Escola e Terreiro

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 15

ARTIGO

ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A


ESCOLA PODERIA APRENDER

THROUGH THE GATES: EDUCATION IN THE TERREIROS OR WHAT THE SCHOOL


COULD LEARN

A TRAVÉS DE LAS PUERTAS: EDUCACIÓN EN LOS TERREIROS O LO QUE LA


ESCUELA PODRÍA APRENDER

Verônica Kimura
Universidade do Estado de Santa Catarina – Brasil

Geovana Mendonça Lunardi Mendes


Universidade do Estado de Santa Catarina - Brasil

Resumo: Este artigo versa sobre os aspectos de uma educação emancipadora ligada às tradições de
matrizes africanas, pensada aqui como a educação nos terreiros e as implicações desta com a educação
escolar formal monocrática. Desnuda elementos específicos desta educação com base na tradição dos
orixás, voduns e inkices e as apresenta enquanto possibilidades enunciativas de visões de mundo
negadas e perseguidas durante todo o processo de formação da educação brasileira. Vislumbra um
horizonte de alternativas para uma educação pluriétnica e pluriversal.

Palavras chave: Educação; Terreiros; Escola formal.

Abstract: This article deals with the aspects of an emancipatory education linked to the African
matrix traditions, thought here as the education in the terreiros and the implications of this with the
formal monocratic school education. It exposes specific elements of this education based on the
tradition of orixás, voduns and inkices and presents them as enunciative possibilities of world views
that are denied and pursued through all the process of formation of Brazilian education. It envisions a
horizon of alternatives for multi-ethnic and multi-universal education.

Keywords: Education; Terreiros; Formal school.

Resumen: Este artículo trata los aspectos de una educación emancipadora ligada a las tradiciones de
matrices africanas, pensada aquí como la educación en los terreiros y las implicaciones de ésta con la
educación escolar formal monocrática. Expone elementos específicos de esta educación basados en la
tradición de los orixás, vodunes e inkices y los presenta como posibilidades enunciativas de visiones
del mundo que son negadas y perseguidas durante todo el proceso de formación de la educación
brasileña. Visualiza un horizonte de alternativas para la educación multiétnica y multiuniversal.

Palabras clave: Educación; Terreiros; Escuela formal.

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n.46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021

DOI: https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i46.8678
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

A Árvore do Esquecimento

Conta-se que na costa do Benin, mais precisamente em Wuidá, onde se localizava um


dos grandes portos de embarque dos escravizados, havia uma grande árvore, ao redor da qual
essas pessoas, após uma caminhada noturna de cinco quilômetros, eram obrigadas a darem
voltas – mulheres davam sete voltas e homens, nove voltas – supondo-se que,
simbolicamente, esse ato as faria perder a memória deixando para trás sua identidade
cultural, suas origens e seu passado. Arrancados de sua terra de origem, povos de diversas
etnias do continente africano foram violentamente subjugados à cultura europeia e, separados
de sua terra natal e de suas famílias, tiveram seus nomes trocados e sua complexidade
cultural negada, neste processo que a história denominou como Diáspora Africana.
(MOREIRA; PERETI, 2020).
Evoco esta imagem da Árvore do Esquecimento para pensar nas inúmeras formas que
o culto aos Orixás assumiu nas Américas, traçando uma marca na identidade cultural do povo
brasileiro como uma tradição viva, presente em nossa produção musical, filosofias de vida,
vestimentas, culinária, nosso calendário festivo, entre outras incontáveis manifestações de
nossa cultura. Estudar as Tradições dos Orixás implica, em primeira instância, (re)conhecer
um continente africano que foi fragmentado pelo projeto de colonização para, em seguida,
procurar entender que as diferentes reelaborações no contexto da diáspora forjaram as
comunidades de terreiro como um dos principais espaços de resistência para a população
negra.
A tentativa de aprender sobre os processos que constituem a educação nos terreiros
perpassa a obra de inúmeros pesquisadores que empreenderam esforços no sentido de contar,
a partir de diferentes perspectivas, um pouco da história destes grupos subalternizado. Nosso
objetivo aqui é apresentar algumas das particularidades desta educação identificadas nas
contribuições de pesquisas já realizadas e de um corpo de autores que tem contribuído com
nossas reflexões. Procuraremos situar em que contexto essas comunidades litúrgicas se
formaram no Brasil, forjadas a partir de características multidimensionais que articulavam
aspectos políticos, étnicos, territoriais, linguísticos, ancestrais e religiosos. Nesse caminho,
traçaremos um diálogo entre a Educação nos terreiros e o espaço escolar, trazendo reflexões
que possam tensionar a relação desses universos distintos.
A partilha que realizamos nesse texto, decorre dos estudos que temos desenvolvido
em nosso grupo de pesquisa Observatório de Políticas Curriculares e Educação Inclusiva

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 238


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

(OPEN), vinculado ao Laboratório Observatório de Práticas Escolares1 (OPE) e também da


pesquisa realizada no âmbito do doutorado, denominada “Quem é de Axé, diz que é! A
educação nas comunidades de tradições de matrizes africanas”.
Realizamos uma pesquisa exploratória nos terreiros no período de (apontar) e
socializamos aqui parte das impressões colhidas, bem como o aprofundamento teórico que
norteou o estudo.

Formação dos Egbé

O tráfico de escravizados para o Brasil teve inúmeras motivações históricas, políticas,


culturais e econômicas compondo parte de um projeto indispensável ao desenvolvimento da
economia agrícola e mineral da colônia e ao lucro de Portugal. Durante três séculos de tráfico
transatlântico e de próspero comércio, a presença de diferentes etnias africanas se
reconfigurava no país. Contrariando o projeto colonial (e a árvore do esquecimento), essa
população preservou, manteve e reelaborou grande parte de suas culturas de origem, em
diferentes graus de aculturação, dependendo de maior ou menor retenção dos modelos e
raízes africanas e das circunstâncias sócio históricas das diversas regiões onde se
estabeleceram os vários grupos étnicos.
A partir do estabelecimento de laços culturais estes povos agruparam-se no espaço
físico brasileiro de acordo com semelhanças que guardavam entre si e ajustes mútuos. 2
Conforme aponta Mortari (2015), embora a denominação Nagô tenha sido utilizada no
contexto diaspórico para denominar os povos de língua ioruba, que era formado por grupos
de diversas procedências, as articulações sociais desencadeadas neste contexto permitiram
que tais grupos se readaptassem através de um processo de transculturação que viabilizou a
reestruturação e a reinvenção de novas identidades no território brasileiro:

A reinvenção das identidades dos africanos iniciava-se já nas Áfricas quando


este recebia um nome de nação e era transformado em africano pela lógica
do tráfico atlântico. Inseridos num contexto escravista, marcado pela
violência, esses homens e mulheres, provenientes de diversas regiões da
África, portadores de valores e culturas diversas, reinventaram suas
identidades e criaram, dentro das possibilidades existentes, suas vidas.
(MORTARI, 2015, p. 144).

1
O OPE, vincula-se ao Programa de Pós-graduação em Educação da UDESC (Universidade do Estado de Santa
Catarina).
2
Para esclarecimentos detalhados sobre o agrupamento do grande grupo Nagô ver Juana Elbein dos Santos – Os
Nagô e a Morte (1975).

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 239


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

É possível que neste processo de reinvenção de identidades e reelaborações de suas


culturas de origem, os contatos estabelecidos entre esses diversos grupos étnicos, reunidos
em torno das semelhanças de seus costumes e, sobretudo, de sua origem mítica e das suas
formas de se relacionar com o sagrado tenham sido determinantes na formação dos terreiros
na costa brasileira. São inúmeros os indícios de práticas sagradas ainda no período escravista,
conforme relatos compartilhados por pesquisadores e por autoridades das Tradições dos
Orixás. Numa delas, por exemplo, conta-se que os negros escravizados adotavam imagens de
santos da igreja católica e que, por uma associação de atributos entre os seus orixás e
determinados santos católicos, ocultavam no interior de tais imagens os Okuta – pedras que
representavam o assentamento de cada orixá, o que possibilitava que seus cultos
transcorressem sem maiores problemas aos olhos de “seus senhores” 3.
Contudo, a organização das comunidades litúrgicas (os egbé), ocorre a partir do
século XIX, formando o que conhecemos hoje como “terreiros”, espaços de implantação e
reformulação de complexos culturais africanos, no qual se mantém o culto aos Orixás e aos
ancestrais (Egun). De acordo com Santos (1975),

Essas associações acham-se instaladas em roças, que ocupam um


determinado terreno, o “terreiro”, termo que acabou sendo sinônimo da
associação e do lugar onde se pratica a religião tradicional africana. Esses
“terreiros” constituem verdadeiras comunidades que apresentam
características especiais. Uma parte dos membros do “terreiro” habita no
local ou nos arredores do mesmo, formando às vezes um bairro, um arraial
ou um povoado. [...]O vínculo que se estabelece entre os membros da
comunidade não está em função de que eles habitem num espaço preciso: os
limites da sociedade egbé não coincidem com os limites físicos do ‘terreiro”.
[...] Os membros do egbé circulam, deslocam-se, trabalham têm vínculos
com a sociedade global, mas constituem uma comunidade “flutuante”, que
concentra e expressa sua própria estrutura nos “terreiros”. (SANTOS, 1975,
p. 33).

A pluralidade dessas associações no território brasileiro está intimamente relacionada


com a complexidade das relações interétnicas e das mobilidades interculturais transcorridas
desde o contexto diaspórico. Conforme assinala Parés (2007), a “fluidez interétnica teria sido
um fator constante e até imprescindível, na gênese e continuidade do candomblé.” (p. 150).
Contudo vale ressaltar, que através e no interior dessas comunidades “religiosas” foram
mantidas as peculiaridades dos grupos étnicos diversos que originaram as atualmente
conhecidas “nações de candomblé”. Dito de outro modo:

3
Relatado pelo Babalorixá Guaraci Fagundes e Egbomi Jayro Pereira de Jesus, Florianópolis, 2016. Entre os
anos 2016 e 2017 houveram inúmeras conversas entre esta pesquisadora e o teólogo Jayro Pereira de Jesus, além
de situações rituais onde os mais velhos orientam os mais novos a respeito de temas diversos nas tradições aqui
estudadas. Ao longo do presente texto o referido teólogo será mencionado em outros momentos, acerca de
assuntos que decorreram deste período da pesquisa.

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 240


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

As distinções entre diversas nações de candomblé, apesar do silêncio


documental, seguramente persistiram no seio de certas congregações
religiosas, como acontece até hoje. Com o progressivo falecimento dos
líderes africanos na segunda metade do século, os seus descendentes
crioulos, após herdar a liderança dessas congregações, continuaram a manter
as identidades de nação com base nessas práticas rituais. Portanto, embora a
heterogeneidade étnico-racial dos participantes dos candomblés tivesse
crescido ao longo do século, a identidade das nações africanas ficou
ancorada em certas características de tradições religiosas diferenciadas.
(PARÉS, 2007, p. 150).

Outro aspecto assinalado pelo sociólogo Muniz Sodré (1988) refere-se à necessidade
de reterritorialização, característica inerente a uma cultura de exílio. O autor relata que o
banzo4 fora responsável por inúmeros suicídios e que o ato “comer terra”, muito praticado
em tempos de cativeiro, relacionava-se, simbolicamente, com a falta da terra natal. A questão
da espacialização nos terreiros é problematizada por Sodré como uma forma de continuidade
que possibilita uma espécie de metáfora, um único espaço que agrega o culto a Orixás
provenientes de diferentes regiões africanas. Aponta como referência a organização física do
Ilê Axé Opô Afonjá (Salvador-BA), terreiro no qual ocupa o cargo de Obá de Xangô5,
composta por um salão principal com pequenas casas dispostas em seu entorno que
representam, cada casa, diferentes Orixás cultuados originalmente em uma determinada
região e que ali compartilham o mesmo espaço sagrado reconstituindo, simbolicamente, o
continente africano.
Tal organização é comum a inúmeros terreiros de Tradições de Matriz Africana,
sendo que a estruturação destes espaços sagrados tem se reelaborado continuamente para
atender às novas demandas socioculturais e políticas. O teólogo Jayro Pereira de Jesus relata
que ao visitar um terreiro no interior do Rio de Janeiro deparou-se com uma estrutura física
similar a uma cidade. Em torno do salão principal estavam dispostas as casas dos orixás
como residências independentes, cada uma delas abrigando, além do assentamento do seu
orixá, um projeto sociocultural relacionado aos atributos deste orixá/morador. Citou como

4
"Das doenças crônicas... uma, e das principais moléstias crônicas, que sofrem os escravos, a qual pelo decurso
do tempo os leva à sepultura, vem a ser o banzo. O banzo é um ressentimento entranhado por qualquer princípio,
como por exemplo: a saudade dos seus, e da sua pátria; o amor devido a alguém; à ingratidão, e aleivosia, que
outro lhe fizera; a cogitação profunda sobre a perda da liberdade; a meditação continuada da aspereza com que
os tratam; o mesmo mau trato, que suportam; e tudo aquilo que pode melancolizar. É uma paixão da alma, a que
se entregam, que só é extinta com a morte: por isso disse que os pretos africanos eram extremosos, fiéis,
resolutos, constantíssimos, e susceptíveis no último extremo do amor e do ódio (...). Este mesmo banzo por vezes
observei no Brasil, que matara a muitos escravos; porém sempre por efeitos do ressentimento do rigor, com que
os tratavam os seus senhores.” (MENDES, Luiz Antonio de Oliveira. Memória a respeito dos escravos e tráfico
da escravatura entre a Costa d’África e o Brazil, apresentada à Real Academia de Ciências de Lisboa, 1793.
Porto, Publicações Escorpião, 1977. Pag. 61-62). Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Banzo.
5
Título honorífico do Candomblé criado no Axé Opó Afonjá por Mãe Aninha em 1936, esses títulos honoríficos
de doze Obás de Xangô, reis ou ministros da região de Oyo, foram concedidos aos amigos e protetores do
Terreiro. Corpo de Obás - Ministros de Xangô. Aos Obás foi entregue o destino civil do Terreiro.
Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Obá_de_Xangô

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 241


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

exemplo a casa de Iansã que possuía uma cozinha e uma sala onde acontecia, na ocasião de
sua visita, uma reunião referente a um projeto voltado para as mulheres empreendedoras da
comunidade.
Tal relato assinala um espaço compartilhado entre tradição e inovação numa
complexa interação repleta de significados. Pensamos que buscar compreender as
especificidades da educação no contexto dos terreiros pressupõe transitar entre fluxos
simultâneos de continuidade e descontinuidade onde, entre valores que se mantém e
mudanças que vem sendo introduzidas ao longo da história, seja possível perceber modos de
aprender, ensinar e conceber o mundo que vem sendo compostas no interior dessas
comunidades.

Educação nos Terreiros: atravessando os portões

Antes de lançarmos um olhar mais atento ao aprendizado nas comunidades de terreiro


gostaríamos de engendrar algumas reflexões quanto ao paradigma de educação formal que,
segundo afirma o sociólogo Muniz Sodré (2012), continua baseado num modelo clerical e
prisional, herança da colonização religiosa no país. De acordo com o autor continuamos
reproduzindo tal modelo de educação religiosa desde a disposição física do espaço escolar até
a dimensão pedagógica, referindo-se à figura do professor como aquele que detém todo o
conhecimento. Acredita que a reinvenção da educação brasileira perpassaria um processo de
descolonização, enfatizando a importância do processo de formação e valorização do
professor que atuaria, então, como um iniciador ou como um mediador do conhecimento.
O espaço escolar formal funciona a partir de uma lógica temporal. Freitas (2016)
chama atenção para o fato de que a forma escolar produz uma organização que privilegia a
homogeneidade e a simultaneidade. O terreiro, por outro lado, opera a partir da lógica
espacial. Sodré (1988) afirma que o pensamento do terreiro valoriza o espaço e a força
produzindo uma organização que tem como primazia o contato e a corporeidade. Recorremos
novamente às ideias de Sodré (2012) e Santos (2010) acreditando ser possível o exercício de
pensarmos outras perspectivas educacionais que levassem em conta uma “horizontalização”
de saberes diversos ou de uma “ecologia de saberes”

O reconhecimento da persistência do pensamento abissal é, assim, conditio


si ne qua non para começar a pensar e agir para além dele. [...] O
pensamento pós-abissal pode ser sumariado como um aprender com o Sul
usando uma epistemologia do Sul. Confronta a monocultura da ciência
moderna com uma ecologia de saberes. É uma ecologia, porque se baseia na
pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 242


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem


comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de
que o conhecimento é interconhecimento. (SANTOS, 2010, p. 44-45).

É importante assinalar que, mesmo atravessando a repressão imposta durante o


processo colonial, povos de diferentes etnias organizaram-se em torno das semelhanças que
guardavam entre si, formando comunidades de culto aos orixás, inkices e voduns, que
reproduziam e reproduzem, ainda hoje, fragmentos de pequenas Áfricas. As roças de
candomblé no Brasil conseguiram agrupar, por meio dos ajustes que foram estabelecendo-se
entre povos, orixás que pertenciam a diferentes regiões africanas, a exemplo da nação ketu, do
grupo nagô-iorubá, que cultua dezesseis orixás.
Como consequência do estabelecimento desses agrupamentos temos hoje, nesses
espaços, a possibilidade de reconexão cosmológica e civilizatória com um conjunto de valores
filosóficos, éticos e morais que desestabilizam a lógica capitalista vigente, colocando em
xeque a hegemonia cultural europeia. Pensar a educação nesta perspectiva possibilita que
vislumbremos uma educação brasileira contra hegemônica em todas as suas dimensões. Os
valores educacionais reproduzidos nos terreiros partem de uma visão de mundo que tem como
prerrogativa a “morte” do sujeito. O ser individual é submetido, por meio de um processo que
culmina num rito iniciático, à integração de um coletivo que substitui a noção de família
pequeno burguesa, ícone da sociedade capitalista.
Um conjunto de valores educacionais balizam a formação deste ser coletivo no seio
das comunidades de terreiro e as reflexões aqui desenvolvidas procuram elencá-las de modo a
torná-las conhecidas para educadores, acreditando-se naquilo que a escola formal tem a
aprender e na possibilidade de uma educação transformadora. Essa emancipação perpassaria
questões como a noção de coletividade, ancestralidade, intersubjetividade, territorialidade e
temporalidade e, simbolicamente, ela é potencializada desde o momento que chegamos no
Egbé, ao adentrarmos os portões dos terreiros pelo Brasil e pelas Américas onde as tradições
dos orixás, voduns e inkices estão presentes.
A travessia dos portões do barracão de Candomblé representa, para as pessoas desta
tradição, uma transposição de fronteiras. O ato de passar sobre a cabeça uma cuia contendo
água limpa para, em seguida, “despachá-la” na rua, permite que adentremos a um mundo que
entendemos como sagrado, deixando aquilo que é mundano para o lado de fora. A partir deste
primeiro ato introdutório, uma vez que muitos outros se seguirão, damos o primeiro passo em
direção à visão de mundo praticada neste contexto deixando para fora a vestimenta
eurocêntrica que determina que somos seres individuais, com nossas profissões, formações,

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 243


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

posições sociais, poder aquisitivo, relações e todas as inúmeras qualificações que nos
determinam em nossa sociedade.
Entre o adentrar e o passar para o estado de pertença reside um mundo intermediário
onde iniciamos os preparativos para realizarmos essa passagem completamente, através de um
ato iniciático. Rompemos com as práticas ocidentais para nos alinharmos numa cosmovisão,
cujas hierarquias sociais dão lugar a fala através da corporeidade. Não só as vestimentas são
trocadas, mas um outro tipo de comunicação se estabelece a partir dos gestos, de olhares e de
práticas rituais que são aprendidas por meio da vivência e pela absorção de outros valores
cotidianos. Esta transposição de um mundo universal e ocidental a uma visão pluriversal
africana leva em conta uma filosofia de mundo cuja ética e conceitos descrevem um corpo
cosmológico que produz uma reorganização ontológica e epistemológica sobre a vida.
A fim de compreender de que forma esses valores culturais são transmitidos e absorvidos
no contexto desta tradição, basta observarmos com olhos atentos: em dia de festa no
barracão é comum um cenário é sempre alegre, mas de muita atenção, com muitos
convidados chegando e se acomodando nos bancos dispostos para os visitantes ao redor do
salão, o que nos espaços tradicionais chamamos de assistência. Os adultos trabalham
ordenadamente, já com suas vestes rituais e muitas crianças permanecem brincando juntas,
por cima dos bancos e cadeiras ou correndo pelo salão em torno do mastro central. Todas as
tarefas são aprendidas cotidianamente a partir da vivência no barracão, além disso, a
cronologia das atividades não obedece ao ritmo temporal produzido pelo Ocidente, o que
significa dizer que o tempo marcado pelo relógio é substituído pelo tempo necessário para
que essas atividades aconteçam. É a palavra, entoada ritmicamente que determina a
cadência dos rituais (HAMPATÉ BÂ, 1980).
Ao soar do Adjárin, pela mão do Babalorisà, todos procuram suas posições dentro da
ordenação ritual e, neste momento, as crianças separam-se e posicionam- se de acordo com
sua idade iniciática. É idade iniciática que organiza todas as ações rituais dentro do terreiro.
Além disso, as sociabilidades e as relações no interior dessas comunidades litúrgicas que
caracterizam-se por ser rigorosamente hierárquicas são determinadas, de um modo geral,
pela idade iniciática. Um exemplo dessa organização pode ser verificado na disposição
física dos grupos. É comum que abyan (não iniciado) esteja conversando com abyan e
realizando tarefas que são designadas a este grupo. Nos momentos rituais, embora o
contexto seja coletivo, cada grupo está cuidadosamente separado entre si. A esse respeito,
Caputo (2012) afirma que,

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 244


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

A antiguidade iniciática é superior à idade civil. Por exemplo, se um


adulto chega ao terreiro para começar a aprender a religião, uma criança
pode perfeitamente ser responsável por lhe passar os ensinamentos. No
terreiro de Mãe Palmira uma criança toma a benção de alguém mais
velho da mesma forma que um adulto toma a benção à criança. As
expressões são sempre ‘Abença, meu pai’ ou ‘Abença, minha mãe’. (p.
72).

A antiguidade ou idade iniciática refere-se ao tempo que se tem no santo, o tempo


desde o ritual de iniciação ou de feitura. Segundo o teólogo Jayro Pereira de Jesus na visão
de mundo da tradição africana acredita-se que, até o momento da gestação, ainda no ventre
materno, estamos ligados ao TODO e, no momento do nascimento, somos desconectados
passando a seres individuais. O ato iniciático teria a função de nos religar, nos reconectar
através do Axé, representando simbolicamente o renascimento para uma nova vida de
dedicação e d e culto ao Orixá. De acordo com Santos (1975) o Axé (força, poder, energia)
representa o elemento mais importante no terreiro e para que o indivíduo o receba, precisa
ser iniciado por meio de um ritual conduzido por palavras que têm poder de ação. Neste rito
o Axé e o conhecimento são transmitidos, não exatamente em nível intelectual, mas pela
transferência de um complexo simbólico composto por uma relação dinâmica que se dá a
partir da corporeidade e do poder da palavra. A autora afirma que “a palavra faz parte de
uma combinação de elementos de um processo dinâmico que transmite um poder de
realização. Asè: que isto advenha” (SANTOS, 1975, p.46).
A palavra na tradição de matriz africana é um elemento vivo, seja em português ou
ioruba, cantada ou falada, a palavra é condutora de processos de ensino e aprendizagem e
carrega a transmissão dos costumes, orientações e encaminhamentos, sendo também a ponte
entre passado, presente e futuro. Tomando como referência o Candomblé de Ketu,
desenvolvido no Brasil pelo grupo nagô-iorubá, Beniste (1997) informa que a tradição dos
orixás representa o elemento central na vida de seus praticantes e se expressa por meio de
cânticos, mitos e provérbios, que compõem sua filosofia de vida:

Como não havia nenhuma forma de documento escrito no passado, tudo que
foi preservado sobre suas divindades chegou até nós por palavras faladas,
que passaram de geração a geração, constituindo-se o que se costumou
chamar de TRADIÇÃO ORAL. E isso remonta ao continente africano.
Essas tradições são os nossos únicos meios de se saber qualquer coisa de sua
teogonia e cosmogonia, o que eles pensam e no que acreditam acerca das
relações entre o CÉU e a TERRA (ÓRUN-AIYÉ). (BENISTE, 1997, p. 19
e 20).

Essa é uma característica fundamental que diferencia a educação dentro da tradição


religiosa de matriz africana dos valores praticados em nossa sociedade ocidental, uma vez

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 245


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

que temos a escrita como veículo principal de transmissão de conhecimento e o livro como
seu maior ícone. Para ampliar nossa compreensão a respeito dessa relação entre o homem e
a palavra na tradição africana, herdada por nós através da relação com a sacralidade e o
culto aos orixás, compartilhamos do conhecimento de Amadou Hampaté Bâ (1980), acerca
do pensamento do homem africano:

Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais


fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração a geração. [...]
É, pois, nas sociedades orais que não apenas a função da memória é mais
desenvolvida, mas também a ligação entre o homem e a Palavra é mais
forte. Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que
profere. Ele é a palavra e a palavra encerra um testemunho daquilo que
ele é. [...] Nas tradições africanas – pelo menos nas que conheço e que
dizem respeito a toda a região de savana ao sul do Saara – a palavra
falada se empossava, além de um valor moral fundamental, de um caráter
sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela depositadas.
Agente mágico por excelência, grande vetor de “forças etéreas”, não era
utilizada sem prudência. (HAMPATÉ BÂ, 1980, p. 182).

Herança da dinâmica diaspórica, a oralidade descrita pelo autor nas tradições


africanas permanece latente no interior das comunidades tradicionais de terreiro no Brasil,
compondo uma complexa trama simbólica que agrega em si elementos corporais, gestos e
movimentos, expressões faciais e palavras não ditas, comportamentos e atitudes que vão, aos
poucos, revelando (ou ocultando) os segredos da tradição do culto aos Orixás.
Operando a partir de uma lógica espacial, própria do lugar, existe uma extrema
valorização da proximidade e do contato. Isso não significa que não hajam os conflitos
próprios da natureza humana, mas que os ensinamentos e a transmissão de valores se dão a
partir da convivência, conforme enfatiza Wanda Machado ao relatar as palavras com as
quais foi recepcionada em sua chegada ao Opô Afonjá:

Que vocês sejam bem-vindos à família de Xangô. Agora que vocês foram
chamados para esta família, vamos ficando por aqui. É assim, a gente vai
ficando, vai sentindo o cheiro do outro pra ver se a gente gosta, se é isto
mesmo. Este foi um dos primeiros ensinamentos desta preceptora que
sempre ouviu e entendeu as nossas dúvidas, nossos medos e ansiedades.
Sentir o cheiro do outro. Isso nunca me saiu da cabeça. Pra sentir o cheiro
do outro não é necessário nenhum movimento. Nem precisa dizer nada, é
só olhar e escutar. É só ficar perto e escutar muito. Escutar é o melhor que
se tem a fazer. Não precisa perguntar nada, porque todo saber chega na
hora certa. Aqui ninguém fica ignorante, é só ficar perto dos mais velhos.
(Ebome Detinha em depoimento a MACHADO, 2013, p. 119).

Para além da proximidade que permite sentir o cheiro e o hálito do outro, a questão da
corporeidade é fundamental nestes espaços sagrados. O corpo está em primeiro plano. O
pensamento atravessa o corpo. O corpo inscreve uma nova lógica no iniciado que evidencia-

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 246


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

se desde a travessia dos portões. O corpo presente absorve conhecimentos, valores e um vasto
repertório de movimentos que vão possibilitando contar a história do ser em si e de sua
ancestralidade, servindo de veículo para as divindades.

O corpo, morada e receptáculo dos orixás, na dança ritual do candomblé não


é composto por gesto individualizados, escolhidos pelo fiel, segundo sua
livre criação e interpretação de movimento. Existe uma gestualidade inerente
ao ritual, que é facilmente identificável, com características próprias e
codificação sofisticada. Essa gestualidade pode ser entendida como um
elaborado sistema de ações corporais desenvolvida ao longo dos tempos [...]
“para construir um sistema mais ou menos coerente de maneiras de ser
corporais” (PAVIS, 1999, p. 186). Esse conjunto de movimentos e intenções
corporais foi desenvolvido para estabelecer uma significação dependente dos
mitos do orixá que está incorporando, bem como da cosmologia do
candomblé. (ZENICOLA, 2014, p. 92)

É importante também ressaltar o aspecto ambiental na educação dos terreiros. A


relação do Candomblé e de seus adeptos com a natureza é de profundo respeito e
reverência. A frase em iorubá: Kosí ewe, kosí Òrisá, sem folha não há Orixá, encerra a
profundidade desta relação. As folhas estão presentes em todos os atos rituais praticados
no candomblé e grande parte do “segredo” da tradição consiste no conhecimento do uso das
folhas. Esta é uma relação de sacralidade com as plantas e com a natureza aparece em
diversos trabalhos sobre este tema, conforme depoimento a seguir:

O candomblé vai contra essa lógica que hoje destrói o planeta. Nossa
religião lida com os quatro elementos da natureza (fogo, terra, água e ar) e
com os três reinos (vegetal, mineral e animal). São esses elementos
integrados que formam o Asè, a força dinâmica que a tudo move e anima.
Portanto, o candomblé é a religião mais ecológica que existe, porque só
concebemos a nossa própria existência integrada à natureza. Yemojá é a
energia das ondas do mar, das águas do mar. Òsun, das águas doces, dos
rios, das cachoeiras. Òsáyin, dos vegetais, das folhas. Sàngó, dos trovões,
do fogo. Yánsàn, do ar e da terra. Òsóòsì é o grande caçador. Quando
uma criança começa a lidar com isso desde cedo, ela não apenas se sente
parte da natureza, é mais que isso, ela entende que ela é a natureza. (Mãe
Palmira em depoimento a CAPUTO, 2012, p. 76).

A fala da Iyalorixá Palmira descreve a associação de alguns Orixás a determinadas


forças da natureza e, de acordo com a cosmovisão da tradição iorubana, o culto aos
Orixás, em sua totalidade, baseia-se nessa relação com os quatro elementos da natureza. Uma
descrição mais aprofundada sobre essa relação pode ser verificada no filme “Jardim das
Folhas” e nos documentários “Casa de Santo” e “Atlântico Negro – Na Rota dos
Orixás”.6

6
Disponíveis no site You Tube.

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 247


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

Outro aspecto relevante no âmbito dessas reflexões sobre a educação nos terreiros trata
das relações pessoais e da noção de pertencimento ao grupo e de coletividade. Fundamentadas
no princípio ético e filosófico UBUNTU, cuja máxima pode ser definida pela expressão “Eu
sou, porque nós somos”, a noção de coletividade sobrepõe-se ao individualismo
experimentado na sociedade capitalista ocidental. A “morte do eu” que culmina no ato
iniciático representa a conexão simultânea do indivíduo com seus ancestres, com sua
divindade e com a coletividade à qual pertence. Segundo o filósofo sul-africano Mogobe
Ramose, a comunidade é lógica e historicamente anterior ao indivíduo e, por isso, tem
primazia sobre ele; a comunidade é uma “entidade dinâmica” composta por três esferas: a dos
vivos, a dos mortos-vivos e a dos não-nascidos, e acrescenta:

Em um sentido estritamente tradicional ou, se preferir, religioso, ubuntu


significa que nós só nos tornamos uma pessoa ao sermos introduzidos ou
iniciados em uma tribo ou em um clã específicos. Nesse sentido, ‘tornar-
se uma pessoa por meio de outras pessoas’ implica em passar por vários
estágios, cerimônias e rituais prescritos pela comunidade. Entretanto, em
um sentido comum ou secular, ubuntu significa simplesmente compaixão,
calor humano, compreensão, respeito, cuidado, partilha, humanitarismo ou,
em uma só palavra, amor. (RAMOSE, 2010, p.5).

No contexto educacional dos terreiros cabe ressaltar que o sentido comunitário


desestabiliza a noção de família conforme a vivenciamos em nossa sociedade. De um modo
geral as crianças do barracão são todas nossas e tarefas como cuidar, alimentar, brincar,
chamar à atenção são tarefas de todos os adultos, comumente realizadas por quem está
disponível, independentemente dos pais estarem presentes ou não. Envoltos nesse ambiente,
as crianças vão desenvolvendo, desde cedo, um sentido de partilha e absorvendo o
significado do “nós”.
Compreender estas lógicas distintas implica em imergir num pluriverso que
desestrutura nossas noções imediatas de pessoa, as relações sociais que só existem em
oposições binárias e suprimir as concepções dualistas do ocidente que só se sustentam a
partir de dualismos do tipo alto/baixo, dentro/fora. Entender como funcionam os rituais não
significa somente descrevê-los, conhecer de que forma funciona a força vital de um Orixá
não é possível a partir de suas características. A compreensão se dá somente através da
vivência e dos ensinamentos advindos dela por meio da oralidade e da corporeidade em que
os sujeitos estão mergulhados.

O que a Escola poderia aprender com a Educação nos Terreiros

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 248


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

Procuramos aqui estabelecer um diálogo com as práticas educativas forjadas no


interior das comunidades de terreiro, baseando-nos em elementos que foram vivenciados em
nossa pesquisa de campo, num referencial teórico decolonial e na produção de pesquisadores
que já sinalizaram anteriormente a possiblidade de se tecer novos horizontes para a escola
contemporânea. Acreditamos que haja indícios de que as formas de se ensinar e se aprender
em diferentes manifestações das tradições de matrizes africanas sugerem um tipo de educação
igualitária pautada em elementos que demandariam a emergência de outra cultura escolar,
como as noções de coletividade, ancestralidade, intersubjetividade, territorialidade e
temporalidade.
Essa construção do ser coletivo no seio das comunidades pesquisadas salta aos olhos
de quem quiser ver, estão latentes em inúmeras imagens captadas neste curto período de
pesquisa exploratória7: o jovem Douglas, menino criado como filho da Iyalorixá Jacila de
Oxum, chega da escola, tira seu uniforme e toma seu banho de folhas antes de almoçar. A
mesa já está posta, mas ele sai em direção às casas de santo para tomar benção aos orixás. Só
então faz o seu prato, pede a benção de sua mãe adotiva e mãe de santo, pergunta se as outras
crianças já almoçaram e divide o refrigerante que sobrou em três copos... A própria
representação do transitar.
Nesse sentindo, pensar na educação dos terreiros como uma educação emancipadora
aponta, não só a necessidade de se rever a noção do que é a Escola, mas evidencia as vozes
dos sujeitos envolvidos, instituindo, geopoliticamente, sua forma de estar no mundo como
sujeitos.
É um movimento de apontar caminhos para uma educação mais democrática, cuja
premissa básica não prescinda da contribuição de distintos grupos étnicos que foram
introduzidos no país versus uma educação monocrática de orientação europeia. É estabelecer
parâmetros e critérios por meio dos pilares que sustentam filosofias de matrizes africanas

7
É importante mencionar que esta pesquisa de campo foi atravessada pela pandemia decorrente do COVID 19
afetando os prazos e demandando uma série de ajustes nas formas como a pesquisa havia sendo realizada. Após
um período inicial de corte e paralisação das atividades previstas, iniciou-se um processo de reelaboração frente
às novas demandas impostas pela situação social, gerando a necessidade de novas negociações com o campo de
pesquisa e com os sujeitos pesquisados. Um novo conjunto de ações foi sendo estruturado metodologicamente,
de forma a não comprometer o resultado final da pesquisa, readequando-a as possibilidades que nos foram
colocadas pela falta de perspectiva de um retorno à normalidade. Dentre essas ações destacamos os contatos com
os sujeitos e com o campo pesquisado que passaram a ser feitos de forma virtual, por meio dos recursos
disponíveis na mídia digital, as negociações com os sujeitos para a inclusão desta pesquisadora em grupos de
WhatsApp que geralmente são reservados à participação de membros internos dos grupos pesquisados, o
levantamento de uma nova base de dados para o campo de pesquisa que é público e disponibilizado por meio de
vídeos publicados no YouTube e que exigem, por sua vez, ajustes no processo de análise e no conjunto de
leituras.

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 249


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

(territorialidade, ancestralidade coletividade, intersubjetividade, e temporalidade). É pensar


um mundo de forma pluriétnica e pluriversal cujo ódio à diferença não sejam as bases sobre
as quais se sustentam toda forma de preconceito e de discriminação racial. É propor novas
empreitadas até então não vislumbradas e assumir novas epistemologias e ontologias que se
apresentam como novas formas de se ver e pensar os sujeitos contra esse mundo criado na
Modernidade.
Um mundo que nos afastem da violência cotidiana que assolam crianças, jovens e
adolescentes e suas famílias, para que construamos relações de respeito e dar dignidade a
todos àqueles que compõem o amplo espectro da cultura escolar brasileira, marcadamente
racista e excludente. Mas acima de tudo, para que possamos ter o mínimo de chance de
tentarmos ser aquilo que jamais experimentamos por conta do colonialismo: a possibilidade
de existência com direito pleno e cidadania ampla através de uma educação emancipadora.
Axé!

REFERÊNCIAS

BENISTE, José. Òrun Àiyé – O Encontro de Dois Mundos. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1997.

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros e como a escola se relaciona com as
crianças de candomblé. Rio de Janeiro: FAPERJ e Pallas, 2012.

FREITAS, Marcos Cesar de. O Aluno Incluído na Educação Básica. São Paulo: Editora
Cortez, 2016..

HAMPATÉ BÂ, Amadou. Tradição Viva. In: KI-ZERBO (org). História da África Geral I.
Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ed. Ática/UNESCO, 1980.

MACHADO, Vanda. Pele da Cor da Noite. Salvador: EDUFBA, 2013.

MOREIRA, Rodrigo B. e PERETI, Emerson. A Árvore do Esquecimento e as Tentativas


de Destruição da Memória Afrodiaspórica. In: Revista UNIABEU, v.13, n.33, 2020.

MORTARI, Claudia. Pensando a Diáspora Africana: algumas questões. In: MORTARI,


Claudia (Org.) Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora. Florianópolis:
DIOESC/UDESC, 2015.

PARÉS. Luis Nicolau. A Formação do Candomblé – História e ritual da nação Jêje na


Bahia. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2007.

RAMOSE, Mogobe. A importância vital do “Nós”. In: Revista do Instituto Unisinos –


Edição 353. São Leopoldo, 2010.

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 250


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes

SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Org.).
Epistemologias do Sul. São Paulo: Ed. Cortez, 2010.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. Petrópolis: Vozes, 1975.

SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes,


1988.

SODRÉ, Muniz. Reinventando a Educação: diversidade, descolonização e redes.


Petrópolis: Vozes: 2012.

ZENÍCOLA, Denise Mancebo. Performance e Ritual: a dança das Iabás no Xirê. Rio de
Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2014.

SOBRE AS AUTORA:

Verônica Kimura
Doutoranda em Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) - Brasil;
Programa de Pós-Graduação em Educação; Observatório de práticas escolares. Correio
eletrônico: veronicakimura2020.com.br
https://orcid.org/0000-0002-1454-8152

Geovana Mendonça Lunardi Mendes


Pós-doutora em Educação, Arizona State University: Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC) – Brasil; Programa de Pós-graduação em Educação; Observatório de
práticas escolares. Correio Eletrônico: geovana.mendes@udesc.br
https://orcid.org/0000-0002-8848-7436

Recebido em: 07 de abril de 2021


Aprovado em:18 de maio de 2021
Publicado em: 01 de julho de 2021

REVISTA PRÁXIS EDUCACIONAL v. 17, n. 46, p. 237-251, JUL./SET. | 2021 251


VITÓRIA DA CONQUISTA | BAHIA | BRASIL

Você também pode gostar