2.0 Cap

Fazer download em doc, pdf ou txt
Fazer download em doc, pdf ou txt
Você está na página 1de 29

Capítulo II

A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL

1. HISTÓRICO

Antecedentes
O reconhecimento da existência e importância, assim como o interesse em
seu desenvolvimento, das potencialidades humanas relacionadas à espiritualidade, auto-
transcendência e ampliação da consciência - temática que contemporaneamente
caracteriza o objeto de estudos privilegiado da Psicologia Transpessoal - é imemorial nas
culturas e sociedades humanas. Embora esse interesse, assim como a visão de homem e
universo a ele associada, sejam com justiça habitualmente relacionados ao campo da
Religião ou da Filosofia, é igualmente justo e apropriado, sob uma ótica mais atual,
considerar grande parte da produção cultural desenvolvida nessa área como pertencente
ao campo do que hoje chamamos Psicologia. De fato, abstraída uma leitura mais ingênua
dos aspectos mitológicos, doutrinários e ritualísticos específicos, a maioria das religiões
e tradições espirituais acaba propondo um modelo teórico-operativo da psiquê humana -
ou seja, uma teoria da personalidade - e tecnologias de mudança da personalidade em
direção ao considerado mais saudável pelo modelo adotado - ou seja, um tipo de
psicoterapia.
Este ponto de vista de aceitar as tradições espirituais como psicologias, e
mais ainda psicologias transpessoais, é ponto pacífico dentro do Movimento
Transpessoal e, mesmo fora deste, encontra hoje larga aceitação, em grande parte graças
ao trabalho de Jung que, em suas pesquisas sobre a Alquimia e as religiões orientais e
ocidentais, revolucionou a concepção cientificista com que tais tradições eram encaradas.
Assim vemos hoje populares manuais acadêmicos de teorias da personalidade,
largamente utilizados fora do círculo transpessoal (como o de Fadiman e Frager, 1979), e
mesmo de autores não identificados com a perspectiva transpessoal (como Hall e
Lindsay, 1984), dedicarem capítulos às chamadas Teorias Orientais.
Ainda examinando o passado histórico da Psicologia, vamos encontrar nas
psicologias pré-científicas desenvolvidas sob a égide da Filosofia, toda gama de
concepções sobre a natureza humana e suas relações com o universo circundante, em que
são privilegiadas perspectivas metafísicas e enfatizado o potencial de espiritualidade e
transcendência da consciência. Tais concepções, permanecendo atuais e dando margem a
estudos adequados ao arcabouço teórico e conceptual da Ciência atual, podem ser
considerados como patrimônio pela moderna Psicologia científica e, nos aspectos
relacionados à espiritualidade, como contribuições à Psicologia Transpessoal.

22
Mesmo na história recente de nossa ainda jovem ciência da Psicologia, são
encontrados significativos precursores do atual Movimento Transpessoal, sendo três os
nomes mais amplamente reconhecidos:
Em primeiro lugar, é lembrado o psiquiatra canadense Richard Maurice
Bucke, entusiasta do Transcendentalismo (movimento da Filosofia e da Arte no século
passado), que realizou estudos sobre vivências de ampliação e transcendência da
consciência, as experiências místicas de farto relato na literatura religiosa e, mais
recentemente, também na psiquiátrica. Foi Bucke quem adotou, possivelmente inspirado
em poema de Walt Whitman, o termo consciência cósmica, como designativo mais ou
menos genérico para a vivência subjetiva de abarcar o cosmos como conteúdo da
consciência. Título de seu livro Consciência Cósmica, hoje um clássico da Psicologia
Transpessoal, o termo ainda é largamente utilizado, em grande parte como uma
homenagem a esse grande pioneiro no estudo científico dos estados superiores da
consciência humana.
Em segundo lugar, já na virada do século, fulgura William James, o maior
dos psicólogos americanos, que em seus estudos sobre As Variedades da Experiência
Religiosa (título de seu livro de 1902) e, sobretudo, em suas teorias sobre a natureza da
consciência, seu fluxo e estados, formulou arrojadas concepções transpessoais que hoje
são recuperadas e revalorizadas pelos psicólogos da Quarta Força. Não são poucos os
que vêem na Psicologia Transpessoal, a qual retoma a consciência como objeto central
da Psicologia (ênfase que desde James havia sido abandonada), uma continuidade de seu
trabalho. Esse grande luminar, cuja obra nas últimas décadas vem sendo redescoberta e
retirada das empoeiradas páginas da História da Psicologia, é aclamado como precursor
não só da Psicologia Transpessoal, mas também do movimento fenomenológico,
humanista e existencial da Terceira Força. Como dizem a seu respeito Fadiman e Frager
(1979):
Ele era o que hoje chamamos de psicólogo humanista, profundamente consciente das
responsabilidades inerentes ao lecionar sobre a consciência; era também um psicólogo
transpessoal, sensível aos estados de consciência mais elevados e impressionado com os
efeitos que estes estados ocasionam nos que os experienciam. (p. 176)

E por fim vamos encontrar o extraordinário Carl Gustav Jung, outro gênio
cuja filiação póstuma em suas fileiras, como membro honorário e precursor, é disputada
tanto pelo Movimento Humanista como pelo Transpessoal. Psicólogo adiante de seu
tempo, em muitas de suas revolucionárias concepções antecipou em décadas diversas
tendências assumidas hoje pelo Movimento Transpessoal, sendo impossível, neste curto
espaço, traçar ainda que um resumo de suas contribuições ao estudo das dimensões
transcendentes da consciência - ou do inconsciente, como ele preferiria dizer. Apenas
para citar, noções como arquétipo, inconsciente coletivo, psiquê objetiva, Self,
sincronicidade, psicóide, entre outras, assim como seus já referidos estudos sobre
Religião e Alquimia - e mais, Parapsicologia, Astrologia e métodos divinatórios -
encontram-se, e por certo se manterão por muito tempo, na ordem do dia para os
psicólogos transpessoais deste e do futuro século.

23
A Emergência da Psicologia Transpessoal
Não obstante o interesse milenar do ser humano pelas dimensões
superiores e espirituais de sua psiquê e experiência, e do significativo trabalho
desenvolvido no campo da Psicologia por pioneiros como os que foram referidos, é
somente de meados para o final da década de 60 que uma série de fatores contribui para
o aumento de investigações, teorizações e práticas psicológicas relacionadas ao tema,
criando condições para a emergência e institucionalização da Psicologia Transpessoal
enquanto movimento organizado que se propõe como a Quarta Força da Psicologia.
Entre os fatores mais comumente apontados, e que examinaremos a seguir,
estão as necessidades decorrentes de fenômenos da mudança sócio-cultural; as novas
perspectivas de compreensão e abordagem científica da realidade abertas pelos
desenvolvimentos mais recentes das ciências naturais; e , no âmbito da Psicologia, certas
decorrências do desenvolvimento da própria Psicologia Humanista.
MUDANÇAS NO CONTEXTO CULTURAL
No contexto das intensas transformações culturais observadas na cultura
ocidental nas últimas décadas, e que como vimos estiveram também associadas ao
desenvolvimento da Psicologia Humanista, houve um crescente interesse em
espiritualidade, assim como um significativo aumento do número de pessoas envolvidas
em espetaculares vivências de alteração e ampliação da consciência. Isto tem sido
explicado, ao menos em parte, pela difusão do uso de substâncias psicodélicas, pela
popularização de práticas meditativas e espirituais importadas do oriente ou difundidas a
partir da abertura de antigas tradições esotéricas, e mesmo pela crescente valorização
cultural desse tipo de experiência, antes inibida e reprimida como sinal de transtornos
mentais, ou ainda de ignorância, primitividade, superstição e mesmo farsa.
Fossem tais vivências experienciadas como positivas, perturbadoras, ou
meramente divertidas, o fato é que colocaram os psicólogos e as psicologias numa
desconfortável posição. Chamados a explicar o que se passava e interferir como
autoridades no assunto, pouco tinham a dizer ou fazer. Salvo referências a eruditos
estudos antropológicos do que até então podia ser considerado como uma exótica
curiosidade de culturas primitivas ou de fechados grupos religiosos, os psicólogos só
tinham para repetir surradas lições de psicopatologia psiquiátrica, que logo se
mostravam como inadequadas respostas àqueles que os procuravam em busca de
explicações e ajuda para entender e integrar tão extraordinárias vivências. Mesmo jovens
psicólogos e pesquisadores, dentro do caldeirão de auto-experimentação psíquica que
caracterizou os anos da Contracultura, vivenciavam essas alterações dramáticas,
desconcertantes, intrigantes, e sobretudo instigantes, da própria consciência. Viu-se então
a Psicologia desafiada a abordar o fenômeno com todos os instrumentos técnicos,
metodológicos, teóricos e conceituais conhecidos, ou mesmo criando outros que se
fizessem necessários.

24
Surgia todo um novo campo de estudos, até então negligenciado nos meios
mais oficiais, e que agora se mostrava no descortinar de uma vasta gama de
desconhecidos estados alterados da consciência, para utilizar uma expressão difundida
no meio transpessoal por Charles Tart (1977). Em conseqüência dessa situação,
verificou-se o explosivo aumento de pesquisas e teorizações na área, estudos estes que
não poderiam ser adequadamente encaixados nos ramos de estudo anteriormente
delimitados para a Psicologia, nem tão pouco eram adequadamente abarcados pelas
formulações teóricas mais correntes.
Da necessidade de intercâmbio de pesquisas e pontos de vista desses
estudiosos isolados e deslocados nos meios mais oficiais, como outrora ocorrera com os
psicólogos que se associaram no lançamento da proposta humanista, emergiam as
condições para a articulação de um novo movimento congregador, envolvido agora na
investigação privilegiada das experiências inusuais e ampliadas da consciência humana.
MUDANÇAS NO PARADIGMA CIENTÍFICO
Entre os fatores extrínsecos mais comumente relacionados à emergência da
Psicologia Transpessoal, é apontado o extraordinário desenvolvimento observado neste
século no campo das ciências naturais, tais como a Física, a Química, a Biologia e a
Fisiologia. Novas descobertas e teorias em ramos de ponta da pesquisa científica têm a
tal ponto abalado as concepções estabelecidas de realidade e Ciência que, recorrendo-se
à conhecida concepção de história da Ciência apresentada por Kuhn (1987), tem sido
freqüentemente apontado que estaríamos em plena crise e revolução paradigmática,
testemunhando o nascimento de um novo paradigma científico. Tal revolução, de
implicações não só científicas como sócio-culturais, teria significados e conseqüências
tão transformadoras, ou mesmo mais ainda, que aquela iniciada outrora por Copérnico,
que subvertendo a cartografia da realidade propiciou, entre outras coisas, o próprio
nascimento das ciências naturais e da Civilização Moderna. Está sendo solapada em
suas próprias bases a visão de mundo cartesiano-newtoniana, cujos princípios de
ordenação lógica e causal, e de objetividade confiável das dimensões espaço-temporais,
tinham até agora fornecido alicerce seguro para a paulatina e inexorável construção do
edifício da Ciência. O novo paradigma que se insinua, e tem sido chamado de pós-
moderno, holístico, holográfico, e mesmo transpessoal, parece nos falar de um universo
mais amplo, do qual a realidade em que até agora transitávamos em nossos projetos de
investigação científica não passa de uma estreita faixa, cuja existência, ao invés de se
revestir de materialidade, parece dever à nossa consciência tanto quanto as delirantes
visões de um psicótico se associam à sua subjetividade doentia. Na nova perspectiva
científica, tempo e espaço são conceitos relativos; matéria e energia, uma questão de
ponto de vista; parte e todo são sinônimos; relação causa e efeito, um conceito
anacrônico; consciência subjetiva e objetividade concreta, duas faces inseparáveis e
intercambiáveis de uma mesma realidade unitária.
Esta insólita visão de mundo, inicialmente restrita a esotéricos círculos de
pesquisadores e teóricos, acabou por despertar curiosidade no insatisfeito e questionador

25
panorama da cultura em crise e, atravessando as fronteiras disciplinares, chega também à
Psicologia, onde encontra eco e confirmação nos extravagantes interesses e interrogações
de isolados psicólogos envolvidos em estudar os limites da consciência. Este
surpreendente encontro entre ciências de tão distinto campo - o âmago da matéria e os
confins da alma humana - é mediado por uma constatação mais desconcertante ainda:
esta nova visão de mundo e realidade, vislumbrada nas pesquisas mais especulativas e
arrojadas, não era tão nova assim, mas imemorialmente vivenciada nas tradições
religiosas, na experiência dos místicos, e nos relatos transpessoais.
Assim, contextualizando-se em um quadro de revolução paradigmática, a
Psicologia Transpessoal recebe estímulo para se consolidar como movimento de
contribuição e resposta da ciência psicológica que se atualiza, ao desafio e tarefa que -
tradicionalmente colocado a todo empreendimento científico - recebe agora renovados
significados: conhecer, colocando este conhecimento a serviço da humanidade, a
realidade do universo que nos cerca.
A PSICOLOGIA HUMANISTA E O NASCIMENTO DA PSICOLOGIA
TRANSPESSOAL
Embora auto-intitulada a Quarta Força da Psicologia, a Psicologia
Transpessoal não surge em oposição à Psicologia Humanista. Pelo contrário, como
movimento de proposta mais inclusiva que contestatória, mantém estreita ligação com a
Psicologia Humanista e, não obstante desta difira qualitativamente nas posições e
interesses a ponto de caracterizar um novo movimento, a Psicologia Transpessoal é em
geral entendida como uma ampliação ou extensão do Movimento Humanista, a partir de
tópicos que haviam sido apenas perifericamente considerados nas formulações iniciais da
Terceira Força. É aliás no próprio seio da Psicologia Humanista que se iniciam as
articulações para o lançamento do novo movimento:
Na década de 60, durante o rápido desenvolvimento da psicologia humanística, tornou-
se evidente que uma nova força emergia de seus círculos internos. Entretanto, a posição
humanística, enfatizando o crescimento e a auto-atualização, era muito restrita e limitada
para tal força. A nova ênfase residia no reconhecimento da espiritualidade e das
necessidades transcendentais como aspectos intrínsecos da natureza humana e no direito
de cada indivíduo escolher ou mudar seu caminho. Muitos renomados psicólogos
humanísticos mostraram crescente interesse por várias áreas antes negligenciadas e por
tópicos de psicologia como experiências místicas, transcendência, êxtase, consciência
cósmica, teoria e prática de meditação ou sinergia inter-espécie ou interindividual. (Grof,
1988, p. 138).

Mais uma vez, a percepção de que as circunstâncias favoreciam a


emergência de uma nova Força, e a iniciativa de encabeçar as articulações para seu
lançamento, coube a Maslow e Sutich. Conforme relembra este último (Sutich, 1991), foi
a partir das idéias que transpiraram em um seminário sobre Teologia Humanística
promovido em 1966, que Maslow e ele amadureceram a constatação de que uma nova
Força estava se impondo e fora erroneamente identificada como parte da Psicologia
Humanista. De fato, em 1968, Maslow assim se expressaria na introdução à segunda
edição de seu livro Introdução à Psicologia do Ser:

26
Devo também dizer que considero a Psicologia Humanista, ou Terceira Força em
Psicologia, apenas transitória, uma preparação para uma Quarta Força ainda "mais
elevada", transpessoal, trans humana, centrada mais no cosmos que nas necessidades e
interesses humanos, indo além do humanismo, da identidade, da individuação e
quejandos (...). Necessitamos de algo "maior do que somos" (Maslow, s. d., p.12).

A proposta, divulgada em conversas, seminários, artigos e troca de


correspondências, logo encontrou destacados adeptos, sendo formado um comitê para
organização de uma nova revista, dedicada ao que àquela altura chamavam Psicologia
Trans-humanística. Das discussões desse comitê, presidido por Sutich e integrado por,
além de Maslow, nomes do calibre de James Fadiman, Sidney Jourard, Michel Murphy e
Miles Vich, completa em finais de 1967 a definição e declaração de objetivos da nova
Força. Em 1968, em discussão de que participaram também Viktor Frankl e Stanislav
Grof, é adotado o título Psicologia Transpessoal em substituição ao anteriormente
proposto, e a revista lançada em 1969, sendo o movimento assim apresentado :
Psicologia Transpessoal (ou "Quarta Força") é o título dado a uma força emergente no
campo da Psicologia, representada por um grupo de psicólogos e profissionais de outras
áreas, de ambos os sexos, que estão interessados naquelas capacidades e potencialidades
ÚLTIMAS que não possuem um lugar sistemático na teoria positivista ou behaviorista
( "Primeira Força"), na teoria psicanalítica clássica ( "Segunda Força"), ou na psicologia
humanística ("Terceira Força"). (Apud Sutich, 1991, p. 29).

Nos próximos itens procurarei caracterizar a Psicologia Transpessoal em


termos dos temas que privilegia em seus estudos; das posições que adota em sua
proposta de Psicologia científica; da visão de natureza humana desenvolvida em suas
teorias; e das técnicas e métodos que utiliza para investigação e atuação. Em todos os
tópicos, na medida do possível, serão enfatizadas as relações e diferenças entre as
posições transpessoais e humanistas, tendo em vista os objetivos desta pesquisa.

2. CARACTERÍSTICAS
Temática Privilegiada.
Na declaração dos conteúdos de interesse para publicação, impressa no
frontispício do primeiro numero da Revista de Psicologia Transpessoal, pode-se ter uma
expressiva idéia dos campos temáticos caracteristicamente privilegiados na proposta da
Quarta Força:
A Revista de Psicologia Transpessoal ocupa-se da publicação da pesquisa teórica e
aplicada, de contribuições originais, estudos empíricos, artigos e estudos sobre meta
necessidades, valores últimos, consciência unitiva, experiência de pico, êxtase,
experiência mística, valores B, essência, felicidade, respeito, milagre, auto-realização,
significado último, transcendência do eu, espírito, sacralização da vida cotidiana,
unidade, consciência cósmica, jogo cósmico, sinergia individual e da espécie, máximo
encontro interpessoal, responsividade e expressão, e sobre os conceitos, experiências e
atividades relacionadas. Como declaração de objetivos, esta formulação deve ser
entendida como sujeita a interpretações opcionais individuais ou de grupos, tanto parcial
quanto totalmente, com relação à aceitação de seus conteúdos como essencialmente
naturalistas, teístas, sobrenaturalistas, ou qualquer outra classificação que se lhes dê.
( Apud Sutich, 1991, p. 31)

27
Naturalmente trata-se de uma listagem bastante extensa, cujos tópicos em
grande parte referem-se a termos relacionados a certas perspectivas teóricas mais
específicas e identificadas com o trabalho dos criadores do movimento, especialmente
Maslow, sendo apresentada aqui mais pelo interesse histórico da declaração e para que se
tenha um apanhado geral da amplitude e abertura de perspectiva dos interesses do
Movimento Transpessoal. Ao invés entretanto de discorrer sobre cada um dos temas
relacionados, o que além de resultar demasiado extenso provavelmente forneceria uma
visão em tanto confusa e dispersiva, optei por centrar minha apresentação em torno de
três tópicos gerais que, relacionados entre si, têm mais comumente sido apontados como
a área privilegiada e característica das abordagens transpessoais: as potencialidades
últimas, a espiritualidade e os estados alterados de consciência, aí incluídas as
experiências transpessoais.
A escolha, nas primeiras definições, do designativo genérico de
potencialidades ÚLTIMAS como objeto de estudo da Psicologia Transpessoal, assim
como a indicação de temas análogos (valores últimos, experiências de pico, máximo
encontro interpessoal, significado último, estado final, consciência sensorial máxima,
ponto ômega, relações últimas, etc.), parece relacionar-se às raízes humanistas do
Movimento Transpessoal. Na verdade, a vinculação do surgimento da Psicologia
Transpessoal ao Movimento Humanista é bem mais do que circunstancial, podendo, ao
menos assim eu entendo, ser vista como uma decorrência lógica das próprias propostas
da Terceira Força que, ao se declarar interessada em estudar e promover a saúde, o bem
estar e o desenvolvimento do potencial humano, estimulou muitos investigadores a se
questionarem sobre as possibilidades máximas dessas qualidades, os estados e
potencialidades ÚLTIMAS desse desenvolvimento, ou aquilo a que Maslow chamou de
as mais longínquas buscas da natureza humana (The Farther Reaches of Human Nature,
Maslow, 1971). Nessa busca, não raro, concluíam os investigadores que a auto-
realização humana não se esgota no ser plenamente pessoa mas sim no ultrapassar da
própria condição pessoal, acessando a dimensão cósmica, espiritual, ou transpessoal do
ser. Da mesma forma que se pode dizer que um rio - imagem a que freqüentemente os
humanistas comparam a qualidade processual ideal do crescimento psicológico saudável
- não encontra auto-realização em ser plenamente rio, mas que esta, em última instância,
só se concretiza quando vai além de ser rio e se torna parte do mar; também para a
perspectiva transpessoal é na transcendência dos próprios limites da pessoa que,
paradoxalmente, sua realização última pode ser obtida. Neste sentido, a proposta
transpessoal é qualitativamente distinta da humanista :
Isto é, a orientação transpessoal tem como conceito fulcral a "auto-transcendência", o
que, em última análise a diferencia da orientação humanista, cujas metas básicas de
desenvolvimento localizam-se na "auto-realização". Assim, na psicoterapia transpessoal,
a capacidade humana para "auto-transcendência", além da auto realização, é reconhecida
como etapa final do desenvolvimento". ( Grof, 1988, p. 133)

A espiritualidade, ou a dimensão espiritual do homem, segundo tópico de


nossa caracterização temática, identifica o Movimento Transpessoal como a primeira

28
corrente da Psicologia contemporânea que dedica atenção sistemática e privilegiada à
dimensão espiritual da experiência humana, até então ignorada, negada, negligenciada ou
reduzida a derivações secundárias de outras faixas inferiores do ser, como a sexualidade
e a agressividade sublimadas, por exemplo. O próprio uso mais ou menos freqüente e
generalizado do termo espiritual que os transpessoais fazem, tomando emprestado à
Religião este e outros vocábulos, na falta de termos próprios na tradição psicológica
ocidental, fala-nos do desinteresse da Psicologia pelo assunto. Como diz Maslow:
(...) é quase impossível falar "vida espiritual" ( frase desagradável para um cientista, em
particular para os psicólogos ) sem usar o vocabulário da religião tradicional.
Simplesmente ainda não existe outra linguagem satisfatória. Uma excursão pelos léxicos
poderia demonstrá-lo com rapidez (Maslow, 1964, p. 4)

Na verdade, a aceitação do homem como ser cuja auto-realização final


envolve a auto-transcendência e o acesso a uma dimensão cósmica ampliada de
participação universal, naturalmente tende a aproximar a Psicologia Transpessoal das
concepções religiosas da natureza humana, as Psicologias Espirituais como denominou
Tart (1979), as quais imemorialmente defendem este ponto de vista como pressuposto
que fundamenta a própria Religião, conforme já constatara William James em seus
estudos sobre as variedades da experiência religiosa:
Resumindo da forma mais ampla possível as características da vida religiosa, tais como
elas se nos deparam, encontramos as seguintes crenças:
1. Que o mundo visível é parte de um universo mais espiritual do qual ele tira sua
principal significação;
2. Que a união ou relação harmoniosa com este universo mais espiritual é nossa
verdadeira finalidade;
3. Que a oração ou comunhão interior com o espírito desse universo mais elevado - seja
ele "Deus" ou "ordem" - é um processo em que se faz realmente um trabalho, e em que a
energia espiritual flui e produz efeitos, psicológicos ou materiais, dentro do mundo
fenomênico. (James, 1991, p. 300).

Naturalmente, sendo a Psicologia Transpessoal uma proposta de Psicologia


científica, e não se filiando enquanto movimento a nenhuma concepção religiosa
específica de mundo, sua abordagem do espiritual e do religioso se fará pela via do
empírico, pela atenção ao fenômeno experiencial em si, assim como pela consideração
de seus efeitos psicológicos e suas implicações para a compreensão da estrutura, da
dinâmica e do desenvolvimento da personalidade.
Não só no interesse despertado pela singular fenomenologia relatada nas
experiências espirituais, místicas ou religiosas, mas também pela abordagem de outros
fenômenos extraordinários de alteração e ampliação da consciência, os quais, como
vimos, crescentemente se apresentam no contexto cultural atual como desafio para a
Psicologia, é que se pode caracterizar o campo de estudos privilegiado da Psicologia
Transpessoal: Os estados alterados da consciência. Pierre Weil chega mesmo a definir :
A Psicologia Transpessoal é um ramo da Psicologia especializada no estudo dos estados
de consciência; ela lida mais especialmente com a "experiência cósmica" ou os estados
ditos "superiores" ou "ampliados" da consciência. (Weil, 1978, p. 9).

29
O estudo da consciência como objeto central da Psicologia, abandonado
desde que a objetividade behaviorista superou as propostas de Wundt e William James, e
que Freud, descortinando a parte submersa do iceberg, apontou o subconsciente como a
dimensão psíquica predominante, já começara a ser recuperado pela Psicologia
Humanista, com sua ênfase na experiência consciente, entendida como dimensão do
psiquismo onde a pessoa exerce suas potencialidades de liberdade, escolha, autonomia e
intencionalidade. A concepção transpessoal da existência de outros estados de
consciência além dos tradicionalmente aceitos pelas teorias correntes (vigília, sonho,
sono sem sonhos, intoxicação, e alguns estados intermediários), muitos dos quais
entendidos como estados supra-conscientes cujas potencialidades na promoção da saúde
e crescimento superariam em muito as do estado normal de vigília e as derivadas da
análise das faixas infra-conscientes descobertas por Freud, faz da exploração das
possibilidades últimas da consciência o interesse primordial das teorias, pesquisas e
aplicações da Psicologia Transpessoal. Coube a Charles Tart, pesquisador e teórico cuja
contribuição é notável não só no campo da Psicologia Transpessoal mas também no da
Parapsicologia, recuperar para a Psicologia atual a anacrônica expressão estados de
consciência, acrescentando-lhe o adjetivo alterados, para definir conceitos que se
mostraram de largo uso, contribuindo para o vocabulário técnico e operacional da Quarta
Força da Psicologia. Não obstante o uso do adjetivo alterado tenha por vezes sido
criticado por parecer sugerir algo artificial ou com conotações patológicas, estando mais
em voga atualmente a utilização nos meios transpessoais da expressão estados inusuais
de consciência e, não obstante ainda, também ser por alguns questionado o próprio uso
da expressão estados de consciência por entenderem que a alteração desta se processa
em um contínuo e não em estados delimitados, as definições de Tart permanecem
importantes e atuais:
De um modo bastante conciso, "um estado de consciência" (SoC) é aqui definido como
um padrão generalizado de funcionamento psicológico. Um "estado alterado da
consciência" (ASC) pode ser definido como uma alteração qualitativa no padrão comum
de funcionamento mental em que o experienciador sente que a sua consciência está
radicalmente diferente do seu funcionamento "normal". Deve-se notar que um ASC não
é definido por um conteúdo particular da consciência, por um comportamento, ou por
uma modificação fisiológica, mas em termos de seu padrão total.(Tart, 1991, p. 41)

Naturalmente, embora os estados alterados de consciência em geral


interessem à Psicologia Transpessoal, é em especial naqueles em que a consciência se
expande ou amplia para além dos limites usuais da vigília, que os estudos estão
concentrados. Mesmo que se questione a existência de estados realmente superiores -
que a rigor, para Tart seriam aqueles em que não só todas as funções do estado habitual
estivessem mantidas, como fossem ainda mais eficientes e/ou acrescidas de funções
novas - o conceito de experiência transpessoal, caracterizadas como aquelas em que há o
sentimento de expansão da consciência para além das fronteiras egóicas comuns e das
limitações do tempo e do espaço (Grof, 1988, p. 104), pode esclarecer o campo de

30
interesses característico e exclusivo (no sentido de que é a única corrente que
sistematicamente o aborda) da Psicologia Transpessoal.
Além dos tópicos subentendidos nas orientações temáticas gerais aqui
apresentadas, outros temas típicos do Movimento Transpessoal estão relacionados às
suas propostas epistemológicas e científicas; ou à suas concepções da natureza humana;
ou ainda às suas formas próprias de abordagem e atuação. Isto examinaremos nos
próximos itens.

Modelo de Ciência
Da mesma forma que a Psicologia Humanista, a Psicologia Transpessoal,
enquanto movimento, assume e defende posições epistemológicas típicas, propondo para
a Psicologia a adoção de um modelo de ciência distinto do tradicional modelo
naturalista:
A insatisfação com a orientação mecanicista e reducionista da psicologia e psicoterapia
americanas encontra sua expressão mais forte no desenvolvimento da psicologia
humanística e, mais tarde, na psicologia transpessoal."(Grof, 1988, p. 132)

Aqui porém, novamente, vamos encontrar significativas diferenças, de grau


e qualidade, entre a proposta humanista e a transpessoal. Os psicólogos humanistas, em
geral, defendem para a Psicologia um modelo de ciência do homem, de base
compreensiva, fenomenológica, idiográfica, holista e teleológica; em contraposição à
perspectiva objetivante, explicativa, reducionista, normativa, elementarista e determinista
do modelo tradicional das ciências naturais, o qual, entretanto, via de regra respeitam
como abordagem adequada ao mundo das coisas, tão distinto - assim entendem - do
mundo humano. Grande parte aliás do debate entre a Psicologia Humanista e o
Behaviorismo - e também com certas concepções mecanicistas do modelo hidráulico da
Psicanálise - se trava neste tópico de qual dos dois modelos, o naturalista ou o
humanista, é adequado para a Psicologia. Mas, enquanto este já quase monótono e
repetitivo debate se prolongava nos círculos da Psicologia, as ciências naturais evoluíam
a passos - ou melhor, saltos - enormes, tornando ultrapassadas as posições anteriormente
identificadas como seu modelo científico, e generalizando em seu meio a convicção de
estar em curso uma revolução do paradigma geral da Ciência. Assim, como vimos, o
Movimento Transpessoal, assumindo a leitura de que está em curso uma revolução
paradigmática, ao invés de contrapor ciências humanas e ciências naturais, realiza
intensa aproximação destas últimas, só que já entendidas dentro de um novo paradigma
unificado - holístico, pós-moderno, holográfico e transdisciplinar - da Ciência. Capítulos
inteiros dedicados às novas descobertas da Física, da Química, da Pesquisa Cerebral,
entre outras, são uma constante em livros de Psicologia Transpessoal, onde citações de
cientistas como Bohm, Bohr, Einstein, Prigogine, Bell, Pauli, Heisenberg, Capra,
Pribam, Sheldrake, e muitos outros, chegam às vezes a ser mais freqüentes que as dos
mais renomados psicólogos. Do outro lado, nas modernas ciências naturais, a
aproximação é recíproca. É mesmo um fato curioso, que eu próprio tenho observado, que

31
a Psicologia Transpessoal desperte menos interesse entre os psicólogos que entre os
praticantes dessas ciências, os quais, talvez por dever de ofício, em geral encontram-se
melhor familiarizados com as novas perspectivas paradigmáticas, sintonizando com
facilidade o ponto de vista e o discurso adotado pelos psicólogos transpessoais.
Atônitos e fascinados com a descoberta de uma realidade só anteriormente
concebida nas esotéricas tradições espirituais e nas mais visionárias experiências místicas
e transpessoais de alteração da consciência, às quais crescentemente recorrem como
ilustração, confirmação e mesmo inspiração de suas teorias revolucionárias, os novos
cientistas cada vez mais assumem a constatação do físico James Jeans de que o universo
parece mais com um grande pensamento do que com uma grande máquina. No estudo
desse novo mundo em que a realidade psíquica parece inseparável da realidade material,
as ciências naturais recorrem crescentemente a modelos desenvolvidos nas ciências
humanas - fala-se por exemplo em sociologia dos elétrons - a ponto de se poder afirmar,
como o faz Boaventura de Sousa Santos (1988), que: Não há natureza humana porque
toda natureza é humana. (p. 63). Mais que isto, temas como consciência - e não só
consciência humana! - até há pouco impensáveis em ciências que primavam pela
objetividade empírica, passam a ser de crucial importância no desenvolvimento das
pesquisas e teorias. Comentando a célebre afirmação de Watson, criador do
Behaviorismo, de que a Psicologia já estava apta a abandonar qualquer menção à
consciência, tornando-se um ramo puramente objetivo e experimental das ciências
naturais que necessita tão pouca introspecção quanto as ciências da física e da química,
a física e filósofa Danah Zohar (s.d.) afirma: Ironicamente, esta linha de pensamento é
hoje tão obsoleta para a física quanto foi obsoleta para a psicologia (p.57). Assim é
que, também ironicamente, mutatis mutandis e de uma perspectiva totalmente inversa, a
Psicologia Transpessoal reedita o ideal behaviorista de ver a Psicologia irmanada às
ciências naturais dentro de um mesmo modelo e proposta de Ciência unificada.
O paradigma científico emergente tem sido freqüentemente intitulado
holístico ou holográfico. O termo holos (todo, em grego) foi utilizado pelo estadista e
pensador sul-africano Jan Smuts, no seu livro publicado em 1926, para formular a
proposta do Holismo, teoria que, opondo-se a concepções atomistas, propõe como
característica fundamental da Natureza a tendência para promover a evolução no sentido
de totalidades cada vez mais complexas e organizadas. Quase desapercebidas na época,
suas idéias influenciaram Adler (um dos dissidentes de Freud cujas teorias antecederam e
influenciaram em diversos aspectos o Movimento Humanista ) e, sendo de resto
coerentes com a proposta da Psicologia da Gestalt ( o todo é mais que a soma das
partes ), o ponto de vista holista obteria ainda maior apoio com a Teoria Geral dos
Sistemas, de Von Bertalanffy, cuja concepção transdisciplinar do comportamento dos
sistemas tem possibilitado inúmeras aplicações e desenvolvimento nas psicologias que a
adotam. Assim, como vimos no primeiro capítulo, esta perspectiva generalizou-se entre
as teorias humanistas, que de uma maneira geral caracterizam-se pela abordagem holista,

32
ou organísmica, ou sistêmica, da pessoa humana, em contraposição às posições
elementaristas e reducionistas que critica nas Forças precedentes.
Entretanto, a visão holística do novo paradigma, que assume como uma
das propostas centrais a superação de todas as fronteiras disciplinares e mesmo o
rompimento da compartimentalização das áreas do saber humano (donde se vêem
crescentes aproximações transdisciplinares entre Filosofia, Ciência, Arte e Religião),
difere substancialmente - embora não contrarie - da visão holista do Movimento
Humanista.
Para compreender as semelhanças e diferenças entre as duas perspectivas,
aqui diferenciadas pelas denominações de holista e holística, convém uma breve
exposição dos princípios da holografia, a técnica de reprodução tridimensional de
imagens, cujas características instigantes têm levado distintos proponentes do novo
paradigma a apresentá-lo a partir do modelo, ou metáfora, da holografia.
A foto tridimensional foi pela primeira vez teoricamente concebida em
1947, pelo ganhador do Prêmio Nobel Denis Gabor, mas só pode ser concretizada em
1965, com a invenção do raio laser. Ao invés de reproduzir imagens por pontos
localizados espacialmente em superfícies quimicamente sensíveis à luz, como ocorre na
fotografia comum, o que é registrado no holograma (a matriz da holografia) são os
padrões de interferência de dois feixes de luz laser, a um dos quais foi interposto o
objeto que se quer grafar. Exposto novamente a um feixe de luz, o padrão registrado no
holograma, projeta uma reprodução espectral tridimensional da imagem do objeto, a
chamada holografia. Independentemente da compreensão deste processo - confesso que
eu próprio ainda não entendi muito bem - o que nos é relevante considerar é a
interessante característica da holografia, que tem inspirado cientistas dos mais variados
campos à criação de modelos teóricos análogos:
Holografia é um método de fotografia sem lentes no qual o campo ondulatório da luz
espalhada por um objeto é registrado em uma chapa sob a forma de um padrão de
interferência. Quando o registro fotográfico - o holograma - é exposto a um feixe de luz
coerente, como um laser, o padrão ondulatório original é regenerado. Uma imagem
tridimensional aparece.
Como não há focalizador, isto é, lentes focalizadoras, a chapa tem a aparência de um
padrão de espirais destituído de significado. Qualquer pedaço do holograma pode
reconstruir a imagem inteira. (Wilber et al., 1991, p 12)

Assim, indo além da proposta holista da visão humanista - o todo é mais


que a soma das partes - a visão holística das novas ciências - aí incluída a Psicologia
Transpessoal - afirma que a abordagem deve ser holográfica, pois a parte contém o todo,
ou seja, qualquer elemento de um todo é como um holograma no qual, ainda que em
menor detalhe, é identificável a qualidade isomórfica do padrão de complexidade e
interdependência existente na configuração total.
Concepções radicais, em disciplinas distintas e independentes, parecem
convergir em torno de uma concepção holográfica da natureza da realidade. Talvez a
mais conhecida destas coincidências e complementaridade de concepções teóricas
independentes, seja o caso das teorias de Karl Pribram e David Bohm. O primeiro,

33
destacado pesquisador do cérebro, sugere um modelo holográfico do funcionamento
cerebral para superar o enigma da localização da memória, pois insistentes pesquisas
pareciam não deixar outra resposta à intrigante constatação de que a informação se
distribui por todo o cérebro, sendo por inteiro recuperável a partir de qualquer parcela. O
segundo, eminente físico teórico, na tentativa de integrar inquietantes e paradoxais
teorias, pesquisas e concepções no campo da micro e da macro física, propõe uma teoria
holográfica do universo, por ele concebido como um contínuo dobrar-se e desdobrar-se
das formas aparentes - a ordem exposta - a partir de uma realidade mais profunda,
transcendente e subjacente a tudo que existe: a ordem implicada da qual tudo é imagem
holográfica. O encontro das idéias dos dois cientistas originou a proposta de que o
cérebro era uma estrutura de funcionamento holográfico que interpretava um universo de
natureza igualmente holográfica, produzindo a realidade - ou realidades - em sua
construção espaço-temporal de imagens da realidade unitária transcendente. Aliás, a
indissociabilidade da relação entre mente e realidade, implicada em diversas concepções
das modernas ciências naturais, lança nova luz sobre o secular problema mente-corpo,
tradicional e de longa história no desenvolvimento da Psicologia. As novas descobertas e
teorias, recuperando concepções milenares da Religião e Filosofia, sugerem que as
realidades se constituem a partir de uma filtragem e reconstrução holográfica realizada
pela mente em sua relação com a realidade inefável implicada no âmago do mundo
fenomenal ilusório, não obstante a própria mente não seja mais entendida como
organicamente contida no cérebro (algumas propostas crêem ser a mente, na verdade,
obstruída pelo cérebro). As relações mente/cérebro/realidade constituem aliás uma das
principais temáticas unificadoras dos novos interesses científicos
Escapa aos propósitos desta breve caracterização formular um inventário,
ainda que resumido, das principais descobertas e tendências que, à semelhança de um
mosaico em formação, têm se associado, a partir de diversas ciências, na configuração e
emergência de um novo paradigma científico. Desejo me referir apenas a algumas
decorrências dessas novas visões, que me parecem implicar radicalmente a Psicologia
Transpessoal. Márcia Tabone (1988), em uma colocação bastante feliz, afirma que
podemos entender o "movimento transpessoal" como o resultado de esforços para
ajustar a Psicologia ocidental ao paradigma emergente, contribuindo para a
assimilação das novas premissas em seu campo de pensamento (p. 160). Desse ponto de
vista e também na sua recíproca, de adequar as outras ciências às novas premissas
emergentes da pesquisa transpessoal, alguns desafios que se colocam para Psicologia
atual só me parecem concebíveis, e encaráveis, numa perspectiva transpessoal:
Em primeiro lugar, o empirismo e o racionalismo estritos, associados ao
estado de consciência lógico e objetivo com que a Ciência tentou superar o saber do
senso comum e do pensamento mítico, foram desmascarados como uma abordagem
bastante limitada em seu alcance e confiabilidade, sendo na verdade incapazes de se
adequarem à compreensão científica de certos níveis e processos da natureza. Já
anteriormente criticada como inadequada e limitada quando aplicada ao estudo do

34
mundo humano, essa atitude científica é agora igualmente denunciada como inútil e
enganadora para um entendimento mais profundo da própria realidade do mundo das
coisas. Mais que a atitude, o próprio estado de consciência em que esta se insere, ou seja,
a consciência objetiva, o estado de vigília mais racional, entendido até há pouco como o
ideal e superior estado de adequação ao princípio da realidade, mostra-se agora em pé de
quase igualdade aos estados ilusórios dos sonhadores, dos poetas, dos loucos e dos
visionários: todos são limitados a visões parciais, de confiabilidade relativa e restrita.
Stanley Krippner (1991) chega a apontar que a Ciência não só cumpre na civilização
moderna a função de mitologia (nível de conhecimento que orgulhosamente os cientistas
pretendiam ter superado), como ainda é uma mitologia incompleta, por deixar esquecido,
entre outras coisas, o aspecto transcendente da realidade. Com o desmascaramento da
objetividade científica, a questão da consciência e suas relações com a realidade, deixou
de ser de interesse restrito da Psicologia e da Filosofia, e volta ao centro da discussão
preliminar de qualquer empreendimento em Ciência, no repensar epistemológico
provocado pela desintegração de um paradigma.
Mais que a consciência e os estados alterados em geral, são os estados
ampliados, as vivências transpessoais, o tópico que parece mais relevante e promissor
como campo de estudos e contribuição próprios da Psicologia, na leitura de revolução
paradigmática a que o Movimento Transpessoal adere. Os novos conhecimentos
sugerem, como diz o grande biólogo J. B. S. Haldane (citado por Ferguson, s. d.) que a
realidade não é apenas mais estranha do que concebemos, mas mais estranha do que
podemos conceber (p. 150). É portanto no inconcebível, no transracional, que a ciência
está adentrando. Aparentemente, só em estado alterado e ampliado de consciência se
poderá em breve teorizar, produzir, compreender e utilizar conhecimento nos ramos de
ponta de qualquer disciplina científica. Charles Tart (1979, 1991), em lúcida percepção,
aponta a correspondência entre paradigmas científicos e estados específicos de
consciência, demonstrando que a Ciência do paradigma tradicional é uma ciência do
estado de vigília, estado no qual se desenvolve toda investigação, teorização e
intercâmbio científico. Ora, parece que a Ciência, ao mudar de paradigma, está
caminhando para o que Tart previu e propôs: ciências de estado específico, baseadas em
observações, dados, hipóteses, procedimentos, teorizações e raciocínios só
compreensíveis, comunicáveis e testáveis por cientistas que compartilhem o mesmo nível
de consciência na percepção e no pensar da realidade. Hoje em dia, como observei
acima, parece mais fácil a troca de informações, compreensão e cooperação entre
ciências bastante distintas - o que até há pouco vinha se tornando quase impossível, dado
o esoterismo da especialização - desde que comunguem as novas visões; ao passo que
vem se tornando cada vez mais difícil, mesmo dentro de um bem específico ramo do
conhecimento, o diálogo entre investigadores afinados ao paradigma tradicional e os que
se vinculam ao emergente. Repentinamente, o discurso dos físicos é quase indistinguível
do dos místicos (como demonstrou Leshan, 1991), os quais, parecem ter há séculos
obtido acesso a substratos mais reais da realidade, que só agora a Ciência adentra,

35
observa, e até descreve matematicamente, mas não concebe, enquanto não muda a faixa
de consciência do cientista que a pratica. Torna-se urgente, não só do ponto de vista
teórico, mas inclusive do prático e metodológico, a compreensão do espectro ampliado
da consciência humana e dos meios de nele transitar. Alterar a consciência não é mais
um comportamento exclusivo de doentes mentais ou drogados. Tão pouco tem utilidade
exclusivamente para artistas, religiosos ou filósofos. A alteração da consciência, mais
que assunto ou objeto de estudo da mais alta relevância, vem se tornando condição
prévia para o próprio exercício da Ciência, para que os investigadores possam se manter
atualizados e produtivos nos ramos mais tradicionais e respeitáveis da atividade
científica. Além do mais, a alteração da consciência parece ser a possibilidade de um
caminho, no mínimo, mais barato para acessar dimensões da realidade que, por outros
meios, só são investigáveis mediante recursos tecnológicos caríssimos e, muitas vezes,
altamente perigosos.
Mais ainda, e aqui chegamos a alguns dos aspectos mais insólitos das
modernas ciências naturais, o estudo da consciência parece não só importar como
questão de relevância epistemológica, ou como instrumento metodológico, para o avanço
da pesquisa e teorização nas outras ciências, além do evidente interesse, próprio da
Psicologia, de ampliar a compreensão sobre o homem e seus potenciais, inclusive o de
intervenção psicológica - talvez melhor seja aqui dizer parapsicológica - no mundo
físico (possibilidade esta perfeitamente aceitável dentro da novas propostas
paradigmáticas). Mais que esses motivos - que sobejamente justificam o
desenvolvimento da Psicologia Transpessoal - há crescentes indicações, em pesquisas de
Física, Química e Biologia, de que a consciência não é característica só humana ou
animal, mas o próprio substrato do Universo. O crescer e o confirmar científico de
concepções desse naipe, já largamente aceitas no modelo de ciência das teorias
transpessoais, romperá de vez as barreiras disciplinares, abrindo para a Psicologia a
possibilidade instigante de diálogo e estudo direto - e sem trair seu campo próprio de
interesses! - do mundo das coisas, até há pouco chamadas de inanimadas.
E por fim (ou melhor, antes que seja o fim), cresce a percepção de que a
mente em estado de consciência normal não só é incapaz de acompanhar e explorar as
transformações e a abertura de novas vias, emergentes no desenvolvimento científico,
como também se mostra impotente em enfrentar as crescentes, complexas e multi
faceadas crises que ameaçam o futuro da humanidade. Em um beco cada vez mais sem
saída, a mente do homem atual vem sendo pressionada a ousar, como única escapatória,
um salto qualitativo - um salto quântico - de mudança radical em direção a uma nova
forma de ser e perceber, salto este que parece necessariamente implicar uma alteração e
ampliação do estado usual de consciência. Embora não lhe pertença mais a palavra
especializada definitiva, pois especializações e compartimentalizações do saber têm se
tornado uma impossibilidade, não pode a Psicologia furtar-se à responsabilidade de,
como a Ciência da Consciência (assim propõem os transpessoais) enfrentar o desafio,
crucial para a espécie humana, que é o de aumentar o conhecimento no campo dos

36
mistérios e possibilidades últimas da consciência humana em sua relação holográfica
com a Realidade e a Consciência Universal.

Visão de Homem
Além da temática que privilegia e das dimensões do ser e da consciência
em que suas pesquisas e teorizações se desenvolvem, o que define determinada escola
como pertencente à Psicologia Transpessoal é o modelo, ou visão de homem, que
reconhece e adota. Walsh & Vaughan (1991), em suas conhecidas definições de
Psicologia Transpessoal e Psicoterapia Transpessoal apontam:
A psicologia transpessoal está voltada para a expansão do campo da pesquisa
psicológica a fim de incluir o estudo da saúde e do bem estar psicológicos ótimos. Ela
reconhece o potencial da vivência de uma ampla gama de estados de consciência, em
alguns dos quais a identidade pode estender-se para além dos limites usuais do ego e da
personalidade.
A psicoterapia transpessoal inclui áreas e preocupações tradicionais, às quais acrescenta
o interesse em facilitar o crescimento e a percepção para além dos níveis de saúde
tradicionalmente reconhecidos. Reiteram-se nela a importância da modificação da
consciência e a validade da experiência e da identidade transcendentais. (p. 18)

De uma maneira geral, o que distingue e caracteriza a visão de homem


adotada pelas teorias e escolas da Psicologia Transpessoal é a aceitação, sob diversas
concepções, da existência de instâncias superiores da consciência e do potencial humano,
inacessíveis ao estado usual de vigília, mas potencialmente disponíveis mediante a
vivência dos estados alterados e ampliados da consciência. Assim, como a Psicologia
Humanista enfatizou os aspectos conscientes e auto-realizadores do ser humano, a
Psicologia Transpessoal, em busca do bem estar e saúde ótimos, vai além, destacando os
aspectos transcendentes e espirituais em que, paradoxalmente, a própria condição
humana é ultrapassada, e a pessoa reencontra sua condição trans-humana, transpessoal,
cósmica ou mesmo divina. Entretanto, o uso de termos como espiritual, transpessoal,
divino, trans ou meta humanos, não exclui a compreensão de que a busca da
transcendência seja encarada como algo natural, isto é, intrínseco à natureza humana,
como observa Maslow (1969):
Transcendência também significa tornar-se divino ou assemelhado a Deus, indo além do
meramente humano. Mas é necessário que aqui sejamos cautelosos para não fazer deste
tipo de colocação algo extra-humano ou sobre-humano. Eu penso na utilização da
palavra "meta-humano" (...) como forma de enfatizar que este tornar-se muito elevado
ou divino ou assemelhado a Deus é parte da natureza humana mesmo que não seja
freqüentemente observado de fato. Ainda assim permanece como potencialidade da
natureza humana. (p. 61)

Na verdade, para os psicólogos transpessoais, a tendência a buscar a


realização espiritual, mediante a transcendência de todas as limitações à consciência, é
encarada como uma necessidade tão básica como a também defendida como natural
tendência (proposta pelos humanistas e em geral aceita pelos transpessoais) a buscar a
auto-atualização e o crescimento emocional. Para Sutich (1973) os impulsos na direção
de um estado último são contínuos em toda pessoa (p. 2), embora não estejam

37
necessariamente conscientes, enquanto que para Maslow é sobretudo a partir da
satisfação das necessidades inferiores (ou de deficiência) que o comportamento do
indivíduo passa a ser orientado para a satisfação das necessidades superiores
(necessidades de Ser ou meta-necessidades ou metamotivos), as quais, constituindo-se na
busca dos valores intrínsecos e espirituais, fazem também parte da biologia humana,
sendo sua satisfação necessária à saúde e bem estar ótimos referidos por Walsh &
Vaughan. Como diz Maslow 1991):
Assim, a vida espiritual é parte de nossa vida biológica. É a sua parte "superior", mas
nem por isso menos parte sua (...) a vida espiritual é parte da essência humana. É uma
característica definitória da natureza humana, elemento sem o qual esta não é plena.
Compõe o Eu Real, a identidade de cada um, o núcleo interior de cada pessoa, a
pertinência à espécie, a plena humanidade. (...) paradoxalmente, nossa natureza "mais
elevada" é também "nossa natureza mais profunda". (p. 139)

Não pode, por outro lado, ser esquecido que, uma vez que aqui estamos
tratando de domínios transpessoais, onde por definição as dicotomias entre a parte e o
todo são superadas numa realidade holográfica inconcebível ao estado de consciência
habitual, o fato de se falar em necessidade de transcendência como algo intrínseco à
biologia e à natureza humana, não deve ser entendido como se tratando de um mero
impulso orgânico, ou intrapsíquico, mas ressalvada sua qualidade paradoxal de trans-
humano:
Os metamotivos, portanto, já não são apenas intrapsíquicos ou orgânicos. São há um só
tempo interiores e exteriores... Isso significa que a distinção entre o próprio ser e o que
não o é se desfez (ou foi transcendida). Há agora menos diferenciação entre o mundo e a
pessoa... Esta se torna um eu ampliado... Identificar o que há de mais elevado no próprio
ser com os valores supremos do mundo exterior significa, ao menos em alguma medida,
uma fusão com o que não é o próprio ser. (Maslow, apud Walsh & Vaughan, 1991, p.
182)

É na questão da consciência e seus estados, o objeto de interesse central


das psicologias transpessoais, onde também vamos encontrar as posições mais
características e singulares relativas à visão de homem apresentada pela Quarta Força.
Walsh & Vaughan (1980, 1991), autores que se preocuparam em esclarecer os modelos
de pessoa e de psicoterapia implícitos nas psicologias transpessoais, propõem que a
concepção transpessoal de pessoa pode ser descrita em um modelo que inclua
posicionamentos característicos em quatro dimensões: consciência, condicionamento,
personalidade e identidade. Com relação à consciência afirmam que:
Esse modelo transpessoal considera a consciência como uma dimensão central que
oferece a base e o contexto de toda a experiência. As psicologias ocidentais tradicionais
têm tido posições diferentes no tocante à consciência. Elas vão do comportamentalismo,
que prefere ignorar a consciência diante da dificuldade de pesquisá-la objetivamente, às
abordagens humanista e psicodinâmica, que a reconhecem, mas em geral dão maior
atenção aos conteúdos que à consciência em si como o contexto da experiência.
O modelo transpessoal considera nossa consciência comum um estado contraído e
defensivo (...) A consciência ótima é considerada bem mais ampla e potencialmente
disponível a qualquer momento, se a contração defensiva for relaxada. A perspectiva
fundamental do crescimento é, pois, abandonar essa contração defensiva e remover os
obstáculos ao reconhecimento do potencial ampliado sempre presente por meio do
apaziguamento da mente e da redução da distorção perceptiva. (1991, pp. 60-61)

38
Costumo explicar a concepção transpessoal de consciência recorrendo à
mesma imagem do iceberg com que Freud explicava sua idéia de subconsciente. Para
ele, a relação entre a parcela de nossa vida psíquica de que temos consciência e a parcela
predominante, que se situa abaixo do nível consciente, pode ser comparada à relação
entre a pequena parte de um iceberg que é visível à superfície do mar e a parte submersa,
muito maior e predominante na movimentação do iceberg como um todo. Considerando-
se esta imagem como adequada descrição dos domínios individuais do consciente e do
inconsciente, podemos também utilizá-la para compreender a concepção transpessoal da
existência de uma consciência ótima bem mais ampla e potencialmente disponível a
qualquer momento, da qual nossa consciência comum é considerada como um estado
contraído e defensivo. Se a parte oculta do iceberg é maior que a parte emersa, muito
maior ainda é o mar, do qual o iceberg nada mais é que uma porção contraída e
defensiva (congelada e rígida), mantendo-se separado e diferenciado apenas enquanto
perdura a ilusória defensividade que não permite perceber que tanto o mar como o
iceberg têm a mesma natureza, são um único todo constituído de água, distintos apenas
pelo estado momentâneo da água de que ambos são feitos. As seguintes colocações de
William James traduzem bem esta visão que é típica do Movimento Transpessoal:
Nossa consciência normal em estado de vigília é apenas um tipo especial de consciência,
ao passo que em toda sua volta, separadas pela mais fina das telas, jazem formas
potenciais de consciência inteiramente diversas. Podemos passar a vida inteira sem
suspeitar-lhes sequer a existência; aplique-se-lhes, porém, o estímulo necessário e, ao
primeiro toque, por mais leve que seja, ei-las ali em toda sua completude. (...)
Não pode ser definitiva nenhuma explicação do universo em sua totalidade que não dê
tento dessas outras formas de consciência (...). De qualquer forma elas atalham nosso
prematuro acerto de contas com a realidade. (Apud Wilber, 1990, p. 15)
Todo curso de minha educação chega a me persuadir de que o mundo de nossa
consciência presente é apenas um dos numerosos mundos de consciência que existem, e
que estes outros mundos devem conter experiências que também são significativas para
nossa vida; embora essencialmente essas experiências e as deste mundo mantenham-se
separadas, ainda assim tornam-se contínuas em determinados pontos, e as energias mais
elevadas infiltram-se. (Apud Fadiman e Frager, 1979, p. 166)
De minha experiência (...) uma conclusão estabelecida emerge dogmaticamente (...) há
um continuum de consciência cósmica, contra o qual nossa consciência apenas constrói
cercas acidentais e dentro do qual nossas várias mentes mergulham como se dentro de
um mar-mãe ou de um reservatório. (Idem, p. 165)

Nesta última citação de James, quando diz que nossas várias mente
mergulham no reservatório da consciência ampliada, fica clara outra posição típica do
movimento transpessoal na questão da consciência: há níveis ou dimensões da
consciência que não são restritos às individualidades, mas coletivos (na expressão de
Jung) e compartilháveis a qualquer momento. Nossa separatividade desse reservatório
ou mar-mãe comum é uma ilusão defensiva, semelhante à de vários icebergs que se
entrechocam sem constatar o isomorfismo de suas constituições individuais e do próprio
meio em que se movem, do qual se separam e destacam unicamente por uma questão de
estado da água, o que em nossa analogia equivale ao estado de consciência em que as
diversas consciências individuais, contraídas e defensivas, experimentam a ilusão de sua
separação do oceano ilimitado da Consciência Cósmica Universal.

39
Frise-se ainda que, para uma concepção bastante generalizada no meio
transpessoal, a consciência não é considerada um subproduto orgânico da evolução
cerebral, não sendo tão pouco exclusividade humana, sequer animal ou vegetal, sendo
proposta antes como o próprio substrato em que todas as realidades se constróem. Sem
encontrar limites no tempo ou no espaço, a Consciência pré e pós existe a tudo, a tudo
permeia, a tudo envolve, e a tudo ultrapassa, como contexto e pano de fundo em que
tudo se dá. O próprio termo Consciência Cósmica, que para G. Murphy (Frick, 1975)
define a experiência em que há uma perda do sentido de contraste ou oposição entre o
eu e o mundo. O conteúdo do eu é, pois, o conteúdo do mundo; o indivíduo é arrebatado
no júbilo de união com o cosmo (p. 199) esclarece esta concepção, já que não se está
falando em sentido figurativo ou meramente fenomenológico, mas concreto (se é que se
pode adjetivar assim essa dimensão transcendente da realidade), isto é, na experiência de
compartilhar com o cosmos sua (do cosmos) identidade.
Na visão ampliada que a Psicologia Transpessoal apresenta, o ser humano,
para além dos aspectos individuais e biográficos de sua consciência e personalidade, e
para além do organicamente explicável pelos processos fisiológicos ou cerebrais, é
considerado como implicado em uma dimensão (a Consciência) que, a um só tempo, é
matriz de sua unicidade e integra inclusivamente (ou holograficamente) o todo da
criação. Uma dimensão aquém da realidade conhecida no estado de vigília, além do
espaço e do tempo, para além das dicotomias (eu/mundo, sujeito/objeto, mente/corpo,
espírito/matéria), onde os pesquisadores transpessoais acreditam estar tratando do
mesmo objeto - ou seria sujeito? - que os modernos físicos quânticos e astrofísicos, e
encontrando sentido nas afirmações de Pribam e Bohm de que nossa consciência é um
holograma de um universo holográfico. Vemos assim que, pelo salto qualitativo que tais
concepções implicam, encontramo-nos bem distantes da visão humanista mais clássica,
pois esta, apesar de toda ênfase no awareness e na faixa consciente de liberdade, escolha
e autonomia, está bem aquém de aceitar a existência da consciência fora do contexto do
organismo e seu campo perceptivo e experiencial mais imediato. Da mesma forma, a
visão holista dos humanistas, aplicada à consciência (a consciência é mais ampla e
transcende seus elementos e conteúdos particulares) encontra-se aquém da visão
holográfica da Psicologia Transpessoal, em que as consciências particulares,
potencialmente, são isomórficas e podem ressoar em uníssono - e a incluindo - com a
Consciência Universal. Repete-se, em nova versão, a milenar concepção dos místicos,
expressa no aforismo do mítico Hermes Trimegisto - o que é em cima é como o que é
embaixo - e na afirmação de modernos psicólogos, como Van Dunsen (1976) que
exclama: A profundidade natural do homem é a totalidade da criação (p. 274).
Adotando a aceitação da existência de uma vasta gama de domínios, ou
faixas, ou estados da consciência, é uma proposta tipicamente transpessoal traçar mapas
dessas regiões do psiquismo, elaborando as chamadas cartografias da consciência (veja-
se, por exemplo, as cartografias apresentadas por Assagioli, 1976; De Ropp, 1968;
Goleman, 1978; Grof, 1983; Lilly, 1973; Metzner, 1971; Nagelschmidt, 1987; Ring,

40
1978 e Wilber, 1990). Nesses mapeamentos, além das faixas reconhecidas e exploradas
pelas outras psicologias, invariavelmente apresentam, como de fundamental importância
em seus modelos teóricos, níveis onde não só se ultrapassam os limites da personalidade
e biografia pessoal, como também os da própria condição humana, acessando domínios
trans-humanos da consciência, e mesmo trans-naturais, na medida em que não se
restringem nem aos três reinos conhecidos da natureza.
A questão do eu, da identidade e autonomia pessoais, assim como da
própria estrutura e desenvolvimento da personalidade do indivíduo, questões estas tão
centrais e vitais nas teorias humanistas, costumam também receber tratamento
característico na Psicologia Transpessoal:
Na maioria das psicologias precedentes, a personalidade tem lugar central e, com efeito,
muitas teorias psicológicas identificam a pessoa com a personalidade. (...) Costuma-se
ver a saúde como algo que envolve primariamente a modificação da personalidade. De
uma perspectiva transpessoal, contudo, é dada à personalidade uma importância
relativamente pequena; nessa perspectiva, considera-se a personalidade como apenas um
aspecto do ser com o qual o indivíduo pode, mas não é obrigado a fazê-lo, identificar-se.
A saúde é considerada algo que envolve na essência antes uma mudança da identificação
exclusiva com a personalidade que uma modificação desta. (Walsh & Vaughan, 1991, p.
63)

James Fadiman, falando sobre A Posição Transpessoal (Fadiman, 1991),


de maneira semelhante, assim define a questão:
Um dos pressupostos mais básicos da psicologia transpessoal é a afirmação de que há na
pessoa mais do que a personalidade. A personalidade é o sentido de identidade separada,
diferente e peculiar. A personalidade não passa de uma faceta do Eu - a identidade total -
e, talvez, de uma faceta não-central. A própria palavra "transpessoal" significa "que
ultrapassa ou transcende a personalidade". (...) Essas idéias se afastam da concepção
comumente aceita de que o sentido, a finalidade da vida, é o desenvolvimento da
personalidade.
Um dos alvos, no contexto da terapia transpessoal, é encorajar e desenvolver as
tendências que permitam ao indivíduo sua desidentificação das restrições da
personalidade e a apreensão de sua identidade com o Eu total. (pp. 198-199)

Desta forma, nas teorias transpessoais são subvalorizados os aspectos


históricos, biográficos, pessoais, e mesmo organísmicos da personalidade e do eu, ou
talvez fosse melhor dizer eus, já que vários autores transpessoais rejeitam a idéia de que
os indivíduos tenham um eu único, apontando para uma verdadeira multidão
intrapsíquica de eus autônomos (subpersonalidades na expressão de Assagioli, 1976; ou
multimentes, na expressão de Ornstein, 1986) com os quais, alternadamente, a
consciência se identifica. Paralelamente, essas teorias fazem referência a uma instância
unificadora transpessoal, um Eu Superior, ou Self Espiritual ou Transpessoal (Assagioli,
1976), ou Testemunha Transpessoal (Wilber, 1990), ou simplesmente Self (Si Mesmo),
com S maiúsculo, na conhecida concepção de Jung que, ao contrário do que é
normalmente ensinado, não se refere apenas a um arquétipo psíquico coletivo,
organizador das personalidades individuais, mas a um arquétipo psicóide, isto é, de
natureza não exclusivamente psíquica ou material, mas transcendente e irredutível a
essas dimensões, tendo vigência não só entre os homens mas no todo universal:

41
(...) do seu estado sem forma brota o cosmo ordenado, tal como, visto psicologicamente,
o consciente se desdobra a partir do inconsciente ilimitado, o eu do incognoscível Self.
Para Jung, o fundo transcendental do mundo empírico estava um tanto quanto
comprovado: "É tão certo que o mundo, assim como nossa própria existência, se baseia,
interna e externamente, num fundo transcendental". Afinal de contas, esse fundo
universal corresponde ao inconsciente coletivo descoberto por ele e cuja natureza deve
ser ideada como psicóide, isto é, não só psíquica mas também material. Como os
antagonismos se inserem um no outro, essa camada profunda do inconsciente permanece
incógnita. A própria caracterização do psicóide também é um paradoxo inimaginável.
(Jaffé, 1988, p. 76)

Reitera-se aqui a crença transpessoal na concepção segundo a qual somos


basicamente um com o cosmos, e não em situação de estranhamento com ele (G.
Murphy in Maslow, 1991, p. 143).
Podemos comparar, mais uma vez, a diferença entre a perspectiva
humanista, envolvida em questões de liberdade, escolha, autonomia, auto-realização e
auto-afirmação; e a transpessoal que, sem negar a importância destes aspectos como
pertencentes a uma etapa do desenvolvimento, enfatiza temáticas de morte e
transcendência do eu, fusão cósmica, experiência unitiva, voluntária entrega e servidão,
experiência mística, e desidentificação com a própria biografia e consciência pessoal.
Fadiman e Frager (1979), para distinguir os dois pontos de vista, um centrado no
desenvolvimento do eu, ou self, individual, o outro no crescimento transpessoal: a
tendência de cada pessoa relacionar-se mais intimamente com algo maior do que o self
individual (p. 284) - no caso o Self Transpessoal - recorrem a uma citação de Angyal (de
1956!):
Visto sob uma destas perspectivas, o ser humano parece lutar basicamente para afirmar e
expandir sua auto-determinação. É um ser autônomo, uma entidade que cresce por si
mesma e que se faz valer de modo ativo, ao invés de reagir passivamente como um
corpo físico aos impactos do mundo que o rodeia. Essa tendência fundamental expressa-
se na luta da pessoa para consolidar e desenvolver seu autogoverno, em outras palavras,
para exercer sua liberdade e organizar itens relevantes de seu mundo a partir do centro de
governo autônomo que é o seu self. Esta tendência - que chamei "propensão para
autonomia crescente" -expressa-se na espontaneidade, na auto-afirmação, no esforço pela
liberdade e pelo domínio de si .
Vista sob outra perspectiva, a vida humana revela um padrão básico bastante diferente
do acima descrito. Sob este ponto de vista, a pessoa parece buscar um lugar para si numa
unidade maior, da qual ela se esforça para se tornar parte. Na primeira tendência nós a
vemos lutando pela centralização de seu mundo, tentando moldar e organizar objetos e
eventos de seu mundo, trazê-los para sua própria jurisdição e controle. Na segunda
tendência, pelo contrário, a pessoa parece entregar-se voluntariamente à busca de um lar
para si e tornar-se UMA PARTE ORGÂNICA DE ALGO QUE CONCEBE COMO
MAIOR DO QUE ELA. ( Angyal, apud Fadiman e Frager, 1979, pp.284-285 ).

Um excelente retrato deste processo de desidentificação com o eu e


reencontro com o Eu, mediado pela ruptura com o estado mental habitual e o acesso a
um nível de consciência ampliada, é apresentado neste expressivo texto (escrito em
1912!) do poeta e cientista Edward Carpenter:
(...) chega-se, por fim, a uma região da consciência abaixo do pensamento ou oculta sob
ele, e diferente do pensamento comum quanto à sua natureza e seu caráter - uma
consciência de qualidade quase universal e uma compreensão de um eu muito mais
abrangente do que aquele com o qual estamos acostumados. E visto que a consciência

42
ordinária, com a qual nos ocupamos na vida ordinária, está diante de todas as coisas que
tem como base o pequeno eu local e é, de fato, auto-consciente no pequeno sentido
local, segue-se que sair disso significa morrer para o eu ordinário e para o mundo
ordinário.
Significa morrer num sentido ordinário mas, num outro sentido, significa despertar e
descobrir que o "eu", nosso eu mais íntimo e real, permeia o universo e todos os outros
seres - que as montanhas e o mar e as estrelas são uma parte de nosso corpo e que nossa
alma está em contato com a alma de todas as criaturas. (Apud Houston & Masters, 1993,
p. 246)

Neste tópico, em que examinamos a importância que o modelo


transpessoal de desenvolvimento psicológico atribui à passagem de uma identidade
pessoal para uma transpessoal, ou do centrar-se no eu para o centrar-se no cosmo, pode
ser referida uma outra tendência bastante característica e difundida entre os autores
transpessoais, e que diz respeito à leitura que fazem do momento histórico atual. Ao
passo que os autores humanistas tendem a denunciar a crise e a falência dos modelos
tradicionais da civilização ocidental e a alinhar-se em favor de mudanças sócio-culturais
condizentes com a revolução psicológica interior de valores e atitudes em que resulta, a
nível individual, sua proposta de desenvolvimento do potencial humano, os transpessoais,
uma vez mais, sem discordar, vão além. Entre estes, é freqüentemente expressa a opinião
de que a atual crise não aponta apenas para uma transformação meramente histórica,
política, social, cultural ou psicológica da humanidade, mas que estaríamos na verdade
testemunhando e protagonizando um momento de salto qualitativo na evolução da
espécie, uma mutação a nível filogenético, no limiar do nascimento de uma nova
humanidade e de uma Nova Era. Já em 1901 esta foi a hipótese principal do grande
precursor da Psicologia Transpessoal, R. M. Bucke, para quem, tendo a humanidade se
tornado distinta dos animais pela aquisição da faculdade de Consciência de Si Mesmo,
estaria agora manifestando, a nível de um crescente número de indivíduos, a tendência a
passar, enquanto espécie, para uma nova etapa da evolução da consciência,
desenvolvendo a faculdade de Consciência Cósmica:
... Se a nossa hipótese [de que a evolução humana não terminou] estiver correta, novas
faculdades manifestar-se-ão, de quando em quando, na mente, do mesmo modo que
novas faculdades manifestaram-se no passado. Admitindo-se tal hipótese, adotaremos
que o que neste livro é chamado de Consciência Cósmica constitui uma dessas nascentes
(...) faculdades. (Bucke, 1993, p. 78)

Merecem ainda referência algumas implicações que a visão transpessoal de


homem traz, como verdadeira revolução, à compreensão não só da saúde ótima, mas
também da doença psíquica e da própria - assim dita - normalidade do estado habitual.
A aceitação das necessidades espirituais como intrínsecas à natureza
humana, leva à concepção de uma nova classe de patologias, consistentes na não
satisfação dessas necessidades: as metapatologias (Maslow) ou as neuroses noogênicas
(Frankl). Já para Pierre Weil (1989), uma das principais patologias que aflige o homem
contemporâneo é a resistência ao transpessoal, na qual tudo o que lembre o irracional, o
religioso e o oculto é imediatamente rejeitado (p. 36). Da mesma forma, Assagioli
(1976) aponta os mecanismos de repressão e resistência são utilizados em relação não só

43
ao inconsciente inferior, descoberto por Freud, mas também em relação ao inconsciente
espiritual ou transpessoal por ele proposto. Para outros autores, como A. Weil, a própria
vivência dos estados alterados e ampliados da consciência, ao invés de caracterizar um
fenômeno excepcional ou distúrbios mentais, deve ser considerada como uma
necessidade natural do ser humano. Fadiman e Frager (1979) assim explicam esta
proposição:
Weil (1972) oferece evidência de que os assim chamados "estados alterados" são não só
naturais como também necessários para o bem estar e a saúde continuada da pessoa. Ele
acredita que a menos que tenhamos oportunidade de mudar nosso estado de consciência,
podem desenvolver-se sintomas emocionais graves. Ele vê o impulso para alterar a
percepção consciente - tal como expressa pelo uso exagerado de drogas, bebedeiras
públicas, práticas religiosas (...) - como um reflexo de um impulso fisiológico que se
origina na estrutura do cérebro. Da mesma forma que sabemos que há um impulso para
experiência sexual, pode haver um impulso semelhante para a mudança de percepção.
(pp. 168-169)

Igualmente, a compreensão de que a consciência inclui vários estados e


faixas, às quais correspondem específicas apreensões da realidade, traz sérios
questionamentos às definições habituais de psicose e normalidade:
A consideração de nosso estado comum a partir de um contexto ampliado gera algumas
implicações inesperadas. Para o modelo tradicional, a psicose se define como um
percepção distorcida da realidade que não reconhece a distorção. Do ponto de vista dos
múltiplos estados, o nosso estado comum é assim definido por ser deficiente, por
fornecer uma percepção distorcida da realidade e por não ser capaz de reconhecer essa
distorção. Na verdade, todo estado de consciência é necessariamente limitado e só é real
em termos relativos. Esse é o motivo por que, da perspectiva mais ampla, se pode definir
a psicose como um apego a qualquer estado de consciência ou um aprisionamento nele.
Como cada estado de consciência revela seu próprio quadro da realidade, a realidade tal
como a conhecemos (sendo esta a única maneira pela qual a conhecemos) é apenas
relativamente real. Em outras palavras, a psicose é o apego a qualquer realidade. (Walsh
& Vaughan, 1991, p. 61)

Na verdade, para a visão transpessoal, o fato dos chamados psicóticos


estarem muitas vezes vivenciando alterações da consciência que os colocam em contato
com outras faixas de percepção da realidade, leva à consideração de que estariam em
uma posição, de certo modo privilegiada, de poder romper com as limitações da
identificação exclusiva a uma faixa específica, despertando para o espectro ampliado da
consciência total e para a possibilidade de nele transitar. Nesse sentido, certos episódios
psicóticos, ao invés de sintomas de patologias ou deficiências, podem ser entendidos
como crises da evolução ou episódios de emergência espiritual que, com a devida ajuda
terapêutica, permitiriam ao indivíduo o acesso a uma identidade bem mais consciente e
elevada que a da habitual normalidade. Com o propósito de ajudar pessoas a resolver
semelhantes crises, psicólogos transpessoais como Stanislav e Cristina Grof têm
organizado redes de apoio, batizadas redes de emergência espiritual, onde são atendidos
indivíduos abalados pelos mais variados tipos de experiência transpessoal, as quais, para
outros modelos, provavelmente indicariam a franca manifestação de surtos psicóticos
(ou, pelo menos, histéricos): crise xamânica, despertar da Kundalini, episódios de
consciência unitiva, experiências culminantes, crise de abertura psíquica, experiências

44
com vidas passadas, comunicações com espíritos e chanelling, experiências de
proximidade da morte, experiências de contatos próximos com OVNIs, estados de
possessão, etc... (para uma descrição mais detalhada, vide Grof & Grof, orgs., 1992)
Por fim, nas concepções ampliadas de eu e de personalidade total (a
identidade transpessoal), vamos encontrar outras posições características. Ao passo que
para a visão humanista o desenvolvimento de uma identidade autônoma e independente é
apontado como o objetivo do desenvolvimento da personalidade, a posição transpessoal é
um tanto distinta. Sem deixar de reconhecer o desenvolvimento de uma personalidade
autônoma, auto-consciente e responsável como uma etapa necessária e importante da
evolução pessoal, a Psicologia Transpessoal considera que a identificação com qualquer
tipo de eu pessoal, ou personalidade, em última instância caracteriza uma patologia: A
identificação total com a própria personalidade pode ser evidência de patologia
(Fadiman, 1991, p. 198). Daí ser freqüentemente apontada, como necessidade do
desenvolvimento e evolução humana, a importância de vivências de morte e
transcendência do eu (para um bom apanhado do tema vide Bertolucci, 1991, cap. IV),
para que, mediante a desidentificação com os aspectos individuais e separados do todo,
possa o homem transcender sua condição e reencontrar sua identidade transpessoal,
como parte holográfica (imagem e semelhança) de um Eu maior, transpessoal e
universal:
A verdadeira sanidade envolve, de uma ou de outra maneira, a dissolução do ego
normal, desse falso eu completamente ajustado à nossa alienada realidade social (...) e
por meio dessa morte, um renascimento, bem como o eventual restabelecimento de um
novo tipo de funcionamento do ego, passando esse ego a servo, e não mais traidor, do
Divino. (Laing, 1991, p. 78)

Métodos e Técnicas
A Psicologia Transpessoal, enquanto corrente, focaliza tópicos
anteriormente negligenciados pela moderna psicologia científica, sendo os métodos e
técnicas de trabalho e pesquisa utilizados pelas abordagens transpessoais
caracteristicamente marcados pela preocupação em enfocar, adequadamente acessar e,
inclusive, provocar os estados alterados e ampliados de consciência, faixa da experiência
humana em que prioritariamente a Quarta Força se desenvolve com finalidades de
investigação e/ou atuação terapêutica e educacional. Para tanto, lançam mão do mais
variado leque de recursos, indo desde metodologias e técnicas bastante conhecidas e
tradicionais, até inovações criativas e sui generis, sendo os pesquisadores, terapeutas e
educadores transpessoais freqüentemente ecléticos e imaginativos em adaptar técnicas e
procedimentos ao estudo e desenvolvimento das potencialidades e qualidades humanas
implicadas no campo privilegiado pela Quarta Força: a dimensão espiritual, ou
transpessoal, do ser. Portanto, creio que o mais indicado para se classificar determinada
investigação ou determinada proposta de trabalho como pertencente à Psicologia
Transpessoal, não é tanto considerar os procedimentos utilizados quanto verificar se estes
se dão dentro de uma perspectiva de reconhecimento e interesse em relação ao espectro
ampliado da consciência. Sob esse prisma, vejamos, num retrato panorâmico, alguns dos

45
métodos e técnicas que os psicólogos transpessoais têm mais freqüente e
caracteristicamente utilizado.
O uso de substâncias psicodélicas, embora já há tempos em declínio nos
meios científicos, marcou época, tendo estado fortemente associado, como vimos, ao
próprio surgimento da Quarta Força. Quase todos os grandes nomes da pesquisa e
atuação em Psicologia Transpessoal, inclusive os precursores, em algum momento de
suas carreiras, interessaram-se e foram influenciados pela utilização desse recurso como
forma de investigação ou desenvolvimento das potencialidades da consciência, podendo
o trabalho de Stanislav Grof (1983) ser citado como, talvez, o mais profícuo exemplo da
utilização desta via para aquisição de conhecimento psicológico. Os ensaios de Aldous
Huxley (s.d.) sobre suas experiências com mescalina, na década de 50, podem ser
considerados verdadeiros clássicos da literatura transpessoal, contribuindo (juntamente
com sua concepção de Filosofia Perene) para inscrevê-lo como um dos principais
precursores e inspiradores do Movimento Transpessoal. Estudos pouco ortodoxos de
modernas abordagens antropológicas (a chamada Antropologia Visionária, cujo expoente
mais conhecido é Carlos Castaneda) enfocam o uso de substâncias alteradoras da
consciência em culturas diversas, oferecendo insights e contribuições teóricas e
metodológicas à moderna psicologia da consciência. Até pelo lado negativo o uso de
drogas foi importante para o desenvolvimento da Psicologia Transpessoal, pois muitas
formas de trabalho, como a respiração holotrópica de Grof, foram desenvolvidas a partir
do desafio que era obter o mesmo efeito sem sua utilização. Ainda hoje, não obstante os
aspectos polêmicos e as objeções legais que sua utilização envolve, os psicodélicos
(designação que os transpessoais preferem à de alucinógenos) permanecem, no meio
transpessoal, como um considerável recurso de alteração da consciência, com fins de
pesquisa, tratamento, desenvolvimento e auto-exploração psíquica.
Os aparatos tecnológicos também tem sido freqüentemente utilizados,
sendo alguns deles caracteristicamente associados à pesquisa transpessoal. As
tecnologias de biofeedback e as especulações sobre os potenciais humanos que seu uso
levantou, chegam por vezes a ser apontados como uma das mais fortes influências que
pesquisas em áreas afins tiveram no surgimento da Psicologia Transpessoal. Os
importantes subsídios que a moderna pesquisa do cérebro fornece para a compreensão
dos processos de consciência alterada, tem levado à utilização, pela pesquisa
transpessoal, de instrumentos tecnológicos muito mais sofisticados que o prosaico
eletroencefalograma, que tivera importância tão marcante nos estudos pioneiros sobre os
efeitos da meditação. Os tanques de privação sensorial, recurso de alteração da
consciência alternativo ao uso de drogas, foram amplamente utilizados nas primeiras
pesquisas (as do cientista e teórico transpessoal John Lilly, 1973, são, provavelmente, as
mais famosas e importantes) e é um dos aparatos mais caracteristicamente associados à
imagem da pesquisa transpessoal, chegando a inspirar o filme Altereted States (Viagens
Alucinantes) de Ken Russel que, com certos exageros e distorções próprios de uma obra
de ficção, divulgou entre o público leigo a moderna investigação da consciência

46
ampliada. Atualmente, enquanto aparelhos modeladores da freqüência cerebral (as dream
machines) já são popularizados comercialmente, e os tanques de privação sensorial são
ressuscitados na onda do revival dos anos 60, os investigadores transpessoais partem
para especulações futuristas sobre a utilização, com fins de ampliação e exploração da
consciência, das nascentes tecnologias computadorizadas de Realidade Virtual, já
chamadas de o LSD do Futuro pelo controverso psicólogo Thimothy Leary (En passant:
após um longo, e em minha opinião imerecido, ostracismo, Leary, recentemente falecido,
tinha voltado a receber consideração dos círculos humanistas e transpessoais mais
oficiais, tendo suas idéias merecido homenagem e vários artigos na edição de verão de
1993 da respeitada Revista de Psicologia Humanista).
Estando dentro das proposições do Movimento Transpessoal realizar uma
ponte entre a moderna Ciência e a sabedoria das tradições espirituais, tem sido uma
acentuada tendência buscar nestas não só uma das mais ricas fontes de material de estudo
(as experiências religiosas) mas também inesgotável inspiração teórica e metodológica
para o trabalho com a consciência expandida. Em sua busca de instrumentação, os
psicólogos transpessoais têm realizado investigações que por vezes chegam às raias da
arqueologia antropológica, estudando variadas formas de oração, meditação, yoga,
exercícios espirituais, ritualísticas, mitologias e simbologias tradicionais, práticas
xamânicas e caminhos iniciáticos, com as quais enriquecem, na teoria e na prática, seus
procedimentos de trabalho. Aliás, o caminho de aproximação entre a Psicologia e a
Tradição não é percorrido em mão única, e modernos líderes espirituais, divulgadores de
doutrinas milenares em adaptações dirigidas ao público ocidental, expressam-se em
atualizada linguagem psicológica, chegando alguns a formular verdadeiras psicologias,
no sentido mais moderno do termo. Variadas formas desta aproximação podem ser
exemplificadas em parte da obra de espiritualistas como Gurdjieff e Ouspensky, Rudolf
Steiner, Alice Bayley, Daisetz Suzuki, Krishnamurti, Rajeeneesh (ou Osho), e muitos
outros. Um caso curioso é o do Psicólogo Richard Alpert, que atualmente é o Iogue Ram
Dass, ficando difícil decidir (como se isto fosse importante!) se está indo ou vindo no
caminho que liga a Tradição à Psicologia Transpessoal. Não é, enfim, realmente
possível, neste espaço, traçar um esboço, por resumido que seja, das diversas versões,
nuances e caminhos que esta tendência toma nas influências recebidas pelas diversas
abordagens, sobretudo de psicoterapia, das psicologias transpessoais.
Mesmo métodos e técnicas tradicionalmente associados às anteriores
Forças da Psicologia encontram larga utilização nos meios transpessoais, a partir de
redefinições ampliadoras dos conceitos teóricos em que se fundamentam. Do
Behaviorismo, destaca-se o uso que tem sido feito dos conceitos e técnicas de
modelagem e descondicionamento. Da Psicanálise, enquanto do arcabouço conceitual
são retiradas inesperadas resignificações de conceitos como identificação, projeção e
resistência, no campo metodológico tem sido adaptadas técnicas regressivas, aí incluído
(mas não restrito) todo um renovado interesse e desenvolvimento em hipnose clínica.
Ainda a propósito da Psicanálise, embora a visão freudiana da natureza humana seja

47
quase a antítese do modelo transpessoal de homem, em minha opinião Freud foi quase
um precursor de certos enfoques característicos da Psicologia Transpessoal, propondo a
alteração da consciência como instrumento de trabalho (em que outra coisa senão nisso
consiste a atenção flutuante e a associação livre?), e escolhendo como campo
privilegiado (o Caminho Real) a investigação dos sonhos que, afinal, são um estado
alterado de consciência. E por falar em sonhos, a variedade de técnicas utilizadas nas
abordagens transpessoais, e que receberam em seu desenvolvimento fontes de inspiração
que vêm desde práticas imemoriais até a mais recente pesquisa do sono e sonho, inclui
procedimentos e categorias com títulos como sonhos criativos, sonhos lúcidos,
incubação de sonhos, sonhos de cura, sonhoterapia, sonhos coletivos, sonhar por
terceiros, sonho acordado, sonho dirigido, sonhos diagnósticos, etc... Quanto às
contribuições recebidas da Psicologia Humanista, à qual a Psicologia Transpessoal tão
estreitamente se liga, incluem-se adaptações de métodos e técnicas corporais, grupais,
sensoriais, fenomenológicas, psicodramáticas e de conscientização, sem contar que todo
um capítulo poderia ser escrito a respeito da utilização que os transpessoais tem feito de
técnicas de trabalho com imagens, retomando e ampliando, em muitos aspectos, as
propostas de destacadas abordagens humanistas. E ainda com respeito à Psicologia
Humanista, é importante ressaltar que as ligações íntimas e a não contradição intrínseca
entre as abordagens da Terceira e Quarta Forças, permitem que determinadas
abordagens sejam consideradas como sendo, a uma só vez, humanistas e transpessoais,
muitas sendo assim declaradas por proposta explícita de seus criadores, como é o caso,
para citar os exemplos mais famosos, da Logoterapia de Viktor Frankl (onde predomina
certa inclinação existencial-humanista) e da Psicossíntese de Roberto Assagioli (com
franca inclinação transpessoal). Já outras abordagens humanistas têm, após a morte de
seus criadores, encontrado discípulos que nelas descobrem certos potenciais ou
tendências transpessoais (Bertollucci, 1991, aponta indícios nesse sentido já nas
formulações primeiras do Psicodrama de Moreno), ou que lhes desenvolvem extensões
com características transpessoais (Pierrakos, por exemplo, faz algo assim a partir da obra
de Reich), ou ainda criam metodologias transpessoais fortemente inspiradas em sua
escola de formação (incluiria aqui o Cosmodrama de Pierre Weil e, talvez como um
esboço, a Síntese Transacional de Roberto Crema, desenvolvidas na Universidade
Holística Internacional de Brasília, e respectivamente inspiradas no Psicodrama e na
Análise Transacional).
Cabe aqui um esclarecimento sobre a natureza das psicoterapias
transpessoais para que se compreenda porque elas não excluem que se utilize, mesmo
sem adaptações, técnicas de outras abordagens. É que, dentro da perspectiva da aceitação
de vários estágios de desenvolvimento antes do crescimento psicológico voltar-se à
busca do transpessoal, assim como dada a aceitação do amplo espectro de faixas e
estados de consciência que vão desde o infra-humano até o transpessoal, passando pelas
faixas pessoais e biográficas em que se desenrola a maior parte do drama de nossas
existências, a Psicoterapia Transpessoal admite a validade da maioria das técnicas

48
psicológicas, desde que se restrinjam à faixa de consciência e ao estágio de
desenvolvimento a que correspondem. Este ponto de vista é defendido, de forma
especialmente contundente e extensa, por Wilber (1990) em sua teoria do Espectro da
Consciência.
Dadas as concepções abertas e arrojadas de Ciência, Psicologia, realidade
e consciência que adota, assim como dadas as características inusuais de seu campo
privilegiado de estudo e atuação, a Psicologia Transpessoal tem abrigado, ou pelo menos
convivido, com inovações técnicas e metodológicas tão extravagantes, inusitadas,
heterodoxas e controversas que, por vezes, chegam a comprometer a respeitabilidade de
todo o movimento frente à Comunidade Psi. A inefabilidade de certas experiências
transpessoais e as dificuldades da comunicação inter estados de consciência têm
favorecido considerável tendência para utilização de métodos de auto-experimentação,
em que o investigador é também o sujeito do experimento, e propiciado situações em que
a auto-indução de estados alterados é usada pelo profissional como forma de acesso ou
atuação em sua relação com os clientes ou sujeitos de estudo. A farta ocorrência de
fenômenos paranormais em estados de consciência alterada têm levado os psicólogos
transpessoais não só a uma aproximação da Parapsicologia e seus métodos, como
autorizado a utilização, com fins terapêuticos ou de investigação, dos poderes psíquicos
do próprio pesquisador ou profissional de ajuda. A aceitação da trans-corporeidade e da
trans-humanidade da consciência tem permitido o desenvolvimento de abordagens e
metodologias de trabalho que adotam concepções reencarnacionistas, projeções extra-
corpóreas da consciência, comunicação com pessoas já falecidas, ou mesmo com
consciências não humanas, inclusive inteligências extra-terrestres ou de outras
dimensões não conhecidas da realidade. Autorizado pelos conceitos de sincronicidade e
interconexão trans-espaço-temporal entre eventos, há significativo interesse em
investigar, ou utilizar como técnica coadjuvante de atuação, a Astrologia e os chamados
métodos mânticos, como o I Ching e o Tarô. O compromisso com uma visão holística de
Ciência e ser humano, compreendendo este como pluridimensionalmente integrado e
aquela como transdisciplinarmente inclusiva, tem levado muitos profissionais
identificados com a perspectiva transpessoal a se utilizarem das chamadas terapias
alternativas ou holísticas, que incluem desde o uso dos métodos e técnicas de milenares
e tradicionais medicinas orientais, até o uso de recentes e pouco experimentadas criações
da medicina natural ou da homeopatia. Ao falar aqui de algumas dessas tendências
especialmente polêmicas, desejo frisar minha posição de ser contrário à exclusão
apriorística e preconceituosa de qualquer abordagem nova, especialmente porque
considero que a abertura ao novo é a principal alavanca do progresso científico. Se
abusos existem, e certamente os há naquelas adesões modísticas ou comercialmente
motivadas, é o ceticismo e a sobriedade do rigor científico, corolário da abertura ao
inusitado, e não o preconceito, que devem ser utilizados para combatê-los.
Enfim, no tópico de métodos e técnicas, verifica-se que, se por um lado a
Psicologia Transpessoal não se identifica e caracteriza consistentemente em

49
determinados e específicos procedimentos de trabalho e pesquisa, por outro, seu arsenal
nesse campo é talvez mais amplo e diversificado que o de qualquer escola ou corrente
anterior, mesmo porque costuma adotar inclusivamente o que por estas foi desenvolvido.

50

Você também pode gostar