Batalha de Aljubarrota
Batalha de Aljubarrota
Batalha de Aljubarrota
26
Estavam pelos muros temerosas,
E de um alegre medo quase frias,
Rezando as mães, irmãs, damas e esposas,
Prometendo jejuns e romarias.
Já chegam as esquadras belicosas
Defronte das imigas companhias,
Que com grita grandíssima os recebem;
E todas grande dúvida concebem.
28
Deu sinal a trombeta castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso;
Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo, duvidoso:
E as mães, que o som terríbil escutaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram.
29
Quantos rostos ali se veem sem cor,
Que ao coração acode o sangue amigo!
Que nos perigos grandes o temor
É maior muitas vezes que o perigo;
E se o não é, parece-o; que o furor
De ofender ou vencer o duro imigo
Faz não sentir que é perda grande e rara
Dos membros corporais, da vida cara.
30
Começa-se a travar incerta guerra;
De ambas partes se move a primeira ala;
Uns, leva a defensão da própria terra,
Outros, a esperança de ganhá-la.
Logo o grande Pereira, em quem se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala:
Derriba e encontra, e a terra enfim semeia
Dos que a tanto desejam, sendo alheia.
31
Já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam;
Espedaçam-se as lanças, e as frequentes
Quedas co’as duras armas tudo atroam.
Recrescem os imigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca.
34
Rompem-se aqui dos nossos os primeiros;
Tantos dos inimigos a eles vão!
Está ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceuta está o fortíssimo leão,
Que cercado se vê dos cavaleiros
Que os campos vão correr de Tetuão;
Perseguem-no co’as lanças, e ele iroso,
Torvado um pouco está, mas não medroso;
35
Com torva vista os vê; mas a natura
Ferina e a ira não lhe compadecem
Que as costas dê, mas antes na espessura
Das lanças se arremessa, que recrescem:
Tal está o cavaleiro, que a verdura
Tinge co’o sangue alheio; ali perecem
Alguns dos seus, que o ânimo valente
Perde a virtude contra tanta gente.
36
Sentiu Joane a afronta que passava
Nuno; que, como forte capitão
Tudo corria e via, e a todos dava,
Com presença e palavras, coração –
Qual parida leoa, fera e brava,
Que os filhos, que no ninho sós estão,
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara
O pastor de Massília lhos furtara,
37
Corre raivosa e freme, e com bramidos
Os montes Sete-Irmãos atroa e abala:
Tal Joane, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode à primeira ala:
“Ó fortes companheiros, ó subidos
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,
Defendei vossas terras, que a esperança
Da liberdade está na vossa lança.
38
Vedes-me aqui, rei vosso e companheiro,
Que entre as lanças e setas e os arneses
Dos inimigos corro, e vou primeiro!
Pelejai, verdadeiros Portugueses!”
Isto disse o magnânimo guerreiro
E, sopesando a lança quatro vezes,
Com força tira; e deste único tiro
Muitos lançaram o último suspiro.
39
Porque eis os seus, acesos novamente
Duma nobre vergonha e honroso fogo
Sobre qual mais com ânimo valente
Perigos vencerá do márcio jogo,
Porfiam; tinge o ferro o sangue ardente;
Rompem malhas primeiro, e peitos logo:
Assim recebem junto e dão feridas,
Como a quem já não dói perder as vidas.
42
Aqui a fera batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A multidão da gente que perece
Tem as flores da própria cor mudadas.
Já as costas dão e as vidas; já falece
O furor, e sobejam as lançadas;
Já de Castela o rei desbaratado
Se vê, e de seu propósito mudado.
43
O campo vai deixando ao vencedor,
Contente de lhe não deixar a vida;
Seguem-no os que ficaram; e o temor
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
Encobrem no profundo peito a dor
Da morte, da fazenda despendida,
Da mágoa, da desonra e triste nojo
De ver outrem triunfar de seu despojo.
45
O vencedor Joane esteve os dias
Costumados no campo, em grande glória;
Com ofertas depois e romarias,
As graças deu a quem Lhe deu vitória.