Memorias de Leitura

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 4

TECENDO HISTÓRIAS: UMA JORNADA DE LEITURA DESDE A INFÂNCIA

ATÉ A ATUALIDADE
Silvia Carla da Silva

Na infância, entre mistérios de letras não decifradas, eu brincava com as revistas


de moda da minha avó, costureira à época. Criava histórias com as imagens e fingia que
sabia ler. Passava as tardes nessas brincadeiras até que comecei a frequentar a pré-
escola, desejando avidamente aprender a ler, mas nessa etapa da minha escolarização eu
brincava no parquinho, adorava manusear massinha e outros brinquedos pedagógicos e
não fui introduzida no mundo das letras do modo como havia imaginado. Adorava ouvir
histórias que a professora contava, uma ou duas vezes por semana, mostrando as
imagens que as acompanhavam. Mas era pouco. Eu queria mais. E isso só fomentou a
minha vontade de aprender a ler para que eu pudesse ser independente e lesse o que
quisesse quando desejasse.
Terminada essa etapa de escolarização, ingressei na primeira série do 1º Grau e
aprender a ler foi um feito fácil e rápido. Fora da escola, ao percorrer as ruas, a pé, de
ônibus ou de carro, decifrava placas e inscrições e sentia-me a pessoa mais sábia do
universo e que tinha uma vocação. Bulas de remédio, embalagens diversas, tudo que
tinha algo escrito era meu fascínio. A primeira cartilha, Caminho Suave, eu lia com
deleite, chegando ao ponto de decorar seus poucos textos.
Cresci, e o amor pela leitura acompanhou esse crescimento. Em casa,
escasseavam livros. Meus pais, com poucos estudos, mal completaram o 1º Grau, não se
importavam tanto com as atividades de leitura. Assim, do jeito que dava, eu lia o que
conseguia. Os livros didáticos foram muito importantes para mim nesse período, já que
era por meio deles que eu tinha acesso a textos mais sofisticados. Às vezes conseguia
algum livro ou gibi emprestado.
Certo dia, que chamo de dia mágico, um vendedor de livros ambulante bateu
palmas chamando-nos ao portão. Nesse período, era comum esse tipo de comércio nos
bairros periféricos. Como a condição financeira da minha família havia melhorado um
pouco, minha mãe resolveu comprar alguns livros para enfeitar sua estante nova,
ignorando a riqueza que havia adquirido. Escolheu livros ao acaso que, nesse caso, foi
muito camarada. Dentre as obras adquiridas havia livros de poemas, contos, uma
coleção de livros de contos de fada, entre outros. Só havia um problema: os livros foram
adquiridos para enfeitar, não para serem lidos, já que se fossem
retirados, deixariam buracos na estante. Então me aventurei a ter a minha “felicidade
clandestina”. Tirava um livro por vez para que não se dessem falta dele na prateleira.
Lia onde dava também. Levava para a escola, lia no recreio, em casa lia até no banheiro.
Enfim, consegui ler tudo o que queria daquela estante e conheci os poemas de Castro
Alves, os contos de Grimm e até conteúdos técnicos. Claro que, depois de um tempo, os
livros deixaram de ser novidade e foram substituídos por outros enfeites indo parar
dentro de um armário, longe das vistas das pessoas.
Minha avó morava perto de nós e, em determinado momento, mudou-se para
outra casa, que também ficava bem perto da nossa. Nessa residência, que era alugada,
havia uma espécie de depósito no quintal e nele, cheio de poeira e teias de aranha,
escondiam-se tesouros esquecidos. Nessa época eu estava com dez anos e, curiosa como
qualquer criança, explorei aquele lugar e me apoderei temporariamente daquelas
riquezas. Eram livros com capas sujas, folhas rasgadas, totalmente rejeitados. Separei
todos, limpei e, como cirurgiã, tentei dar um pouco de saúde a eles e a melhor forma
que encontrei foi ler o máximo que podia. Nesse tempo, Ana Terra e Pedro Bala, de
Capitães da areia, entraram no meu mundo e me marcaram profundamente ao me
fazerem entender realidades tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximas da vida das
pessoas. A família ignorava tais obras, o que foi bem oportuno, já que, desconhecendo o
conteúdo daqueles textos, seriam incapazes de censurar as minhas leituras, pois eu não
teria idade para ler tais textos. Mesmo assim li essas e outras obras e fui amadurecendo
minha leitura ao longo do 1º grau. Essa minha trajetória relaciona-se com as ideias de
Jouve (2002), que diz que o entendimento de um texto se faz a partir de um ato
complexo, pois implica na consideração da bagagem cultural, emocional e experiências
pessoais do leitor que desempenha um papel ativo na construção de significados a partir
do texto e pela subjetividade na sua interpretação. Para esse teórico “Toda leitura
interage com a cultura e os esquemas dominantes de um meio e de uma época”
(JOUVE, 2002, p. 22).
Já no início do 2º Grau, devido a uma biblioteca maravilhosa que havia, e ainda
há, na escola, absorvi toda a coleção de Sidney Sheldon, abraçando sua popularidade e
sua literatura questionável. Teoria literária não era ensinada, pois a escola tinha o foco
na área de exatas por ser uma escola técnica. Além desse autor, conheci também Khalil
Gibran e adorava ler contos de Clarice Lispector.
A transição para a fase adulta trouxe um distanciamento
da leitura. Comecei a trabalhar e já não tinha mais tempo para ler como antes. O gosto,
entretanto, permaneceu.
Anos trabalhando na área técnica antecederam meu ingresso no curso de Letras,
reavivando a paixão pela leitura, agora guiada pelas disciplinas acadêmicas, todas
acolhidas com amor renovado.
Antes de ingressar no curso de Letras, meu mundo literário desconhecia as
sutilezas de Machado de Assis. Embora eu soubesse da existência da preciosidade
deixada por aquele que, na minha opinião, é o melhor escritor que já existiu, por algum
motivo não lia nada dele. Foi a professora Tema Boudou que me apresentou, de fato,
Machado de Assis. Concluí que a leitura de seus textos exige um pouco mais do leitor
no entendimento e apreciação. Ao citar Estanislao Zuleta, Andruetto (2017) discute a
importância de apreciar a complexidade e a lentidão da experiência leitora. Para essa
autora a pressa e a superficialidade não permitem que o leitor usufrua das riquezas
oferecidas pela literatura. Referindo-se a Graciela Monte que, numa entrevista disse que
“Todo bom leitor é um rebelde, um insatisfeito” (p. 80), Andruetto enfatiza a
importância da compreensão além do texto literal. Ir em busca das complexidades que
podem não ser imediatamente óbvias, dos significados ocultos e de uma leitura atenta
das entrelinhas permite ao leitor explorar além do que é visível, “na realidade, a leitura é
um convite para decifrar as pegadas do que não foi dito” (ANDRUETTO, 2017, p. 80).
Complementando essas citações, Machado de Assis, em Esaú e Jacó, apresenta o tipo
de leitor que almeja: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos
no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade,
que estava, ou parecia estar escondida” (ASSIS, 1987, p. 127).
Missa do galo foi o primeiro conto que li do bruxo do Cosme velho e, minha
querida professora Tema fazia a literatura se desdobrar como arte da palavra revelando
cada detalhe do conto, abrindo mentes por meio desse escritor com seu estilo único, sua
ironia, sarcasmo e profundidade. Daí em diante, não houve freios: Dom Casmurro,
Memórias póstumas de Brás Cubas, a doçura de Helena, Esaú e Jacó, e tantos contos
extraordinários como Pai contra mãe, O enfermeiro, A cartomante, O alienista, e
muitos outros que revisito com muita frequência e apresento aos meus alunos nas aulas
de língua portuguesa.
Embora minha paixão maior seja por Machado, também gosto muito de Clarice
Lispector, cujas obras também foram bastante exploradas no curso de Letras. Como não
se sensibilizar com Macabéa? Com a menina que se entregou ao
“seu amante” ao ter consigo As reinações de Narizinho? Como não se surpreender com
GH ao refletir sobre a existência numa profunda exploração da condição humana?
Clarice é de uma riqueza poética que inunda minha alma e, algumas vezes, deixa um
gosto amargo devido às realidades que confrontam o leitor e o leva a entender nuances
da vida que só a literatura é capaz de revelar.
Vários são os autores que me foram descobertos e apresentados ao longo da
minha vivência leitora. De alguns gostei muito, de outros nem tanto. Atualmente, estou
dando espaço a autores contemporâneos e tenho apreciado suas artes literárias, mas os
clássicos sempre estarão para mim em primeiro lugar quando se trata de escolher o que
ler.

Referências:
ANDRUETTO, M. T. A leitura, outra revolução. Tradução de Newton Cunha. São
Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

JOUVE, Vincent (1993). A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: UNESP,
2002.

Você também pode gostar