(T7.2) BRITO, Ronaldo - Neoconcretismo

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International Center for the Arts of the Americas at the Museum of Fine Arts, Houston

Documents of 20th-century
Latin American and Latino Art
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NEOCONCRETISMO
Ronaldo Brito

Momento de ruptura das vanguardas construtivas brasileiras, abertura experimen-


tal para a arte dos anos 60 e 70, o Neoconcretismo é um dos temas mais importan-
tes a serem elucidados tendo em vista o processo de producdo da arte contempo-
rénea no Brasil. O que se segue € a parte inicial do ensaio de Ronaldo Brito sobre
O movimento neoconcreto a ser publicado em livro dentro de algum tempo.

O manifesto neoconcreto € claro: trata-se de uma tomada de posi¢do critica ri, por exemplo, fazia dos cubistas e de Picasso era anedética apenas, ndo alcancava
frente ao desvio mecanicista da arte concreta. Mas trata-se também de defender as operac6es pelas quais se estavam rompendo os esquemas formais dominantes.
uma arte ndo figurativa, de linguagem geométrica, contra tendéncias irracionalistas
de qualquer espécie. Dada e surrealismo séo nominalmente citados como movi-
Seria talvez um exagero afirmar que esses trabalhos estavam profundamente anco-
rados em nosso campo cultural. Mas se tornaram em parte instrumentos de setores
mentos retrégrados. Mondrian, Pevsner e Malevitch so os pontos de referéncia bé- politicos no plano da luta ideoldégica e, mais do que isso, tinham por certo a dispo-
sicos. O texto delimita, assim, o que seria de inicio a drea de operacdo neoconcre- si¢do a maquina da arte, a precéria maquina da arte moderna no Brasil. Havia uma
ta: as ideologias construtivas, com suas leituras evolucionistas da histéria da arte,
massa de investimentos intelectuais, mais do que diretamente financeiros, jogada
suas propostas de integra¢do social e suas teorias produtivas. O neoconcretismo
permanece interessado na espécie de positividade que estd no centro da tradi¢do
sobre eles, Comparados com a linguagem nada denotativa dos construtivos, esses
trabalhos si: icavam muito. Podiam ser discursados por meio de uma retérica
construtiva — a arte como instrumento de constru¢do da sociedade. social e humana. Estavam dentro, em suma, do sistema vigente de representa¢do
do real, apesar de seus “‘avancos’’, o que possibilitava instrumentalizd-los em po-
E nos limites dessa positividade que, em principio, programa sua atuagdo. E é por- lemicas mais gerais.
tanto nesse quadro que se pode analisar a sua intervencdo — a validade e o interes-
se de suas proposi¢6es, sua eficacia e, afinal, o indice de negatividade que conse- Era precisamente esse sistema de representa¢do que 0 projeto construtivo atacava.
guiu impor em seu contato com a tradi¢do construtiva. Sim, porque ndo hd duvida
Em suas linhas diversas, havia uma constante: a busca de uma arte ndo representa-
quanto a origem construtiva do movimento. A quest4o é estudar 0 modo como ela
tiva, ndo metaférica. A partir do rompimento do espaco visual renascentista, cen-
se deu ecomo seguiu evoluindo.
A especificidade neoconcreta esta, nesse plano, em
trado na perspectiva, e a partir sobretudo de Cézanne e dos cubistas, a arte ganha
seu cardter contraditério. Encerrado em linhas gerais as ideologias construtivas,0
consciéncia de sua especificidade e abandona, digamos, o empirismo. Passa a ser
discurso neoconcreto é ao mesmo tempo, e de uma maneira mais ou menos expli- tomada sobretudo como um modo de conhecimento, com uma organiza¢ao for-
cita, uma denuncia da crise dessas ideologias. Preso as suas delimitag6es mais am- mal rigorosa, irredutfvel ao senso comum. A vertente construtiva da arte moderna
plas, ela polemiza (pela propria prdtica dos artistas, inclusive) com seus postulados
foi a que mais se deteve sobre a evolucdo da linguagem da arte e a que procurou
e opera de modo a rompé-los parcialmente. Esta, a verdade neoconcreta,a de ter formalizar com rigor uma visdo progressiva dessa prdtica tradicionalmente ligada
sido o vértice da consciéncia construtiva brasileira, produtor das formulagées tal-
ao pensamento irracional. Ela é uma espécie de positivismo da arte — sua tentativa
vez mais sofisticadas nesse sentido, e simultaneamente o agente de sua crise, abrin-
do caminho para sua supera¢do no processo de produgao de arte local. 6 a de racionalizé-la, trazé-la para o interior da producdo social, o seu desejo é atri-
buir a ela uma tarefa positiva na constru¢do da nova sociedade tecnoldgica.
Voltemos ao manifesto, ao programa inicial, para examinar a espécie de interven-
g&o que o neoconcretismo pretendia realizar no corpo da tradi¢do construtiva. No A arte abstrata surgira como uma medida de emancipa¢éo do trabalho de arte:
defasado ambiente cultural brasileiro, as baterias neoconcretas estavam entdo vol- uma afirmacdo de sua autonomia frente a realidade empfrica, um reconhecimento
tadas para o concretismo: promovia-se afinal a ciséo, apés uma luta interna nem de seu indice de abstragdo e formalizagao, necessdrios afinal a todo processo de
sempre surda ao longo de alguns anos. Essa luta, como se sabe, tomou contornos conhecimento. Mas enquanto os diversos informalismos abstratos aproximaram-se
geogrdficos expl{citos — Rio de Janeiro x Sdo Paulo. Mas, evidentemente, ndo se mais e mais do sensivel, do mitico, do plano roméntico da inspiracdo, as tendén-
passou nesse terreno. As explicagdes de Mario Pedrosa, girando em torno do teo- cias construtivas radicalizaram até o seu cardter racional, abstrato, buscando inte-
ricismo paulista e do espontanersmo carioca, centradas até sobre aspectos paisa- gré-la a ciéncia e a técnica no processo de transformagdo social. A arte deixava o
gfsticos, so apenas uma manobra circunstancial, sendo tdtica, para evitar uma seu lugar a sombra, fora do Logos, fora da Historia, e passava a integrar a ordem
questo decisiva cujos contornos nao estavam ainda claros. dos saberes prdticos e do conhecimento positivo.

A leitura construtiva da arte representou a seu tempo, nos anos 20 e 30, um passo
BASES DO PROJETO CONSTRUTIVO adiante, um passo decisivo. Abriu caminho para uma consciéncia inteligente dos
processos de produgdo em arte, contribuiu para desvelar sua opacidade: tornou
Rapidamente, vamos tracar os primeiros passos do concretismo no Brasil. No Rio possivel investigar os meios que colocava em ag4o enquanto liguagem, isto é,
enquanto sistema de significagaéo. E com isso atacou toda a tradi¢do metafisica
de Janeiro, com o infcio da década de 50, formou-se o Grupo Frente, de onde sai-
riam muitos futuros neoconcretos. A apresentacéo de Mario Pedrosa para a II ex-
atrelada a produgdo de arte no ocidente. Oucamos um dos principais tedricos
construtivos, Michel Seuphor, fundador (ao lado do uruguaio Torres Garcia) da re-
posigdo do grupo, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1955, nao vista ‘Cercle et Carré’: “A arte seré submetida a nossa vontade de certeza e pre-
mencionava o concretismo, nem sequer as tendéncias construtivas. E talvez néo
ciséo, aos nossos esforgos no sentido da consciéncia de uma ordem. Como tudo
pudesse — do grupo, além de Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica, Aluisio Car- aquilo que sai do nosso cérebro ou de nossas mos ser examinada, passar4 por um
vdo e Franz Weissman, fazia parte uma pintora primitiva, Elisa Martins Silveira.
Essa reunido era t(pica de um ambiente extremamente dispersivo e despreparado
rigoroso controle".
para abrigar o trabalho de arte enquanto pesquisa especffica. Mas representava jd As tendéncias construtivas sdo inicialmente uma resposta ao corte ocorrido no
um nucleo de reacdo. Os valores que se pode perceber nas palavras de Pedrosa séo
interior da produgdo de arte e em seu estatuto social a partir do cubismo. Tratava-
da ordem de uma politica de arte — ‘‘Ndo se juntam esses artistas em grupo por
se no apenas de transformar procedimentos, métodos e teorias de produ¢do, mas
mundanismo, pura camaradagem ou acaso. A virtude maior deles continua a ser a
repensar uma atividade cuja insercdo social j4 néo se fazia mais ‘‘naturalmente’’.
que sempre foi: horror ao ecletismo. Sdo todos eles homens e mulheres de fé, Era necessdrio reavaliar suas significagées mais amplas. O desenvolvimento do
convencidos da missdo revoluciondria, da missdo regeneradora da arte. Uma coisa
modo de produgdo capitalista colocara em crise a posigdo tradicional da arte, ao
0s une, e com a qual ndo transigem, dispostos a defendé-la contra tudo e todos, mesmo tempo em que criara condi¢6es para o seu estabelecimento como atividade
colocando-a acima de tudo e todos — a liberdade de criagao’’.
autonoma, com suas préprias instituig6es. Rompido o estatuto social da arte, rom-
A questdo, como se vé, ainda ndo era impor uma idéia construtiva da produgdo de pida a propria arte como entdo se apresentava.
arte. Era, primordialmente, livrar a arte das malhas do mundanismo e da condicao capitalista a essa nova situagao foi a organizacéo do mer-
A resposta da economia
de subitem de programas partidérios, dentro dos quais desempenhava um papel de
simples propaganda ideolégica. O Grupo Frente, a seu modo algo desarticulado, cado como conhecemos hoje. Um sistema com caracterssticas particulares e desti-
nado ndo apenas a absorver produtos de arte, mas a solicitd-los, a orienté-los, a
significava uma afirmagdo da especificidade do trabalho de arte e tentava instaurar
a possibilidade de poder pensd-la seriamente. A auséncia de uma posi¢do produtiva
dirigi-los. Um sistema com velocidade suficiente para acompanhar o processo de
firmada talvez fosse essencialmente tdtica: defender explicitamente a linguagem
produgdo e que funciona mais ou menos como um aparelho ideolégico: sua fun-
geométrica — macigamente dominante no interior do grupo — poderia ser uma ¢do social é registrar e acumular os sentidos dos trabalhos para, em seguida, devol-
manobra arriscada, que conduzisse a um isolamento ainda maior. vé-los a circulago devidamente inscritos com as marcagées das ideologias domi-
nantes. Um canal por onde estado obrigados a passar todos os trabalhos de arte, na
Basta pensar um pouco na situagdo da arte moderna naquele momento no pais. medida mesma em que pretendam sé-los. As tendéncias construtivas surgiram
Sem duvida, como escreve Gullar em 1960, Portinari era a figura dominante, se- como respostas poss{veis no plano da produgdo e, por extensdo, no plano da aco
guido talvez de Segall, Di Cavalcanti e Pancetti, entre outros. Esses artistas respon- cultural, a essa ruptura ocorrida em dois eixos: no meio da prépria inteligéncia do
diam a necessidades ideolégicas amplas — simplificando, digamos que seguiam em trabalho de arte e no modo de sua inser¢ao e circulacdo social. Dar, o seu desen-
busca de uma identidade nacional, voltados para o projeto da brasilidade — e se volvimento obedecer linearmente essa dupla preocupacao — a questdo sempre foi,
mantinham presos ao esquema tradicional de representagdo. A leitura que Portina- para as ideologias construtivas, construir uma arte que pudesse servir de modelo
10 a prépria constru¢do social. E dbvio que isso nem sempre acontece explicita ou AS “POLITICAS” CONSTRUTIVAS
manifestamente, mas € uma delimitagdo epistémica.
Comegar pela afirmacao de que essas diferencas eram resultado da radical diversi-
Ao contrério do dadafsmo e do surrealismo (respostas outras 4 mesma crise), os dade social entre os dois contextos € dbvio. Mas ndo apenas obvio 6, do ponto de
movimentos de extra¢do construtiva operaram sempre e necessariamente no senti- vista do método, obrigatério. Qualquer anélise de qualquer tendéncia construtiva
do de uma integrac4o funcional da arte na sociedade. A sua interven¢do é de natu- esté situada no centro da montagem de uma pol (tica cultural, isso porque mais do
reza diddtica, como todas as forcas liberais, acredita na Educa¢do com e maitis- que qualquer outra tendéncia esta se caracterizou por suas relacdes diretas com a
culo — 0 seu esfor¢o mais constante € no sentido de estetizar o ambiente social, polftica cultural dos estados, com a disponibilidade do sistema em admiti-la como
educar esteticamente as massas. Imediatamente apés o seu surgimento, assumiam agente de transformacdo estética do ambiente. A variagdo nas posicées estatais
mesmo um cardter quase messidnico: traziam a nova ordem plastica, adequada a frente a arte ¢ determinante no seio dos projetos construtivos, no modo como véo
nova harmonia social. Falavam para 0 novo mundo, para 0 novo homem. Nao é evoluir como proposta:se adotam uma perspectiva claramente reformista e utilita-
dificil imagind-los, enfim, como representantes estéticos da utopia capitalista, ria, se tendem a um utopismo especulativo ou se politizam a arte e buscam trans-
conselho cultural de um sdlido e liberal governo social-democrata. forméa-la numa arma ideoldégica.

Implicados nas malhas da ideologia do desenvolvimento tecnoldégico, na crenga de Para os artistas construtivos ocidentais — de Mondrian e Van Doesburg até Max
uma progressiva racionalizacéo das relag6es sociais, tendo como horizonte uma Bill e os concretistas — o trabalho de arte s6 podia ser pensado como inser¢ao soci-
hipotética sociedade onde arte e vida estabeleceriam antre si vinculos concretos e al sob duas formas: de um modo especulativo e sublimante (é 0 caso dos delfrios
descomprometidos de posigées de classe, “De Stijl, Suprematismo, ‘Cercle et vagamente platdnicos de Mondrian) e/ou visando uma integracdo quase necessa-
Carré’', Bauhaus e mais tarde um pouco a Arte Concreta, estavam empenhados riamente acritica no processo de produg&o vigente (Bauhaus em parte, Escola de
numa transformacao do trabalho de arte que pudesse conciliar os interesses desse Ulm). Quer dizer, ou bem se aceitava operar nas bases alienadas prescritas pelo
quadro geral. De um modo geral, desloca-se a posi¢ado ‘‘romantica’’ do artista, pen- estatuto da arte, imposto mais ou menos com a Revolugdo Francesa, e nesse caso
sando agora ndo mais como ser inspirado, restrito ao 4mbito mrtico da “‘criag4o" © projeto construtivo ficava comprometido, ou se tomava lugar na industria, os ar-
e sim como produtor social especializado. O artista passa a ser um produtor estéti- tistas correndo o risco de agirem diretamente em fungdo do sistema, transforma-
co (ainda estético . . . ), com autoridade delegada pela coletividade. dos até em seus agentes modernizadores.
Momento, como dissemos, positivista. A vontade de construgdo (o vouloir cons- E claro que essa viso esquematica no capta todas as nuances das posigSes em
truire de Torres Garcia) deveria erradicar os fantasmas que ainda envolviam a arte. jogo. Mas oferece base para a abertura de um processo de investigagdo cr/tica so-
Era a razéo, no campo agora da formalizacéo art/stica, em seu conhecido esforco bre as tendéncias construtivas, principalmente em torno de suas conquistas sociais.
para eliminar os resfduos do pensamento pré-cientffico. As tendéncias construti- Nao hd divida quanto a pertinéncia das criticas recentesa seus postulados, classi-
vas se colocam resolutamente ao lado da civilizagdo tecnolégica na luta pelo domr- ficando-os como invencivelmente reformistas. De uma maneira ou de outra, os
nio da natureza e pela racionaliza¢do dos processos sociais. O que havia de especi- Projetos construtivos ocidentais esto identificados com uma posi¢do polftica
ficamente transformador, para a producdo de arte, era basicamente sua afirmacao especffica: a social-democracia. E necess4rio entretanto estudar mais a fundo as
do cardter racional, ndo metaffsico, da arte e a investigag¢do que abriu nessa di- manobras e os mecanismos através dos quais isso se deu.
recdo.
O presente ensaio pretende, entre outras coisas, introduzir essa questéo em nosso
Pouco importa’ que as “‘idéias’’ de muitos artistas construtivos (como as de Mon- ambiente cultural e contribuir para um estudo mais concludente sobre as margens
drian, de teor teoséfico) estivessem no registro do del {rio religioso, nem que suas polfticas e ideolégicas da intervencao construtiva no Brasil.
préprias produgées (por exemplo: 0 Monumento a III Internacional, de Tatlin)
fossem invidveis concretamente, o que contou foi a disposi¢do positiva com que Analisemos os termos do programa do grupo reunido em torno da revista “De
enfrentaram a producdo da arte e 0 seu esforco para formular métodos e sistemas Stijl ", fundada em 1917 na Holanda. Ele nos parece, hoje, uma jdia do pensamen-
que sobrevivessem ao préprio produto como auténticos conceitos estabelecidos ao to idealista. Criar um idioma pldstico universal, baseado na estruturagao vertical/
longo de um trabalho de conhecimento,. Esses conceitos tinham como objetivo horizontal, e do qual estaria banida a maior dose possfvel de subjetividade, era o
principal assegurar a sequéncia da investigagao em arte em bases inteligentes e so- seu platénico desejo. Os artistas de “De Stijl’’ se moviam em torno de algo comoa
cializadas, ida hoje permanecem até certo ponto pertinentes na luta contra a Harmonia do Universo e acreditavam caminhar no sentido da descoberta de suas
idéia da arte como produto arcaizante, regio social retrégrada, mais ou menos leis. O curioso é que a arquitetura desse pessoal (Van Doesburg, Ritveld, Van
andloga a religio, como se investidos sobretudo de desejos de um tipo sublimado, Esteren) safa do idealismo quase espiritualista de seus postulados para encontrar
culpados e culpabilizantes, desempenhando uma funcdo regre: fa e reaciondria. um racionalismo formalista e, mesmo, o proprio funcionalismo.
As tendéncias construtivas em conjunto representavam acima de tudo uma a¢do Apesar do ineg4vel avanco que representou enquanto critica a metafisica deca-
no sentido de repropor um lugar social para a arte. Mas um lugar de fato ao sol, do dente do expressionismo, é claro que o grupo De Stijl ndo escapou, também ele,
lado das realizagées prdticas, e ndo mais a sombra, perto do sonho e do incons- da metaffsica. Mantinha-se no ambito do mesmo humanismo expressionista, a
ciente, num terreno mitico. Para isso, transformaram a estética num ramo do sa- posi¢do de seu desejo é que era 10 invés de uma arte consoladora, subje-
ber prdtico, com aplicag&o cotidiana, isto é, tentaram ao méximo conquistar essa tivista, presa ao terreno da terapia particular, ele projetava uma ordem miticamen-
posicdo em seu contato com os estados e as institui¢ées. te objetiva, calcada em delfrios simétricos, e que representava sobretudo uma in-
tervengdo paternal sobre a sociedade, a imposigéo de uma razéo autoritdria. E af
E necessdrio entretanto distinguir as varias posig6es em jogo no interior das cha- chegamos ao aparentemente misterioso ponto de contato entre o idealismo espi
madas tendéncias construtivas. Presas, como acreditamos, numa estrutura seme- tualista e o funcionalismo, com sua conhecida mecanizagdo das relagGes sociais e
Ihante, elas tiveram prdticas até certo ponto diversas e permitem esclarecimentos sua concepcdo positivista da sociedade. Nao deixa de ser revelador que todos os
teéricos fundamentais. Pode-se reuni-las, com um mfnimo de reducionismo indis- postulados do grupo De Stijl fossem adequados a uma sociedade paternalista e au-
pensdvel a qualquer trabalho tedrico, sob o mesmo titulo, mas ndo esquecer suas toritdria: a negac&o da subjetividade — tomada apenas e téo somente como terreno
especificidades mais significativas. Para o nosso interesse atual importa especial- do confuso e do informal —a énfase na ordem horizontal/vertical (o rompimento
mente as diferencas polfticas e as diferengas produtivas entre elas. E essas podem de Van Doesburg com Mondrian ocorreu em fung&o da op¢ao do primeiro de in-
ser detectadas, em linhas bésicas, numa andlise comparativa entre o construtivis- troduzir em seus trabalhos a diagonal . . . ), a busca de um idioma universal, gran-
mo soviético e os movimentos ocidentais. Tentemos extrair essas diferengas. de Forma que estaria além das especificidades locais, etc.
de
Ndo se trata de negar a contribui¢ao de artistas como Mondrian para o processo
rompimento de esquemas formais dominantes e, consequentemente, do estatuto
vigente da arte na sociedade. Mas de situar a area de funcionamento transforma-
dor de seu dispositivo e a margem em que se manteve preso as estruturas estabele-
cidas. O fato de s6 conseguir formular suas teorias de produgdo em bases metafi-
sicas, no interior do cfrculo magico da arte e fora da Historia, obriga a uma leitura
que detecte suas ambiguidades no registro correto. A meu ver, precisamente, NO
Lygia Clark
Circulo aberto, 1958

idealismo” (Gropius). As contradigées dessa colocago comegam com o uso ins- 11


trumentalizado, meta-histérico, de conceitos bésicos: a Bauhaus propos como
raz&o e como exigencias da realidade social o que era apenas a ideologia da classe
no poder e os interesses da produgdo capitalista”’,
A Bahaus, é claro, foi a solu¢ao historicamente possivel para os movimentos cons-
trutivos da primeira metade do século. O seu reformismo, o seu modo mecénico
de estabelecer vinculos entre o trabalho de arte e o restante da producdo social
resultaram menos de opgées politicas e pessoais de seus agentes do que das pres-
ses estruturais que recebiam na posic4o em que se encontravam. Essas pressdes
estruturais s6 fizeram crescer com a segunda metade do século (e com o desenvol-
vimento do capitalismo, 6 dbvio), levando ao surgimento de uma fissura dentro
das tendéncias construtivas e descaracterizando completamente algumas de suas
propostas mais consequentes. E é sem duvida no meio dessa fissura que aparece e
evolui o neoconcretismo.
seu recalque do politico e na sua dependéncia do plano tradicional da estética — a
arte no era pensada como pratica de conhecimento inserida num quadro pol tico
€ ideolégico, mas como busca, como aventura espiritual, no maximo como formu- O CONSTRUTIVISMO SOVIETICO
lagdo de imanéncias universais.
Embora preso de certo modo aos mesmos limites de produgao que caracterizavam
as ideologias ocidentais, é facil perceber que 0 construtivismo russo (1920) se
A BAUHAUS movimentava num ambiente diverso e produzia efeitos de outra ordem. Nao
apenas estava a frente no que se relacionava a experiéncia social da arte — uma vez
O momento sem dtivida mais representativo da questo construtiva na primeira que, por um momento, surgiu um leque de possibilidades nessa dire¢do — como o
metade do século foi a Bauhaus. Desde a fundagdo em 1919, na Republica de seu préprio projeto de produgdo de arte tinha intengées materialistas espectficas.
Weimar, na Alemanha, até 0 seu fechamento em 1933, com a ascensdo do nazis-
mo, a Bauhaus foi a sintese das ideologias construtivas na arte pés-cubista, ao mes- Enquanto Seuphor, por exemplo, argumentava com base em-um racionalismo in-
mo tempo em que tencionava estabelecer-se como um posto avangado de penetra- génuo, sendo m{tico, enquanto o grupo De Stijl especulava sobre a nova Harmonia
Go dessas ideologias na sociedade. Era um projeto amplo que inclufa a criac¢do de Universal, vagamente inspirados pelos delfrios teoséficos de Shoemaker, os cons-
métodos diddticos de transmissdo da arte e que possu(a implfcito uma proposta trutivistas soviéticos (chamando de construtivistas ndo apenas o grupo de Tatlin e
prdtica de integracdo social da arte. Tratava-se, em linhas gerais, de fundar uma es- Rodchenko, mas as tendéncias em debate entdo, os produtivistas, etc.) procura-
tética da civilizagdéo contemporanea que viria a informar todas as suas atividades. vam avangar no sentido de incorporar o materialismo dialético a essa regiao da ati-
O objetivo era a utilizagdo racional, humana e esteticamente progressista dos am- vidade humana que, por tradi¢&o, confinava com a religido — a arte. A questdo era
plos recursos industriais modernos. A arte deixaria, afinal, o seu tradicional terre- pensd-la e produzi-la de um modo materialista. Ougamos Alexei Gan, autor de
no especulativo, ingressando na tarefa de organizar o meio ambiente. “© Construtivismo”: “A primeira consigna do construtivismo ¢ a seguinte: abaixo
a atividade especulativa no trabalho de arte. Declaramos uma guerra sem quartel
Sinonimo de racionalismo no campo das artes (apesar de abrigar artistas como aarte’’.
Klee e Kandinski), a Bauhaus tornou-se também uma espécie de posi¢do “‘na-
tural’, moderna e progressista, quando se pensa na relagdo arte e sociedade. Como “A arte nunca foi algo distinto dos produtos surgidos da m&o do homem, nunca
atesta a Escola de Ulm, com os anos 50, os princfpios bésicos que nortearam a foi eterna nem estabelecida de uma vez por todas. Suas formas, seu significado
ag&o da Bauhaus permaneceram como o horizonte da pratica e dos interesses social, seus meios e seus objetivos foram se modificando a medida em que muda-
tedricos da quase totalidade dos movimentos construtivos, principalmente até o vam as técnicas e os sistemas econdmicos, sociais e politicos que condicionaram
infcio da década de 60. As premissas de integra¢do do trabalho de arte na pro- as diversas fases de desenvolvimento da sociedade”’.
dugdo industrial, as premissas funcionalistas que prescreviam a participaggo do
ligada 4 Teologia,a Metaffsica, a Mfstica. Os mar-
artista na prdtica de construgéo do novo ambiente, ainda eram o mével principal “A arte estd indissoluvelmente
da arte e formular
tentativa de estabelecer uma fungdo positiva xistas devem esforcar-se para explicar cientificamente a morte
das propostas construtivas em sua
os novos fendmenos do trabalho artfstico no novo ambiente histérico da nossa
para a arte no espaco social.
€poca’’.
Isso apesar de tudo, apesar da realidade das sociedades capitalistas demonstrar
os construtivistas para
insofismavelmente, ao longo de algumas décadas, o que significasse precisamente a “A teoria do materialismo histérico, na qual se baseiam
participagdo dos artistas na produgdo: o final de suas preocupa¢des com as fun- aprender a histéria em geral e as leis fundamentais do processo de desenvolvimen-
Ges da forma enquanto pratica estética e organizadora e 0 ingresso numa drea de to da sociedade capitalista, serve também como método para o estudo da Historia
competicdo e de apelo ao consumo, a forma representando uma pressdo autoritd-
da Arte. Esta ultima — como alias todos os fendmenos sociais — ¢ produto da
ria e classista, transformada em dispositivo de distribuicdo de status. O sonho do atividade humana, condicionada portanto ao ambiente técnico e econdmico onde
design, o seu projeto de “espiritualizagdo0” do cotidiano, o seu desejo de criar uma nasceu e se desenvolveu. Mas ao encontrar-se em relacdo direta com a arte, os
transcendéncia para o ambiente moderno, revelaram-se afinal resultado de um ra- construtivistas — no processo geral de estudo, com suas roupas de trabalho —
ciocfnio grosseiramente positivista e pequeno-burgués. Foram assimilados pelo sis- criam também pela primeira vez a ciéncia da historia do desenvolvimento formal
tema enquanto agentes mecdnicos da repartico do espaco social em niveis de con- da arte’’,
sumo, em mundos tangenciais que manipulam o desejo das classes segundo 0
imperativo da ascengdo. E servem a uma estratégia do capitalismo contemporaneo Como se vé, 0 construtivismo desloca a questéo central das tendéncias construti-
de canalizar as singularidades, mesmo as perversas, para o interior do dispositivo vas ocidentais: ela passa da estética para a pol(tica, da organizacdo estética do am-
biente para a construgdo politica e ideolégica de uma nova sociedade. O sentido
de consumo, produzindo o simulacro da libertagéo sexual, por exemplo.
Positivo que a Bauhaus, por exemplo, pretendia dar ao ensino da arte e a sua inte-
A partir do design é posstvel fazer uma andlise das ideologias construtivas e de sua graco social permanecia idealista (formalista) comparado ao projeto construti-
a prépria sociedade dentro da qual pretendia operar vista. Ndo s6 porque para as tendéncias ocidentais a arte seguia confinada a uma
profunda cumplicidade com
transformagées. O processo crftico da Bauhaus est em pleno curso e se concen-
autonomia mitica — haviam sempre regras produtivas como o esquema horizontal-
tra muitas vezes na prépria esséncia de sua polftica cultural. Vejamos o que diz
vertical, que eram erguidas a paradigmas metafisicos — como a sua projecdo social
ocorria, como vimos, no terreno do estético. A arte ndo cumpria, néo se pensava
“'Comunicacion”’ em seu volume sobre a Bauhaus: “‘Identificando a marginalidade
real do artista com a argumentagdo ideoldgica do romantismo oficial, a Bauhaus que pudesse cumprir, um papel de alguma forma politico. Nao existiam, por assim
pensava construir uma alternativa racionalista adequada as exigencias de ““humani- dizer, classes sociais para as tendéncias construtivas ocidentais, mas téo somente a
zago" da tecnologia industrial. Uma arte racionalizada era a garantia do compro- humanidade, o progresso linear da humanidade em uma civilizagdo cientifica e
misso social e o Unico meio de salvar ‘‘o lamentdvel abismo entre a realidade e o tecnolégica.
Lygia Clark trabalhando

12 Ao contrdrio, o construtivismo soviético evolu’a num ambiente que Ihe forgava a A racionalidade funcionalista dos construtivos percebia as propostas dada/stas e
uma atitude pol/tica frente ao trabalho de arte. Tratavase de colocd-la em alguma surrealistas como o prolongamento do contetido metaffsico dos expressionistase
regido da atividade revoluciondria — ou entdo entregé-la de vez as forcas reaciond- de seus esquemas formais retrégrados, Detectava, com mui Propriedade, os vin-
rias, combaté-la como instrumento dessas forgas. Por isso, quando se falava naque- culos que ligavam essa vanguarda as concepgées expressionistas, as fronteiras con-
le contexto em “‘organizar a vida’’ ndo se pensava apenas em racionalizar a presen- ceituais e ideolégicas dessas concepgées. Daj rejeité-las enquanto formulagées cul-
¢a do homem no interior da economia industrial. A politica, as manobras pol (tico- turais e situd-las como focos de rea¢o a uma mentalidade artfstica progressiva. E
ideolégicas necessdrias ¢ que orientavam a ago dos artistas, obrigados a se posicio- dbvio que isso ndo se passava no plano das obras de artistas isolados — é sempre
narem de um modo, digamos, ndo artistico, com relacdo a sociedade. A arte no Possivel lé-las de maneira diversa, dependendo do ponto de vista em que se colo-
era apenas uma atividade estética e humanizadora: era também um dispositivo ca o observador, Assim, Kurt Schwitters, dadafsta, tinha evidentes ligagdes com o
ideolégico pertencente a sociedade burguesa sobre o qual se devia investir. O obje- Projeto construtivo; Hans Arp foi dadafsta e expés sempre ao lado dos surrealistas
tivo era romper o seu estatuto tradicional, transformar suas fungdes ideoldgicas. e dos construtivistas. A distancia entre os movimentos deve ser estabelecida a par-
tir de consideragées mais amplas, da ordem de uma polttica cultural.
Dessa maneira, gragas as condi¢ées especificas nas quais operava, o construtivismo
soviético pode ser analisado como o momento mais agudo na sequéncia das ten- As tendéncias construtivas, é claro, tinham de inicio uma posi¢&o de leitura da
déncias construtivas da primeira metade do século. Foram suas as propostas mais histéria da arte bastante pertinente. Posi¢do ligada entre outras coisas ao movi-
produtivas sobre os pontos determinantes da quest4o: 0 modo como a arte deveria mento contfnuo do saber ocidental no sentido da cientifizagdo de seus postulados
se inserir socialmente e em que dire¢do, e o modo como seria produzida, em opo- da progressiva consciéncia, digamos, epistemolégica da necessidade de formalizar
si¢&o aos seus tradicionais mecanismos intuicionistas e para-religiosos. com rigor os dados de cada drea do conhecimento. O seu desejo era sobretudo re-
gular, objetivar, esclarecer e, afinal, aplicar. Mas, apesar de formarem o chamado
Ao inscreverem a participa¢do da arte numa luta pol/tica e ideolégica concreta e Movimento Moderno, apesar de seu projeto modernizador, apesar da valorizacdo
num sentido bem mais amplo do que simplesmente a de material de propaganda, do experimental na manipulacdo das linguagens e do seu ataque aos esquemas
Os construtivistas produziram uma ruptura decisiva em dois lances: o primeiro dominantes, permaneciam claramente presas a racionalidade e ao humanismo libe-
com respeito a posi¢do da arte na sociedade burguesa, abrindo caminho para que ral t(picos do século XIX. A prova disso é que mesmo suas manifestagdes mais tar-
escapasse ao confinamento do estético; e o segundo, coroldrio do primeiro, per- dias — jé na década de 50 — ndo conseguiram assimilar em seus dispositivos duas
mitindo que se pudesse pensd-la no campo das transformagées ideoldgicas. Era a teorias fundamentais do século XX e que se caracterizaram justamente por romper
manobra da ideologia dominante —a arte pela arte (leia-se: a arte restrita a um es- com os limites do século XIX :as teorias de Marx e Freud.
Pago social fechado e destinada a cumprir um percurso circular) — sendo desmon-
tada em seu eixo bdsico. Tomando radicalmente o pressuposto construtivo — a in- De um modo geral, o projeto construtivo se imaginava a continua¢do do sonho do
teligibilidade universal do trabalho plastico — os revolucionarios soviéticos luta- século XIX, transportado para o dom/nio da cultura e da arte. Nao havia propria-
vam para transformar a arte num instrumento social cuja prdtica estaria ao alcance mente um rompimento em relacdo ao mundo do sujeito cartesiano, ao mundo da
de todos — do desejo de todos — desobstrufda por instituigSes e separac¢des de
“objetividade” ideolégica e da razdo: as transforma¢ées construtivas eram locais,
classe. O projeto construtivista soviético era largamente coletivista, mas ndo auto-
ocorriam no interior das linguagens, ndo alcangavam o estatuto social dessas lingua-
ritério: a arte permanecia manifesta¢do de singularidades, e ndo mais de individua-
gens enquanto préticas. O seu desejo social ou bem era da ordem do utépico, sendo
lidades (resultante do conceito humanista de indiv/duo). do delirante, ou aspirava a uma integracdo funcional do modo de produ¢éo domi-
nante. A inscri¢do construtiva nao era, a rigor, critica.
Um estudo comparativo mais rigoroso poderia explicitar as operag¢6es espec(ficas
através das quais o construtivismo soviético eludiu em parte o reformismo carac-
terfstico do movimento construtivo ocidental. Para nés, interessados sobretudo na
Isso explica em parte a sua incapacidade estrutural de compreender aspectos do
surrealismo e, especialmente, do dadafsmo (e de Duchamp, em particular) no re-
penetracdo da ideologia construtiva no Brasil e, mais especificamente, na posi¢ao
gistro correto. Foram esses aspectos, fora de duvida, que serviram de suporte a
neoconcreta frente a essa ideologia, esse estudo é claramente impossivel. Mas nao
emergéncias cr/ticas surgidas mais Ou menos com os anos 60, uma parte delas rece-
seria, certamente, inutil: tudo o que disser respeito as ‘‘pol (ticas’’ em questao, no
bendo inclusive o rétulo de neodadafsmo. Estéo relacionados sobretudo com
interior do projeto construtivo, é esclarecedor e ajuda a situar muitas vezes 0
inconsciente de cada movimento, as suas posi¢ées de classe ndo conscientes, os li-
um desejo de explodir a arte enquanto prdtica social sublimadora — e conformis-
ta — e de se colocarem numa posicdo de combate contra a prépria ordem social.
mites enfim que demarcam sua pratica.
Na origem do desejo dadafsta e surrealista estava a recusa de pensar a arte e a lite-
ratura — a cultura mesmo — fora do contexto social e polftico e até de estabelecer
uma reflexdo autOnoma para cada disciplina. Eram até certo ponto irredut(veis a0
LIMITES DO PROJETO CONSTRUTIVO
seu corpo de idéias e as suas préprias producgdes, na medida em que aspiravam a
um movimento de transgress4o e violencia que os ultrapassava.
Reconstitufdo rapidamente o trajeto construtivo inicial, em cuja sequéncia o con-
cretismo e 0 neoconcretismo tomam lugar, é poss{vel discursar sobre os seus limi-
Havia um algo no dadafsmo, por exemplo, que fazia parte da necessidade de esca-
tes enquanto teoria de produgdo e enquanto proposta de a¢do cultural. O limite
das tendéncias construtivas, emergindo como afirmagdo da racionalidade e da par ao cerco da racionalidade ocidental. Seria, por assim dizer, o heterogéneo, o
selvagem, o gratuito e irracional que tinha paradoxalmente uma fungdo ideolégica
crenga no progresso, o lugar a partir do qual perdem a inteligéncia da situa¢do, foi
evidente: a de significar uma posi¢do crftica global frente ao sistema. O que o da-
representado historicamente pelo dadafsmo e pelo surrealismo (em que pesem as xeque ndo era apenas a linguagem da arte, ou a fun¢do da
dafsmo colocava em
significativas divergéncias entre eles). Dadafsmo e surrealismo s40 ‘‘o outro”’ das de relacdo vigentes entre o tra-
arte, mas sobretudo 0 estatuto da arte, os modos
tendéncias construtivas. Pode-se analisar esse par — construtivismo (no sentido
balho de arte e a vida social. A utopia surrealista e dadafsta (nesse ponto é sempre
amplo), de um lado, dadafsmo e surrealismo, de outro — como respostas culturais
possfvel aproximd-los) difere radicalmente da utopia construtiva: esta ultima res-
articuladas de modo diverso tendo em vista uma mesma situag&o: a faléncia dos
peita, em linhas gerais, a utopia capitalista, o seu movel é a racionaliza¢ado e a
valores (estéticos, filos6ficos, morais) do século XIX e 0 confronto com a realida- das relagdes sociais vigentes; a primeira esté ligada confusamente a
humanizag4o
de n&o ortodoxa; a realidade que explodia os limites do raciocfnio- estético vi-
um projeto revolucionério, no mfnimo a uma luta contra as estruturas de poder.
gente, do século XX.
As tendéncias construtivas, a exce¢do do construtivismo soviético, eram 0 préprio
Seria simples demais, seria belo demais reduzir mais uma vez um antagonismo cul- resultado de seu trabalho. Buscavam a delimitagdo de um campo operacional e 0
tural a um par que afinal se autocomplementaria: as tendéncias construtivas repre- reconhecimento social para a autonomia desse campo. Nos limites em que se pro-
sentando a tradicional corrente apolfnea, dadafsmo e surrealismo representando a punham era impossfvel a seus agentes se posicionarem criticamente em relacdo a
corrente dionisfaca. A posi¢do de estudo mais produtiva parece ser, no caso, anali- sociedade — como trabalhadores especializados, tinham um contato distante com
s4-las enquanto tentativas relativamente incapazes de compreender e agir sobre a polftica, ela permanecia um ideal, muitas vezes um ideal socialista, digase. Para
uma situagdo que escapava visivelmente, em muitos pontos, a seus programas. E esses ingénuos racionalistas, cultura era principalmente um fator de progresso da
preciso pensar as margens desses movimentos — o branco que se interpés entre civilizagdo e ndo um espaco social onde ocorriam as transformagées ideoldgicas.
eles e a realidade sobre a qual operavam — assim como assinalar as suas positivida- © desejo revolucionério que estava em jogo no dadafsmo e no surrealismo, que
des e as possibilidades que inauguram. Nao ¢ possivel analisar extensamente aqui levava a concep¢do de manobras crfticas que procuravam (também ingenuamente,
as diferencas entre elas, vejamos apenas as suas direc6es. 6 claro) atingir 0 conjunto do campo social, sé esteve presente (e sob formas bem
concretas) no construtivismo soviético, As tendéncias construtivas ocidentais limi- formas de fazer arte. Formas de transformar suas idéias em produtos artisticos 13
taram-se praticamente a fazer reivindicagées. E nos moldes vigentes. que tivessem um didlogo eficaz com a instituigdo.

De um modo geral, os agentes construtivos exorcizavam 0 ‘‘outro’’ dadafsmo e o O sujeito-artista Marcel Duchamp n&o € sem duvida mais uma vitima da ideologia
“outro” surrealismo com uma palavra magica: o romantismo. Reduziam as com- do saber racional do século XIX: sabe que est4 implicado num modo de conheci-
plexas expectativas e fracassos delas emergentes a simples resduos roménticos, a mento que nao se desenvolve alheia e platonicamente aos seus vinculos sociais;
sobrevivéncias anacrOnicas causadas por alguma falha essencial em perceber o Es- sabe que ser artista é tomar parte num jogo com regras estabelecidas e que a arte
pirito Moderno, a evolucdo da sociedade e da industrializag¢éo. O préprio manifes- 6 resultado de investimentos sociais concentrados sobre certa atividade, que no
to neoconcreto, em pleno ano de 1959, classifica o ‘‘par maldito’’ de retrégrado e pode ser definida por operagées técnicas, mas que pode ser individualizada, sem
reaciondrio. E, sem duvida, as coisas nao sdo tao simples e faceis de resolver. confundir-se com as ciéncias fi'sicas ou, digamos, com a culindria. Dar’ a possibili-
dade de compard-lo com Marcel Mauss como faz Marc le Bot: “Sua iniciativa,
Nao haé duvida de que, no campo da produgao visual, o surrealismo sempre se ca- quando inventa o ready-made e o introduz no museu, deriva de alguma maneira
racterizou pela manuten¢ao de esquemas formais gastos e ligados 4 ordem perspec- da sociologia ou da etnologia experimentais. Porque a sua demarche, naquela data,
tivista, E que a grande positividade do movimento construtivo foi empreender a parecia dar raz4o ao que Marcel Mauss dizia em substancia no mesmo momento:
quidag&o dessa ordem e com isso permitir 0 surgimento de leituras contempord- que era objeto de arte aquele que o grupo social reconhecia como tal no seu siste-
neas aos sistemas de significagdo espectficos da sociedade moderna. Enquanto o ma de valores" (“‘L’Arc’’ — Marcel Duchamp).
retérico surrealismo privilegiava a metdfora como recurso de representacdo, os
construtivos lutavam justamente para romper o espago metaférico em que estava A posi¢éo do sujeito-artista Marcel Duchamp, e possivelmente a posi¢do diante do
encerrada a pintura e para estabelecer uma teoria da produc4o visual, desligada jd dispositivo-arte que se pode extrair do dadaismo, representa um passo adiante
da representa¢do. Enquanto o surrealismo mantinha-se vinculado a uma concep- com relagdo as colocagées construtivistas. Um passo adiante em dire¢do ao enten-
¢4o mitica do trabalho de arte, os construtivos representavam um esfor¢o para dimento materialista da pratica da arte na sociedade contempordnea, seus limites e
tornd-lo uma producdo metédica, compreendida e transmitida como linguagem sua poss tvel eficdcia ideolégica. Entre outras coisas 0 dadai'smo inaugurou uma ve-
espectfica. locidade experimental, uma mobilidade com vistas a criac&o de novos esquemas,
Mas € impossfvel ignorar a opera¢do surrealista no conjunto do campo cultural:
as que acabou por se tornar para 0 artista contempordneo uma necessidade imediata:
questées levantadas pelos dispositivos crfticos de Breton e Bataille tornam muitas 6 sua obrigagdo andar mais depressa do que o mercado, aprofundando o seu traba-
vezes infantis e reformistas as teorizagdées de Seuphor ou, mais tarde, de Max Bill. Iho, de modo a adiantar-se ao inevitdvel processo de absor¢do e transformacdo
Um pintor t&o aparentemente académico como Magritte é hoje uma abertura tao ideolégica de seu produto.
importante de ser estudada como a de Mondrian, por exemplo. O que a linguagem Duchamp, por sua vez, introduziu radicalmente uma inteligéncia estratégica no
dada e a linguagem surrealista falavam s6 podia ser calado pelas tendéncias cons- centro do préprio processo de producdo de arte, antes confinado a uma disposi¢ao
trutivas: significavam o escandalo, a morte da razdo, o pessimismo ideolégico, a idealista, a uma relacdo indevassdvel entre o produtor e o produto. Essa relacdo
descren¢a no progresso linear que tentavam construir, Para além, muito além dos a ldégica seguinte. O contato com o conjunto de fatores externos que per-
obedecia
seus inécuos frutos underground, e obviamente de sua exploracdo pelos mass
mitiam a produgéo era vivido fantasticamente, através das propriedades do objeto.
media (seja o de Salvador Dali, seja o da industria cultural norte-americana), o sur- A arte como institui¢ao social, como histéria, se impunha autoritariamente ao seu
realismo colocou questées decisivas, para a pratica da arte inclusive:a questaéo do
servidor e mascarava as verdadeiras rela¢des que mantinha com ele. O sujeito-artis-
desejo na produgdo, a relacdo arte e polftica, a solidariedade da instituig¢do arte ta ficava colocado numa posi¢&o em que tudo o que podia fazer era aspirara um
com a ordem burguesa, o inconsciente freudiano, etc. ingresso nessa instituigdo que ndo se apresentava como tal. Mesmo as rupturas que
por acaso levasse a efeito nos esquemas de representac&o permaneciam simples
Através do surrealismo, as tendéncias construtivas recalcaram o pensamento de continuidades do ponto de vista da estrutura da institui¢ao. O artista vivia, enfim,
Freud. Ficaram a margem do radical deslocamento do sujeito cartesiano trazido © seu papel social através de um sistema de media¢do opaco — a instituic¢do-arte —
pela psicandlise, presos a antiga concepgdo racionalista do século XIX. Se de certo que o impedia de compreender politicamente o sentimento de sua pratica. O obje-
modo os surrealistas leram mal Freud — “romantizaram’’ Freud — os construtivos to de arte se tornava, para o seu produtor, o lugar onde se projetavam confusa e
n&o chegaram a ele. E seguiram atrelados a uma idéia mecdnica (as vezes delirante- imaginariamente nas quest6es levantadas pela sua prépria pratica e que s6 podiam
mente mecanica), objetivista, do processo de produ¢&o em arte; o sujeito-artista emergir daquela maneira como projecdes inconscientes, como indagagées metafi-
que se pode reconhecer impli mente em seus projetos é o mesmo sujeito da ci- sicas, etc.
éncia do século XIX, dominado pela ideologia do saber objetivo e inconsciente das As tendéncias construtivas pareciam ndo se dar conta do cardter institucional,
sis-
implicagées decorrentes de sua prépria posi¢ao na produgdo desse saber. Pode-se témico, da arte na sociedade contempordnea. Ao combaterem o antigo estatuto
dizer que as tendéncias construtivas substiturram a concep¢ao romantica e mitica social da arte — sua “irrealidade’’ — e postularem uma participacdo ativa na vida
do artista inspirado — 0 idealismo cldssico — por outra empirista: a idéia do artista no ambiente, pareciam se esquecer do mercado, por exemplo. Previam uma dis-
como produtor especializado, sem outras transcendeéncias ou implicacdes. solugéo da arte nos vdrios setores da produg4o industrial que ndo chegou sequer
a se esbogar na realidade. Sem duvida, sua produgdo informou decisivamente a ar-
Essa concepcdo “positivista’ da prdtica artrstica impedia a compreensdo rigorosa quitetura e o design, mas é necessdrio atentar para o nivel em que isso ocorreu. O
do seu significado nas sociedades capitalistas do século XX. Falhava de inicio em projeto global de “organizara vida’’ ndo resultou em programa prético de nenhum
n&o perceber a posi¢do da arte no conjunto do campo cultural e suas implica¢des governo, nem sensibilizou as indtstrias de um modo geral (a n&o ser, é claro, a
ideolégicas. Nao chegava a imagind-la como algo além de um exercicio estético, ou propria industria do design), E tornou-se, portanto, um ideal, um horizonte mais
de informagdo visual. Isto é, no conseguia enxergé-la como aquilo que era: um Ou menos distante na sequéncia do trabalho dos artistas. Com isso, sua prdtica per-
dispositivo, uma instituig¢éo, um circuito mais ou menos fechado, com Historia maneceu defasada e presa ao mesmo registro social por onde passava a pratica dos
formalizada (a famosa Histéria da Arte) e um mercado especrfico. expressionistas, por exemplo. O objeto de seu trabalho seguiu funcionando do
mesmo modo e estabelecendo com o seu produtor o mesmo relacionamento fan-
tasmético: paradigma de algo irrealizado, futuro, especular, murmurio prenhe de
DUCHAMP significages mal formuladas, imagindrias, regressivas, até.

Marcel Duchamp, evidentemente, n&o poderia ser um artista construtivo (embora E claro que nem Duchamp nem os dadarstas escaparam dessa situagao. Mas tam-
n&o fosse surrealista, apesar das liga¢ées com Breton). Estava colocado desde um pouco acreditavam que poderiam, nem basearam sua atua¢do nessa crenga. Inven-
ponto de vista crtico frente a arte, entendida j4 como institui¢do social que pos- taram, isto sim, uma nova distancia, uma estratégia de combate diferente, que
sufa leis préprias e cumpria determinada fungdo. Pensava desde ent&o o museu est4 se revelando muito mais produtiva desde a década de 60. Permitindo, sendo a
como algo mais do que um repositério de obras, a prépria moldura da presenga da positividade transformadora prescrita pelos construtivos, uma negatividade critica,
arte. A ruptura de Duchamp estd em sua prépria posigdo frente a arte, no ato mes- uma inser¢éo do trabalho de arte no campo dos conflitos ideolégicos e sua instru-
mo de pensé-la enquanto sistema integrado no campo ideoldégico da sociedade. mentalizacao nesse sentido. O interesse das posicdes de Duchamp, do dadaismo e
N&o s6 jamais se questionou sobre uma participacdo da arte na realizagdo do novo até do surrealismo esté provado pelo proprio desenvolvimento da produgdo de
ambiente — cerne do projeto construtivo — como descartou-se do mito da pesqui- arte da segunda metade do século: determinaram transformagées nas linguagens e
sa formal: por compreender as regras do funcionamento da institui¢do-arte, nos objetivos até mesmo de tendéncias construtivas. Como ocorreu com o préprio
Duchamp néo investigava formas para o objeto de arte, pesquisava diretamente neoconcretismo, é o que tentaremos demonstrar.

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