O Princípio Do Servir Na Perspectiva Bíblica E Histórica
O Princípio Do Servir Na Perspectiva Bíblica E Histórica
O Princípio Do Servir Na Perspectiva Bíblica E Histórica
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RESUMO
O artigo tem por objetivo apresentar um estudo do texto bíblico, no Antigo
e Novo Testamentos para investigar as definições do valor do servir ao longo
das Escrituras, além de observar como esse princípio estava presente nas
diversas ações narradas na história bíblica e na história contemporânea. A
partir desse estudo, o artigo apresenta sugestões para organizar um sistema de
ensino e treinamento a ser seguido pela igreja local que seja capaz de receber
o indivíduo voluntário e desenvolver suas capacidades e percepções a fim de
que este se torne um verdadeiro servo, e desenvolva um ministério excelente.
Palavras-chave: Serviço. Servo. Voluntário. Igrejas. Bíblia.
1
O autor é formado em Teologia pela FABAPAR – Faculdades Batista do Paraná e em Engenharia
Agronômica pela UNESP – Universidade do Estado de São Paulo. É mestre em Teologia Pastoral
pela FABAPAR. Trabalha como pastor na Primeira Igreja Batista em Ijuí e como professor na
Faculdade Batista Pioneira. E-mail: lebedenco@gmail.com.
ABSTRACT
The article has a target to present a study of the biblical text, in the Old
and New Testaments to investigate the definitions of the value of serving
throughout the scriptures, in addition to observing how this principle was
present in the various actions narrated in biblical history and contemporary
history. Based on this study, the article presents suggestions for organizing a
teaching and training system to be followed by the local church that is able to
receive the individual volunteer and develop their skills and perceptions so
that they become a true servant, and develop an excellent ministry.
Keywords: Serving. Servant. Volunteer. Churches. Bible.
INTRODUÇÃO
Um verdadeiro servo é artigo raro em igrejas da atualidade, onde cada
pessoa quer ter sobretudo direitos, a despeito de seus deveres. Mas quando se
estuda a história bíblica e contemporânea da igreja cristã, percebe-se que esta
foi concebida a partir de memoráveis servos de Deus. Sem eles, a história não
teria acontecido e não teria chegado até nós.
O objetivo desse artigo é primeiramente apresentar o conceito e os aspectos
práticos do princípio do “serviço” na Bíblia. Para isso, o trabalho pretende
investigar alguns textos do Antigo e do Novo Testamento, e encontrar palavras
do texto original que são traduzidas por “serviço” na língua portuguesa. O
passo seguinte é verificar o contexto para descobrir o sentido de cada palavra
e sua aplicação na construção do conceito bíblico.
Na sequência, o trabalho apresentará exemplos de serviço no Antigo e
Novo Testamento, verificando o sentido da ação em cada um dos momentos
dos textos da Revelação. Esses exemplos podem ser de grupos gerais, como os
sacerdotes e os profetas ou de indivíduos específicos, como o apóstolo Paulo. A
intenção é verificar como o conceito de serviço foi se desenvolvendo ao longo
do texto bíblico até chegar aos nossos dias, e como podemos desenvolver uma
consciência e ação biblicamente sadia na vida dos voluntários atuais da igreja.
A principal palavra para designar serviço no idioma hebraico é a palavra
dbF:8 (‘ābad2), que, segundo Champlin, aparece cerca de cento e vinte vezes
2
A transliteração dos termos escritos em hebraico, será feita a partir do Dicionário internacional
de Teologia do Antigo Testamento e as dos termos escritos em grego, a partir do Dicionário
internacional de Teologia do Novo Testamento.
3
CHAMPLIN, 2002, p. 176.
4
In HARRIS, 1998, p. 1065.
5
In HARRIS, 1998, p. 1066.
6
In HARRIS, 1998, p. 1256.
7
HARRIS, 1998, p. 1257.
8
In HARRIS, 1998, p. 1621.
9
In HARRIS, 1998, p. 1725.
10
HARRIS, 1998, p. 1744.
11
CHAMPLIN, 2002, v. 6, p. 176.
12
MARTINS, 2016, p. 23.
13
MARTINS, 2016, p. 23.
14
MARTINS, 2016, p. 23.
15
MARTINS, 2016, p. 23.
16
In COENEN, 1983, p. 448.
17
In COENEN, 1983, p. 448.
18
In COENEN,1983, p. 449.
19
In COENEN, 1983, p. 449.
20
CHAMPLIN, 2002, p. 176.
21
SANCHEZ, 2015, não paginado.
22
SCHULTZ, 1995, p. 44.
23
VAUX, 2003, p. 384.
24
SICRE, 2016, p. 394.
25
SICRE, 2016, p. 394.
26
SICRE, 2016, p. 394.
27
PACKER; TENNEY; WHITE, 1982, p. 156-157.
28
VAUX, 2003, p. 385.
29
VAUX, 2003, p. 386.
30
VAUX, 2003, p. 386.
31
WENHAM, 1991, p. 81.
32
SCHULTZ, 1995, p. 62.
33
SCHULTZ, 1995, p. 62.
34
SICRE, 2016, p. 394-395.
35
CRAIGIE, 1990, p. 329.
36
CRAIGIE, 1990, p. 330.
37
SCHULTZ, 1995, p. 63.
38
RAD, 2006, p. 238.
39
GOWER, 2002, p. 366.
40
GOWER, 2002, p. 366.
41
WIERSBE, 2006, p. 385.
42
WIERSBE, 2006, p. 385.
43
WIERSBE, 2006, p. 385.
44
RAD, 2006, p. 239.
aplicação. Ou seja, eram eles os responsáveis por fazer com que a Lei pudesse
ser praticada no cotidiano da vida de cada pessoa. Eles também tinham a
responsabilidade, em parceria com os sacerdotes, de preparar os textos que
seriam lidos e recitados nas grandes festas de Israel, devido ao conhecimento
e autoridade que possuíam.
Havia ainda uma responsabilidade curiosa: segundo Rad, ainda na época
do tabernáculo, os levitas tinham um lugar especial para armar suas tendas no
acampamento, depois que o tabernáculo havia sido montado. Nesse momento,
os levitas acampavam em um círculo imediatamente próximo, rodeando todo
o tabernáculo, assumindo assim “uma função protetora, até mesmo expiadora,
impedindo que nenhuma “ira” sobreviesse à comunidade”.45
O princípio do serviço estava sendo aprendido pelo povo, e o ofício
sacerdotal foi uma das maneiras que Deus usou para ensinar. Contudo,
existiram outros exemplos do texto bíblico do Antigo Testamento que
mostraram o desenvolvimento do princípio a partir de outras pessoas, como
será mostrado no próximo item.
45
RAD, 2006, p. 244.
46
MCNAIR, 1949, p. 237.
47
WALTKE, 2015, p. 880.
48
WALTKE, 2015, p. 880.
49
KIDNER, 1985, p. 93.
50
KIDNER, 1985, p. 93.
51
BARBER, 1982, p. 43.
52
BARBER, 1982, p. 45.
53
KELLY, 1978, p. 50.
54
MESQUITA, 1974, p. 257.
sua força voluntária de trabalho. Cada grupo tinha uma tarefa a cumprir e
sabia muito bem disso. Eram ao todo 38 grupos de trabalho que serviam
voluntariamente na obra. Segundo o mesmo autor55, a tarefa de cuidar da
alimentação era feita em alguns casos pelos próprios voluntários e em outros
por Neemias e sua equipe. Na verdade, o que aconteceu, segundo o autor, foi
um grande mutirão.
Dessa maneira, Deus estrategicamente ensinava nesse momento o povo
“simples” a servir. Não eram sacerdotes, levitas ou profetas, era o povo. Na
forma de mutirão, o valor do princípio de servir a Deus e às pessoas era
vivenciado e assimilado pelo povo de Israel. O próximo item vai tratar de mais
um exemplo de como o conceito foi sendo desenvolvido e praticado.
55
MESQUITA, 1974, p. 263.
56
KRÜGER; KUNZ, 2016, p. 12.
57
WALTKE, 2015, p. 900.
58
SEUBERT, 1992, p. 29-30.
59
KRÜGER; KUNZ, 2016, p. 10.
para”) e “phemi” (que significa “falar”). Ou seja, profeta significa “aquele que
fala por alguém”. Isso se alinha com a ideia de “servo do Senhor”, pois o profeta
fala o que Deus o mandou falar, e não ideias de sua própria imaginação.
Para Bruce60, a obediência dos profetas também era uma marca desses
“servos do Senhor”, e contribuía para o entendimento de que estavam ali para
exercer as orientações de Deus. O profeta precisava entregar a mensagem
fielmente, ainda que não tivesse sendo ouvido ou assimilado. Krüger e Kunz61
lembram que o fato do povo não receber a mensagem ou não obedecer como
resultado, não interferia em nada na transmissão da mensagem. O profeta,
como servo do Senhor, tinha que obedecer, mesmo que os ouvintes fossem
rebeldes ou hostis.
Scott62 descreve o senso comum das pessoas em olhar para os profetas
como homens de gênio incomum, individualistas e reformadores radicais.
Mas a grande verdade é que eles foram os servos e enviados do Deus vivo,
homens a quem Iahvé chamou e falou ao ouvido. Como servos, não tinham
outra opção, senão serem instrumentos do propósito divino. Krüger e Kunz63
afirmam que a Palavra de Deus se tornava viva na experiência dos profetas e
então eles retratavam-na em suas próprias vidas.
A partir da análise dos exemplos citados e da etimologia da palavra serviço
a partir do hebraico, pode-se chegar ao entendimento de que o serviço no
Antigo Testamento foi instituído por Deus em um caráter infanto didático.
Havia princípios e conceitos a serem ensinados por Deus e aprendidos por
um povo que estava sendo formado dentro de uma nova cultura religiosa
monoteísta e guiado por um Deus vivo e presente, diferente de qualquer
situação com que haviam tido contato até então.
Embora seja possível ver um desenvolvimento desse conceito na cultura
geral do povo de Israel, não foi no Antigo Testamento que o conceito
atingiu seu pleno sentido. Por isso é necessário continuar o estudo no Novo
Testamento, para conseguir acompanhar esse desenvolvimento. É o que será
feito no próximo item.
60
BRUCE, 2009, p. 1127.
61
KRÜGER; KUNZ, 2016, p. 17.
62
SCOTT, 1968, p. 50.
63
KRÜGER; KUNZ, 2016, p. 14.
64
In COENEN, 1983, p. 450.
65
In COENEN,1983, p. 450.
66
In COENEN, 1983, p. 451.
67
GUSSO, 2004, p. 83-84.
68
PIPER, 2005, p. 31.
69
MELLO, 2017, p. 418.
70
BOCK, 2006, p. 30.
71
BOCK, 2006, p. 30.
72
HOLLADAY, 2009, p. 263.
tornar-se importante entre vocês deverá ser servo”. O princípio era: “Maior
é o que serve”. Jesus, de maneira graciosa, entendeu o desejo humano de
ser grande, mas o direcionou a ações de bondade e serviço. Dificilmente as
pessoas conseguem associar humildade com grandeza, mas Jesus mostrou
isso o tempo todo, assumindo a condição de servo. Holladay73 afirma que
Jesus ensinava que a verdadeira grandeza vinha do serviço, e este ponto foi um
assunto constante em seu ensino. Mello74 afirma que esse ensino é subversivo,
pois inverte a pirâmide social típica do sistema escravagista vigente na época
de Jesus, no qual os grandes são servidos.
Wilkes75 observa que Jesus usou sua condição de servo para influenciar
e liderar as pessoas, ensinando um novo e revolucionário paradigma de
liderança:
Para Jesus, o modelo de liderança era o serviço. Ele jamais
serviu a si mesmo. Num primeiro momento, liderou
como servo do Pai Celestial, o qual lhe dera a missão. Se
observarmos a vida de Jesus de um nível mais elevado,
veremos que tudo o que ele fazia estava a serviço de sua
missão. Sua missão pessoal era servir, não à sua própria
vontade, mas à vontade do Pai. Jesus disse: ‘Porque eu
desci do céu, não para fazer a minha própria vontade; e
sim, a vontade daquele que me enviou’.76
Wilkes77 fala a respeito da condição principal de Jesus para ser um servo:
Ele tinha um Senhor. Ele servia ao Pai. Isso é um ensinamento importante
quando se está estudando a condição de servo de Jesus. O autor diz, a partir
disso, que ninguém pode realmente ser um servo, se não tiver um Senhor para
servir. A obviedade dessa afirmação contrasta com a realidade das pessoas que
querem ser servas, mas não querem ter um Senhor. Outra condição ensinada
por Jesus é que, para ser servo, alguém precisa se humilhar. No texto bíblico
do livro de Filipenses 2.5-11, Paulo explica como isso aconteceu com Jesus:
Tenham entre vocês o mesmo modo de pensar de
Cristo Jesus, que, mesmo existindo na forma de Deus,
não considerou o ser igual a Deus algo que deveria ser
retido a qualquer custo. Pelo contrário, ele se esvaziou,
assumindo a forma de servo, tornando-se semelhante aos
73
HOLLADAY, 2009, p. 263.
74
MELLO, 2017, p. 419.
75
WILKES, 1999, p. 22.
76
João 6.38 - ARA.
77
WILKES, 2005, p. 9.
78
Filipenses 2.5-11.
79
HOLLADAY, 2009, p. 305.
80
WILKES, 1999, p. 26.
81
CHAMPLIN, 2001, p. 2937.
82
ARCHER, 2001, p. 55.
83
RIDDERBOS, 2006, p. 420.
sofredor que sofreu calado para que seu povo pudesse ser abençoado. Esse
sofrimento, segundo Ridderbos84, é comparado ao que os escravos hebreus
foram submetidos no Egito, e tudo isso, como um cordeiro que é levado ao
matadouro. A condição de servo é levada ao extremo.
Até na eternidade, Cristo continuará servindo ao seu povo, segundo Piper.85
Nessa ocasião, ele não repartirá com ninguém a glória de ser o doador da graça.
No texto bíblico do livro de Lucas 12.37, em uma parábola, Jesus se descreve
como aquele que se reclinará à mesa e servirá os seus: “Felizes os servos cujo
senhor os encontrar vigiando, quando voltar. Eu lhes afirmo que ele se vestirá
para servir, fará que se reclinem à mesa, e virá servi-los” Ele será o doador da
graça e receberá sua glória por isso. Seguindo na análise no Novo Testamento,
na sequência será observado o exemplo de servir do apóstolo Paulo.
84
RIDDERBOS, 2006, p. 432.
85
PIPER, 2005, p. 100-101.
86
WARREN; WIERSBE, 2013, p. 31.
87
WARREN; WIERSBE, 2013, p. 33.
que cuida dos filhos sugere o cuidado e atenção que Paulo dedicou aos seus
“filhos espirituais”. Uma mãe cuidadosa não se afasta do bebê e nem o entrega
a babás. Paulo só agiu dessa maneira, pois entendia a condição de servo em
relação a Jesus Cristo. Warren e Wiersbe88 ainda enfatizam o cuidado com
o bom exemplo que Paulo tinha, afinal, ele sabia que, como qualquer pai,
precisava ensinar através de um bom testemunho, muito mais importante que
por palavras. No texto bíblico do livro de 1 Tessalonicenses 2.10 ele diz: “Tanto
vocês como Deus são testemunhas de como nos portamos de maneira santa,
justa e irrepreensível entre vocês, os que creem”.
Mello89 afirma que Paulo entendia que seu ministério era como uma
resposta à graça que lhe foi outorgada por Deus, para ser ele “ministro de
Cristo Jesus entre os gentios”. Esse fato o motivou cada vez mais a ser um servo
aos santos. Ele olhava para o exemplo de Jesus, que se esvaziou e assumiu a
condição de servo, e o imitava, se descrevendo sempre como servo de Jesus
Cristo. Mesmo quando a comunidade dos santos era hostil, como aconteceu
na igreja de Corinto, ele continuou a servir, entendendo que o fundamento do
servir é o amor a Deus e entender o senhorio de Jesus Cristo.
Caliguire90 diz que Paulo “nunca buscou as luzes da ribalta”, querendo
dizer que nunca buscou para si mesmo outro papel que não o de servo do
Senhor. Ele sabia o que era e para o que foi chamado. Ele entendia que, como
servo, era parte do trabalho de Deus e não a essência. Por isso, ao entender
que seu trabalho havia terminado em uma determinada região, passava de
boa vontade para outros irmãos, sem qualquer apego exagerado. Caliguire
também lembra que Paulo estava sempre orientando suas ovelhas a serem
servos.91 Quando escreve aos Gálatas, no texto bíblico encontrado no verso
5.13, os aconselha a “serem servos uns dos outros, pelo amor”. O desafio era
encontrar a maior e mais completa liberdade, justamente na medida que se
tornam servos uns dos outros e do Senhor. Esse é o princípio da liderança-
servo: aquele que escolhe servir aos outros enquanto lidera. A escolha não
é usar as pessoas para alcançar o sucesso pessoal, mas ajudar os outros a se
tornarem bem-sucedidos.
88
WARREN; WIERSBE, 2013, p. 34-35.
89
MELLO, 2017, p. 421.
90
CALIGUIRE, 2004, p. 58.
91
CALIGUIRE, 2004, p. 187.
Esse entendimento de servo chega a tal ponto que Paulo prefere receber
o sofrimento a fim de que seus irmãos sofram menos! É o que escreve
Bruce.92 Segundo o autor, quando Paulo fica contente ao receber sua parte
nos sofrimentos de Cristo, não mostra apenas que o apóstolo tinha uma
excelente autoestima, mas que ele acreditava que quanto mais recebesse esses
sofrimentos pessoalmente, menos sobraria para os seus irmãos.
Por fim, Paulo tinha uma grande expectativa quando olhava para frente
e enxergava o final de sua vida. Ele não esperava receber pagamentos ou
comemorações que o engrandecessem e fizessem dele um homem notável e
bem-sucedido segundo os padrões da sociedade. Segundo Caliguire93, tudo o
que ele esperava era encontrar o próprio Deus e ouvir dele a seguinte frase:
“Muito bom, servo bom e fiel”. Quando Paulo, ao fim de sua vida, diz “Combati
o bom combate, completei a carreira, guardei a fé”, citando o texto bíblico do
livro de 2 Timóteo 4.7, certamente está se lembrando do que fez na qualidade
de servo de Jesus Cristo.
É em Paulo e sobretudo em Jesus que se encontra a plenitude do conceito
de serviço na Bíblia. Ainda que na língua original do texto bíblico do Novo
Testamento haja também variações de palavras traduzidas como serviço na
língua portuguesa, o sentido de cada uma foi aprofundado e chegou ao seu
significado máximo em Jesus Cristo, que veio como Servo, para servir.
A partir desse sentido amplo e profundo ensinado por Jesus, pode-se fazer
uma aplicação mais precisa do sentido atual da palavra e também do valor
espiritual do serviço enquanto elemento presente no processo de santificação
de cada discípulo de Jesus. No próximo item, o trabalho pretende mostrar
como a igreja primitiva entendeu esse ensino e o aplicou em sua vida cotidiana.
92
BRUCE, 2003, p. 133.
93
CALIGUIRE, 2004, p. 223.
94
GUSSO; GUSSO, 2015, p. 37.
viúvas. Na ocasião citada no texto bíblico do livro de Atos 6.1-7, pode-se ver
uma igreja comprometida com o servir, e de maneira excelente. A princípio,
parece um trabalho simples que poderia ser feito por qualquer um, mas
quando se verifica o cuidado com o qual a escolha das pessoas foi realizada,
pode-se ver que não era um trabalho que a igreja primitiva acreditava que
podia ser feito por “qualquer um”.
Allen95 fala da reputação dos judeus por fazer boas obras em favor dos pobres
e viúvas. A igreja primitiva, formada por, entre outros, judeus convertidos,
perpetuaram essa prática, e fizeram das viúvas um grupo reconhecido pela
igreja. Segundo Allen96, “ninguém pode ser tão indefeso como uma viúva”,
então a igreja se organizou para cuidar desse grupo. E nessa organização,
separou homens de boa reputação e cheios do Espírito Santo e de sabedoria.
Para realizar esse serviço, mesmo parecendo algo simples, eram necessários
homens preparados: verdadeiros servos do Senhor.
Gusso e Gusso97, analisando o texto bíblico de Atos 6.1-7, informam que
cada pessoa que seria escolhida como servo para executar o trabalho de cuidar
das viúvas precisava apresentar as seguintes qualidades:
a. Boa reputação: pessoas que tinham uma boa fama na cidade, portanto
confiáveis perante o povo;
b. Cheios do Espírito: pessoas espirituais, que eram controladas pelo
Espírito Santo. Esses servos deveriam mostrar com suas ações que a
presença de Deus estava em suas vidas;
c. Cheios de sabedoria: os apóstolos sabiam que, mesmo uma tarefa
simples e urgente, precisava de homens que tinham a capacidade de
agir com sabedoria e de forma inteligente;
d. Cheios de fé: homens e mulheres que tinham uma confiança inabalável
no Senhor.
Segundo Marshall98, era um costume judaico escolher uma comissão
de sete homens para executarem alguma tarefa. Mas o mais notável nessa
passagem é o critério com o qual foram escolhidos (citada acima) e a forma
como foram empossados, seguindo um paralelo com a nomeação de Josué. A
95
ALLEN, 1984, p. 64.
96
ALLEN, 1984, p. 64.
97
GUSSO; GUSSO, 2015, p. 33-36.
98
MARSHALL, 1988, p. 123.
igreja estava entendendo que aquela tarefa de servir às pessoas era algo muito
importante e por isso merecia tal cuidado.
Gusso e Gusso99 interpreta a perícope do texto bíblico do livro de Atos 6.1-7
do ponto de vista do serviço e chega à conclusão que a igreja de Atos era uma
igreja na qual o serviço uns aos outros tinha importância fundamental, pois:
a. A igreja cuidava das necessidades dos seus: eles se preocupavam
em cuidar dos membros necessitados, no caso, das viúvas. Naquele
momento, havia muitas viúvas em Jerusalém, pois voltavam da
Dispersão para viver seus últimos dias na cidade. Era uma necessidade
daquele cenário, e a igreja se empenhou em buscar soluções;
b. A igreja cuidava das questões materiais: a expressão usada no texto
bíblico do livro de Atos 6.2 - “servir as mesas” - pode ser também
entendida como sendo a administração das ofertas recolhidas.
Isso mostra o caráter prático dos ministérios da igreja da época.
Se houvesse necessidade de servir às pessoas, isso aconteceria em
qualquer âmbito da demanda, e não apenas no espiritual. Mas é bom
lembrar que em todos eles, as pessoas escolhidas para desempenhar a
missão precisavam ser bem preparadas, como visto acima;
c. A igreja cuidava das necessidades dos de fora: o texto lido mostra que
não há uma importância maior no cuidado com os membros internos
em relação às pessoas de fora. Tanto um quanto o outro precisava de
cuidado e para isso pessoas espirituais e bem preparadas deveriam
estar prontas para servir.
Gower100 também fala das dificuldades que as mulheres sofriam ao ficarem
viúvas nos tempos bíblicos. A viúva não tinha direito à herança do falecido,
nem tampouco tinha opções de trabalho digno. A estas, restava casar com
um parente próximo ou trabalhar como prostitutas. Por isso, segundo Gower,
as igrejas tinham listas com os nomes das viúvas com mais de 60 anos com
fins de auxiliá-las em suas necessidades. Paulo, no texto bíblico do livro de 1
Timóteo 5.3-11, recomenda que a igreja liderada pelo jovem pastor sustente as
viúvas que não tivessem possibilidade de serem sustentadas por suas famílias.
Tenney, Packer e White Jr101 citam a atividade de serviço da igreja no
99
GUSSO; GUSSO, 2015, p. 37-43.
100
GOWER, 2002, p. 74.
101
TENNEY; PACKER; WHITE Jr, 2001, p. 20.
102
MUELLER, 1991, p. 238.
103
BÍBLIA, 2007, p. 808.
104
MUELLER, 1991, p. 239.
105
MUELLER, 1991, p. 239.
106
SANTOS, 2016, p. 33-34.
107
MUZIO, 2010, p. 118.
Mueller108 deixa claro que o grande propósito dos dons é o serviço dentro
da comunidade cristã: a igreja. Como cada discípulo de Jesus recebe ao
menos um dom, esse fato faz com que todos sejam considerados igualmente
importantes uns para com os outros. A igreja primitiva entendeu isso, e
todos serviam uns aos outros, dentro de suas próprias capacidades naturais
e sobrenaturais. Mueller discorre sobre o assunto, explicando que o termo
usado no texto bíblico de 1 Pedro 4.10 para descrever a pessoa que vai executar
o serviço é oikonomoi, traduzido como despenseiro:
[...] um termo técnico referente ao mordomo, o
administrador da casa (lembrando que “casa” é a oikos
do mundo da época, uma instituição social fundamental,
a “comunidade doméstica” que incluía família e
trabalhadores, bem como os hóspedes). O oikonomos
era o encarregado de atender as necessidades de todos,
administrando os bens nessa direção. É uma bela figura
para o papel dos cristãos na igreja. (e note-se que todos
o são). Todos na “casa de Deus” têm necessidade de
“graça”, e todos são chamados a suprir essa necessidade
mutuamente. E não devemos espiritualizar em demasia a
questão, pois essas necessidades muitas vezes serão bens
materiais e rotineiras. E o chamado ainda é para ser bons
despenseiros [...].109
O quadro a seguir mostra a evolução do termo servo nos exemplos citados,
desde o Antigo, até o Novo Testamento:
QUADRO 1: O desenvolvimento do sentido da palavra serviço na Bíblia110
Palavra no
Sentido Situação usada Texto
original
‘ābad Serviço militar Sacerdotes Números 8
Ajudantes de
‘ābad Serviço Neemias 3
Neemias
Escravo
doulos Paulo Romanos 1
espontâneo
diaconos Servo Paulo 1 Coríntios 3
Escravo
doulos Jesus João 13
espontâneo
diaconia Serviço amoroso Jesus Mateus 20
108
MUELLER, 1991, p. 239.
109
MUELLER, 1991, p. 239-240.
110
FONTE: Adaptado pelo autor
111
MARTINS, 2016, p. 28.
112
MELLO, 2017, p. 419.
113
MARTINS, 2016, p. 28-29.
114
VATERS, 2017, não paginado.
que essas podem oferecer à pessoa, mas pensando no que essa pessoa pode
oferecer como serviço. Não buscando uma igreja que atenda bem a alguém,
mas que leve seus membros a servirem uns aos outros. Segundo Vaters,
muitas igrejas se esforçam para oferecer excelência técnica, quando deveriam
se preocupar em oferecer vida, através do serviço cristão legítimo.
Mas qual é a grande motivação que deve impulsionar esse serviço? Mello115
afirma que a compaixão e o servir ao próximo é o motor da ação diaconal.
Usando a parábola do bom samaritano, contada por Jesus e registrada no
texto bíblico do evangelho de Lucas, capítulo 10, Mello afirma:
[...] o evangelho de Lucas retrata Jesus como aquele que
veio em favor dos pobres e excluídos: crianças, mulheres,
viúvas, gentios e doentes ganham atenção especial.
[...] A perícope inicia quando um certo intérprete da
Lei questiona Jesus sobre o que deve ser feito para
herdar a vida eterna. Por seu interlocutor tratar-se de
alguém versado nas Escrituras, Jesus lhe devolve a
pergunta, que é prontamente respondida com base na
citação de Deuteronômio 6.5 e Levítico 19.18. Jesus
dá anuência à resposta. Contudo, o intérprete da Lei
insiste, questionando: ‘Quem é meu próximo?’ Jesus
então responde contando a parábola, cujo tema central
aponta a importância dos atos de misericórdia. [...] Em
todo o evangelho de Lucas, percebe-se na compaixão um
distintivo fulcral.116
Muzio117, falando de igrejas que transformam a nação, fala da importância
de trabalhar para implantar os valores do Reino na sociedade, e isso se faz
por meio da vocação da igreja para servir, entre outras coisas. Ele afirma que,
quando a igreja cumpre de maneira completa a sua missão, a consequência
natural é que o serviço e a dedicação à sociedade apareçam e sejam marcas
importantes. No decorrer da história, segundo Muzio, a igreja foi deixando
marcas na sociedade por sua vocação em servir, e isso precisa continuar a ser
uma característica do Povo de Deus. O serviço, segundo Muzio118 é uma das
marcas e funções da igreja. Ele lembra que essa era uma das marcas da igreja
primitiva. A igreja de hoje perdeu o equilíbrio entre o serviço a Deus (adoração)
115
MELLO, 2017, p. 420.
116
MELLO, 2017, p. 420.
117
MUZIO, 2010, p. 57.
118
MUZIO, 2010, p. 118.
119
SCHWARZ, 1996, p. 24.
120
SCHWARZ, 1996, p. 36.
121
MELLO, 2017, p. 424.
122
CROWE, 2018, não paginado.
123
BATSON, 1991, não paginado.
124
FISCHER; SCHAFFER, 1993.
125
PIRAGINE, 2015, p. 66-73.
126
WRIGHT, 2012, p. 39.
127
WARREN, 1998, p. 96-100.
128
LOPES, 1978, p.239.
129
FONTE: O autor.
130
REINKE, In CONVENÇÃO BATISTA PIONEIRA DO SUL DO BRASIL, 2010, p. 10.
131
FONTE: O autor.
b. Se perceber amado:
- Mostre o quanto Deus o ama;
- Mostre que o grupo o ama;
- Crie um senso de time - no qual cada um faz sua parte, mas cada parte é
importante;
- Evite criar grupos (por horário ou escala) - Use “nós”;
- Lembre-os que seus dons são necessários para completar o time;
- Crie uma atmosfera de diversão e família.
c. Se perceba valorizado:
- Ensine o valor do serviço na Bíblia e o quanto Deus valoriza o servir;
- Mencione o valor que eles agregam para o Reino de Deus e a organização;
- Celebre vitórias individuais ou do time;
- Faça ligações entre o que eles estão fazendo e a visão geral do Reino de
Deus e o ministério;
- Sempre valorize a opinião pessoal;
- Faça festas de fim de ano.
d. Se perceba incluído:
- Ensine sobre a missão de Deus, e como a igreja, o ministério e o trabalho
dele se encaixam dentro dessa missão;
- Construa conexões pessoais entre o voluntário e a equipe desde o primeiro
dia;
- Mantenha-o informado com mensagens ou telefonemas;
- Ore por seus pedidos pessoais nas reuniões da organização;
- Mantenha contato regular;
- Crie um boletim impresso ou online que fale de tudo o que acontece na
organização e faça com que todos tenham acesso.
O princípio bíblico do serviço deve ser aplicado a cada etapa desse processo,
132
FONTE: O autor.
fazendo com que o voluntário entenda que está ali pela motivação correta:
servir a Deus e ao próximo. Muzio133 afirma que o serviço é parte fundamental
da natureza da igreja. Da mesma maneira que a igreja lê o texto bíblico do
livro de Mateus 28 e entende sua missão de evangelizar e discipular - a Grande
Comissão -, precisa ler o texto bíblico do livro de Mateus 25 e entender sua
missão de servir - A Grande Compaixão.
A cada etapa do processo de ensino do voluntário (Apreciar, Pertencer,
Celebrar, Conectar e Desafiar), é necessário aplicar o valor bíblico do servir.
Ao apreciar, o voluntário entende o seu valor para Deus e o privilégio de
servir. No processo de perceber que pertence a um grupo, o voluntário precisa
entender que recebeu seu dom do Espírito Santo e agora precisa usá-lo para
abençoar outros, servindo. Ao celebrar sua vida e presença, o voluntário
precisa entender o valor do serviço e das pessoas que o cercam. No processo
de conexão, o voluntário precisa entender o conceito de igreja e a missão que
Deus tem para esta. Finalmente, no desafio, a igreja tem o maior objetivo em
relação aos voluntários: fazê-los entender que necessitam buscar intimidade
profunda com o Senhor, de maneira que isso os leve a amar também as
pessoas, como Deus ama. Piragine134 afirma que esse amor verdadeiro pelas
pessoas se inicia a partir da proximidade e entendimento do amor de Deus
para com as pessoas. O indivíduo que se aproxima de Deus vive um novo estilo
de vida, e o amor deixa de ser uma figura retórica, mas algo real, capaz de
produzir mudança e transformação social.
Como pode ser observado, o sentido do princípio do serviço foi se
desenvolvendo ao longo da revelação bíblica. Iniciou-se com a ideia de algo
obrigatório, feito como um ritual ou serviço de guerra diretamente a Deus,
mas aos poucos foi se expandindo até chegar no binômio Deus/pessoas. O
ápice desse entendimento foi atingido por Jesus, que servia ao Pai, enquanto
servia amorosamente às pessoas. É exatamente esse tipo de serviço que deve
ser vivenciado por cada discípulo de Jesus nas igrejas espalhadas pelo país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A grande motivação para a elaboração desse artigo era responder a
questionamentos feitos pelo autor durante seus anos de trabalho com
133
MUZIO, 2010, p. 119.
134
PIRAGINE, 2015, p. 90.
REFERÊNCIAS
ALLEN, C. J. (Ed. Ger.). Comentário bíblico Broadman: Novo Testamento.
Traduzido por Adiel Almeida de Oliveira. Rio de Janeiro: JUERP, 1984.
ADSantos, 2016.
TENNEY, M. C.; PACKER, J. I.; WHITE Jr., W. Vida cotidiana nos tempos
bíblicos. Traduzido por Luiz Aparecido Caruso. São Paulo: Vida, 2001.
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