ANA MARIA GONCALVES Meu Livro Foi Minha Busca Tamb

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Ana Maria Gonçalves 291

Ana Maria Gonçalves

“Meu livro foi minha busca também, por construir


uma identidade de uma história que me foi negada,
a história dos negros no Brasil”.

A escritora Ana Maria Gonçalves nasceu na cidade de Ibiá,


Minas Gerais, em 1970. Mudou-se para a cidade de São Paulo, onde
trabalhou como publicitária durante treze anos até conhecer a Bahia
de Jorge Amado e fixar residência na Ilha de Itaparica. É na Bahia que
a ex-publicitária se descobre ficcionista. Sua relação com a literatura
é anterior ao sucesso, iniciada aos oito anos de idade ao “roubar”
os livros da estante de sua mãe. É autora dos romances Ao lado e à
margem do que sentes por mim (2002) e Um defeito de cor (2006), e das
peças para teatro Tchau, querida! (2016), Chão de pequenos (2017) e
Pret­OperItamar – O caminho que vai dar aqui, musical em homenagem
ao cantor e compositor Itamar Assumpção (1949-2003), seu primeiro
texto para teatro a ser encenado, de cuja dramaturgia Ana Maria é
responsável junto com a diretora Grace Passô.
O trabalho de escrita do romance Um defeito de cor (2006)
durante cinco anos a projeta na cena literária brasileira, concedendo
ao livro de 951 páginas, segundo Millôr Fernandes, o título de o
“livro mais importante da literatura brasileira do século XXI”. Ana
Maria Gonçalves relata que, nesse processo de escrita e reescrita da
obra, sua inspiração foi “escrever um livro que retratasse sua história
como mulher negra, a história não contada dos negros no Brasil”. A
narrativa epistolar e de formação da protagonista Kehinde, sua mi-
gração entre África e Brasil, assim como seus deslocamentos dentro

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do território brasileiro à procura de seu filho Omotunde conduzem


o leitor nessa viagem secular pela história da escravização de nossos
ancestrais sequestrados do continente africano.
Concedida a Cíntia Acosta Kütter,* esta entrevista permi-
tirá à leitora e ao leitor conhecerem um pouco mais sobre a autora,
seu processo criativo, suas influências, seus projetos futuros e a
imagem da menina de açúcar que povoou o imaginário de Ana Maria
Gonçalves na criação de Kehinde, personagem de Um defeito de cor.

*
Professora adjunta do Curso de Letras da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).

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Cíntia Acosta Kutter – Quem é a Ana Maria? De onde ela vem? Não
a Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor, mas a Ana Maria.
Quais são suas origens?

Ana Maria Gonçalves – Nasci em Ibiá, no interior de Minas, uma


cidadezinha que devia ter não mais que doze, quinze mil habitantes.
Toda a minha família era de lá, tanto paterna quanto materna. Cresci
num ambiente de família mineira “católica apostólica romana do sa-
grado almoço de domingo, na casa da avó” e toda aquela coisa. Por ser
uma cidade pequena, não tinha muito para fazer, brincava muito na
rua como qualquer criança normal. Mas a literatura sempre me cha-
mou muito a atenção e me provocou muito desde cedo, porque minha
mãe era leitora, uma leitora voraz. Era não, ainda é, graças a Deus!
Minha mãe era aquela mulher que quer ver além das montanhas. E
isto para ela era literatura: ver além daquela paisagem. Ibiá era uma
cidadezinha realmente ali, no vale, baixa, cercada de montanhas, e
mamãe é uma mulher muito inteligente, muito sagaz. Acho que foi a
partir da literatura que ela saía dali, daquele sufocamento entre mon-
tanhas, talvez. Desde muito cedo, me lembro de mamãe varrendo a
casa com um livro numa mão, mexendo panela com um livro na outra
e chamando a gente para ler. Sou a filha mais velha, tenho um irmão,
que é três anos mais novo, e uma irmã, que é dez anos mais nova,
então era mais a mim que ela chamava naquela época. Pequena, me
lembro dela lendo alguma coisa, eu reclamando querendo brincar, e
ela: “Não, escuta aqui, escuta aqui”. Ela tentava me convencer de que
a literatura era mais interessante do que o que eu queria brincar, e
era! Todos os momentos de lazer que lembro com minha mãe, desde
pequena, eram com a gente lendo na cama. Fora os afazeres dela – ela
era costureira –, o momento em que a gente lia era um momento nos-

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so, de lazer e de leitura. Para mim livro sempre foi isso. Eu me lembro
de que, quando comecei a ler – não fui nenhuma menina precoce –,
ela falava: “Me conta a história que está aí. A letrinha se parece com
o quê?” As letras. Lembro que eu pegava o livro só com o bloco de
texto mesmo e contava a história para ela. “Mãe, mas de que é esse
livro?”. Ela me falava que o livro era, sei lá, Crime e castigo: “É sobre
um homem que matou o outro, mas ele não quer ser punido. Me conta
essa história”. Me fazia abrir o livro e eu contava a história para ela,
da minha cabeça, achando que era o que estava escrito ali, enquanto
ela ia meio que guiando, dando pistas. Foi uma questão muito mais
de estimular a imaginação do que de aprender a ler.

Cíntia – E quanto ao aprendizado na escola?

Ana – Quando fui para a escola, eu era daquelas que ia para a biblio-
teca. Não sei como é hoje. Pelo menos nas bibliotecas que frequento
atualmente, a gente pode entrar dentro da biblioteca. Mas lá em
Ibiá, naquela época, não podia. Era a bibliotecária que entregava
os livros. E ela entregava os livros apropriados para minha idade.
Lembro que eu olhava aqueles livros cheios de desenho, com vinte
páginas, sentava no chão, encostada no balcão, lia e gritava: “Acabei,
acabei, acabei!”. Um dia, a mulher encheu o saco e falou: “Não tem
mais livros para você aqui”. Isso aconteceu sete ou oito meses depois
de eu começar a ler. Voltei para casa e contei para minha mãe, que
me disse: “Leia os meus, se é o que você quer”. Ela arranjou os livros
na estante e falou: “Lê tudo o que alcançar”. Alcançar fisicamente!

Cíntia – Como disse o Mia Couto, tu tinhas a própria poesia dentro de


casa.

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Ana – Verdade! Os livros não eram muita coisa. O dinheiro dela era
pouco. Lembro que chegavam aqueles caixeiros-viajantes em casa
para vender livro. Eles passavam a cada quinze ou vinte dias, porque
não tinha livraria.

Cíntia – Aqueles que vendiam enciclopédias e a revista Amiguinho?

Ana – Exatamente! Eu tinha todas essas enciclopédias. Lembro que


essas coleções que ela assinava ela deixou mais embaixo nas prate-
leiras. Coisas que ela achava que eu entenderia tranquilamente, eu
li. Nessa época, ela gostava muito de livro de mistério, então li todos
os livros com Sherlock Holmes e os de Agatha Christie.

Cíntia – Os clássicos do mistério.

Ana – Exatamente! Mas me interessava muito a coleção do Jorge


Amado, que ela mantinha na última prateleira que eu não alcançava.
(risos)

Cíntia – (risos) Não era por acaso que tu não alcançavas!

Ana – Exatamente! Eram uns livros de capa dura, vermelha, com uma
encadernação bonita com letras douradas. Eu me lembro de todas
essas coisas lá em casa e de quando comecei a ler escondido. Com
oito anos, estava lendo escondido as coisas que não podia. Lembro
que, à noite, ia pegar os livros para ela não ver. Arrastava a cadeira,
subia e, no escuro, sem acender a luz, passava a mão e pegava o livro
que tinha a lombada mais grossa, que é a que eu demoraria mais
tempo para ler e me arriscaria menos. Assim li quase tudo que quis.

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Até o dia em que comecei a ler O exorcista (risos). Os livros do Jorge


Amado abriram para mim um outro universo, porque era a primeira
coisa de literatura brasileira que me pareceu séria, adulta!

Cíntia – Jorge Amado aos oito anos de idade?!

Ana – Sim, ler Capitães da areia para mim foi um choque porque,
em Ibiá, apesar de ser uma cidade pobre, não tinha órfão, não tinha
criança de rua abandonada, não existia isso no meu universo. En-
tão, minha mãe falou: “Olha, os livros servem para isso. Esse outro
universo, esse além das montanhas de Minas!” Com O exorcista,
senti o poder do livro, porque o li morrendo de medo! Eu li à luz
de velas! Não queria acender a luz para minha mãe não ver a luz
escapulindo pela porta. Lembro que eu podia ler até quinze para
meia noite. Isso ela permitia todo dia, mas às vezes o livro estava
tão bom, que eu apagava a luz, esperava-a dormir e acendia a vela.
Minha mãe tinha feito a mesma coisa na casa dela (da minha avó),
só que com lampião. Ela falou: “Quando eu acordava de manhã,
tinha que explicar o porquê de ter gastado todo o óleo do lampião”.
O óleo do lampião era contado para eles, e ela gastava para ler! Ela
falou que, então, foi trabalhar para ajudar a pagar a conta da luz da
leitura dela. Eu lia à luz de velas! Voltando a O exorcista. Quando o li,
fiquei apavorada e queria ir dormir no quarto dela. Tive que contar o
que estava acontecendo e ela falou: “Ó, te falei que era para pegar só
o que você alcançava, né? Você me desobedeceu e acho que não vai
voltar atrás. Leia o que quiser, mas assuma isso. Você não vai dormir
no meu quarto!” Durante três meses, pegava meu colchão, ia para
a porta do quarto deles e ficava ali, mas ela não deixava. “Assuma
suas leituras, assuma o que você está lendo”, ela dizia. Foi assim que

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tomei gosto pela leitura. Aos nove anos, saímos de Minas, porque
meu pai trabalhava na Nestlé e foi transferido para Porto Ferreira,
no interior de São Paulo. De lá vim para São Paulo fazer faculdade,
cursei publicidade, sempre lendo muito, mas profissionalmente.
Nunca tinha pensado na literatura como profissão.

Cíntia – Nesse período, você já pensava em escrever?

Ana – Realmente, nunca tinha pensado em escrever. Comecei a es-


crever mesmo, quando surgiram os blogs. Acho que fui da primeira
leva de blogueiras no Brasil, em 1999, 2000 e 2001. Eu estava pro-
curando com isto – o blog – uma ferramenta de marketing para usar
na agência, não tinha nada a ver com literatura. Comecei a colocar
uns escritos de ficção, as pessoas começaram a gostar. Só que, numa
determinada época da minha vida, em que eu já estava trabalhando
há treze anos com publicidade, falei: “Cansei”! Estava trabalhando
muito, muito, muito. Eu era uma das sócias da agência e trabalhava
muito, 16, 17, 18 horas por dia. Então, falei: “Não quero mais isso,
vou procurar outra coisa para fazer”. E aí vai toda aquela história que
conto no prólogo de Um defeito de cor: quando você procura uma coisa
e acaba encontrando outra. Tudo o que está no prólogo é verdade,
menos o tal do manuscrito – que é o que muita gente me pergunta
também. Tem gente, inclusive, que começou a fazer a dissertação
sobre o tal do manuscrito, e eu falei: “Gente, o manuscrito não existe,
é invenção minha. Desculpa!” (risos).

Cíntia – Mesmo com os livros de Jorge Amado longe das tuas mãos lá
na estante da tua mãe, na vida adulta é ele quem te chama para a Bahia,
certo?

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Ana – Tem isso no livro, a Bahia, esse chamado. Acho que é essa a
minha história, basicamente. Alguém tão apaixonada por contar
histórias, por literatura, a ponto de abandonar tudo! Eu tinha uma
empresa, eu tinha um casamento, eu tinha uma casa, eu tinha tudo
aqui em São Paulo e, na hora em que veio esse chamado, fui embora
para Itaparica, e o resto que se ajeite (risos). Foi um retorno de Sa-
turno aos 29, o perfeito retorno!

Cíntia – Que ótimo que tu fizeste esse retorno, porque sem ele a Kehinde
não teria nascido! (risos)

Ana – (risos) É verdade!

Cíntia – Em certa entrevista, você afirmou não ser uma escritora, assim
como a moçambicana Paulina Chiziane, mas uma contadora de histórias.
Por que você prefere não se “encaixar” nessa nomenclatura?

Ana – Reescrevi Um defeito de cor dezenove vezes. Foi um trabalho


braçal, literalmente. Nas primeiras cinco versões, não conseguia
achar a voz do livro e falava: “Não está encaixando essa coisa”. Ele
estava escrito em terceira pessoa. Não sei, não era aquela história,
sabe? Até o dia em que falei: “Deixa eu experimentar passar isso aqui
para a primeira pessoa”.

Cíntia – Ainda não era aquela carta...

Ana – Não era, não era essa história, ou seja, era a mesma história,
mas era uma outra coisa. Uma literatura distante, fria...

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Cíntia – Aquele ser onisciente observando e não sentindo?

Ana – Exatamente! Falei: “Não é isso que quero, preciso entrar mais
nessa história”. Na hora que comecei a escrever o texto em primeira
pessoa, veio na minha cabeça a voz da minha avó, a mãe do meu pai
contando a história, e falei: “É isso! É essa contação de história que
eu quero”. Eu gosto de história! Quero saber o que vai acontecer, fico
elaborando mil hipóteses na minha cabeça sobre o que acontece em
seguida, o que não acontece. Então, eu falei: “É isso que eu quero!
Quero escrever histórias, quero contar histórias”. O livro para mim
tem uma voz, tem que ter. Qualquer história para mim é uma voz.
Tenho que ouvir essa voz me contando a história e transcrever. Por
isso me sinto uma contadora de histórias e, depois disso principal-
mente, entendi que não é só o suporte livro que me interessa. Estou
escrevendo para teatro, cinema, TV e vi que não faz diferença nenhu-
ma a ferramenta, o suporte, para contar essas histórias. Ao invés de
ficar colocando roteirista, dramaturga, escritora, prefiro contadora
de histórias, em qualquer que seja a ferramenta.

Cíntia – Você afirma que a pesquisa que deu origem à obra Um defeito
de cor (2006), inicialmente, trataria da Revolta dos Malês (1835), mas,
conforme a pesquisa tomava forma, acabou desviando para outro objetivo,
que resultou no romance. Qual foi o ponto crucial durante a pesquisa que
te encaminhou para esse outro viés?

Ana – Acho que foi também minha formação e minha descoberta


como mulher negra. A construção de identidade como mulher ne-
gra está ali! Antes desse livro, isso era algo que não permeava meu
comportamento, minhas atitudes. É algo que a gente não para para

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pensar. Minha mãe é negra, meu pai é branco, mas minha mãe é
aquela negra muito mais clara que eu, filha de uma família de oito
irmãos. Tenho tios desde retintos até minha mãe, que é a mais clara.
Mais clara que eu, de olho verde, mas cabelo pixaim. Não havia na
minha casa essa discussão, nem em família, nem em nada. O meu
livro foi a minha busca também, por construir uma identidade de
uma história que me foi negada, a história dos negros no Brasil. O
que me encantou inicialmente foi a história dos Malês, por causa do
livro do Jorge... O chamado (risos). Nunca tinha ouvido falar dessa
revolta e achei que ninguém tinha ouvido falar, porque aqui no Su-
deste a gente não estuda a rebelião Malê. Eu nunca tinha estudado.
Citavam nos livros uma rebelião escrava ou outra, mas uma coisa
assim, que não tinha a ver. Quando comecei a pesquisar a rebelião
Malê, instigada pelo livro do Jorge Amado, abriu-se um universo.
Eu vi que, a partir dali, havia uma finalidade, que era acabar com a
escravidão, pelo menos naquele espaço. Passei a estudar a história
da escravatura a partir do momento em que ela é questionada, em
que ela é colocada em xeque. Acho que ela deve ser estudada a partir
daí: Por que ela está sendo questionada ali? Quais são os elementos
que dão uma rebelião? O que não se suporta mais? O que tiveram
que suportar? E comecei a pensar. Quando cheguei à Bahia, achei
que ia encontrar pouco material, mas achei muita coisa, muita,
muita! Lembro que ia para a biblioteca da UFBA, dava uma olhada
nos livros, depois consegui ter acesso a alguns arquivos e vi que
havia muito material. Quando surgiu a figura da Luísa Mahin, me
perguntei: “Que mulher é essa?”. Uma escrava sendo contida como
uma mulher e tida como líder de uma rebelião muçulmana é algo
impensável até nos dias de hoje. Qual é o contexto que torna isso
possível? Era aquele contexto. Então, me encantei pela figura dessa

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mulher e tentei ir atrás dela. Não encontrei nada que remetesse es-
pecificamente a Luísa Mahin, a não ser nos escritos do Luís Gama,
mas historicamente não existe nada sobre ela. Tentando achá-la,
achei toda essa outra história e falei: “Isso não deve ficar de fora”.
Principalmente porque me encantou ali a história das mulheres num
contexto de escravidão, que é uma história que não, ou raramente,
tinha sido tocada na literatura brasileira, e tocada a partir de uma
extensão que não me satisfez. Então, falei: “Quero escrever o livro
que eu queria ler sobre aquele assunto”. O livro que eu estava pro-
curando não existia. Falei: “Então, vamos escrever!”

Cíntia – Nesse romance, você apresenta ao leitor uma protagonista


negra africana que, ainda muito jovem, perde toda e qualquer referência
de família, cultura e religião, passa por inúmeras adversidades na idade
adulta, findando em 89 anos de história. Como foi o processo de criação
da personagem Kehinde? Quais foram suas inspirações e influências
para criá-la?

Ana – A única coisa que eu tinha ali como ponto de partida era a
escravidão, considerando, por exemplo, que eu não tinha a menor
ideia de como se fazia pesquisa, já que trabalhava em publicidade.
Durante dois anos, só li e tomei notas. Lembro que tomava notas,
mas não anotava o livro, não anotava a página do livro, não anotava
coisa alguma. E, quando precisava daquela informação, não tinha a
menor ideia de onde tinha tirado. Mas essa história estava ali, en-
tranhada na minha cabeça, principalmente de onde é que surgiu a
Luísa Mahin. Falei: “Vou ter que fazer essa pesquisa mais ou menos de
novo, com as coisas que li”. E me lembrei de que alguns livros tinham
sido mais usados – que são os livros que coloco na bibliografia. Reli

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todos esses livros, procurando as anotações que tinha feito. O meu


caminho de leitura partiu dali e acabei me achando. Teria sido uma
pesquisa perdida durante dois anos, porque só li e não sabia onde,
não anotava as informações, não sabia onde é que eu tinha lido as
coisas. Não havia feito pesquisa na faculdade, não passava pela minha
cabeça fazer mestrado, nem doutorado, nem nada, mas falei: “Mas
estou fazendo ficção, isso não me interessa”. A única coisa sólida que
eu tinha como ponto de partida era o que o Luís Gama falava dela.
Acho que apenas dois parágrafos de uma carta, na autobiografia dele,
e dois poemas... trechos de dois poemas. Isso era o que eu tinha. Foi
daí que peguei a descrição dela, a informação de que ele tinha um
irmão, que depois ele nunca mais cita, e falei: “Esse cara morreu!”.
Tive que matá-lo, entendeu? Porque ele cita que lembra desse irmão
na infância e depois nunca mais fala dele. Foi a partir daí, a partir
desses escritos do Luís Gama. Como eu sabia de onde queria partir,
reli tudo que já tinha lido e fiz uma pesquisa mais aprofundada em
jornais e revistas de época. Queria saber, mas não existia absoluta-
mente nada sobre a Luísa Mahin. Nem prova de existência dela se
tem! Pode ter sido um fruto da cabeça do Gama, e eu adoro que seja,
adoro essa história! Que ela seja o fruto da cabeça de um filho que
perdeu a mãe muito cedo e teve que reinventar essa mãe! A mãe dele
não foi uma mulher qualquer. “Ela só me abandonou porque teve que
se sacrificar por uma causa maior, virando heroína e dona de uma
revolução”. Era essa a ideia que eu tenho, e parti deste princípio:
ela é uma invenção de Luís Gama, que pode ter se apropriado de
lendas que já existiam em torno dela, ou a partir dele essas lendas
se propagaram. Não tem comprovação de nada! Converso com vá-
rios historiadores e eles falam: “Poxa, que felicidade a tua de poder
escrever sobre ela a partir do ponto de vista da ficção, porque nós

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estamos de mãos atadas, não existe nenhum documento que prove


a existência dela, que ela realmente existiu”.

Cíntia – Será que algum documento que pudesse comprovar a existência


dela estivesse entre os que foram queimados pelo Rui Barbosa?

Ana – Talvez. Não se sabe. Mesmo assim, a única coisa que João Reis
encontrou é uma citação: “uma mulher chamada Luísa foi deportada
de volta para a África depois de uma rebelião de 37”, algo do tipo. Mas
só Luísa, não fala mais nada, ou seja, a única vez em que esse nome é
mencionado naquela época é essa Luísa que aparece nos documentos.
Não existe absolutamente mais nada. Inclusive se questiona, por
exemplo, a própria identidade do Gama! Fala-se “X” tese, mas não
se prova absolutamente nada. Fala-se que esse nem era realmente o
nome dele. E a partir desse “nem é o nome dele”, você perde o rastro
de quem ele realmente era, de quem era essa mulher. Ou seja, ele
poderia ter outro nome, com outra filiação, mas não tem. Eu falei:
“Então, como vou preencher isso?” Vou preencher com gente que
viveu na época em que, presumivelmente, ela viveu, nos lugares onde
ela, provavelmente, viveu, fazendo as coisas que ela fazia. Fui para os
jornais procurando anúncios de venda de escravos, vi que aquilo era
uma fonte maravilhosa. Aquelas histórias... lembro que, às vezes, eu
lia, ficava imaginando aquela escrava e vinha todo um outro contexto
na cabeça. Por exemplo: “escrava de tonso não raspado”. Eu falava:
“Gente, o que é isso?” Você vai pesquisar e encontra: “de tonso não
raspado” é que tem aquela carequinha de padre. Então, aquilo é “de
tonso”, e não raspado é quando cai naturalmente. Eu falei: “Por que o
cabelo de uma mulher cairia naturalmente?” E tinha várias escravas
de tonso não raspado. Eu falei: “O que será isso?” Você vai entender

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que elas eram vendedoras de quitutes quentes. Elas colocavam o


tacho quente na cabeça, o cabelo caía e nunca mais nascia. Quando
você aprende a ler esses anúncios, você aprende a ler a vida da pes-
soa, ou seja, uma escrava de tonso não raspado só poderia ser uma
vendedora de quitute quente, que fritava os bolinhos na rua, colocava
o tacho quente na cabeça e saía para vender. Tinha essas dicas nos
anúncios, e eu ia “viajando” (risos). É isto, um quebra-cabeça de
mulheres. Cheguei a reunir uns quatrocentos anúncios e algumas
cartas, principalmente cartas de alforrias, processos que escravos
abriam contra senhores, anúncios de venda e de comunicação de fuga.
Havia ali uma série de documentos. A partir daí, fui traçando essa
pessoa, essa mulher que me interessava nesses determinados locais.

Cíntia – Pensando nas personagens femininas que atravessam a histó-


ria de Kehinde, desde a avó, passando pela sinhazinha e Titilayo, como
você enxerga a posição e/ou presença das mulheres negras no Brasil e no
mundo em tempos de feminismo e sororidade?

Ana – É uma pergunta ampla. Até ali talvez, nesse contexto de


escravidão, podemos ver laços mais fortes de sororidade tendo que
se formar por uma questão de sobrevivência mesmo, vendo você
mesma falando quantas mulheres cercavam a história da Kehinde,
levando-a a cumprir esse destino que ela tem. São relações cons-
truídas de forma a praticar a sororidade nesses termos, porque
elas realmente precisavam umas das outras, por uma questão de
sobrevivência. A gente passou muito tempo não podendo exercer
essa sororidade, e aí falando só em termos de mulheres negras, que
sempre foram feministas sem saber. Quando veio a onda feminista
de 1960, 1970, “Aí, vamos sair para trabalhar fora?”, a mulher negra

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falou: “O que é isso? É isso que vocês estão chamando de feminismo?”


(risos) A dona de casa ter que sustentar a família, poder em termos
sustentar a família... Vocês estão falando de algo que está presente
na nossa vida há séculos! A possibilidade de falar abertamente de
sentimentos de pertencimento a núcleos que fossem familiares ou
de amigos, se pensarmos, por exemplo, em termos de empregada
doméstica, que é criada quase igual da família, que se dedica a estar
na casa das pessoas servindo a família das pessoas sem poder ter
seus próprios laços afetivos. É essa a necessidade de uma sororida-
de, de uma união da mulher negra se encontrar e se apoiar uma na
outra, e aí voltando a esse período da escravidão como estratégia
de sobrevivência, porque os problemas não pararam: ser separada
do filho, o outro filho morrer por quase nada, ter que ser forte, ser
abandonada pelos homens, ou seja, tudo continua igual! Daí vem
essa coisa do cuidado, do cuidar de si.

Cíntia – A escritora Conceição Evaristo afirma que as mulheres negras


na literatura brasileira (na maioria escrita por homens) são vistas como
estéreis, ou seja, não são mães. Em sua obra, você quebra esse paradigma
duplamente: por retratar mulheres negras mães e pelo fato de ser uma
mulher a fazê-lo. Percebemos que o tema da maternidade costura a nar-
rativa de Kehinde do início ao fim. Isso se deve à relação com a história
de Luísa Mahin?

Ana – Sim, para o Luís Gama isso tem uma questão familiar, a cons-
trução dessa heroína na cabeça desse menino de sete anos, a figura
dessa mulher, a impossibilidade de ela ter exercido a maternidade com
esse filho. Num contexto de onde ela veio escrava, ela só se tornou
mãe e pôde criar os filhos depois de voltar para a África, então em solo

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brasileiro há essa “infertilidade”. Uma coisa que sempre me fascinou


foi a questão do “ventre livre”. Esse termo é muito interessante de
se analisar. Uma das grandes crueldades com a mulher negra é que o
corpo dela era usado não para gerar vida, mas apenas para perpetuar
um estado no qual ela se encontrava, ou seja, através desse ventre,
de mulher negra, desse ventre cativo, é que a gente pode começar a
estudar a expressão “ventre livre”, pensar no quanto esse filho nunca
lhe pertenceu. Tudo o que saía dali, na verdade, era entregue para
algo que ela nunca tinha controle. Essa questão da maternidade, na
mulher escrava, era terrível, porque ela tinha que tomar essa decisão,
em termos, mas ela tinha que saber que ao mesmo tempo que ela
estava gerando um filho, ela gerava condições para que a escravidão
perpetuasse. O filho, nesse contexto, é algo muito doloroso de se
ter. Porque, por exemplo, se um escravo tivesse um filho com uma
mulher livre, esse filho nasceria livre. Ela determinava a condição
dela, a condição do ventre dela, se está livre ou se está preso, é isso
que determina um futuro de escravidão ou de liberdade.

Cíntia – A questão do próprio corpo feminino é o determinante de tudo.

Ana – Exatamente, a condição de reprodutibilidade, da criação e


da recriação de um sistema em que ela estava. Se todas as mulheres
negras, de repente, ficassem estéreis, acabaria a escravidão? Porque
era a partir dela que a escravidão se perpetuava! Isso sempre me
marcou muito. E uma das coisas mais interessantes é que isso está
muito presente, acho, na ideia do Luís Gama sobre essa busca pela
mãe, esse encontro, essa tentativa de encontro que ele tenta fazer
com a mãe. Tanto que uma das coisas mais geniais dele é que ele foi
o primeiro advogado, no Brasil, a usar o habeas corpus.

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Cíntia – Luís Gama chegou a ser diplomado?

Ana – Não, ele atuava como rábula, mas com poderes de diplomado.
Era considerado advogado, apesar de não ter formação. O habeas
corpus número 0001 do Brasil é do Luís Gama. Ele tinha muita noção
dessa questão, dessa ideia do ventre livre, que é, na verdade, a tese
que possivelmente ele usou para se libertar. Ele dizia: “não, eu nasci
de um ventre livre, eu não sou, eu não poderia ter sido escravizado
como fui, eu nasci livre, não se escraviza ninguém. Ou se nasce escra-
vo, ou não se é”. É a partir daí que acho que era uma coisa que estava
pessoalmente muito forte nele. A questão da maternidade era algo
muito latente nesse período, porque eu estava decidindo se queria
ou não ser mãe. Era algo que estava em contexto para mim, e acabei
decidindo que não queria ser mãe. Não sei se coloquei tudo isso, fiz
terapia no livro (risos). Era algo, também, que estava ali na minha
cabeça. Não sei até que ponto essa questão pode ter contaminado
a história ou não. Mas para mim era muito forte essa questão da
maternidade a partir do Gama.

Cíntia – Pensando ainda sobre as personagens femininas, você apre-


senta uma rainha, Agontimé, líder da Casa das Minas, no Maranhão.
Conte-nos um pouco mais sobre a presença dessa personagem e como ela
surgiu em sua pesquisa.

Ana – Isso vem da pesquisa de onde, possivelmente, a Luísa Mahin


nasceu: a etnia Mahi, que é uma etnia de culto aos voduns. Eu a vi
a partir da África. Inicialmente, quando o nome dela surgiu, nem
sabia que ela tinha vindo para o Brasil e falei: “Poxa, outra mulher...”.
Então, veio essa questão do poder do feminino, a vida dessas sacer-

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dotisas... Me interessava muito esse sagrado feminino, essa mulher


com poderes, que até dentro do candomblé são as anciãs ou figuras de
poder, que tento colocar o tempo inteiro, a começar por essa, e pela
avó da Kehinde. Ou seja, toda essa história começou no continente
africano, que ela conta no primeiro parágrafo: “tinha seis anos, quase
sete, quando esta história começou. O que aconteceu antes disso não
tem importância, pois a vida corria paralela ao destino”. O desvio
desse destino acontece porque o personagem, um dos guerreiros do
rei Adandozan, descobriu a cobra no portal da casa, mostrando que a
avó da Kehinde era uma das sacerdotisas de culto vodun. A principal
sacerdotisa, a guardiã do culto, tem a cobra, ou Adã, no local onde
elas moravam – na época, era Agontimé. Eu falei: “Preciso trazer
essa Agontimé para a história também”. Ou seja, toda a história se
desencadeia através de um culto a um deus, a uma entidade. Naquele
lugar, esse culto era guardado e cultivado por mulheres. Quis trazer
essa figura, esse sagrado feminino, esse poder, essa feitiçaria, essa
magia que é própria do feminino, permeando o livro o tempo inteiro,
como no momento em que Kehinde, desesperada achando que não ia
conseguir comprar a liberdade dela e do filho, faz aquela chantagem
com a Sinhá. Ela só pode fazer aquilo a partir do ouro que ela acha
dentro da imagem de Oxum que ela tinha.

Cíntia – Não podia ser nenhum outro Orixá, não é? (risos)

Ana – Não, não. Assim, outras coincidências foram aparecendo. Não


consigo muito distinguir, nesse período de cinco anos que fiquei no
livro, o que era real e o que era do livro. Mas só depois de ter colocado
Oxum resolvendo toda a história da Kehinde, ali, naquele momento,
foi que descobri que sou de Oxum. Não tinha a menor ideia (risos).

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Para mim também houve uma figura, que é, hoje, a minha mãe, a
mãe Lindaura, que também foi fundamental para essa história. Eu te
falei que fui criada numa família católica, apostólica, mineira, meus
pais são ministros de Eucaristia, aquelas coisas de interior de Minas.
Para mim o Candomblé, a Umbanda, o Espiritismo eram mais ou me-
nos a mesma coisa, e uma coisa da qual eu tinha medo, cresci tendo
medo. Eu já estava morando há um ano e pouco na Bahia, quando
percebi que não teria como fugir de saber o que era o Candomblé,
o que eram, realmente, essas religiões. Foi quando uma senhora
que trabalhou lá em casa, em Itaparica, falou: “Olha, eu frequento
o Candomblé, posso te levar lá para conhecer minha mãe”. Eu disse
que queria, mas adiei, adiei, adiei, morrendo de medo. Vai que chego
lá e essa mulher fala para mim que vou morrer ou que tenho uma
doença incurável? Eu tinha medo de ela me falar coisa ruim, sabe?
Morria de medo dela, das coisas que ia me falar, como se, ao chegar
lá, ela olhasse para mim e soltasse todos os podres da minha vida.
Só que me apaixonei pela mãe Lindaura no primeiro encontro, e a
gente ficou horas e horas conversando, ela me explicando o que era
o Candomblé, o papel dela, o papel das mulheres, o que acontecia ali
dentro, quem eram essas entidades, quem eram os Orixás. Foi minha
consultora para assuntos “candomblecísticos” para o livro. Há outras
figuras no livro, principalmente figuras masculinas, que nem Baba
Ogumfiditimi, que são importantes na vida dela, mas tentei destacar
sempre esse culto do escondido, do sagrado, porque o feminino é que
me interessava. É bem interessante pensar, num contexto de rebelião
escrava, o quanto essas mulheres, que eram sacerdotisas, guardiãs
desse sagrado feminino, dentro de um culto de matriz africana, foram
importantes nessas rebeliões. Isso é que possibilita, por exemplo, a
existência de uma Kehinde. Se você observar, principalmente dentro

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da Bahia, os líderes de rebeliões ou de aquilombamentos, você tem


ali mais figuras femininas do que masculinas. As donas de quilombo,
na Bahia, eram as mulheres. E esses quilombos começavam a se for-
mar, mais ou menos, através de reuniões religiosas que tinham que
ser afastadas, para que esses cultos não fossem conhecidos, o que
acabou agregando outros, ali do lado, até que chegou uma época que
se falou “isso é um quilombo”. Na verdade, nem todos tinham essa
ideia de aquilombamento, mas de reunião onde pudessem exercer
esses cultos, que não eram permitidos socialmente e precisavam
acontecer em regiões mais afastadas. Havia essa ideia então. Você tem
figuras como a Zeferina, do quilombo do Urubu, que coloco aí. Essas
mulheres eram grandes lideranças! Não consigo entender, ainda,
uma liderança dentro de um contexto mulçumano, que foi esse da
Kehinde, mas, dentro de um contexto brasileiro, ou afro-brasileiro,
é perfeitamente entendível. E acho que passa por essa questão da
religiosidade. Como é até hoje! É maravilhoso você ir àqueles terreiros
da Bahia com essas grandes matriarcas da história do Candomblé.
O Candomblé foi trazido para a Bahia por três mulheres; conto essa
história da formação do Candomblé na Barroquinha. Diante dessas
figuras tão fortes, quando surgiu Agontimé, falei: “Essa mulher, eu
preciso, eu quero trazer essa mulher para o livro também”. Foi aí que
vi que ela foi deportada para o Brasil, como a história de tantas outras
mulheres, e aqui no Brasil uma rede de proteção a reconhece como
rainha e líder religiosa, a protege, cria um círculo em torno dela e
vai tentando agregar mais pessoas. Foi a partir dela, vindo de lá, que
falei: “Vou usar essa mulher, colocar a avó, o gatilho disparador da
história vai ser esse; essa mulher vai voltar para a história depois”.
E fui pesquisando como ela se encaixaria depois nessa história. Isso
faz parte inicialmente, acho, de um processo intuitivo meu, sobre o

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que essa mulher tem ao vê-la na África – “essa mulher tem que entrar
na história”. Realmente, ela tinha elementos para entrar nessa história
depois e fez parte daquele processo braçal. Depois que comecei a ver
o livro, a escrever, fui para a parte técnica: “Preciso colocar ação aqui,
esse personagem que coloquei lá na frente desapareceu, preciso voltar
com ele na história de novo”. Assim ela foi ganhando mais espaço e
ficando com mais força nessa história, fazendo essa ponte Brasil e
África e representando a ancestralidade da Kehinde, tanto que, quando
ela fala que foi para o Candomblé, recebe a resposta “tua missão não é
aqui dentro, tua história não é aqui. Os teus voduns são fortes demais
e vão engolir os nossos Orixás”. Ou seja, sua ancestralidade, a herança
que você trouxe da sua avó, sua história, a gente acolhe aqui, mas ela
não é daqui, “vá procurar os voduns da tua avó”. Kehinde não acaba,
necessariamente, o processo de iniciação dentro do Candomblé, por
causa desse culto vodun, que é muito forte, muito entranhado nela,
uma coisa que para mim também acaba aí. Depois você vai vendo
essas coincidências, esses paralelos, meu encanto pelo Candomblé,
que é hoje a religião mais próxima de mim, mas os Orixás não me
deixam iniciar, eles falam: “Tua missão não é essa, você não é daqui”.
Não estão me mandando ir para outra, mas falam: “Teu caminho não
passa pela iniciação”.

Cíntia – Então nada foi ao acaso, assim como não foi por acaso que a
Agontimé apareceu, porque assim você consegue fechar esse sagrado fe-
minino, como se todas essas mulheres, todas as Iansãs, Iemanjás, Nanãs
e Oxuns estivessem ali transfiguradas na figura da Agontimé.

Ana – Sim! Ela é deportada de África, com medo de que ela proteja
seu filho de sangue, em relação à sucessão do trono, ou seja, ela só

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é enviada embora porque esse poder feminino é reconhecido, esse


poder do sagrado que ela representa, e esse poder representa um
perigo para as instituições estabelecidas.

Cíntia – Na trilogia chamada Alma da África (1969, 1980 e 1987), de


Antonio Olinto, ele retrata a saga de personagens femininas fazendo o
caminho inverso de Kehinde: saem do Brasil rumo à África. Você sentiu-se
compelida pela obra de Olinto a trazer à cena esse caminho inverso, ou
seja, fazer um retorno de África?

Ana – A casa da água é um dos livros que mapeiam minha escrita do


livro Um defeito de cor. Me chama a atenção aquela figura feminina,
que consegue se estabelecer profissionalmente, tanto que, quando
ela abre o poço, eu falo: “Eu não posso abrir um poço também, então
o que vou fazer? Vou construir a casa”. (risos).

Cíntia – (risos) Achei surpreendente, para dizer o mínimo, quando Ke-


hinde fala que vai vender cookies. Logo pensei: “Como uma escrava vai
começar a vender cookies em pleno centro do Rio?”.

Ana – Adorava sair ali das barcas, onde tem a Praça XV, caminhando
por aqueles becos, pela rua do Ouvidor, e fazia o livro: “Passei pela
rua do Ouvidor, pela rua do não sei o quê”. Ia para o mapa e dizia
assim: “Quando eu for ao centro do Rio, vou caminhar por essa rua
aqui” (risos). Inclusive, uma pesquisadora da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) está fazendo uma tese com um
tema maravilhoso, que se intitula Cartografia afetiva em Um defeito
de cor. Ela está indo a todos os lugares que cito no livro, fotogra-
fando e analisando como eles eram na época, como eu os descrevo

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e a história de alguns desses lugares em Salvador e no Rio. É muito


interessante.

Cíntia – Você está trabalhando em algum novo projeto?

Ana – Depois do lançamento do livro, dei uma travada, porque não


esperava essa recepção. Eu estava escrevendo para mim, era uma
curiosidade minha, uma pesquisa que era minha, sem nenhuma
pretensão. Isso já era algo que estava sendo feito muito no particular,
mas, quando o livro foi lançado, criou-se uma expectativa, que eu
também acabei criando: “O que vou fazer agora, que está todo mun-
do sabendo que escrevo e tenho esse livro?” Durante sete anos, não
consegui escrever. Comecei vários livros, sem conseguir terminar,
porque as pessoas me cobravam ainda Um defeito de cor, ou com a
temática, ou uma continuação, ou um modelo.

Cíntia – Isso é tão ruim, porque sobrecarrega o processo criativo.

Ana – Sim, também me pressionei muito. Várias coisas que eu falava


deram uma travada básica: “Não, não é isso, não está bom, não quero
isso, me desinteressei da história”. Vários livros começados e nada.
Mas sei que o tema, o meu tema, é o racismo. Escritor tem isso. Há
quem escreva sobre o mar, as viagens. Meu tema é racismo, não tem
como ser diferente. É o tema que me interessa. Durante uma pesquisa
de cinco anos, esse é o tema que conseguiu me prender durante todo
esse tempo, e isso, para quem escreve, é extremamente importante.
Consegui achar um livro e só depois entendi que Um defeito de cor
aconteceu para mim dentro de um portal que se abriu. Entrei, escrevi,
saí, ele se fechou e nunca mais vai se abrir de novo. Preciso do “move

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on”, preciso deixar que o livro siga o caminho dele, siga a história
dele, como de fato ele segue. Ele funciona à minha revelia ao ponto
de eu te falar: “Nossa! Isso... onde a pessoa leu isso? Onde é que
está isso?” Não veio de mim, veio de quem está lendo. Ao entender
isso, percebo que não é mais algo meu. Acho que consegui partir
para uma outra coisa, apesar de ter esse fio condutor do racismo. É
um livro juvenil, que acabei, mais ou menos, há um ano e ainda está
descansando, para eu começar o processo de reescrita dele.

Cíntia – Uma guinada.

Ana – É um juvenil, mas é um juvenil de 450 páginas (risos). Outro


livro que eu queria ter lido quando era criança e tinha que pegar a
lombada grossa lá da estante da minha mãe (risos). É um policial de
ficção científica. São três elementos que me afastam completamente
de Um defeito de cor. É um livro que narra a história de um menino,
o único aluno negro de um dos colégios mais tradicionais daqui de
São Paulo, o Sion. A história se passa em 2064, trinta anos depois de
São Paulo ter se separado do resto do Brasil. Ou seja, é uma utopia
ou uma distopia, ainda não sei como é que se pode categorizar.

Cíntia – Alguma relação ou inspiração com A geração da utopia, de


Pepetela?

Ana – A distopia (risadas) é... Estão para sair esse livro e três
peças de teatro. Acho que uma vai ser montada ainda neste
ano, a outra acabou sendo adaptada para o cinema, talvez seja
filmada no ano que vem. Estou escrevendo para cinema e para
TV também. Sou completamente apaixonada por séries. Percebi

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que são suportes que me interessam muito e apresentam outras


possibilidades que vão além do livro. No teatro, você pode traba-
lhar com outros sentidos, não só a visão; posso trabalhar com o
cheiro, com o gosto. Isso também faz parte dessa coisa da minha
formação como ouvidora de histórias a partir da minha avó. A
mãe do meu pai era indígena, ela não tinha a menor ideia disso,
a gente também não, mas, vendo a foto dela, aquelas mulheres...
uma mulher baixinha, tarrancuda, morena, cabelo pretinho,
lisinho, uma índia! Eu me lembro dessa avó cozinhando, da co-
zinha da casa dela, embora ela gostasse de cozinhar no quintal.
E me lembro também dela montando tijolos para fazer fogo,
protegendo o fogo, fazendo comida de cócoras, já com sessenta,
setenta anos, fazendo comida e contando histórias.

Cíntia – Com aquela criançada em volta... zanzando.

Ana – Exatamente! Ela tinha uma horta muito grande, todas as


plantinhas dela, frutas, verduras. Ela virava para a gente e dizia:
“Vai lá e pega para mim uma folhinha de tomilho”, ou sei lá o quê,
alguma coisa, não tinha a menor ideia do que era aquilo. Aprendi
com ela: “Sente o cheiro, olha o cheiro, isso aqui é hortelã, isso aqui
é não sei o quê”. Ela benzia muito, com arruda, tudo está muito
presente para mim... esse cheiro de arruda no cabelo dela. Isso
também é algo que você consegue, que você tenta descrever no
livro, mas também tem outras mídias que me interessam, porque
posso agregar isso sensorialmente, falando e visualmente também.
Sou muito visual, vejo a cena e falo: “Como posso escrever?” Vejo a
cena e descrevo a cena... Eu preciso! Como eu disse, contava muita
historinha, que acho que veio dessa coisa de a minha mãe, lá atrás,

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me estimular a contar historinha, inventar historinha. Sempre


contei muita historinha para mim. Se as pessoas pudessem entrar
dentro da minha cabeça, eu ia ser internada! Porque é o mesmo
que está acontecendo aqui, milhares de diálogos com entes, com
pessoas imaginárias ou com pessoas reais... Sabe aquela coisa de
“você precisa falar algo para alguém”, mas fica ensaiando na cabe-
ça, virando a cabeça, contanto historinha, montando cenário? É
isso o tempo inteiro! Para mim essa coisa de ver antes de escrever
é muito importante. É óbvio que tenho, na minha cabeça, a cara
de todas as personagens, mas a Kehinde é a única que, para mim,
mesmo pensando nela velhinha, aos oitenta e tantos anos, voltando
nesse navio, a figura que vem para mim é de uma menina de seis,
sete anos. Para mim ela não cresceu, não cresceu! Não consigo
imaginar uma Kehinde velha. Isso não passa pela minha cabeça.
E é muito engraçado, porque essa menina, a figura dessa menina
vem de uma foto que vi, por acaso, na internet, quando estava
procurando essas/esses personagens e essas caras. É de uma obra
do Vik Muniz, uma menininha que ele faz de açúcar. Para mim essa
é a figura da Kehinde.

Cíntia – Obrigada por teres concebido a tua, agora nossa, Kehinde para
o mundo. Penso que escreveste para todas as mulheres, independente-
mente de serem negras, brancas, indígenas. Penso que a protagonista
consegue unir todos esses traços, sejam eles negros, indígenas, brancos,
portugueses, como a própria sinhazinha. Muito obrigada!

Ana – Oh, querida, obrigada... obrigada por se debruçar sobre


ele, fazendo essas leituras. Acho que já deu para perceber como
a figura da minha mãe, na minha profissão, é importante. É a

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pessoa que me fez, que me ensinou a gostar de ler, que me ensinou


a gostar de contar histórias. Eu a vejo como uma mulher muito
representativa dessa mulher brasileira, impedida por condições
socioeconômicas de desenvolver todas as suas potencialidades.
Uma mulher brilhante que não teve condições de se desenvolver
e de mostrar esse brilhantismo. Isso é muito representativo da
figura da mulher na sociedade brasileira. Renegada, colocada em
segundo plano, não sendo ouvida, não sendo chamada, não sendo
valorizada, não tendo tempo para pensar, para se desenvolver.
Para mim, a minha mãe é essa mulher que reúne essas coisas
todas. Eu falo, eu escrevo para agradar minha mãe. Não tenho
a menor dúvida disso. Tudo o que escrevo passa antes por ela,
desde os meus artigos no The Intercept até pitica. Ela até já está
aprendendo toda a nomenclatura de termos de uso em cinema.
Por exemplo, quando estou trabalhando, eu falo: “Mãe, vou te
mandar a pitica”, e ela: “Ah, mas essa pitica tá com pouco plot”
(risos). Tudo o que é meu passa por ela, e às vezes a gente discor-
da, a gente concorda, ela dá muita opinião. Ela é extremamente
opinativa, mas agora a gente já aprendeu a trabalhar, ou seja,
tem coisas que posso aceitar, tem coisas que não, e ela não leva
mais para o pessoal (risos), porque, a partir disso, ela também
começou a entender a técnica de escrita, o que tem que ter e qual
a fundação de uma história, as etapas de desenvolvimento de uma
história... Ela foi estudar isso para poder me ajudar também e
fala: “Ah, está faltando não sei o quê; olha, mas você já está aqui
há quatro minutos, dentro da primeira cena, e ainda não tem a
cena inaugural do personagem, o que você vai fazer?”.

Cíntia – Essa interação entre vocês é inspiradora!

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318 Entrevistas

Ana – Escrevo para agradar minha mãe, se ela não gostou – e isso,
independente de ela concordar ou não com a história –, se a mãe não
gostou, não... não...não sai!

Cíntia – É um crivo decisivo...

Ana – É! Ela fala: “Ai, está ruim, que chato, não consegui nem chegar
ao final, não consegui nem chegar à terceira página, está um saco!”

Cíntia – E, para quem escreve qualquer coisa, seja um artigo, seja um


texto de ficção, é tão importante que um outro leia e interaja com nosso
texto.

Ana – Sim, é tão importante alguém que tenha essa liberdade, o que
é algo muito difícil de achar dentro do cenário literário brasileiro,
que é laudatório. Então, falo: “Tenho a minha crítica particular, que
é minha editora, que é maravilhosa”. E ela fala: “É óbvio, sou tua
mãe, não vou te deixar passar vergonha” (risos). É exatamente isso
que eu quero, alguém que me fale: “Amiga, olha a alface no dente!
Menos, né?”.

(Neste momento, a escritora mostra a fotografia à entrevistadora.)

Ana – Esta é a figura! Esta mulher media. Esta mulher talvez toque
tantas pessoas, porque chegou a tocar a mulher para quem escrevo.

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Uma das mais importantes séries de Vik Muniz é Crianças de açúcar, de


1996,  com a qual o artista participou da mostra  New Photography,  de
1997-98, no MoMA. Essa série retrata filhos de trabalhadores de planta-
ções de cana no Caribe, mostrando o paradoxo da doçura do açúcar com o
amargor de suas vidas. As obras foram feitas com vários tipos de açúcar.
Depois de fotografado, o açúcar foi colocado em potes rotulados com as
fotografias originais e expostos em diversos museus pelo mundo. 

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