ANA MARIA GONCALVES Meu Livro Foi Minha Busca Tamb
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Fórum Lit. Bras. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 12, nº 24, pp. 291-319, dez. 2020.
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Professora adjunta do Curso de Letras da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).
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Cíntia Acosta Kutter – Quem é a Ana Maria? De onde ela vem? Não
a Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor, mas a Ana Maria.
Quais são suas origens?
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so, de lazer e de leitura. Para mim livro sempre foi isso. Eu me lembro
de que, quando comecei a ler – não fui nenhuma menina precoce –,
ela falava: “Me conta a história que está aí. A letrinha se parece com
o quê?” As letras. Lembro que eu pegava o livro só com o bloco de
texto mesmo e contava a história para ela. “Mãe, mas de que é esse
livro?”. Ela me falava que o livro era, sei lá, Crime e castigo: “É sobre
um homem que matou o outro, mas ele não quer ser punido. Me conta
essa história”. Me fazia abrir o livro e eu contava a história para ela,
da minha cabeça, achando que era o que estava escrito ali, enquanto
ela ia meio que guiando, dando pistas. Foi uma questão muito mais
de estimular a imaginação do que de aprender a ler.
Ana – Quando fui para a escola, eu era daquelas que ia para a biblio-
teca. Não sei como é hoje. Pelo menos nas bibliotecas que frequento
atualmente, a gente pode entrar dentro da biblioteca. Mas lá em
Ibiá, naquela época, não podia. Era a bibliotecária que entregava
os livros. E ela entregava os livros apropriados para minha idade.
Lembro que eu olhava aqueles livros cheios de desenho, com vinte
páginas, sentava no chão, encostada no balcão, lia e gritava: “Acabei,
acabei, acabei!”. Um dia, a mulher encheu o saco e falou: “Não tem
mais livros para você aqui”. Isso aconteceu sete ou oito meses depois
de eu começar a ler. Voltei para casa e contei para minha mãe, que
me disse: “Leia os meus, se é o que você quer”. Ela arranjou os livros
na estante e falou: “Lê tudo o que alcançar”. Alcançar fisicamente!
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Ana – Verdade! Os livros não eram muita coisa. O dinheiro dela era
pouco. Lembro que chegavam aqueles caixeiros-viajantes em casa
para vender livro. Eles passavam a cada quinze ou vinte dias, porque
não tinha livraria.
Ana – Exatamente! Eram uns livros de capa dura, vermelha, com uma
encadernação bonita com letras douradas. Eu me lembro de todas
essas coisas lá em casa e de quando comecei a ler escondido. Com
oito anos, estava lendo escondido as coisas que não podia. Lembro
que, à noite, ia pegar os livros para ela não ver. Arrastava a cadeira,
subia e, no escuro, sem acender a luz, passava a mão e pegava o livro
que tinha a lombada mais grossa, que é a que eu demoraria mais
tempo para ler e me arriscaria menos. Assim li quase tudo que quis.
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Ana – Sim, ler Capitães da areia para mim foi um choque porque,
em Ibiá, apesar de ser uma cidade pobre, não tinha órfão, não tinha
criança de rua abandonada, não existia isso no meu universo. En-
tão, minha mãe falou: “Olha, os livros servem para isso. Esse outro
universo, esse além das montanhas de Minas!” Com O exorcista,
senti o poder do livro, porque o li morrendo de medo! Eu li à luz
de velas! Não queria acender a luz para minha mãe não ver a luz
escapulindo pela porta. Lembro que eu podia ler até quinze para
meia noite. Isso ela permitia todo dia, mas às vezes o livro estava
tão bom, que eu apagava a luz, esperava-a dormir e acendia a vela.
Minha mãe tinha feito a mesma coisa na casa dela (da minha avó),
só que com lampião. Ela falou: “Quando eu acordava de manhã,
tinha que explicar o porquê de ter gastado todo o óleo do lampião”.
O óleo do lampião era contado para eles, e ela gastava para ler! Ela
falou que, então, foi trabalhar para ajudar a pagar a conta da luz da
leitura dela. Eu lia à luz de velas! Voltando a O exorcista. Quando o li,
fiquei apavorada e queria ir dormir no quarto dela. Tive que contar o
que estava acontecendo e ela falou: “Ó, te falei que era para pegar só
o que você alcançava, né? Você me desobedeceu e acho que não vai
voltar atrás. Leia o que quiser, mas assuma isso. Você não vai dormir
no meu quarto!” Durante três meses, pegava meu colchão, ia para
a porta do quarto deles e ficava ali, mas ela não deixava. “Assuma
suas leituras, assuma o que você está lendo”, ela dizia. Foi assim que
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tomei gosto pela leitura. Aos nove anos, saímos de Minas, porque
meu pai trabalhava na Nestlé e foi transferido para Porto Ferreira,
no interior de São Paulo. De lá vim para São Paulo fazer faculdade,
cursei publicidade, sempre lendo muito, mas profissionalmente.
Nunca tinha pensado na literatura como profissão.
Cíntia – Mesmo com os livros de Jorge Amado longe das tuas mãos lá
na estante da tua mãe, na vida adulta é ele quem te chama para a Bahia,
certo?
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Ana – Tem isso no livro, a Bahia, esse chamado. Acho que é essa a
minha história, basicamente. Alguém tão apaixonada por contar
histórias, por literatura, a ponto de abandonar tudo! Eu tinha uma
empresa, eu tinha um casamento, eu tinha uma casa, eu tinha tudo
aqui em São Paulo e, na hora em que veio esse chamado, fui embora
para Itaparica, e o resto que se ajeite (risos). Foi um retorno de Sa-
turno aos 29, o perfeito retorno!
Cíntia – Que ótimo que tu fizeste esse retorno, porque sem ele a Kehinde
não teria nascido! (risos)
Cíntia – Em certa entrevista, você afirmou não ser uma escritora, assim
como a moçambicana Paulina Chiziane, mas uma contadora de histórias.
Por que você prefere não se “encaixar” nessa nomenclatura?
Ana – Não era, não era essa história, ou seja, era a mesma história,
mas era uma outra coisa. Uma literatura distante, fria...
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Ana – Exatamente! Falei: “Não é isso que quero, preciso entrar mais
nessa história”. Na hora que comecei a escrever o texto em primeira
pessoa, veio na minha cabeça a voz da minha avó, a mãe do meu pai
contando a história, e falei: “É isso! É essa contação de história que
eu quero”. Eu gosto de história! Quero saber o que vai acontecer, fico
elaborando mil hipóteses na minha cabeça sobre o que acontece em
seguida, o que não acontece. Então, eu falei: “É isso que eu quero!
Quero escrever histórias, quero contar histórias”. O livro para mim
tem uma voz, tem que ter. Qualquer história para mim é uma voz.
Tenho que ouvir essa voz me contando a história e transcrever. Por
isso me sinto uma contadora de histórias e, depois disso principal-
mente, entendi que não é só o suporte livro que me interessa. Estou
escrevendo para teatro, cinema, TV e vi que não faz diferença nenhu-
ma a ferramenta, o suporte, para contar essas histórias. Ao invés de
ficar colocando roteirista, dramaturga, escritora, prefiro contadora
de histórias, em qualquer que seja a ferramenta.
Cíntia – Você afirma que a pesquisa que deu origem à obra Um defeito
de cor (2006), inicialmente, trataria da Revolta dos Malês (1835), mas,
conforme a pesquisa tomava forma, acabou desviando para outro objetivo,
que resultou no romance. Qual foi o ponto crucial durante a pesquisa que
te encaminhou para esse outro viés?
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pensar. Minha mãe é negra, meu pai é branco, mas minha mãe é
aquela negra muito mais clara que eu, filha de uma família de oito
irmãos. Tenho tios desde retintos até minha mãe, que é a mais clara.
Mais clara que eu, de olho verde, mas cabelo pixaim. Não havia na
minha casa essa discussão, nem em família, nem em nada. O meu
livro foi a minha busca também, por construir uma identidade de
uma história que me foi negada, a história dos negros no Brasil. O
que me encantou inicialmente foi a história dos Malês, por causa do
livro do Jorge... O chamado (risos). Nunca tinha ouvido falar dessa
revolta e achei que ninguém tinha ouvido falar, porque aqui no Su-
deste a gente não estuda a rebelião Malê. Eu nunca tinha estudado.
Citavam nos livros uma rebelião escrava ou outra, mas uma coisa
assim, que não tinha a ver. Quando comecei a pesquisar a rebelião
Malê, instigada pelo livro do Jorge Amado, abriu-se um universo.
Eu vi que, a partir dali, havia uma finalidade, que era acabar com a
escravidão, pelo menos naquele espaço. Passei a estudar a história
da escravatura a partir do momento em que ela é questionada, em
que ela é colocada em xeque. Acho que ela deve ser estudada a partir
daí: Por que ela está sendo questionada ali? Quais são os elementos
que dão uma rebelião? O que não se suporta mais? O que tiveram
que suportar? E comecei a pensar. Quando cheguei à Bahia, achei
que ia encontrar pouco material, mas achei muita coisa, muita,
muita! Lembro que ia para a biblioteca da UFBA, dava uma olhada
nos livros, depois consegui ter acesso a alguns arquivos e vi que
havia muito material. Quando surgiu a figura da Luísa Mahin, me
perguntei: “Que mulher é essa?”. Uma escrava sendo contida como
uma mulher e tida como líder de uma rebelião muçulmana é algo
impensável até nos dias de hoje. Qual é o contexto que torna isso
possível? Era aquele contexto. Então, me encantei pela figura dessa
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mulher e tentei ir atrás dela. Não encontrei nada que remetesse es-
pecificamente a Luísa Mahin, a não ser nos escritos do Luís Gama,
mas historicamente não existe nada sobre ela. Tentando achá-la,
achei toda essa outra história e falei: “Isso não deve ficar de fora”.
Principalmente porque me encantou ali a história das mulheres num
contexto de escravidão, que é uma história que não, ou raramente,
tinha sido tocada na literatura brasileira, e tocada a partir de uma
extensão que não me satisfez. Então, falei: “Quero escrever o livro
que eu queria ler sobre aquele assunto”. O livro que eu estava pro-
curando não existia. Falei: “Então, vamos escrever!”
Ana – A única coisa que eu tinha ali como ponto de partida era a
escravidão, considerando, por exemplo, que eu não tinha a menor
ideia de como se fazia pesquisa, já que trabalhava em publicidade.
Durante dois anos, só li e tomei notas. Lembro que tomava notas,
mas não anotava o livro, não anotava a página do livro, não anotava
coisa alguma. E, quando precisava daquela informação, não tinha a
menor ideia de onde tinha tirado. Mas essa história estava ali, en-
tranhada na minha cabeça, principalmente de onde é que surgiu a
Luísa Mahin. Falei: “Vou ter que fazer essa pesquisa mais ou menos de
novo, com as coisas que li”. E me lembrei de que alguns livros tinham
sido mais usados – que são os livros que coloco na bibliografia. Reli
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Ana – Talvez. Não se sabe. Mesmo assim, a única coisa que João Reis
encontrou é uma citação: “uma mulher chamada Luísa foi deportada
de volta para a África depois de uma rebelião de 37”, algo do tipo. Mas
só Luísa, não fala mais nada, ou seja, a única vez em que esse nome é
mencionado naquela época é essa Luísa que aparece nos documentos.
Não existe absolutamente mais nada. Inclusive se questiona, por
exemplo, a própria identidade do Gama! Fala-se “X” tese, mas não
se prova absolutamente nada. Fala-se que esse nem era realmente o
nome dele. E a partir desse “nem é o nome dele”, você perde o rastro
de quem ele realmente era, de quem era essa mulher. Ou seja, ele
poderia ter outro nome, com outra filiação, mas não tem. Eu falei:
“Então, como vou preencher isso?” Vou preencher com gente que
viveu na época em que, presumivelmente, ela viveu, nos lugares onde
ela, provavelmente, viveu, fazendo as coisas que ela fazia. Fui para os
jornais procurando anúncios de venda de escravos, vi que aquilo era
uma fonte maravilhosa. Aquelas histórias... lembro que, às vezes, eu
lia, ficava imaginando aquela escrava e vinha todo um outro contexto
na cabeça. Por exemplo: “escrava de tonso não raspado”. Eu falava:
“Gente, o que é isso?” Você vai pesquisar e encontra: “de tonso não
raspado” é que tem aquela carequinha de padre. Então, aquilo é “de
tonso”, e não raspado é quando cai naturalmente. Eu falei: “Por que o
cabelo de uma mulher cairia naturalmente?” E tinha várias escravas
de tonso não raspado. Eu falei: “O que será isso?” Você vai entender
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Ana – Sim, para o Luís Gama isso tem uma questão familiar, a cons-
trução dessa heroína na cabeça desse menino de sete anos, a figura
dessa mulher, a impossibilidade de ela ter exercido a maternidade com
esse filho. Num contexto de onde ela veio escrava, ela só se tornou
mãe e pôde criar os filhos depois de voltar para a África, então em solo
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Ana – Não, ele atuava como rábula, mas com poderes de diplomado.
Era considerado advogado, apesar de não ter formação. O habeas
corpus número 0001 do Brasil é do Luís Gama. Ele tinha muita noção
dessa questão, dessa ideia do ventre livre, que é, na verdade, a tese
que possivelmente ele usou para se libertar. Ele dizia: “não, eu nasci
de um ventre livre, eu não sou, eu não poderia ter sido escravizado
como fui, eu nasci livre, não se escraviza ninguém. Ou se nasce escra-
vo, ou não se é”. É a partir daí que acho que era uma coisa que estava
pessoalmente muito forte nele. A questão da maternidade era algo
muito latente nesse período, porque eu estava decidindo se queria
ou não ser mãe. Era algo que estava em contexto para mim, e acabei
decidindo que não queria ser mãe. Não sei se coloquei tudo isso, fiz
terapia no livro (risos). Era algo, também, que estava ali na minha
cabeça. Não sei até que ponto essa questão pode ter contaminado
a história ou não. Mas para mim era muito forte essa questão da
maternidade a partir do Gama.
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Para mim também houve uma figura, que é, hoje, a minha mãe, a
mãe Lindaura, que também foi fundamental para essa história. Eu te
falei que fui criada numa família católica, apostólica, mineira, meus
pais são ministros de Eucaristia, aquelas coisas de interior de Minas.
Para mim o Candomblé, a Umbanda, o Espiritismo eram mais ou me-
nos a mesma coisa, e uma coisa da qual eu tinha medo, cresci tendo
medo. Eu já estava morando há um ano e pouco na Bahia, quando
percebi que não teria como fugir de saber o que era o Candomblé,
o que eram, realmente, essas religiões. Foi quando uma senhora
que trabalhou lá em casa, em Itaparica, falou: “Olha, eu frequento
o Candomblé, posso te levar lá para conhecer minha mãe”. Eu disse
que queria, mas adiei, adiei, adiei, morrendo de medo. Vai que chego
lá e essa mulher fala para mim que vou morrer ou que tenho uma
doença incurável? Eu tinha medo de ela me falar coisa ruim, sabe?
Morria de medo dela, das coisas que ia me falar, como se, ao chegar
lá, ela olhasse para mim e soltasse todos os podres da minha vida.
Só que me apaixonei pela mãe Lindaura no primeiro encontro, e a
gente ficou horas e horas conversando, ela me explicando o que era
o Candomblé, o papel dela, o papel das mulheres, o que acontecia ali
dentro, quem eram essas entidades, quem eram os Orixás. Foi minha
consultora para assuntos “candomblecísticos” para o livro. Há outras
figuras no livro, principalmente figuras masculinas, que nem Baba
Ogumfiditimi, que são importantes na vida dela, mas tentei destacar
sempre esse culto do escondido, do sagrado, porque o feminino é que
me interessava. É bem interessante pensar, num contexto de rebelião
escrava, o quanto essas mulheres, que eram sacerdotisas, guardiãs
desse sagrado feminino, dentro de um culto de matriz africana, foram
importantes nessas rebeliões. Isso é que possibilita, por exemplo, a
existência de uma Kehinde. Se você observar, principalmente dentro
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que essa mulher tem ao vê-la na África – “essa mulher tem que entrar
na história”. Realmente, ela tinha elementos para entrar nessa história
depois e fez parte daquele processo braçal. Depois que comecei a ver
o livro, a escrever, fui para a parte técnica: “Preciso colocar ação aqui,
esse personagem que coloquei lá na frente desapareceu, preciso voltar
com ele na história de novo”. Assim ela foi ganhando mais espaço e
ficando com mais força nessa história, fazendo essa ponte Brasil e
África e representando a ancestralidade da Kehinde, tanto que, quando
ela fala que foi para o Candomblé, recebe a resposta “tua missão não é
aqui dentro, tua história não é aqui. Os teus voduns são fortes demais
e vão engolir os nossos Orixás”. Ou seja, sua ancestralidade, a herança
que você trouxe da sua avó, sua história, a gente acolhe aqui, mas ela
não é daqui, “vá procurar os voduns da tua avó”. Kehinde não acaba,
necessariamente, o processo de iniciação dentro do Candomblé, por
causa desse culto vodun, que é muito forte, muito entranhado nela,
uma coisa que para mim também acaba aí. Depois você vai vendo
essas coincidências, esses paralelos, meu encanto pelo Candomblé,
que é hoje a religião mais próxima de mim, mas os Orixás não me
deixam iniciar, eles falam: “Tua missão não é essa, você não é daqui”.
Não estão me mandando ir para outra, mas falam: “Teu caminho não
passa pela iniciação”.
Cíntia – Então nada foi ao acaso, assim como não foi por acaso que a
Agontimé apareceu, porque assim você consegue fechar esse sagrado fe-
minino, como se todas essas mulheres, todas as Iansãs, Iemanjás, Nanãs
e Oxuns estivessem ali transfiguradas na figura da Agontimé.
Ana – Sim! Ela é deportada de África, com medo de que ela proteja
seu filho de sangue, em relação à sucessão do trono, ou seja, ela só
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Ana – Adorava sair ali das barcas, onde tem a Praça XV, caminhando
por aqueles becos, pela rua do Ouvidor, e fazia o livro: “Passei pela
rua do Ouvidor, pela rua do não sei o quê”. Ia para o mapa e dizia
assim: “Quando eu for ao centro do Rio, vou caminhar por essa rua
aqui” (risos). Inclusive, uma pesquisadora da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) está fazendo uma tese com um
tema maravilhoso, que se intitula Cartografia afetiva em Um defeito
de cor. Ela está indo a todos os lugares que cito no livro, fotogra-
fando e analisando como eles eram na época, como eu os descrevo
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on”, preciso deixar que o livro siga o caminho dele, siga a história
dele, como de fato ele segue. Ele funciona à minha revelia ao ponto
de eu te falar: “Nossa! Isso... onde a pessoa leu isso? Onde é que
está isso?” Não veio de mim, veio de quem está lendo. Ao entender
isso, percebo que não é mais algo meu. Acho que consegui partir
para uma outra coisa, apesar de ter esse fio condutor do racismo. É
um livro juvenil, que acabei, mais ou menos, há um ano e ainda está
descansando, para eu começar o processo de reescrita dele.
Ana – A distopia (risadas) é... Estão para sair esse livro e três
peças de teatro. Acho que uma vai ser montada ainda neste
ano, a outra acabou sendo adaptada para o cinema, talvez seja
filmada no ano que vem. Estou escrevendo para cinema e para
TV também. Sou completamente apaixonada por séries. Percebi
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Cíntia – Obrigada por teres concebido a tua, agora nossa, Kehinde para
o mundo. Penso que escreveste para todas as mulheres, independente-
mente de serem negras, brancas, indígenas. Penso que a protagonista
consegue unir todos esses traços, sejam eles negros, indígenas, brancos,
portugueses, como a própria sinhazinha. Muito obrigada!
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Ana – Escrevo para agradar minha mãe, se ela não gostou – e isso,
independente de ela concordar ou não com a história –, se a mãe não
gostou, não... não...não sai!
Ana – É! Ela fala: “Ai, está ruim, que chato, não consegui nem chegar
ao final, não consegui nem chegar à terceira página, está um saco!”
Ana – Sim, é tão importante alguém que tenha essa liberdade, o que
é algo muito difícil de achar dentro do cenário literário brasileiro,
que é laudatório. Então, falo: “Tenho a minha crítica particular, que
é minha editora, que é maravilhosa”. E ela fala: “É óbvio, sou tua
mãe, não vou te deixar passar vergonha” (risos). É exatamente isso
que eu quero, alguém que me fale: “Amiga, olha a alface no dente!
Menos, né?”.
Ana – Esta é a figura! Esta mulher media. Esta mulher talvez toque
tantas pessoas, porque chegou a tocar a mulher para quem escrevo.
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