Uma Bruxa No Seculo XX

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UMA BRUXA NO SÉCULO XX?

– percepções e evolução da narrativa


do principal crime de Soalhães, Portugal1

A WITCH IN THE TWENTIETH CENTURY? - Perceptions and


evolution of the narrative about the famous crime of Soalhães, Portugal

Carla de Araujo Risso2

Resumo: Em 28 de fevereiro de 1933, uma notícia do Jornal de Notícias


sensibilizou a opinião pública em Portugal: o assassinato de uma mulher
espancada e queimada viva na freguesia de Soalhães, comarca de Marco de
Canaveses, Distrito do Porto. Este artigo, por meio de estudo do caso, procura
mostrar a interação e a troca que ocorrem na relação entre comunicação e
informação na transmissão dos fatos, fazendo uso dos discursos empregados em
diversas fontes. A análise se debruçou sobre os artigos de publicados pelo Jornal
de Notícias e Primeiro de Janeiro, jornais que deram cobetura ao fato, os
originais da peça de Bernardo Santareno de 1959 – O Crime de Aldeia Velha,
obra inspirada nos fatos –, bem como sobre os relatos encontrados no inquérito
policial. Procura-se assim, analisar as várias vozes dissonantes e, posteriormente,
compreender os vários relatos de acordo com o ethos discursivo. A partir da
polifonia presente nos discursos documentados – policial, artístico e midiático –
pretende-se mostrar os diversos desdobramentos que a narrativa de um fato pode
adquirir dependo da mediação.

Palavras-Chave: Comunicação. Informação. Narrativas. Discursos Circulantes.


Mediação.

Abstract: On February 28th, 1933, a story published by the newspaper Jornal de


Notícias impacted the public opinion in Portugal: the murder of a woman who
was beaten and burned alive in Soalhães, a District of Oporto. This case study
shows the interaction and the exchange between communication and information
in transmission of facts, using the discourses employed in different sources. The
analysis is focused on the articles published by the Jornal de Notícias and
Primeiro de Janeiro, on 1959 Bernardo Santareno’s play – The Crime of the Old
Village, a work inspired by the newspapers reports – as well as on the police
investigation. With the analysis of multiples voices, the main objective is to
understand the various reports according to the discursive ethos. From the
polyphony present in the documented speeches – police, artistic play and media
– this research shows the various developments that a fact’s narrative can acquire
depending on mediation.

Keywords: Communication. Information. Narratives. Circulating Discourse.


Mediation.

1
Trabalho apresentado na Divisão Temática Ibercom DTI – 11 - ESTUDOS DE JORNALISMO do XIV
Congresso Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de
abril de 2015.
2
Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, docente da Faculdade de
Comunicação da UFBA. carlaarisso@gmail.com.

1
Introdução
Comunicação e informação são elementos pertinentes de descrição do real e, nas palavras
de Michel Maffesoli (2003), transfiguram
a forma banalizada, superficial, em benefício do sentido profundo, com a convicção de que se
algumas fórmulas se disseminam no tecido social é por encontrarem substância no existente. Nesse
sentido, elas nunca são neutras. No caso, exprimem o desejo de estar com outro, desejo de
participação, de interação e de troca.

Uma dessas fórmulas perpetuadas há muitos séculos em várias culturas diz respeito à
magia e religião – que estabelecem “uma existência simbólico-imaginária na qual se
inscreve a possibilidade de superação mental de uma realidade social” (Nogueira, 2004, p.
23). Se a esta fórmula somar-se o acontecimento de um crime bárbaro, certamente, a
disseminação das informações no tecido social será exponenciada.
Em 28 de fevereiro de 1933, uma notícia do jornal português Primeiro de Janeiro
impressiona o menino António Martinho do Rosário de dez anos, que mais tarde adotou o
pseudônimo de Bernardo Santareno – considerado por muitos o maior dramaturgo
português do século XX. Trata-se da notícia intitulada “É queimada em vida uma mulher”,
que narra o acontecimento do dia 25 em Portugal: o assassinato de Arminda de Jesus,
mulher espancada e queimada viva na freguesia de Soalhães, comarca de Marco de
Canaveses, Distrito do Porto. Segundo o jornal, Arminda foi vitimada por seus vizinhos
que pretendiam livrá-la do demônio, “Os celerados, estúpidos e inconscientes não
mostram o mínimo constrangimento pelo seu crime. E por agora desce o pano sobre o
primeiro acto da tragédia”. (Jornal de Notícias, 28 fev.1933).

Figura 1. Jornal de Notícias, 28 fev.1933.

2
A metáfora com o teatro presente no texto jornalístico deixou de ser um simples exercício
de retórica. Baseado em suas impressões deste crime, vinte cinco anos depois Bernardo
Santareno escreve a peça O Crime de Aldeia Velha – encenada pelo Teatro Experimental
do Porto de dezembro de 1959 a fevereiro de 1960. O argumento ganha uma versão
cinematográfica em 1964. E foi a percepção do menino António Martinho do Rosário que
fixou a história no imaginário do povo português.
Este artigo, mediante o estudo de caso do crime da queimada-viva de Soalhães – por meio
da análise de conteúdo do processo criminal, artigos de jornal e o roteiro da peça –, procura
mostrar a interação e a troca que ocorrem na relação entre comunicação e informação na
transmissão dos fatos fazendo uso dos discursos empregados em diversas fontes.

Bernardo Santareno
Bernardo Santareno é o pseudônimo de António Martinho do Rosário, nascido em
Santarém, em 1920, filho de Maria Ventura Lavareda e de Joaquim Martinho do Rosário.
Aos 25 anos, transferiu-se para a Universidade de Coimbra, na qual se licenciou em
medicina psiquiátrica em 1950. Para além da Medicina, surgiu o escritor e dramaturgo, sob
o pseudônimo de Bernardo Santareno.
A obra de Bernardo Santareno pode ser dividida em dois ciclos. O primeiro insere-se em
um naturalismo poético, apoiado numa linguagem coloquial e estruturado sobre uma
problemática sexual – com temas como o adultério, a virgindade, o papel da mulher no
casamento e a moral religiosa – e cuja ação tende a finais trágicos. Fazem parte desse
ciclo: A Promessa, O Bailarino, A Excomungada – publicadas no mesmo livro (1957); O
Lugre, O Crime de Aldeia Velha (1959); António Marinheiro ou o Édipo de Alfama
(1960); Os Anjos e o Sangue, O Duelo, O Pecado de João Agonia (1961); Anunciação
(1962).
A partir de 1966, inspirado em Brecht, o trabalho do dramaturgo passa a ser moldado pelo
teatro épico adaptado ao seu estilo próprio, tendo como temática os processos sociais
turbulentos. Este ciclo é inaugurado com a peça O Judeu, um retrato do calvário do
dramaturgo setecentista António José da Silva, executado pelo Santo Ofício. As outras
peças são O Inferno (1967), A Traição do Padre Martinho (1969) e Português, Escritor,
45 Anos de Idade (1974) – drama autobiográfico e primeiro original teatral português a

3
estrear depois de restaurada a ordem democrática no país. Em 1979, publicou o livro Os
Marginais e a Revolução, uma compilação de quatro peças – Restos, A Confissão,
Monsanto e Vida Breve em Três Fotografias. Há ainda a peça O Punho, publicada em livro
postumamente em 1987 – Bernardo Santareno faleceu em 29 de Agosto de 1980.
Para Santareno, “uma peça de teatro tem de ser conflito – claro e escuro, belo e feio,
verdade e mentira, natural e monstruoso. Nunca foi, nem pode ser outra coisa”.
(SANTARENO, 1967, p. 633)
O teatro era algo visceral para o psiquiatra/dramaturgo, cuja crença era que

[...] cada homem, limitado e condicionado pela estrutura ético-social, pelas contingências
individuais, como que vive uma vida incompleta, medíocre, em relação à que ele secretamente
aspira – a vida de cada um de nós é como uma tragédia truncada, ou uma comédia apenas
esboçada… E daí a profunda necessidade de, ao lado da vida, existir um centro, um lugar, uma ilha
de luz isolada no meio da cidade noturna, em que a paixão e a imaginação possam arder livremente,
até o fim, sem as limitações do cotidiano: e assim, nesta ilha de luz, no Teatro, o homem, cada um
de nós, pode ver-se realizado, cumprido integralmente, pode aferir a sua real potencialidade de
paixão, saber de quanto amor e ódio, de quanto bem e mal é capaz; o Teatro dá-nos o desenho
completo de nós mesmos, a tragédia ou a comédia totais das nossas vidas prisioneiras.
(SANTARENO, 1967, p. 10)

E é inspirado pela notícia publicada no jornal em sua infância que Bernardo Santareno
desenha a tragédia em O Crime de Aldeia Velha (1959).

A NARRATIVA DA OBRA TEATRAL


Na peça, ao contrário dos fatos que ocorreram no inverno, a ação se desenrola no verão.
No primeiro ato, cena IV, toda vestida de preto, Zefa, uma senhora de 70 anos, anuncia que
há vinte anos, desde a morte do padre Guilherme, nunca mais um sacerdote pisou naquele
chão e que “Deus condenou Aldeia Velha a pagar, com o sangue dos meninos, os pecados
do padre Guilherme… que era sem conto!”. (SANTARENO, 1991, p. 292) A personagem
ampara sua crença dizendo que não se lembrava de ver falecer, naquela terra, tanta criança
miúda como nos dois anos anteriores à morte do padre – que era ruim e amigo do
mulherio. Rita, outra senhora de 60 anos, complementa: “Neste ror de tempo, o demônio
tomou conta desta terra: Aldeia Velha faz juras pelo diabo!”. (SANTARENO, 1991,
p.293)
A protagonista, Joana, uma clara referência a Joana d’Arc – a mártir francesa canonizada
em 1920, que também foi queimada viva –, uma moça de 25 anos, muito bonita e sem
pretensões de se casar, suscita a inveja e o rancor das mulheres de sua aldeia. Há, para
além de sua beleza e independência, mais um motivo. Rita o explicita: “Toda a gente em
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Aldeia Velha, toda a gente!, dizia que a tua mãe era bruxa, que deitava mau olhado… (…)
Até os cães, mais os gatos, até as estrelas do céu, até o vento e a água do rio… sabiam
isso!” (SANTARENO, 1991, p.295).
No desenrolar da trama, Antônio, o filho de Rita, e Rui, apaixonados pela moça, travam
um duelo mortal. A ira da cidade recai sobre a moça, a quem atribuem uma possessão
demoníaca capaz de fazer sucumbir os dois rapazes. Ainda no primeiro ato, cena XIII, Zefa
sentencia: “Estão mortos. Foste tu, Joana!! Tu tens o diabo no corpo, mulher! O demônio
tomou posse de ti… Possessa, possessa! Tu estás possessa do diabo, Joana!”
(SANTARENO, 1991, p.310).
O padre recém-chegado à cidade, Júlio, um jovem de 25 anos e filho de Florinda – outra
mulher da aldeia –, tenta esclarecer a população e preservar Joana. Chama um velho padre,
Cláudio, para ajudá-lo em seus intentos. Contudo, durante a trama, morre o filhinho de
outra personagem, Teresa, pouco tempo depois de Joana tê-lo carregado em seus braços.
Daí, então, a própria Joana passa acreditar que é má e que padece de uma possessão
demoníaca: “Sinto-o no meu sangue…: no meu peito... aqui na minha cabeça... Salva-me,
salva-me! Tire-me “isto”, senhor padre!...” (SANTARENO, 1991, p.312). Na visão de
Bernardo Santareno, na batalha da Igreja contra a crendice dos aldeães, vence a ignorância.
Um grupo de mulheres decide realizar o ritual “fogo santo” e Joana, espontaneamente,
submete-se e é queimada viva com a esperança de ressuscitar purificada.
Os gritos de Joana ecoam pela aldeia. Os homens correm à casa em que acontece o ritual.
Tarde demais. As mulheres comunicam que Joana está morta, uma morte do coração.
“Todos os homens se olham entre si: cruelmente, como quem compreende e aceita
conscientemente a mentira.” (SANTARENO, 1991, p.369). A peça termina com “sempre
a voz monótona das Mulheres, recitando o Padre-Nosso e a Ave-Maria”. (SANTARENO,
1991, p.370).
Na narrativa romanceada do “Crime de Soalhães”, efetuada por Santareno, encontramos
vários elementos das tragédias gregas. A Aldeia Velha sofre pelos erros cometidos no
passado pelo sacerdote local. Nessa terra esquecida pela Igreja, nasce Joana com uma
maldição que assolava sucessivas gerações de sua família. Ela tinha o poder de seduzir os
homens, fascínio que exerceu sobre Antônio, Rui e também sobre o jovem padre Júlio.
Além disso, o Destino – uma divindade cega, inexorável, nascida da Noite e do Caos –,
trouxe mais uma fatalidade: a morte de um inocente, o filho de Tereza. Esse fato suscitou a
lembrança de que várias crianças morreram vinte anos antes e parecia ser o sinal definitivo

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de que um novo ciclo de desgraças voltaria a ocorrer. Mais um elemento da tragédia grega
presente em O Crime da Aldeia Velha é o reconhecimento: Joana reconhece-se como
pecadora e isto, invariavelmente, vai levá-la à catástrofe, a uma morte horrível.

A NARRATIVA CINEMATOGRÀFICA

Figura 2. Cena do filme O Crime da Aldeia Velha, 1964.

A versão cinematográfica da peça, produzida em 1964, é considerada uma das principais


obras do Cinema Novo Português e teve argumento do próprio Bernardo Santareno e do
diretor Manuel Guimarães, artista plástico e cineasta de influências neorrealistas. A
produção contou com atores portugueses conhecidos, e foi protagonizada pela atriz
francesa Barbara Laage, dublada por Maria Barroso.

Figura 3. Barbara Laage em cena do filme O Crime da Aldeia Velha, 1964.

A construção fílmica da obra mantém a narrativa original da peça e acrescenta alguns


elementos de uma visão pessoal e artística sobre o Estado Novo em Portugal. Jorge
Palinhos (2013) aponta para o fato de que no princípio do filme, curiosamente, aparece
uma legenda, que informa “Esta história decorre no século passado”. Sabemos que o crime

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verdadeiro ocorreu na década de 1930, apenas 30 anos antes da produção cinematográfica.
Na interpretação de Palinhos, a explicação plausível para esta declaração está longe de ser
inocente:
[...} ou se pretendia desviar a atenção da censura de que aquilo que se estava a retratar era uma
aldeia portuguesa sob o Estado Novo como lugar de fanatismo e ignorância, ou então tratava-se de
um comentário irónico, por parte dos autores, sobre uma realidade presente, mas que cuja natureza
retrógrada a fazia assemelhar-se mais a um tempo longínquo. (PALINHOS, 2013)

O filme recorre ao uso dos contrastes de luz e sobras para criar ambientes fantasmagóricos.
Para PALINHOS (2013), suas metáforas visuais excessivas mostram que a violência é o
fruto de uma sociedade de repressão, na qual suas principais vítimas transformam-se nos
principais algozes, refletidas na representação das mulheres mais velhas da aldeia –
conservadoras, controladoras e presas ao obscurantismo.
.
A NARRATIVA POLICIAL
Na verdade, fora da representação teatral ou fílmica da realidade, os fatos ocorridos em
1933 não tinham o enredo apresentado nos palcos ou nas telas. Arminda de Jesus, a vítima
de Soalhães, de 30 anos, era casada, mãe de dois filhos pequenos, e não encontramos
nenhuma referência à sua beleza nos textos do inquérito policial, nos autos do julgamento
ou nos jornais. Diferentemente de Joana, Arminda era querida por toda sua vizinhança.
A narrativa dos fatos ocorridos pode ser reconstruída a partir dos depoimentos presentes no
inquérito e no julgamento, transcritos no livro de Pereira Coutinho e Guilherme Pinto, O
Crime da Queimada-Viva de Soalhães, editado pela Câmara Municipal de Marco de
Canavezes, em 1987. Preocupados com o peso “sobre Soalhães e o seu povo, da triste
‘fama’ de ser a terra do ‘mata e queima’” os autores procuram trazer à luz os eventos que
culminaram no assassinato de Arminda de Jesus, um “crime que persiste na mente de
muita gente e, agora, quase sempre ampliado pela imaginação de cada um”. (PEREIRA
COUTINHO e PINTO, 1987, p.46)
À polícia, o irmão da vítima, José Monteiro Alves, declarou que na noite de 25 para 26, já
tarde da noite, sua irmã entrou em casa de Joaquina Couto, a doida, onde um bando de
pessoas estava ouvindo a leitura do que julgava ser o livro de São Cipriano.
Sua irmã caiu ao chão com uma síncope e a doida começou a gritar “ponham essa mulher lá fora que
está excomungada”. Puseram-na então fora de casa em braços, estando o respondente presente,
ajudando até a trazê-la para fora. Sua irmã continuou com o ataque, mas então dando risadas e
dizendo que via uma estrelinha, mas os outros que não a viam. Como a doida começasse a gritar
“batei-lhe quando ela bulir” saíram de casa desta para lhe bater: Manuel Queiroz Correia e os irmãos
Francisco Queiroz Correia e António Queiroz Correia, batendo-lhe todos os três, sendo este último
que bateu menos e lançando-lhe os mesmos, em seguida, o fogo, parecendo ao declarante que

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quando tal fizeram já a sua irmã estava morta, levando quando muito dez minutos a praticar o crime.
O declarante gritou por socorro quanto pôde mas um dos criminosos, o Manuel, mandava-o estar
calado, sendo certo que nenhum d’eles queria mal a sua irmã de quem eram amicíssimos, praticando
o crime com a ideia que a sua vítima estava excomungada.” (PEREIRA COUTINHO e PINTO,
1987, p.9-10)

Outra testemunha ouvida, Alexandre de Oliveira – cunhado de Joaquina – apresentou uma


narrativa muito semelhante. Pela ótica de um dos réus, Anastácio Pereira – cunhado e
compadre de Arminda de Jesus –, obtemos outros detalhes. Como haviam feito na noite
anterior, na reunião organizada para que todos orassem pela Joaquina – que parecia trazer
o diabo no corpo,
[…] A certa altura a Joaquina disse para Virgínia e marido que se deitassem no chão que ficavam
mortos o que no entender do respondente aconteceu, pois viu-os sem fôlego e na verdade como
mortos, enchendo-se todos os presentes de medo tanto mais que pegando os assistentes no Manuel
Correia e deitando-o numa cama, ele tudo deixou de fazer como se morto estivesse. Chegando nesse
momento a infeliz Arminda, também à ordem da Joaquina se deitou no chão, mas em lugar de
morrer, começou desde logo em altos gritos, de mãos erguidas para o ar, e outras vezes a bater
palmas, ordenando a Joaquina que a pusessem lá fora, pois trazia o diabo dentro dela, o que alguns
dos assistentes fizeram […] (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.15-16)

Outro réu, António Queiroz Correia – marido de Joaquina de Jesus –, disse que há cerca de
três ou quatro anos, a mulher teve um ataque quando ela trabalhava no campo. Depois, os
ataques voltaram a se repetir e Joaquina dizia-lhe que andava assombrada com espíritos
maus. António sabendo que Anastácio, seu compadre, tinha um livro de S. Cipriano,
convidou-o a fazer-lhe rezas e defumadouros, como mandava o livro. No dia 22 de
fevereiro,
[...] tendo a mulher do respondente uns ataques mais fortes, procurou o depoente uma tal Olívia
Emília que lhe constava ser bruxa e que por acaso ali passou, a fim de vir ver a sua mulher.
Veio ela, e depois de consultada, mandou que se levantasse da cama e que lhe dessem uns
defumadouros […], porque a doença dela não era de médicos, mas sim de duas almas que a
assombravam, das quais uma era boa e a outra ruim. (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.16)

Joaquina rejeitou o defumadouro e pediu um padre para se confessar. O abade foi visitá-la
dia 24, pela manhã. Logo que o abade saiu, Joaquina começou a cantar, dando mostras de
estar pior de sua doença. Nessa noite, várias pessoas foram a sua casa ler orações no livro
de S. Cipriano, fato que se repetiu na noite seguinte. Em meio aos ataques de Joaquina,
Arminda também teve um ataque e caiu no chão. Joaquina ordenou que a pusessem para
fora da casa “que estava tudo excomungado, que ia arder tudo”. Quinze minutos depois,
Joaquina mandou bater na Arminda e complementou: “pegai-lhe fogo, vai arder tudo”.
Depois de atearem fogo, os acusados permaneceram
ali todos ao pé da vítima até que ficou toda queimada, sendo certo que era o Anastácio quem
ajeitava o fogo sobre ela. Que depois de a verem assim bem carbonizada retiraram-se todos para
casa do respondente a orar para que ela ressuscitasse, até altas horas da madrugada.

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[…] A infeliz Arminda era muito boa mulher, nunca sendo sua intenção matá-la, e tanto assim que
recolheu para sua casa e sem seguida ao seu feito descansado, continuando nas rezas com sua
mulher e os assistentes, e ficando admirado quando no dia seguinte foi preso. Como estavam
perdidos, julgavam que a Arminda tornava a viver, tanto mais que já em sua casa tinham caído como
mortos sua cunhada Virgínia e Maria, e ambas tinham tornado a viver não sabendo por isso, como
tal coisa lhe passou pela cabeça. (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.16-18)

O pároco da freguesia de Soalhães, Joaquim Monteiro, declarou no inquérito que a sua


freguesia é um foco de crendice e superstição. Apesar de empregar todos os esforços e
aproveitar todas as ocasiões para mostrar o erro, não conseguiu convencer aquela gente da
inutilidade e falsidade da prática de benzeduras e bruxedos a que recorrem quando se
encontram doentes. Acrescentou que a freguesia de Soalhães é muito frequentada por
bentas e bruxas – dentre essas, Olívia Emília de Gaia e a chamada bruxa de Santa
Leocádia, concelho de Baião.
Olívia Emília, a “bruxa”, perguntada acerca do crime de assassinato a que se referem os
autos respondeu que nem chegou a conhecer a vítima. António Queiroz Correia chamou-a
um dia para ir ver sua mulher. Vendo-a na cama, mandou-a levantar e disse-lhe que ela não
tinha doença, mas sim que duas almas a assombravam: uma boa e uma ruim. Receitou-lhe,
então, três defumadouros e se foi.
A polícia deu por encerradas as suas investigações em 9 de Março de 1933.

A NARRATIVA DO JULGAMENTO
O caso foi a júri um ano depois. Na contestação ao Ministério Público, o advogado de
defesa não nega que seus clientes sejam os autores do crime, nem tampouco discorda das
conclusões da polícia sobre os eventos daquela noite de 25 de fevereiro. Sua argumentação
passa pela privação momentânea dos réus de suas faculdades mentais:
O que fizeram, porém, absolutamente convencidos de que a pessoa da infeliz Arminda coisa alguma
sofreria. Ora,
Somente em manifesto estado de loucura é que assim teriam procedido, pois todos os que em tal
acto colaboraram eram parentes ou bons amigos da infeliz, de quem não tinham o menor
ressentimento, nem motivos para lhe fazerem o menor dos males, quanto mais para a assassinarem
tão bárbara e cruelmente. Só, portanto,
Altamente sugestionados e contagiados pela histeria da já aludida Joaquina, é que, supondo
expulsarem o diabo do corpo da sua vítima, sem intenção e involuntariamente a mataram, demais.
(PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.26)

Como circunstâncias atenuantes, o advogado elenca o bom comportamento anterior, a


espontânea confissão do crime; a longa prisão preventiva; a grande “estupidez” de seus
clientes; a sugestão religiosa e supersticiosa; a intenção de evitar um mal; o imperfeito
conhecimento do mal do crime; a imprevidência; a sua pobreza.

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O júri não aceitou o argumento da defesa sobre a falta de intenção criminosa, nem foi
convencido da inimputabilidade dos réus. Pelo contrário, considerou como agravantes o
crime ter sido cometido por mais de duas pessoas, com manifesta superioridade em razão
do sexo e das armas, de noite, com o emprego simultâneo de diversos meios, com a
insistência em consumar o fato, com o emprego de torturas e atos desnecessários à
consumação e para aumentar o sofrimento da vítima. Contudo, o júri deu como provados a
estupidez dos réus e o fato de o crime ter sido cometido pela sugestão religiosa e
supersticiosa, com intenção de evitar um mal e sem perfeito conhecimento do crime.
Em 30 de Maio de 1934, na Vila de Marco de Canavezes, foi pronunciada a sentença de
Anastácio Pereira, António Queiroz Correia, Francisco Queiroz Correia e Manuel Queiroz
Correia. Cada um dos réus recebeu a pena de seis anos de prisão maior celular, seguida de
degredo por dez anos ou, em alternativa, uma pena fixa de degredo por vinte anos3, no
imposto de justiça de 800 escudos com os acréscimos legais, fixando como indenização
aos representantes da vítima a quantia de 6000 escudos a pagar solidariamente por todos os
réus.
Joaquina não foi condenada, pois, submetida a um exame médico-legal no Hospital Conde
Ferreira, ficou constatado que “ela sofre de alienação mental durante as crises estero-
epileptoides, e que é irresponsável pelo acto que lhe imputam…”.

A IMPRENSA
A versão do crime na página do Jornal de Notícias – um dos maiores veículos de mídia
impressa de Portugal –, apresentada logo depois do crime, trazia grandes exageros e
apelava para o sensacionalismo.

NO MARCO DE CANAVEZES É QUEIMADA VIVA UMA MULHER

A pacata Vila do Marco de Canavezes, no passado último, foi palco onde se desenrolou uma
tremenda tragédia.
Se o nosso espírito voar e nos transportar às longínquas épocas da Idade Média, não encontra uma
cena tão selvagem e revestida de tanta perversidade como aquela que vamos narrar. O nosso espírito
não concebe que seres humanos pudessem ter coragem para praticar um crime tão hediondo.
A realidade dos factos, porém, convence-nos de que sob este lindo céu azul, que num enorme e
divino amplexo estreita toda a humanidade, há feras humanas, muito mais ferozes que as feras do
monte.
As cenas horríveis que vão ler-se, não se passaram em remotas paragens do sertão onde não tenha
entrado as luzes da civilização e da Fé. Foi aqui – Marco de Canavezes. Terra de gente crente.

3
Pena de desterro ou exílio, imposta judicialmente em caráter excepcional, é a punição de um crime grave
na forma de banimento, com o afastamento compulsório para as colônias portuguesas na África,
normalmente, Angola.

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Mas… entre as ovelhas mansas, disfarça-se muitas vezes o lobo traiçoeiro e entre o bom trigo surge
de quando em vez o joio; e assim, entre essa gente boa, apareceram cinco feras que vieram quebrar a
quietude da vila, lançando nela uma nódoa sangrenta que só o perdão de Deus, que não o
esquecimento dos homens, poderá fazer desaparecer da mente os factos… (Jornal de Notícias, 28
fev. 1933).

Na descrição dos personagens envolvidos, Joaquina era uma lavradeira, de 40 anos, que há
tempos começou a sofrer de ataques histéricos e foi convencida de que seu mal “era obra
do demônio que se tinha metido no seu corpo para lhe perder a alma”.
Arminda Pereira, de trinta anos, casada, cujo marido estava no Brasil, onde,
“honradamente anda ganhando a sua vida, animado do desejo de voltar à sua terra, com
o pecúlio que garanta o futuro dos seus dois filhinhos, dois botões de rosa a
desabrocharem para a vida”. Nota-se aqui uma tentativa de emocionar o leitor apelando
para o seu senso familiar.
No centro da tragédia, o texto coloca “a bruxa Engrácia Coelho”, a qual foi chamada por
Joaquina para “enxotar” o diabo. “Impelida por um espírito mau, aparatosa “mise-en-
cène”, empunhando um livro de São Cipriano, a Engrácia faz sobre o corpo da Joaquina
três cruzes e leu umas rezas do livro”. Lembramos que, pelo depoimento do marido de
Joaquina, quem visitou Joaquina foi Olívia Emília.
O jornalista cria também diálogos inexistentes. Engrácia Coelho teria dito: “é o demo que
anda cá pela freguesia – o seu mal, sra. Quininha, está metido no corpo de Arminda
Pereira. Impeceu-a a si, e se não lho tirarem há-de vir fazer mal a outras pessoas e a
senhora não se cura. É preciso enxotar esse demónio”. Para dar validade ao discurso, usou
o artifício de dar à Joaquina um apelido que, aliás, nunca foi mencionado por nenhuma
testemunha. O texto prossegue:
Pouco depois da bruxa ir embora, entrou em casa a Arminda Pereira. Foi uma hora infeliz, uma hora
que perdeu a Arminda, e deixou na orfandade duas criancinhas.
A possessa, vendo-a chegar, começou a gritar:
“Aí vem o espírito mau. Matem-na que ela traz o diabo no corpo. É ela a causa do meu mal”.
(Jornal de Notícias, 28 fev. 1933).

Como vimos, essa não foi a sequência dos fatos. Arminda não entrou casualmente na casa
de Joaquina depois que a “bruxa” se foi. Não se tratou de uma infeliz coincidência para
Arminda.
Nova cena. Novos personagens. Figuras sinistras, que por suas próprias mãos, afivelaram ao rosto a
máscara da ignomínia.
Quatro feras sob o aspecto de homens.
Os seus nomes para que fiquem lavrados no livro do sinistro dos criminosos célebres – António
Queiroz Correia, lavrador, marido de Joaquina, e seus irmãos Manuel e Francisco Queiroz Correia e
Anastácio Pereira, cunhado da Arminda.
Estes quatro indivíduos assistiram tranquilamente às rezas e benzedelas da famigerada bruxa.

11
Ouvindo os gritos da louca Joaquina, resolveram praticar exorcismos. (Jornal de Notícias, 28 fev.
1933).

Aqui o autor emprega metáforas muito fortes: “afivelaram ao rosto a máscara da


ignomínia”, “feras sob o aspecto de homens”. O jornalista condena os acusados a serem
lembrados eternamente pelo ocorrido.
Até onde pode chegar a estupidez! Como pôde ir tão longe a malvadez daqueles quatro facínoras?!
A Arminda, não podendo resistir às violentas pancadas caiu por terra, ante o apaziguamento da
possessa que gritava:
– “Sai espírito ruim!” E os outros em coro:
– “Mostra-te Satanás! Vai para o mar coalhado! Cruzes! Cruzes!”
O Anastácio deixa agora de bater, para ler as rezas do livro de São Cipriano.
A pobre Arminda, já quase sem forças, dizia:
– “Não me matem, olhem os meus filhos!”
E logo os do grupo malfazejo:
– “Hás-de ressuscitar!” (Jornal de Notícias, 28 fev. 1933).

Mais uma vez, o jornalista procura sensibilizar o leitor apelando para a relação entre mãe e
filhos, artifício de que lançou mão mais de uma vez na sequência do texto. O crime é
comparado a um Auto de Fé da Inquisição Portuguesa, no século XVI. Porém, afirma que
naquela noite “estava consumado o acto da mais repugnante barbárie de todos os
tempos.”.
Com o objetivo de tornar o crime ainda mais macabro, o texto informa que na “calada da
noite, os cães do lugar descobriram o cadáver. Foi um festim para aqueles irracionais
esfaimados. As pernas da vítima, menos atingidas pelas chamas, foram devoradas pelos
rafeiros. Lúgubre banquete! Horrível repasto!”. (Jornal de Notícias, 28 fev. 1933).
Na autópsia de Arminda, não há referência ao ataque dos cães:
Encontram-se completamente carbonizados com queimaduras de segundo e terceiro graus
os membros superiores, tórax, abdómen, face interna dos membros inferiores, dorso e
períneo, não se conhecendo pela inspecção externa o sexo. A cabeça e a face encontram-se
completamente queimadas. (PEREIRA COUTINHO e PINTO, 1987, p.7)

Longe do calor dos acontecimentos, um ano depois, o jornal Primeiro de Janeiro faz a
cobertura do julgamento, e publica dois artigos: em 24 e 31 de maio de1934. Os fatos são
reportados procurando seguir o preceito de “objetividade” jornalística. O artigo jornalístico
informa que as próprias testemunhas de acusação “declararam que os réus não cometeram
o crime por quisessem mal à desgraçada vítima”. As narrativas são compatíveis com o que
se lê nos autos, exceto na passagem que se refere às declarações José Monteiro Alves, que:
“diz ter assistido a toda a cena canibalesca da agressão e queima da irmã. Viu tudo.
Presenciou que foram os réus os criminosos, mas o principal culpado foi o Anastácio

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Pereira”. O emprego do adjetivo “canibalesca” para designar a ação ocorrida naquela
noite em Soalhães é totalmente equivocado e leva o leitor a acreditar que os acusados
comeram carne humana após o assassinato.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Régis Debray, com base em conceitos históricos, políticos e sociológicos, enfocou os
efeitos de transmissão simbólica, a partir da mudança provocada no meio social onde
ocorre, e analisou suas relações com as estruturas técnicas de transmissão. No livro
Transmitir: o segredo e a força das ideias, Régis Debray fala da diferença entre a vida
natural e a vida histórica:
[...] o homem é o único animal que conserva vestígios do avô e pode ser modificado por eles. Ele
inventa-se na medida em que faz estoque. Dotado da mesma estrutura atômica e submetido às
mesmas leis físicas e biológicas das outras espécies animais, compartilhando o mesmo planeta, o
gênero humano tem de particular o seguinte: seus membros podem viver, por procuração, uma
experiência não vivenciada pessoalmente. (DEBRAY, 2000, p.91)

Régis Debray distingue “comunicação” de “transmissão”, tratando a primeira como “fazer


conhecer, fazer saber” e a segunda como um termo regulador – são transmitidos bens,
ideias, capital.
A primeira [comunicação] é pontual ou sincronizante – trata-se de uma trama: uma rede de
comunicação religa, sobretudo contemporâneos – um emissor a um receptor, presentes nas duas
extremidades da linha. A segunda [transmissão] é diacrônica e caminhante – trata-se de uma trama –
além de um drama – ela estabelece ligação entre os vivos e os mortos, quase sempre na ausência
física dos ‘emissores’. (DEBRAY, 2000, p.15).

Debray substitui a palavra “comunicação” por “mediação” e o mensageiro pelo mediador.


No caso dos relatos sobre a “Queimada viva de Soalhães” fica claro que a transmissão da
mensagem depende de quem faz a mediação, do ethos enunciativo.
Todo texto escrito, mesmo que o negue, tem uma “vocalidade” que pode se manifestar numa
multiplicidade de “tons”, estando eles, por sua vez, associados a uma caracterização do corpo do
enunciador (e, bem entendido, não do corpo do locutor extradiscursivo), a um “fiador”, construído
pelo destinatário a partir de índices liberados na enunciação. O termo “tom” tem a vantagem de
valer tanto para o escrito como para o oral. (MAINGUENEAU, 2008, p. 18-19)

O caráter da narrativa artística, seja ela teatral ou cinematográfica, pressupõe o uso da


ficção e de licenças poéticas para se contar uma história. Bernardo Santareno não pretendia
fazer uma narrativa fiel dos acontecimentos, mas sim usar de um caso emblemático e
presente no imaginário português para abordar questões que para ele eram caras: a

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repressão sexual, o puritanismo e a crendice presentes na sociedade portuguesa no Estado
Novo.
Já no que diz respeito à narrativa jornalística, o universo de sentido do discurso impõe-se
tanto pelo ethos como pela maneira de dizer que remete a uma maneira de ser, à
participação imaginária em uma experiência vivida. O poder de persuasão de um discurso
jornalístico consiste em parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um
corpo investido de valores socialmente especificados. A qualidade do ethos remete, com
efeito, à imagem desse “fiador” que, por meio de sua fala, confere a si próprio uma
identidade compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado.
Nas palavras de MAINGUENEAU (2004, p. 99), há um
Paradoxo constitutivo: é por meio de seu próprio enunciado que o fiador deve legitimar sua
maneira de dizer. O reconhecimento dessa função do ethos permite novamente que nos
afastemos de uma concepção do discurso segundo a qual os “conteúdos” dos enunciados
seriam independentes da cena de enunciação que os sustenta. Na verdade, não podemos
dissociar a organização dos conteúdos e a legitimação da cena da fala.

Por isso, com a mudança da cena da enunciação – a cobertura do crime e a cobertura do


julgamento –, há também uma modificação na construção do discurso, independentemente
de haver mudado o jornalista que escreveu as narrativas. Logo que ocorreu o crime, o
“fiador”, cuja missão era relatar os acontecimentos de um fato que sensibilizou a opinião
pública em Portugal, assumiu a indignação da população em seu enunciado e reproduziu os
discursos circulantes na vila em que ocorreu o crime. Um ano depois, no julgamento, o
“fiador” adotou uma narrativa compatível com o que se lê nos autos, deixando de lado, na
maior parte do tempo, o tom passional e subjetivo, para assumir um caráter objetivo,
próximo ao discurso policial e jurídico.
“O imaginário é a partilha, com outros, de um pedacinho do mundo” (MAFFESOLI, 2003).
Uma narrativa, portanto, será apenas um fragmento do mundo. Observar e organizar as
apropriações particulares de um fato presentes em narrativas dispersas permite a
organização de um discurso dentro de um painel multifacetado – descontínuo e não-linear.
Nas palavras de MAFFESOLI (2003), “a realidade não se resume à realidade. Existe algo
que se pode chamar de surrealismo, de sobrerrealidade”. E ao retratar essa realidade para
além da realidade, a comunicação sempre será fragmentada e articulada entre partes que
ora se opõem, ora se complementam.
Ao juntar os fragmentos das narrativas desse estudo de caso, pretendeu-se deixar evidente
a polifonia presente nos discursos documentados – policial, artístico e midiático – e

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resgatar a memória de um acontecimento tão marcante na esfera social e cultural lusitana.
Procurou-se observar a História pela ótica de FOUCAULT (2005, p. 33), transformando os
documentos em monumentos e decifrando os traços deixados pelos homens para esboçar o
quadro dos acontecimentos.

REFERÊNCIAS
Debray, R. (2000). Transmitir: o segredo e a força das ideias. Petrópolis, RJ: Vozes.
Foulcault, M. (2005) A Arqueologia do Saber. Coimbra: Edições Almedina.
Maffesoli, M. (2003). A comunicação sem fim (teoria pós-moderna da comunicação).
Revista FAMECOS, nº 20, 13-20. Porto Alegre. Recuperado em 10 de fevereiro, 2015, de:
http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/famecos/article/viewFile/336/267
Maingueneau, D. (2008). Ethos Discursivo. São Paulo: Contexto.
__________. (2004). Análise de textos de Comunicação. São Paulo: Cortez.
Nogueira, C. R. F. Bruxaria e história: as práticas mágicas no Ocidente cristão. Bauru: EDUSC,
2004.
Palinhos, J. (2013) A violência ritual em O Crime da Aldeia Velha. O poder e a repressão
representados no texto de Bernardo Santareno e no filme de Manuel Guimarães. Atas do II
Encontro Anual da AIM, 437-449. Lisboa. Recuperado em 10 de fevereiro, 2015, de:
http://aim.org.pt/atas/pdfs-Atas-IIEncontroAnualAIM/Atas-IIEncontroAnualAIM-37.pdf.
Pereira Coutinho; Pinto, G., (1987) O Crime da Queimada-Viva de Soalhães. Marco de Canavezes:
Câmara Municipal.
Santareno, B. (1991) Obras completas – 1º volume, 2ª edição. Lisboa: Editorial Caminho.
__________. (1963). Notas Sobre o Teatro. O Tempo e o Modo, n. 9, 10-15. Lisboa.
__________. (1967). Situação de um Ator Dramático em Portugal. O Tempo e o Modo, n. 50-53,
591-592. Lisboa.

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