Maria Nova Eva
Maria Nova Eva
Maria Nova Eva
Dizemos tudo o que é preciso, ao menos em substância, em relação a Nossa Senhora, quando pronunciamos as
duas primeiras invocações da Ladainha: Santa Mãe de Deus, Santa Virgem das Virgens. As palavras Mãe de
Deus designam a dignidade única da maternidade divina que situa Nossa Senhora imediatamente depois do
Verbo encarnado, seu próprio Filho, acima portanto, de todos os bem-aventurados e de todos os anjos. A
precisão Santa, posta antes de Mãe de Deus, nos adverte que Maria foi dignamente preparada para sua missão
por uma plenitude de graças e de santidade; que ela preencheu dignamente esta missão com toda consciência e
caridade e que fez sua vontade de redenção que lhe manifestara seu Filho desde a visita do arcanjo.
Justamente porque o vocábulo Santa Mãe de Deus vai ao fundo do mistério de Maria, as definições da Igreja a
respeito de Nossa Senhora começaram por aí. O Concílio de Éfeso em 431, sob o impulso de São Cirilo, o ilustre
patriarca de Alexandria, proclama que Maria é aghia theotocos, sancta Dei genitrix, santa Mãe de Deus; e até o
fim do mundo, a segunda parte da Ave-Maria faz eco à definição do terceiro concílio ecumênico: Santa Maria,
Mãe de Deus, rogai por nós. Este eco não cessará com a consumação dos séculos; ele se repetirá por toda a
eternidade, e ressoará para sempre através da multidão sem números de anjos e santos; mas então rogai por
nós não terá mais a significação de súplica pois Deus estará todo em nós: traduzirá somente nossa exultação,
nosso reconhecimento no tremor sagrado de termos sido salvos e beatificados apesar de nossa capacidade radical
de danação: salvos pela Paixão de Cristo e a compaixão de Maria. Ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes
generationes.
Assim o título de Santa Mãe de Deus contém de alguma maneira tudo o que cremos sobre Maria; evoca
convenientemente todas as riquezas que nela estão. No entanto, a fim de ser mais explícita, a Ladainha
acrescenta um segundo título: Santa Virgem das Virgens. Por essa invocação compreendemos melhor a que
profundidade e de que maneira a Mãe de Deus é santa. Ela é santa estando toda reservada, toda consagrada a seu
Filho para a obra da Encarnação redentora. A reserva de Maria para o Cristo e a maternidade divina é de tal
natureza que não somente em sua alma mas também em seu corpo, ela só poderia pertencer a Deus. Na verdade,
qualquer homem bem nascido e que não tenha sentimentos baixos ou indignos, a respeito de Deus Santíssimo,
não poderia imaginar senão que a Mãe de Deus lhe fosse exclusivamente reservada e consagrada. Virgem antes
do parto, Virgem durante o parto, Virgem depois do parto: estas três afirmações do dogma cristão são de
soberana conveniência. Para imaginar que não fosse assim era preciso ter de Deus e dos atributos divinos um
sentimento bastante vulgar; no fundo seria preciso não ter o senso de Deus, não saber que os procedimentos
divinos são todos de honra, de dignidade, de respeito por sua criatura. A dignidade da mãe de Deus exige que ela
seja sempre virgem, e não só sempre virgem mas nunca tocada pela sombra do mal a começar pela mal
hereditário do pecado original[1].
Assim porque a Mãe de Deus não pode ter outra missão e santidade do que ser Mãe de Deus; porque ela realiza
uma tal missão e possui uma tal santidade em toda plenitude, por estas razoes a Mãe de Deus é a Virgem por
excelência. Ela está associada a seu Filho e à obra de seu Filho mais do que os doze apóstolos e os maiores
santos. Está associada como aquela por quem se realiza os mistérios da Encarnação redentora. Está associada
como a que foi capaz de dizer o “Fiat” à vontade do Verbo de Deus de se fazer homem para salvar os homens;
para reinar sem fim (e pela cruz) na casa de Jacob. Evidentemente Nossa Senhora é a única criatura cuja
associação ao mistério do Filho de Deus encarnado, redentor, atinge esta profundidade e intimidade. E não seria
associada a tal ponto se não estivesse totalmente reservada em seu próprio corpo imaculado. Assim dizer Virgem
das Virgens que dizer a mesma coisa que plenamente associada.
***
A partir daí podemos entrever a utilidade do vocábulo tradicional nova Eva. Foi empregado pelo filósofo São
Justino desde o século primeiro; o bispo de Lyon, Santo Irineu[2] por volta do ano 180 explicou-o longamente;
mais tarde o povo cristão cantou o Ave Maris Stella.
Sumens illud Ave
Gabrilis ore
Funda nos in pace
Mutans Evae nomen
Os antigos notaram que a saudação de Gabriel, Ave, era o contrário de Eva, nome latino da esposa perfeita que
Deus criou para Adão e que devia prevaricar com ele; aquela é nossa primeira mãe, mãe do gênero humano;
aquela que nos transmitiu uma vida decaída, ferida, impura em sua fonte.
Dilacerante lamentação. Mas sabemos, e Péguy sabia como nós, e o cantou em Nossa Senhora de Chartres, que
fomos levantados da primeira queda (não sem lutas e sacrifícios, mas verdadeiramente levantados); sabemos que
a falta de Eva foi lavada ; na mesma noite do primeiro pecado, Adão e Eva souberam pela boca do Pai que
seriam perdoados, eles e sua descendência e que uma filha de sua raça esmagaria a cabeça da serpente. Foi assim
que Deus consolou nossa mãe quebrada e destronada, antes mesmo que deixasse o Paraíso de deleitosas árvores.
Desde aquele momento, Eva teve a certeza de que o desastre seria reparado, que por uma de suas filhas, num
século longíquo ela se tornaria vitoriosa. O nome Eva seria restaurado por Maria. Mutans Evae nomen.
Isto quer dizer que Maria é nossa mãe, mãe de todos os homens, pela regeneração sobrenatural como Eva é a
mãe de todos os homens pela geração segundo a carne, o pecado e a morte. Isto quer dizer que na economia da
graça e da salvação, a criatura feminina leva precisamente aquilo que tem de mulher, assim como no destino do
pecado e da morte a criatura feminina representou um papel particular. Naturalmente Jesus Cristo é o único autor
e realizador de nossa salvação. Fora do nome de Jesus não há outro que seja dado aos homens para que sejam
salvos. Somente Ele tem poder sobre toda carne, somente Ele age no íntimo de toda liberdade para convertê-la e
sem diminuir esse poder, longe de apagar a cooperação humana, Ele a provoca e solicita. Este é um aspecto
essencial da conduta de Deus. Longe de dispensar a criatura de agir, Deus lhe comunica a dignidade da
causalidade, de modo que, na dependência de Deus, ela dá tudo o que é capaz, até o extremo de seus recursos.
Então, ainda que baste Jesus para a redenção do gênero humano e que somente Ele baste, longe de suprimir a
cooperação de Maria, a suscita e a sustenta. Esta cooperação de Nossa Senhora, longe de fazer sombra às
riquezas da salvação que estão no Cristo, é a mais bela manifestação, o mais magnífico efeito delas. Longe de
retirar qualquer coisa das prerrogativas da redenção que são unicamente de Jesus Cristo, a cooperação de Nossa
Senhora as faz resplandecer com um brilho novo, tão doce e atraente.
Com efeito, Nossa Senhora só coopera na Encarnação redentora porque este poder lhe foi dado pelo próprio
Jesus Cristo. Ela canta no Magnificat: “Meu espírito exulta de alegria em Deus meu salvador. Porque olhou para
a humildade de sua serva”.
Deus a olhou não para apagar seu pecado, porém, maravilha infinitamente mais espantosa, para a preservar de
todo pecado; olhou-a para avisá-la de sua intenção de salvação no momento em que se tornava seu Filho: olhou-
a para nela fazer germinar um amor sem limite de mãe imaculada e de mulher abençoada por essa humanidade
perdida da qual Ele se tornava o Salvador. – Em sua misericórdia, ele fez, primeiro, que eu, a pequena serva de
meu Deus, me tornasse sua mãe sempre virgem; depois, que os pecadores que crêem nele tornem-se sua Igreja e
vivam da vida divina graças à minha união com Ele. Cascatas de maravilhas. Degraus de misericórdia. E a mais
alta destas misericórdias é ter feito de mim sua mãe, pedindo ao mesmo tempo minha união para a vida da Igreja.
Sem dúvida, Maria, em sua relação com o Cristo, não é o mesmo que Eva em relação a Adão; Maria, ao
contrário de Eva, se acha em total dependência de Cristo; todo seu poder de santidade vem de Cristo. Neste
sentido, não se pode falar em paralelismo da primeira e da nova Eva. No entretanto é verdade que Maria é a nova
Eva junto ao novo Adão porque, indissoluvelmente e para sempre, lhe está associada na redenção de todos os
homens; porque, de fato, não há redenção sem uma tal união da Santa Virgem, porque a dependência total na
qual se encontra Maria em relação a seu Filho, longe de afastar sua intervenção não cessa de requerê-la.
Unicamente no caso do Filho de Deus ter nascido de sua mãe sem requerer dela união e cooperação com sua
obra de vida é que sua mãe não seria a nova Eva mas esta hipótese, tão contrária aos procedimentos divinos, que
estimulam a ação da criatura em vez de negligenciá-la, é igualmente contrária à realidade, ao decorrer histórico
do mistério. Desde o momento em que o Verbo se fez carne, com efeito, vemo-lo pedir o consentimento de
Maria, não apenas para encanar-se em seu seio, mas fazê-lo com um fim muito preciso: ser, para toda a
humanidade, Jesus, que quer dizer Salvador. E o Fiat de Maria vale para a Encarnação do Verbo, mas também
para o conjunto do mistério redentor. Por este Fiat ela coopera na nossa regeneração sobrenatural com o coração
e o amor de uma mãe, com a ternura e a força de uma mulher, abençoada entre todas. No entanto Jesus devia
realizar nossa salvação por um excesso de amor e graça no sacrifício do Calvário. Assim como, para se encarnar
em vista de nossa libertação ele quis o Fiat de sua mãe, assim, também, para consumar nossa libertação pela
cruz, quis o Stabat de sua mãe. Por este Stabat, pela compaixão sem limite de seu coração doloroso e imaculado,
Maria acaba sua cooperação para a nossa redenção com todo seu amor de mãe. Daí por diante, na redenção dos
homens, haverá por toda a eternidade esta associação, com Nossa Senhora. Verdadeiramente a nova Eva.
***
Perguntam-me o que isto pode mudar ou acrescentar à vida da Igreja, a vida espiritual de cada um de nós. Ora,
daí tiramos que nossa vida espiritual, nossa vida segundo a graça será e não pode deixar de ser dependente, em
sua própria fonte, desta intervenção maternal; que temos de ter a oração da mulher bendita entre todas na origem
de nossa conversão, de nosso crescimento no Cristo e nossa transformação no Cristo.
Já imaginaram de que maneira a Santa Virgem entrou nos sentimentos do Salvador desde o instante da
Encarnação até o sacrifício da cruz? Por pouco que se reze a Nossa Senhora ou se recite seu Rosário, adivinha-se
que ela participava dos sentimentos do Salvador de maneira diferente da dos apóstolos com a qualidade de
inteligência e de amor, a finura de sensibilidade espiritual, o sofrimento e a paz no sofrimento, absolutamente
reservados à Virgem das Virgens, à Santa Mãe de Deus. Estas são realidades interiores, mais fáceis de pressentir
do que de explicar com razoes demonstrativas. É inadequado formular em linguagem de prosador a tonalidade
particular que a mulher introduziu na ordem do coração e da inteligência. E quando se fala de pureza, de reserva,
de totalidade no dom de si mesmo, de sentimento sagrado de dependência, de imensa compaixão, quando de
tudo isto se tiver falado, estaremos ainda a sugerir de longe a complementaridade da mulher em relação ao
homem no domínio espiritual.
Em todo caso, por mais inadequado que seja defini-lo, o espiritual feminino se acha em Nossa Senhora sob sua
forma mais bela e mais sublime. E todas as nuances da caridade que marcaram a união de Maria e Jesus durante
a vida terrestre esplendem em sua intercessão celeste. Desde então Maria saberá como obter a nossa admissão
aos sentimentos de Jesus, um pouco como ela mesma foi admitida; saberá fazer que participemos de seus
mistérios com essa simplicidade e total adesão que são a parte reservada da nova Era aos pés do novo Adão.
***
Mas então não é o Espírito Santo que nos introduz nos mistérios de Jesus, nos faz entrar nos seus segredos e em
seu sacrifício? Não é o Paráclito que nos faz tomar parte na caridade de Cristo e espalha esta caridade em nossos
corações? “Muitas coisas ainda tenho a vos dizer mas não as podia suportar agora”, disse Jesus antes da sua
Paixão. “Mas o Espírito Santo vos ensinará todas as coisas e vos há de recordar de tudo o que vos tenho dito”
(Jo. 16, 12 e 14, 26). É na verdade o Espírito Santo quem nos transforma no Cristo. Mas quem atrai o Espírito
Santo para nossa alma? Que oração será bastante adequada ao Deus Santíssimo para fazer que venha o Paráclito
em nós e nos dispor seguir suas inspirações? Aspiramos a uma vida desprendida, passada toda ela no mistério de
Jesus, entregue a seu Espírito Santo e verdadeiramente mística. Mas este voto é irrealizável sem a prece de
Maria. Os textos revelados indicam-no suficientemente. Expõem à luz três ordens de coisas inseparavelmente
ligadas: a compaixão de Maria no Calvário; a missão, para a vida das almas, de que foi então investida, o
exercício desta missão durante o retiro do Cenáculo, antes de Pentecostes.
Ao pé da cruz de Jesus, manteve-se de pé, Maria sua mãe, tão unida ao sacrifício de seu Filho, tão dolorosa
quanto o podia estar esta mãe que é também a Virgem das Virgens; estava de pé, ao lado da cruz, nova Eva ao
lado do novo Adão, para a vida sobrenatural da humanidade. “Mulher, eis vosso filho”, lhe diz Jesus, designando
S. João, o apóstolo amado. Ora, quarenta dias mais tarde, após a Ressurreição do Salvador e sua Ascensão,
Maria se encontrava em oração no Cenáculo com o apóstolo João, os outros apóstolos e as santas mulheres.
Então levada, sustentada pela oração de Maria, a súplica deste pequeno grupo fiel obtém para a Igreja que
começava e para a Igreja de todos os séculos a efusão superabundante do Espírito Santo. A Igreja, com seu jorrar
inesgotável de vida sobrenatural, mas também com seu poder de levantar com pureza as forças da verdadeira
civilização, a santa Igreja, esposa sem mancha do Senhor Jesus, nunca teria começado sem a vinda do Espírito
Santo; mas o Espírito Santo não teria descido sem a oração de Maria. E a oração de Maria conta com este poder
porque Maria está associada à Paixão de Jesus para a vida das almas, como unicamente ele poderia estar. – Este
papel de Maria, tão visível em Pentecostes, prolonga-se por toda a história da Igreja e na conversão e na
santificação de todo cristão; na instauração e na defesa de toda ordem temporal honesta e digna do Cristo-Rei.
***
Observemos agora a maneira pela qual o Espírito do Cristo nos santifica: não nos dota de uma natureza
sobressalente, mas penetra de amor todas as forças vivas da natureza que nós temos, todos os recantos, todos os
segredos. O Espírito do Cristo modela para nós deste modo, um caráter cristão, um caráter transfigurado pela
espiritualidade cristã. Qualquer que seja nossa estrutura natural, se nos entregarmos a este Espírito, não traremos
mais as marcas de uma espiritualidade mais ou menos falsa: ou uma espiritualidade mole e flácida, efeminada,
que tem pena de si mesma e que se volta finalmente para a traição, baixezas vergonhosas para preservar o eu; ou,
ao contrário, endurecida, rígida, uma auto-suficiência feroz, e finalmente uma figura inumana. “Longe de nós os
heróis sem humanidade!” O heroísmo que endurece não é o verdadeiro. Em lugar de firmar, no interior do
homem, as forças nobres e verdadeiras, seca-se e mata-as; heroísmo sem coração, nem heróico nem cristão.
Quantos homens e mulheres são homens e mulheres no mau sentido da palavra. Tornar-se, pelo Espírito do
Cristo um homem ou uma mulher na acepção da palavra, quer dizer, um homem ou uma mulher na verdade da
graça, é este o nosso desejo imediatamente, logo que tomamos consciência de nossa regeneração pelo batismo.
Mas quem poderá dar-nos, com profundidade suficiente, nossa difícil educação? Uma intuição, uma paciência,
uma firmeza como Deus as põe no coração da mulher são indispensáveis. Há nuances que não chegamos a
perceber, um modo de fazer que nos escapa, se nos falta uma intervenção maternal; esta palavra dita baixinho,
este olhar que atinge imediatamente o segredo do coração, este gesto sem ruído de palavra. Assim, esta ação,
esta presença maternal é dada ao batizado e mesmo, misteriosamente, a todo homem que vem a este mundo. A
mulher bendita, a Mãe da divina graça, a nova Eva não deixa de se ocupar de nós. Sem dúvida é do Espírito
Santo que depende no fundo, nossa educação; nós nos tornamos plenamente filhos de Deus porque somos
conduzidos pelo Espírito de Deus (Rom. VIII, 14). Mas a visita do Espírito de Deus é implorada por Maria. Na
origem da ação do Espírito durante o tempo que esta ação se prolonga, até estarmos prontos para o Paraíso, a
Virgem está presente e não cessa de interceder. Ela o faz de pleno direito, a título soberano, em virtude de sua
união com Jesus, desde a Anunciação ao Calvário; ela o faz com este modo próprio de mulher bendita entre
todas; com seus incomparáveis dons de educadora, sua maravilhosa aptidão que desperta cada um dos humanos
para sua verdadeira vida segundo a graça. Mesmo sem nos dirigirmos especialmente a Maria, ela não deixará de
pedir a vinda e a ação do Espírito Santo em nós. Quanto mais forte e mais eficaz sua súplica será se nos voltamos
para ela com plena consciência e decisão. Mais ainda, podemos vir a Maria suplicando, com uma vontade firme,
que nos faça entrar em seus sentimentos e como que nos colocar em seu coração a fim de aprender por Maria
quem é o Cristo e como nos conformamos a Ele. É com o Rosário que tomamos esta atitude. Por ele, certamente,
a Virgem Maria fará nossa educação, nos obterá a graça de sermos transformados pelo Espírito de Jesus. (esta
ação particular de Maria não se exerce somente na formação de cada um de nós, mas também de maneira
análoga na formação das sociedades e sua humanização; tentaremos mostrá-lo em outra ocasião).
Não ignoro o que pode haver de falsidades e falcatruas na devoção a Maria como em outras manifestações da
vida espiritual; sei que tal devoto não faz muita honra a nossa Mãe na divina graça; nem pretendo que o recurso a
Maria seja infalível para obter para os cristãos que sejam cristãos de caráter. Afirmo somente que este é o
recurso normal e mesmo indispensável e seria loucura afastá-lo.
Seria também inépcia não querer que a mãe exista para educação espiritual. Seria sempre o desprezo de um dado
elementar: não haveria humanidade se Eva não estivesse ao lado de Adão, nem haveria regeneração sobrenatural
da humanidade se a nova Eva não tivesse pronunciado o Fiat, não tivesse aceitado o Stabat, não continuasse para
sempre sua intercessão no Paraíso em virtude da Anunciação e da Compaixão.
Tomemo-lo, assim como ele é, o mistério da Encarnação redentora: ele supõe a união inefável da Santa Mãe de
Deus a Jesus nosso Salvador. Aceitemos o quanto pudermos e não apenas como um ato de fé fugidio sem
nenhuma conseqüência mas na oração prolongada e na disposição habitual de nosso coração, a parte singular de
Maria na Encarnação redentora, a parte da criatura feminina extraordinariamente exaltada: Maria é a Santa Mãe
de Deus, a Virgem das Virgens, a nova Eva.
Notas:
[1] Alguns raciocinantes observam aqui que essas exigências da santidade de Maria se tomam do ponto de vista
do poder ordenado do Senhor Deus, não em consideração do seu poder absoluto. Respondemos que meditamos
sobre os mistérios divinos a partir justamente do que Deus ordenou como um fato; a partir de seu poder
ordenado; deixando aos espíritos quiméricos a estéril ocupação de fabricar uma teologia romanceada sobre o que
Deus poderia ter feito em termos de poder absoluto.
[2] Adversus Haereses, Contre les Heresies, 1. III seção 3, texto, tradução e notas na edição do P. Sagnard O.P.
(Ed. Du Cerf, coleção Sourcer Cletiennes). — Ver também Bossuet, Elevações sobre os Mistérios, oitava
semana, 2ª e 3ª elevação.
NOTAS:
Irineu, bispo de Lião, da segunda geração após os apóstolos, discípulo de Policarpo (discípulo do
próprio Apóstolo João), viveu no século II e afirmou diversas doutrinas marianas. Vejamos
algumas delas:
A) Mãe de Deus
Embora Irineu não utilze o título grego “Theotókos” (“Portadora de Deus”), afirma a doutrina da
maternidade divina, falando algo muito semelhante:
“A Virgem Maria, sendo obediente à sua palavra, recebeu do anjo a boa nova de que portaria
(portaret) Deus” (Irineu de Lião, Contra as Heresias, V, 19, 1)
B) Mãe da Igreja
Devido ao paralelismo Maria-Eva, para Irineu o ventre de Maria “regenera os homens em Deus”
(Irineu de Lião, Contra as Heresias, IV, 33, 11; PG 7, 1080). Para Irineu, o cristão batizado,
recebe um “novo nascimento” que acontece no “seio da Virgem Maria” (cf. Irineu de Lião, Contra
as Heresias 4, 33, 4). Aí é deixado implícito a doutrina da maternidade espiritual de Maria.
C) Nova Eva
O século II é marcado pelo belíssimo paralelo entre Maria e Eva. Tudo começa com Justino de
Roma, e logo depois ele é (muito) aperfeiçoado por Irineu que escreve:
“Assim é que a desobediência de Eva foi resgatada pela obediência de Maria. Com efeito, o nó
que a virgem Eva atou com a incredulidade, Maria o desatou com a fé.” (Irineu de Lyon, Contra
as Heresias 3,22,4).
“Da mesma forma que aquela (Eva) foi seduzida para desobedecer a Deus,esta (Maria) foi
persuadida a obedecer a Deus, por ser ela, a Virgem Maria, a advogada de Eva. Assim, o gênero
humano, submetido à morte por uma virgem, foi dela libertado por uma Virgem, tornando-se
contrabalanceada a desobediência de uma virgem pela obediência de outra.” (Irineu de Lyon,
Contra as Heresias 5,19).
“Foi por meio de uma virgem (=Eva) desobediente que o homem foi golpeado, caiu e morreu. Da
mesma forma, é pela Virgem [Maria], obediente à Palavra de Deus, que o homem (…) encontrou
de novo a vida (…) Era justo e necessário que Adão fosse restaurado em Cristo, a fim de que o
mortal fosse absorvido e tragado pela imortalidade e Eva fosse reconstruída em Maria.
Deste modo, uma Virgem feita advogada de uma virgem, cancelou e anulou a desobediência de
uma virgem com a sua obediência de virgem.” (Irineu de Lyon, Demonstração da Pregação
Apostólica 33).
D) Co-Redentora da Humanidade
De acordo com Irineu, devido ao importantíssimo papel de cooperação de Maria no projeto da
redenção, dando o seu Fiat, “tornou-se causa de salvação para si e para todo o gênero humano”
(Irineu de Lião, Contra as Heresias 3, 22, 4;. PG 7, 959). Para ele, fomos libertados “também” por
Maria, no sentido da enorme cooperação de Maria no plano da Redenção:
“Da mesma forma que aquela (Eva) foi seduzida para desobedecer a Deus,esta (Maria) foi
persuadida a obedecer a Deus, por ser ela, a Virgem Maria, a advogada de Eva. Assim, o gênero
humano, submetido à morte por uma virgem, foi dela libertado por uma Virgem, tornando-se
contrabalanceada a desobediência de uma virgem pela obediência de outra.” (Irineu de Lião,
Contra as Heresias V,19).
E) Mulher de Gênesis 3,15
Cipriano de Cartago e Irineu, afirmavam em alta voz que Jesus é quem esmaga a cabeça da
Serpente. Por isso, criam que a “Mulher” do versículo 15 era Maria, pois ela era a mãe de Jesus. É
por causa disso que Irineu liga Gn 3,15 com Gl 4,4, deixando implícito que a Mulher da carta (aos
Gálatas) é a mesma Mulher de Gênesis 3,15; e ele deixa claro: O diabo não teria sido vencido com
justiça se Jesus não tivesse nascido desta mulher, no caso Maria; já que foi por uma Mulher (Eva)
que a humanidade caiu.
“Portanto, recapitulando todas as coisas, Cristo assumiu também a luta que travamos contra nosso
inimigo. Atacou e venceu aquele que no princípio, em Adão, nos reduzira ao cativeiro, e calcou
sua cabeça, como lemos no Gênesis: Deus disse à serpente:
“Porei inimizade entre ti e a mulher e entre tua descendência e a dela; esta te esmagará a cabeça e
tu lhe ferirás o calcanhar”
(Gênesis 3,15).
Desde esse momento pois foi anunciado que esmagaria a cabeça da serpente aquele, semelhante a
Adão, que devia nascer de Virgem. E é esta descendência de que fala o Apóstolo na carta aos
Gálatas: “A lei foi estabelecida até que chegasse a descendência a quem a promessa fora feita”
(Gálatas 3,19).
E ainda explica mais claramente na mesma carta ao dizer: “Quando chegou a plenitude dos
tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher” (Gálatas 4,4).
O inimigo não teria sido vencido com justiça se não tivesse nascido de mulher o homem que o
venceu, pois fora por meio de mulher que ele dominara o homem , opondo-se a ele desde o
princípio.
Por este motivo é que o próprio Senhor declara ser o Filho do homem, recapitulando em si o
primeiro homem a partir do qual fora modelada a mulher. E assim como pela derrota de um
homem nossa raça desceu para a morte, pela vitória de outro homem subimos novamente à vida,
e, como a morte triunfara sobre nós por um homem, assim todos nós triunfamos da morte por um
homem.
O Senhor não teria recapitulado em si a antiga e primeira inimizade contra a serpente e não teria
cumprido a promessa do Criador e nem o seu mandamento se tivesse vindo de outro Pai. Mas,
sendo um só e idêntico aquele que, no princípio, nos modelou e, no fim, enviou seu Filho, o
Senhor cumpriu verdadeiramente o seu mandamento nascendo de mulher, aniquilando o nosso
adversário e completando no homem a imagem e semelhança de Deus. (…) ” (Irineu de Lião,
Contra as Heresias, V, 21,1.)
Contra as Heresias, segundo Santo Irineu de Lião (180 d.C):
“Com efeito, a Igreja espalhada pelo mundo inteiro até os confins da terra recebeu dos apóstolos e
seus discípulos a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e a terra, o mar e tudo quanto
nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito
Santo que, pelos profetas, anunciou a economia de Deus; e a vinda, o nascimento pela Virgem”
(Contra as Heresias [I livro] 10,1).
“Cerinto [herege], asiático, ensina que o mundo não foi feito pelo primeiro Deus, mas por uma
Potência distinta e bem afastada da Potência que está acima de todas as coisas, que não conhecia o
Deus que está acima de tudo. Jesus, segundo Cerinto, não nasceu da Virgem, porque isto lhe
parecia impossível” (Contra as Heresias [I livro] 26,1).
“Jesus Cristo, Filho de Deus, o qual, pela sua imensa caridade para com os homens, a obra por ele
modelada, submeteu-se à concepção da Virgem para unir por seu meio o homem a Deus” (Contra
as Heresias [III livro] 4,2).
“Era, ao mesmo tempo homem para poder ser tentado e Verbo para poder ser glorificado. A
atividade do Verbo estava suspensa para que pudesse ser tentado, ultrajado, crucificado e morto; e
o homem era absorvido quando o Verbo vencia, suportava o sofrimento, ressuscitava e era levado
ao céu.
É, portanto, o Filho de Deus nosso Senhor, Verbo do Pai e ao mesmo tempo Filho do homem, que
de Maria, nascida de criaturas humanas e ela própria criatura humana, teve nascimento humano,
tornando-se Filho do homem.
Por isso, o próprio Senhor nos deu um sinal que se estende da mais profunda mansão dos mortos
ao mais alto dos céus, sinal não pedido pelo homem, porque sequer poderia pensar que uma
virgem, permanecendo virgem, pudesse conceber e dar à luz um filho, nem que este filho fosse o
Deus conosco” (Contra as Heresias [III livro] 19,3).
“Foi, portanto, Deus que se fez homem, o próprio Senhor que nos salvou, ele próprio que nos deu
o sinal da Virgem” (Contra as Heresias [III livro] 21,1).
“Único e idêntico é, pois, o Espírito de Deus que nos profetas anunciou as características da vinda
do Senhor e que nos anciãos traduziu bem as coisas profetizadas. Foi ainda ele que, pelos
apóstolos, anunciou ter chegado à plenitude dos tempos da adoção filial, que o Reino dos céus
estava próximo e que se encontrava dentro dos homens que criam no Emanuel nascido da
Virgem” (Contra as Heresias [III livro] 21,4).
“Da mesma forma, encontramos Maria, a Virgem obediente, que diz: “Eis a serva do Senhor,
faça-se em mim segundo a tua palavra”, e, em contraste, Eva, que desobedeceu quando ainda era
virgem. Como esta, ainda virgem se bem que casada — no paraíso estavam nus e não se
envergonhavam, porque, criados há pouco tempo ainda não pensavam em gerar filhos, sendo
necessário que, primeiro, se tornassem adultos antes de se multiplicar —, pela sua desobediência
se tornou para si e para todo o gênero humano causa da morte, assim Maria, tendo por esposo
quem lhe fora predestinado e sendo virgem, pela sua obediência se tornou para si e para todo o
gênero humano causa da salvação.
É por isso que a Lei chama a que é noiva, se ainda virgem, de esposa daquele que a tomou por
noiva, para indicar o influxo que se opera de Maria sobre Eva. Com efeito, o que está amarrado
não pode ser desamarrado, a menos que se desatem os nós em sentido contrário ao que foram
dados, e os primeiros são desfeitos depois dos segundos e estes, por sua vez, permitem que se
desfaçam os primeiros: acontece que o primeiro é desfeito pelo segundo e o segundo é desfeito em
primeiro lugar.
Eis por que o Senhor dizia que os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros. E o
profeta diz a mesma coisa: Em lugar dos pais nasceram filhos para ti. Com efeito, o Senhor, o
primogênito dos mortos, reuniu no seu seio os patriarcas antigos e os regenerou para a vida de
Deus, tornando-se ele próprio o primeiro dos viventes, ao passo que Adão fora o primeiro dos que
morrem.
Eis por que Lucas, iniciando a genealogia a partir do Senhor subiu até Adão, porque não foram
aqueles antepassados que lhe deram a vida, e sim foi ele que os fez renascer no evangelho da vida.
Da mesma forma, o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria, e o que
Eva amarrara pela sua incredulidade Maria soltou pela sua fé” (Contra as Heresias [III livro]
22,4).
“Quando o Senhor veio de modo visível ao que era seu, levado pela própria criação que ele
sustenta, tomou sobre si, por sua obediência, no lenho da cruz, a desobediência cometida por meio
do lenho. A sedução de que foi vítima, miseravelmente, a virgem Eva, destinada a varão, foi
desfeita pela boa-nova da verdade, maravilhosamente anunciada pelo anjo à Virgem Maria, já
desposada a varão. Assim como Eva foi seduzida pela fala de anjo e afastou-se de Deus,
transgredindo a sua palavra, Maria recebeu a boa-nova pela boca de anjo e trouxe Deus em seu
seio, obedecendo à sua palavra. Uma deixou-se seduzir de modo a desobedecer a Deus, a outra
deixou-se persuadir a obedecer a Deus, para que, da virgem Eva, a Virgem Maria se tornasse
advogada. O gênero humano que fora submetido à morte por uma virgem, foi libertado dela por
uma virgem; a desobediência de uma virgem foi contrabalançada pela obediência de uma virgem;
mais, o pecado do primeiro homem foi curado pela correção de conduta do Primogênito e a
prudência da serpente foi vencida pela simplicidade da pomba: por tudo isso foram rompidos os
vínculos que nos sujeitavam à morte” (Contra as Heresias [V livro] 19,1).
13 MARÇO 2019
ESTUDOS PATRÍSTICOS
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Todos os que escreveram sobre «Maria, mãe dos homens» ficaram contentes por
terem encontrado doutrina a respeito dela em Santo Ireneu. Mas todos eles, tanto
quanto eu me dei conta, se omitiram de assinalar as duas passagens onde o bispo de
Lião enuncia da maneira mais formal o pensamento que lhe é mais caro . A mãe de
[1]
na morte, é preciso nascer de novo para ter parte na vida. E é esta geração nova
que, pela fé, é a «generatio ex virgine» [geração que procede da virgem]. Ora o
acrescento final não é senão um aposto ao que precede, e Massuet construiu muito
bem: «… si non transeat in novam generationem mire et inopinate a Deo, in
signum autem salutis datam, eam videlicet regenerationem quae est ex virgine per
fidem» [N.T.: … se não passar para a nova geração, dada por Deus maravilhosa e
inesperadamente, em sinal de salvação, isto é, aquela regeneração que procede da
virgem por meio da fé]. A identidade da «generatio nova» [nova geração] e da
«regeneratio ex virgine» [regeneração procedente da virgem] é assim
reconhecida e é preciso partir daí para determinar o sentido real das palavras «ex
[3]
Mas agora trata-se destas duas passagens e do que Ireneu quis aqui dizer. Ora
parece evidente que ele não falou da Igreja, mas unicamente de Maria.
Para a segunda passagem, o contexto – já o vimos – não permite nenhuma dúvida.
Aquela que regenera os homens é aquela de quem nasceu o próprio Cristo.
Massuet, por outro lado, argumenta apenas com uma pretendida impossibilidade de
atribuir a uma outra que não seja a Igreja a regeneração dos homens: «Nec enim
haec appositio, “eam quae regenerat homines in Deum”, ulli alteri quam
Ecclesiae convenire potest» [N.T.: Com efeito, este aposto: “aquela que regenera
os homens para Deus”, não pode referir-se a mais nenhuma outra senão à Igreja].
Veremos imediatamente o que é preciso pensar acerca disto: o ilustre editor poderia
muito bem ter sido aqui vítima de alguma ideia preconcebida.
Vamos à primeira passagem. O seu contexto parece, antes de mais, muito menos
decisivo. Tão pouco o é, aliás, no entender de Massuet, pois, para fazer reconhecer
a Igreja sob o nome de «a virgem», recorre à segunda passagem: «Per virginem hic
intellegit auctor, non B. Mariam Christi matrem, sed Ecclesiam, uti constat ex loco
parallelo infra n. 11» [N.T.: Por virgem o autor entende aqui não a Bem
Aventurada Maria, mãe de Cristo, mas a Igreja, como consta do lugar paralelo
abaixo no nº 11]. Mas, na realidade, o contexto aqui também obriga a entender toda
a passagem como referindo-se á Virgem Maria.
Como já vimos, há identidade entre a «regeneratio ex virgine per fidem»
[regeneração procedente da virgem por meio da fé] e a «generatio nova, mire et
inopinate a Deo, in signum salutis, data» [nova geração, data por Deus maravilhosa
e inesperadamente, em sinal de salvação]. Ora esta geração nova, maravilhosa
etc… é, sem dúvida nenhuma, a geração virginal do Verbo incarnado. Ela é, com
efeito, segundo o paralelismo com as frases que precedem, a via pela qual Deus
veio ao encontro do homem e é ela que coloca os Ebionitas fora da capacidade de
explicar a obra da salvação, porque a negam. Mas ela é também, não menos
evidentemente, segundo o que se diz aqui mesmo e na frase que vem a seguir , a [6]
Cristo são os passos da própria humanidade. Tal como nós próprios desobedecemos
todos em Adão, tal como nós nos tornamos nele os devedores de Deus, e tal como –
numa palavra que diz tudo – nos tornamos mortos em Adão, assim também nós
obedecemos, quitamos nossa dívida e recobramos a vida em Cristo . Esta [9]
participação na sua vida e nas suas obras tem, sem dúvida, como condição, para se
tornar actual, a nossa união com ele pela fé; porém, se fizermos a nossa ligação
voluntária a este irmão mais velho da família humana providencialmente
reconstituída, o que ele próprio faz somos nós já que o fazemos nele.
Ora a obra da nossa restauração, da nossa recuperação, da nossa «regeneração», se
ela se consumou na morte e ressurreição de Cristo, começou no entanto
[10]
pelo facto de nela estar presente Deus, que é o princípio da vida, encontra-se já
vivificada e tornada incorruptível12. Daí que, quando Deus cumpriu este prodígio
incrível da Virgem Mãe, a salvação começou já a cumprir-se para os homens ; já [12]
nosso cativeiro; Maria é causa da nossa salvação e autora da nossa libertação: eis a
mãe que nos gera para a morte e a mãe que nos regenera para a vida de Deus.
Também é quase neste termos que a mesma ideia se encontra num outro capítulo.
Trata-se sempre da obediência de Maria à palavra do anjo; Santo Ireneu a opõe à
desobediência de Eva causada pela serpente: «Como o género humano foi forçado a
morrer por uma virgem, é por uma virgem que ele é salvo. Assim a balança
mantém o equilíbrio: a desobediência virginal contrabalança com a obediência
virginal…; a astúcia da serpente é vencida pela simplicidade da pomba e os laços
que nos tinham amarrado à morte são desfeitos»17.
Nesta palavra ‘regeneração’ está o pensamento expresso nas duas passagens: a
aceitação por parte de Maria de ser a mãe de Cristo livra-nos da morte e, portanto,
faznos renascer para a vida.
Por outro lado, esta relação entre a nossa regeneração e a geração virginal é
lançada por Santo Ireneu contra todos os que negam a união em Cristo de uma
divindade e de uma humanidade reais. Ele insiste nisso particularmente nas duas
passagens seguintes, que nós justapomos à primeira das que nos ocupam, para
conseguirmos mostrar como a menção da Igreja, como autora da nossa
regeneração, lhe é estranha.
III, 19, 1 IV, 33, 4 V, 1, 3
«Qui nude tantum eum dicunt «Quemadmodum relinquet «Vani autem Ebionaei,
ex Joseph generatum, mortis generationem, si non in unitionem Dei et hominis per
perseverantes in servitute novam [transeat] fidem non recipientes in suam
pristinae inobedientiae, generationem mire et animam, sed in veteri
moriuntur; nondum commisisti inopinate a Deo, in signum generationis fermento
Verbo Dei Patris… Ignorantes salutis, datam, quae est ex perseverantes, neque
eum qui ex Virgine est virgine per fidem, intelligere volentes
Emmanuel, privantur munere regenerationem. Vel quam quoniam… [Deus] operatus
ejus, quod est vita æterna: non adoptionem accipient a Deo, est incarnationem eius [id
recipientes autem Verbum permanetes in hac genesi quae est, Filii], et novam ostendit
incorruptionis, perseverant in est secundum hominem in hoc generationem, uti
carne mortali, et sunt debitores mundo?» (M. 1074-1075). quemadmodum per priorem
mortis, antidotum vitae non generationem mortem
accipientes. Ad quos Verbum haereditavimus, sic per
ait: “…ὑμεῖς ὡς ἄνθρωπου generationem hanc
ἀποθνήσκετε”. Ταῦτα λέγει haereditaremus vitam.
πρὸς τοὺς μὴδεξαμένους τὴν Reprobant itaque hi
δωρεὰν τῆς υἱοθεσίας, ἀλλ’ commistionem vini coelestis
ἀτιμάζοντας τὴν σάρκωσιν τῆς et solum aquam saecularem
καθαρᾶς γεννήσεως τοῦ Λόγου volunt esse, non recipientes
τοῦ Θεοῦ, καὶ ἀποστεροῦντας Deum ad comistionem suam»
τὸν ἄνθρωπον τῆς εἰς Θεὸν (M. 1122-1123).
ἀνόδου» (M. 938-939).
[N.T.: Os que simplesmente [N.T.: Como é que deixará [o [N.T.: Ineptos são os
dizem que ele nasceu de José, homem] a geração da morte, se Ebionitas, que não aceitam na
perseverando na escravidão da não passar para a nova geração sua alma a união de Deus e do
antiga desobediência, morrem; dada maravilhosa e homem pela fé, mas
tu ainda não te misturaste ao inesperadamente por Deus perseveram no velho
Verbo de Deus Pai… Ignorando como sinal de salvação: uma fermento da sua geração, não
que aquele que procede da regeneração que procede da querendo entender porque
Virgem é o Emanuel, privam-se virgem por meio da fé? Ou Deus operou a sua
do seu dom, que é a vida eterna. receberão de Deus a adopção, Incarnação, ou seja, a
Porém, não recebendo o Verbo se eles permanecem neste Incarnação do Filho, e
da incorruptibilidade, nascimento que é segundo o mostrou a nova geração, para
perseveram na carne mortal e homem neste mundo?] que, tal como nós herdamos a
são devedores da morte, não morte na anterior geração,
recebendo o antídoto da vida. A assim herdássemos a vida
estes o Verbo diz: “… vós como nesta geração. Estes reprovam
homens morrereis”. Ele dirige assim a mistura do vinho
estas palavras aos que, celeste e só querem ser a água
recusando receber o dom da deste mundo, não aceitando a
adopção, desprezam esta sua mistura com Deus]
geração sem mancha, que foi a
Incarnação do Verbo de Deus,
privando o homem da sua
ligação a Deus.]
As três passagens são tiradas duma argumentação contra os Ebionitas e, em cada
uma, a «geração virginal», que estes hereges rejeitam, apresenta-se como a
«geração nova» da qual eles se excluem pela mesma razão. Negá-la, com efeito, é
«morrer» ou sobretudo é «perseverar na sua carne mortal», permanecer «devedor
da morte», «escravo da primeira desobediência»; mas tudo isto acontece, porque há
uma privação do «antídoto da vida» que é o Verbo, há um «não aceitar a sua
mistura com Deus» – «ad commistionem suam» – há, por outras palavras, um
«permanecer com o fermento da morte da geração primitiva», um «nascer apenas
segundo os homens e não tomar parte na adopção divina». A geração virginal ou
nova opõe-se, portanto, è «primeira geração», «à geração segundo os homens» e é
«por ela que nós herdamos a vida, tal como foi pela outra que nós herdámos a
morte». Sem dúvida, a fé é necessária; ela é para cada um de nós a condição
colocada à nossa apropriação actual e pessoal do benefício concedido em Cristo e
por Cristo a toda a humanidade; mas ela é apenas isso; porque a «geração nova»
consiste numa «ligação» (εἰς Θεὸν ἄνοδος), numa «união» (unitio), e numa
«mistura» (commistio) do homem e de Deus. Ora esta «mistura do vinho celeste e
da água terrestre» cumpriu-se no momento em que se deu esta «pura geração carnal
do Verbo de Deus, cuja grandeza os Ebionitas desconheciam». Deus realizou-a no
momento da Incarnação e foi então que ele mostrou a geração nova». A Igreja não
interveio nisso e o seu papel só pode ser considerado como uma cooperação na
realidade da qual vem o homem novo que é o seu termo.
Cá está, por consequência, o que Santo Ireneu quis dizer ao falar da Virgem que
nos regenera: tornando-se a mãe do novo Adão, Maria, gerou para a vida todos os
que se revestem dele e se identificam com ele.
Para nos convencermos, de resto, que tal é o seu pensamento, basta reportarmonos
uma vez mais à sua concepção da nossa restauração em Cristo.
De facto, a união que tem lugar na Incarnação, entre o Verbo de Deus e o homem
que a morte detém em seu poder , é já «a reforma do género humano» . É então
[16] [17]
que é produzido, para além de toda a vontade carnal ou humana, o homem vivo e
perfeito, o Adão feito – ou refeito – à imagem e semelhança de Deus . Fazendo-se
[18]
homem o Filho de Deus, o homem «transporta, contém e abraça o Filho de Deus» , [19]
sido comunicada antes , pela união do próprio Deus com a substância humana
[22]
saída do primeiro Adão , a mulher de quem foi tirada esta substância humana, pelo
[23]
facto de ela ter assim concebido e dado à luz o homem novo, é apresentada como
tendo regenerado todos os que nela reencontram a vida, perdida no homem velho.
As expressões de Santo Ireneu, por conseguinte, que nós não ousamos aplicar à
maternidade espiritual de Maria, devem ser tomadas no sentido que o seu contexto
imediato impõe: «a virgem, de quem renascemos pela fé», aquela que «regenera os
homens em Deus», é a Virgem Mãe de Cristo. O bispo de Lião, no fim do século II,
não diz dela nem nada mais, nem nada menos do que o que dela escreveu o Papa de
Roma, no início do século XX: «In uno eodemque alvo castissimae Matris et
carnem Christus sibi assumpsit et spiritale simul corpus adjunxit, ex iis nempe
coagmentatum qui credituri erant in eum. Ita ut Salvatorem habens Maria in utero,
illos etiam dici queat gessisse omnes, quorum vitam continebat vita
Salvatoris» [N.T.: Num só e mesmo seio da castíssima Mãe, Cristo não só
[24]
[1] Não os encontrei nem no P. Terrien: La mère de Dieu et la mère des hommes;
nem em Neubert: Marie dans l´´Eglise anténicéenne; nem em Largent: La
maternité adiptive de la très Sainte Vierge; nem em Newman: Du culte de la Sainte
Vierge dans l’Église Catholique.
O Dr. Klebba, na sua tradução do Adv. Haereses (Bibliothek der Kirchenvater.
Kempten et Munich, 1012), apenas dá o sentido literal, sem nada precisar.
[2] «Quomodo homo transierit in Deum si non Deus in hominem?» [N.T.: Como
passará o homem para Deus, se Deus não passar para o homem?]. O grego repete o
verbo subentendido na tradução: «Πῶς ἄννθρωπος χωρήσει εἰς θεὸν εἰ μὴ ὁ θεὸς
ἐχωρήθη εἰς ἄνθρωπον» (M. 1074 C).
[3] O Dr. Klebba (op. cit. p. 107) traduz assim: «Wie aber wird er die Gerburt des
Todes verlassen, wenn er nicht wiedergeboren wird zu der neuen Geburt, die da
von Gott wunder bar und unbegreiflich zum Zeichen des Heils aus der Jungfrau
durch den Glauben geschenkt wurde».
[4] Eusébio, H.E. V, 1, 45.
[5] Desde o século II, esta concepção da Igreja cossa mãe é clássica e universal. Cf.
a nota de M. Lebreton: Mater Ecclesia, in Recherches de science religieuse, II
(1911), p. 572-573.
[6] «Quam [alias: quemadmodum, no sentido de quomodo] adoptionem accipient a
Deo, permanentes in hac genesi quae est secundum hominem, in hoc mundo?»
[N.T.: Como receberão de Deus a adopção, se eles permanecem neste nascimento
que é segundo o homem neste mundo?] (M. 1075 A).
[7] III, 18, 7 (M. 938 A); V, 21, 1 (M. 1179 C), etc.
[8] «Ipse est qui omnes gentes exinde ab Adam despersas, et universas línguas, et
generationem hominum cum ipso Adam in semetipso recapitulatus est» [N.T.: Ele é
aquele que recapitulou em si mesmo todos os povos dispersos desde Adão, bem
como todas as línguas e a geração dos homens com o próprio Adão] (III, 22, 3).
[9] V, 16, 3; V, 21, 1, etc., etc.
[10] «Per passionem reconciliavit nos Deo» [N.T.: Pela sua paixão reconciliou-nos
com Deus] (III, 16, 9; M. 929 A). «Secundam plasmationem, eam quae est a morte,
per suam passionem donans» [N.T.: dando-nos pela sua paixão aquela segunda
modelagem que se faz a partir da morte] (V, 23, 3; M. 1185
C), etc., etc.
[11] «In amicitiam restituit nos Dominus per suam incarnationem» [N.T.: O senhor
restituiu-nos à amizade pela sua incarnação] (V, 17, 1; M. 1169 A; Cf. III, 18, 7; M.
937 B). 12 III, 18, 7; 19, 1 (M. 939-940).
[12] «Quoniam inopinata salus hominibus inciperet fieri…, inopinatus et partus
Virginis fiebat» [N.T.: Porque inesperada era a Salvação que começaria a realizar-
se para os homens …, e também inesperado se tornava o parto da Virgem] (III, 21,
6: M. 953 A).
[13] «Quando incarnatus est, et homo factus, longam hominum expositionem in se
ipso recapitulavit, in compendio nobis salutem praestans, ut quod perdideramus in
Adam, id est secundum imaginem et similitudinem esse Dei, hoc in Christo Jesu
reciperemus» [N.T.: Quando incarnou e se fez homem, recapitulou em si mesmo a
longa história dos homens, concedendo-nos a salvação em síntese, para que, o que
tínhamos perdido em Adão, ou seja, o sermos à imagem e semelhança de Deus, o
recebêssemos em Jesus Cristo] (III, 18, 1; cf. V, 1, 3 e 16, 2).
[14] III, 22, 4 (M. 959 B).
[15] III, 23, 4. Cf. Erweis der apostolischen Verkundigung, 33. 17 V, 19, 1.
[16] «Id ipsum [ factus est] quod erat ille, id est homo [redimendus], qui a morte
tenebatur» [N.T.:
Ele fez-se aquilo que este era, ou seja, homem necessitado de redenção que a morte
tinha sem seu poder] (III, 18, 7: M. 938 A)
[17] «Verbum… in novíssimo tempore, hominem in hominibus factum, reformasse
quidem humanum genus…» [N.T.: O Verbo nos últimos tempos fez-se homem
entre os homens e reformou na verdade o género humano] (IV, 24, 1: M. 1049 C.
Cf. abaixo).
[18] «In fine non ex voluntate carnis, neque ex voluntate viri, sed ex placito Patris,
manus eius vivum perfecerunt hominem, uti fiat Adam secundum imaginem et
similitudinem Dei» [N.T.: No fim, não pela vontade da carne, nem pela vontade do
homem, mas por beneplácito de Deus, as suas mãos fizeram com perfeição o
homem vivo, para que o Adão se torne à imagem e semelhança de Deus] (V, 1, 3:
M. 1123 B). «Quando homo Verbum Dei factum est, semetipsum homini, et
hominem sibimetipsi assimilans, ut per eam quae est ad Filium similitudinem,
pretiosus homo fiat Patri» [N.T.: Quando o Verbo de Deus se fez homem,
assemelhando-se a si mesmo ao homem e o homem a si mesmo, para que o homem
se tornasse precioso aos olhos do Pai, por meio daquela semelhança que tem com o
Filho] (V, 16, 2).
[19] «Filius Dei, hominis filius factus est, ut per eum adoptionem percipiamus,
portante homine, et capiente, et amplectente Filium Dei» [N.T.: O Filho de Deus
fez-se filho do homem, para recebermos por Ele a adopção, levando, contendo e
abraçando o homem em si o Filho de Deus] (III, 16, 3: M. 922 C).
[20] «Propter hoc enim Verbum Dei homo, et qui Filius Dei est filius hominis
factus est, ut homo, commistus Verbo Dei et adoptionem percipiens, fiat filius Dei»
[N.T.: Por isso, o Verbo de Deus fez-se homem, e quem é Filho de Deus fez-se
filho do homem, para que o homem, misturado ao Verbo de Deus e recebendo a
adopção, se torne filho de Deus] (III, 19, 1: M 939 B). Eu cito a versão latina tal
como a estabelece Massuet, segundo o grego: ver as suas notas 55 e 56 a este
propósito.
[21] «Qua enim ratione filiorum adoptionis eius participes esse possemus, nisi per
Filium eam, quae est ad ipsum, recepissemus ab eo communionem; nisi Verbum
eius communicasset nobis, caro factum? Quapropter et per omnem venit aetatem,
omnibus restituens eam, quae est ad Deum, communionem» [N.T.: Como é que
poderíamos ser participantes da sua adopção filial, se não recebêssemos dele por
meio do Filho aquela comunhão existe com ele, e se o seu Verbo feito carne não
entrasse em comunhão connosco?] (III, 18, 7: M. 937 C).
[22] «Quemadmodum ab initio plasmationis nostrae in Adam, ea quae fuit a Deo
aspiratio vitae, unita plasmati, animavit hominem…, sic in fine, Verbum Patris…
adunitus antiquae substantiae plasmationis Adae, viventem et perfectum efficit
hominem… ut quemadmodum in animali omnes mortui sumus, sic in spiritali
omnes vivificemur» [N.T.: Tal como desde o início da nossa modelagem na pessoa
de Adão, aquele sopro de vida que veio de Deus, unido ao barro moldado, animou
o homem…, assim também no fim o Verbo do Pai… unido à antiga substância do
barro moldado de Adão, se tornou homem vivo e perfeito… para que, assim como
na dimensão animal todos morremos, assim também na dimensão espiritual todos
seremos vivificados] (V, 1, 3: M. 1123).
[23] «Christus erat… Deus, hominis antiquam plasmationem in se recapitulans»
[N. T.: Cristo era o Deus que recapitula em si a antiga modelagem do homem] (III,
18, 7: M. 938 B). Cf. Erweis der apostolischen Verkundigung, 33 e seguintes.
[24] Encíclica de Pio X «Ad diem illum», para o jubileu da Imaculada Conceição: 2
de Fevereiro de 1904 (Edition des Questions actuelles du 20 féverier 1904, p. 200).