Ensaiodeleitura 01

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O assassinato do comendador

Vol. 2

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Haruki Murakami

O assassinato do comendador
Vol. 2
Metáforas que vagam

tradução
Rita Kohl

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Copyright © 2007 by Haruki Murakami

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Kishidancho Goroshi

Capa
Alceu Chiesorin Nunes

Preparação
Fernanda Villa Nova

Revisão
Renata Lopes Del Nero
Marise Leal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Murakami, Haruki
O assassinato do comendador, volume 2 : Metáforas
que vagam / Haruki Murakami ; tradução Rita Kohl. –
1ª ed. – Rio de Janeiro : Alfaguara, 2020.
Título original: Kishidancho Goroshi.
isbn: 978-85-5652-097-5
1. Ficção japonesa i. Título.
19-32209 cdd-895.63
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura japonesa 895.63
Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – crb-8/7964

[2020]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz s.a.
Praça Floriano, 19, sala 3001 — Cinelândia
20031-050 — Rio de Janeiro — rj
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O assassinato do comendador
Vol. 2

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33.
Eu gosto tanto das coisas que posso
ver quanto das que não posso

O domingo também foi um dia esplêndido. O vento era ameno e o


sol de outono fazia as folhas multicoloridas das árvores das monta-
nhas brilharem. Passarinhos de peito branco pulavam de galho em
galho, bicando habilmente os frutos vermelhos das árvores. Sentado
no terraço, eu contemplava essa paisagem. A beleza da natureza está
ao alcance de pobres e ricos, sem distinção. Assim como o tempo…
mas, bem, talvez não seja esse o caso com o tempo. Talvez pessoas
abastadas possam comprar tempo extra.
Precisamente às dez horas, o Toyota Prius azul-claro subiu pela
encosta até minha rua. Shoko Akikawa vestia um fino suéter bege de
gola alta e uma calça justa de tecido verde-claro. Uma corrente de ouro
brilhava discretamente em seu pescoço. O cabelo estava perfeitamente
arrumado, como na última visita. Quando ela se movia, dava para ver
a bela linha de sua nuca. Hoje ela usava uma bolsa de couro pendurada
no ombro, e não uma bolsinha. Calçava mocassins marrons. Uma
roupa casual, mas com atenção a cada detalhe. O contorno de seus
seios tinha um formato bonito. Segundo as informações privilegiadas
que eu recebera de sua sobrinha, eles não tinham “nenhum preen-
chimento”. Aqueles seios me atraíam um pouco — em um sentido
puramente estético, é claro.
Mariê Akikawa, por sua vez, usava um jeans reto e desbotado e
tênis All Star brancos, um traje casual completamente diferente do
da última visita. Seu jeans tinha vários buracos (estrategicamente
feitos, é claro). Vestia um fino moletom cinza e sobre ele uma cami-
sa xadrez grossa, do tipo que um lenhador usaria. Sob a camisa, seu
peito continuava não tendo volume. E, como sempre, estava de cara
amarrada. A expressão de um gato cujo prato de comida fora levado
embora no meio da refeição.

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Como da outra vez, preparei um chá na cozinha e o servi na
sala de estar. Então lhes mostrei os três esboços que fizera na semana
anterior.
Shoko pareceu gostar deles.
— São cheios de vida! Parecem mais com a Mariê do que uma
foto!
— Posso ficar com eles? — perguntou Mariê.
— Pode, claro — respondi. — Depois que eu terminar o retrato.
Até lá, ainda posso precisar deles.
— Que isso, Mari… Você realmente não se incomoda? — per-
guntou a tia, preocupada.
— De maneira alguma — falei. — Quando terminar de pintar,
já não serão úteis.
— Você vai usá-los como referência? — perguntou Mariê.
Fiz que não com a cabeça.
— Não. Digamos que para, como posso dizer… para eu enten-
der você tridimensionalmente. Acho que, na tela, vou te desenhar
de outro jeito.
— Então a imagem já está pronta na sua cabeça?
Balancei a cabeça.
— Não, não está. A partir de agora vou pensar nela junto com
você.
— Vai me entender tridimensionalmente? — disse Mariê.
— Isso mesmo — falei. — A tela é uma superfície plana, mas a
pintura tem que ser tridimensional. Entende?
Mariê franziu a testa. Imaginei que de alguma forma pudesse ter
associado a palavra “tridimensional” ao volume do próprio peito. De
fato, ela olhou de relance para os seios da tia, que exibiam suas curvas
por baixo do suéter fino, depois me fitou.
— Como você fez pra conseguir desenhar bem desse jeito?
— Desenhar esse tipo de esboço?
Ela fez que sim com a cabeça.
— É, esboço, croqui, essas coisas.
— Prática. Quanto mais você pratica, melhor vai ficando.
— Mas acho que tem muita gente que, por mais que pratique,
não melhora muito.

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Ela estava certa. Muitos colegas na faculdade de artes nunca se
tornaram bons pintores, por mais que treinassem. Podemos espernear
à vontade, mas somos dirigidos pelas nossas habilidades inatas, ou
pela falta delas. Mas se eu começasse a falar sobre isso a conversa ia
perder o rumo.
— Exato, mas isso não quer dizer que você não precisa praticar.
Tem muitos talentos e habilidades que só aparecem se a gente puser
em prática.
Shoko Akikawa assentiu com a cabeça, concordando enfatica-
mente. Mariê lançou um olhar duvidoso.
— Você queria aprender a desenhar bem? — perguntei.
Ela fez que sim.
— Eu gosto tanto das coisas que posso ver quanto das que não
posso.
Encarei seus olhos, uma luz brilhava neles. Não entendi exata-
mente o que ela queria dizer. Mas esse brilho no fundo dos seus olhos
me interessou mais do que suas palavras.
— Que coisa esquisita de se dizer… — disse Shoko. — Parece
uma charada.
Mariê não respondeu, só continuou fitando as próprias mãos.
Quando ergueu novamente os olhos, pouco depois, o brilho havia
desaparecido. Foi apenas por um instante.

Fui para o ateliê junto com Mariê. Shoko tirou da bolsa o mesmo
livro grosso da semana passada — pelo formato, acho que era o mes-
mo — e logo se pôs a ler, recostada no sofá. Parecia muito absorta.
Fiquei ainda mais curioso para saber que tipo de livro seria, mas não
perguntei.
Eu e Mariê ficamos frente a frente, separados por cerca de dois
metros, como no outro dia. A diferença é que, desta vez, eu tinha
diante de mim o cavalete com uma tela. Mas ainda não tinha pincel
nem tinta nas mãos. Meus olhos iam e vinham, de Mariê para a tela
em branco. Refletia sobre como poderia transportar sua imagem tri-
dimensional para a tela. Aquilo necessitava de um tipo de “narrativa”.
Não bastava simplesmente olhar para a pessoa e sair desenhando. Nada

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bom resultaria disso. Poderia acabar tendo apenas uma semelhança
razoável. Para um verdadeiro retrato, o ponto de partida essencial era
encontrar a narrativa que precisava ser descrita.
Passei algum tempo estudando o rosto de Mariê, eu num ban-
quinho, ela, na cadeira da mesa de jantar. Ela fitava meus olhos de
volta quase sem piscar. Não chegava a ter uma expressão desafiadora,
mas a determinação de quem não vai recuar. Suas feições, delicadas
como as de uma boneca, podiam passar uma impressão enganosa, mas
na realidade aquela era uma menina de personalidade forte. Tinha a
própria maneira de agir e não hesitava. Quando traçava uma linha,
não se dobrava facilmente.
Olhando bem, alguma coisa nos olhos de Mariê lembrava os de
Menshiki. Eu já tinha sentido isso antes, mas essa semelhança me
surpreendeu novamente. Era um brilho que eu gostaria de descrever
como “o instante congelado de uma chama”. Continha calor, mas ao
mesmo tempo era profundamente sereno. Parecia uma pedra precio-
sa com uma fonte de luz própria em seu interior. Onde duas forças
lutavam fervorosamente, uma para sair e se expandir e outra para se
ocultar e olhar para dentro.
Porém, talvez eu só sentisse isso por ter ouvido a confissão de
Menshiki sobre como Mariê poderia ser sangue do seu sangue.
Talvez eu estivesse buscando inconscientemente uma ligação entre
os dois.
Qualquer que fosse o caso, o fato é que a peculiaridade daquele
brilho no olhar era um dos elementos fundamentais de sua expres-
são, e eu precisava transpô-lo para a tela, como algo que perfurava
e abalava a aparência equilibrada de suas feições. Mas eu ainda não
conseguia vislumbrar o contexto no qual deveria inserir esse brilho.
Se eu falhasse, aquele brilho poderia parecer apenas como uma pedra
gélida. De onde vinha, e para onde queria ir, o calor que brotava em
seu interior? Era o que eu precisava saber.
Depois de quinze minutos encarando alternadamente seu rosto
e a tela, eu desisti. Empurrei o cavalete para longe e respirei fundo
várias vezes.
— Vamos conversar.
— Tá bom — disse ela. — Sobre o quê?

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— Queria saber um pouco mais sobre você.
— O quê, por exemplo?
— Bem… Como é o seu pai?
Mariê curvou um pouco a boca.
— Eu não conheço bem meu pai.
— Vocês não costumam conversar?
— A gente nem se vê direito.
— Ele é muito ocupado com o trabalho?
— Não sei muita coisa sobre o trabalho dele — respondeu Mariê.
— Mas acho que ele não liga muito pra mim.
— Não liga?
— É, ele deixa tudo por conta da minha tia.
Eu não consegui dizer nada sobre isso.
— E da sua mãe, você se lembra? Se não me engano, você tinha
seis anos quando ela faleceu, não é?
— Da minha mãe eu só lembro alguns borrões.
— Que tipo de borrões?
— Minha mãe desapareceu da minha frente de repente. Eu era
muito pequena para entender o que significava morrer, então eu não
sabia de verdade o que tinha acontecido. Ela estava ali e de repente
não estava mais. Que nem uma fumaça escapando por alguma fresta.
Mariê se calou por algum tempo, depois continuou.
— Ela desapareceu rápido demais e eu não consegui entender a
razão, então não me lembro direito das coisas que aconteceram logo
antes ou depois da sua morte.
— Foi um período muito confuso pra você.
— Parece que tem uma parede bem alta separando o tempo em
que a minha mãe estava viva e o tempo depois que ela se foi. Não
consigo ligar os dois. — Ela ficou quieta por algum tempo, mordendo
o lábio. — Entende o que quero dizer?
— Acho que sim — respondi. — Eu te falei que minha irmã
morreu aos doze anos, né?
Mariê assentiu com a cabeça.
— Ela tinha um problema cardíaco de nascença. Fez uma cirurgia
grande, que era pra ter curado esse problema, mas por algum motivo
ele continuou. Era como se ela vivesse com uma bomba no corpo.

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Então a minha família estava sempre mais ou menos preparada para
o pior. Ou seja, a morte dela não foi um ribombar em céu azul como
a sua mãe ter falecido com as picadas de vespa.
— “Ribombar”…?
— Ribombar em céu azul. Quando o dia está bonito mas cai um
raio de repente. Quer dizer, quando acontece uma coisa inesperada,
sem aviso prévio.
— “Ribombar em céu azul” — disse ela. — Como escreve isso?
— Eu não sei escrever os ideogramas de “ribombar”. Acho que
nunca escrevi. Se quiser saber, pode olhar no dicionário quando
chegar em casa.
— “Ribombar em céu azul” — repetiu Mariê, mais uma vez,
co­mo se estivesse guardando aquela expressão em uma gaveta mental.
— Enfim, nós já imaginávamos que isso pudesse acontecer. Mas,
quando minha irmã teve de fato um infarto e morreu no mesmo dia,
não adiantou nem um pouco estar preparado. Eu fiquei paralisado.
E não só eu, mas toda a minha família.
— Várias coisas dentro de você ficaram diferentes do que eram
antes?
— Sim, mudaram completamente, dentro e fora de mim. O
jeito que o tempo passa ficou diferente. E, como você disse, é difícil
conectar as coisas antes de sua morte e depois.
Mariê encarou meu rosto por dez segundos inteiros. Então falou:
— Sua irmã era uma pessoa muito importante pra você, não era?
Eu concordei.
— Sim, ela era muito importante.
Mariê baixou a cabeça, compenetrada, depois a ergueu:
— Por causa das minhas memórias divididas desse jeito, eu não
consigo lembrar direito da minha mãe. O tipo de pessoa que era,
seu rosto, o que me dizia. E meu pai também não me conta muito
sobre ela.
A única coisa que eu sabia sobre a mãe de Mariê era a descrição
extremamente detalhada que Menshiki fizera de seu último encontro
sexual. O sexo intenso que eles fizeram no sofá do seu escritório, no
qual talvez Mariê tenha sido concebida. Mas é claro que eu não podia
falar sobre isso.

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— Você deve ter alguma memória dela, não? Vocês viveram juntas
por seis anos…
— Só um cheiro.
— O cheiro dela?
— Não, cheiro de chuva.
— De chuva?
— É, estava chovendo. Uma chuva tão forte que dava pra ouvir o
barulho das gotas acertando o chão. Mas minha mãe estava andando
pela rua sem guarda-chuva. E eu estava andando junto com ela, no
meio da chuva, de mãos dadas. Acho que era verão.
— Será que era uma tempestade de verão?
— Acho que sim, porque as ruas tinham aquele cheiro de quando
a chuva cai no asfalto quente de sol. É desse cheiro que eu lembro.
A gente estava num tipo de mirante, no alto da montanha. E minha
mãe estava cantando.
— Cantando o quê?
— Não me lembro da melodia. Só de algumas palavras. Era
uma canção que falava sobre como do lado de lá tinha uma enorme
campina verde onde o sol estava brilhando, mas do lado de cá a chuva
caía sem parar. Você já ouviu alguma música assim?
Eu não tinha qualquer registro da música.
— Não, acho que nunca ouvi.
Mariê encolheu de leve os ombros.
— Eu já perguntei pra muitas pessoas, mas ninguém conhece essa
música. Por que será? Será que eu mesma inventei na minha cabeça?
— Talvez sua mãe tenha improvisado a música na hora. Pra você.
Mariê ergueu os olhos para mim e sorriu.
— Nunca tinha pensado nessa possibilidade, mas seria muito
legal!
Acho que foi a primeira vez que a vi sorrir. Era como se nuvens
pesadas se abrissem, um raio de sol escapasse por entre elas e iluminasse
apenas uma pequena área escolhida sobre a terra. Esse tipo de sorriso.
— Se você voltasse a esse lugar, será que ia conseguir reconhecer?
Se experimentasse ir nos mirantes dessa montanha?
— Pode ser — disse Mariê. —Não tenho tanta certeza, mas
pode ser.

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— Sabe, é muito bom você ter uma lembrança assim para guar-
dar — falei.
Mariê só assentiu com a cabeça.

Depois disso, passamos um tempo escutando o gorjeio dos pás-


saros que entrava pela janela. Lá fora se estendia um impressionante
céu azul de outono. Não havia nem vestígio de nuvens. Estávamos
cada um em nosso próprio mundo, perdidos em pensamentos.
— O que é aquele quadro virado para a parede? — perguntou
Mariê, quebrando o silêncio.
Ela estava apontando para o quadro a óleo que eu pintara (ou
tentara pintar) do homem do Subaru Forester branco. A tela estava
voltada para a parede porque eu não queria vê-la.
— É uma pintura inacabada. Estava tentando retratar um homem,
mas parei no meio.
— Posso ver?
— Pode. Eu apenas comecei, é só um rascunho.
Eu virei a tela para a frente e a apoiei sobre o cavalete. Mariê
levantou da cadeira, se aproximou e observou a pintura de braços
cruzados. O brilho afiado voltou aos seus olhos. Sua boca estava
fechada numa linha reta.
A pintura era composta só de tinta vermelha, verde e preta, e a
silhueta do homem ainda não estava definida. O esboço com carvão
já fora encoberto. Ele se recusara a tomar mais corpo do que aquilo,
a ter mais cor adicionada a sua forma. Mas eu sabia que ele estava
ali. Eu tinha capturado sua essência naquela tela. Como uma rede
que agarra um peixe no fundo do mar. Agora, eu estava tentando
puxá-la e ele lutava para me impedir. E, nesse cabo de guerra, deixei
a pintura de lado.
— A pintura parou desse jeito?
— Foi. Cheguei nessa etapa e não consegui ir adiante.
— Parece finalizada para mim — murmurou Mariê.
Eu parei ao seu lado e olhei novamente para o quadro, da mes-
ma perspectiva que ela. Será que ela conseguia enxergar o homem
mergulhado na escuridão?

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