Precariedade Estrutural
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Resumo
A escravidão no Brasil apresentava como uma de suas características a
possibilidade de acesso à alforria em taxas superiores a outras sociedades
escravistas modernas. Apesar de a obtenção da liberdade ter sido sempre
algo difícil aos escravos, o fato é que a ocorrência significativa de alforrias
proporcionou a existência de contingentes importantes de negros livres e
libertos na população brasileira oitocentista. O objetivo do artigo é mostrar
que a experiência da liberdade tinha seus problemas e riscos para os egressos
da escravidão e seus descendentes, estando marcada pelo que denomino
“precariedade estrutural”, conceito que busco definir nas páginas que se
seguem.
Palavras-chave: Escravidão, Liberdade, Alforria.
Abstract
One of the main features of slavery in Brazil was that slaves had a better chance
to achieve freedom than was the case in other slave societies. However difficult
it was to obtain freedom, significant rates of manumission resulted in a high
percentage of free and freed people of color in the population of the country
throughout the nineteenth century. This article shows that freedom came
with an array of problems and risks for black people, thus making it possible
to describe their experience of freedom as marked by “structural
precariousness”, a concept that I seek to define in the following pages.
Keywords: Slavery, Freedom, Manumission.
* Agradeço ao CNPq e à FAPESP pelo apoio à pesquisa que originou este texto.
** Professor Titular, Departamento de História, UNICAMP.
Sidney Chalhoub
Introdução
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seja, 42,75% dos habitantes do país eram indivíduos livres de cor, logo
egressos da escravidão e seus descendentes, pretos e pardos (SENRA,
2006: 418-9; 423).
De acordo com dados fornecidos pela historiadora Rebecca Scott,
em Cuba, no início da década de 1860, a população total era de 1.389.880
habitantes, dos quais 57,09% brancos, 26,66% escravos e 16,24% pessoas
livres de cor – contraste significativo com os mais de 42% dessa categoria
no Brasil. Ainda segundo Scott, no estado de Louisiana, em 1860, pouco
antes do início da Guerra Civil Americana, havia 708.002 habitantes, dos
quais 50,51% brancos, 46,85% escravos e apenas 2,63% pessoas livres de
cor, muito concentradas na cidade de Nova Orleans (SCOTT, 2005: 273-4).
Outra maneira de apreciar dados que tais é ponderar a presença
proporcional de pessoas livres de cor em relação apenas à população negra
total. Assim, ainda segundo o censo de 1872, 73,75% dos pretos e pardos
habitantes do Brasil eram livres (SENRA, p. 423). No caso dos Estados Unidos,
em 1860, de acordo com Ira Berlin, não mais do que 11% da população
negra total era livre, incluídos nessa cifra os estados do Norte, nos quais
praticamente não havia mais escravidão e registravam 99% de negros de
condição livre. Havia diferenças regionais relevantes entre as regiões do sul
escravocrata – no chamado Upper South (Maryland, Virginia, Carolina do
Norte etc.), 13% dos negros eram livres; no Lower South (Carolina do Sul,
Geórgia, Florida), 2%; no Deep South (Louisiana, Alabama, Mississippi,
Arkansas, Texas), 1% (BERLIN, 2003: 278-9).
Esse breve exercício com números enseja duas observações. Primeiro,
as sociedades escravistas das Américas pareciam bastante diversas no que
concerne às oportunidades de obtenção de alforria. No caso do sul dos
Estados Unidos, houve tendência de os senhores perderem o direito de
alforriar os seus escravos conforme a escravidão se expandia e a cizânia
nacional em torno do assunto se aprofundava (BERLIN, 1974: 138). Em
alguns estados, como no Alabama, os proprietários que desejassem alforriar
escravos tinham de peticionar ao legislativo estadual; como consequência,
a Assembleia Provincial do Alabama, entre 1829 e 1839, aprovou a
libertação de pouco mais do que 200 escravos num estado que contava
com 120.000 cativos em 1830. Na década de 1850, vários estados do sul
simplesmente proibiram que senhores libertassem seus escravos (BERLIN,
1974: 138, 140-1). No Suriname holandês, da década de 1730 até a
emancipação definitiva, em 1863, os senhores precisavam submeter
pedidos de alforria a uma corte de manumissão. Entre as décadas de 1760
e 1820, os cativos libertados, em qualquer ano, nunca excederam a
proporção de 0,8 da população escrava total (BRANA-SHUTE, 1989 : 44).
No caso brasileiro, a obtenção da alforria também era difícil aos
escravos, porém não houve iniciativas do poder público para proibir os
senhores de utilizar a prerrogativa de libertar seus cativos quando lhes
aprouvesse. As cifras computadas por Robert Slenes a partir das duas
matrículas gerais da população escrava mostram variações regionais
importantes. Na cidade do Rio, por exemplo, o acesso à alforria era amplo:
nada menos do que 36,1% dos escravos consignados na matrícula de 1872-
3 haviam se libertado por ocasião do registro de 1886-7. Esse quadro
contrastava muito, porém, com as principais regiões cafeeiras, visto que na
província de São Paulo a porcentagem de negros alforriados no mesmo
período foi de 11%, na província do Rio de 7,8%, apenas 5,6% em Minas
(SLENES, 1976: 495, 501, 504, 542).
A segunda observação derivada desses números é a de que, no Brasil,
mais do que em outras sociedades escravistas das Américas, o processo de
libertação de escravos ocorria concomitantemente à continuidade da
própria instituição da escravidão, resultando na cifra significativa, já
mencionada, de que 73,75% da população negra do país era livre em 1872.
Nessas circunstâncias, a ênfase historiográfica tradicional nos modos e
oportunidades de obter alforria na sociedade brasileira do século XIX precisa
ser equilibrada com maior atenção à experiência da liberdade, em especial
no que tange aos mecanismos que a tornavam frequentemente precária,
arriscada, no período. Além do problema da escravização ilegal, havia as
diversas situações intermediárias entre a escravidão e a liberdade que eram
legalmente reconhecidas e que ainda não foram muito estudadas quanto à
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até 1850. Estava claro, no entanto, que o escravo de uma qualquer etnia
africana libertado no Brasil tornava-se estrangeiro. De acordo com
Perdigão Malheiro, em seu livro clássico dos anos 1860, tais pessoas
poderiam adquirir a cidadania por naturalização, como os estrangeiros
de outras origens, pois nada havia na legislação que o impedisse: “Se a
condição anterior (de escravo) não inibe de ser cidadão brasileiro quando
nascido no Brasil, não há razão alguma que exclua de sê-lo por
naturalização, quando nascido fora dele” (PERDIGÃO MALHEIRO, 1976,
vol.1: 141). O tom do comentário, no entanto, sugere que as
naturalizações de africanos libertos eram infrequentes ou simplesmente
não ocorriam, porém não tenho notícia de qualquer estudo histórico
sobre o assunto.
Quanto aos direitos políticos e públicos dos libertos brasileiros,
Perdigão Malheiro considerava que a condição deles “em nossa sociedade
é altamente restringida” devido “ao preconceito mais geral contra a raça
Africana” (idem, Ibidem). No sistema de eleições indiretas, em duas etapas,
estabelecido na Constituição, os libertos podiam votar apenas nas eleições
primárias, desde que satisfizessem os outros requisitos gerais estabelecidos
para todos os cidadãos, em particular quanto à renda mínima anual exigida.
Podiam eleger e ser eleitos vereadores, mas não podiam ser eleitores, logo
sequer votavam nos escrutínios para deputados provinciais, deputados
gerais e senadores. Como as qualificações de eleitor constituíam requisito
para o exercício de diversos cargos públicos, aos libertos estavam vedadas
as funções de juiz de paz, subdelegado, delegado de polícia, promotor
público, magistrado, membro do corpo diplomático, bispo, sequer podiam
ser jurados. Eram admitidos na Guarda Nacional, mas não como oficiais
(ver também GRINBERG, 2002). Quanto a direitos civis, ainda segundo
Perdigão Malheiro, a manumissão restituía ao liberto a condição de pessoa,
“podendo exercer livremente, nos termos das leis, como os outros cidadãos,
os seus direitos, a sua atividade, criar-se uma família, adquirir plenamente
para si” etc., “praticar enfim todos os atos da vida civil, à semelhança do
menor que se emancipa plenamente” (Idem, 141-3).
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1
Registro de Correspondência Reservada Expedida pela Polícia (1835-44), códice 335, volume
I, folhas 2-3, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ).
2
Município Neutro. Quadro geral da população escrava considerada em relação ao sexo, estado
civil, raça, religião, nacionalidade e grau de instrução. Diretoria Geral de Estatística, dados
relativos ao censo de 1872. Agradeço a Robert Slenes por me haver cedido uma cópia dessa
tabela.
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Quiçá seja necessário registrar que o signatário deste artigo é destinatário justo, réu confesso,
neste quesito; ver CHALHOUB, 1990.
Ademais, em algo mais intuído do que desenvolvido nos textos, deixa ver a
necessidade de cotejar as diversas maneiras de obtenção de alforria com os
processos cíveis de liberdade, escravidão e manutenção de liberdade. Por
exemplo, uma leitura sistemática das ações de manutenção de liberdade deve
observar o tipo de alforria originalmente obtido pelo liberto, para ver se algumas
formas de chegar à manumissão tornavam a pessoa mais vulnerável a tentativas
de reescravização.
Veja-se o caso da preta Augusta:
Escravização ilegal
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Processo cível, 2ª. Vara Cível da Corte, no. 3395, maço 849, galeria A, 1870, Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro.
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o país de mais de 700 mil africanos nas décadas de 1830 e 1840. A doutrina
de Eusébio de Queiróz teorizava a conduta do poder público, por assim
dizer, com vistas a coadunar a classe senhorial no procedimento de
acumulação de propriedade escrava ilegal. Ademais, transferia-se à
população negra o ônus da prova de sua liberdade, medida conveniente
em circunstâncias nas quais a prova de escravidão, que seria a obrigação
dos senhores, dependia cada vez mais de artifícios diversos, destinados a
produzir a ficção da legalidade de propriedade originária do contrabando.
Por conseguinte, exigia-se aos negros a apresentação de provas de
liberdade que lhes eram cotidianamente negadas pela burla de senhores
e autoridades públicas, gente letrada às pencas, escribas de papéis falsos.
Resta ver as consequências duradouras dessa situação no que
respeita à experiência de liberdade dos negros. Por suposto, a polícia da
Corte atravessou o século XIX a prender pessoas de cor sob a dupla
suspeição de que fossem escravas e de que estivessem fugidas. O
tirocínio policial nessa atividade dependia de exercícios de interpretação
potencialmente complexos, erros sempre à espreita, pois, como vimos,
três a cada quatro negros habitantes do país eram livres por ocasião do
recenseamento de 1872. No caso específico da cidade do Rio, havia 274.972
habitantes, dos quais 226.033 livres (82,20%) e 48.939 escravos (17,79%).
Quanto às raças na população livre, 55,20% eram brancos, manifestando-
se aqui a presença muito significativa de imigrantes portugueses na capital
(mais de 55 mil), 10,35% negros, 16,30% pardos, 0,33% caboclos (SOARES,
2007, pp. 376-80). Agregando-se escravos e pessoas livres de cor, a
população negra do Rio representava 44,44% do total. Se considerarmos
apenas a população negra, 59,96% era livre, 40,03% escrava; em outras
palavras, em cada cinco pessoas de cor habitantes da Corte em 1872, três
eram livres, duas escravas.
Vejamos pois os Livros da Casa de Detenção da Corte que registram o
movimento diário de detenções na cidade nas décadas de 1860 e 1870. 8
8
Os Livros da Casa de Detenção da Corte são originários do Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro; existem cópias deles em microfilme no Arquivo Edgard Leuenroth da
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sociedade em que mais de 70% dos negros era de condição livre no terceiro
quartel do século XIX, em especial diante da nova conjuntura social e política
criada pela lei de 1871, as perspectivas de solapar a doutrina queiroziana por
dentro dela própria pareciam óbvias: se as fronteiras incertas entre escravidão
e liberdade oprimiam e comprimiam a liberdade possível aos livres, criavam
oportunidades aos escravizados, que se moviam e escondiam em territórios
sociais ambíguos, na Corte e alhures.
Estrutura e processo
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