serão montados novos parapeitos.
Eis o ano de trabalho estável que Adler prometeu! Te­
lefono para ele, informando-o sobre minha situação.
— Não tem importância! — diz. — Apresente-se
amanhã de manhã, às cinco horas, na Thyssen. Há uma
equipe nova.
— E quando senhor paga para mim pintura de para­
peito? — pergunto.
— Vamos acertar isso quando a Remmert me fizer
o pagamento — responde. — De qualquer modo, você já
pode pintar parapeitos nos fins de semana!
Passam-se três semanas e nada dos 210 marcos a que
tenho direito pela tarefa especial e pesada. Vou pedir ex­
plicações a Adler, que me diz sem o menor constrangimen­
to: “ Você não fez o serviço direito. Por que eu deveria
lhe pagar, se tive muitos aborrecimentos por sua causa?
E até agora também não recebi o dinheiro” .
Pergunto qual foi o problema, e ele começa a me ta­
pear, fala de um tal “ medida mícron” que aparentemen­
te tem a ver com a camada de tinta empregada, que não
era bastante espessa. Considero isso mais um de seus tru­
ques habituais. Contudo, mesmo que fosse o caso, a cul­
pa não seria minha. O encarregado da Remmert fiscali­
zou o serviço e disse que estava tudo em ordem. Decido
ir pessoalmente cobrar do sr. Remmert. Para impressioná-
lo, vou logo depois do trabalho, com a roupa e o rosto
negros de sujeira. Dirijo-me ao prédio administrativo da
empresa Remmert. Logo no salão de entrada e bem à vis­
ta do público, os dizeres de um quàdro gigantesco resu­
mem a filosofia de vida de Theo Remmert:

A l g u m a s p e sso a s c o n s id e r a m o p a t r ã o u m c ã o s a r n e n ­
to QUE DEVE SER ABATIDO. OUTRAS PENSAM QUE O PATRÃO
É UMA VACA QUE SE PODE PUXAR PELO CABRESTO. POUCOS
VÊEM NELE O HOMEM QUE CONDUZ A CARROÇA.

139 *
E, assim, Ali, o comedor de pó, o lustrador de ferro,
o burro de carga, o trabalhador explorado, vai ao encon­
tro de Theo Remmert, o condutor da carroça e criador de
máximas. Sem ser visto, consigo passar pela recepcionis­
ta e subir até o andar onde se localiza o escritório do pa­
trão. Remmert não está, mas encontro um de seus direto­
res, que fala ao telefone sobre uma transação milionária.
Ele arregala os olhos ao ver-me entrar.
— Que história essa mico? — pergunto-lhe à queima-
roupa. — Eu fez trabalho, chefe falou “tudo bem” , mas
agora, dinheiro nada. Por quê?
— “Mico” ?! Ah, o senhor deve estar querendo di­
zer “mícron” — corrige-me. — É a espessura da tinta. Mas
não estou a par do assunto. Procure Adler; é ele quem deve
lhe pagar!
O empurra-empurra continua. Adler manda-me pa­
ra a Ruhrchemie, “repintar tudo” . Do contrário, “nem
um centavo!”
Durante horas, procuro os parapeitos naquele imen­
so parque industrial, nos confins de Oberhausen, um lu­
gar fétido e de difícil acesso. Até que, finalmente, encontro-
os instalados sobre uma armação metálica, numa altura
vertiginosa. Um vigia impede-me de subir até lá, dizendo
que é muito perigoso. Quando lhe falo do tal “ mícron”
ou “ mico” , ele pergunta: “ O que é isso? O que importa
é que os parapeitos já estão lá em cima” .
Volto a reclamar com Adler (por telefone):
— É, é Ali, outra vez! Chefe diz “mico” não tem im­
portância. Diz parapeito lá e ninguém mais vai cair.
— Primeiro, repintar tudo — responde, irritado. —
E só me apareça aqui a semana que vem! Caso contrário,
nada de dinheiro!
Minha visita seguinte à Ruhrchemie também não pro­
duz nenhum resultado. Se fosse realmente necessário re­
pintar os parapeitos já instalados, teria um desconto de
2 marcos por hora em meu salário, uma vez que deman­
daria muito tempo trabalhar pendurado naquela altura.
Como sempre, não recebi um centavo por essa tarefa

140 '
especial. E foi um serviço duro e imponente. Colocados
lado a lado, os parapeitos cercariam metade de um cam­
po de futebol.

Como no faroeste

tfeceber pelo menos uma parte do salário exige enor­


mes esforços.
Adler mora num bairro elegante de Oberhausen, a cer­
ca de quinze quilômetros das indústrias August Thyssen.
Mas os dejetos industriais lançados pelas chaminés da
Thyssen não chegam até ali: são filtrados por um cintu­
rão de floresta natural que cerca o bairro. Para ir dos imun­
dos e poluídos bairros fabris à residência de Adler é pre­
ciso tomar vários ônibus — quando passam, bem enten­
dido! Depois, quem quer falar com ele deve esperar um
bom tempo diante da porta de sua casa. Àgora mesmo um
operário que havia marcado um encontro com Adler está
ali parado, esperando. O melhor a fazer é chegar de fini-
nho, tocar a campainha e se encolher junto à porta; assim
ele não consegue ver a gente pela janela.
Adler tem sempre uma coleção de fórmulas prontas
para se livrar de seu pessoal.
“No momento, é impossível verificar isso!”
“ Não fico sem pagar nem mesmo por uma hora!”
“ Não estou com meu talão de cheques e não tenho
dinheiro trocado.”
“ Há dias que ando atrás do senhor; sua folha de pa­
gamento estará pronta na segunda-feira.” (O que é abso­
lutamente falso.)
“ Meu escritório fica em Danslaken, onde tenho uma
empresa de construções metálicas; deixei tudo lá.”
Então, ele marca um novo encontro para outro dia
e não aparece. Ou diz, como falou para mim: “ Se tudo
continuar correndo bem, não me recusarei a dar um au­
mento de 1 marco por hora. Pode confiar em mim! Vol­
taremos a falar sobre isso no mês que vem” .
Jamais dá o aumento. Ao invés de dar 1 marco, co­
141
mo me prometeu, diminui 1 marco dois meses depois. E
sua justificativa para não pagar horas extras, mesmo quan­
do o pessoal trabalha durante a Páscoa, Pentecostes ou
Natal, é a seguinte: “Trabalhamos por um preço menor.
É por isso que a Thyssen contrata firmas pequenas e mé­
dias como a nossa. Porque, na maior parte das vezes, so­
mos mais baratos que seus próprios empregados! É por
isso! Se a Thyssen pudesse, despediria seus operários e só
contrataria serviços de empresas como a nossa, porque saí­
mos bem mais em conta!"
Adler utiliza uma série de truques para manter uma
aparência de legalidade. “Recibos de trabalho temporá­
rio, por exemplo! De acordo com a lei, uma pessoa pode
receber até 390 marcos por mês sem pagar imposto; e se
a pessoa usar o nome de um parente, serão 780 marcos
de trabalho temporário. E tudo dentro da lei!” Outro tru­
que: inscrever retroativamente na previdência social o tra­
balhador que fica doente.
Quando os empregados reclamam dos salários atra­
sados, ele se esquiva dizendo: “Os boletins de freqüência!
Tragam-me os boletins de freqüência assinados por Zen-
tel, ou nada de dinheiro! Sem eles, não posso fazer coisa
nenhuma!” Tenho a impressão de que combinou esse golpe
com Zentel, porque o “xerife” sempre se recusa a assinar
nossos boletins de freqüência. “ Não tenho tempo a per­
der com essas coisas” , declara, e assim se livra de nós. “ Se­
ja como for, todos os dias informo Adler sobre o número
de horas que vocês fizeram.” E ficamos assim: correndo
de um lado para o outro, sem conseguir os boletins de fre­
qüência e, conseqüentemente, sem receber nosso salário.
Entretanto, os cartões de ponto da Thyssen documentam
com precisão nosso horário de trabalho. Adler não os con­
sidera: “ Não me interessam! Não provam nada!”
Junto com Osman, vou procurar Adler. Sem aVisá-
lo, chegamos por volta das seis e meia, horário em que
normalmente ele já se encontra em casa. É o último dia
de Osman na Alemanha; ele resolveu voltar de ônibus pa­
ra a Turquia e ficar por lá definitivamente. Um dia antes,
142 \
Osman havia tentado falar com Adler, que, no entanto,
não o recebeu, embora tivesse concordado com o encontro.
Ao me ver, Adler leva um susto:
— Que figura! Você está com uma aparência péssima!
— Por causa trabalho. Tudo sempre sujo e cheio poei­
ra. Eu precisa limpar tudo. E depois sujeira não sai direi­
to quando eu lava. Muito pó entra dentro de pele.
Preocupado com seu papel de parede, Adler ordena:
— Fique longe da parede! No mínimo a um metro
de distância. Capenga como você está, pode acabar en­
costando nela. - r Depois volta-se para Osman: — E vo­
cê? Vir assim, sem avisar... Deve ter merda na cabeça. Que
cara de pau! Rastejar até aqui a esta hora da noite!
— Eu vou amanhã para Turquia. Preciso comprar
alguma coisa, mas não tenho um centavo.
— Não posso fazer nada! De qualquer forma, foi
uma sujeira ter vindo. — Ele se descontrola, e desta vez
sua indignação não parece ensaiada. Ainda repete umas
três vezes que “ foi uma sujeira* *antes de dizer, com a voz
mais elevada: — Logo, logo vocês vão aparecer lá pelas
dez, onze da noite!
— Não! Senhor não tem medo — asseguro-lhe. —
Gente também precisa dormir.
Adler, porém, não se acalma:
— Vocês têm mesmo merda na cabeça. Virem à mi­
nha casa a esta hora, mas que saco! Que caras de pau!
Não se atrevam a fazer isso novamente. Não sou privada
para virem aqui cagar. Voltar amanhã para a Turquia?
claro que está mentindo! Não admito que mintam para
mim!
— Mas é verdade! — intervenho. — Amanhã eu vai
com ele até ônibus.
— Ninguém lhe perguntou nada. Faça o favor de fi­
car de fora! Francamente, visitas como essas... às sete, sete
e quinze da noite... vocês pensam que estamos no faroeste?
Osman não desiste:
— Mas como é que eu faço? Amanhã eu não estou
aqui. E eu praticamente não recebo nada!
ia y '
— Eu também — acrescento. — Já faz muita sema­
na que eu não tem dinheiro nem para comer.
— Você acha que eu sou algum energúmeno? Fora
daqui, seus imbecis!
Já na rua, os olhos de Osman enchem-se de lágrimas.
— Ele roubou meu pagamento. Agora eu volto para
Turquia e não posso fazer nada.
A fúria de Yüksel

De novo na Thyssen. Depois do expediente, conver­


so com Yüksel Atasayar, um moço de vinte anos. Exaus­
tos e cobertos de pó até o último fio de cabelo, esperamos
nosso transporte.
YÜKSEL: Eu jogo na loteria uns 30, 40 marcos. Não
sempre.
EU: Uma vez semana?
YÜKSEL: Às vezes. Quem sabe, um dia, tenho sorte.
Melhor gastar 30 ou 40 marcos com isso do que com cigar­
ros. Pense bem. Todo dia um maço. Já imaginou quantos
por mês? É só fazer as contas: 4 marcos vezes trinta...
Eu: Dá 120 marcos. No ano, 1,440. Em dez anos, 14
mil. Sem falar juros. Em vinte anos, quase 30, 40 mil
marcos...
YÜKSEL: Isso se a gente ainda viver vinte anos.
EU: Eu acha não. Gente trabalha sujeira toda. Dez
anos, gente já está enterrado. Câncer... Ou quem sabe en­
terra daqui cinco anos.
YÜKSEL: É mesmo! Primeiro começa a doer, de­
pois... pronto, morto! Se ao menos a gente pudesse eco­
nomizar um pouco e gastar tudo antes de morrer... Um
dia, quando eu tiver coragem, acabo com tudo. Quanto
tempo você quer viver? Uma vida de merda como essa!
Você acredita em Deus?
EU: Não. Eu acredita em gente, não em coisa de fo­
ra. Você não pode acreditar nele! Ele não ajuda gente!
YÜKSEL: Mas, se ele existe, por que criou alguém co­
mo Adler?

144 '
EU: Erro fabricação! Ele queria coisa diferente e
errou.
YÜKSEL: Se Deus existe, não pode errar. Deus é Deus.
Não tem direito de errar.
EU: Quem sabe ele é tapado, doido. Ou vai ver que
aquele dia estava muito cansado. Senão Adler não exis­
tia, nem trabalho de merda.
YÜKSEL: É, é uma merda! Trabalho maldito!
Yüksel Atasayar é um dos mais argutos observado­
res dentre os colegas turcos. Sabe muito bem reconhecer
os alemães que têm preconceito contra os turcos, mesmo
quando não o manifestam abertamente. Consegue até pres­
sentir o estado de espírito dos encarregados e superviso­
res e previne os amigos contra o mau humor e as amea­
ças. “Tomem cuidado, Zentel hoje está procurando uma
vítima” , nos diz logo de manhã cedo, em nosso local de
encontro, enquanto o “xerife” ainda cochila, sentado em
seu carro. Yüksel percebe nos mínimos sinais a aproxima­
ção da tempestade. Realmente, algumas horas depois, Zen­
tel tem um acesso de raiva e põe na rua um operário turco
que ousou deixar o local de trabalho durante o horário de
folga (não remunerado, é claro).
Na verdade, Yüksel Atasayar só tem de turco o no­
me. Cresceu na Alemanha, fala alemão sem sotaque e
sente-se mesmo alemão. Até seu aspecto não corresponde
ao estereótipo de um turco: tem cabelo ligeiramente loiro
e olhos castanho-azulados. Somente seu nome o impele pa­
ra o grupo de operários turcos, com os quais, aliás, tem
algumas dificuldades de comunicação. Tivesse ele um no­
me alemão e certamente escaparia do ódio de Alfred, o
encarregado, que por qualquer ninharia despeja sua agres­
sividade sobre Yüksel e outros imigrantes. Uma vez Yük­
sel ousa lembrar a Alfred (que, trabalhando como um pos-
sesso, perdeu completamente a noção do tempo) que o ho­
rário de descanso já passou. Alfred planta-se diante dele
e grita:
— Primeiro o trabalho! Depois o descanso! Sempre
foi assim na Alemanha. Nós, alemães, crescemos apren­
145'
dendo isso. E quer saber o que você é? Um filho da puta,
grandessíssimo filho da puta! — Mais tarde, durante o in­
tervalo, volta à carga com maior intensidade: — Escute
bem! Se um dia desses você se encontrasse com Menge-
le... Sabe quem é, não? Mengele foi um dos nossos me­
lhores médicos e cientistas. Tenho certeza de que ainda está
vivo. Ninguém conseguiu pegá-lo até hoje. Então, se Men­
gele estivesse naquela rampa e você passasse por ali, sabe
o que ele iria dizer? “Ei, você! Saia pela direita! Direto
para a câmera de gás! Não se pode fazer nenhuma expe­
riência com você!” E sabe por quê!
Pálido, Yüksel não ousa replicar. Apenas balbucia:
— Não. Por quê?
— Porque você não serve para nada! Absolutamen­
te nada! Você veio para cá só para escapar da ditadura
militar no seu país. Para ser criado num jardim-de-infância
da Alemanha, para ser mimado e bem tratado. Se tivesse
ficado por lá, então, sim, você ia ver o que é bom! Vocês,
turcos, nunca souberam o que é uma democracia. Não fa­
zem a menor idéia. Primeiro deviam aprender a viver nu­
ma ditadura militar. E não vir para cá para serem papari­
cados e viverem à nossa custa!
Yüksel já desistiu de se defender contra explosões desse
tipo. Sabe quanto vale a lei do mais forte. Prefere afastar-se
dos insultos. Pega seu sanduíche e, sem dizer uma pala­
vra, vai sentar-se do outro lado da oficina, longe da vista
e do alcance de seu perseguidor. Quinze minutos depois,
ao retomar ao trabalho, há em seu rosto empoeirado duas
listras claras, traçadas pelas lágrimas.
A propósito, Yüksel é o único a reparar que fico es­
crevendo durante os curtos intervalos. As vezes, pisca um
olho para mim dando a entender que está de acordo, que
me ajudará. Mesmo assim, fico inseguro e preocupado.
Não sei se ele não acabaria contando para os outros.
Um dia, depois de trabalhar na área do alto-fomo,
num calor infernal, sentamo-nos no chão, com as costas
apoiadas na parede, à espera do microônibus. Yüksel en­
tão resolve me perguntar:

146 *
— Você toma nota de tudo?
— Por favor, não conte a ninguém — respondo,
aproveitando a oportunidade. — Ainda não posso falar
sobre isso, mas logo você vai saber de tudo.
Ele percebe meu temor e vê que a coisa é mesmo sé­
ria. Não me pergunta mais nada. Saberá guardar segredo
durante meses e meses.
— Você deve tomar nota de tudo que esses porcos
fazem conosco — murmura-me no ouvido. — Não deixe
passar nada!
Yüksel parece pressentir meus propósitos e muitas ve­
zes me passa informações oportunas sem perguntar nada.
É apolítico, mas — quase uma criança ainda — respeita
a disciplina do silêncio, movido por um profundo senti­
mento de humilhação e desespero, do qual provém o sen­
so de solidariedade.
Yüksel Atasayar descreve sua situação:
“ Quando meus pais vieram para a Alemanha, eu ti­
nha acabado de nascer. Isso foi há vinte anos. Somos de
Amassia. Não sei exatamente onde fica; sei que é para os
lados da Armênia. Mas onde, ao certo, não sei.
“Em casa conversamos em turco; isto é, as coisas mais
simples. Mas não sei falar fluentemente. Não consigo
acompanhar os assuntos mais complexos. Quando leio jor­
nais turcos, só entendo a metade. Meus pais falam turco
perfeitamente; só conversam em turco. Não sabem muito
bem alemão. Eu me sinto mais alemão do que turco.
“ Meu pai também trabalha na Thyssen, no setor de
laminação. E também ganha uma miséria: 1 200, 1 300
marcos.
“ Como vim parar nesse trabalho? Um amigo me deu
a indicação. Só precisei me apresentar ao encarregado. Esse
meu amigo me disse para eu vir com uniforme de traba­
lho. Foi o que fiz. Perguntei se estavam precisando de em­
pregados. Disseram que sim, era só subir no ônibus. Su­
bi, o ônibus seguiu para a Thyssen e depois fomos dividi­
dos em grupos, cada um para um canteiro de obras.
“ O primeiro dia foi um inferno. Sujeira, pó, fuma­
147 ’
ça: um verdadeiro inferno; terrível para a saúde. Fomos
trabalhar na fundição. Limpamos as máquinas e as ferra­
mentas e engolimos fumaça e poeira. Alguns começaram
a vomitar e houve um que até desmaiou. Outros caíram,
não conseguiam mais respirar.
“Dámuita raiva trabalhar num local tão imundo. Não
nos dão nem sapatos de proteção. Adler não tem a menor
compaixão das pessoas. Pouco se importa se um de nós
se arrebenta. Para ele, tanto faz se alguém morrer. E to­
da aquela lenga-lenga, quando ele fala do salário: ‘Você
não precisa de tanto dinheiro. Você é solteiro, devia ficar
feliz por trabalhar aqui*.
“Não quer nem saber se a gente está bem ou mal. Para
ele é a mesma coisa se você está ferrado ou não. Na ver­
dade, Adler não passa de um cafetão, é isso que ele é. A
única coisa que lhe interessa é o dinheiro que damos para
ele. É um bandido, mas está limpo, porque sempre age por
baixo do pano.
“Nunca me pagou o salário corretamente. Ainda ago­
ra me deve mais de 800 marcos.
“ Há dias em que a gente fica completamente moído,
só deseja morrer. E na verdade é quase sempre por causa
do pó e da fumaça. Tudo isso vai enfraquecendo a gente.
Ataca diretamente os pulmões. Eu sinto isso porque gos­
to de praticar esportes. Antes eu vivia correndo, no míni­
mo uma hora. Mas hoje... basta correr alguns minutos e
os pulmões começam a queimar. O pessoal mais antigo
também tem um aspecto horrível. Inclusive os da Remmert.
“ Os que já estão trabalhando há três ou quatro anos
parecem muito debilitados. Têm trinta, quarenta anos de
idade, mas aparentam cinqüenta. Ou mesmo sessenta. O
cabelo caiu quase todo, o rosto é magro, encovado, páli­
do. Às vezes, acho que estou com câncer, câncer nos pul­
mões, por causa de tudo isso que respiramos. Uma cama­
da tão grossa de pó que é impossível enxergar um palmo
adiante do nariz. Lá no setor Oxy é pavoroso. Eu tenho
medo de sofrer muito com uma morte assim.
“ Um dia, eu tive a exata sensação de estar bem no

148â
meio de uma guerra atômica: pó, fumaça e tudo mais. Igual
aos filmes de guerra que a gente costuma ver.
“ Sem falar naqueles outros locais extremamente pe­
rigosos. Por exemplo? Os lugares onde escapa o gás. A
gente pode se ferrar num local desses. E é obrigado a tra­
balhar lá dentro, nesses locais superperigosos. Por toda
parte há tabuletas avisando que a gente pode se ferrar se
escapar muito gás. O pior é que nem conseguimos perce­
ber, nem conseguimos sentir o cheiro do gás. Tem aquele
aparelho para indicar se há perigo. Eu freqüentemente te­
nho tontura, vontade de vomitar. Há dias que não dá pa­
ra agüentar. Muitas vezes perco a fome, não coloco nada
na boca, o tempo todo só engulo aquele pó. Dá até para
mastigar o pó, de tão espesso que é. Cheio de chumbo,
cádmio e um monte de outra coisa, quem sabe ao certo?
Às vezes vou para um canto e vomito; depois me sento
um pouco para respirar.
“ É preciso mesmo ver para crer... Mesmo depois do
banho, quando você chega do trabalho, aquilo tudo ain­
da fica depositado nos pulmões. Por fora, você está lim­
po; mas por dentro... fica tudo lá dentro. Essa merda te
deixa imundo. Daí você vai e faz ela desaparecer. Mas,
no dia seguinte, lá está você de novo no meio de toda essa
merda. E assim sem parar.
“ Não entendo como podem pagar tão pouco por um
trabalho desses. Eles querem enriquecer depressa. Querem
ganhar mais e mais, e já são tão ricos... Mesmo que pren­
dessem Adler, não ia mudar nada. A Remmert continua­
ria com o serviço, e a gente continuaria a se ferrar. E a
Thyssen sabe de tudo, claro! É ela que nos dá emprego,
portanto deve saber de tudo.
“ Para mim a vida não tem nenhum valor. Não tem
nada de significativo. Antes, com catorze, quinze anos,
já quase um adulto, a gente tem uma namorada e quer ir
para a cama com ela, não é? Mas, depois, o que sobra?
Não, isso não é o máximo! Só quando a gente tenta con­
seguir alguma coisa, quando tem um objetivo, é que a vi­
da passa a ter sentido. A gente sente vontade de fazer al­
149'
guma coisa... mas, se não for assim, a vida não tem senti­
do. Para que é que ela serve, hein?
“ Quando eu fui mais feliz? Quando viajei de férias
para a Turquia, junto com meus pais. Eu tinha doze anos.
Foi muito legal. Tive uma sensação ótima, completamen­
te diferente. E quando me senti pior? Agora, trabalhan­
do para Adler, aqui na Thyssen. É a pior coisa. Eu prefe­
ria estar morto” .
“ Chuveiro de emergência”

No mínimo uma vez por semana somos enviados ao


setor Oxygen, para limpar o pó que vive se acumulando
por lá.
Numa altura de cinqüenta ou sessenta metros, em salas
fechadas, devemos tirar todo o pó das máquinas deixando-
o amontoar-se no chão em camadas de um a três centíme­
tros. Depois o recolhemos e levamos para fora em carri­
nhos de mão. Esse pó é composto por partículas de chumbo
e outros metais nocivos à saúde (manganês e titânio), além
de grande quantidade de partículas de ferro. Certa vez Yük-
sel teve violento ataque de tosse e, sufocado, pediu a um
dos controladores da Thyssen uma máscara de proteção.
“Para vocês não temos disso” , disse o homem. “Mas não
se preocupe, ferro faz bem para a saúde, fortalece o san­
gue.” E completou: “ Se engolir bastante pó de ferro, de­
pois de um certo tempo você pode até grudar um ímã no
peito” . Yüksel, que não estava para brincadeiras, mais tar­
de perguntou ao supervisor se era verdadeira a tal histó­
ria do ímã. Foi ridicularizado diante de todos e o chefe
chamou-o de “turco cretino” .
Durante nosso trabalho os sinais de alarme e as luzes
vermelhas de emergência não param de tocar e acender,
o que significa que deveríamos abandonar a área imedia­
tamente. Para reforçar, por toda parte avisos luminosos
piscam sem cessar: E m Caso db Ventania, Deixar Ime­
diatamente AÁREA DO CONVERSOR! PERIGO DE EXPLO­
SÃO! E manação de Oxigênio ! E nós ali, trabalhando.

150*
Assustado, um operário turco quis afastar-se da zona pe­
rigosa. O encarregado da Thyssen ordenou-lhe que conti­
nuasse a trabalhar; do contrário sua atitude seria consi­
derada como abandono do posto de serviço e ele poderia
ir definitivamente para casa.
Um dos encarregados explica-nos para que servem tan­
tos dispositivos: “Uma vez houve um acidente na área do
conversor, e por isso a empresa foi obrigada a instalar es­
se sistema de alarme e prevenção. Se acontecer alguma coi­
sa, a Thyssen não será responsável. Vocês foram muito
bem informados de que não deviam trabalhar naquele se­
tor” . É desse modo que a Thyssen se isenta de responsa­
bilidade. Se algo acontecer, nós mesmos seremos os cul­
pados — graças a nossa estupidez, já que a advertência
foi bem clara. Mas, para nossa tranqüilidade, instalaram
vários chuveiros na zona perigosa. Em caso de incêndio,
basta correr para baixo da água. Mesmo os imigrantes que
não sabem alemão entendem para que servem os chuvei­
ros: há tabuletas esmaltadas com a silhueta de um operá­
rio munido de equipamento completo de segurança e ro­
deado pelas chamas sob o jato de água. Nas tabuletas es­
tá escrito: Chuveiro de E mergência .
Finalmente uma tarefa agradável perto da concreção
III: do alto do telhado baixamos, através de cordas, cai­
xotes com baldes repletos de pó e lama. É um trabalho
cansativo, que nos faz suar às bicas, mas pelo menos per­
mite que respiremos um ar suportável. E ainda nos dá a
chance de admirar toda a paisagem industrial que se es­
tende ao redor. Conseguimos até avistar o Reno ao lon­
ge! A vida adquire novo brilho quando a gente escapa da­
quelas masmorras sombrias e empoeiradas. Até a chuva
é bem-vinda. É mesmo um prazer desfrutar aquela visão
ampla, e sem sofrer crises de asfixia. Sentimo-nos como
se tivéssemos saído de uma prisão. Depois de quase três
horas de deleite nessa liberdade relativa, somos obrigados
a regressar repentinamente ao setor Oxygen. Acomodamo-
nos no ônibus como podemos, agachados entre ferramentas
e carrinhos de mão. Um turco de certa idade quase foi atro­
151'
pelado devido à pouca visibilidade. Comentário do encar­
regado a nosso motorista turco: “ Passe por cima, rápi­
do! Há uma recompensa para cada turco a menos!”
O “xerife” Zentel, expõe o problema: a máquina de
transbordo do ferro-bruto — um monstro gigantesco —
enguiçou. Toda a produção está parada. Cada minuto que
passa representa um prejuízo imenso para a siderúrgica.
O bloqueio provocou ainda a ruptura de uma peça da má­
quina. Já providenciaram uma nova e estão tentando
colocá-la. Nossa tarefa: entrar nos estreitos dutos de as­
piração do pó e desobstruir a máquina.
“Apressem-se e dêem duro lá dentro!” diz o “xeri­
fe” . “Só poderão sair quando o equipamento voltar a fun­
cionar. Quero que tudo esteja em ordem até uma da tar­
de, no máximo!”
Empoleirados nas oscilantes escadas de mão, precisa­
mos fazer muita ginástica para nos espremer naquelas aber­
turas que mal têm a largura de nossos ombros. A golpes
de pés-de-cabra, pás e malhos gigantescos, tentamos remo­
ver o minério de ferro ali incrustado, mas ele não se solta,
está grudado. Alfred, o encarregado, que está ali apenas
para acelerar o trabalho, espuma de ódio ao ver que só con­
seguimos retirar uma pequena parte daquela massa espessa.
— Bando de macacos africanos, cambada de capa-
dócios, turcos de merda, judeus dos infernos! — põe-se
a enumerar aos berros. — Vocês não servem para nada
mesmo! Devíamos encostar todos vocês na parede e me­
ter um tiro na nuca de cada um! — Quando perde o fôle­
go de tanto gritar, passa às vias de fato e joga um pé-de-
cabra na cabeça de um operário indiano, felizmente
atingindo-o só de raspão. — Da próxima vez, fique em
casa! — esbraveja. — Não tenha medo, que eu não vou
trabalhar na Turquia.
— Ele não é turco — tento explicar-lhe. — Indiano.
Mas Alfred não desiste:
— Conheço de longe quem vem da Anatólia! Todos
têm a mesma cara de burro! Esse aí também é de lá, desse
lugar onde o pessoal apaga a luz com o martelo!

152*
(Um dia, Alfred fez um comentário sobre mim para
um dos trabalhadores alemães. Disse que eu também sou
da Anatólia porque sempre faço “perguntas cretinas, des­
sas que nem passam pela cabeça da gente” . E certa vez
perguntou-me por que não fiz a gentileza de ficar na Tur­
quia. “ Motivo político” , respondo, “ ditadura militar.”
Minha resposta levou-o a dizer a um colega alemão: “Ali
não pode mais voltar para a terra dele, por isso é que tra­
balha aqui. Na Turquia eles têm um Khomeini enlou­
quecido!” )
Depois de uma hora de ofensas e tormentos, o “xeri­
fe” aparece e constata que é impossível prosseguir com
essas ferramentas primitivas. Manda buscar perfuratrizes,
brocas e compridas raspadeiras. Sem máscaras, voltamos
a atacar a massa compacta, provocando nuvens de pó. Sob
os constantes insultos dos dois chefes, rastejamos para o
interior da máquina. O barulho estrondoso das perfura­
trizes ecoa nos estreitos dutos metálicos, ensurdece-nos
completamente. Protetor de ouvidos? Nunca ouvimos fa­
lar nisso... os olhos ardem, o nariz escorre, todos come­
çam a escarrar. É o inferno! Mais tarde, Mehmet conta-
me que, em situações como essa, é preferível passar alguns
meses na prisão a suportar tanto horror por algumas ho­
ras. Em tais situações, imaginamos os piores métodos pa­
ra assassinar Adler; em tais situações, como quem arrisca
tudo numa cartada, tomamos algumas decisões: um rou­
bo mirabolante ou um assalto a banco. Porque quem se
enfia neste buraco não tem nada a perder, não tem nem
medo da prisão!
Os joelhos estão ensangüentados; as calças, esfarra­
padas; as luvas de trabalho, despedaçadas. E a máquina
de transbordo continua parada! Já fez treze, catorze, quin­
ze horas que estamos aqui dentro, batendo com estas fer­
ramentas pesadas e engolindo todo este pó.
Nesse meio tempo, um dos chefões da Thyssen apa­
rece e põe-se a xingar todo mundo, porque a equipe do
turno seguinte está esperando para colocar a máquina em
153"
A li e alguns colegas de trabalho

154
A dra. Jutta Wetzel, gastroenterologista, relata a situa­
ção de seus pacientes imigrantes:
“ Em geral, os operários imigrantes trabalham nas con­
dições mais desfavoráveis. E não estamos falando só dos fa­
mosos trabalhos insalubres, mas também — e isso tem um
peso ainda maior — daquelas atividades em que o operário
é obrigado a permanecer durante horas em posturas força­
das. A conseqüência disso são os fenômenos de desgastes pre­
maturos na coluna vertebral e nas articulações. Da mesma
forma, a presença maciça de fumaça e pó favorece o apare­
cimento de bronquite e gastrite. E há ainda o perigo de en­
trar em contato com substâncias altamente nocivas, como,
por exemplo, o amianto.
“ Entretanto só conheço tais locais de trabalho através
das descrições fiéis de alguns pacientes. Pois sempre que ma­
nifestei desejo de visitar esses locais, impediram-me de fazê-
lo. A despeito do alto índice de desemprego, as indústrias ra­
ramente encontram alemães dispostos a aceitar esse tipo de
serviço. As empresas (companhia de mineração, siderúrgica,
fábrica de automóveis, pavimentadora, estaleiro, indústria
química) precisam tanto de operários imigrantes que aceitam
como inevitável a taxa relativamente alta de enfraquecimen­
to doentio. Portanto, é imprescindível relacionar o enfraque­
cimento doentio dos operários alemães e imigrantes com suas
diferentes condições de trabalho” .

uso. Ordena que, por gentileza, retiremos nossos cus can­


sados o mais depressa possível.
“ Vocês vão ficar aí o tempo que for preciso para fa­
zer a máquina funcionar” , grita o encarregado. “Nem que
leve vinte horas!”
Yüksel toma uma decisão e literalmente suplica ao che-
fão da Thyssen que nos forneça máscaras protetoras. “Não
temos! Vocês precisam é terminar o trabalho, porra!” , res­
ponde ele.
Às seis e quinze, doze horas depois, nossa missão sui­
cida chega ao fim. No ônibus, a caminho de casa, quase
155 *
todos os trabalhadores dormem em posição incômoda, sen­
tados sobre as ferramentas.
A partir desse dia tenho os brônquios quase constan­
temente irritados. E ainda hoje — seis meses depois —,
ao escarrar após um acesso de tosse, verifico que o catar­
ro continua preto.
“Braços e pernas pesados como chumbo”
Há tal concentração de pó nos diferentes setores de nos­
so trabalho que não só inalamos toda essa sujeira, como tam­
bém a mastigamos literalmente. Ninguém se preocupa em exa­
minar nosso estado de saúde nem as substâncias que ingeri­
mos. Às vezes nos dão um pouco de leite. E isso é tudo. Fur­
tivamente juntei algumas amostras de pó de cores cintilan­
tes. Um punhado pesa tanto quanto uma pedra. Entreguei
o material ao Instituto do Meio Ambiente da Universidade
de Bremen, órgão totalmente independente das indústrias. Há
muitos anos pesquisas como essa já se tomaram rotina em
Bremen. Por exemplo: ali foram avaliadas as amostras de ter­
ra proveniente da indústria de pilhas Sonnenschein, de Ber­
lim. A empresa apareceu em todas as manchetes de jornais,
pois pertencia então ao ministro dos Transportes, Correios
e Telecomunicações Schwarz-Schwilling e hoje está nas mãos
de sua mulher.
Os primeiros resultados da análise do pó da Thyssen só
me foram apresentados pouco antes da publicação deste li­
vro. Até então o instituto jamais havia constatado tamanha
concentração de substâncias altamente tóxicas. Os pesquisa­
dores tiveram dificuldade para analisar a primeira amostra
porque os aparelhos de precisão mal conseguiram detectar tan­
tas substâncias nocivas concentradas. Descobriu-se um ver­
dadeiro catálogo do mundo dos metais pesados: ástato, bá-
rio, bromo, chumbo, cobalto, cobre, cromo, estrôndo, fer­
ro, gadolinio, ítrio, mercúrio, molibdênio, nióbio, paládio,
ródio, rubídio, rutênio, selênio, tecnédo, titânio, tungstênio,
vanádio, zinco e zircônio — no total, 25 substâncias nocivas
diferentes.
Dois metais particularmente concentrados no pó anali­
sado são os mais perigosos: mercúrio e chumbo. Eis o que
diz o Instituto da Universidade de Bremen:
“ O chumbo é um veneno acumulável, isto é, concentra-
se no corpo, mesmo absorvido em pequenas quantidades. Essa
acumulação do chumbo pode provocar intoxicação crônica...
Não estão excluídos: alteração da personalidade, distúrbios
psíquicos, paralisia e distúrbios genéticos” .
Não menos terríveis são os efeitos do mercúrio descri­
tos pelos cientistas: “Os primeiros sintomas patológicos pro­
vocados por envenenamento com mercúrio aparecem no cen­

157"
tro nervoso e manifestam-se através de formigamento e en­
torpecimento das mãos e dos pés seguidos de crescente insen­
sibilidade na região bucal. Simultaneamente aparecem lesões
oculares, com redução do campo de visão. O sistema nervo­
so central é afetado, provocando redução da mobilidade mus­
cular e perturbação da função coordenadora, além de graves
danos ao equilíbrio. Braços e pernas agitam-se em espasmos
freqüentes, e os músculos são atacados por tétano. O cére­
bro atrofia-se em 35%...”
Mesmo as “ concentrações mais diminutas*' desses ele­
mentos podem produzir efeitos tóxicos (venenosos). Por isso
a legislação autoriza “no máximo" 1 mg de mercúrio por qui­
lo (1 ppm) e 10 mg de chumbo por quilo (10 ppm) nos pro­
dutos alimentícios. Nossa “refeição” indesejada da Thyssen
contém oitenta vezes mais mercúrio (77,12 ppm, exatamen­
te) e 2 500 vezes mais chumbo (2 501 ppm).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que
a absorção semanal de 3 mg de chumbo por pessoa é o máxi­
mo tolerável. Ironicamente, a expressão “ter os braços (ou
as pernas) pesados como chumbo" corresponde à realidade,
pois 90% da quantidade de chumbo absorvida concentram-
se nos ossos.
A mesma coisa vale para o mercúrio, que também se con­
centra no corpo.
Só com um exame de sangue pode-se determinar a quan­
tidade em que essas substâncias nocivas estão concentradas
nos pulmões, sangue e ossos dos operários da siderúrgica. A
maior parte de meus colegas queixa-se regularmente de difi­
culdades respiratórias, náuseas, falta de apetite, vômito, dis­
túrbios circulatórios e bronquite aguda. Entre os cientistas
não há a menor dúvida: a bronquite está diretamente rela­
cionada com a irritação provocada pela absorção do pó. Ou­
tros distúrbios manifestados são sintomas clássicos de into­
xicação por metais pesados — e especialmente pelo chumbo.
“ Uma vez doente, sempre doente'*
Há décadas, os cientistas que estudam as causas das
doenças têm pesquisado os perigos que ameaçam a saúde dos
operários nas coquerias do mundo inteiro. Não há nenhuma
dúvida: trabalhar em coqueria afeta a saúde.
O maior perigo provém do pó em suspensão produzido
pelo gás de coque, porque contém alcatrão. “ O alcatrão e
todas as substâncias que ele engloba têm efeito cancerígeno” ,
escreve na revista especializada Arbeitsmedizin o prof. dr. A.
Manz, da Universidade de Hamburgo.
Diversas estatísticas têm sido publicadas sobre a ocor­
rência de doenças cancerosas entre os operários de coqueria.
Até o momento, porém, somente o câncer da pele foi reco­
nhecido pelas autoridades da República Federal da Alema­
nha como doença do trabalho, conseqüência do contato com
o alcatrão de hulha. Esse, porém, não é o maior problema.
Os operários de coqueria contraem em média três vezes
mais câncer dos pulmões que o resto da população masculi­
na alemã e duas vezes mais câncer da bexiga, do estômago
e do intestino. Os números são ainda mais alarmantes quan­
do se comparam os operários de coqueria com os emprega­
dos de escritório: os operários morrem de câncer da bexiga
numa proporção dez vezes maior e contraem câncer dos pul­
mões numa proporção oito vezes maior.
A ciência conhece a causa: o benzopireno, substância al­
tamente cancerígena contida no alcatrão de hulha. O benzo­
pireno também é encontrado na fumaça do cigarro; só que
na coqueria sua concentração é de trezentas a quatrocentas
vezes maior.
Um estudo minucioso feito com operários de coquerias
da Polônia revelou estreita relação entre “ certas afecções crô­
nicas das vias respiratórias” (por exemplo, bronquite crôni­
ca) e o gás de coque. Mas não é só: quem já sofreu de bron­
quite está particularmente propenso a contrair outras doen­
ças, porque o gás das coquerias afeta o sistema imunológico
do corpo.
“ Uma vez doente, sempre doente", reza o dito popular.
O prof. dr. Manz nos dá a conclusão: os operários que
trabalham nas coquerias têm uma expectativa de vida signi­
ficativamente menor.

159<
O teste
Parem de usar animais como
cobaias — usem os turcos!
(Grafite num muro em
Disburg/Wedau)

Cobaia humana
Osman Tokar (22 anos), um de meus colegas turcos,
foi despejado. Há algum tempo Adler prometeu-lhe pagar
os salários atrasados. Seu senhorio, porém, não quis espe­
rar mais: Osman teve de sair do local onde morava. Sua
mobília humilde ficou lá como penhor, trancada no po­
rão, até o proprietário receber os 620 marcos de aluguel
atrasado. A partir daí Osman não tem residência fixa. Às
vezes dorme na casa de um primo, num colchão colocado
no corredor; às vezes procura amigos que o abrigam por
algumas noites. Mas não pode fícar muito tempo, pois não
há espaço suficiente nem mesmo para os moradores.
Osman confessa, envergonhado, que chegou a passar
a noite num banco de jardim. Corre o risco de ser expulso
do país porque não pode comprovar um endereço fixo, além
de já ter recorrido aos serviços de assistência social. Mas
não quer voltar para a Turquia, para onde só ia como visi­
tante. Sente-se mais em casa nesta Alemanha glacial, onde
não passa de um estranho, que em seu país de origem, on­
de passou apenas os dois primeiros anos de sua vida. Fala
alemão um pouco melhor que turco, mas as duas línguas
continuam sendo estrangeiras para ele. Desconhece seu ver­
dadeiro lugar; é como se lhe tivessem “ roubado a alma” .
Proponho-lhe que venha morar comigo, na Diesels-
trasse, mas ele recusa. Devido ao trabalho na Thyssen, ad­
quiriu uma tosse crônica e agora tem medo de dormir “nu­
ma cama envenenada pela proximidade da coqueria” . Às
vezes pensa em se matar. Um dia, depois de trabalhar um
turno inteiro num depósito de carvão e inalar quilos de
sujeira até vomitar, fomos descansar um pouco ao ar li-

160 4
vre. Foi então que ele me disse: “Às vezes eu penso em
me atirar dentro do alto-forno. Faria um pequeno chiado
e não sentiria nada mais*'. Eu me calo, consternado, e Os-
man continua: “A gente só tem medo porque é novidade
e ninguém ainda tentou. Mas se arrastar no pó feito ver­
me e ao mesmo tempo ser espezinhado é mil vezes pior” .
Conta-me a história de um operário que caiu aciden­
talmente no alto-forno e num segundo virou brasa. Co­
mo nada restou, pegaram simbolicamente um pouco de
aço fundido e entregaram à família para o “ enterro” . Na
verdade, o corpo do operário fundiu-se no aço e foi parar
na laminação, onde se transformou em chapa para auto­
móveis, panelas ou tanques.
Osman anuncia que vai visitar o tio em Ulm. Pode
ficar morando lá com ele e conseguir um serviço que no
a mínimo será tão nocivo quanto o da Thyssen, mas pelo
menos será remunerado. No começo, não diz exatamente
do que se trata, apenas comenta que “na Thyssen, temos
que engolir o pó e trabalhar como escravos; nesse outro
serviço, só temos que engolir e dar o sangue” . Conta-me
que requisitam muitos estrangeiros — turcos, indonésios,
refugiados políticos sul-americanos, paquistaneses — pa­
ra esse trabalho especial que consiste em servir de “cobaia”
para a indústria farmacêutica. Pergunto se posso tomar
seu lugar num teste que deverá ter início dentro de alguns
dias; como compensação, eu lhe daria a metade do salá­
rio: 1 000 marcos. Ele concorda. O tal serviço vem mes­
mo a calhar. Com os ombros doloridos e uma bronquite
que aos poucos se toma crônica, eu já deveria ter aban­
donado o trabalho pesado na Thyssen há muito tempo.
Osman me dá o endereço do Instituto LAB em Neu
Ulm. É um prédio imponente, um pouco sombrio, com
o mau cheiro característico dos albergues de juventude dos
anos 50. Um jovem de seus 25 anos, bem-humorado, está
sentado na recepção como o autêntico *‘pai do albergue* *.
Ele se esforça para tornar o ambiente mais descontraído
e tranqüilizar a todos. Na sala de espera estão algunspunks
(fregueses habituais), estrangeiros do tipo mediterrâneo,
1611
O LAB, em Ulm, é um dos maiores institutos de testes da
Europa. Em seus fichários há os nomes de 2 800 provadores
— ou seja, cobaias humanas. Isto também pode ser dito de
outra forma: testam em nós o que é bom para os lucros da
indústria farmacêutica e os efeitos colaterais que podem apa­
recer nos pacientes.
Apenas uma ínfima percentagem das novas substâncias é
realmente testada. De acordo com a lei de medicamentos de
1976, milhares de remédios antigos devem ser novamente tes­
tados. Mas na verdade o que se faz é um sem-número de estu­
dos apenas para descobrir melhores estratégias de venda. Pes­
quisas sérias e significativas são muito raras. Estudam-se cam­
panhas de publicidade, ampliação de mercado ou um modo de
lançar um novo medicamento totalmente supérfluo, igual a de­
zenas de outros que se encontram à venda sob nomes diferen­
tes, mas contêm, quase todos, as mesmas substâncias químicas.
Muitas pessoas insurgem-se — e com razão — contra os
testes dolorosos e desnecessários realizados em anim ais. Mas
quase ninguém se incomoda com os testes inúteis e perigosos
realizados em pessoas. Nenhum serviço público os fiscaliza.
Está mais que comprovado que as indústrias farmacêu­
ticas adulteram e até mesmo copiam os pareceres emitidos
por clínicas conceituadas, ainda que estes se fundamentem
em testes realizados em hospitais públicos. Já imaginou co­
mo devem ser os testes feitos nos diversos institutos particu­
lares que, na prática, dependem totalmente da indústria far­
macêutica e experimentam os medicamentos em cobaias até
então *'‘saudáveis" pagas para isso?
Uma coisa está muito clara: os resultados negativos ou
alarmantes são prejudiciais aos negócios — não importando
se chegam ao conhecimento do público através dos médicos
que trabalham em hospitais ou através dos “institutos" que
fazem o teste em suas cobaias.
O prof. Eberhard Greiser, diretor do conhecido Institu­
to de Bremen para Pesquisa e Medicina Preventiva — órgão
que critica esse método da indústria farmacêutica —, decla­
ra o seguinte: “ Na prática, testes com resultados negativos
concernentes a determinado medicamento não são publica­
dos. Foi o que relataram muitos especialistas que encontrei
ao longo do tempo na ‘comissão de transparência' (comis­
são especializada dentro do Ministério da Saúde)".

162'
Os trustes farmacêuticos encomendam inumeráveis sé­
ries de testes com os devidos pareceres de peritos, mas apre­
sentam aos organismos federais da Saúde Pública apenas os
resultados favoráveis. As autoridades só tomam conhecimento
dos resultados negativos quando alguns médicos e/ou cola­
boradores desse truste econômico não podem mais se respon­
sabilizar por tal prática e acabam soltando essas informações.
Os serviços encarregados da autorização e vigilância dos me­
dicamentos n'à República Federal da Alemanha não sabem
sequer o nome do instituto em que tais testes são realizados.
O poder dos trustes farmacêuticos em nosso país é tão gran­
de que torna isso possível. Em outros países há uma legisla­
ção severa, que os obriga a declarar todos os testes realizados.

jovens desempregados e dois típicos vagabundos de esta­


ção ferrroviária, um deles com ligeiro bafo alcoólico.
Apresento o papel que Osman me entregou e pergunto
ao “ chefe da recepção” se não me arranjaria um teste um
pouco menos perigoso. Osman tinha me avisado que a ex­
periência prevista provocaria efeitos colaterais violentos
e desagradáveis. “ Não tenha medo” , diz ele, tentando me
acalmar. “ Todos que saíram daqui estão vivos até hoje.
A coisa é feita bem de leve.” O “pai do albergue” usa
um tom familiar com todos aqueles que serão usados nos
testes. “Primeiro temos que ver se você está em condições” ,
informa-me.
Enviam-me para um check-up de rotina. Colhem
amostras de sangue, examinam a urina, fazem eletrocar-
diograma, tiram minhas medidas, pesam-me. Um médico
confere os resultados. Levo um susto porque acho que é
um “ conterrâneo” meu. Felizmente não é turco, mas búl­
garo; pediu asilo na Alemanha. Conhece bem “meu país”
e põe-se a falar um pouco sobre a Turquia. Conta-me que
antigamente havia muito mais “ cobaias” turcas, porém
nos últimos tempos têm voltado em grande número para
seu país. Diz também que fizeram boas experiências com
meus “ conterrâneos” , que são “ duros na queda” e não
163f
“vivem se lamuriando por qualquer dorzinha” . Examina-
me os olhos e percebe que uso lentes de contato; por sor­
te, não se dá conta de que são coloridas. Explico-lhe que
foram prescritas por causa de meu trabalho como solda­
dor, já que os óculos são desvantajosos para esse tipo de
serviço.
Sou aprovado. Estou pronto para o uso. Tomarei me­
dicamentos em forma de pílulas e injeções que, com cer­
teza, me transformarão numa pessoa doente.
Obrigam-me a assinar uma declaração de que consinto
em submeter-me aos testes. Entregam-me um boletim in­
formativo de cinco páginas escrito em alemão: “ Boletim
informativo sobre os testes de estudo comparado farma-
codinâmico de quatro preparados diferentes combinados
com substâncias que contêm fenobarbital e fenitoína” .
Nunca ouvi falar de tais medicamentos; até o “ pai do al­
bergue” tem dificuldade em pronunciar fluentemente “ fe­
nobarbital” e “ fenitoína” . “Não há jeito de gravar esses
nomes” , diz. “ Segundo o boletim informativo, tais me­
dicamentos não são para uma doença comum, mas para
epilepsia e convulsões febris nas crianças.”
Quase todos os cientistas que não dependem da in­
dústria farmacêutica criticam com violência o uso de se­
melhantes preparados. A combinação de dois agentes im­
pede uma dosagem adaptada às necessidades individuais
dos pacientes. No entanto, médicos inescrupulosos mos­
tram boa vontade para com esses preparados. Poderão
ocupar-se menos com seus pacientes. A substância com­
posta fenobarbital pertence à classe dos barbitúricos, dro­
gas que logo criam dependência. Exatamente porque seu
uso é perigoso, centenas de remédios contendo barbitúri­
cos foram proibidos nos últimos anos. Trata-se, pois, de
medicamentos bastante conhecidos que, na verdade, de­
veriam ser retirados de circulação. Mas ninguém explica
por que ainda devem ser testados.
O teste está programado para onze semanas no total,
com quatro séries de 24 horas de reclusão. Honorários:
2 000 marcos. O boletim informativo aponta alguns efei­
164*
tos colaterais mais freqüentes: “ fadiga, alteração de hu­
mor, distúrbios motores ou nervosos, alteração do tipo san­
guíneo, modificação do campo visual, manifestações alér­
gicas sob forma de reações cutâneas” . E avisa que em cerca
de “20% dos pacientes pode haver inflamação das gengi­
vas” . Além disso, com um pouco de azar podem surgir
também “ eczemas, distúrbios respiratórios, sensação de
calor e náusea, vômitos eventuais” . Em casos mais raros,
podem ocorrer “ estados perigosos, com crise de asfixia e
distúrbios circulatórios, que requerem imediata interven­
ção médica” .
Mas nem tudo é tão ruim, porque, em caso de urgên­
cia, o seguro paga: “ Se, contra todas as expectativas, a
saúde dos participantes desse estudo experimental ficar pre­
judicada, o LAB e seus encarregados oferecem gratuita­
mente serviços médicos em níveis ilimitados” . Entretan­
to: “Estão expressamente excluídos os danos relaciona­
dos de forma indireta com os participantes desse estudo
experimental (por exemplo, acidente de trânsito durante
o percurso)” . Então o que acontece se um dos “ voluntá­
rios” sofrer um acidente de trânsito provocado por “ dis­
túrbios motores” ou “ distúrbios circulatórios” ?
Depois de assinar a declaração, recebo uma planilha
com os horários para a ingestão dos medicamentos e as
coletas de sangue, que são feitas de hora em hora.
Comunicam-me que o teste só começará amanhã, mas,
a partir de agora, não posso deixar o local — isto é, a ca­
sa e o pátio interno. “ Detenção voluntária.” Entregam-
nos cobertor, lençóis e fronha. No primeiro andar ficam
as “ salas de tratamento” : laboratório, local p.ara coleta
de sangue e enfermeira de urgência. No segundo andar,
a sala de televisão e os dormitórios.
O homem que está sentado na cama inferior de um
beliche nem ergue os olhos quando entro no dormitório.
Dois outros, sentados à mesa, continuam fazendo suas
palavras cruzadas. Dirijo-me para o segundo dormitório,
que dá vista para o pátio. À esquerda, uma oficina de
automóveis; à frente, entre um muro e um tambor de li­
165'
xo, alguns móveis de plástico cinzento para jardim; à di­
reita, um entreposto de produtos biólogicos; nos fundos,
a estação ferroviária para as mercadorias. Uma paisagem
desolada.
Como se evocassem a sorte, todos os voluntários re­
petem insistentemente que não correm o menor risco. “ O
perigo é maior para eles que para nós” , diz alguém. “ Por­
que, se acontecer alguma coisa, vai haver um tremendo
escândalo. E eles não podem se permitir isso.” Para al­
guns, esta não é a primeira vez. “Faz muito tempo que
circulo pelas indústrias farmacêuticas” , conta um deles,
que vai de instituto a instituto. “Turistas-cobaia” : é as­
sim que a indústria os chama. Outro voluntário fala de
um “ profissional” que viaja com seu trailer por todo o
pais; parece que, além de servir de “ cobaia” , recruta ou­
tras pessoas, cobrando comissão.
No jantar todos nos encontramos diante de uma lon­
ga fila de mesas. Quatro mulheres estão entre nós. Para
ser admitidas, tiveram de submeter-se a testes de gravidez.
Se engravidarem durante os experimentos — que em ge­
ral demoram meses —, o bebê poderá ter lesões sérias e
permanentes. Neste caso, porém, o LAB presta “assistência
médica e psicológica” , seja lá o que for isso.
Cada um de nós pega seu prato através de uma porti­
nhola: pão, manteiga, algumas fatias de queijo, um toma­
te, um pepino e um pimentão. Na televisão está passando
Bonnie and Clyde. Fecharam as cortinas para impedir que
o sol da tarde atrapalhe a imagem no vídeo. A antena está
quebrada, é preciso segurá-la para que a imagem ganhe al­
gum contorno definido. A sala cheira a fumaça e ponta de
cigarro. O filme termina, mas praticamente ninguém quer
ir dormir. Até meia-noite ficamos sentados no pátio, em si­
lêncio, fumando e bebendo uma água insípida em copinhos
de papel — a única coisa que ainda nos deixam ingerir.
Os que estão deitados têm os olhos pregados no teto,
tentando dormir. Alguém pegou no sono, ao lado de seu
radinho de pilha: “Música depois da meia-noite” a pleno
volume. Ninguém apaga a luz. A partir das duas e meia,

166 *
“ Música até o amanhecer". Desligo o rádio e apago a luz
que me ofusca.
Na estação ferroviária, os vagões são manobrados
ininterruptamente, com um barulho ensurdecedor. Atra­
vés da janela aberta chega o ruído dos copinhos de papel
arrastados pelo vento. Alguém se masturba incansavelmen­
te sob o cobertor.
Às seis horas da manhã, abre-se a porta. “Levantar!”
Obedecemos em silêncio, sem nos cumprimentar. Cada um
de nós está muito ocupado consigo mesmo. Meu frasco
de urina recebe o número quatro. Isto significa: às 6h04,
cateter no braço; às 7h04, medicamentos; às 8h04, coleta
de sangue e assim por diante.
Nas primeiras vezes ficamos em fila. Depois, conhe­
cendo já os que estão à frente e atrás, sabemos quandò
é nossa vez. O homem que está atrás de mim acabou de
sair da prisão e não conseguiu arranjar emprego em lugar
nenhum. Aqui ninguém lhe faz perguntas. Dois sujeitos
jovens, que nos enfiam os cateteres nos braços, conver­
sam sobre os próximos exames na faculdade. Ainda não
terminaram seus estudos de medicina. Vigiam-nos para
certificar-se de que todos nós tomamos os remédios. Te­
nho de engolir as duas pílulas debaixo de seus olhares. A
primeira coisa que sinto é que meu campo visual se reduz.
Tento olhar para o pátio, mas o sol me ofusca, dói-me a
vista. Deito-me na cama sonolento e apático. De hora em
hora vou como um sonâmbulo para a coleta de sangue.
Os outros também estão pálidos e abatidos. Com freqüên­
cia cada vez maior deixam de comparecer aos exames e
precisam ser arrancados da cama. Uma mulher queixa-se
de calor, vertigem e distúrbios circulatórios. Tem o braço
frio, áspero e dormente.
No dia seguinte encontro-me num estado ainda mais
lastimável. Esses testes são absurdos, pois já se conhecem
todos os efeitos colaterais. Já os sentimos: vertigem vio­
lenta, fortes dores de cabeça e distúrbios de percepção,
além de estupor permanente. A gengiva sangra muito. O
sangue é coletado sete vezes por dia e devemos estar sem­
' 1674
pre à disposição. Os outros também se queixam. Basta um
de nós se queixar para praticamente todos admitirem que
têm fortes dores de cabeça. Evidentemente não dizem na­
da diante dos funcionários, pois temem não ser aceitos em
outros testes. Um deles conta: “Muitas vezes eu me sen­
tia um trapo. Numa ocasião participei de dois testes dife­
rentes ao mesmo tempo, porque precisava de dinheiro com
urgência. Ai, sim, me ferrei por completo. O coração dis­
parou, batendo como louco. Até pensei que fosse pifar..."
Um sujeito mais jovem diz que não ficou até o final de
um teste porque lhe aplicavam tranqüilizantes muito for­
tes. Tranqüilizantes são sedativos que rapidamente levam
ao vício. Depois do teste, todos os participantes ficaram
meio “ abobalhados” . “Alguns caíam, sem conseguir fi­
car em pé e precisavam ser carregados. Se por acaso você
puder dar uma olhada no relatório a seu respeito, vai ver
que na coluna ‘efeitos colaterais' tem uma cruz no ‘não’.”
Depois dessa “ primeira série” — isto é, depois de 24
horas — decido interromper o teste. Eu deveria ficar
“ aquartelado” ainda mais três vezes nas onze semanas se­
guintes. Com os efeitos colaterais agravando-se. Sem con­
tar que durante esse período deveria estar no instituto to­
dos os dias — inclusive sábados e domingos —, às sete da
manhã, para coleta de sangue e entrega dos recipientes plás­
ticos com minha urina. Abandonando os testes antes do
término, não recebo um centavo.
Para Eberhard Greiser, professor da Universidade de
Bremen, “aproximadamente, dois terços desses estudos far-
macológicos são desnecessários. São estudos que têm pro­
pósitos comerciais, e não há nenhuma relação entre sua
utilização e as despesas que acarretam” .
Há dois anos esses testes provocaram a morte de Neill
Rush, jovem “ cobaia profissional” de Dublin, que estava
“testando” para a firma Kali-Chemie, de Hannover, um
medicamento para arritmia cardíaca. A firma não quis se
responsabilizar pela morte de Rush. Para ela, “tratou-se de
um ato irresponsável por parte do voluntário” , pois um
dia antes Neill havia testado em outro instituto um sedativo

168'
A li submete-se ao teste

muito forte: o deporil. A autópsia revelou que a combina­


ção dos dois medicamentos provocou a morte fulminante.
Uma “ cobaia” do LAB furtivamente me dá o ende­
reço de outro laboratório, o Bio-Design, em Freiburg. “ Vi­
vem precisando de gente e pagam bem. Além disso, a co­
mida é muito melhor que a ração daqui.” Resolvo ir até lá.

169’
Ao contrário do LAB, o Bio-Design está instalado num
prédio futurista semelhante a uma estação espacial. A re­
cepcionista faz a mesma pergunta precavida que Adler cos­
tuma fazer aos novatos, só que usa palavras mais elaboradas:
— Quem nos recomendou ao senhor?
Digo-lhe o nome do meu colega do LAB e imediata­
mente recebo uma proposta tentadora: 2 500 marcos por
quinze dias — mas, é claro, não posso sair dali. Então
pergunto:
— Desconta imposto?
Responde a mulher:
— Não, não. Não declaramos imposto. Esse serviço
é considerado como de saúde pública.
Tenho a impressão de que não andam conseguindo
muitos voluntários, pois tentam atrair-me com uma nova
proposta:
— Caso o senhor resolva participar dos testes, po­
deremos excepcionalmente falar de um adiantamento. —
E mais ainda: — O senhor será bem tratado. A comida
é de graça.
— E por que tanto dinheiro? O que vocês fazem?
Uma jovem funcionária dá algumas explicações,
acompanhadas, segundo me parece, de um sorriso pérfido:
— Trata-se de uma substância chamada mesperinon,
antagonista do aldosteron. É um mineral corticóide que
influi no sistema hormonal. Já está sendo comercializado
um produto desse tipo pertencente ao grupo dos espiro-
nolactons. Sabe-se que o uso prolongado dessa substân­
cia provoca uma espécie de... digamos... efeminação, ou
seja, um desenvolvimento de seios nos homens. Mas isso
não acontece com um uso terapêutico de duas semanas.
— E isso é seguro? — pergunto.
— É o que esperamos. Mas esse é exatamente o ob­
jetivo do teste. Nunca se tem certeza com essas coisas —
responde a moça.
— E se acontece, depois some?
— Claro — diz ela, tranqüilizando~me. — Tudo volta
para o seu devido lugar.

170 *
É evidente que está mentindo. Uma ginecomastia —
nome correto na linguagem médica para a formação de
seios nos homens — só é removido por cirurgia. Pelo me­
nos essa é a opinião unânime dos especialistas.
Sobre outro ponto ela também não diz a verdade.
Pergunto:
— E a potência sexual? Tudo bem?
Resposta:
— Claro, com relação a isso não há nada a temer.
Na realidade, ainda não há resultados precisos quan­
to ao uso de mesperinon em homens. Um texto explicati­
vo que acompanha o teste sublinha expressamente que se
deve esperar efeitos colaterais como “ dor de cabeça, ton­
tura, confusão mental, dor de estômago, reações cutâneas”
e, nas doses mais elevadas, “ginecomastia e impotência” .
O Bio-Design não mede esforços para prender suas cobaias
humanas. Uma cláusula do contrato diz: “ No caso de
abandono sem aviso prévio, a Sociedade Bio-Design po­
de exigir dos voluntários uma indenização pelas despesas
provenientes da realização dessa pesquisa...” O Bio-Design
está bem pouco preocupado com o fato de esse contrato
atar as mãos de quem o assina e ser, sem dúvida alguma,
imoral. As “ cobaias” são completamente pressionadas a
resistir, apesar de eventuais dores e sintomas.
Por trás da amável e elegante fachada de uma firma
de beleza, esconde-se um dr. Mabuse; que, servindo aos
grandes trastes farmacêuticos, convenientemente encami­
nha aos testes químicos pessoas necessitadas para chegar-
se a uma conveniente estratégia comercial.
Felizmente posso me reservar o direito de recusar tal
proposta tentadora e a grande soma oferecida pela Bio-
Design. Outros, contudo, não podem fazer o mesmo. Fir­
mas como a LAB e a Bio-Design lucram com a crise eco­
nômica, que obriga mais e mais pessoas a procurá-las.
Os responsáveis por esses institutos escusam-se nas
chamadas “ comissões de ética” , das quais tomam parte
cientistas e até eclesiásticos. Comissões de ética são comis­
sões de controle voluntárias, cujas resoluções devem ser
171'
cumpridas sob forma de lei. É o que ocorre em países co­
mo os Estados Unidos e o Japão, mas não na República
Federal da Alemanha.
Nesse contexto, ética não passa de cinismo. Os res­
ponsáveis pelas firmas podem a qualquer momento subs­
tituir essas condições a seu bel-prazer ou colocá-las ime­
diatamente de lado sem a menor cerimônia. E mesmo que
se tratasse de organismos oficiais, como é o caso em ou­
tros países, nada se alteraria: quando muito, as comissões
de “ ética” só podem julgar questões médicas. Mas a éti­
ca humana exigiria, no mínimo, que se preocupassem com
esses homens desesperados que foram impelidos para a
margem da sociedade e por esse motivo se candidatam ao
suicídio a prazo.
Minha proposta: promulgar uma lei que obrigue to­
dos aqueles que têm grandes lucros nas indústrias farma­
cêuticas a submeter-se aos testes. As vantagens dessa so­
lução seriam ilimitadas: a maior parte dessas pessoas tem
condições físicas muito melhores que as “ cobaias profis­
sionais” (geralmente extenuadas); e, graças aos lucros, po­
deriam tirar férias maiores e fazer tratamentos adequados.
Assim, o número de testes cairia verticalmente, limitando-se
ao mínimo necessário.
Não é uma proposta leviana. Há cerca de sessenta anos
os pesquisadores de medicamentos testavam em si mesmos
as substâncias novas que descobriam.
Pude sentir na pele os efeitos colaterais que, segundo
me diziam, aparecem muito “raramente” . Ao regressar
dessa viagem pelos laboratórios farmacêuticos, minha gen­
giva inferior começou a inchar e supurar. O dentista diag­
nosticou “gengivite” e, presumindo corretamente, pergun­
tou-me: “ O senhor tem tomado algum remédio à base de
fenitoína?” (Fenitoína era um dos compostos do medica­
mento testado no LAB em Ulm.) Respondi que sim, e ele,
relacionando esse efeito colateral com minha suposta doen­
ça, perguntou de imediato: “O senhor é epiléptico?”
A promoção

Sinto-me tão esgotado que não me considero em con­


dições de continuar trabalhando na Thyssen. No entanto,
tenho muitos colegas que não deixaram o serviço a des­
peito de doenças ou acidentes. Colegas que, gripados ou
febris, mantêm-se firmes durante dezesseis horas por dia,
temendo ser substituídos. Colegas como Mehmet, em cu­
jo pé caiu uma barra de ferro. Sem calçados de proteção,
seu pé inchou de tal maneira que ele teve de cortar o sapa­
to e prendê-lo com um arame. E com dores fortíssimas,
os dentes cerrados, lá vem ele mancando para o trabalho,
sem nunca se queixar.
Posso me dar ao luxo de arriscar tudo numa só car­
tada, fazendo da necessidade virtude. Fico sabendo que
Adler tem problemas com seu ajudante e motorista e ten­
to obter esse cargo por meio de um estratagema. Marco
um encontro com Adler alegando problemas com meu sa­
lário. Como sempre, ele está mal-humorado e pergunta co­
mo me atrevi a faltar tantos dias sem dizer nada. Peço-
lhe mil desculpas, digo que estou bem de novo e que isso
não voltará a acontecer. Condescendente, marca o encontro
para o dia seguinte: “ Mas seja pontual, se me faz o fa­
vor! Esteja aqui às duas em ponto!”
O velho truque: quem não aparece é o próprio Adler.
Três horas depois, por volta das cinco da tarde, consigo
pegá-lo em casa.
Adler (tentando se livrar de mim): Agora não dá!
Eu disse para você vir mais cedo. Não vê que estou pron­
to para tomar banho? (Está completamente vestido.)
EU: Não faz mal, eu pode esperar. Eu já esperei três
horas aqui em porta. Eu fica sentado em escada.
A dler (irritado): Não! Agora não dá! Volte amanhã!
EU: Eu não quer dinheiro. Só pergunta.
173"
ADLER: Também não! Telefone amanhã!
EU: Só cinco minutos, por favor! É mais de uma ho­
ra viagem para chegar aqui.
A dler : Telefone amanhã! Poderemos conversar por
telefone. Não vou mudar de idéia.
EU: É que eu tem uma coisa para senhor que pode
ajudar.
ADLER: (curioso e espantado): E o que é?
EU: Se eu não ajuda senhor, alguma coisa pode acon­
tecer com senhor...
ADLER: Comigo? Por quê?
EU: Eu volta depois de banho.
ADLER: Não! Espere um pouco. Entre!
Hesitante, acompanho-o a seu escritório e conto-lhe
que um dos operários, a quem Adler deve dinheiro, quer
dar-lhe uma surra. Mas não o permitirei. Passo a represen­
tar o papel de fiel escudeiro, um pouco simplório, pronto
a sacrificar a própria vida por seu senhor, se necessário for.
— Eu sabe caratê, caratê especial de Turquia. Chama
sisu. — E claro que se trata de um total disparate. Não só
não sei lutar caratê, como sisu não quer dizer absolutamen­
te nada disso; é uma palavra finlandesa que significa “per­
severança” , “paciência” , “insistência” . Mas felizmente ele
não sabe disso. — Eu ajuda se alguém bate senhor. Eu
sabe golpe especial tiro queda. — E para demonstrar mi­
nha energia selvagem esmurro a escrivaninha com toda a
força. Adler me encara meio irritado, meio impressionado.
— Quem quer me bater? Está certo e é justo que vo­
cê queira me defender, mas quem é o sacana que quer fa­
zer isso comigo?
— Eu não lembro o nome. Mas eu já disse para ele
que quem quiser matar Adler, precisa me'ítíàtar primei­
ro, porque eu sou homem de guarda de Adler!
Sem perceber que, em minha exaltação, esqueci de er­
rar nos verbos, Adler morde a isca. Durante uns cinco mi­
nutos, lê em voz alta a lista de nomes dos empregados tur­
cos e árabes que trabalharam ou ainda trabalham para ele
e para os quais evidentemente deve dinheiro. A seus olhos,

'174*
portanto, são todos assassinos em potencial. Para que não
desconfie de nada, peço que repita alguns nomes, como
se entre eles estivesse o procurado. Mas logo sacudo a ca­
beça negativamente: o nome do vingador não consta da
lista. Evitando que ele passe a suspeitar de algum dos meus
colegas, invento um vingador fantasma, um “ árabe sócio
de academia de boxe turca e com pata em lugar de mão”
(com um gesto mostro o tamanho das mãos). Há pouco
tempo esse árabe “com murro só, quebrou cara de ale­
mão” que o tinha feito de idiota. “ Sujeito fica todo arre­
bentado, com olho que não abria mais e cara torta.”
Adler está verdadeiramente impressionado. Aproveito
para falar de meus outros méritos especiais. Conto que,
além de lutar caratê, também já fui motorista de táxi du­
rante muito tempo e antes disso trabalhei como chofer par­
ticular do proprietário de uma grande fábrica.
— Que tipo de fábrica? — pergunta Adler, fazendo-
se de profundo conhecedor do asssunto.
— Fábrica faz maquininha para gente falar com ou­
tro — explico.
— Você quer dizer walkie-talkies?
Confirmo, orgulhoso. Se for necessário, posso con­
seguir uma carta de referência, assinada pelo dono da fá­
brica, que evidentemente é um velho conhecido meu.
— Eu ainda tem uniforme em guarda-roupa — con­
tinuo, vaidoso. — E também quepe bonito, bom pano!
— Interessante... E você dirige bem?
— Eu dirige sim. Não tem problema. Chefe sempre
dormia quando eu dirigia. E eu também sabe consertar car­
ro quando quebra.
Mentira deslavada. Mas confio em que o Mercedes 280
SE de Adler, quase novo, com acessórios especiais e todos
os equipamentos imagináveis, nunca precise de conserto.
— Está certo! Podemos falar sobre isso — diz ele. —
Estou mesmo precisando de um motorista. Além disso vo­
cê poderá me manter afastado desses sujeitos chatos. É só
me dizer os nomes. Bato um fio imediatamente para a po­
lida de estrangeiros, e eles são expulsos num piscar de olhos.
.175'
— Senhor deixa para Ali — declaro, tentando desviá-
lo do assunto. — Senhor não precisa ter medo. Eu conta
para eles que eu é homem de Adler, e eles fica calminho.
Um soco de Ali, e pronto! Melhor que polícia.
— Está bem, Venha na segunda-feira, às dez e meia
da manhã. Faremos um teste.
Foi assim que consegui minha “promoção” : de en-
golidor de pó e trabalhador braçal a motorista particular
e guarda-costas. Prova de que em nossa sociedade ainda
há oportunidade de ascensão inesperada. Mesmo para o
último dos operários imigrantes.
Por sua vez, Adler logo tenta um de seus habituais
golpes.
— Você ainda está doente — diz. — Preste atenção...
vou registrá-lo na previdência. Depois você procura um
médico e pede um atestado. Então a previdência paga o
seu salário. E você fica trabalhando para mim.
Precisei de muita abnegação para trabalhar como mo­
torista de Adler nas semanas seguintes. Bastava eu tocar
no volante para ele começar com sua rabugice. “Faça o
favor de prestar atenção!” Ou: “ Pare de me pôr em ris­
co” . Ou então: “ Quantas vezes preciso dizer que isso que
você está dirigindo é um objeto de valor?” Ou ainda:
“ Gostaria muito que você guiasse com segurança e serie­
dade quando estou no carro. Sua responsabilidade é nos
deixar, a mim e ao carro, sãos e salvos em casa” .
Assim, sou obrigado a dirigir bem devagar e pruden­
temente, três vezes mais devagar do que dirijo meu pró­
prio carro. Já nem se pode chamar isso de dirigir: é como
um leve balanço de rede. Mas Adler continua apavorado.
Ou quem sabe se essa mania de resmungar não é apenas
uma necessidade de auto-afirmação?
A cada dia ele me convoca para estar em sua casa mais
cedo. Sinto-me usado como “serviço de despertador” . To­
co a campanhia. Passam-se alguns minutos até que Adler,
com voz de sono, grite lá de cima: “Espere aí! Só demoro
dez minutos!” E espero, espero, espero... Fora, diante da
casa, não há nenhum local coberto em que eu possa me

176'
abrigar se chover. Não ocorre a Adler jogar-me as chaves
do carro para que eu possa ficar lá dentro.
Por volta das oito, nove horas é que o bairro começa
a se animar. Persianas são erguidas, janelas se abrem com
lentidão. Automaticamente, as portas das garagens vão se
levantando, e empresários bem-sucedidos, em suas limu­
sines impecáveis, partem rumo ao mundo dos negócios.
Uma mulher coloca ao lado da janela uma gaiola luxuosa
com pássaros exóticos. Todos os jardins são bem cuida­
dos, a grama perfeitamente aparada.
É muito raro Adler exigir que eu apareça em sua ca­
sa às sete ou oito da manhã. Quando isso acontece, fico
esperando trinta minutos, às vezes uma hora, para só en­
tão sair com meu senhor. Em geral, o dia para Adler não
começa antes das dez ou onze e termina às duas ou três,
no máximo às quatro da tarde — e muitas vezes com um
intervalo de uma hora para o almoço. Seu trabalho coti­
diano resume-se em ir aos vários bancos, em Oberhausen
e Dislaken, para consultar os depósitos de dinheiro. Cu­
riosamente todos esses bancos não ficam no bairro onde
ele mora. De vez em quando, Adler vai visitar Remmert,
seu amigo e sócio. Quase sempre no horário em que os
empregados não estão voltando de seus turnos, para evi­
tar as costumeiras “ perguntas insolentes” e “ absurdas exi­
gências salariais” . Adler costuma ligar o sistema de alar­
me do automóvel, porque nunca se sabe...
Na volta, às vezes passamos por seu clube de tênis em
Duisburg, onde há um restaurante, para que ele possa “dar
uma olhada no que está acontecendo” ou encontrar seu
“ fraudador de impostos” — isto é, seu consultor fiscal e
amigo intimo. Adler declara oficialmente como rendimento
anual alguma coisa “ entre 500 mil e 1 milhão de marcos”
— quantia que mal daria para seus gastos reais. Se somás­
semos apenas as contribuições sociais não recolhidas de to­
dos os seus operários que se encontram em situação ilegal,
obteríamos com certeza um múltiplo desse total.
É um martírio ser seu motorista. Ele sempre encon­
tra alguma coisa para criticar, sempre acha que sua vida
177'
corre perigo. Tenho a impressão de estar transportando
não um ser humano de carne e osso, mas uma múmia aper-
gaminhada, extremamente frágil, conservada numa caixa
de vidro e capaz de se desmanchar a uma simples freada.
Irritado, Adler continua botando defeitos em seu moto­
rista, quando não berra de uma vez: “Não ultrapasse! Di­
rija devagar, seu estúpido!” Ou então sua fórmula corri­
queira adaptada para a situação: “Faça o favor de pres­
tar atenção!” Ou mais ainda: “ Sejamos sérios! Não so­
mos provocadores!” E tudo isso a menos de 50 quilôme­
tros por hora na cidade e a menos de 140 na rodovia. Po­
rém ele não está preocupado com a segurança alheia; é mais
o medo abstrato por sua própria vida, preciosa e muito
cara. A polícia provoca-lhe uma fobia instantânea. Basta
avistar um guarda ou uma viatura policial para ordenar
que eu desvie ou mude de caminho e ficar fora do alcance
o mais depressa possível.
Adler nunca olha para trás, seria um desperdício.
Aliás, é um dos lemas de sua vida, pois, fiel à letra de sua
música favorita — a “ Canção do mercenário” — deixa
para trás “ a terra queimada” : “ Cem homens e um só co-
mando/E um caminho que ninguém deseja/Dia após dia,
quem sabe para onde?/Terra queimada, qual é a razão?”
Certa vez quase sou desmascarado. Adler percebe que
fiz um sinal para o fotógrafo que, do outro lado da rua,
ia perdendo nossa saída.
— Para quem você fez sinal? — pergunta desconfiado.
— Não é sinal — respondo, tentando afastar suas sus­
peitas. — É exercício caratê. Gente fica muito tempo sen­
tado, precisa fazer exercício, mexer braço, perna, mão, bem
rápido.
E para fornecer-lhe uma prova evidente do que aca­
bo de dizer começo a fazer movimentos espasmódicos com
os braços e as mãos, enquanto dirijo. Isso o deixa assom­
brado. E ainda como reforço de minha dedicação ao exer­
cício (e também para mantê-lo afastado de mim, caso me
desmascare), conto-lhe que, na academia de caratê, todos
têm medo de meus reflexos, rápidos como um raio:

178
— Uma vez colega de academia fez movimento fal­
so e levou golpe sem querer. Resultado... quatro dias co­
ma. — E para que me respeite digo-lhe que sou capaz de
quebrar tijolos com um golpe de caratê, mas tijolo velho,
não novo! Um golpe, e pronto, tudo acabado! — Faço
um gesto brusco em sua direção. E, para não continuar
assustando-o, acrescento: — Gente precisou assinar pa­
pel lá em academia. Gente só pode brigar se alguém ataca
primeiro, nunca pode começar briga! — Se ele soubesse
que sou, por princípio, contra golpes e armas de qualquer
espécie e em tais situações minha bravura é sair correndo...
— Faça o favor de não se agitar assim dentro do carro!
Vai estragar todo o banco. Quando estiver lá fora, então
pode fazer essas coisas — começa a gritar de repente. Sem
motivo, porque os bancos são tão firmes que meus movi­
mentos inofensivos não poderiam causar nenhum dano.
De qualquer forma, reforçando a seriedade de meus
exercícios de caratê e afastando suas suspeitas, ponho-me a
simular um lutador diante do carro, enquanto ele visita a
empresa Ruhrkohle-Wãrmetechnik, em Essen. Meus mo­
vimentos atraem a atenção das secretárias que trabalham do
outro lado da rua, nos escritórios da União dos Médicos
Previdenciários. Apinhadas nas janelas do prédio, elas co­
meçam a fazer sinais, encorajando esse guarda-costas que
se agita como um louco diante da limusine. Respondo a
seus acenos, o que provoca uma interrupção de no míni­
mo quinze minutos no expediente da União dos Médicos.
Assim que retoma e vê toda a pantomima, Adler fi­
ca furioso.
— Pare com isso imediatamente, seu idiota! Você ain­
da vai me comprometer. Deixe para fazer essas coisas lá na
sua jaula de macacos da Dieselstrasse ou na academia turca!
— Tudo bem! Mas senhor disse que fora de carro eu
podia fazer... — argumento e corro a abrir a porta do au­
tomóvel; depois, submisso, volto a sentar-me ao volante.
Às vezes, ouço o chefe despedindo pelo telefone do
carro alguns empregados “incômodos” ou “insubordina­
dos” . Ao contrário do que se poderia supor, sua voz nunca

179
se altera, não demonstra menor irritação; há, sim, um tom
meio lascivo. “Alô, meu bem, escute só” , sussurra, “acabo
de me livrar de uma daquelas moscas varejeiras. Foi ain­
da há pouco, na Ruhrkohle. O T. vai ser despedido ama­
nhã. Não é fantástico?11
Ao convidar industriais e políticos — entre os quais
um deputado federal — para um fim de semana em seu
iate, na Holanda, relata a um sócio: “Um peso a menos!
Hoje o botei na rua! Assim, zap! O que esse sujeitinho
me irritou!”
Em outra ocasião, sempre pelo telefone, ele se põe
a filosofar: “Às vezes é preciso virar a mesa. Então todos
se pelam! O pior de tudo é amolecer. Aí eles montam em
cima, e você pode ir fazendo a trouxa...”
De fato. Adler pode pôr gente na rua segundo sua von­
tade e seu humor. O desemprego, cada vez maior, atira-
lhe nos braços novos desesperados, que procuram qual­
quer trabalho sob qualquer condição — ou quase. Ele es­
tá longe de conhecer todas as vítimas de sua exploração;
quando muito, sabe o nome desses infelizes. Só quer o di­
nheiro que lucra com eles.
Novamente ao telefone: “O pessoal da Ruhrkohle me
procurou. Eles montaram uma nova instalação e me disse­
ram: ‘Olhe, as contratações estão suspensas, mas precisa­
mos de eletricistas1. Então foram a uma agência oficial de
empregos, lá para os lados de Colônia, aplicaram um golpe
qualquer e pronto! Conseguiram os eletricistas como se ti­
vessem sido contratados por mim. Eu nunca os vi, só rece­
bo meu dinheiro todo mês.” Ri. “É, a gente precisa saber
se ajudar. É só querer e sempre se acha uma solução.”
Mais uma de suas conversas: “Para mim as melho­
res são as grandes como Steag. Já trabalhamos com todas
as centrais elétricas: Thyssen, Ruhrkohle, Ruhechemie, Ge­
neral Electric da Holanda. Todas empresas de fama mun­
dial. Por isso é que, em geral, nem a inspeção do trabalho
nem fiscais de outras repartições ousam se meter nos ne­
gócios delas. Assim, podemos fazer ou deixar de fazer o
que bem entendemos. Os empregados podem trabalhar até

180*
cair. Elas não querem nem saber; só querem que a gente
faça o trabalho depressa e discretamente. Quanto menos
empregados, melhor para elas, porque não dá na vista. E
dai eu tenho que me virar com menos empregados, o que
se reflete nos ganhos**.
Às vezes ele reconhece, com muito despeito, que al­
guns de seus concorrentes conseguem superá-lo em maté­
ria de cinismo e trapaça. Conta como alguns deles, encar­
regados pelas grandes empresas de se “ livrar” dos deje­
tos tóxicos, “ ganham duas vezes” pelo serviço: “ O F. es­
tá encarregado pela Ruhrkohle de remover o lixo despe­
jado no rio Emscher. Só com esse serviço ele já está ga­
nhando um dinheirão no mole. Mas dobra toda essa gra­
na com os dejetos de carvão, que ele passa num tritura-
dor, pulveriza e revende como combustível. O único pro­
blema é que não pode armazenar o pó em silos porque
produz gases e vapores que podem provocar uma explo­
são. A mesma coisa acontece com toda aquela montanha
de resíduos de minérios de Oberhausen. A cidade conce­
deu a posse a um holandês, que transporta até a estrada
os resíduos não aproveitáveis de minério e recebe por me­
tro cúbico. E sabe o que o sujeito faz? Mói todo o mate­
rial e revende por um bom preço para as quadras de tênis.
É o negócio do momento essa história com as quadras de
tênis. Só que com isso elas têm muito ácido venenoso. Se
alguém cai numa quadra dessas fica com feridas nojen­
tas. Mas todas essas coisas são necessárias: ganhar dinheiro
com a merda e se tornar mais caro. É assim, meu jovem,
tem gente que enfia o dedo na merda e quando o tira...
pronto, transformou tudo em ouro!”
Adler construiu sua fortuna sobre o lixo, o pó e a su­
jeira — ou, para usar sua própria terminologia, sobre a
merda. Mas isso não o impede de zelar meticulosamente
por sua higiene pessoal. Tem um pavor histérico de con­
taminar-se com a sujeira desse mundo. Seus trabalhado­
res, verdadeiros escravos, representam para ele a casta dos
impuros, dos intocáveis, dos repugnantes, e bem que Adler
gostaria de mantê-los o mais longe possível. E quando pre­
181'
cisa recebê-lost sua indignação não se baseia apenas na
perspectiva ameaçadora de se desfazer de algum dinheiro
para pagar salários atrasados, mas também no confronto
direto com o suor, a sujeira e a miséria — embora todos
sempre tenham se apresentado em sua casa limpos e cor­
retamente vestidos. A única exceção sou eu. Muitas vezes
fiz questão de aparecer por lá com minha roupa de traba­
lho coberta de graxa e lama, o rosto preto de fuligem e
pó. E, para seu pavor, ficava parado sobre o capacho co­
mo um escravo que volta do trabalho, esfarrapado e
prostrado.
Mas adaptei meu novo uniforme ao Mercedes: calça
com vinco, camisa branca ou cinza, sempre impecável, gra­
vata e sapatos de couro reluzentes de tão engraxados (não
mais aqueles enlameados calçados de trabalho). No entan­
to, Adler continua considerando-me como um de seus es­
cravos, vindos do submundo proletário. Só meu endere­
ço — Dieselstrasse — já é um estigma. Para Adler, devo
ser a última das criaturas para viver naquela sujeira e tra­
balhar bem ao lado numa imundície ainda maior.
Um dia lá pelas sete e meia da manhã, estou planta­
do diante de casa de Adler, esperando-o há bem uns trin­
ta minutos, quando de repente sinto vontade de ir ao ba­
nheiro. Toco a campainha e pergunto se poderia usar o
toalete.
Adler : Vai cagar ou mijar?
EU: Tudo.
A d le r (com repugnância): Pois faça tudo aí fora
mesmo.
EU: Fora?! Mas onde?
ADLER: Num canto qualquer, mas longe daqui,
EU: Mas qual canto?
Adler : Tanto faz!
(Sou enxotado como um cachorro. E não há nenhum
local onde eu possa me aliviar. O jardim inteiro é desco­
berto. Tenho vontade de dar uma bela cagada no capô do
Mercedes, bem em cima da estrela. Dez minutos depois,
Adler finalmente aparece.)

182*
Eu: Banheiro de senhor quebrado?
A dler : Não, não está quebrado. É que não gosta­
mos disso. Vou ser bem franco... tenho medo de pegar
doença, entende? É uma questão de princípios. Não faze­
mos essas coisas na casa de estranhos. Há tantas doenças
espalhadas por aí... Nunca se sabe onde a gente pode se
contaminar, não é mesmo? E é bem grande o perigo de
contaminação desse modo.
EU: E quando vem visita? Também vai fora fazer isso?
Adler (embaraçado, hesita antes de responder): Eu
já disse, nunca recebo visitas. Os empregados ou qualquer
outra pessoa não entram no meu banheiro. Mas eles já sa­
bem disso. Ninguém pede. Em relação a essas coisas, eu
sou muito cuidadoso!
EU: O senhor tem medo de “ OIDS” ?
ADLER: Você quer dizer AIDS, não é? Bem, todos
têm medo. Mas eu... tomo meus cuidados. Por exemplo,
nunca vou ao banheiro na casa de estranhos ou num lu­
gar que não conheço direito. Não vou mesmo.
EU: Sim...
Adler: Não vou mesmo. Tento me segurar para só
fazer em casa. Não entro em banheiro que não conheço.
EU: Sim...
Adler : Nem público nem na casa dos outros. (E
prossegue ponderando): Também quase não dou a mão
para ninguém. Se preciso cumprimentar alguém, imedia­
tamente vou lavar as mãos.
Eu: Gente fazendo assim, não acontece nada?
ADLER: Claro que não! Assim não haveria mais doen­
ças. Só que nem todos pensam como eu. Muitas pessoas
são bem porcas nesse aspecto. Pensar nisso até faz mal.
Eu deveria levá-lo para visitar os banheiros da Rem­
mert, assim como se leva um criminoso ao local do crime.
Só há dois banheiros para todos os operários. Asquerosa­
mente imundos. A firma nunca os limpa nem fornece pa­
pel higiênico. Um dos banheiros não tem nem mesmo por­
ta. Mesmo assim, é bastante concorrido; o pessoal preci­
sa se agachar, exposto a todos os olhares. Um alemão es­

183
creveu num deles, com uma dessas canetas hidrográficas:
“ Exclusivo para os broncos” .
Às vezes, durante o trajeto entre Oberhausen e Essen
ou rumo a Wesel, Adler esquece o telefone por um instante
e, contemplando a paisagem, põe-se a filosofar. Sintoniza
a rádio Luxemburg, sua emissora favorita, que ouve de
manhã à noite, acalentado pela atmosfera de um mundo fe­
liz e sem problemas. Só baixa o volume durante os boletins
noticiosos, transmitidos de hora em hora. Ele, que em geral
é tão pouco comunicativo, de repente sente vontade de
compartilhar com seu motorista turco, a quem vê cinco ou
seis vezes por semana, confidências e convicções sobre a
situação política do país. Tudo isso em frases intermináveis.
Nesse momento, começa a tocar no rádio a enérgica
canção: “ Bom dia, Alemanha, eu te amo...”
EU: (aproveitando a ocasião): Faz tempo que senhor
é chefe e patrão de senhor mesmo?
Adler: Cinco anos. Antes, fui chefe de compras da
siderúrgica Gutehoffnung Man. Durante esses cinco anos,
aprendi muito mais do que em toda minha vida. E tam­
bém em relação aos embusteiros e outras coisas do gênero.
EU: Mas agora senhor ganha mais dinheiro que an­
tes, não? Que é embusteiro?
Adler : É verdade. Ganhar dinheiro faz parte do jo­
go. Mas aqui na Alemanha há uma porção de trapaceiros
que não querem nada com o trabalho e só querem é ficar
bem perto da carteira da gente. Só pensam em passar a
perna nos outros. Em termos de assiduidade e competên­
cia, os operários de hoje não têm nada a ver com o operá­
rio alemão de antigamente. É verdade que Hitler foi um
ditador, mas em relação ao...
EU: Ele matou gente.
ADLER: É, e também provocou guerras que na ver­
dade não eram necessárias.
EU: E por que ele perdeu?
ADLER: Bem... ele se lançou a todos os tipos de con­
quistas e quis continuar a expandir mais e mais... O que
ele fez com os judeus... você pode concordar ou não... mas,

184"
enfim, os judeus não são mesmo bem-vistos em lugar ne­
nhum... As pessoas hoje em dia esquecem muito depressa
que ele deu pão e trabalho para todo mundo. Onde ele pu­
nha a mão, acabava o desemprego. E agora, que temos
um ou dois milhões de desempregados, logo vai aparecer
um novo Hitler. Pode ter certeza! Todas essas manifesta­
ções políticas, essas agitações e coisas do gênero!
EU: Agora é gente que está em lugar de judeu.
A dler (ri): Não tenha medo, não vamos mandá-los
para as câmaras de gás. Não acredito nisso. Precisamos
de vocês para o trabalho. Com os judeus foi diferente, era
uma coisa que estava enraizada fazia séculos. Você sabe,
os judeus estão sempre metidos no comércio, sempre fa­
zendo os outros trabalharem para eles. Compram por uma
ninharia o que os outros fabricam e depois vendem muito
caro. É esse o método dos judeus. São preguiçosos de nas­
cença, não gostam de trabalhar e enriquecem à custa dos
outros. É por isso que ninguém os tolera em lugar nenhum,
nem na Alemanha, nem na América, nem na Rússia, nem
na Polônia. Mas com os turcos a história é outra. Você
sabe melhor que ninguém que podem trabalhar duro aqui.
Portanto, não tenha medo! O que pode acontecer é alguém
fazer uma lei dizendo que vocês têm que deixar a Alema­
nha no prazo de um ano. Isso, por exemplo, se mais um
milhão de pessoas perder seus empregos.
EU: E senhor acha que vai ter mais gente sem emprego?
ADLER: É o que dizem os que entendem do assunto,
os políticos e os figurões das indústrias. Claro que não fa­
lam assim, abertamente, para qualquer um. Por exemplo,
há cada vez mais computadores e robôs nas empresas. Se
eu pudesse substituir pessoas por máquinas... cada máqui­
na custaria 100 mil marcos... isso representa três homens
a menos. Se eu pudesse, bem que eu faria. Com as má­
quinas eu não teria aborrecimentos.
EU: É...
ADLER: Você compreende? A máquina é mais con­
fiável, trabalha sem problemas. E essa é a tendência ge­
ral. Olhe as grandes empresas... tudo é automático. E ca­
185'
da vez mais. E países como a Nigéria ou a Alemanha Orien­
tal produzem serviços mais baratos; por exemplo, nas cons­
truções metálicas, nas tubulações... Aqui na Alemanha Oci­
dental o custo da mão-de-obra é muito elevado. Por isso
não somos capazes de concorrer com eles. Vivem dizendo
que precisamos reduzir o desemprego, mas com este siste­
ma econômico não é possível. Ao contrário. Todo ano mais
e mais jovens saem da escola e querem trabalhar, porém
não há trabalho. Os figurões da política só fazem é tapar
buracos, com aponsentadorias prematuras e coisasassim.
É como no Egito antigo... “Sete anos de vacas gordas, sete
anos de vacas magras.” Tivemos quarenta anos de vacas
gordas, e agora temos que estar preparados para os anos
de vacas magras. Até que venha uma nova guerra ou al­
guma coisa assim, e então tudo precisará ser reerguido.
EU: Senhor acha que vem guerra nova?
A d ler: Se o desemprego continuar aumentando, pe­
lo menos uma guerra civil na Alemanha. Pode acreditar.
Se aparecer mais um milhão de desempregados, vão to­
dos para a rua e montam barricadas. Então será o caos,
o fim da nossa democracia! (Cala-separa ouvir uma notí­
cia transmitida pelo rádio do carro.)
RÁDIO: Os estrangeiros que se divorciaram de espo­
sas alemãs poderão ter sua autorização de permanência re­
duzida ou suspensa...
ADLER: Está ouvindo?
RÁDIO: ... rejeitou a ação judicial de um turco que
vive na República Federal da Alemanha há cinco anos. Sua
esposa, uma alemã, requereu o divórcio e obteve a guar­
da do filho. A cidade de Kassel decidiu que a autorização
de permanência do estrangeiro será válida somente até o
final de agosto deste ano.
Adler : Está ouvindo? Por toda parte já se fala nisso!
EU: Mas e senhor, o que senhor acha? Agora são ca­
sados, depois talvez ela arranja outro homem, e aí fim,
acaba. Mandam ele embora. E ele não pode mais ver o
próprio filho?
Adler (impassível): É, o sujeito vai ter que voltar pa­

186 '
ra a terra dele. Você acabou de ouvir. De qualquer modo,
foi um erro da política alemã. Quando estávamos em ple­
no milagre econômico, escancaramos as portas do país,
e entraram todos os turcos que quiseram vir, todos os ita­
lianos que quiseram vir... Foi mesmo um grande erro! Os
políticos não poderiam ter feito uma coisa dessas.
EU: É, mas gente não veio sozinho, eles foi buscar
gente. E aquela época nada computador. Eles precisavam
mesmo gente.
A dler : Mas isso foi uma faca de dois gumes. Hoje
nos arrependemos. Chegaram os turcos, e todo trabalho
duro passou a ser feito pelos imigrantes. E o alemão, que
não trabalhou mais, ficou prejudicado. Essa mentalidade
existe até hoje. O alemão não quer mais trabalhar e cria
muitas dificuldades. Foi um grande erro deixar os estran­
geiros virem para cá. Mas também estou convencido de que,
se todos os turcos partissem, não resolveria o problema.
Supondo que todos eles partissem, teríamos talvez cem mil
desempregados a menos, o que não adiantaria nada.
Rádio (interrompendo novamente a conversa) : ... é
acusado de corrupção. Veba, Klõckner, Krupp, Mannes-
mann e mais onze grandes trastes... Esses donativos ser­
viriam para suborná-lo...1
EU: Então ministro da Economia vai para cadeia?2
A dler : De jeito nenhum. Metade do governo teria
que ir junto. Não vai mesmo, é impossível!
Eu*. Ele ganhou milhão e milhão, e ainda queria mais.
A dler : Ora, é evidente! Você também. Está sempre
reclamando de dinheiro. Isso faz parte da natureza huma­
na, você não acha?

1Alusão ao escândalo que explodiu na Alemanha em 1983, quando se soube


que Karl Flick, o industrial mais rico do pais, andou distribuindo propinas a
dirigentes de todos os partidos parlamentares, exceto o Partido Verde (N. do E.).
2 O conde Otto von Lambsdorff, então ministro da Economia, posteriormente
foi processado por corrupção (N. do E.).

187 '
INDUSTRIEMONTAQEN KQ

BRHAU8CN

tndustriemontagen
- RchrfeEttmgsbau
• Behfltterbau
- Stahtbau
Entrostung und Anstrlch

HV/UH 26,7.1985

V
Z8 u g n i s

Herr A M Levent S l M l H M F , «ohnhaft Dleselstr. Io,


41 Dulsburg Ist bei uns bescMf tlgt.
Ourch selne hervot-ragende Arbett, PUnktlIchkelt,
FleíBIgkelt auf varsehladenen Baustellen hater
slch so verdlent genàcfit, daQ wir Ihn selt einlgér
lolt alsChaffahrer einsétzen.
Ihn> pbllegt dle Wartung und Pflego sowlo dle Fahrerel
ratt unserea Mercedes 280 SE.
Uir slnd mlr Herrn S t t f M B I p B sèhr zufrteden.
Mlr beabstchtlgen, Ihn zú élnen spüteren Zeltpunkt
ais FUhrungskraft efntusatzen.

Atestado entregue por Adler a Ali depois de sua promoção


A assembléia do pessoal

“Assembléia do pessoal” é o nome que Adler dá a


uma reunião com sua gente, convocada por ele mesmo e
realizada num salão do Cantinho dos Esportistas, um bar
da Skagerrakstrasse, a dez minutos da parada de ônibus
da firma J. P. Remmert.
Enquanto o levo lá, ele conversa pelo telefone com
um dos seus confidentes. Diz que vai tratar de “ manter
a calma no fron t ” e fazer com que todos “ andem na li­
nha” . E que também decidiu efetivar uma das equipes de
trabalho, de acordo com a lei, para não se arriscar a “ fi­
car atolado na merda” .
A reunião está marcada para as quatro da tarde. A
presença de todos é obrigatória, mas evidentemente não
é remunerada.
Adler encarrega-me de levar sua pasta de documentos.
— E não se afaste de mim! — ordena logo. — Se al­
guém chegar muito perto, você agarra e despacha logo.
— Certo — declaro, bastante chateado por pensar que
meus antigos colegas e amigos poderão imaginar que me
tomei não só um arrivista como um dos gorilas de Adler.
Se algum deles se atrevesse mesmo a surrá-lo, eu saberia
muito bem a quem ajudar, ainda que precisasse abando­
nar meu papel antes do tempo. Afinal, a abnegação ter­
mina em algum momento.
Os colegas já estão sentados ao redor de uma grande
mesa. Há algumas caras novas. Adler senta-se à cabecei­
ra e, com um sinal, faz-me entender que devo me espre­
mer a seu lado. Pisco para alguns colegas, porém duvido
que tenham entendido meu gesto de cumplicidade. Com
um “ silêncio!” , Adler põe fim às conversas.
— Afinal, não estamos numa escola judaica — acres­
centa, usando uma expressão que a maioria não compreen­
189
de. Todos silenciam imediatamente e olham-no.espanta­
dos, à espera do que ele tem a revelar. Adler inicia então
seu discurso num tom que é no mínimo surpreendente: —
Muito bem, meus caros colaboradores... — Ao ouvir isso
Kemal me cutuca por baixo da mesa e não consegue pren­
der o riso. — ... convoquei-os porque está na hora de bo­
tar ordem na casa. Andaram dizendo qiie trabalhamos ile­
galmente. Até o nome de uma empresa como a Remmert
foi mencionado pelo rádio. Uma coisa dessas pode preju­
dicar os negócios, e eu estou advertindo cada um de vocês
contra esse tipo de afirmação. Se tudo continuar como ago­
ra, montaremos uma equipe estável, com contratos está­
veis. Para tanto, faremos uso das louváveis disposições do
governo federal, que nos autorizam a firmar contratos por
prazo determinado, inicialmente de seis meses, com gente
da nossa confiança. Assim, poderemos avaliar o desem­
penho de cada um e ver quem é bom para nós e quem não
é tão bom. Não se pode confiar em alguém só pela cara.
Se formarmos uma equipe estável, poderemos voltar a con­
versar sobre uma e outra questão. Dentro da Thyssen há
muitas firmas que não tratam desse assunto de forma tão
legal como estamos tratando agora. — Explica que atual­
mente a Thyssen lhe assegura “três mil horas por mês*’
mais tarefas especiais extraordinárias, e espera que isso con­
tinue “ todos os anos!” — Desde que a conjuntura eco­
nômica se mantenha tão favorável como agora e que a
Thyssen não venha dizer de repente que acabou. — Pede-
me para chamar a garçonete e proclama num tom arro­
gante: — Agora é a minha vez. Uma bebida para cada um.
Soda, coca ou cerveja. A rodada é por minha conta! —
E continua falando a seus “caros colaboradores” dos mais
céticos aos mais temerosos: — Agora prestem muita aten­
ção! Vou explicar a tabela dos salários. — Menciona “ín­
dices** desses salários de fome que ele mesmo fixa arbi­
trariamente como se tivessem sido estabelecidos por ne­
gociações oficiais com os sindicatos. — Os salários serão
os seguintes... 8,50 marcos para o pessoal que tem entre
18 e 21 anos; 9 marcos para os solteiros com mais de 21
190'
anos e 10 marcos para os casados.1 Escalonei um pouco
os salários — justifica-se — porque um homem casado evi­
dentemente tem mais despesas. Ou, se preferirem, escalo­
nei essas tarifas segundo critérios sociais. — Olha severa­
mente para todos. — Se alguém não estiver de acordo,
levante-se e saia!
Ninguém se mexe. Ninguém se atreve a dar sua opi­
nião. Para a maioria, não é só a subsistência que está em
jogo, é a própria sobrevivência. Sabem que lá fora há dú­
zias de pessoas que ocupariam seus lugares sem nenhuma
objeção.
— Esse salário de 8,50 marcos é bruto? — Nedim ou­
sa perguntar.
— Só pagamos salário bruto — responde Adler, la­
cônico.
— Mas então sobram apenas 5 ou 6 marcos — co­
menta Nedim.
— Bem, assim de cabeça não lembro as cifras exatas
para os solteiros. É possível que seja isso. Mas, de uma
vez por todas, os salários são sempre em valor bruto. Pa­
gamos não só conforme a empreitada, mas também segun­
do a situação social. É um único bolo que deve ser repar­
tido; portanto, devemos levar em conta o aspecto social.
SÓ o “ bolo" da Thyssen representa 52 marcos por ca­
beça e por hora, conforme relatos dos colegas. Estão in­
cluídos os adicionais de insalubridade para o pó, a sujei­
ra, o calor e outros elementos nocivos à saúde; sem falar
nas horas extras. Para a Thyssen, esses prêmios pagos ao
pessoal da Adler saem mais em conta do que se ela pagas­
se a seus próprios trabalhadores registrados. Porque as­
sim são suprimidos pagamentos de férias remuneradas, gra­
tificação de Natal, auxílio-doença e tantas outras conquis­
tas dos trabalhadores. Adler reparte os 52 marcos com a
firma Remmert, que fica com 27 marcos. Supondo-se que,
contrariamente a seus hábitos, Adler não embolse os en­
cargos sociais e pague em média 9 marcos a cada empre­
1 São bem poucos os casados (N. do A.).

191 *
gado, restam-lhe ainda 16 marcos por hora; multiplicado
por três mil horas no mês, isso dá 48 mil marcos — para
Adler, é claro.
— Pois bem, vamos tomar nota dos nomes de um por
um — diz ele. Ao olhar, porém, os rostos desanimados
e abatidos de seus “guerreiros” , procura em seu repertó­
rio habitual algumas palavras de consolo: — Sei que não
é muito no momento, porém, como já disse, estou disposto
a rever isso. Ainda não nos conhecemos muito bem, mas
em seis meses, quando nos conhecermos melhor, falare­
mos sobre aumento de salário. E estou certo de que pode­
rei fazer alguma coisa a respeito.
“Todos que o conhecem um pouco sabem que se tra­
ta de promessas vazias” , penso.
— Muito bem, tenho outra coisa a dizer. — Adler
levanta a mão para exigir silêncio. — Não vou mais tole­
rar que faltem ao serviço. A partir de hoje, infelizmente
teremos que demitir quem faltar e pegaremos outra pes­
soa para ocupar o lugar. Está bem claro? A minha em­
presa não é botequim para vocês ficarem com entra-e-sai!
— A esse ponto volta-se para Mustafá (23 anos), lançando-
lhe um olhar crítico. — Isto vale principalmente para vo­
cê. Anteontem foi a última vez que você faltou.
— Desculpa, senhor. Eu precisei levar a mulher no
hospital. Ela foi dar à luz.
Ao invés de felicitá-lo, Adler finge não ter ouvido e
repete:
— A última vez! Esteja certo disso!
Nunca recebemos qualquer espécie de auxílio-doença
e várias vezes, chegando ao trabalho, éramos mandados
de volta para casa porque não havia serviço. E mesmo as­
sim Adler dispõe de nosso tempo e de nossa vida como
se fossemos seus servos. Irritado, dirige-se asperamente a
Walter Recht:
— Você deve parar duma vez por todas com essas
suas faltas constantes, do contrário...
— Mas, senhor, de sábado para domingo trabalha­
mos vinte horas seguidas — argumenta Walter, cabisbai-

192'
xo. — Só cheguei em casa às quinze para as três, e às três
e meia tive que ir buscar uma ambulância para a minha
mulher, que precisou ser operada com urgência. Mas eu
logo comuniquei ao sr. Flachmann.
Adler finge não ouvir e põe-se a esclarecer as coisas:
— Se vocês não entrarem na linha, volto a fazer co­
mo antes. Ao receber um atestado médico, vou até a casa
do sujeito e vejo se ele está mesmo com febre. Se não esti­
ver, ponho-o no olho da rua! — Em seguida retoma sua
cumplicidade social: — Quando nos conhecermos melhor,
nos acostumarmos uns aos outros, saberemos o que fa­
zer. E quando nos reunirmos de novo... para uma festi-
nha de Natal, por exemplo... se ainda estivermos juntos
até lá... talvez possamos assinar contratos definitivos. En­
tão está tudo certo. A partir de agora vocês são uma equi­
pe, e eu não quero mais ouvir choradeiras por causa de
dinheiro. Amanhã e sábado vocês poderão fazer horas ex­
tras, virar o dia trabalhando! Isso é tudo. — Despede-se
de sua gente. — Amanhã cedo, todo mundo lá, pontual­
mente. Banho tomado, pescoço limpo e outras partes tam-.
bém... — Depois volta-se para Mustafá e pergunta: — Vo­
cê pagou as suas cervejas? Só me faltava deixar a conta
das bebidas para eu pagar! Muito bem, tudo acertado —
diz para Wormland, seu futuro cunhado, funcionário e
confidente. Manda-me levar sua pasta de documentos para
o carro e aproveita para explicar para Wormland: — Ali
agora é o meu guarda-costas. Pode dizer para os rapazes.
Ele sabe lutar caratê e tem um revólver.1 — Ficou o tem­
po todo sentado atrás de mim, sem despregar os olhos.
Daí apareceram dois sujeitos que queriam dinheiro. Pen­
sei que estava mesmo frito!
Meio divertido, Wormland comenta:
— Ouvi dizer que você agora vai registrar o pessoal
todo.
— Não leve tudo tão ao pé da letra — Adler respon­
de, piscando o olho. — O importante é que haja. um pou-
1 Na verdade eu havia lhe mostrado só um canivete (N. do A.).

193
co de paz nos negócios. — E esquiva-se para o canto do
balcão ao ver entrar no bar um casal de jovens. O homem
olha-o com fúria, e a mulher, uma loira, ostensivamente
vira o rosto para o lado. — Fique atento — diz-me Adler.
— Talvez você tenha que me defender. — E volta-se para
Wormland num tom fanfarrão: — Está vendo? Sou mais
conhecido que o papa!
Sua preocupação, porém, é infundada; não há nenhu­
ma provocação.
Mais tarde, chega ao bar um de seus amigos de negó­
cio, e Adler põe-se a falar sobre a assembléia do pessoal:
— E então consegui regatear os preços. Agora estão
todos animados a fazer horas extras e turnos dobrados.
E para não que ficassem tagarelando e discutindo, mandei-
os voltar imediatamente para casa. “ Você vai por aqui,
você por ali” , disse-lhes. A gente precisa ter muito cuida­
do com esse pessoal.
À outra ponta do balcão está sentado um colega no­
vo: Walter, um alemão de seus vinte e poucos anos, ma­
gro e pálido. Bebe uma cerveja atrás da outra e, levantan­
do o copo para um brinde, evidentemente procura cha­
mar a atenção de Adler, que, contudo, finge não vê-lo.
Depois de tomar umas dez cervejas para ganhar coragem,
Walter vai ao encontro de Adler e, num tom patético e
um pouco alto demais, implora:
— Por favor, me dê uma chance. Eu fiz o curso de
mecânico numa fábrica, mas fiquei doente nas vésperas
do exame. Então me puseram na rua. Estou falando fran­
camente... Na época eu ainda não era casado... mas ago­
ra é diferente; tenho dois filhos para alimentar. Na outra
firma onde trabalhei, eu precisava ficar o tempo todo cor­
rendo atrás do meu dinheiro. — Põe-se a gritar imitando
seu antigo patrão: — “ Você não quer trabalhar, só quer
meter a mão no meu dinheiro” , ele berrava. E depois me
empreguei num estaleiro que faliu enquanto eu estava ainda
no período de experiência. Sei fazer muita coisa. Sou qua­
lificado como soldador, sei soldar até pó de zinco. E tam­
bém sei trabalhar com projetos... Por favor, me dê uma

194 ‘
chance, um trabalho qualificado. Não posso sustentar a
família e pagar aluguel ganhando 6 marcos por hora.
Adler mostra-se claramente aborrecido. Por que o in­
comodam em seu momento de lazer, quando está já na
décima quinta cerveja? Por que o perturbam com essas
bobagens? Num tom repreensivo, livra-se de Walter:
— Comece por chegar no horário no trabalho. Aliás,
por que você faltou hoje?
— Mas ainda há pouco eu disse que precisei levar mi­
nha mulher para o hospital — explica o rapaz, muito agi­
tado. — Ela teve que ser operada com urgência.
— Comece por chegar no horário ao trabalho e de­
pois falaremos sobre o assunto — diz Adler, dando a en­
tender que não acredita na explicação.
— Pode confiar em mim. Todos os dias levanto às
três da madrugada e vou para o serviço de bicicleta, que
é para não correr o risco de me atrasar. Sempre chego na
hora. Pedalo uns trinta ou quarenta quilômetros por dia.
Pode confiar em mim! — E continua implorando, como
um disco quebrado: — Por favor, me dê uma chance!
Cada vez mais irritado, Adler despacha-o dizendo:
— Quem trabalha e chega sempre na hora recebe seu
dinheiro. Portanto, é só andar direito! — E vira-lhe as cos­
tas, voltando-se para Wormland.
Mais tarde, no banheiro, Walter me diz:
— Viu só? O seu chefe não me deixou na mão. Ele
não é nada daquilo que você me contou no primeiro dia.
— E, vendo-me calado, pois não quero desiludi-lo, pros­
segue: — Você reparou como ele ficou me olhando quan­
do ele percebeu que o meu temo é igual ao dele?
Também resolvo não dizer nada sobre isso. É verda­
de que ambos vestiam um temo azul de listras. Só que o
de Adler foi confeccionado sob medida e deve ter custado
uma fortuna, enquanto o de Walter foi comprado por uma
ninharia numa lojinha qualquer. A fim de defender me­
lhor sua última oportunidade, Walter chegou a usar ca­
misa branca e gravata, como se fosse fazer um pedido de
casamento. Até que na décima oitava cerveja finalmente
195 ‘
percebe que Adler não quer mais conversa com ele. Cam­
baleando, deixa o bar e monta em sua bicicleta, pronto para
pedalar os quinze quilômetros que o separam de sua casa.
Nesse meio tempo, Adler chegou à vigésima cerveja e
começa a discutir com Wormland. Pouco antes ainda proferia
frases enérgicas, imaginando estratégias empresariais: “Ago­
ra é preciso manter tudo nos eixos!’’ “Cuido do meu quadro
de pessoal como de um tesouro!” “Considerem como pode­
mos diminuir os custos!” Agora, porém, ataca Wormland
violentamente só porque o outro se atreveu a contrariá-lo:
— Você não pode tratar o pessoal desse jeito. Se o
H. processar você, até será com razão. Eu mesmo teria
feito isso há muito tempo se não fosse seu parente. — E
grita,, irritado: — Você é um traidor! Fica do lado desses
miseráveis, desses vagabundos, desses bandidos! Você per­
tence mesmo a essa gentalha!
Wormland mantém-se calmo. No serviço, nunca fui
muito com a cara dele, mas aqui demonstra ter alguma
personalidade. Faz Adler perceber o desprezo que sente
por ele e mantém sua opinião. Indiferente, várias vezes tra­
ta o chefe de senhor, para manter distância, e responde:
— Não estou do lado deles, mas quando alguém es­
tá no seu direito...
Adler não suporta que se atrevam a contrariá-lo.
— Para mim você morreu. Está despedido. A partir
de amanhã, pode ir para Hannover trabalhar na montagem!
— Não vou fazer nada disso. Continuarei trabalhan­
do na Thyssen. O senhor não pode se livrar de mim!
Wormland dá a entender que sabe de algumas ilega­
lidades e sujeiras cometidas por Adler... De fato, embora
Adler, vermelho de raiva, continue repetindo que o futu­
ro cunhado está demitido ou será transferido para
Ruhrkohle1, em Hannover, Wormland mostra-se bastante
tranqüilo — e continuará ocupando seu cargo de encarre­
gado na Thyssen.
1 Adler tem um contrato firmado com a Ruhrkohle Wárme de Essen e presta
serviços no quartel Freiherr-von-Fritsch em Hannover (N. do A.).

196 ‘
Quase chegando à vigésima quinta cerveja, Adler en­
tra em sua fase “ sentimental” . Olhando para mim com
olhos vítreos e um pouco à maneira de Puntilla1, diz:
— Esse aí, sim, está do meu lado. Seria capaz de me
proteger com sua própria vida. — E acrescenta com um
gesto grandioso, patético: — Um dia vou tirá-lo da misé­
ria, daquele buraco imundo da Dieselstrasse. Vou lhe dar
roupas novas, que combinem de verdade com o meu Mer­
cedes. — Comovido com a própria generosidade, põe-se
a meditar: — Se ao menos eu soubesse o quanto Ali vale
no plano intelectual... — Lança-me um olhar encoraja-
dor*. Comporto-me como se não estivesse compreenden­
do a conversa. — Você sabe o que quero dizer? Sabe o
que significa “ intelectual” ?
— Eu sabe — respondo. — É quando gente entende
tudo.
— Isso mesmo! Até que você tem algum nível. Sabe
o que quer dizer “ nível” ?
— Eu sabe. É quando gente faz parte pessoal de
bem. Mas isso depende onde gente está metido. Maior parte
de pessoa pode fazer mais quando gente deixa elas fazer.
Wormland intromete-se na conversa:
— Você não percebe que ele não está entendendo na­
da? O cara fala mal e devagar.
Adler tenta tirar proveito de nossa rivalidade:
— São só os efeitos secundários dos remédios que ele
andou testando. Ali não é tão estúpido assim e entende
bem mais do que você imagina!
— Eu não consegue dizer sempre tudo que eu pensa
— declaro, reforçando a opinião de Adler. — Mas mui­
tas vezes eu entende mais do que eu diz.
— Sim?... — Por um instante Adler lança-me um
olhar inquisitivo e penetrante, como se buscasse em mi­
nhas palavras um significado mais profundo. No entan­
to, parece acalmar-se à medida que vou falando.

1 Personagem da peça O sr. PuntiUa e seu criado Matti, do dramaturgo ale­


mão Bertolt Brecht (N. do E.).

197*
— Eu não sabe se entende tudo certinho. Eu não pode
saber tudo... Mas é só fazer pergunta para ver o que eu
sabe.
Depois de pensar por alguns momentos, Adler deci­
de submeter-me a um teste de inteligência criado por ele
mesmo. Sua primeira pergunta:
— Quem é o colosso de Rodes?
Para testar o autor do teste, deliberadamente dou uma
resposta errada, como se tivesse confundido o deus do Sol,
uma das sete maravilhas do mundo, com Atlas, o gigante
que sustenta o céu:
— Ele precisa carregar o mundo em costas. Mundo
pesa muito, e ele fica assim, meio torto, quase não conse­
gue segurar peso todo.
— Correto! Excelente! — Adler felicita-me, dando-
me a impressão de que desconhece a resposta certa. E dis­
para a segunda pergunta: — Como se chama o nosso
chanceler?
Respondo corretamente. E também digo corretamente
o nome do chanceler anterior quando ele me pergunta. E
sei ainda o nome do secretário-geral do Partido Comunista
soviético. Para seu espanto, sei o nome do presidente da
França. Adler fica admirado. Para ele, seus escravos não
passam de selvagens, de homens pré-históricos, de ralé.
Adler sente-se superior a todos não só no plano espiritual
como também no plano cultural.
Um funcionário de uma financeira, sentado um pou­
co distante de nós, junto ao balcão, começa a implicar com
o interrogatório:
— Mas, afinal, para que serve tanta pergunta idiota?
Adler reage com irritação:
— É uma conversa de negócios, e não admito suas
alusões! — E prossegue com o teste: — Quem é o gover­
nador da Renânia do Norte-Vestfália?
Respondo corretamente. Mas em seguida ele quer sa­
ber quem é o ministro do Meio Ambiente. Fico embara­
çado. Conheço Klaus Matthiesen porque participei com
ele de alguns congressos em Schleswig-Holstein e considero-
198*
o um dos políticos mais progressistas do PSD. Uma per­
gunta dessas pode ser uma armadilha, e temo que Adler
desconfie de mim se mostrar que sei o nome de uma pes­
soa tão declaradamente de esquerda.
— Esse eu não sabe — respondo por precaução.
— Não faz mal — diz Adler. — Não é mesmo preci­
so conhecê-lo. É só alguém que quer reformar o mundo
e provoca muitos transtornos. O anterior, Báumer, é um
grande amigo meu, de longa data. Tem faro certo e tino
empresarial. Esteve lá em casa no meu aniversário. Nele
a gente pode confiar!
(Bom saber quem são os “padrinhos" políticos de
Adler que estão nos bastidores. Como presidente do PSD
de Niederrhein durante muitos anos, Bàumer tomou-se co­
nhecido por suas intrigas contra os social-democratas pro­
gressistas. A ele, por exemplo, deve-se a exclusão de Karl-
Heinz Hansen1 do partido, com a conivência do ex-chan-
celer Helmut Schmidt.)
Não se deve imaginar, sob nenhuma hipótese, que
Adler seja uma flor do lodo, muito rara e colorida, den­
tro de nossa paisagem social. Ao contrário. Ele está per­
feitamente integrado, é reconhecido e considerado. Os que
o conhecem bem sabem como ele ganha seu dinheiro. No
entanto, generosamente não fazem caso dessas “repugnân-
cias" flagrantes. A partir de uma certa ordem de grande­
za, nesses círculos prevalece a seguinte máxima: “ Dinhei­
ro não foi feito para dele se falar, foi feito para se ter!"
Como o consegue, à custa de quem e a preço de que cri­
mes — isso eu tenho quase certeza de que Bãumer jamais
discutiu com seu amigo Adler.
São coisas que a gente sabe e guarda para si mesmo;
de resto, é tratar do lado agradável da vida, freqüentan­
do clubes, viajando de iate. Talvez, algum dia, umas fé­
rias no Havaí, um dos locais prediletos de Adler. Aqui na
panelinha do Ruhr, ser membro do PSD favorece os ne­

1 Representante da ala esquerda do PSD nos anos 70 (N. do T.)-

199
gócios e facilita a carreira. Estou certo de que, se vivesse
na Baviera, Adler seria membro da USC.
Uma vez, ouvi-o gabar-se de ter gasto 200 mil mar­
cos em gratificações só nos últimos cinco anos para obter
certos contratos. Na maioria das vezes, porém, subornos
diretos são desnecessários. Basta fazer parte do mesmo “es­
tábulo” para trocar sinecuras e trabalhos. Não é sem mo­
tivo que Adler é sócio do finíssimo clube de golfe de Düs-
seldorf. Quem o apresentou? Seu velho amigo Alfred Gãrt-
ner, vice-govemador da Renânia do Norte-Vestfália.
— Se você fizer por merecer — diz-me Adler —, eu
lhe darei um cargo de chefia. — E, como o fito sem en­
tender, explica: — Basta fazer tudo o que eu lhe disser.
E outras coisinhas também! — E, como ainda não enten­
do, resolve falar claro: — Você tem que ficar de olho nos
seus colegas turcos. Você se dá bem com eles. Então é só
vigiá-los e me contar o que se passa. Por exemplo... se um
deles anda fazendo intrigas contra mim... ou se alguém
resolve abrir o bico. Ponho o cara na rua imediatamente.
Antes que a laranja podre estrague as outras. Os jovens
são bonzinhos por natureza, mas não podemos tirar os
olhos de cima deles, senão provocam agitações antes mes­
mo que a gente consiga fazer alguma coisa. Só me per­
gunto se você está à altura desse serviço.
Vou mesmo é morrer de fome. Não desejo ir tão lon­
ge com este papel. Aos poucos aproxima-se o instante em
que devo pular fora. Encontro-me numa situação muito
delicada perante meus colegas e amigos. Não posso mais
titubear. Sinto-me como um mestiço da África do Sul que
sempre ficou do lado dos negros, talvez até lutando junto
com eles, e, agora, de um momento para o outro, é atraí­
do pelos brancos exatamente porque tem a confiança dos
negros. Espião e dedo-duro: esse é o papel que Adler me
reservou. Além de minha tarefa de gorila adestrado e
guarda-costas!
— Se for necessário, você tomará medidas drásticas.
Portanto, continue com os seus treinos de caratê — pros­
segue Adler, tentando me estimular. — Se tudo correr bem,

200 '
monto uma casinha para você perto da minha e mais tar­
de lhe dou um carro. Basta ficar sempre perto de mim e
estar pronto para entrar em ação a qualquer momento.
Sabe, a Dieselstrasse não é um bom lugar para você. Lá
você pode se estragar. — E, percebendo minha repulsa,
vai mais fundo: — Não há necessidade de você abando­
nar seus conterrâneos já. No momento, tenho menos rai­
va deles do que de uns alemães que vivem fazendo caga­
das. Dois deles tiveram o desplante de me chamar na Jus­
tiça para tentar me arrancar dinheiro. Um dia, mando você
cuidar deles. Entende o que quero dizer? Esses porcos de
merda tiveram coragem de me caluniar no tribunal. Você
vai lá e cuida deles, até que retirem a denúncia contra mim.
— Dá o nome e o endereço dos dois operários alemães que
há algum tempo não trabalham mais conosco.
— Mas em academia caratê eu prometeu usar espor­
te só legítima defesa — tento explicar.
— Certo, certo. E precisamente é esse o caso. Eu me
encontro em situação de absoluta legítima defesa. Eles me
ameaçam, e você me protege. — Como persisto em meu
ceticismo, acaba cedendo: — Tudò bem! Então fique fora
disso por enquanto. Afinal, vivemos num estado de direi­
to. E eu tenho ótimos advogados. Vamos aguardar o pro­
nunciamento da Justiça. Mas, se não reconhecerem os meus
direitos, não restará outra alternativa. Você irá procurá-
los e cuidará deles. Estou cheio dessas disposições legais!

Jürgen K. (26 anos) é um dos dois alemães de quem


eu devo c‘cuidar* *caso Adler não consiga fazer valer o que
chama de “ seus direitos**. Resolvo ir preveni-lo e verifico
que ele não está em melhores condições que seus colegas
imigrantes. Ficou mais de um ano desempregado. Preci­
sou deixar o serviço por causa de dores na coluna. Foi pro­
curar qualquer trabalho nas grandes indústrias da região,
inclusive na Thyssen, mas não encontrou nada. Então,
através de um anúncio no jornal, descobriu a firma Adler,
onde se apresentou.
201
“ No primeiro contato, Adler não me causou má im­
pressão. Não fez muitas perguntas e me prometeu mun­
dos e fundos. Só quis saber se eu era do sindicato. ‘Não
é? Ótimo', disse. ‘Perfeito! Vamos ver como você se sai
no trabalho. Tenho certeza de que chegaremos a um acor­
do. Afinal, quem trabalha bem merece ser bem pago, não
é mesmo?'
“Ele me perguntou se eu fazia idéia do salário. ‘O bru­
to é de 13,50 marcos por hora', foi a minha resposta. En­
tão ele disse que era muito para a firma Adler, era o salá­
rio de um operário especializado, e, como eu vinha de ou­
tro ramo, não podia me pagar tanto. ‘Está bem para você
9 marcos líquidos?' Fiz as contas rapidinho: 9 marcos lí­
quidos correspondem aproximadamente a 13,50 brutos.
Disse que concordava. ‘Muito bem, então você pode co­
meçar a partir do dia 24 de janeiro.' Fiz questão de que
tudo estivesse absolutamente dentro da lei, por causa da
previdência social e todas essas coisas. Mas ele me disse:
‘Não vale a pena registrá-lo antes do dia 1.° de fevereiro;
é um período pequeno'. Assim, trabalhei ilegalmente sete
dias em janeiro, sem ter sido registrado."
Jürgen só descobriu que continuava trabalhando sem
registro um mês depois, ao requerer o documento da pre­
vidência social a fim de marcar uma consulta para sua fi­
lha, que estava doente. Adler deveria tê-lo registrado na­
quele mesmo dia, 25 de fevereiro. Existe um artigo na le­
gislação trabalhista que autoriza os empregadores a regis­
trarem seus funcionários até um mês depois da contrata­
ção. Abutres do gênero de Adler tiram proveito disso, “ re­
gistrando retroativamente" seus empregados em caso de
necessidade — acidentes ou doenças. E, mesmo assim, ain­
da o fazem como se o trabalhador em questão tivesse aca­
bado de ser contratado.
“ Só me dei conta da águia que é esse tal Adler1 al­
gum tempo depois", continua Jürgen. “ Não sou nenhum
vagabundo. Trabalhei como um burro de carga. E, no fim
1 Em alemão Adler significa “águia” (N. do T.).
de tudo, o que foi que eu ganhei? 5,91 marcos por hora.
Nada de extras, nada de adicional noturno, nada de com­
pensação pelos feriados em que trabalhei. Um verdadeiro
pouco caso! E, para completar, as contas nem estavam
corretas...
“ ‘O salário é depositado normalmente todo dia 15’,
disse Adler. ‘Você precisa abrir uma conta no banco, por­
que não faço pagamento em dinheiro vivo.' Fui ao banco
e abri a conta. No dia 15, nada do dinheiro; no dia 16,
nada. Telefonei para Adler: ‘Onde é que está o meu pa­
gamento?' Resposta: ‘Já foi depositado. Deve cair na sua
conta hoje ou, o mais tardar, amanhã!' No dia seguinte,
voltei ao banco: nada. A coisa já estava indo longe de­
mais. Eu não tinha dinheiro nem para a gasolina. A mi­
nha noiva me levava de carro todos os dias para o traba­
lho, e nunca lhe dei um centavo para a gasolina... Em to­
do caso, já não havia mesmo jeito de ir trabalhar. A mi­
nha noiva telefonou para Adler, lá pelo dia 20, e falou:
‘Não tem nenhum dinheiro depositado na conta’. O cíni­
co debochou dela: ‘É claro que não tem nenhum dinheiro
no banco'. ‘Como assim, por quê?', ela perguntou. ‘Por­
que o dinheiro está com um colega do seu namorado!’
‘Com um colega? Como?’ ‘Dei o dinheiro, mas ele não
pode entregá-lo hoje porque está fazendo hora extra!'
“ Lá fui eu procurar Walter, que estava com o meu
envelope de pagamento. Walter, o futuro cunhado de Adler,
passeava tranqüilamente com o meu dinheiro! Depois de
vasculhar a fábrica inteira, finalmente o encontrei, de roupa
trocada, prontinho para ir embora. Não era verdade, por­
tanto, que devia fazer hora extra; eram exatamente duas
horas da tarde, horário do término do seu turno.
“ ‘Você está com meu envelope de pagamento?', per­
guntei. ‘Estou’, respondeu e me entregou um recibo. ‘As­
sine!’ Mas eu falei que não; primeiro queria conferir o di­
nheiro. Dentro do envelope havia 610 marcos, referentes
ao mês de fevereiro. Pagaram-me 79 horas somente, 9 mar­
cos brutos por hora. E eu tinha trabalhado 126 horas! Es­
tavam faltando mais de 40.
203 ‘
“Então explodi: ‘Assim não dá!’ Ele me prometeu que
no mês seguinte não só receberia a diferença como o salá­
rio seria maior.
“ No mês seguinte, a mesma coisa. Fazem com a gen­
te o que bem entendem. Fui até chantageado: ou dobrava
o turno, ou não precisava mais voltar. Pior ainda era quan­
do eu chegava na fábrica e o encarregado me dizia: ‘O chefe
não telefonou para você? Não precisava vir hoje, não tem
serviço!’ E toca voltar para casa.
“ Um dia, cheguei em casa às onze da noite, depois
de um turno dobrado, e encontrei uma passagem de trem
enviada por Adler. Devia ir imediatamente para Hambur­
go. O trem partia à uma e meia e não tinha um leito livre.
Cheguei em Hamburgo lá pelas sete da manhã. Trabalhei
oito horas seguidas na BAT (uma fábrica de cigarros) e
voltei para Duisburg. Fazia 26 horas que eu não parava
nem dormia.”
Jürgen mostra-me as fichas correspondentes às ho­
ras trabalhadas, assinadas pelos encarregados de equipe
e pelo supervisor. Em março, turnos constantes de dezes­
seis horas, dezessete e meia, catorze, vinte è meia — e “ um
atrás do outro” .
De vez em quando generosamente concedem algumas
horas de descanso entre os diferentes turnos. Por exem­
plo, no dia 12 de março: o pessoal trabalha das 6 às 22
horas, sem interrupção (16 horas); volta para casa e dor­
me uma hora e meia; começa novo turno à 0h30 e traba­
lha direto até as 21 da noite seguinte (vinte horas e meia
sem parar).
Dois dias depois, outro turno dobrado, das 16 às 14
do dia seguinte (22 horas sem parar). No dia 18 de março,
inicia 0 turno às 6 e trabalha até as 14 (oito horas nor­
mais); chega em casa às 15h30, dorme até as 20 (quatro
horas e meia), engole às pressas alguma coisa e parte para
um novo turno das 21h30 às 7 da manhã (nove horas e
meia); dorme das 8h30 às 14 (cinco horas e meia) e sai pa­
ra 22 horas de trabalho direto, das 16 às 14 do dia seguinte.
“A gente sempre disfarçava a raiva” , conta Jürgen,

204'
“ mas eu pensava que pelo menos tinha um emprego, era
melhor que nada. E quando o encarregado precisava de
alguém, perguntava se a gente queria dobrar. No come­
ço, eu disse claramente que se precisassem de alguém pa­
ra trabalhar nos sábados e domingos podiam contar co­
migo, porque eu ganhava muito pouco e precisava fazer
horas extras, senão o dinheiro não dava para as despesas.
Com os outros trabalhadores, os turcos — quase só havia
turcos na Adler —, era bem pior. O encarregado simples­
mente dizia: ‘Ei, você ai! Pode ficar parâ fazer um turno
dobrado. Se não quiser, não precisa voltar amanhã. Ama­
nhã?! Pode se mandar hoje mesmo!' ”
Jürgen viu o chefe pouquíssimas vezes. “Ele quase
não aparece na nossa frente e vive nos enganando, man­
dando dizer que não está. Eu o vi pela primeira vez no
dia em que fui contratado; depois tomei a vê-lo num can­
teiro de obras; e a última vez na audiência do tribunal.
Só quando ele queria alguma coisa é que telefonava para
a gente, intimando: ‘Você tem que vir trabalhar hoje à noi­
te! É um turno extraordinário!’ Ele nunca dizia: ‘Será que
você pode?*, mas: ‘Você tem que!...’ Quem se recusava
já sabia: ia parar no olho da ma! É um trabalho para con­
denados, para gente que esfaqueou os pais ou os filhos.
“ Um dia, estávamos agarrados no permutador tér­
mico, limpando as espirais. Um calor e um pó infernais;
e o pó é alcalino, bastante venenoso. Trabalhamos ali du­
rante dias. Os operários da Thyssen perguntavam: ‘Mas
como é? Nunca substituem vocês?*
“ Lá dentro devia fazer uns trinta, quarenta graus. E
quanto mais a gente se aproximava das espirais, mais au­
mentava o calor. Tínhamos que limpar as espirais sem ne­
nhuma ferramenta especial, só com as mãos e umas bar­
ras de ferro. Elas estavam cobertas de escória da fundi­
ção, que normalmente sai pela chaminé e se liqüefaz. Mas
a coisa ali estava dura como pedra. Chegou a grudar até
no forno do subsolo. Imagine só ficar naquele calor in­
fernal durante dezesseis horas! Os outros dois que traba­
lhavam comigo foram parar na enfermaria duas vezes se­
205'
guidas; eu fui uma única vez: meus olhos estavam com­
pletamente inflamados por causa de tanto pó. Não tínha­
mos máscaras de proteção; cobríamos a boca com um pa­
no fino para não engolir a poeira. Ninguém nem falou em
máscara de proteção para a cabeça toda... E também não
havia sistema de ventilação. O pó ficava suspenso no ar.
Claro que a gente não podia sair correndo de dois em dois
minutos. O pior é que.o serviço devia estar pronto no co­
meço da tarde, quando muito às duas horas, porque iam
encher tudo de gás. Trabalhamos como uns condenados!
No espaço de dois dias, 36 horas. E alternando: um dia
lá embaixo, naquele calor sufocante, outro lá fora, em ple­
no inverno, até com vinte graus abaixo de zero, arrancan­
do a sujeira com a picareta. Esse trabalho me arruinou
completamente as costas, sem falar nas mudanças de tem­
peratura. Houve dias em que cheguei a rastejar, tanto a
coluna me doía, mas eu precisava do dinheiro.
“ Ainda em pleno inverno, arranjaram outro servici-
nho para nós: limpar as esteiras rolantes por onde corre
o coque, empoleirados num andaime coberto de lama. Eu
mal conseguia me mexer, tamanho era o frio. Um colega
turco escorregou, caiu e quebrou o braço. Seis semanas
depois, estava de volta como se nada tivesse acontecido.
“ Foi um erro largar a mina onde eu trabalhava. Ga­
nhava mais dinheiro e com mais facilidade. Em compara­
ção com a Adler, a mina é um paraíso. Trabalhar lá em­
baixo, num cilindro de decantação, é moleza perto desse
outro serviço. É claro que de vez em quando a gente pre­
cisava dar duro se aparecia algum pepino. Mas na Thyssen
só aparece pepino, e para a gente resolver com as próprias
mãos. Como arrastar barras de ferro superpesadas, por­
que sai mais em conta que usar guindastes.”
Graças à tática de “ ir empurrando” , típica de Adler,
Jürgen acabou recebendo 861 marcos por nove semanas
de trabalho escravo. Já não conseguia sustentar a família
(dois filhos pequenos). Sua mãe precisou trabalhar como
faxineira para não passarem fome de verdade. E ele co­
meçou a fazer dívidas, uma atrás da outra.

*206 r
Já no mês de fevereiro, Jürgen começou a entender
o jogo desumano de Adler e resolveu anunciar-lhe sua in­
tenção de demitir-se. O outro, porém, acenou-lhe com no­
vas promessas: “ 'Falo sério, se as coisas continuarem as­
sim, eu me demito*. Então ele me disse: ‘Ora, venha cá!
Você sabe, vou lhe pagar 12 marcos líquidos!’ Eu falei que
isso não passava de palavras e que eu ia buscar o meu di­
nheiro na segunda-feira. Ele concordou; disse que o di­
nheiro estaria nas minhas mãos, e que pagaria a diferen­
ça. Nunca vi a cor do dinheiro.”
No dia 20 de março, Jürgen resolveu desistir do
emprego.
“ Eu já tinha pedido demissão por telefone e, no dia
seguinte, resolvi escrever uma carta, confirmando a mi­
nha decisão e avisando que se não recebesse meu ordena­
do daria parte dele na Justiça do Trabalho. Nenhuma rea­
ção. Voltei a telefonar e fui atendido pela secretária ele­
trônica. Repeti o texto da minha carta. Nenhuma reação.
Alguns dias depois, liguei de novo. Adler perguntou quem
estava falando, e respondi: 'Jürgen K .\ Então ele apenas
me disse o seguinte: 'Converse com o meu advogado!’ Fui
à Justiça do Trabalho. A primeira audiência foi terrível.
Adler não compareceu, é esperto demais para isso. Eu me
senti como se fosse o próprio acusado. A audiência du­
rou dois minutos e meio. E lá estava eu, outra vez do lado
de fora. Só me disseram isso: 'O senhor está processando
a empresa errada!* ‘Como?*, perguntei. Não existia uma
Sociedade Adler-Heisterkramp, mas só uma Sociedade
Adler em Oberhausen. ‘Um momento’, falei, ‘não é pos­
sível. Eu trouxe os envelopes de pagamento da empresa
Adler-Heisterkramp.’ Mas de que iria adiantar? Quem não
conhece muito bem as leis e não tem advogado está perdi­
do. Um tipo como Adler só precisa abrir uma boa falên­
cia para se safar de qualquer dificuldade. Resolvi contra­
tar imediatamente um advogado, o que também custa al­
gum dinheiro. Eu não conseguiria assistência jurídica por­
que estava trabalhando. Arrisquei pagar uns bons mil mar­
cos de honorários. Então finalmente fiz um acordo com
207
Adler e só recebi algumas centenas de marcos. Um em­
presário como ele, esperto e sem escrúpulos, sempre con­
segue tirar vantagens de tudo, mesmo diante dos tribunais.
“ Ele apareceu na segunda audiência e quis me arra­
sar, dizendo que eu era um vigarista mentiroso. E que as
fichas com as horas trabalhadas eram falsas. Elas tinham
sido assinadas pelo encarregado em duas vias: uma para
a Remmert e a outra para mim. Foi assim que pude pro­
var que só até o dia 20 de março (em fevereiro eu não ti­
nha sido tão esperto) eu trabalhei 129 horas, sendo 36
direto.
“ Mas ele apresentou na audiência o meu cartão de
contribuição1, onde estava anotado que eu tinha recebi­
do 434 marcos. Não havia carimbo da empres'a. Ele con­
seguiu dar sumiço no resto. Diante do tribunal, Adler se
comportou como se fosse dono da Justiça. O próprio juiz
chegou a repreendê-lo, por ofender os vogais. Adler fa­
lou que só porque era patrão já o acharam culpado desde
o começo e que ele não tinha meios de fazer valer seus di­
reitos. E me chamou de vigarista... falsificador de docu­
mentos.
“O advogado me aconselhou a fazer um acordo, pois
do contrário o processo ia se arrastar por meses, talvez
anos. E eu precisava do dinheiro. Assim, em vez dos 2 735
marcos que ele me devia, tomando como base o salário
bruto de 9,50 marcos por hora (o outro preço foi combi­
nado só de boca, sem nada escrito), acabei aceitando o pa­
gamento de 1 750 marcos.
“Depois da audiência, tive que devolver a Adler o car­
tão de contribuição. Isso já faz quase um mês e até agora
não o recebi de volta. E também não vi um centavo do
que ele me deve. Como o obrigaram a pagar os encargos
sociais, ele fica protelando. Não há nem como processá-
lo criminalmente. A Justiça do Trabalho o trata como um

1 Na República Federal da Alemanha, todo empregado possui um cartão de


contribuição no qual são anotados sua faixa de imposto de renda descontado
na fonte e o total de seu salário (N. do T.).

208>»
homem honrado, apenas um pouco confuso. E a gente é
que passa por ignorante!
“Hoje em dia, os patrões podem se permitir qualquer
coisa. Do mesmo modo que os subempreiteiros. Há mui­
ta gente desempregada, esse que é o problema. E são bem
poucos os que resolvem botar a boca no trombone e se
defender."
Jürgen não conseguiu arranjar outro emprego por­
que Adler, num procedimento bem típico, não lhe devol­
veu o cartão de contribuição.
“O mês de abril passou, maio chegou na metade e na­
da de eu receber o meu cartão de contribuição. Fui con­
versar com a firma Remmert sobre a minha contratação,
e lá me disseram que tudo bem, eu podia começar a tra­
balhar com eles, só que precisava apresentar a documen­
tação. O problema é que os documentos não estão comi­
go, estão com Adler. Consegui uma cópia do cartão de
contribuição e voltei lá na Remmert. Disseram que, como
eu já tinha trabalhado com eles, devia apresentar o car­
tão original... Sem dúvida foi só um pretexto, já que Rem­
mert e Adler são carne e unha.
“Acho que Adler se saiu dessa fácil demais. Com cer­
teza outros otários vão cair na armadilha, pois sempre vejo
no jornal: ‘Firma Adler precisa de...' Fico me perguntan­
do como consegue contratar alguém... não entendo! Ele
mesmo declarou publicamente na audiência: ‘Não contrato
ninguém com salário bruto superior a 9 marcos por hora’."
Resta um pequeno consolo para Jürgen: “Existem imi­
grantes que estão em condições piores ainda. Por exem­
plo, os paquistaneses que trabalhavam lá por um salário
bruto de 6 marcos. E nem sequer tinham visto de perma­
nência".

209'
Eis os depoimentos de alguns colegas turcos que com­
provam as práticás habituais de Adler e o perigo a que estão
sujeitos no trabalho.
Hüseyin Atsis (56 anos), que já fez os piores serviços na
Turquia, diz o seguinte: “Deve ser bem melhor trabalhar na
Sibéria do que aqui". Ele nunca vira “locais de trabalho mais
perigosos” .
“ Por exemplo, no alto-forno recém-construído obriga­
vam a gente a arrastar os tubos de lá do sétimo andar. Eu
me lembro que havia necessidade de dois homens para arras­
tar um único tubo. E tínhamos que prestar uma atenção da­
nada durante o trajeto, porque sabíamos que estávamos cor­
rendo risco de vida.
“ Também nos fizeram subir num guindaste de uns se­
tenta metros de altura para varrer todo o pó que havia lá em
cima. Depois tínhamos que arrastar para baixo os sacos cheios
de pó, que pesavam bem uns cinqüenta quilos. Era um tra­
balho perigoso e prejudicial à saúde. Fui perguntar ao encar­
regado por que é que eu devia fazer aquele serviço. A respos­
ta dele: (Você pelo menos tem seguro e seus documentos es­
tão em ordem. Diferente dos outros. Se acontecer um acidente
poderemos fazer alguma coisa por você’. Foi então que eu
soube que Adler tem poucos empregados registrados legal­
mente, com a documentação em ordem.”
Hüseyin Atsis também precisava correr atrás de seu pa­
gamento. Quando finalmente conseguia receber, depois de
muita insistência, verificava que o salário estava muito aquém
do que esperava tomando como base o valor combinado do
pagamento por hora e as constantes horas extras que fazia.
Em lugar dos 10 marcos combinados recebeu apenas 9 mar­
cos por hora, sem falar nos descontos misteriosos. Por 184
horas de trabalho recebeu somente 724,28 marcos. “Assim
que peguei o dinheiro, disse para mim mesmo: ‘Não dá para
se meter com essa gente. E, se bobear, ainda me expulsam
do país’. Resolvi pegar meus documentos e me dar por satis­
feito com o dinheiro. Mas aí Adler falou: ‘Não vou lhe en­
tregar os documentos. Primeiro você tem que assinar um pa­
pel dizendo que recebeu tudo o que lhe devíamos. Só depois
eu devolvo seus documentos’.”
Sait Tümen (25 anos) e Osman Tokar (22) passaram pe­
la mesma experiência.
Sait Tümen: “ Eu estava trabalhando com Adler fazia
três meses e nunca me pagavam a soma exata que eu deveria
receber. Eram 100 marcos a menos aqui, 200 ali... E olhe que
eu trabalhava quase todos os dias! Comecei a pedir dinheiro
emprestado para poder viver e prometia aos amigos que pa­
garia tão logo recebesse o meu salário. Adler vivia dizendo
que eu ficasse sossegado, pois ia me pagar no dia seguinte.
Como não pude pagar as dívidas, os amigos acharam que eu
estava mentindo e nunca mais falaram comigo. Por causa dis­
so perdi os amigos. Tentei arranjar emprego em outrò lugar.
Mas precisava levar os documentos, ou nada de serviço. Pro­
curei Adler e disse que eu tinha conseguido outro emprego,
mas precisava dos documentos e do dinheiro que ainda tinha
para receber. Ele falou: ‘Só lhe entrego os documentos se você
assinar um papel dizendo que não tem mais nada para rece­
ber aqui’. Daí eu pensei: ‘Se eu não levar os documentos ama­
nhã, perco o emprego. Que fazer? E o novo chefe é muito
amigo de Adler! *Então assinei o papel, que já estava até da­
tilografado. O Adler tinha um montão deles. No papel, bem
no alto, estava escrito: ‘Declaração'. Dizia que a firma Adler
— Montagem Industrial não me devia nada e que eu, como
empregado temporário, já havia recebido tudo a que tinha
direito” .
E Osman Tokar: “Toda semana Adler descontava algu­
mas horas do nosso salário. Então fomos falar com ele e ou­
vimos a seguinte resposta: ‘A diferença será paga no próxi­
mo ordenado'. Mas isso nunca acontecia. E ele vivia repetin­
do: ‘Na próxima vez, na próxima vez!’ Era assim que conse­
guia se livrar da gente. Então eu decidi tirar a coisa a limpo.
Ele me disse: ‘Se você não quiser receber 9 marcos por hora,
menos 40% de descontos, só preciso botar um anúncio no
jornal para aparecerem mil pessoas no portão. Vocês deviam
ficar felizes por ter um emprego, afinal são estrangeiros’. Foi
isso o que ele falou” .
Osman também descreve as condições de trabalho e os
efeitos nocivos sobre sua saúde:
“ Obrigaram a gente a trabalhar num lugar onde não se
enxergava quase nada por causa da poeira. E nem se podia
respirar direito, era terrível. Depois de alguns dias, comecei
a sentir umas dores medonhas, como se estivessem me furando
o coração e os pulmões. Foi então que um colega da Thyssen
me contou que o pó de ferro é muito perigoso e pode provo­

211"
car a morte. E que eu devia arranjar com urgência uma más­
cara de proteção. Fui falar com o chefe da Thyssen. Ele me
disse que não era tão grave e que eu fosse trabalhar em vez
de dizer asneiras. Viviam nos chantageando: se não acabás­
semos o serviço em vinte horas, eles nos obrigariam a conti­
nuar trabalhando lá dentro. E realmente não pudemos sair.
“ Depois do serviço fui procurar um médico, porque eu
estava com uma tosse horrível. O médico me examinou e foi
logo perguntando onde eu trabalhava. Respondi que numa em­
preiteira da Thyssen. Então ele quis saber se no local havia
gás, pó de ferro ou coisas do gênero, que são nocivas aos pul­
mões. Falei que havia pó de ferro. Daí ele me disse que eu não
era o único da Thyssen que o procurava por causa desse pro­
blema. E que se eu quisesse ficar bom de verdade tinha que
procurar outro emprego. E me receitou os remédios".

212
A radiação

Ainda me falta uma ocupação: na usina nuclear de


Würgassen, a mais antiga da Alemanha Ocidental, inau­
gurada em 1971 e constantemente necessitando de repa­
ros. Para os serviços de revisão, realizados todos os anos,
dão preferência a pessoas de confiança. Os imigrantes,
principalmente os turcos, são os mais procurados. Talvez
por serem verdadeiros nômades.
Na República Federal da Alemanha não há parece-
res científicos precisos sobre os efeitos a longo prazo das
constantes e ínfimas doses de radiação. As estatísticas não
levam em conta a maior parte dos imigrantes enviados às
centrais nucleares, onde se encarregam dos serviços de lim­
peza e reparação nas áreas particularmente “quentes", isto
é, expostas à radiação. Desconhece-se, portanto, o núme­
ro de imigrantes que, depois de alguns anos ou décadas,
contraem câncer dos testículos, da próstata ou da glându­
la tireóide. Além do mais, eles moram em outras cidades
ou retomam a seus países de origem, e ninguém lhes per­
guntará se, alguma vez, há muito tempo, foram contrata­
dos por poucos dias, semanas ou meses para fazer um tra­
balho limpo e relativamente fácil numa usina nuclear ale­
mã. Para o trabalho corriqueiro os responsáveis por essas
usinas preferem equipes pequenas, constituídas por seus
próprios operários estáveis; mas quando se trata de uma
tarefa relativamente perigosa recorrem às subempreiteiras,
que, por um curto período, fornecem-lhes um grupo de
trabalhadores constantemente renovado. Em poucos dias
ou horas, às vezes até mesmo segundos, eles recebem a dose
máxima de radiação permitida por ano: 5 000 milirem1.
Entrevistei alguns trabalhadores turcos que foram contra­
tados por 10 marcos a hora.
1 Milirem é uma unidade de medida de radiação utilizada em medicina nuclear
(N. do E.).

213'
Toda vez que um dos tubos condutores de vapor co­
meça a vazar e precisa ser vedado, o responsável pelo rea­
tor prefere chamar trabalhadores turcos. Segundo seus de­
poimentos, por um “ salário semanal de 400 marcos” , os
turcos trabalham até receber a dose anual de 5 000 mili-
rem, o que pode demorar de meio a dois minutos, con­
forme a intensidade da radiação. Se o tubo continuar mal
vedado, outros turcos são enviados para a área de radia­
ção. No jargão nuclear, essa prática recebe o nome de
“ queimar” . Em princípio, eles ficam “impedidos” de tra­
balhar pelo resto do ano. “Mas existem meios de conti­
nuar fazendo esse serviço em outros locais” , explica-me
um dos trabalhadores, que, no entanto, não quis descre­
ver tais meios. “ Se a gente não der um jeito não arranja
mais emprego em lugar nenhum.”
Para entender melhor esse trabalho perigoso e mui­
tas vezes fatal e poder dar um testemunho fiel do que acon­
tece lá dentro, decido procurar uma colocação na central
de Würgassen. O problema é que fazem uma investigação
prévia a título de segurança. Dou o nome e o endereço de
meu duplo, além de relacionar os diferentes domicílios que
ele ocupou nos últimos dez anos, para que o Serviço Es­
tadual de Defesa da Constituição possa checar todos os
dados e vasculhar “ minha” vida. Os computadores usam
suas “ memórias de elefante” : participação em passeatas?
atividades suspeitas? Entram também em contato com a
polícia federal.
Normalmente essa investigação costuma demorar seis
semanas; em casos mais complicados, pode estender-se por
até três meses. Comigo — isto é, com meu duplo —, os
investigadores parecem muito minuciosos, porque levam
dois meses sem me dar resposta positiva ou negativa. Tal­
vez por estarem em período de férias? De qualquer mo­
do, essa demora vem mesmo a calhar. Excepcionalmente
resolvo proceder de forma diferente da que previra. (Um
amigo médico, radiologista e especialista em problemas de
radiação, a quem eu havia confiado meu intuito de traba­
lhar na central nuclear como turco, preveniu-me seriamente
‘214 *
sobre o que poderia acontecer. Meu estado de saúde já es­
tava bastante deteriorado graças à bronquite crônica pro­
vocada por todo aquele pó na Thyssen e às seqüelas dos
testes farmacêuticos. E ainda por cima eu queria me ex­
por a radiações? Isso poderia causar lesões permanentes.
É bem verdade que não estou vivendo uma fase mui­
to brilhante — ao contrário, sinto-me no fim, pois cada
vez mais me identifico com meu papel e me desanimo por
ver a situação praticamente desesperadora de meus ami­
gos e colegas de trabalho. Ainda assim tenho medo de que
um câncer provocado pela radiação me corroa e eu preci­
se lutar contra a morte talvez durante anos.
“Pode ser o tiro de misericórdia!” , advertiu-me o ami­
go radiologista. Pois bem, admitindo que sou um covar­
de e um privilegiado, afasto-me dali. Existem, porém, cen­
tenas e milhares de imigrantes que, mesmo estando em con­
dições físicas piores que as minhas, aceitam esse tipo de
trabalho e colocam em risco sua saúde e, por vezes, até
a própria vida. Como se trata de um trabalho que não re­
quer grandes esforços, pessoas doentes, mais velhas ou
completamente extenuadas julgam-se aptas a realizá-lo.
Acrescente-se que a maior parte dos imigrantes ignora to­
dos os perigos decorrentes de tal serviço. Eu mesmo, quan­
do me candidatei a uma vaga na central de Würgassen,
cheguei a fazer a seguinte pergunta:
— Não há perigo nesse trabalho?
O chefe do pessoal me tranqüilizou:
— Tanto quanto em outras indústrias.
Eis alguns depoimentos que mostram como é realmen­
te o trabalho em Würgassen. Frank M., encarregado, con­
ta: “ Por um lado é um trabalho que dá dinheiro fácil e
rápido. Como encarregado recebi no último pagamento
2 SOO marcos líquidos. Por outro lado, eu não trabalha­
ria nisso mais que cinco anos. Preferiria ficar parado e re­
correr ao seguro-desemprego. Há muita radioatividade, e
as instalações são muito velhas. Além do mais, como o
reator é de água fervente, as radiações são muito mais for­
tes que as de um reator de água pressurizada. Tenho cer­
215*
teza de que tudo está contaminado, até o café que toma­
mos. É só entrar na usina, e o dosímetro já se põe a mar­
car 10 milirem, antes mesmo de a gente começar a tra­
balhar” .
Dosímetro é um aparelho de medição que todos de­
vem portar dentro das “áreas quentes” , indica a quanti­
dade de radiação existente no local ao longo do dia. Mas
os operários o manipulam com medo de não poder preen­
cher sua cota de horas. Sobre isso diz um ex-operário de
Würgassen: “É uma questão de autocontrole. A gente sim­
plesmente põe o dosímetro de lado; no armário, por exem­
plo. Ninguém percebe. Durante todo o tempo que traba­
lhei em Würgassen nunca me perguntaram pelo dosíme­
tro. Se você não está com ele, não há nada para registrar....
Através da subempreiteira Reinhold & Mahler eu soube
que mandaram para lá uma porção de trabalhadores iu­
goslavos — uns dezesseis caras, mais ou menos —, todos
em situação ilegal, sem nenhum tipo de documento. Eles
não dão muita importância às normas de segurança. Quan­
do o trabalho acabou, foram obrigados a partir: discreta­
mente voltaram para o seu país... Outro exemplo: na usi­
na nuclear de Grohnde só 20% dos soldadores são alemães.
O resto é imigrante” .
E Frank M. prossegue: “Na subempreiteira onde tra­
balho há cerca de 2 500 empregados; no mínimo, 1 500
são imigrantes. A empresa contrata os estrangeiros para
os serviços de revisão da usina nuclear; quando terminam
a tarefa, são mandados embora. A maior parte só fica al­
gumas semanas. É a turma que vai ser ‘queimada’. En­
tram, recebem a dose máxima de radiação e partem. Na
minha empresa, os mestres-de-obras e os encarregados ge­
ralmente ficam mais tempo. Todos os outros estão só de
passagem. Fazem um contrato de trabalho por prazo de­
terminado, o tempo de um serviço de revisão. Em duas
semanas já recebem um quarto da dose de radiação admi­
tida num ano. Daí o serviço de segurança da usina diz que
não podem mais continuar ali, e eles são demitidos.
“Também há muitos turcos que foram mandados pra

216 *
cá. Vieram de avião para uma breve estada. Ficam soldan­
do até receber a dose completa. Se a central precisa de sol­
dadores para uma área onde a radiação é de 1 000 mili-
rem por hora, digamos, eles trabalham duas horas; depois
são substituídos e mandados pra casa. Os outros traba­
lham mais duas horas, recebem os 2 000 milirem nas cos­
tas e são mandados para casa. E assim vai, até que o ser­
viço esteja pronto.
“A coisa costuma acontecer da seguinte maneira:
quando os operários estrangeiros chegam, não têm a me­
nor idéia do que seja uma usina nuclear e não entendem
por que devem parar de trabalhar depois de dois dias ou,
às vezes, duas horas apenas. Só lhes dizem: 'Bom, a par­
tir de agora vocês estão dispensados!’ Então, eles têm que
sair e voltar pra casa".
Depois Frank M. fala sobre o trabalho de limpeza das
bacias do reator: “ Quando a usina desliga tudo, cerca de
30% dos bastões combustíveis são substituídos e deposi­
tados na bacia de sedimentação, onde ficam por mais de
um ano, até a radiação não produzir mais efeito. Ao subs­
tituir os bastões, a água que há dentro deles escorre. Isso
obriga os operários a manterem sempre limpo o chão ao
redor da bacia, para que a contaminação não se espalhe
por toda a usina1. Assim, um operário trabalha direta­
mente dentro da bacia e um outro o agarra, isto é, fica
segurando-o com uma corda. Porque se o primeiro cair,
deverá ser retirado em dez segundos, já que é impossível
nadar naquela água” .
Dragan V., operário iugoslavo, declara: “ Quando me
contrataram ninguém falou nada sobre os riscos da radia­
ção. Só me disseram que a minha dose trimestral era de
2 500 milirem e a anual de 5 000. Foi tudo. Agora, o quan­
to era perigoso e mesmo se era perigoso, não me disseram
nada” .
No dia 20 de agosto de 1982, catorze operários de uma
empreiteira foram expostos a fortes radiações enquanto
i O que se chama “ radiação indireta” (N. do A.)-

217^
substituíam um chamado “ filtro de areia’* na instalação
de escape de gás. Fortemente contaminados, precisaram
ser levados às pressas para uma clínica de Düsseldorf es­
pecializada no tratamento de contaminação nuclear. A di­
reção da usina determinou silêncio absoluto sobre o aci­
dente, mas um operário que o presenciou faz o seguinte
depoimento: “ Sempre fico com medo quando tenho que
trabalhar lá dentro. Principalmente depois do acidente. Em
princípio, eles decidiram fechar temporariamente a usina.
Mas o pessoal continuou trabalhando lá dentro ainda meia
hora. E então, de repente, ocorreu o fechamento comple­
to. Nossos polidores estavam a sete metros de profundi­
dade. Os outros estavam sentados no vão da escada. A es­
cada dava para uma abertura por onde desciam as ferra­
mentas. O pessoal tinha colocado ali suas caixas de ferra­
menta, e também havia alguns cabos que corriam para fo­
ra. Assim, a porta estava obrigatoriamente aberta. Nin­
guém percebeu nada até que chegou a ordem de fechamen­
to completo. Na saída, todos quiseram passar pelas má­
quinas, por aqueles aparelhos de controle1. E então des­
cobriram que estavam completamente contaminados.
“Então aconteceu o seguinte: todos tiveram que tomar
um banho atrás do outro. Mas de nada adiantou. Já está-
vamos lá fora, e eles continuavam debaixo do chuveiro. Das
onze e meia às três da tarde ficaram tomando banho e se
esfregando como loucos. Das onze e meia às três da tarde.
Nós havíamos entrado um pouco antes das três. Pudemos
voltar ao trabalho. Só a sala das máquinas e o portão de
entrada ficaram interditados. No dia seguinte, sábado, fo­
mos trabalhar para compensar as horas paradas. E os ca­
ras estavam lá, tomando banho até meio-dia. Das sete da
manhã até meio-dia! Mas não adiantava, a coisa não di­
minuía! Então, na segunda-feira, foram mandados para a
clínica especializada em Düsseldorf. Mas lá só mediram a
radioatividade. E quase todos ficaram proibidos de entrar
na usina pelo resto do ano. Não puderam mais voltar” .
1 Aparelhos que medem o grau de radiação (N. do A.).

218
Horst T., operário alemão, também sofreu um aci­
dente: “ Um dia, na câmara de condensação, meu maca­
cão de proteção se rasgou. Continuei trabalhando e, na
saída, ao passar pelo monitor, o quadro inteiro se ilumi­
nou. ‘Não é possível*, pensei. Fui tomar um banho. E du­
rante quase duas horas fiquei nisso: banho, monitor, ba­
nho, monitor! No fim, já nem secava mais o cabelo. A
coisa penetra nos poros, e, uma vez lá dentro, você pode
se esfregar durante horas. Disseram que eu devia ter rece-
bido uns 2 800 milirem. Mas como é que eu vou saber se
não foi muito mais? Depois me mandaram embora, as­
sim, sem mais nem menos! Alegaram contenção de des­
pesas! E disseram que eu não estava preparado para aquele
tipo de atividade! Então exigi minha caderneta de radia­
ção, onde são registradas todas as exposições a que você
foi submetido. Depois de muitas idas e vindas, por fim me
entregaram a caderneta — totalmente em branco! O que
significa que eu deveria mandá-la para a subempreiteira
de Kassel. Foi o que fiz. E catorze dias mais tarde, me te­
lefonaram perguntando se eu não queria voltar ao traba­
lho. Mandaram-me uma nova caderneta de radiação. Ao
assiná-la, percebi que também estava em branco. Como
se eu nunca tivesse trabalhado numa usina nuclear...”
É muito raro haver um controle oficial das caderne­
tas de radiação, como a lei prevê. Elas costumam ficar nos
escritórios das subempreiteiras. Quando as autoridades
aparecem para o controle, muitas já foram perdidas ou
adulteradas. Os próprios chefes dessas empresas assumem
a responsabilidade diante de seus empregados.
Sempre que tem oportunidade, a indústria atômica
minimiza os perigos decorrentes das grandes ou pequenas
exposições à radiação. Por exemplo, quem é contratado
para trabalhar na “área quente” da central nuclear de Wür-
gassen tem suas dúvidas “ esclarecidas” através de um fil­
me colorido, gravado em videocassete. “A radiação é com­
parável à luz do sol” , anuncia uma voz enérgica, típica
dos filmes de publicidade. E na tela cintilante aparece a
imagem de uma jovem bronzeada, deitada sob um guarda-

219
sol em alguma praia do Mediterrâneo. Os trabalhadores
contam como os encarregados costumam tranqüilizá-los:
“É a mesma intensidade de radiação que duas semanas
de férias no mar do Norte” . O slogan da Würgassen, re­
petido algumas vezes ao longo desse filme “ esclarecedor” ,
diz o seguinte: “Evitar as exposições radioativas desneces­
sárias e reduzir, tanto quanto possível, as exposições ine-
vitáveisl”
De fato, a indústria nuclear costuma prever certo nú­
mero de óbitos. No papel! Pois ninguém tem controle do
que realmente acontece com o pessoal.
A prof.a dra. Inge Schmitz-Feuerhake, pesquisado­
ra da Universidade de Bremen e especialista nessas ques­
tões, diz o seguinte: “Hoje em dia sabemos que qualquer
dose de radiação, grande ou pequena, pode causar danos
graves à saúde. Pode propiciar a formação de um câncer
ou provocar lesões genéticas nos descendentes. E o mais
terrível é que na maior parte das vezes as seqüelas dessas
radiações só aparecem muito tempo depois, às vezes até
depois de vinte ou trinta anos. A tecnologia nuclear na Re­
pública Federal da Alemanha é muito recente para que pos­
samos realmente estudar seus efeitos” .
Mas quem irá provar, depois de tanto tempo, que o
fato de a vítima ter trabalhado numa das “ áreas quentes”
de uma usina nuclear pudesse provocar tal câncer? Antes
de começar a prestar serviços numa usina nuclear, os ope­
rários são submetidos a exames médicos — mas depois,
não! Morte a prazo? Sem dúvida. Morte secreta, sem tes­
temunhas, sem provas e em massa. Dezenas de milhares
de soldadores e faxineiros anualmente vão trabalhar nas
centrais nucleares alemãs (só para as áreas perigosas de
Würgassen são enviadas cinco mil pessoas por ano). Apro­
ximadamente a metade são imigrantes que com freqüên­
cia retomam a seus países de origem antes de começar a
sentir as seqüelas provocadas por essa atividade.
Na República Federal da Alemanha, o órgão responsá­
vel pela segurança das centrais nucleares (inclusive dos locais
de trabalho) é o Serviço de Fiscalização Técnica (SFT). O Ins­
tituto de Pesquisa sobre Acidentes, do SFT da Renânia, com
sede em Colônia, enviou ao Ministério do Interior um rela­
tório sobre os “ fatores humanos na central nuclear” que nun­
ca foi publicado. Nesse relatório, os especialistas do SFT exa­
minam os “ problemas" decorrentes do emprego nas usinas
nucleares do chamado “ pessoal estrangeiro" — problemas
que causam transtornos às indústrias, não ao pessoal em
questão.
“ Os problemas surgem, em primeiro lugar, ao nível da
colaboração com o pessoal auxiliar não-qualificado, forne­
cido pelas empresas de prestação de serviços e contratado para
trabalhar nas áreas de forte radiação —, poupando, assim,
os próprios operários da usina nuclear. Segundo declarações
dos responsáveis pelas centrais nucleares, essa gente freqüen­
temente tem pouca motivação e trabalha de má vontade..."
Claro: quem trabalharia de bom grado, num local como esse?
Outra passagem do relatório diz o seguinte: “ É impen­
sável deixarmos de contratar os serviços desse pessoal estran­
geiro, se quisermos levar em consideração o cronograma da
empresa". E, freqüentemente, as centrais nucleares “têm falta
de pessoal, devido à carga radioativa e às restrições quanto
à utilização de operários próprios e estáveis". E mais: “As
doses de radiação admitidas são absorvidas em pouco tempo
(alguns minutos)". Mais adiante pode-se ler: “ Uma das ta­
refas desses operários estáveis é treinar os trabalhadores es­
trangeiros — especialmente nos serviços que implicam forte
exposição à radiação, onde precisão e rapidez são fundamen­
tais (...) Muitas vezes não é possível um treinamento correto
(em virtude das altas doses de radiação); outras vezes, o gas­
to com esse pessoal estrangeiro é desproposital e sua utiliza­
ção não corresponde aos objetivos determinados".
O instituto declara secamente: “A maioria dos estran­
geiros empregados ignora os riscos a que estão sujeitos. O
precário conhecimento das instalações e do sistema de fun­
cionamento é computado como um fator negativo suplemen­
tar (...) principalmente porque é impossível exercer uma vi­
gilância eficaz nos locais onde esse pessoal é empregado pa­
ra poupar (reduzindo as doses de radiação) os operários es-

'221*
táveis (...) Quando são encarregados de algumas tarefas em
áreas de radiação intensa, os estrangeiros experimentam uma
sensação de impotência em face de um perigo que desconhe­
cem. Isso pode provocar comportamentos de extrema impru­
dência” .

Somente os iniciados e os cientistas têm condições de


decifrar artigos como o que o jornal Frankfurter Allge-
meinen publicou no dia 29 de julho de 1982. Com o títu­
lo de “ Mil homens para substituir os encanamentos” , o
artigo descreve os trabalhos de reparação efetuados em
Würgassen e, na linguagem secreta da indústria atômica,
aponta que se deve contar com densidades de “ 1 000
homens-rem” ... “ 1 000 homens-rem” ? Parece código se­
creto de filmes de espionagem ou freqüência de emissão
de receptor de ondas curtas. Mas com certeza os trustes
sabem perfeitamente o que isso quer dizer. Os especialis­
tas são capazes de calcular rapidamente os casos de cân­
cer que esse misterioso padrão de medida pode represen­
tar. Carl Z. Morgan, ex-diretor do Serviço de Proteção
contra Radiações do Centro Americano de Pesquisa Nu­
clear de Oak Ridge (os cientistas costumam chamá-lo de
“ o pai da pesquisa sobre proteção contra radiações”) afir­
ma que “ 1 000 homens-rem” correspondem a aproxima­
damente seis ou oito vitimas de câncer, em termos pura­
mente estatísticos. A morte insidiosa por radiação pode
arrebatar um empregado tanto da Adler quanto de qual­
quer uma daquelas grandes máfias de negociantes que for­
necem trabalhadores para as usinas nucleares “digerirem” :
Celten em Holzminden; Kapfen em Landshut; Jaffke em
Bremen; etc. etc...
Será possível que os responsáveis por essas empresas
ignorem o quanto é perigoso esse tipo de trabalho? Um
teste intensivo comprova que Adler não quer saber de na­
da, nem mesmo quando tudo lhe é dito claramente.

222 *
Taxas de câncer mais elevadas nas centrais nucleares
Na Grã-Bretanha os operários das centrais nucleares e
de outras instalações atômicas correm maiores riscos de con­
trair câncer da próstata que a média dos cidadãos. Um estu­
do publicado pelo Conselho Britânico para Pesquisa Médica
revela que, num grupo de mil operários expostos a índices
de radiação relativamente elevados, o número de vítimas é
oito vezes maior.
Os pesquisadores, que publicaram suas conclusões no
British Medicai Journal, uma revista especializada, ocuparam-
se de 3 373 casos fatais dentre os 40 mil homens e mulheres
que haviam trabalhado no Centro de Energia Atômica da Grã-
Bretanha, entre 1946 e 1979.
Segundo esse estudo, o número de casos fatais decorren­
tes de leucemia, câncer da tireóide e câncer dos testículos tam­
bém está acima da média. Os médicos descobriram ainda que
entre as mulheres expostas por muito tempo a radiação in­
tensa o número de vítimas de câncer dos ovários e da bexiga
é maior que a média.
(Informação tirada da Frankfurter Rundschau de 21 de
agosto dê 1985.)

223*
A missão
(ou: Pegar e largar)

— Uma encenação da realidade —

Com lucro adequado o capital cria coragem. Com 10%


certos, assegura seu emprego em qualquerparte; com 20%,
infla-se de entusiasmo; com 50%, é positivamente auda­
cioso; com 100%, calca a seus pés todas as leis humanas;
com 300%, não se detém diante de nenhum crime, mes­
mo sob o risco da forca. Se a turbulência e a cizânia pro­
duzem lucros, encorajará a ambas. Provas: contrabando
e tráfico de escravos.
(F. J. Dunning, Trade Unions and Strikes, Londres, 1860,
citado por Karl Marx em O Capital, livro 1, vol.2, nota
de rodapé 250.)

Um golpe de sorte: Adler também fornece mão-de-


obra para a usina nuclear de Würgassen. Não muita gen­
te, como é de seu feitio. É melhor ser discreto e não cha­
mar atenção sobre essas coisas. Uns trinta trabalhadores
aqui, uns dez ali, um outro acolá... Se ocorre algum im­
previsto em Hamburgo, não há problema. Adler serve to­
da a região do Ruhr: Thyssen, Steag, MAN, e por aí afo­
ra. Até mesmo a Ruhrkohle, no sul da Alemanha. Enfim,
citando seu ditado predileto: “ De grão em grão, a gali­
nha enche o papo” . Ou como ele costumava dizer: “ As
leis foram feitas para serem descumpridas” . O tráfico de
mão-de-obra entre Adler e a central nuclear de Würgas­
sen é tão inquietante quanto poderia ser uma relação co­
mercial entre o monstro “ Mr. Hyde” e “ dr. Mabuse” .
A energia criminosa de um Adler a serviço dos “ contra-

224*’
tempos técnicos” de uma indústria nuclear. A mercado­
ria: turcos que serão “ queimados” .
Monto uma encenação para ver até que ponto ele che­
garia num caso muito grave. Amigos e colegas estão pron­
tos para entrar em ação: Heinrich Pachl, ator profissio­
nal de Colônia, assumirá o papel de Schmidt, encarrega­
do de segurança da usina nuclear; meu amigo Uwe Her-
zog será Hansen, perito-assistente.

A missão secreta

Um incidente técnico impede que a usina atômica de


Würgassen seja acoplada à rede elétrica. Prejuízo de mi­
lhões. Precisam de trabalhadores turcos para os serviços
de reparo numa área totalmente contaminada pela radia­
ção. Provavelmente receberão doses de radiação bastante
elevadas, que provocarão lesões graves à saúde, inclusive
câncer. Requisito básico: os turcos devem ignorar por com­
pleto os perigos a que estarão expostos e, uma vez execu­
tadas as tarefas, retomarão a seu país o mais depressa pos­
sível. Schmidt explica que a Adler é conhecida como uma
firma bastante segura para essa missão. O primeiro con­
tato é feito pelo telefone instalado no automóvel. Nesse,
exato momento estou levando Adler para Oberhausen, de­
pois de passar pela Ruhrkohle-Wãrmetechnik em Essen.
— Bom dia! Meu nome é Schmidt e sou encarrega­
do de segurança da central nuclear de Würgassen. Esta­
mos com um probleminha na usina, portanto vou direto
ao assunto. Houve uma pane, um incidente sério, e não
temos condições de corrigir o defeito sozinhos. Então pen­
sei que o senhor seria a pessoa ideal para pôr tudo em or­
dem. Só o senhor poderia fornecer mão-de-obra para um
serviço como esse, de curta duração, mas muito delicado.
Como temos urgência, talvez possamos nos encontrar o
mais rápido possível. Estou justamente pelas imediações,
na região do Ruhr. Poderíamos nos encontrar à uma e meia
no restaurante da rodovia Lichtendorf, entre o cruzamento
de Westhofen e o de Unna. O que acha?
225*
Adler retira do porta-luvas o mapa da região do Ruhr
e estuda-o atentamente e em seguida me diz:
— Temos que nos apressar. Leve-me depressa para
a Remmert, em Oberhausen. Preciso estar à uma e meia
no restaurante da rodovia Lichtendorf. Um cliente me es­
pera com uma nova tarefa. — Na volta da Remmert, ele
tem muita pressa. Encoraja-me a ignorar os limites de ve­
locidade: — Acelere, vamos! Não posso chegar atrasado.
— E perde o controle ao perceber que a mulher a nossa
frente insiste em manter seu carro na faixa da esquerda:
— Que filha da puta! Fique na cola até ela mudar de fai­
xa. Desse jeito vamos nos atrasar. — Tamanho é seu me­
do de chegar atrasado que ele se põe a dizer “ nós” , con­
trariamente a seu hábito. Chegando ao restaurante, cinco
minutos depois da hora marcada, Adler agarra a maleta
de documentos e, com passos rápidos, dirige-se para sua
nova missão, não sem antes me incumbir de outra tarefa:
— Apanhe no porta-luvas a escova e o pano de pó e limpe
tudo por dentro. Inclusive o cinzeiro. Não quero ver um
cisco de pó, quando voltar!
— Certo! — digo e descubro que essa resposta curta
é a que mais lhe agrada.
Satisfeito, constato que o automóvel de meus amigos já
está estacionado ali perto. Enquanto começo a lustrar o carro,
Adler entra no restaurante ao encontro de sua nova missão.
À uma e meia da quarta-feira, 7 de agosto, os dois
encarregados especiais da usina atômica sentam-se diante
de Adler para uma primeira conversa.
SCHMIDT: Estão nos pressionando, pois trata-se de
uma questão de tempo. O trabalho deve estar pronto na
sexta-feira impreterivelmente.
ADLER: Bem, os senhores sabem, eu tenho uma em­
presa de médio porte. Faço de tudo. Costumo prestar ser­
viço para as grandes indústrias, como a Ruhrkohle, a Steag
e outras. Inclusive já trabalhamos várias vezes para a cen­
tral de Würgassen.
SCHMIDT: Precisamos de oito homens de absoluta
confiança que nunca tenham trabalhado nessa área.

226'
ADLER: Certo!
SCHMIDT: Eles devem ser enviados para o local. Es­
se é o primeiro ponto. É possível que tudo possa ser repa­
rado em pouco tempo. Ou não.
Essas frases preliminares, ligeiramente alusivas à “mis­
são quente” , bastam para que Adler se sinta à vontade.
Apressa-se em afirmar que “ amanhã mesmo” pode man­
dar para a usina “ oito ou dez homens de total confian­
ça” e aproveita para formular uma questão que trai todo
o profissionalismo do negócio: — E as cadernetas de ra­
diação? Podemos fazer alguma coisa quanto a isso?
Schmidt já esperava por algo semelhante e faz sua pri­
meira exigência ilegal:
— É claro. Nada de cadernetas de radiação! Não há
tempo para isso. Todo esse transtorno deve estar resolvi­
do até sexta-feira no final da tarde.
Adler não vacila:
— Como quiser... Pois bem, amanhã mesmo lá es­
tarão oito trabalhadores sem caderneta. Eu faço minha par­
te, e o senhor faz a sua. E tudo na surdina, supersecreto.
Schmidt continua então com suas exigências. Deixa
claro que só interessam pessoas que “não sejam do local” ,
portanto “ mão-de-obra estrangeira” , porque podem “ ser
imediatamente despachadas para seus países” . Em segui­
da explica que o principal motivo para o rápido desapare­
cimento dos trabalhadores é a possibilidade de acontecer
alguma coisa, porém logo o tranqüiliza:
— Se alguém acabar canceroso, ninguém poderá di­
zer que foi por esse ou aquele motivo... Além do mais um
câncer pode ficar latente bem por uns vinte anos.
ADLER (aliviado): Mas claro!
SCHMIDT (num tom paternal): Ninguém jamais po­
derá provar nada.
HANSEN (mostrando alguns croquis que indicam, sem
a menor sombra de dúvida, tratar-se de uma missão suici­
da): Veja! Estes são os encanamentos. Têm 67 centíme­
tros de diâmetro. O pessoal deve entrar aqui...
Adler : Mas onde fica o... núcleo?

227 ‘
HANSEN: Aqui fica o depósito de pressão; os canos que
conduzem o vapor radioativo para a turbina fazem a liga­
ção entre o depósito de pressão e a sala de máquinas. E é
bem no meio deste cano que o nosso “ rato” está entalado.
ADLER: Como?...
HANSEN: O “ rato” é um pequeno aparelho a laser
que circula no interior dos canos detectando eventuais ava­
rias. O problema é que o “ rato” agora está entalado não
sabemos onde. Por isso o pessoal tem que entrar lá. O tra­
balho não exige esforço físico, mas os homens devem ter
boa saúde...
ADLER: Ah, eles têm! Claro que têm!
HANSEN:... para entrar lá. O outro problema é que,
por motivos técnicos, desconhecemos o índice de radioa­
tividade na área. Pode ser infernalmente elevado.
ADLER: Um momento! Teremos que levar aparelhos
de detecção ou coisa do gênero?
HANSEN: Não, nós fornecemos os dosímetros. Isso
não é problema. E também damos roupas de proteção. En­
fim, tudo. Só não sabemos qual é o índice de radiação no
local. Só vamos saber quando eles saírem de lá.
A dler (falando de seus empregados como um pro-
xeneta): Bem, vejamos! Tenho gente trabalhando na Thys­
sen. Posso selecionar oito homens, os melhores. Damos
o transporte, e amanhã cedo eles estarão lá. É claro que
são... estrangeiros. Pode haver um alemão no meio mas,
em princípio, são todos estrangeiros. Não entendem nada
dessas coisas. Além do mais, mando todo mundo ficar de
bico fechado, e na semana seguinte já voltam para a pra­
teleira. A propósito... como homem de négocios, estou in­
teressado em conseguir novos contratos para os trabalha­
dores. Seria ótimo para mim. Serviços de limpeza e coisas
do gênero, por um período superior...
SCHMIDT (interrompendo-o): Proponho fechar este
negócio primeiro. Se tudo correr bem, tanto para o senhor
quanto para nós, então tomaremos a entrar em contato
para outras tarefas. Está bem assim? Ah, outra coisa...
se ocorrer algum... digamos... algum problema...

228 ' \
ADLER: Sim?...
SCHMIDT:... o senhor eventualmente teria outras pes­
soas disponíveis...
A dler : Claro, claro! Tenho um fichário completo.
Posso trocar os empregados quantas vezes forem neces­
sárias.
SCHMIDT: Eu me refiro a pessoas que, por um moti­
vo ou outro, precisem ser despachadas para seus países em
pouco tempo.
H a n s e n : Devemos estar preparados para qualquer
eventualidade. O risco é grande. Talvez pudéssemos esti­
mular o pessoal a voltar para a Turquia oferecendo uma
gratificação, por exemplo.
A dler : Talvez... Se for uma quantia razoável.
SCHMIDT (mostrando-se bastante generoso): O que
acha de uns 120 mil, 150 mil marcos?...
A d le r: Está bem. Os senhores já expuseram o pro­
blema. Vou lhes dizer uma coisa. Esse é o meu serviço.
Como empresário, faço de tudo. Quero ganhar dinheiro,
e o pessoal deve ganhar seu dinheirinho suado. Agora que
estou a par de tudo, posso montar a equipe de que os se­
nhores precisam. Muito bem... Vejamos... quais as pes­
soas disponíveis? As que estão na lista negra do consula­
do? Conheço algumas. As que têm problemas com a polí­
cia de estrangeiros? Também conheço algumas. É esse o
tipo de gente que vamos usar, não? (Já entendeu clara­
mente. Mais uma vez confirma os nomes dos dois “en­
carregados de segurança”.) Sr. Schmidt e sr.?...
HANSEN: Hansen!
A d le r (parecendo meditar por alguns instantes):
Mas claro! Já ouvi seu nome... Hansen... de Würgassen,
claro... (O negócio rendoso reforça sua confiança. Nova­
mente garante aos “sócios” que tudo correrá bem e por
fim chega ao ponto essencial: o dinheiro.) Os meus em­
pregados já estão acostumados comigo. Quando os man­
do para um cliente, é para trabalhar! De olhos e bico fe­
chados. Trabalhar, apenas isso! Quem se atreve a olhar
para os lados e abrir a boca... rua! É assim em todo-togat
• 229'
onde trabalhamos. Na Thyssen, por exemplo, já fizemos
um servicinho, e ninguém abriu o bico... Fica tudo morto
e sepultado... Mas vejamos... começamos a trabalhar ama­
nhã, dia 8 de agosto de 1985. Quanto os senhores preten­
dem investir?
SCHMIDT: Calculamos algo em torno de 120 mil, 150
mil marcos. Mas os riscos correm por sua conta. Portan­
to, se acontecer qualquer coisa, mesmo depois de tudo ter­
minado, o senhor é quem vai bancar. E os empregados já
deverão estar longe.
Adler : Só mais uma pergunta, para não haver dú­
vidas... O meu pessoal estará bem quando sair de lá, não?
SCHMIDT: Pensei que já tivéssemos nos entendido.
Estamos pagando por isso também. Os operários vão re­
ceber uma dose de radiação e talvez posteriormente ne­
cessitem de tratamento médico. E é aí que está o proble­
ma. Não podemos permitir que comecem a perguntar pa­
ra eles quanto tempo trabalharam lá e coisas desse tipo.
Nem podemos deixar que eles mesmos dêem com a língua
nos dentes. Precisamos evitar isso por todos os meios.
H a n s e n : Os operários deverão partir imediatamen­
te! Imediatamente!
ADLER: Certo! Mas... vamos falar com franqueza.
O meu trabalho é montar uma equipe e enviá-la para os
senhores, que, por sua vez, vão mandá-la para as zonas
de perigo. É isso, não? Então não há problema.
Claro que não há problema. Enviar os empregados
para as zonas de perigo nunca foi verdadeiramente um
“ problema” para Adler. Agora só falta fazer os últimos
acertos. A questão do transporte é resolvida: Schmidt man­
dará um microônibus da central nuclear apanhar o pes­
soal em Duisburg na manhã seguinte. Adler ainda escla­
rece que no momento tem uma equipe trabalhando em
Würgassen e alojada no hotel Na Curva. E está disposto
a ir encontrar esses homens no dia seguinte para resolver
de vez o problema do pagamento.
Os três saem juntos do restaurante. Ao perceber o ar
satisfeito de Adler, deduzo que teve êxito na transação de

230Í
sua mercadoria. Abro-lhe a porta do automóvel, como exi­
ge de mim. Sem dizer uma palavra, ele aciona o mecanis­
mo automático do assento estofado e macio até ajustá-lo
à posição mais confortável e relaxante.
— Vamos voltar para Oberhausen — ordena e no­
vamente fica em silêncio, meditando.
Começo a pensar que estou sendo injusto. Ele não é
tão inescrupuloso. Nenhum homem, sem exceção, pode
ser tão insensível. Adler não vai pôr em perigo a vida de
seres humanos... Claro que seu pessoal que trabalha na
Thyssen também “se queima” de certo modo — mais lento
e indireto — e também pode ter câncer, ingerindo todo
aquele pó espesso de metal pesado que é uma espécie de
bomba de efeito retardado. Porém, a situação na Thyssen
é bem mais clara: todos podem falar do pó, embora pou­
cos saibam exatamente o que isso acarreta para a saúde.
Em compensação, os que vão trabalhar na usina atômica
nem desconfiam de que serão vítimas de radiações muito
perigosas, por vezes letais. Quem sabe se neste exato mo­
mento Adler não está lutando consigo mesmo? Quem sa­
be se não irá recusar a proposta?
Logo percebo que seus pensamentos se inclinam pa­
ra outra direção. Ele rabisca alguns números em seu ca­
derno de anotações e põe-se a fazer contas. De repente,
rompendo o silêncio, pergunta:
— Você consegue me arranjar até amanhã, sem fal­
ta, sete ou oito conterrâneos seus que queiram ganhar al­
gum dinheiro? É um bom trabalho, mas eles têm que es­
tar em perfeitas condições. — E, enquanto finjo pensar,
declara: — Se você achar que tem pouco tempo para isso,
vou falar com o K. Ele sempre tem gente disponível. —
Refere-se a um trabalhador turco que foi elevado ao car­
go de “pau para toda obra” . Quando precisa de empre­
gados, K. sempre arranja.
— Eu pode conseguir pessoal — digo. — Mas que
eles precisa saber?
— Nada de especial. Basta que sejam pobres. Você
pode inclusive dizer que eu também já fui pobre.
231'
— Senhor, pobre? — pergunto, espantado.
— Quando?
— Depois da guerra, é claro. Todo mundo era po­
bre naquela época. Bem, mas o que eu preciso é de pes­
soas que tenham medü de ser expulsas do país. — E, per­
cebendo minha perplexidade, rapidamente apresenta um
motivo: — É que eu quero ajudá-los, porque estão muito
mal aqui, entende? Você sabe, sempre tive idéias sociais
avançadas. Afinal, sou social-democrata. E isso vem de
família.
— Que é social-democrata?
— E um partido que luta pelos operários. Sou mem­
bro dele.
— E que tipo trabalho eles precisa fazer? Quanto eles
vai ganhar?
— Um bom dinheiro... 500 marcos em dois dias.
Quanto ao trabalho... bem... é fácil, coisa de limpeza. Eles
nem vão sujar as mãos.
— E onde fica?
Ele me enrola e mente de novo, encurtando em mais
ou menos dois terços a distância real:
— A uns cem quilômetros. E embora não tenha a me­
nor importância eles viverem aqui ilegalmente — prosse­
gue —, tão logo terminem o serviço, precisarão voltar pa­
ra a Turquia. Se me arranjar esse tipo de gente, você tam­
bém ganha 500 marcos.
— E pode ser gente de Exército de Salvação?
— Pode, só que nada disso é oficial, entende? — Pro­
cura defender-se. — Você precisa saber. Nada é oficial.
Tudo black, até o dinheiro.
— “ Bleque?” O que é isso?
— Negro, sem impostos, por baixo do pano. Eles re­
cebem em dinheiro vivo, ali, na mão. Em troca, não preci­
sam mostrar documento nem nada. Inclusive é melhor para
eles. Ganham dinheiro para voltar para a Turquia e reco­
meçar a vida por lá. Ah, sim... diga para trazerem roupas
de dormir... pijama, coisas do gênero. O resto a gente for­
nece. Mas onde é que você vai encontrar esses caras?

232k
— Eles vive tudo escondido em porão.
— Ótimo! Se moram em porões é porque não têm
muitos contatos. E quantos são?
— Uns cinco.
— Hum... Procure direitinho. Quem sabe você con­
segue reunir os oito. E pode me telefonar a qualquer ho­
ra. Inclusive lá para o clube de tênis. Mas preste muita aten­
ção numa coisa... não leve esse pessoal ao meu escritório!
É melhor levá-los para a sua casa, na Dieselstrasse. Eu vou
me encontrar com vocês, pode deixar. Outra coisa muito
importante também... eles precisam sumir depois que ter­
minarem o trabalho. Quero que isso fique bem claro! Vão
ter que desaparecer! Afinal, mais dia menos dia, deverão
mesmo deixar o país, não é verdade? A polícia de estran­
geiros não anda na cola deles?
— Anda.
— Pois então... Está claro? Eles precisam se man­
dar. Ai de quem eu encontrar depois vagabundeando por
aqui... É esta a condição para o emprego!
— Mas qual é trabalho? — insisto em saber.
— Deixa para lá. Você não entenderia mesmo. Eu ex­
plico direitinho para eles. Não haverá problema. O impor­
tante é ajudar essa gente que vive em dificuldades. — Adler
fala como um pastor, com qualquer coisa de melífluo e
solene na voz. Isso, no entanto, dura pouco e ele volta a
falar como o patrão: — Então? Posso contar com você?
— Pode! — respondo.
Fico de telefonar à noite para informá-lo sobre as ne­
gociações. Às nove horas consigo localizá-lo no restauran­
te do clube. Nesse ínterim, Schmidt já lhe comunicara que
seis homens eram suficientes. (Em tão pouco tempo eu não
conseguiria reunir um número maior.) Aparentemente, Adler
não pode falar à vontade pelo telefone. Diante de seus ami­
gos e de empregados — que o conhecem muito bem —, é
impossível representar o papel de benfeitor dos turcos ou
confessar, em plena região do Ruhr, sua filiação ao “parti­
do que luta pelos operários” . Todos cairiam na gargalha­
da. Tentando colocá-lo em situação embaraçosa, pergunto:
233'
— Que diz para colega acreditar?
— No momento não posso falar — responde um pou­
co reticente. — Ligue para a minha casa daqui a uma hora.
Já em casa, sua voz adquire novamente aquele tom
de pastor. Insisto na pergunta:
— O que eu diz para colega? Eles quer saber por que
senhor é tão bom.
Um novo ímpeto de generosidade: põe-se a falar não
dos “ pobres” , e sim dos “ mais pobres dos pobres” , aos
quais gostaria muito de “poder ajudar” . Aproveito a oca­
sião para pintar-lhe um quadro eloqüente da miséria em
que vivem certos trabalhadores turcos. É muito, no en­
tanto, para ele, que já não consegue disfarçar sua falta de
interesse pelo relato. Temendo que eu desista da tarefa,
ainda se dá ao trabalho de dizer:
— Voltaremos a falar sobre isso. — E áté promete
que vai arranjar visto de permanência e autorização de tra­
balho para os “ mais pobres dos pobres” . Embora tenha
prometido aos “ encarregados de segurança” que se livra­
ria dos estrangeiros!
Nove e meia da manhã do dia seguinte.
Schmidt, o encarregado de segurança da central nu­
clear, liga para Adler e pergunta se está tudo arranjado
conforme combinaram.
— Sim, já reuni o pessoal. Estão prontos para en­
trar em ação. Mas me diga uma coisa com toda a honesti­
dade... Quem é o senhor? Não é Schmidt, encarregado de
segurança da central nuclear de Würgassen. Sei que não
é. O que está planejando? Quem é o senhor? Com quem
estou negociando? Só vamos tratar de negócios depois que
responder a essas perguntas.
Havíamos contado com a possibilidade de Adler te­
lefonar para Würgassen e descobrir que o verdadeiro en­
carregado de segurança não se ausentou da usina. Prevendo
isso, Schmidt responde:
— Não tente ligar para o meu escritório! O negócio
que estamos fazendo é supersecreto. Se o senhor ligar, se­
rei obrigado a dizer que não o conheço, que nunca o vi

234 v
e que jamais lhe encomendei um serviço dessa espécie. En­
tenda, somos um setor extremamente sensível, uma área
de segurança extrema, e o inimigo está em toda parte, até
mesmo dentro de casa.
Aparentemente Adler conseguiu as informações atra­
vés não de um telefonema à usina, mas de terceiros. Tam­
bém havíamos previsto essa possibilidade e preparamos
uma versão adequada.
SCHMIDT: Fique descansado. Compreenda, devemos
agir o mais discretamente possível. E, para sua informa­
ção, devo dizer que este seu amigo Schmidt é muito pe­
queno para tratar de uma coisa tão grande. Está tudo nas
mãos da diretoria.
Adler : Compreendo.
Schmidt : E para agir discretamente é necessário um
mínimo de confiança!
Adler : É claro, mas eu confio...
Schmidt : Se o senhor não confiar em nós, reconsi­
deraremos todo o trato. Entenda, para nós é uma situação...
ADLER: Sim...
Schmidt (elevando a voz num tom patético): Exa­
tamente porque estamos encarregados de fornecer ener­
gia à Alemanha não nos resta outra solução...
ADLER: Sim...
SCHMIDT: Ontem mesmo eu lhe disse que se o senhor
me telefonasse esbarraria no serviço de segurança. Está
compreend...
Adler (interrompendo-o): Claro! Claro! (Suas sus­
peitas dissipam-se aos poucos, graças à atitude segura de
Schmidt; mesmo assim , ele procura se garantir.): Diga-me
mais uma coisa... Eu poderia receber uma confirmação
do serviço por escrito?
SCHMIDT: Por escrito? De jeito nenhum! Será que
não entende?
ADLER: Sim...
Schmidt : Preste atenção! Em primeiro lugar, vamos
usar só seis dos oito trabalhadores. Portanto, a quantia
estipulada de 130 mil passou a ser 95 mil marcos...
235'
ADLER: Hum...
SCHMIDT: Bem, digamos... 110 mil marcos...
A dler.: Hum...
Schmidt : ... incluindo, é claro, a gratificação de re­
tomo ao país, aquele pequeno estímulo para voltarem à
terra natal.
Adler : Sim, claro.
Schmidt : De acordo com os nossos cálculos a aju­
da de custo para a viagem ficaria em tomo de uns 5 000
marcos por pessoa. Esperamos que tudo dê certo e que o
senhor se encarregue de pagar ao pessoal.
Adler : Mas é lógico!
SCHMIDT: Em segundo lugar precisamos ter a garan­
tia de que os operários sejam realmente fortes.
A dler : São, sim.
SCHMIDT: Não queremos que o mais leve contato
com alguns milirem os derrube.
Adler : Não, não! Não se preocupe, eles podem su­
portar. Não são derrubados tão facilmente!
SCHMIDT: E se houver necessidade de um encarrega­
do, este também deverá ser um imigrante...
A d le r (cortando-lhe a frase): Certo! Mas o traba­
lho é mesmo para a usina central nuclear de Würgassen?
SCHMIDT: Lógico!
ADLER: Não é que a coisa ainda não esteja muito
clara...
SCHMIDT: O senhor já entendeu perfeitamente. Quais
são suas dúvidas? O senhor me pediu para' ser franco. Já
lhe mostrei o máximo de boa vontade.
ADLER: Claro!
SCHMIDT: E quanto ao senhor? Será que não vai sair
por aí contando para Deus e o mundo esse nosso negó­
cio? Se ainda tem alguma dúvida, vamos conversar mais
um pouco. Mas antes é preciso que...
A d le r (cortando-lhe a frase): Sei, sei, compreendo
que tudo deve ser feito o mais discretamente possível. En­
tendo perfeitamente que em determinados negócios deve-
se permanecer incógnito. O problema é que de repente me
236 *
aparece alguém dizendo que é Schmidt, da usina nuclear
de Würgassen, e eu percebo que não é bem assim... O se­
nhor entende, tenho as minhas dúvidas... ou reservas, co­
mo o senhor costuma dizer... Será que estou mesmo ne­
gociando com a Central Geral de Energia? Eu não gosta­
ria nada de me meter em negócios imprudentes ou crimi­
nosos... (tosse) Enfim, eu não sei... como vou dizer... eu
gostaria de saber se estou mesmo negociando com a Cen­
tral Geral de Energia.
SCHMIDT: Não entendi direito o que o senhor quis di­
zer com imprudentes...
ADLER: Mas é que...
SCHMIDT: ... ou criminosos. A menos que o senhor
mesmo esteja acostumado a agir dessa forma...
ADLER: Eu?! Nunca!
SCHMIDT: Neste caso, eu é que gostaria muito de
saber...
ADLER: Não, não, não há problema! Mandarei o pes­
soal amanhã. (Propõe um novo encontro, dessa vez na ro­
doviária , diante da estação de trem .)
SCHMIDT: Às duas horas? Ótimo! Lá acertaremos
a questão do dinheiro e a forma de pagamento. Com­
binado?
Adler (satisfeito): Claro, claro! Combinado!
(Todas as suspeitas foram destruídas. A ganância pelo
lucro impele-o a cometer imprudências.)
Quinta-feira, 8 de agosto, meio-dia.
Adler contratou provisoriamente um motorista tur­
co que o levará em seu Mercedes 280-SE para Duisburg-
Bruckhausen, ao encontro de seu comando suicida. Or­
dena ao chofer que, em vez de entrar na Dieselstrasse,
pare um pouco mais afastado, na Kaiser-Wilhelm-Strasse,
a rua principal, bem em frente à coqueria das indústrias
Thyssen.
O automóvel luxuoso provoca sensação neste bairro
miserável. Por trás das cortinas, as mulheres turcas esprei­
tam, assustadas. Temem que a invasão esteja associada à
demolição de uma casa ou a um despejo forçado, quando,
, 237
alegando razões de higiene, vedam com muro as portas
e janelas de uma das casas em ruína. As crianças turcas
admiram o carro a distância, sem coragem de aproximar-
se. Adler não sabe como agir. Fuma um cigarro atrás'do
outro e não pára de olhar ao redor.
As chaminés da Thyssen expelem nuvens de fuligem
praticamente ininterruptas e basta uma leve brisa para espa­
lhar toda a sujeira sobre o bairro. As pessoas não só respi­
ram a fuligem, como a engolem, literalmente mastigando
os grãos concentrados nela. Por vezes os olhos inflamam
e ardem, tamanha é a poluição. Dependendo da hora e das
condições meteorológicas, há no ar uma concentração tão
grande de gás sulfuroso que realmente sufoca as pessoas.
Aqui o número de asmáticos e portadores de bronquite
é bem superior à média. A palidez das crianças salta aos
olhos. Lembro-me bem de um menino franzino — devia
ter uns cinco ou seis anos — cujo rosto infinitamente sé­
rio e esgotado lhe dava a aparência de um adulto.
No centro de Duisburg, o sol com certeza está brilhan­
do; aqui, no entanto, paira uma luz cinzenta, sombria. O
sol está atrás da cortina de fumaça, porém não consegue
romper o bloqueio. Do outro lado da rua, observo Adler
já há um bom tèmpo e percebo como se sente pouco à von­
tade. A Dieselstrasse e suas imediações representam para
ele as portas do inferno. Mas o inferno real situa-se atrás
das cercas e dos muros vigiados pelo serviço de segurança
da Thyssen, onde o ar é ainda mais poluído, e o barulho
é ensurdecedor.
Adler nunca se desviou de seu trajeto em nosso local
de trabalho: isso poderia pesar em sua alma sensível e,
quem sabe, provocar-lhe pesadelos. Aqui, trajando um ter­
no sob medida, ele parece totalmente deslocado, quase obs­
ceno, irreal como as fotografias dos candidatos das últi­
mas eleições, espalhadas pelo bairro. A propaganda não
funciona muito por aqui, a não ser, talvez, para algumas
marcas de cerveja e cigarro.
Nossa “ última oferta” consiste em seis amigos tur­
cos, todos de confiança. Para minha surpresa, estão mui­
238’
to menos espantados que eu com o tipo e a finalidade desta
missão e com a descarada falta de escrúpulos de Adler.
Já há muito tempo convivem com esta realidade e
conhecem-na bastante bem. Evito contar-lhes que sou ale­
mão. Isto poderia não só criar uma distância muito gran­
de entre nós como despertar a desconfiança de Adler.
Sem que ele nos veja, discretamente conduzo o pe­
queno grupo por uma rua paralela até meu apartamento
da Dieselstrasse. Depois vou buscá-lo. Seria melhor que
o “ pessoal" — como ele diz — viesse encontrá-lo na rua,
mas eu me oponho.
— Não bom. Perigoso, porque eles não têm docu­
mentos. — Ao dizer isso, começo a tramar o final da his­
tória, sobre o qual só falarei no momento oportuno.
— Bem, se é mesmo perigoso... — Adler segue-me
até a Dieselstrasse, 10. Logo na entrada do prédio sente
um forte cheiro de urina, pois os banheiros ficam todos
do lado de fora, e um deles está entupido. Adler apressa-
se e sobe a escada. No primeiro andar, abro a porta do
apartamento e apresento-lhe meus amigos turcos, pron­
tos para entrar em ação. — Bom dia — cumprimenta se­
camente ao entrar na sala e põe-se a contar: — Dois... qua­
tro... seis... Ótimo! Agora prestem atenção no que vou
dizer. Antes, porém, só uma coisa... todos entendem
alemão?
— Sim, maioria — respondo. Não é verdade, mas
com isso obrigo-o a pronunciar um pequeno discurso no
qual pouco a pouco ele se revela.
— Como vocês já devem saber, somos uma empresa
de montagem industrial sediada em Oberhausen — assim
começa sua apresentação. — Nossa missão é executar al­
guns reparos na central nuclear de Würgassen. Um servi­
ço fácil, que não levará mais de dois dias. Para tanto, pre­
cisamos de cinco ou seis homens. Vão nos pagar um bom
dinheiro, o que significa que vocês também serão bem pa­
gos. Se tiverem alguma dúvida, não hesitem. Estou pron­
to a responder todas as questões.
Adler tem um ar simpático, franco. Quem não o co­
239'
nhece deixa-se levar facilmente. Para que ele se revelasse
ainda mais, combinei com meus amigos que lhe fizessem
algumas perguntas em turco. Quanto a mim, não sei uma
palavra de turco, mas me ofereci para traduzir “livremen­
te” as questões mais relevantes. Nunca ocorreu a Adler
que eu jamais tenha conversado em turco com meus cole­
gas turcos; e muito menos que meu alemão não seja co­
mo o alemão falado pelos imigrantes. Ele não se surpreen­
deu com minhas palavras esdrúxulas, meus verbos mal con­
jugados, meus artigos omitidos. Por vezes tais embustes
lingüísticos dão bons resultados, arrancando-lhe as mais
extraordinárias declarações. Adler nada percebe: para ele,
“ seus imigrantes” não passam de burros de carga. Desde
que trabalhem como animais e sejam dóceis na execução
dos serviços, nada tem contra eles; ao contrário! É um dos
poucos que, em certo sentido, até sabe valorizá-los. Mas
a partir do instante em que começam a se defender, exi­
gindo o pagamento dos salários atrasados, passam a ser
“ gentalha, corja, bandidos, vagabundos” .
. — Colega quer saber — digo-lhe — como gente vai
até local de trabalho.
Adler põe-se falar da viagem como o dono de uma
agência de turismo promovendo excursões de ônibus com
direito a café e bolo grátis.
— Tudo é de graça! — exclama. — Às três horas,
um ônibus irá apanhá-los na rodoviária de Duisburg e os
trará de volta dois dias depois. O alojamento é grátis, a
alimentação é grátis, tudo é grátis!
Isso me lembra o refrão de sua cantiga preferida: “ ...
longe de casa e fora da lei/ cem homens, e eu entre eles...”
— Outro colega — digo. — Ele quer saber por que
SOO marcos? Muito dinheiro, pouco trabalho...
Desta vez a águia abre as asas, pronta para voar.
— Prestem atenção! Vocês conhecem a Alemanha e
sabem que temos diferentes tipos de usinas. Vamos tra­
balhar numa usina nuclear. No momento ela está parada,
não produz energia. Ficou comprovado que algumas coi­
sas precisam de conserto. E esse conserto deve ser feito
em pouco tempo, porque a usina voltará a funcionar na
próxima semana. E tem outra coisa... nada disso pode ser
comentado. Os jornais não devem saber do defeito, por-
que senão aparecem os caras do Partido Verde e aí já sa­
bem... vem aquela lenga-lenga toda e ainda por cima con­
seguem fechar a usina. — E com sincero desprezo: — Vo­
cês conhecem bem esses grupinhos políticos que existem
na Alemanha... Bom, mas o importante é que o trabalho
deve ser feito imediatamente para que tudo esteja funcio­
nando direitinho na próxima semana. É por isso que es­
tão nos pagando bem. E, naturalmente, vocês também vão
receber um bom dinheiro!
— Mas ele diz que não confia alemão — insisto. —
Alemão sempre engana gente.
Adler engole em seco. Para ganhar tempo, finge não
ter compreendido:
— Como assim?
— Ele diz que alemão engana ele.
— Pergunte-lhe se alguma vez eu o enganei.
É uma pena que ainda não seja o momento propício
para o ajuste de contas, para enumerar-lhe na cara todos
os seus trambiques: os 2 000 marcos que ele ainda me de­
ve, os constantes calotes no pagamento dos empregados,
o fato de embolsar dinheiro dos impostos e contribuições
sociais, e “ outras coisas do gênero” , como costuma dizer.
— Conta para eles tudo que senhor faz para turcos
— consigo dizer, disfarçando o mal-estar provocado pela
situação.
Era a deixa que Adler esperava. Endireitando-se na
cadeira, pede fogo a seu novo motorista e começa a re­
presentar o papel de benfeitor dos humilhados e ofendi­
dos, ou seja de todos os que são explorados por ele e por
outros da mesma laia. Assume os modos de um doador
de empregos — ele, que passa a vida devorando e explo­
rando a saúde e os meios de subsistência de seus em­
pregados!
— Desde que passei a trabalhar como autônomo,
sempre tive colaboradores turcos. E até o presente momen­
24 f
to nunca me deixaram na mão. Sempre me dei muito bem
com eles, ao contrário do que tem acontecido com os co­
laboradores alemães... Portanto, quero continuar traba­
lhando com os turcos e é por isso que lhes ofereço emprego.
Trabalhar “ com” os turcos... Explorá-los, isso sim!
Obrigá-los a se esfalfar como escravos até que caiam de
cansaço ou estiquem as canelas. Ele realmente doura a pí­
lula tratando-os de “colaboradores” ... A palavra deve soar
como bálsamo aos ouvidos dos massacrados e oprimidos.
— Bom, esta turma que a gente vai expulsar para a
Turquia — digo, procurando trazê-lo ao assunto principal.
— Talvez não seja necessário — declara magnânimo.
— Vou dizer uma coisa com toda a honestidade... não que­
remos alemães para esse serviço porque eles falam demais.
Fazem o trabalho e depois contam para todo mundo. Co­
nheço bem os trabalhadores turcos e sei que vocês ficam
de boca fechada. Estão entendendo por que eu não quero
trabalhadores alemães? Não vale a pena!
— Ayth lá — aponto para um dos colegas turcos —
mora em porão e...
Adler interrompe-me com um gesto.
— Não faz mal. Não tem importância. Vou fingir que
não sei de nada.
— Mas gente não podia ajudar ele?
Pronto! Mais uma vez Adler assume o papel de me­
lhor patrão do pós-guerra.
— Ajudá-lo? Mas sem dúvida! Estou sempre pron­
to a ajudar os mais necessitados... Saibam que isso é uma
tradição da minha família. Somos social-democratas, mem­
bros do PSD. Costumamos lutar pelos operários. Sempre
que podemos ajudamos as pessoas a ganhar um pouco de
dinheiro. Como estou fazendo agora. E se vocês tiverem
mesmo que voltar para a Turquia, pelo menos já têm 500
marcos... Já é alguma coisa...
— Aquele, ó — aponto para Sinan, outro colega turco
—, quer saber se trabalho perigoso.
Mais uma deixa para Adler, que se põe a falar como
verdadeiro porta-voz de uma central nuclear:

242
— Perigoso? De jeito nenhum! É uma grande usina,
e as normas de segurança são extremamente rigorosas, co­
mo em todas as centrais nucleares da Alemanha. Vocês
sabem que as centrais nucleares alemãs são as mais segu­
ras do mundo. Milhares de pessoas trabalham nelas. Co­
mo estão vendo, não há o menor perigo!
— Mas nunca aconteceu acidente? — pergunto.
— Numa usina nuclear da Alemanha? Nunca!
Dentro da usina pode ser que não... Mas um avião
de caça já caiu bem perto de Würgassen: se tivesse caído
sobre as instalações, teria certamente provocado uma ca­
tástrofe de gigantescas proporções. Em caso de acidente,
as pessoas que trabalham dentro das usinas são atingidas
mais rapidamente. Até o momento a indústria atômica da
Alemanha Ocidental admite, oficialmente, cinco casos fa­
tais nas centrais nucleares do país.
De qualquer forma, o trabalho “ não é perigoso", se­
gundo Adler. Nem mesmo difícil, como também nos as­
segura.
— Gente precisa subir lugar alto? — pergunto.
— Não. Isto é, sim... Quero dizer... não sei. Você
sabe, uma central nuclear tem vários andares, entende?
— Sinan quer saber qual é mesmo serviço de gente
— insisto.
— São trabalhos de reparação, trabalhos com solda...
coisas simples que precisam ser feitas. Por isso há neces­
sidade de cinco ou seis homens. Para tudo estar termina­
do em dois dias. Já fizemos os cálculos. Está tudo acerta­
do. Vocês vão ver que lá dentro o que mais importa é o
ser humano! — Suas palavras devem ter lhe soado tão
monstruosas que ele prefere continuar falando, na tenta­
tiva de ocultar o desprezo e o desrespeito que sente pelo
ser humano: — E é evidente que não há nenhum perigo
para quem trabalha lá dentro. As normas de segurança são
rigorosíssimas. É verdade que uma central nuclear, mes­
mo desligada, sempre tem um pouco de radioatividade.
Mas fiquem tranqüilos. O pessoal de lá vai dizer aonde
vocês podem ir sem o menor risco. E, caso haja algum pro­
243'
blema, mínimo que seja, o trabalho é suspenso. Sua saú­
de não corre perigo. Vocês mesmos terão oportunidade de
comprovar o que estou dizendo. Se as coisas não forem
assim, nem precisam vir me contar. Podem abandonar o
serviço. Mas uma coisa é muito importante... Vocês fa­
zem o trabalho, pegam o dinheiro e esquecem tudo. Nada
de ficar por aí contando para todo mundo que a usina ti­
nha um pequeno defeito. É muito importante que essas
coisas não sejam divulgadas. Portanto... trabalho termi­
nado, tudo esquecido! Claro, antes disso, vocês pegam o
dinheiro! E depois ficam esperando o próximo serviço. Pre­
cisamos desse tipo de trabalho. Por isso é que devemos
ser discretos e ficar de boca fechada. Então... trabalho ter­
minado, tudo esquecido! Combinado? Partimos hoje de­
pois do almoço e sábado à tarde, no máximo, o ônibus
os trará de volta para a rodoviária de Duisburg. Vocês vão
voltar para suas casas, e encerramos o assunto. Recebem
o dinheiro e não se fala mais nisso. Não é razoável?
Silêncio consternado. De repente ninguém mais tem
prazer na encenação.
Como todo mentiroso contumaz, Adler novamente
reitera sua honestidade:
— As pessoas que eu contrato sempre recebem seu
dinheiro. Quanto a isso nunca houve o menor problema.
Amanhã mesmo vocês receberão 250 marcos. O restante
será pago quando terminarem o serviço. E em dinheiro vi­
vo! Ali, o meu motorista, irá com vocês. Confiem nele,
pois é a garantia de que receberão o seu dinheiro. — E
mais uma vez exalta a perfeição e a segurança da indús­
tria atômica alemã: — Vocês receberão uniforme de se­
gurança. Sapatos, capacete, tudo. Mas repito, não comen­
tem nada sobre o serviço. Principalmente com esses pa­
lhaços da imprensa. Senão... — Com um gesto teatral, ti­
ra da carteira uma nota de 50 marcos passa-a para mim,
dizendo: — Este dinheiro é para você levar o pessoal para
comer alguma coisa. Vocês devem se alimentar para não
perder logo a força quando começarem o trabalho. Não
é verdade? — E antes de sair ainda nos diz, com um ar

244 '
paternal e protetor: — Tudo de bom, meus jovens! Até
às três da tarde! Conto com vocês. Combinado?
Dividindo 50 marcos por sete, cada um de nós terá
direito à última refeição no valor de 7,14 marcos.
Lembro-me novamente daquela canção piegas que ele
não se cansa de ouvir: “ Cem homens e um só comando/E
um caminho que ninguém deseja/Dia após dia, quem sa­
be para onde?/Terra queimada, qual é a razão?” E por
aí afora. Talvez seja sua canção predileta pela alusão a seu
nome. Mas ele não faz caso do patético e, cinicamente,
vai repetindo o refrão: “longe de casa e fora da lei...” 1.
As duas da tarde, Adler encontra o encarregado de
segurança Schmidt e o perito-assistente Hansen no restau­
rante da estação ferroviária de Duisburg. Os dois repas­
sam com clareza e precisão todos os detalhes do negócio
para que mais tarde Adler não possa dizer que não enten­
deu muito bem.
HANSEN: Hoje cedo fomos medir mais uma vez os
índices de radiação. E os resultados superaram as nossas
piores expectativas. Assim, o trabalho passa a ser muito
mais delicado. A radiação junto aos encanamentos, onde
eles irão trabalhar... (olhapara as mesas ao lado e baixa
a voz)... a radiação eqüivale a trinta vezes a dose anual
máxima, e seu pessoal vai receber tudo isso de um só gol­
pe... A coisa pode acabar mal.
ADLER: E se não fizermos o serviço?
HANSEN: Não poderemos acoplar a usina à rede elé­
trica. Impossível! E todos os canos poderão ficar destruí­
dos. Milhões, bilhões de marcos de prejuízo!
Adler : É, isso não é bom... Eles precisam entrar lá
e botar tudo em ordem, (em seguida, para isentar-se, de­
clara): De qualquer forma, oficialmente não sei de nada.
Os senhores me pediram alguns trabalhadores, eu montei
uma equipe e a coloquei dentro de um ônibus. Os se-
1 ‘Tora da lei** corresponde ao alemão Vogeffrei, que literalmente também quer
dizer “ pássaro livre” . A palavra Vogel alude ao nome de Adler, “ águia” (N.
do T.).

245*
Equipe da Adler na central nuclear

nhores levaram o pessoal para Würgassen. Para mim a his­


tória termina aí. Fim! Não costumo cometer delitos... Pos­
so lhes garantir que ninguém da equipe vai fazer muitas
perguntas. Eles nem sabem onde fica Würgassen... (A úni­
ca coisa que lhe interessa é money, black, cash, isenção
de impostos.) Gostaria muito de saber como será feito o
pagamento... A central vai participar?
Schm idt : Não, de jeito nenhum! Isso não passa pe­
los canais oficiais. Se assim fosse, por que estaríamos agin­
do de forma tão discreta?
ADLER: Quando se faz um deal desses, o trabalho de­
ve ser recíproco, não acham? Quanto a mim, vou ajudá-
los a... digamos... limpar a imundície. Em contrapartida,
os senhores, com boa vontade, poderiam me pagar toda
a quantia no black...
Schm idt : O nosso acordo é uma coisa especial. Não
vai aparecer de jeito nenhum.

246
A dler (ávido): Enfim, como é que os senhores vão
me pagar? Em cheque ou em dinheiro?
Schmidt (firm e em sua posição): A primeira meta­
de, em dinheiro; a segunda, em cheque cruzado.
ADLER: Cheque da central de Würgassen?
SCHMIDT: Não, não pode ser às claras... O cheque
é de um terceiro...
A dler : Não quero que nada apareça e o imposto de
renda fique sabendo.
H ansen : O senhor já teve algum problema com as
autoridades?
ADLER: Eeeeu?... Nunca! Os senhores sabem quan­
do devem cumprir com seus deveres. Estou sempre limpo
com a previdência e com o imposto de renda. A própria
agência oficial de empregos sempre manda pessoas para
a minha empresa... oficialmente. (Ri.) Só querem é ver a
grana! Se pagamos pontualmente, eles nos deixam em paz!
H ansen : E o que acontece quando um dos seus em­
pregados sofre um acidente de trabalho? Como é que o
senhor se vira? Estou perguntando porque não queremos
que procurem um médico ou qualquer coisa assim.
ADLER: Pode deixar. Eu me encarrego disso. Os meus
clientes nunca foram incomodados por essas coisas. Elas
não aparecem nas estatísticas de acidente. Há pouco tem­
po tivemos um acidente na Ruhrchemie. O cliente nem pre­
cisou se preocupar... Mas o que pode acontecer na pior
das hipóteses? Cair todo mundo morto de repente?
H ansen .- Seria muito ruim se um deles perdesse o
equílibrio e caísse dentro do tubo. O infeliz iria parar a
uns dez metros de profundidade.
Adler (com desenvoltura): E não se poderia puxá-
lo com um cabo ou qualquer coisa do gênero?
HANSEN: Poderíamos tentar, mas seria terrivelmen­
te difícil. O tubo é cheio de curvas. Precisaríamos ver se
o sujeito não ficou entalado lá... preso pelos ombros.
Adler (tranqüilizando-o): Eles não têm ombros lar­
gos. Na verdade são uns pobres-diabos que nem se alimen­
tam direito. A gente consegue até ver as costelas deles!
247 ’’
HANSEN: Vamos torcer para que ninguém perca o
equilíbrio. Teoricamente, quando uma pessoa sofre uma
forte dose de radiação, os sintomas agudos de contami­
nação começam a aparecer em quatro semanas... queda
de cabelo, impotência, vômitos, diarréia, prostração... É
imprescindível que eles já tenham dado o fora. Quanto aos
efeitos a longo prazo, não há como provar, não há mais
controle. Mesmo que um deles, anos mais tarde, venha a
ter um câncer, já nem se lembrará que trabalhou conosco.
ADLER: Nada disso me intimida. Essas coisas não me
dão medo. Não gelam meu sangue. Trabalho é trabalho,
e sei que o que acontece dentro dessas usinas não pode vir
a público. Eu faço a minha parte, e cada um faça a sua!
HANSEN: No nosso meio costumam dizer que Wür­
gassen é uma sucata.
Adler : E u sei. É porque é muito antiga. Mas... por
acaso o senhor é o mesmo Hansen com quem fiz negócio
há alguns anos?
H ansen (enigmático): Não vá acreditar que eu seja
a pessoa que está a sua frente.
Adler (vendo que me aproximo da mesa): Ah, aí es­
tá ele! Senhores, este é Ali. Ele reuniu a equipe e vai
acompanhá-la e cuidar de tudo. (Voltando-se para mim):
O que esses senhores disserem é lei, compreendeu? Está
tudo bem com o pessoal?
EU: Eles continua fazer perguntas. Eles quer saber de
tudo, que nem criança. Pergunta e mais pergunta. Eles pen­
sa que precisa lutar com dragão... Eles acha que serviço
vai ser muito perigoso.
Adler : Pare com isso! Nossas centrais nucleares são
muito seguras; na verdade são as mais seguras do mundo.
Já disse isso a eles hoje de manhã. Não há o menor risco,
todas as normas de segurança são cumpridas.
EU: Certo!
Adler : Volte para sua tropa de choque. (Depois que
saio, diz aos encarregados da usina atômica): É evidente
que esse aí não sabe de nada. O pessoal da equipe confia
minto nele. Basta Ali dizer que boi voa para que todos acre­

248 1
ditem. De mais a mais, ele vai tomar conta do pessoal. Não
quero saber de corpo mole. Estão lá para trabalhar direi­
to. São como crianças, dá para entender? Querem se sen­
tir seguros, por isso é que fazem tantas perguntas!
H ansen : Nós também podemos confiar no tal Ali?
Adler (posando novamente de benfeitor e começan­
do uma de suas incríveis histórias): O pobre-diabo! Se os
senhores vissem o estado em que o encontrei, há um ano
e meio... Sabem o que precisou fazer para ganhar a vida?
SCHIMIDT: Não.
ADLER: Foi servir de cobaia humana nesses testes far­
macêuticos. Tomou um monte de injeções e...
HANSEN: Lá na Turquia?
ADLER: Aqui mesmo, na Alemanha! Não sei muito
bem como essas coisas funcionam. Só sei que já é bastan­
te ruim fazerem isso com animais.
H ansen : E fizeram mesmo essas coisas com ele?
ADLER: Fizeram! Um dia, ele chegou completamen­
te tonto, cambaleando. Foi o que me chamou a atenção.
Resolvi perguntar o que tinha acontecido. O infeliz me con­
tou que um médico lhe aplicava injeções em troca de 800
marcos por semana. Decidi cuidar dele e falei que tudo
estava acabado a partir daquele momento. Disse que o que
fizeram com ele foi uma sujeira, mas que agora havia ter­
minado. Ali é um bom sujeito.•
HANSEN: E o que foi que o senhor disse, exatamen­
te, para o pessoal da equipe, quando lhe perguntaram so­
bre o tipo de trabalho?
Adler (como que lendo um relatório): Que eles vão pa­
ra uma usina nuclear; que farão trabalhos de reparação in­
dispensáveis para a usina voltar a funcionar; que o serviço
deve ser feito o mais rápido possível; que tudo deve ficar em
sigilo, especialmente em relação à imprensa; que não devem
imaginar que a coisa seja um bicho de sete cabeças... Disse
também que tudo foi devidamente planejado; que as cen­
trais nucleares alemãs são as mais seguras do mundo... o que
é uma verdade, não?... E falei que eles vão receber unifor­
mes de segurança e estarão muito bem protegidos.

249*
SCHMIDT: Com a condição de que desapareçam nos
próximos catorze dias!
A dler : Mas claro! Em catorze dias terão partido!
SCHMIDT: Levados pelo vento!
ADLER: Claro, claro! Não se preocupem. Além do
mais, é uma equipe pequena. Nenhum deles sabe exata­
mente do que se trata. Eu sou o único que estou a par de
tudo, e é muito bom que seja assim! Já imaginaram se eu
tivesse que ficar explicando todo o serviço para umas dez
pessoas, por exemplo? Eu desistiria do negócio. Confiem
em mim! Nós fazemos de tudo!
“ Nós fazemos de tudo” é a máxima de Adler e da
maioria de seus comparsas, de todos aqueles que forne­
cem mão-de-obra aos trustes das indústrias e da constru­
ção civil.
“Nós fazemos de tudo” 1é a palavra de ordem do ca­
pitalismo e a ela deveria acrescentar-se “ ... tudo que dê
lucro” . E se até agora o III Reich foi o único a fazer sa­
bão de despojos humanos (de prisioneiros assassinados nos
campos de concentração; 11,50 marcos era o preço do ca­
dáver; e com a gordura e os ossos ainda faziam cola), não
é porque essa prática se choque contra os princípios hu­

1 “ Nós fazemos de tudo*' é o slogan publicitário do truste Krupp. Na verdade


isso quer dizer: “ Meu objetivo é fornecer ao Estado um número enorme de su­
jeitos submissos e às fábricas trabalhadores de todo tipo” . E esses sujeitos sub­
missos funcionaram tão bem que, em 1914, provocaram uma guerra e foram
dilacerados pelas granadas inglesas, nas quais estavam gravadas as iniciais “KPZ”
(Krupp-Patent-Zeitzünder: “ detonador patenteado pela Krupp” ). Graças à guer­
ra, Krupp pôde dobrar sua fortuna. Graças aos soldados ingleses e alemães que
tombaram mortos. Para cada soldado alemão que morria, Krupp cobrava 60
marcos de royalties do fabricante de armas britânico Vickers. Quando a Ale­
manha foi derrotada, Krupp estava 400 milhões de marcos-ouro mais rico. E
ainda antes de 1933 começou a investir — precisamente 4 738 448 marcos —
no mais novo especialista em planejamento de guerra: Hitler. Em tudo que des­
se lucro, pequeno ou grande, Krupp punha a mão; fosse com a morte de solda­
dos, fosse com a vida de milhares de prisioneiros, obrigados a trabalhar para
ele, confinados dentro das fábricas em verdadeiras casinhas de cachorro — em
condições piores que a de escravos. Nos muros externos das fábricas Krupp ha­
via cartazes com a inscrição: “ Eslavos são escravos” (N. do A.).

'250*
manitários, mas porque fazer sabão com despojos huma­
nos não dá lucro.
Adler sai do restaurante com Schmidt e Hansen para
despachar a “tropa” que está à espera do ônibus.
O problema é que não podemos prosseguir com a en­
cenação: arranjar um ônibus e partir para Würgassen. No
dia seguinte Adler estaria lá — sem a menor sombra de
dúvida — para receber parte de seus “ honorários” : cash
e black, como ele mesmo diz... Por um momento consi­
derei a idéia de provocar-lhe um grande susto: exibir-lhe
os resultados do que ele supõe que provocará. Eichmann
também nunca chegou a ver as pilhas de cadáveres; “ so­
mente” organizava o transporte das pessoas ainda vivas
para os campos de extermínio em massa... Em princípio,
planejei levar Adler a um dos pequenos cômodos do ho­
tel Na Curva, em Würgassen, e apresentar-lhe alguns co­
legas turcos “ deformados” pela radiação. É claro que to­
dos estariam devidamente maquilados — com “ pedaços
de pele” desprendendo-se do rosto, tufos de cabelos cain­
do — e totalmente apáticos, deitados nas camas e no chão.
Porém seria demais. Só falta é uma cena final para
que ele não desconfie de que tudo não passou de uma re­
presentação teatral e acabe fugindo do país — evidente­
mente depois de apagar os vestígios e destruir documen­
tos comprometedores.
O melhor mesmo é que todo o negócio desapareça
diante de seus olhos tão rapidamente quanto uma cuspi-
dela seca ao sol. Assim como o gênio que, para retomar
à garrafa, se dissolve em fumaça e num zás-trás é arro-
lhado dentro dela.
Logo que Adler, Hansen, Schmidt e Ali se aproximas­
sem da “tropa” , “ policiais à paisana” deveriam entrar
bruscamente em cena, exibindo suas “ credenciais” . Uma
batida para averiguação de documentos. Dois turcos sai­
riam correndo e os outros seriam “encanados” . Tudo num
ritmo bem lento, como no teatro, num primeiro ensaio im­
provisado. Adler deveria viver essa cena em câmera len­
ta, como num pesadelo.
r 251*
Mas um imprevisto quase dificultou as coisas. Um
amigo meu — diretor de colégio e pastor — deveria re­
presentar o papel de um dos policiais e, por precaução,
vem equipado com um par de algemas e um revólver de
brinquedo. Só que confunde Adler com nosso fotógrafo,
Günter Zint, escondido ali por perto, e cumprimenta o pri­
meiro. Schmidt rapidamente inventa uma desculpa e con­
segue tirar partido da situação. Faz as apresentações:
— Este senhor é do serviço de segurança da usina.
Foi destacado para essa missão especial a fim de se certi­
ficar de que nada sairá errado.
Adler tece elogios:
— Realmente, tudo muito bem organizado.
É, tudo muito bom... Mas e agora? Como represen­
tar a cena final? Pergunto a meus amigos turcos se se im­
portariam de ser interrogados por policiais de verdade. Al­
guns estão sem documento, porém isso contribuiria para
dar maior verossimilhança à história se tivesse mesmo que
parar na delegacia.
Um de nós telefona para a policia e descreve com exa­
tidão o local onde está havendo tráfico de mão-de-obra
com a participação de turcos que vivem em situação ile­
gal na Alemanha. Pronto! Cinco minutos depois, dois veí­
culos de passeio param a nossa frente, seis policiais sal­
tam na calçada e caminham em direção ao grupo de tur­
cos. Mas avistam o fotógrafo Günter Zint, postado a uns
quinze metros de distância e apontando a câmera. Obvia­
mente imaginam que estão sob o foco da câmera e supõem
— como descubro mais tarde através de informações extra-
oficiais na delegacia de Duisburg — que um jornal qual­
quer deseja criar um caso com eles demonstrando a de­
senvoltura e os métodos pelos quais intimam os estrangeiros
após uma simples denúncia. Retornam a seus veículos e
partem rapidamente.
Voltamos à estaca zero. E o tempo urge.
Adler começa a ficar inquieto, pois o “ ônibus da usi­
na” ainda não chegou. Gesine, namorada de Sinan, um
dos membros de nossa “tropa” , tem uma idéia brilhante:

252 v
vai até um bar de estudantes, localizado perto da estação
ferroviária, e arruma dois novos participantes. Como não
dispomos de muito tempo, não podemos contar-lhes toda
a história com riqueza de detalhes. Só lhes dizemos que
se trata de desmascarar um grande especialista no tráfico
de mão-de-obra simulando sua captura. Ambos mostram-
se dispostos a cooperar. Mais tarde descobrimos que um
deles é conselheiro municipal do Partido Verde.
Da forma mais antiautoritária e amigável, “prendem”
nossos amigos turcos. Exatamente o oposto da brutalida­
de policial. De acordo com as regras habituais, pegam nos­
sos amigos pelo braço como se os conduzissem. Mesmo
assim, Adler engole a encenação.
Para tomar as coisas mais reais, um dos “ policiais”
aplica uma chave de braço em Ayth que “ se rebela” . Sem
acreditar nos próprios olhos — afinal, vê todo o seu ne­
gócio cair por terra —, Adler me pergunta, assustado:
— Mas o que está acontecendo?
— Polícia pega eles porque não têm documento —
respondo e saio correndo.
Ligeiramente cabisbaixo, olhando para todos os la­
dos, Adler dirige-se a passos acelerados para o carro esta­
cionado diante de um ponto de ônibus. Evita correr para
não atrair a atenção dos outros e também porque o pudor
o impede.
Simplesmente abandona os sócios ali na ma. Schmidt
ainda corre atrás dele, exigindo uma explicação:
— O que que houve? Por que todos saíram corren­
do? Como foi que isso aconteceu? O senhor mesmo nos
disse que não haveria nenhum problema!
Sem diminuir suas passadas largas, Adler responde
ofegante:
— Está tudo bem! Telefone para mim sem demora!
— E pula para dentro do carro, que parte impetuosamen­
te. Schmidt ainda grita:
— Mas temos um trabalho a fazer...
Epílogo
(ou: A banalização do crime)

Para que tudo fique na mais perfeita ordem, à noite


Schmidt telefona para Adler.
Adler (ligeiramente embaraçado, tentando m inim i­
zar o incidente): Pois é, que aventura tivemos hoje, não?
Schmidt (censurando-o energicamente): É! Mas o se­
nhor pode me dizer o que aconteceu, afinal?
A dler : Não sei. Acho que os rapazes tinham a fi­
cha suja. Como é que vou saber?
SCHMIDT: E como o senhor imagina resolver o nos­
so caso?
A dler : Ora, eu organizei aquela equipe... Posso
muito bem organizar outra...
SCHMIDT: Não, não será mais necessário. Nós mes­
mos vamos resolver tudo sozinhos. O senhor sabia muito
bem que o serviço devia ser feito imediatamente. Tudo pre­
cisa estar pronto até amanhã no fim da tarde. Pensáva­
mos estar tratando com um profissional.
A dler (na defensiva): Mas só pegaram dois! Dois em
seis!
SCHMIDT (interrompendo-o): Dois, dois... O senhor
tem idéia da proporção... dois em seis?
Adler : Tenho...
SCHMIDT: Faça o cálculo. Éum terço, não é mesmo?
A dler : Sim, é. Mas o que vamos fazer agora?
SCHMIDT: O que vamos fazer? Temos o nosso pró­
prio pessoal, ainda bem... Da nossa parte tudo correu às
mil maravilhas. Tínhamos o ônibus. Mas o senhor o que
fez? Saiu correndo para o carro! E até agora não nos deu
nenhuma explicação convincente. E ainda por cima quer
saber o que faremos agora? Eu lhe digo... Vamos ter que

254a
começar tudo de novo. Mas sem o senhor! Até logo! (Ba­
te o telefone.)
(Meia hora depois, apresento-me na casa de Adler e
já vou levando uma descompostura.)
ADLER: Que raio de gente foi aquela que você me ar­
rumou? Viu só o rolo que deu?
EU: Mas eu disse para senhor que aqueles dois não
tinha documento. Polícia pegou eles.
A dler (ri, achando a coisa engraçada): É, eu vi.
EU: Outros quer dinheiro. Eles não têm culpa. Eles
deixou serviço que tinha para pegar aquele outro, e agora
nada.
A dler (com desdém): Mas que caras-de-pau! Diga
que o negócio está morto e enterrado. Acabou!
EU: Mas senhor disse que ajudava eles.
ADLER: Só depois do serviço feito.
EU: A polícia foi em minha casa me procurar. Eles
quer saber de tudo. Eu não estava. E agora eu precisa de­
por e...
Adler (interrompendo-me): Obviamente você não
pronunciará o meu nome, está entendendo? Não tenho na­
da a ver com aquela história, percebe?
Eu (fazendo-me de inocente): Mas que eu vai contar
em polícia?
ADLER: Diga, por exemplo, que um tal Müller... ou
qualquer outro nome... prometeu um serviço aos rapazes.
Daí você foi procurá-los e então...
EU: Mas e se eles pergunta como é Müller? O que eu
fala?
(Silêncio).
ADLER: Diga que não sabe de nada!
EU: Que eu não sabe nada?
ADLER: É! Finja que não entende. Ou melhor, aja co­
mo se não soubesse uma palavra de alemão.
Eu: Tudo bem. Mas gente não podia fazer coisinha
para eles?
A dler : Para os rapazes? Não! Mas para você...
quem sabe? Falaremos disso mais tarde... O meu cliente
255'
deve ter se borrado de medo quando viu tudo aquilo. De­
ve ter cagado na calça. Mas que merda... Bom, se alguém
perguntar alguma coisa, diga que foi um tal Müller, ou
qualquer outro nome, de Duisburg... Você não sabe onde
ele mora, não sabe onde fica seu escritório, não sabe na­
da. Ele só pediu que você arranjasse umas pessoas para
um servicinho.
Eu*. E eu fala aquelas coisa de radiação?
ADLER: Claro que não! Não, não, não, não! (Em se­
guida começa a rir.) Quais foram os rapazes que eles
prenderam?
EU: Aqueles dois que mora em porão. Agora policia
mandam eles para Turquia.
A d le r (satisfeito, feliz e tranqüilo ao mesmo tem­
po): Pobres diabos! Mandados para a Turquia... Mas que
merda! Como é que eu podia adivinhar que os policiais
estavam circulando pela estação ferroviária?...
Eu: Mas senhor falou para encontrar em estação de
trem.
A d le r (repreensivo): Você devia ter sugerido outra
coisa... Outro lugar para o encontro...
Sexta-feira, 9 de agosto (o dia seguinte).
Adler manda seu novo motorista Abdullah (meu “ir­
mão”) apanhá-lo às dez horas. Como de hábito, percorre os
bancos, verificando, com satisfação, os depósitos feitos em
sua conta. Depois recolhe sua parte do saque na Remmert.
Durante o percurso, revela a Abdullah suas preocupações:
— Os prazos para entrega são muito longos... Você
precisa encomendar um Mercedes último tipo quase um
ano antes, se quiser receber a tempo.
É, o crescimento a qualquer preço continua sendo a
divisa do capitalismo contemporâneo, mesmo que a sua
expansão e suas explosões não aparentem ser tão selva­
gens como realmente são. “ Quem não avança, recua” é
a máxima que exprime a angústia original de todos os se­
nhores da guerra, de todos os conquistadores e capitalis­
tas, ainda em vigor em nossa época. Diante da conjuntu­
ra econômica, Adler se resigna:

256*
— Vou trocar de Mercedes. Em vez deste 280 SE, vou
comprar o 300 SE, último tipo. Mas só no outono. Até
lá, este já terá um ano e meio. (Com todos os acessórios
e equipamentos, seu carro atual custou 100 mil marcos;
o novo será bem mais caro.)
A bdullah (tentando atrair Adler para o assunto que
lhe interessa)\ Os dois turcos estão na cadeia.
AdleR: Provavelmente já foram expulsos do país. Eu
tenho muita pena deles. Mas, por outro lado, quer saber
de uma coisa? Deve ter sido bem melhor para eles. Afi­
nal, o que é que conseguiram aqui na Alemanha? Não po­
diam nem andar livremente pelas ruas, não é verdade?
Abdullah : Lá isso é l G o clima é bem melhor na
Turquia.
ADLER: É verdade! O que eles querem aqui? Moram
em porões, vivem com medo da polícia, não têm empre­
gos, não conseguem se manter, não têm nada!
Abdullah .*É... não têm emprego...
AdleR: E o que os prende aqui?
Abdullah : Mas Ali está bem triste...
AdleR: Claro. Deve estar se cagando de medo. A gente
devia ter marcado o encontro em outro local, não na esta­
ção. Que merda! A polícia está sempre circulando por ali.
Abdullah *. É... esse foi o problema.
ADLER: Foi mesmo!
Abdullah : O senhor acha que ainda vai receber al­
gum tipo de trabalho daquele pessoal da usina?
Adler : Claro! Há muito tempo que trabalho para
eles. Todos os anos...
Abdullah : Eles devem pagar uma nota, não?
Adle R: Pagam. E sempre nos dão serviço. Não te­
mos problemas com eles. Bem, claro que no momento a
coisa está preta. Mas é um trabalho sério. Raramente nos
convocam para uma missão um pouco duvidosa. Têm me­
do que a coisa transpire e os jornais comecem a publicar
que a usina pifou e coisas desse gênero.
Abdullah: É, mas os dois sujeitos ficaram com mui­
to medo. (Ri.)

257*
Adler (rindo também): Com muito medo! Saíram
na disparada... cagando na calça... Ah, ah... Normalmen­
te, só quem tem caderneta de radiação em ordem pode en­
trar numa usina nuclear. É o Estado que determina isso.
Mas a direção da usina manda a lei à merda, e o pessoal
entra sem caderneta. O que já caracteriza um delito. Por­
tanto, deve-se tomar muito cuidado! Eles infringem as leis!
Por isso têm tanto medo da polícia... (Ri.)
ABDULLAH: Mas eles pagam bem pelos serviços, não
pagam?
A dler : Pagam, pagam bem. Mas é porque violam
as leis. A gente, não! A gente só viola as leis pela metade.
É por isso que eles pagam bem. E é uma coisa boa para
nós. Se as autoridades soubessem o que eles fizeram e o
que andam fazendo, botavam as mãos em cima deles ra-
pidinho. É uma merda mesmo! A gente está sempre apren­
dendo, todos os dias. Você não acha? (Ri.)
Abdullah : Eu também fiquei com medo quando os
guardas pegaram os colegas.
ADLER: Eu vi um dos policiais agarrar dois homens
de uma vez só. Assim, ó! (Faz o gesto.) Por pouco não
me levaram também. Daí eu ia ter que responder a um
monte de perguntas cretinas... E um homem na minha po­
sição não pode passar por isso. Não quero nada com a po­
lícia ou com qualquer outra coisa do gênero.
Abdullah : Lá no nosso país, na Turquia, não tem
leis como essa...
ADLER: Eu sei. Lá há muito mais liberdade. Mas
aqui... para cada coisinha existe uma lei. Muitas vezes você
comete uma infração sem saber. É assim que acontece na
Alemanha. E estão sempre atrás da gente, querendo apli­
car um castigo severo. Se toda essa nossa história viesse
à tona, o diretor geral da usina nuclear iria para a cadeia
por um ano e meio, no mínimo. É fogo! Por isso que a
gente deve prestar atenção para não ser pego lá dentro.
Para continuar com a ficha limpa... Bem, de qualquer mo­
do, não me aconteceria nada. Se houvesse algum delito,
o pessoal da usina é que o teria cometido. Foram eles que

258
me pediram para arrumar seis homens para um serviço de
reparo. Eu só arrumei os caras, mas nem quis saber o que
iam fazer com eles. Se iam deixar os fulanos entrar na usina
sem caderneta ou qualquer coisa do gênero, isso era da
conta deles. Não é verdade?
AbdullaH: Não entendo nada dessas coisas.
ADLER: Deixe para lá. De qualquer forma, aprende­
mos uma lição. Na próxima vez, nada de encontros na es­
tação de trem. Pode ter certeza. Merda!

Toda essa encenação foi conduzida do começo ao fim


como um pequeno “ acidente postulado". Mas talvez na
vida real estejam acontecendo “missões" desse tipo em me­
nor ou maior proporção. Se nossa encenação contribuir
para reforçar a vigilância da opinião pública e dos meios
de comunicação, chamando a atenção para esses mundos
secretos, valeu a pena o esforço. Adler, enquanto tal, não
está em jogo. Com toda a sua energia e a sua imaginação
criminosas, não passa de um medíocre. Nada seria mais
falso que pintá-lo como um demônio. Ele é um dos mi­
lhares e milhares de comparsas e beneficiários de um sis­
tema baseado na exploração sem limites e no menosprezo
pelo ser humano.

259
Ali Sinirlioglu é um dos milhares de imigrantes turcos que vivem
na República Federal da Alemanha. Para sobreviver, sujeita-se aos
mais duros trabalhos. Hostilizado, sofre toda espécie de discri­
minação. Mas, por trás desse operário marginalizado, esconde-se
Günter Wallraff, jornalista alemão de fama internacional. Disfar­
çado de turco, Wallraff passou dois anos registrando suas expe­
riências e recolhendo depoimentos para a elaboração de Cabeça
de turco, um relato assombroso sobre o cotidiano das minorias ét­
nicas na Alemanha. Ousado, polêmico, corajoso, recordista de ven­
da, Cabeça de turco é uma reportagem literária que põe a nu “ a
frieza glacial de uma sociedade que se julga bastante sensata, so­
berana, incontestável e imparcial” .

©
E O I T O R A

QTOBO
Günter Wallraff nasceu em 1942,
filho de um funcionário público
e de uma mulher proveniente da
alta burguesia. Em 1963 recu­
sou-se a prestar serviço militar
e foi convocado ao serviço psi­
quiátrico das Forças Armadas
Federais. Datam dessa época
suas primeiras reportagens.
Após vinte anos de intensa atua­
ção na área jornalística — e com
várias matérias editadas em li­
vros —, Wallraff ultrapassou o
status de escritor bem-sucedido
e tornou-se personagem da his­
tória contemporânea alemã. Ele
já se disfarçou em porteiro de
uma grande organização finan­
ceira sob suspeita de práticas
ilegais, camuflou-se de repórter
para apurar denúncias de mani­
pulação de informações e inves­
tigou a situação dos imigrantes
no papel de um operário turco.
Uma versatilidade que não ocul­
ta o ideal maior: desvendar as­
pectos pouco divulgados da rea­
lidade social.
Sucesso absoluto — mais de
dois milhões de exemplares ven­
didos na República Federal da
Alemanha — , Cabeça de turco
é a narrativa de uma incursão
nos sórdidos porões de uma ci­
vilização moderna.
O jornalista Günter Wallraff pre­
tendia escrever sobre a situação
de milhões de estrangeiros — em
especial turcos, iugoslavos, gre­
gos, espanhóis — que vivem na
Alemanha. Então, assumiu a apa­
rência de um turco, provavelmen­
te o ser humano que ocupa o lu­
gar mais baixo na escala de va­
lores da sociedade alemã con­
temporânea. Após intenso treina­
mento para aprender a falar ale­
mão como um turco, Wallraff
completou seu disfarce com len­
tes de contato escuras, peruca de
cabelos pretos, bigode, docu­
mentos falsos, e saiu a campo.
O resultado dessa investiga­
ção é Cabeça de turco, um do­
cumento inesquecível que de­
monstra até que ponto podem
chegar a incompreensão, a dis­
tância e o desprezo de um ho­
mem pelo seu semelhante.

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