Escola e Terreiro
Escola e Terreiro
Escola e Terreiro
Verônica Kimura
Universidade do Estado de Santa Catarina – Brasil
Resumo: Este artigo versa sobre os aspectos de uma educação emancipadora ligada às tradições de
matrizes africanas, pensada aqui como a educação nos terreiros e as implicações desta com a educação
escolar formal monocrática. Desnuda elementos específicos desta educação com base na tradição dos
orixás, voduns e inkices e as apresenta enquanto possibilidades enunciativas de visões de mundo
negadas e perseguidas durante todo o processo de formação da educação brasileira. Vislumbra um
horizonte de alternativas para uma educação pluriétnica e pluriversal.
Abstract: This article deals with the aspects of an emancipatory education linked to the African
matrix traditions, thought here as the education in the terreiros and the implications of this with the
formal monocratic school education. It exposes specific elements of this education based on the
tradition of orixás, voduns and inkices and presents them as enunciative possibilities of world views
that are denied and pursued through all the process of formation of Brazilian education. It envisions a
horizon of alternatives for multi-ethnic and multi-universal education.
Resumen: Este artículo trata los aspectos de una educación emancipadora ligada a las tradiciones de
matrices africanas, pensada aquí como la educación en los terreiros y las implicaciones de ésta con la
educación escolar formal monocrática. Expone elementos específicos de esta educación basados en la
tradición de los orixás, vodunes e inkices y los presenta como posibilidades enunciativas de visiones
del mundo que son negadas y perseguidas durante todo el proceso de formación de la educación
brasileña. Visualiza un horizonte de alternativas para la educación multiétnica y multiuniversal.
DOI: https://doi.org/10.22481/praxisedu.v17i46.8678
ATRAVESSANDO OS PORTÕES: EDUCAÇÃO NOS TERREIROS OU O QUE A ESCOLA PODERIA
APRENDER
Verônica Kimura | Geovana Mendonça Lunardi Mendes
A Árvore do Esquecimento
1
O OPE, vincula-se ao Programa de Pós-graduação em Educação da UDESC (Universidade do Estado de Santa
Catarina).
2
Para esclarecimentos detalhados sobre o agrupamento do grande grupo Nagô ver Juana Elbein dos Santos – Os
Nagô e a Morte (1975).
3
Relatado pelo Babalorixá Guaraci Fagundes e Egbomi Jayro Pereira de Jesus, Florianópolis, 2016. Entre os
anos 2016 e 2017 houveram inúmeras conversas entre esta pesquisadora e o teólogo Jayro Pereira de Jesus, além
de situações rituais onde os mais velhos orientam os mais novos a respeito de temas diversos nas tradições aqui
estudadas. Ao longo do presente texto o referido teólogo será mencionado em outros momentos, acerca de
assuntos que decorreram deste período da pesquisa.
Outro aspecto assinalado pelo sociólogo Muniz Sodré (1988) refere-se à necessidade
de reterritorialização, característica inerente a uma cultura de exílio. O autor relata que o
banzo4 fora responsável por inúmeros suicídios e que o ato “comer terra”, muito praticado
em tempos de cativeiro, relacionava-se, simbolicamente, com a falta da terra natal. A questão
da espacialização nos terreiros é problematizada por Sodré como uma forma de continuidade
que possibilita uma espécie de metáfora, um único espaço que agrega o culto a Orixás
provenientes de diferentes regiões africanas. Aponta como referência a organização física do
Ilê Axé Opô Afonjá (Salvador-BA), terreiro no qual ocupa o cargo de Obá de Xangô5,
composta por um salão principal com pequenas casas dispostas em seu entorno que
representam, cada casa, diferentes Orixás cultuados originalmente em uma determinada
região e que ali compartilham o mesmo espaço sagrado reconstituindo, simbolicamente, o
continente africano.
Tal organização é comum a inúmeros terreiros de Tradições de Matriz Africana,
sendo que a estruturação destes espaços sagrados tem se reelaborado continuamente para
atender às novas demandas socioculturais e políticas. O teólogo Jayro Pereira de Jesus relata
que ao visitar um terreiro no interior do Rio de Janeiro deparou-se com uma estrutura física
similar a uma cidade. Em torno do salão principal estavam dispostas as casas dos orixás
como residências independentes, cada uma delas abrigando, além do assentamento do seu
orixá, um projeto sociocultural relacionado aos atributos deste orixá/morador. Citou como
4
"Das doenças crônicas... uma, e das principais moléstias crônicas, que sofrem os escravos, a qual pelo decurso
do tempo os leva à sepultura, vem a ser o banzo. O banzo é um ressentimento entranhado por qualquer princípio,
como por exemplo: a saudade dos seus, e da sua pátria; o amor devido a alguém; à ingratidão, e aleivosia, que
outro lhe fizera; a cogitação profunda sobre a perda da liberdade; a meditação continuada da aspereza com que
os tratam; o mesmo mau trato, que suportam; e tudo aquilo que pode melancolizar. É uma paixão da alma, a que
se entregam, que só é extinta com a morte: por isso disse que os pretos africanos eram extremosos, fiéis,
resolutos, constantíssimos, e susceptíveis no último extremo do amor e do ódio (...). Este mesmo banzo por vezes
observei no Brasil, que matara a muitos escravos; porém sempre por efeitos do ressentimento do rigor, com que
os tratavam os seus senhores.” (MENDES, Luiz Antonio de Oliveira. Memória a respeito dos escravos e tráfico
da escravatura entre a Costa d’África e o Brazil, apresentada à Real Academia de Ciências de Lisboa, 1793.
Porto, Publicações Escorpião, 1977. Pag. 61-62). Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Banzo.
5
Título honorífico do Candomblé criado no Axé Opó Afonjá por Mãe Aninha em 1936, esses títulos honoríficos
de doze Obás de Xangô, reis ou ministros da região de Oyo, foram concedidos aos amigos e protetores do
Terreiro. Corpo de Obás - Ministros de Xangô. Aos Obás foi entregue o destino civil do Terreiro.
Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Obá_de_Xangô
exemplo a casa de Iansã que possuía uma cozinha e uma sala onde acontecia, na ocasião de
sua visita, uma reunião referente a um projeto voltado para as mulheres empreendedoras da
comunidade.
Tal relato assinala um espaço compartilhado entre tradição e inovação numa
complexa interação repleta de significados. Pensamos que buscar compreender as
especificidades da educação no contexto dos terreiros pressupõe transitar entre fluxos
simultâneos de continuidade e descontinuidade onde, entre valores que se mantém e
mudanças que vem sendo introduzidas ao longo da história, seja possível perceber modos de
aprender, ensinar e conceber o mundo que vem sendo compostas no interior dessas
comunidades.
posições sociais, poder aquisitivo, relações e todas as inúmeras qualificações que nos
determinam em nossa sociedade.
Entre o adentrar e o passar para o estado de pertença reside um mundo intermediário
onde iniciamos os preparativos para realizarmos essa passagem completamente, através de um
ato iniciático. Rompemos com as práticas ocidentais para nos alinharmos numa cosmovisão,
cujas hierarquias sociais dão lugar a fala através da corporeidade. Não só as vestimentas são
trocadas, mas um outro tipo de comunicação se estabelece a partir dos gestos, de olhares e de
práticas rituais que são aprendidas por meio da vivência e pela absorção de outros valores
cotidianos. Esta transposição de um mundo universal e ocidental a uma visão pluriversal
africana leva em conta uma filosofia de mundo cuja ética e conceitos descrevem um corpo
cosmológico que produz uma reorganização ontológica e epistemológica sobre a vida.
A fim de compreender de que forma esses valores culturais são transmitidos e absorvidos
no contexto desta tradição, basta observarmos com olhos atentos: em dia de festa no
barracão é comum um cenário é sempre alegre, mas de muita atenção, com muitos
convidados chegando e se acomodando nos bancos dispostos para os visitantes ao redor do
salão, o que nos espaços tradicionais chamamos de assistência. Os adultos trabalham
ordenadamente, já com suas vestes rituais e muitas crianças permanecem brincando juntas,
por cima dos bancos e cadeiras ou correndo pelo salão em torno do mastro central. Todas as
tarefas são aprendidas cotidianamente a partir da vivência no barracão, além disso, a
cronologia das atividades não obedece ao ritmo temporal produzido pelo Ocidente, o que
significa dizer que o tempo marcado pelo relógio é substituído pelo tempo necessário para
que essas atividades aconteçam. É a palavra, entoada ritmicamente que determina a
cadência dos rituais (HAMPATÉ BÂ, 1980).
Ao soar do Adjárin, pela mão do Babalorisà, todos procuram suas posições dentro da
ordenação ritual e, neste momento, as crianças separam-se e posicionam- se de acordo com
sua idade iniciática. É idade iniciática que organiza todas as ações rituais dentro do terreiro.
Além disso, as sociabilidades e as relações no interior dessas comunidades litúrgicas que
caracterizam-se por ser rigorosamente hierárquicas são determinadas, de um modo geral,
pela idade iniciática. Um exemplo dessa organização pode ser verificado na disposição
física dos grupos. É comum que abyan (não iniciado) esteja conversando com abyan e
realizando tarefas que são designadas a este grupo. Nos momentos rituais, embora o
contexto seja coletivo, cada grupo está cuidadosamente separado entre si. A esse respeito,
Caputo (2012) afirma que,
Como não havia nenhuma forma de documento escrito no passado, tudo que
foi preservado sobre suas divindades chegou até nós por palavras faladas,
que passaram de geração a geração, constituindo-se o que se costumou
chamar de TRADIÇÃO ORAL. E isso remonta ao continente africano.
Essas tradições são os nossos únicos meios de se saber qualquer coisa de sua
teogonia e cosmogonia, o que eles pensam e no que acreditam acerca das
relações entre o CÉU e a TERRA (ÓRUN-AIYÉ). (BENISTE, 1997, p. 19
e 20).
que temos a escrita como veículo principal de transmissão de conhecimento e o livro como
seu maior ícone. Para ampliar nossa compreensão a respeito dessa relação entre o homem e
a palavra na tradição africana, herdada por nós através da relação com a sacralidade e o
culto aos orixás, compartilhamos do conhecimento de Amadou Hampaté Bâ (1980), acerca
do pensamento do homem africano:
Que vocês sejam bem-vindos à família de Xangô. Agora que vocês foram
chamados para esta família, vamos ficando por aqui. É assim, a gente vai
ficando, vai sentindo o cheiro do outro pra ver se a gente gosta, se é isto
mesmo. Este foi um dos primeiros ensinamentos desta preceptora que
sempre ouviu e entendeu as nossas dúvidas, nossos medos e ansiedades.
Sentir o cheiro do outro. Isso nunca me saiu da cabeça. Pra sentir o cheiro
do outro não é necessário nenhum movimento. Nem precisa dizer nada, é
só olhar e escutar. É só ficar perto e escutar muito. Escutar é o melhor que
se tem a fazer. Não precisa perguntar nada, porque todo saber chega na
hora certa. Aqui ninguém fica ignorante, é só ficar perto dos mais velhos.
(Ebome Detinha em depoimento a MACHADO, 2013, p. 119).
Para além da proximidade que permite sentir o cheiro e o hálito do outro, a questão da
corporeidade é fundamental nestes espaços sagrados. O corpo está em primeiro plano. O
pensamento atravessa o corpo. O corpo inscreve uma nova lógica no iniciado que evidencia-
se desde a travessia dos portões. O corpo presente absorve conhecimentos, valores e um vasto
repertório de movimentos que vão possibilitando contar a história do ser em si e de sua
ancestralidade, servindo de veículo para as divindades.
O candomblé vai contra essa lógica que hoje destrói o planeta. Nossa
religião lida com os quatro elementos da natureza (fogo, terra, água e ar) e
com os três reinos (vegetal, mineral e animal). São esses elementos
integrados que formam o Asè, a força dinâmica que a tudo move e anima.
Portanto, o candomblé é a religião mais ecológica que existe, porque só
concebemos a nossa própria existência integrada à natureza. Yemojá é a
energia das ondas do mar, das águas do mar. Òsun, das águas doces, dos
rios, das cachoeiras. Òsáyin, dos vegetais, das folhas. Sàngó, dos trovões,
do fogo. Yánsàn, do ar e da terra. Òsóòsì é o grande caçador. Quando
uma criança começa a lidar com isso desde cedo, ela não apenas se sente
parte da natureza, é mais que isso, ela entende que ela é a natureza. (Mãe
Palmira em depoimento a CAPUTO, 2012, p. 76).
6
Disponíveis no site You Tube.
Outro aspecto relevante no âmbito dessas reflexões sobre a educação nos terreiros trata
das relações pessoais e da noção de pertencimento ao grupo e de coletividade. Fundamentadas
no princípio ético e filosófico UBUNTU, cuja máxima pode ser definida pela expressão “Eu
sou, porque nós somos”, a noção de coletividade sobrepõe-se ao individualismo
experimentado na sociedade capitalista ocidental. A “morte do eu” que culmina no ato
iniciático representa a conexão simultânea do indivíduo com seus ancestres, com sua
divindade e com a coletividade à qual pertence. Segundo o filósofo sul-africano Mogobe
Ramose, a comunidade é lógica e historicamente anterior ao indivíduo e, por isso, tem
primazia sobre ele; a comunidade é uma “entidade dinâmica” composta por três esferas: a dos
vivos, a dos mortos-vivos e a dos não-nascidos, e acrescenta:
7
É importante mencionar que esta pesquisa de campo foi atravessada pela pandemia decorrente do COVID 19
afetando os prazos e demandando uma série de ajustes nas formas como a pesquisa havia sendo realizada. Após
um período inicial de corte e paralisação das atividades previstas, iniciou-se um processo de reelaboração frente
às novas demandas impostas pela situação social, gerando a necessidade de novas negociações com o campo de
pesquisa e com os sujeitos pesquisados. Um novo conjunto de ações foi sendo estruturado metodologicamente,
de forma a não comprometer o resultado final da pesquisa, readequando-a as possibilidades que nos foram
colocadas pela falta de perspectiva de um retorno à normalidade. Dentre essas ações destacamos os contatos com
os sujeitos e com o campo pesquisado que passaram a ser feitos de forma virtual, por meio dos recursos
disponíveis na mídia digital, as negociações com os sujeitos para a inclusão desta pesquisadora em grupos de
WhatsApp que geralmente são reservados à participação de membros internos dos grupos pesquisados, o
levantamento de uma nova base de dados para o campo de pesquisa que é público e disponibilizado por meio de
vídeos publicados no YouTube e que exigem, por sua vez, ajustes no processo de análise e no conjunto de
leituras.
REFERÊNCIAS
BENISTE, José. Òrun Àiyé – O Encontro de Dois Mundos. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1997.
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros e como a escola se relaciona com as
crianças de candomblé. Rio de Janeiro: FAPERJ e Pallas, 2012.
FREITAS, Marcos Cesar de. O Aluno Incluído na Educação Básica. São Paulo: Editora
Cortez, 2016..
HAMPATÉ BÂ, Amadou. Tradição Viva. In: KI-ZERBO (org). História da África Geral I.
Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ed. Ática/UNESCO, 1980.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Org.).
Epistemologias do Sul. São Paulo: Ed. Cortez, 2010.
ZENÍCOLA, Denise Mancebo. Performance e Ritual: a dança das Iabás no Xirê. Rio de
Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2014.
SOBRE AS AUTORA:
Verônica Kimura
Doutoranda em Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) - Brasil;
Programa de Pós-Graduação em Educação; Observatório de práticas escolares. Correio
eletrônico: veronicakimura2020.com.br
https://orcid.org/0000-0002-1454-8152