MOTA, Alda
MOTA, Alda
MOTA, Alda
DOSSiÊ
INTRODUÇÃO
Quando, em 1978, a Revista Daedalus, da vista naqueles vinte anos, levantando problemas:
American Academy of Arts and Sciences, comple- Teria a revista documentado o pensamento de uma
tou 20 anos de circulação, foi organizado, geração? De duas? De mais? Ao mesmo tempo,
comemorativamente, um número especial dedica- expressava uma dúvida presente na Sociologia
do ao tema GERAÇÕES. Já na Introdução dos tra- desde Augusto Comte: Quando se poderia dizer
balhos, pontuavam-se questões até hoje pertinen- que uma geração termina e uma outra começa?
tes, ou mesmo não resolvidas, como o caráter eva- Passados outros vinte e muitos anos, pode-
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GÊNERO, IDADES E GERAÇÕES
imprecisão conceitual, porque, entre a idéia ma- Derivam daí as idades da vida, traduzidas
triz de gerar e as referências atuais a fases ou hie- em infância, juventude, maturidade e velhice, que
rarquias de produção de objetos tecnológicos, ali- atravessaram o imaginário dos últimos séculos,
nha-se um extenso rol de significados do termo registradas em ilustrações de publicações, capas
geração, perigosamente matizados pelo uso livre de livros, almanaques, depois também nomeadas
no cotidiano. ou tratadas como gerações, principalmente na
Na análise científica, entretanto, os usos atualidade. Essas idades tornaram-se também
desse termo têm sido tentativamente sintetizados ramos de uma Sociologia das Gerações Socio-
segundo três perspectivas ou sentidos principais logia da Juventude, Sociologia do Envelhecimen-
que, até certo ponto, se entrecruzam: coortes, to... Entretanto, considerar que denominações como
grupos etários e gerações propriamente ditas jovens ou velhos correspondem a gerações, em
(Attias-Donfut, 1988). vez de constituírem categorias ou segmentos
A expressão coorte prende-se à referência geracionais, introduz um outro sentido alternati-
estatística ou demográfica e basicamente designa vo, composto entre a segunda e a terceira acepções
um conjunto de indivíduos nascidos num mesmo expostas acima. Mas é o que mais abundantemen-
intervalo de tempo, expostos a um determinado te se encontra nas referências e discussões.
evento de caráter demográfico. Em princípio, ela O terceiro sentido, considerado quase una-
encerraria o sentido menos geral ou sociológico nimemente como o mais plenamente sociológico
dentre as três noções, embora não seja assim para o de geração, propriamente dita designa um co-
alguns estudiosos. Para Bengtson (1995), por exem- letivo de indivíduos que vivem em determinada
plo, geração refere-se ao âmbito da família, no sen- época ou tempo social, têm aproximadamente a
tido genealógico, e coorte é que seria usado no sen- mesma idade e compartilham alguma forma de
tido social mais amplo. experiência ou vivência.
A tradição antropológica é responsável pela Tanto o conceito como, sobretudo, uma es-
segunda acepção, que se expressa basicamente em timativa dos limites ou justificativa de vigência
termos de idades (grupos etários, categorias de ida- social de uma geração possibilidade de eficácia
de, classes de idade etc.) e se refere quase sempre política ou cultural no tempo, constroem-se ao
à filiação, guardando um sentido ou uma função longo de uma trajetória de reflexão sociológica que
classificatória que inclui tanto as posições na fa- vem de Comte a Mentré (1920) e amadurece com
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mília como na própria organização social mais Mannheim (1928). Com limites de 30 anos, que se
ampla. Essa acepção tangencia também outros sen- reduzem a 25, 20, talvez a 10, e acompanhando o
tidos não exclusivamente cronológicos, quando modelo da aceleração tecnológica sobre os modos
enfatiza atributos culturalmente definidos, como sociais de existência e experiência, as gerações se
na proposta de Meyer Fortes (1984), de estágios de delimitam em períodos cada vez mais curtos.
maturação. Mannheim (1928, p. 134) define geração em
Essa classificação primeira e fundante que vários momentos e etapas do seu trabalho, sempre
as idades alcançam em interseção com sexo e gê- acentuando seu sentido histórico: ... indivíduos
nero (Balandier, 1977) permanece na sociedade con- que pertencem à mesma geração [...] estão ligados
temporânea e se mantém como gerações na família [...] a uma posição comum na dimensão histórica
e (ou) etapas no curso da vida, idades biossociais do processo social., o que significaria uma predis-
para assunção de direitos e deveres que são cobra- posição para ...um certo modo característico de
dos, permitidos ou admitidos, mas também passí- pensamento e experiência e um tipo característico
veis de contestação, tanto nas relações cotidianas de ação historicamente relevante. (Mannheim,
como nas normas jurídicas e prescrições oriundas 1928, p. 135-136). Embora esse seja o sentido bá-
do Estado. sico de sua concepção, Mannheim (1928, p. 137)
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não desvincula, evidentemente, geração e grupo indo nas últimas décadas quando, cada vez mais
de idade: freqüentemente, coexistem quatro e até cinco gera-
ções na mesma família, pois as gerações não se
O fenômeno social geração nada mais repre-
senta do que um tipo particular de identidade de substituem, se sucedem (Attias-Donfut, 1993) a
situação de grupos de idade mergulhados num reflexão de Mannheim constitui-se em importante
processo histórico social.
ponto de partida analítico e inspiração para a
Situa, enfim, a base biológica da vida hu- pesquisa.
mana, para reforçar o sentido histórico dos fenô- Tendo enunciado os pressupostos básicos
menos sociais: de uma teoria de gerações até hoje a mais completa
Na verdade, o traço mais surpreendente do pro- e elucidativa, Mannheim dedicou-se, nesse cam-
cesso histórico parece ser o de os fatores biológi- po, concretamente, a estudos sobre a juventude;
cos básicos operarem duma forma latente e só
poderem ser compreendidos através dos fenô- aos jovens como agentes naturais da mudança
menos sociais e históricos que constituem uma social, ou aos jovens problematizados como mem-
esfera acima deles. (Mannheim, 1928, p. 163).
bros de grupos ou facções políticas radicais.
Expostas alternativas de definições de gera- (Mannheim, 1971).
ção que, em boa parte, confluem duas ques- E será sobre a juventude que todos, duran-
tões básicas imediatamente se impõem e guardam te largo tempo, se debruçarão, a exemplo de
intensa atualidade. Observando-se que o mesmo Eisenstadt (1976), que longa e amplamente analisa
contexto social não afeta igualmente todos os indi- os jovens e os movimentos juvenis, não em ter-
víduos de um grupo de idade e vivência classifi- mos centrais de geração, como o título de seu livro
cado ou autoidentificado como geração , verifica- clássico (De Geração a Geração) promete.
se que segmentos dessa geração podem assumir Eisenstadt (1976) centra-se em grupos etários e em
posturas e caminhos sociais diferentes, ou até opos- graus etários, no geral construindo uma panorâ-
tos. É o caso de padrões ou de movimentos cultu- mica de grupos jovens em suas formas básicas de
rais que se manifestam diversamente na mesma organização e inter-relação com as gerações es-
época, ou de movimentos políticos, uns radicais sas últimas no sentido de posições na família. Pre-
outros conservadores, cada um reunindo indiví- ocupado em analisar a função dos grupos etários
duos de idade aproximada num cenário social se- na interação social, Eisenstadt (1976, p.32) discerne
melhante. uma possível origem e razão de ser desses grupos,
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GÊNERO, IDADES E GERAÇÕES
mas sociais. (Eisenstadt, 1976, p. 29), os quais lerado crescimento relativo, um problema social,
ensejam a constituição de grupos etários homogê- do mesmo modo como problemas teriam sido
neos e intermedeiam a transição da família para a os jovens contestadores da década de 60 e os me-
sociedade mais ampla. nores em erro social dos anos70.1
Se, em fases históricas anteriores, os gru- Nossa época é, portanto, também generation
pos etários já tinham afluência ou visibilidade, na minded, inquieta entre dois extremos geracionais.
contemporaneidade, principalmente nas cidades, Todos incomodam, ou parecem incomodar. A
grassam as tribos (Maffesoli, 1987; Machado Pais, demografia assinala que há proporcionalmente cada
2004), que dão vazão às mais variadas formas de vez menos crianças (o que aponta para uma prová-
expressão de pertencimento grupal, atingindo vel dificuldade de reposição populacional no fu-
modificações inusitadas até do próprio corpo. Ba- turo). Mas também anuncia o pior, pois os ve-
sicamente, os jovens diferenciam-se cuidadosamen- lhos aumentam em número e longevidade, o que
te das gerações mais velhas, dividindo-se estas en- pode levar à quebra do sistema de Previdência e
tre a crítica a eles e um aprendizado imitativo... pôr em perigo a própria reprodução social. Estes
Entretanto, com a ampliação significativa das for- são os mais recentes problemas sociais. A gera-
mas de sociabilidade não familial, essa tendência ção que inquieta, enquanto vai se desdobrando
atual à formação ou agregação em grupos etários em anos e diversidades, e ensejando uma nova
vem atingindo também os mais velhos, que pas- questão teórica, também existencial e política: en-
sam a constituir objeto recente de visibilidade so- tre sessenta e cento e dez anos de vida, que per-
cial e exposição ao consumo capitalista de servi- curso geracional pode ser traçado? Quantas gera-
ços, paralelamente à ampliação de uma esfera de ções de velhos estão coexistindo? Qual a
liberdade individual, em expressão coletiva nos contemporaneidade possível entre elas?
grupos de terceira idade. Entre percepções e tentativas de definir se-
Mas é ainda com foco preciso nos grupos melhanças e diferenças entre velhos jovens e
jovens que se começa a discutir geração no Brasil velhos velhos, principalmente quando se pes-
amplamente, até nas décadas de 60 e 70 do quisa e teoriza sobre uma categoria de idade, geral-
século passado, o que corresponde a uma tendên- mente uma das duas antes referidas, e escassa-
cia praticamente mundial, caracterizada por um afã mente sobre as relações entre as gerações, é impor-
interpretativo diante dos numerosos e amplos tante ter em conta a observação de Lenoir (1998, p.
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Inevitável torna-se, portanto, o estudo das Assim é que Andréa Moraes inicia seu tex-
relações entre gerações e das condições sociais em to assumindo diretamente essa direção teórica,
que elas estão se dando, o que incluirá, além dis- dialogando com conhecido artigo de Stolcke
so, a necessária consideração das interseções com (1991) sobre sexo, gênero e cor. Expõe alguns re-
outras categorias relacionais abrangentes, como sultados de pesquisa que demonstram não apenas
gênero e classe social. o incessante movimento comparativo que está sem-
As gerações, como as classes sociais, não pre sendo feito entre situação de gerações presen-
existem isoladamente, mas em referência mútua, tes e as de igual idade ou situação no passado,
contraposição ou até oposição umas às outras. Uma mas, igualmente, um contínuo debruçar-se, tam-
geração é ou se torna aquilo que o jogo de poder bém comparativo, por parte de cada personagem
permite nas relações com as outras. Esse movi- geracional idoso sobre o seu próprio passado de
mento ocorre segundo as condições sociais vigen- jovem.
tes em cada momento ou tempo social e o modo Retomando a incessante correlação entre
possível de apreensão e resposta dos atores soci- gênero e geração e afirmando uma inegável pree-
ais geracionais. É preciso lembrar sempre que, no minência social das assimetrias de gênero, Moraes
interior de cada grupo geracional ou de idade, cons- deixa uma dupla questão final para reflexão:
troem-se representações, identidades e situações
[...] se mudanças nos padrões das trajetórias indi-
sociais que se confrontam com as de outros gru- viduais de homens e mulheres (mudanças nos
pos ou categorias sociais (Britto da Motta, 1999). contratos entre os gêneros) corresponde a mu-
danças nos contratos entre as gerações, e qual é a
Ao mesmo tempo, essas relações realizam-se em medida dessa correspondência.
articulação com condições identitárias definidas a
partir de outras categorias relacionais, principal- Na apresentação de resultados de pesqui-
mente gênero, classe social e etnia. sas sobre jovens estudantes universitárias, Myriam
Mas este é um enfoque teórico comumente Lins de Barros também articula analiticamente con-
esquecido nos estudos e pesquisas sobre idades dição de gênero e de geração em determinada situ-
e gerações. Ao mesmo tempo, naqueles trabalhos ação de classe. Compara gerações em suas rela-
que se centram nas relações de gênero (como, nes- ções e mudanças atuais: mulheres jovens de hoje
te número, é pontuado por Andréa Moraes em re- primeira geração de universitárias na família,
lação ao feminismo), a condição etária ou geracional aprendendo a cidade com suas mães e avós
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GÊNERO, IDADES E GERAÇÕES
so ou continuidade de trabalho para os mais ido- as empresas em que trabalham que esperam deles
sos, ao mesmo tempo matizada pelo fato de que o um comportamento adequado ao estereótipo em
domínio, por esse contingente de trabalhadores, de termos de gênero, tal como nas igrejas, na pes-
uma experiência profissional lhes permite criar quisa de Scott e Cantarelli.
meios autônomos de sobrevivência. Do ponto de Refletindo sobre os resultados das várias
vista das relações de gênero, o observado é que as pesquisas apresentadas, atingidos através de dife-
mulheres são pouco presentes nas atividades em rentes caminhos, encontramos, mais uma vez, no
estudo vendedores ambulantes e feirantes su- percurso das gerações, a medida e o traçado possí-
postamente pelo fato de serem exercidas em local vel da mudança nos modos de vida de cada época.
público, ou nas ruas, com exposição a vários tipos
de riscos. Vê-se, então, mais uma vez, que o tem-
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