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Meireles, Rainha Louca

O poema é uma série de romances que descrevem a rainha Maria I de Portugal, conhecida como a Rainha Louca. Os romances descrevem seus passeios pela cidade em meio à loucura e sua morte, bem como os cavalos que serviram aos conspiradores da Inconfidência Mineira.
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Meireles, Rainha Louca

O poema é uma série de romances que descrevem a rainha Maria I de Portugal, conhecida como a Rainha Louca. Os romances descrevem seus passeios pela cidade em meio à loucura e sua morte, bem como os cavalos que serviram aos conspiradores da Inconfidência Mineira.
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Romance LXXXII ou dos passeios da Rainha Louca

Entre vassalos de joelhos,

lá vai a Rainha louca,

por uma cidade triste

que já viu morrer na forca

ai, um homem sem fortuna

que falara em Liberdade..

Batedores e lacaios,

camaristas, cavaleiros,

segue toda a comitiva,

nesses estranhos passeios

que oxalá fossem felizes

para Sua Majestade.

Colinas de esquecimento,

praias de ridentes águas,

palmas, flores, nada esconde

aquelas visões amargas

que noite e dia a Rainha

cercam de horror e ansiedade.

Ai, parentes, ai, ministros,

ai, perseguidos fidalgos...

Ai, pobres Inconfidentes,

duramente condenados

por que sombria sentença,

alheia à sua vontade!

“Vou para o Inferno!” - murmura.

“Já estou no Inferno!” “Não quero

que o Diabo me veja!”. - clama

(É sobre chamas do Inferno

que rola a dourada sege,

com grande celeridade...)


Do cetro já não se lembra,

nem de mantos nem coroas,

nem de serenins do Paço,

nem de enterros nem de bodas:

só tem medo do Demônio,

de seu fogo sem piedade.

Toda vestida de preto,

solto o grisalho cabelo,

escondida atrás do leque,

velhinha, a chorar de medo,

Dona Maria Primeira

passeia pela cidade.

Romance LXXXIII ou da Rainha morta

Ah! Nem mais rogo nem promessa

nem procissão nem ladainha:

somente a voz do sino grande

que brada: “Está morta a Rainha!”

Ai, a neta de Dom João Quinto!

Ai, a filha da Marianinha!

Tão gasta pela idade, apenas

a amarga loucura a sustinha.

E eram ecos da artilharia,

dos navios, das fortalezas...

Bandeiras tristes, vasto pranto

de criados, fidalgos, princesas...

No altar, a cruz a abrir os braços

para a miséria das grandezas.

Em redor da cama, os tocheiros,

com chorosas tochas acesas.

Ordens de Cristo, Avis, São Tiago,

cobrindo-lhe o negro vestido.


Manto de veludo encarnado,

de estrelas de ouro guarnecido.

O braço esquerdo, sobre o peito,

O outro, nas sedas estendido:

e toda a corte prosternada,

nesse beija-mão comovido.

Em caixões de lhama e de chumbo,

foi seu velho corpo guardado.

Mil perfumes o socorriam

para manter-se embalsamado.

E o resto eram franjas e borlas

e veludo preto agaloado

e o cetro e a coroa marcando

o fim de um trágico reinado.

Era o clero, a nobreza, o povo

e, entre aspersões e responsórios,

estolas, reverências, velas,

a oscilação dos incensórios.

E cavalos de mantas pretas

levando a vagos territórios

um pequeno corpo sozinho,

perdido em régios envoltórios.

O resto era a noite, a lembrança

daquela mão, póstuma e pura,

que causara degredo e morte

com sua breve assinatura,

e logo lavara o seu gesto

no eterno fogo da loucura.

Coches negros nas ruas negras.

Lento ritmo de negros vultos.

Deslizava o enterro solene.


E, no enorme silêncio ocultos,

os pensamentos recordavam

tempos e rostos insepultos...

Romance LXXXIV ou dos cavalos da inconfidência

Eles eram muitos cavalos,

ao longo dessas grandes serras,

de crinas abertas ao vento,

a galope entre águas e pedras.

Eles eram muitos cavalos,

donos dos ares e das ervas,

com tranqüilos olhos macios,

habituados às densas névoas,

aos verdes, prados ondulosos,

às encostas de árduas arestas;

à cor das auroras nas nuvens,

ao tempo de ipês e quaresmas.

Eles eram muitos cavalos

nas margens desses grandes rios

por onde os escravos cantavam

músicas cheias de suspiros.

Eles eram muitos cavalos

e guardavam no fino ouvido

o som das catas e dos cantos,

a voz de amigos e inimigos;

- calados, ao peso da sela,

picados de insetos e espinhos,

desabafando o seu cansaço

em crepusculares relinchos.

Eles eram muitos cavalos,

- rijos, destemidos, velozes -

entre Mariana e Serro Frio,


Vila Rica e Rio das Mortes.

Eles eram muitos cavalos,

transportando no seu galope

coronéis, magistrados, poetas,

furriéis, alferes, sacerdotes.

E ouviam segredos e intrigas,

e sonetos e liras e odes:

testemunhas sem depoimento,

diante de equívocos enormes.

Eles eram muitos cavalos,

entre Mantiqueira e Ouro Branco

desmanchado o xisto nos cascos,

ao sol e à chuva, pelos campos,

levando esperanças, mensagens,

transmitidas de rancho em rancho.

Eles eram muitos cavalos,

entre sonhos e contrabandos,

alheios às paixões dos donos,

pousando os mesmos olhos mansos

nas grotas, repletas de escravos,

nas igrejas, cheias de santos.

Eles eram muitos cavalos:

e uns viram correntes e algemas,

outros, o sangue sobre a forca,

outros, o crime e as recompensas.

Eles eram muitos cavalos:

e alguns foram postos à venda,

outros ficaram nos seus pastos,

e houve uns que, depois da sentença

levaram o Alferes cortado

em braços, pernas e cabeça.


E partiram com sua carga

na mais dolorosa inocência.

Eles eram muitos cavalos.

E morreram por esses montes,

esses campos, esses abismos,

tendo servido a tantos homens.

Eles eram muitos cavalos,

mas ninguém mais sabe os seus nomes

sua pelagem, sua origem...

E iam tão alto, e iam tão longe!

E por eles se suspirava,

consultando o imenso horizonte!

- Morreram seus flancos robustos,

que pareciam de ouro e bronze.

Eles eram muitos cavalos.

E jazem por aí, caídos,

misturados às bravas serras,

misturados ao quartzo e ao xisto,

à frescura aquosa das lapas,

ao verdor do trevo florido.

E nunca pensaram na morte.

E nunca souberam de exílios.

Eles eram muitos cavalos,

cumprindo seu duro serviço.

A cinza de seus cavaleiros

neles aprendeu tempo e ritmo,

e a subir aos picos do mundo...

e a rolar pelos precipícios...

Romance LXXXV ou do testamento da Marília

Triste pena, triste pena

que pelo papel deslizas!


- que cartas não escreveste,

- que versos não improvisas,

- que entre cifras te debates

e em cifras te imortalizas...

Ai, fortunas, ai, fortunas...

Doblas, oitavas, cruzados,

vastos dinheiros antigos,

pelas paredes guardados,

prêmio de tantos traidores,

dor de tantos condenados!

Escreve Marília, escreve

seu pequeno testamento;

na verdade, por que vive,

se a morte é o seu alimento?

se para a morte caminha,

na sege do tempo lento?

Cortesias, cortesias

de quem diz adeus ao mundo:

breves lembranças; presentes

amáveis, de moribundo.

Que sois vós, ouro das Minas,

no oceano de Deus, tão fundo?

Reparti-vos, reparti-vos,

ouro de tantas cobiças...

(Tanto amor que separastes,

entre injúrias e injustiças!

E agora aqui sois contado

para a piedade das missas!)

Triste pena, triste pena...

Triste Marília que escreve.

Tão longa idade sofrida,


para uma vida tão breve.

Muitas missas... Muitas missas..

(Que a terra lhe seja leve.)

Fala dos inconfidentes mortos

Treva da noite,

lanosa capa

nos ombros curvos

dos altos montes

aglomerados...

Agora, tudo

jaz em silêncio:

amor, inveja,

ódio, inocência,

no imenso tempo

se estão lavando...

Grosso cascalho

da humana vida...

Negros orgulhos,

ingênua audácia,

e fingimentos

e covardias

(e covardias!)

vão dando voltas

no imenso tempo,

- à água implacável

do tempo imenso,

rodando soltos,

com sua rude

miséria exposta...

Parada noite,

suspensa em bruma:
não, não se avistam

os fundos leitos...

Mas, no horizonte

do que é memória

da eternidade,

referve o embate

de antigas horas,

de antigos fatos,

de homens antigos.

E aqui ficamos

todos contritos,

a ouvir na névoa

o desconforme,

submerso curso

dessa torrente

do purgatório...

Quais os que tombam,

em crime exaustos,

quais os que sobem,

purificados?

FIM

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