A Teoria Freudiana Da Consciência

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Psicologia: Teoria e Pesquisa

Mai-Ago 2003, Vol. 19 n. 2, pp. 117-125

A Teoria Freudiana da Consciência1


Gilberto Gomes2
Universidade Federal Fluminense

RESUMO - Reunindo referências esparsas em sua obra, o artigo investiga quais as concepções de Freud sobre a consciência
e como elas se articulam no corpo de sua teoria e com a prática psicanalítica. A consciência é vista como percepção do mundo
exterior, de sentimentos e de processos do pré-consciente. Resulta da atividade de um sistema específico (o sistema percepção-
consciência). A superação das resistências leva uma representação inconsciente a se tornar pré-consciente, através de ligação a
representações de palavras. A atenção pode tornar conscientes certas representações pré-conscientes. A consciência não é uma
propriedade intrínseca de certos sentimentos e pensamentos. Estes não são necessariamente o que parecem ser para o próprio
sujeito. O processo pelo qual certas representações pré-conscientes, mais duráveis, se tornam transitoriamente conscientes
pode abrir o caminho para a suspensão do recalque.

Palavras-chave: consciência; inconsciente; psicanálise; metapsicologia; Freud.

Freudian Theory of Consciousness


ABSTRACT - From the analysis of various passages in Freud’s works, we try to find out what his conception of conscious-
ness is and how it relates to his general theory and to psychoanalytical practice. Consciousness is seen as perception of the
outside world, of feelings and of processes in the preconscious. It results from the activity of a specific system (the system
perception-consciousness). The overcoming of resistances allows an unconscious presentation to become preconscious, through
linkage with word presentations. Attention may make certain preconscious presentations conscious. Consciousness is not an
intrinsic property of certain feelings and thoughts. These are not necessarily what they seem to be to the subject. The process
through which certain preconscious presentations, of longer duration, become transitorily conscious may open up the way to
a lifting of repression.

Key words: consciousness; unconscious; psychoanalysis; metapsychology; Freud.

A princípio, a grande novidade da psicanálise era a ex- concepções de Freud sobre a consciência e como elas se
tensão, a complexidade e a importância por ela atribuída ao articulam no corpo de sua teoria.
inconsciente. Hoje que a idéia de uma atividade psíquica
inconsciente não causa mais surpresa, pode-se dar maior ên- A possibilidade de uma explicação da consciência,
fase ao questionamento do que é isso que falta aos processos segundo Freud
inconscientes. Devendo-se reconhecer também a importân-
cia das relações e transições entre processos inconscientes Freud afirmou que a consciência é um “fato sem igual,
e conscientes, abre-se o espaço para questionar como a que resiste a toda explicação ou descrição” (1938, p. 79)3.
psicanálise deve conceber a consciência. Isto pode nos fazer pensar que sua concepção da consci-
A isto se acresce o fato de que a consciência tem sido, ência se aproxima do que certos autores atuais chamam de
recentemente, objeto de intensas pesquisas, tanto por parte “misterismo” (em inglês, “mysterianism”) (Flanagan, 1992;
da neurociência (Edelman, 1989; Crick, 1994), da neurop- Chalmers, 1996, p. 379). Segundo esta posição, a consciência
sicologia (Weiskrantz, 1997; Damásio, 2000/1999) e da é essencialmente um mistério que não pode ter explicação
psicologia cognitiva (Baars, 1988, 1997; Marcel & Bisiach, científica.
1988), quanto por parte da filosofia da mente (Rosenthal, Estaríamos nos enganando, entretanto, se nos prendês-
1991; Metzinger, 1995; Searle, 1997; Fernandes, 1995). Tor- semos a esta citação para concluir que não há lugar para a
na-se assim oportuno, para indagar como a psicanálise pode explicação da consciência no pensamento freudiano. Como
se relacionar a estes recentes desenvolvimentos, verificar de veremos, apesar de certas ambigüidades, a consciência tem
que maneira a teoria psicanalítica conceitua a consciência. no seu sistema teórico um lugar preciso, o de um “órgão
Embora Freud nunca tenha publicado um trabalho es- sensorial” para a detecção de qualidades psíquicas e de pro-
pecífico sobre a consciência, em vários pontos de sua obra cessos de pensamento.
encontram-se referências ao tema. O objetivo deste trabalho A análise do conjunto dos textos pertinentes sugere que,
é reunir e analisar essas referências, verificando quais as quando Freud diz que a consciência é inexplicável e indescri-
tível, ele está pensando na consciência segundo a perspectiva
da primeira pessoa, isto é, no fato de estar consciente tal
1 O autor teve apoio financeiro do CNPq, Conselho Nacional de Desenvol-
vimento Científico e Tecnológico, durante a preparação deste trabalho.
Uma versão preliminar deste trabalho fez parte da tese de doutorado do
autor, defendida na Université Paris 7 (Gomes, 1998).
2 Endereço: R. Lopes Quintas 100-605-I, 22460-010 Rio de Janeiro. 3 As citações extraídas de fontes em línguas estrangeiras foram traduzidas
E-mail: ggomes@alternex.com.br por mim.

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como este se apresenta à nossa própria consciência. Para ma. O próprio conteúdo consciente do discurso está sempre
cada um de nós, em sua experiência íntima, o fato de estar relacionado ao inconsciente, seja por aproximações, seja por
consciente é um dado bruto sobre si mesmo, cuja natureza afastamentos ou evitações.
parece insuscetível a qualquer análise ou explicação, ou mes- Freud atribuía grande valor, na técnica da psicanálise, às
mo a qualquer definição não circular (Block, 1995a, 1995b). “idéias incidentes” (em alemão, Einfälle, geralmente traduzi-
Esta impenetrabilidade da consciência, do ponto de vista da das por “associações”). Estas são idéias que vêm subitamente
primeira pessoa, não significa, no entanto, para Freud, que à mente do sujeito, sem que ele saiba a razão. A frase “Isto
ela deva ser metodologicamente ignorada. não tem nada a ver com o que eu estava dizendo, mas...” in-
Seria um engano pensar que, por ser uma teoria e uma dica, em psicanálise, a presença de uma ligação inconsciente.
clínica do inconsciente, a psicanálise não se ocupa com A idéia incidente é consciente, mas ela indica a aproximação
a consciência. Basta pensar em toda a importância que a de uma idéia inconsciente. Já o esquecimento de uma palavra
psicanálise dá ao discurso do paciente. Todas as representa- do discurso consciente aponta para a necessidade de se afastar
ções e processos inconscientes de que trata a psicanálise só de uma representação inconsciente.
podem ser inferidos daquilo de que o paciente tem consciên- Toda a análise do discurso feita pela psicanálise indica que
cia. Como Freud afirmou, “a qualidade de ser consciente... o conteúdo da consciência é sempre marcado pela influência
permanece sendo a única luz que ilumina nosso caminho e do inconsciente. E é através da investigação do jogo desta
nos conduz através da obscuridade da vida mental” (1938/ influência que o analista e o analisando podem aceder ao
1964, p. 286).4 inconsciente. Donde a importância de saber o que é o “tor-
Tampouco esta impenetrabilidade da consciência, na nar-se consciente” para compreender o que é “não se tornar
perspectiva da primeira pessoa, significa, para Freud, que consciente” e, sobretudo, “não poder se tornar consciente”.
devamos nos abster de formular qualquer teoria explicativa Na prática psicanalítica, o analista explora aquilo de que
sobre ela. Podemos constatar, com efeito, que ele desenvolveu o paciente pode ter consciência, para chegar a seu incons-
todo um conjunto de concepções sobre a consciência e suas ciente. Ele pode, por exemplo, chamar a atenção para uma
relações com os outros fenômenos psíquicos. Esta teoria, palavra que o paciente disse e perguntar-lhe: “Isto faz você
entretanto, não está claramente formulada num texto siste- pensar em que?”
mático. É preciso extraí-la do exame de passagens de várias Freud atribuía grande importância, na clínica, à tomada
obras, reunindo diversas indicações. Por sua correspondência, de consciência, pelo paciente, daquilo que era inconsciente.
ficamos sabendo que Freud escreveu, em 1915, um texto “Tornar o inconsciente consciente” era, para ele, o alvo da
sobre a consciência, que deveria integrar sua coleção sobre psicanálise. Esta definição levou a psicanálise a um desvio,
a metapsicologia. Entretanto, parece que não ficou satisfeito sobretudo no início de sua prática, consistindo em fazer da
com o resultado, pois não o publicou nem conservou. análise uma explicação intelectual, para o paciente, de seu
inconsciente. A antítese deste movimento foi a recusa de dar
A importância do estudo da consciência para a ao paciente qualquer interpretação de conteúdo (presente na
psicanálise mente do analista), promovida, sobretudo pela orientação
lacaniana.
Há poucos estudos psicanalíticos sobre a consciência. Freud marcou a diferença entre uma tomada de consciên-
Embora o inconsciente ocupe o lugar central, na psicanálise, cia puramente intelectual e aquilo que visa a psicanálise:
não devemos esquecer que a própria definição do inconsciente
só pode ser feita em relação à consciência. O inconsciente Quando comunicamos a um paciente uma representação que
não é jamais diretamente observável. Ele só pode ser inferido, a seu tempo ele recalcou e que identificamos, isto a princípio
de maneira sempre incerta. Por vezes, essa inferência pode em nada altera seu estado psíquico. Isto de forma alguma
ser feita a partir do comportamento de uma pessoa. É o caso suspende o recalque, nem anula seus efeitos, como se poderia
dos atos falhos descritos por Freud (1901/1960), em sua Psi- talvez esperar, já que a representação anteriormente inconsci-
copatologia da Vida Cotidiana. Ou ainda, a inferência pode, ente tornou-se agora consciente... Efetivamente, não se produz
eventualmente, basear-se na mímica do sujeito, como é o caso qualquer suspensão do recalque antes que a representação con-
da observação que Freud faz da expressão mista do rosto sciente, após a superação das resistências, tenha se ligado ao
do “Homem dos ratos”, indicando simultaneamente prazer traço de lembrança inconsciente. Só ao fazer consciente este
e desprazer (Freud, 1909/1955, pp. 166-167). Entretanto, é próprio traço é que se alcança o sucesso. (Freud, 1915/1982,
sobretudo a partir da análise do discurso que a incidência do II, p. 134)
inconsciente pode ser discernida.
Em seu discurso, o sujeito fala daquilo de que tem cons- Entretanto, a questão de como um traço de lembrança
ciência. Mas, ao mesmo tempo, o inconsciente também se inconsciente pode chegar à consciência não é de forma al-
exprime através de seu discurso, na escolha de algumas pa- guma simples. Podemos admitir que é a intervenção eficaz
lavras, na insistência de alguns significantes, nos lapsos de do analista, seja qual for sua natureza, que põe em movi-
linguagem eventualmente cometidos, nas associações, etc. É mento, no discurso do paciente, novas cadeias associativas,
portanto sobre um fundo de consciência que o inconsciente que correspondem a novas relações com seu inconsciente.
se revela, é entre as malhas conscientes que ele tece sua tra- Estas, por sua vez, é que levarão a mudanças na sua maneira
de viver. Estas novas cadeias associativas correspondem a
4 Encontramos a mesma afirmação em O Eu e o Isso (Freud, 1923/1982, novos conteúdos da consciência, ou seja, a modificações no
p. 287). que chega até a consciência, mesmo que esses conteúdos

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A Teoria Freudiana da Consciência

não sejam sobre os conteúdos inconscientes em questão. Uma primeira função do sistema da consciência (ômega),
Podemos mesmo dizer que esta tomada de consciência de descrita no Projeto (parte I, capítulo 15), concerne às indica-
uma representação recalcada se dá, sobretudo, quando os ções de realidade, ou indicações de qualidade sensorial, que
novos conteúdos conscientes não são fórmulas ensinadas ao permitem distinguir entre uma percepção e uma representa-
paciente pelo analista a respeito de seu inconsciente, mas ção derivada da memória. Estas indicações de realidade, pos-
sim conteúdos conscientes surgidos no jogo de seu próprio sibilitadas pelo processo secundário, que inibe o investimento
processo de perlaboração5. alucinatório ou a defesa primária excessiva, servirão para
Assim, a questão pertinente, do ponto de vista da clínica, é orientar os processos do pensamento e a eventual descarga
o que faz com que algo possa chegar à consciência, e portanto por ocasião da ação específica que produz a satisfação.
ao discurso consciente, que antes não podia.
Como se dá a percepção consciente?
A consciência no Projeto de 1895
Na carta a Fliess de 1º de janeiro de 1896, Freud vai
No modelo teórico apresentado no Projeto de uma Psi- sugerir uma modificação deste esquema, na qual a excitação
cologia, manuscrito de 1895, a consciência é atribuída à sensorial proveniente de φ atinge primeiro ω e depois ψ. Toda
atividade de um sistema hipotético de neurônios, o sistema percepção do mundo exterior seria então consciente (Freud,
ω (ômega). Este está em conexão com o sistema ψ (psi), que [1896/]1950/1966).
é responsável pelos processos psíquicos em geral: percepção, Esta concepção será mantida em suas formulações poste-
memória, desejos, fantasia, etc. Em relação à percepção cons- riores. Ela tem, entretanto, o inconveniente de não dar lugar
ciente, Freud supõe que a excitação proveniente do mundo à percepção subliminar ou a outras formas de percepção não
exterior atinge inicialmente o sistema φ (phi), ligado aos consciente, fenômenos hoje bem demonstrados (Bornstein
receptores sensoriais, de onde se transmite a ψ e finalmente & Pittman, 1992; Mack & Rock, 1998). Para explicá-las,
a ω (Freud, [1895/]1950/1975). seria preciso admitir a existência de duas vias: φ-ω-ψ, para
A escolha dessas letras gregas não é difícil de explicar: a percepção consciente, e φ-ψ para a percepção não cons-
φ e ψ são as iniciais de fisiológico e psíquico, respectiva- ciente. Nos dois casos, se chegaria a psi, onde as percepções
mente, e ω assemelha-se graficamente à letra W, inicial da poderiam ser registradas na memória e entrar em relação com
palavra alemã para percepção, Wahrnehmung. Vemos desde outros processos psíquicos, como as lembranças, desejos,
aí a íntima conexão que Freud estabelece entre percepção e fantasia, pensamento, etc..
consciência. Entretanto, como observa Erdelyi, a suposição de um
A consciência, no entanto, não é só percepção conscien- acesso direto da percepção à consciência, sem seletividade ou
te, ela compreende também as lembranças conscientes, as censura, é “inconsistente com a propensão geral dinâmica da
fantasias conscientes, os desejos conscientes, o pensamento psicanálise” e não permite explicar o fenômeno experimental
consciente, etc. No Projeto, Freud os concebe todos como da defesa perceptiva contra estímulos geradores de ansiedade
processos que ocorrem num sistema (psi) e cuja consciência (Erdelyi, 1985, p. 125). Já o esquema do Projeto, segundo o
é constituída pela atividade de outro (ômega). A consciência qual a excitação proveniente de phi atinge primeiramente psi,
que uma pessoa tem de seus próprios processos psíquicos, de onde se propaga a ômega no caso da percepção consciente,
ou de seu conteúdo, é uma forma de percepção, pelo sistema permite explicar tanto a percepção não consciente quanto a
ômega, de parte do que se passa em psi. Em relação a todos defesa perceptiva.
esses processos, o esquema do Projeto, como veremos, não É interessante observar que o novo esquema também pa-
será fundamentalmente modificado. rece incompatível com uma observação posterior do próprio
Qual a função deste sistema neural ômega? Qual a relação Freud, sobre os casos de cegueira histérica:
da consciência enquanto atividade do sistema ômega com os “Experimentações judiciosas mostraram que os cegos
diversos eventos psíquicos, como a percepção, o pensamento, por histeria vêem, apesar de tudo, num certo sentido, ainda
a lembrança, as emoções, o desejo ou a fantasia? O sistema que não em sentido pleno... Os cegos por histeria só são ce-
ômega é concebido como um sistema adaptado à detecção de gos, portanto, para a consciência; no inconsciente, eles são
qualidades. Por um lado, qualidades sensoriais, respondendo videntes.” (Freud, 1910/1993, p. 180).
pela consciência perceptiva. Por outro, qualidades de prazer Para que isto seja possível, parece ser necessário que as
e de desprazer, ligadas aos estados de tensão no sistema psi percepções sejam inicialmente inconscientes (pré-conscien-
(Freud, [1895/]1950/1975, parte I, capítulos 8 e 9). tes) e que sua consciência seja uma segunda etapa.
A vivência de satisfação e a vivência de dor, descritas
por Freud nos capítulos 11 e 12 da parte I do Projeto, pro- O sistema da consciência
vocam sensações de prazer ou desprazer em ômega, mas
não dependem delas. Também os efeitos dessas vivências, Posteriormente, Freud abandonou a letra ω para designar
descritos no capítulo 13, que são, respectivamente, o desejo e o sistema da consciência, mas conservou seu conceito. Intro-
a defesa primária, não dependem de ômega, pois se produzem duziu para ele uma nova abreviação, geralmente traduzida
automática e inconscientemente em psi. como Cs (em alemão, Bw, de Bewusstsein, consciência)6. No

6 Há na verdade uma ambigüidade em relação à abreviação Cs (Bw),


5 Sobre este conceito (em alemão, Durcharbeiten), ver Freud (1914/ que ora significa consciência, ora consciente. Ics (Ubw), ao contrário,
1958). significa sempre inconsciente.

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capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos, encontramos novas desprazer, e de reduzir o desenvolvimento de afeto, pelo trabalho
indicações sobre sua concepção da consciência. Como consi- do pensamento, a um mínimo que seja ainda utilizável como
dera a percepção como essencialmente consciente e, por outro sinal. Por meio de um novo superinvestimento, mediado pela
lado, vê a própria consciência (de outros processos psíquicos) consciência, este refinamento do desempenho deve ser atingido
como uma forma de percepção, Freud freqüentemente usa (Freud, 1900/1982, cap. 7, F, p. 572)
também o conceito de sistema percepção-consciência, ou
Pcp-Cs (em alemão, W-Bw). A consciência como percepção e sua relação com a
realidade psíquica
Que papel sobra, em nossa apresentação, para a consciência,
antes toda poderosa e que tudo ocultava? Nenhum outro que o A consciência é então, para Freud, consciência da per-
de um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíqui- cepção do mundo externo, consciência dos estados afetivos
cas. [...Considero] a percepção pela consciência como a função do continuum prazer-desprazer, e consciência de uma parte
própria de um sistema particular, ao qual convém a abreviação dos processos psíquicos do próprio sujeito. Este terceiro
de Cs. (Freud, 1900/1982, cap. 7, F, p. 583) aspecto sem dúvida tem grande interesse, do ponto de vista
das neuroses e da prática psicanalítica.
Freud fazia uma dicotomia entre qualidade e quantidade. A consciência que o sujeito tem de seus próprios pro-
Para ele, os processos inconscientes e pré-conscientes en- cessos psíquicos é, ela mesma, assimilada a uma forma de
volviam unicamente quantidades de excitação no aparelho percepção. Num processo psíquico consciente, há então
psíquico. Já a consciência se caracterizava pela identificação dois elementos, o próprio processo e sua percepção pela
de qualidades, transmitidas, de alguma forma, pelas excita- consciência.
ções provenientes dos órgãos dos sentidos.
Além das percepções do mundo exterior, a consciência Todo o consciente tem um estágio prévio inconsciente... O
percebe variações do nível de tensão do aparelho psíquico inconsciente8 é o psíquico propriamente real, tão desconhe-
como sensações de prazer e desprazer. As “excitações de cido para nós, na sua natureza interna, quanto o real do mundo
prazer e de desprazer... apresentam-se como quase a única exterior, e dado a nós através dos dados da consciência de
qualidade das transposições de energia no interior do apare- forma tão incompleta quanto o mundo exterior através do
lho” (Freud, 1900/1982, cap. 7, D, p. 547). Além disso, Freud depoimento de nossos órgãos sensoriais. (Freud, 1900/1982,
indica aqui um outro tipo de conteúdo para a consciência. cap. 7, F, p. 580)
Ela percebe também uma parte dos processos de pensamento
do pré-consciente7. A concepção de Freud a este propósito é nitidamente
kantiana. Segundo Kant, os estados mentais não podem ser
... a consciência, que tem para nós o sentido de um órgão senso- conhecidos tais como são em si, mas simplesmente tais como
rial para a apreensão de qualidades psíquicas, é excitável, no aparecem ao senso interno (Kant, 1787 [B, p. 55]/1911 [pp.
estado de vigília, a partir de dois lugares. A partir da periferia 62-63]). Para ele, só nos percebemos internamente na medida
do aparelho global, do sistema da percepção, em primeira linha; em que somos afetados por nós mesmos (Kant, 1787 [B, pp.
e em seguida, a partir das excitações de prazer e desprazer... 69,152-153]/1911 [pp. 70-71, 120]). Toda experiência, tanto
Mas... a consciência... tornou-se também um órgão sensorial a interna quanto a externa, só nos dá a conhecer objetos tais
para uma parte de nossos processos do pensamento. Há... duas como eles aparecem para nós, pois depende não só do caráter
superfícies sensoriais, uma do perceber, a outra voltada para os do objeto como daquele do sujeito e de sua receptividade (Kant,
processos de pensamento pré-conscientes. (Freud, 1900/1982, 1798 [§7]/1917 [p. 141]). Kant afirma ainda que não nos co-
cap. 7, D, p. 547) nhecemos como somos, mas tão somente como parecemos a
nós mesmos (1787 [B, pp. 155-156, 158]/1911 [p. 122]).
Alguma qualidade associada a esses processos pré-cons- Se Freud conhece bem a posição de Kant relativa à per-
cientes seria necessária para sua identificação pela consci- cepção externa, ele se equivoca, no entanto, em relação à
ência, e Freud (1900/1982, cap. 7, pp. 547, 554) supõe que concepção kantiana do sentido interno. Ele escreve:
as representações de palavras teriam restos de qualidade
suficientes para isto. A suposição psicanalítica da atividade mental inconsciente nos
Uma nova função da consciência é também indicada. Esta aparece... como a extensão da correção trazida por Kant à nossa
consciência dos processos psíquicos do pré-consciente permi- concepção da percepção externa. Assim como Kant nos advertiu
tirá tornar “o desenrolar das representações mais independente a não deixar passar despercebido o condicionamento subjetivo de
das indicações de desprazer, para possibilitar desempenhos nossa percepção e a não considerar nossa percepção como idên-
mais finos” (ibid.). A consciência do pensamento permite uma tica ao que é percebido mas não é conhecível, da mesma forma a
relativa independência face ao princípio do prazer. psicanálise nos alerta a não por a percepção pela consciência no
lugar do processo psíquico inconsciente que é seu objeto. Como
A tendência do pensar deve, portanto, ir no sentido de se lib- o físico, o psíquico também não tem necessidade, com efeito, de
erar cada vez mais da regulação exclusiva pelo princípio do ser como nos aparece. (Freud, 1915/1982, p. 130)

7 Esta idéia já havia sido indicada, de forma não muito clara, no Projeto 8 O “inconsciente” deve ser compreendido aqui no sentido descritivo,
(Freud, [1895/]1950/1975, pp. 364-365). incluindo tanto o inconsciente sistemático quanto o pré-consciente.

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Freud se engana, entretanto, ao crer que esta extensão foi se a consciência é uma propriedade intrínseca do próprio
feita pela psicanálise, pois o próprio Kant já a havia feito, desejo ou algo que se acrescenta a ele. Se o desejo ocorre
como indicado acima. em psi e a consciência desse desejo ocorre em ômega, esta
consciência não é intrínseca ao desejo. Dizer que essa própria
A perspectiva de Natsoulas sobre a teoria freudiana da consciência é intrinsecamente consciente não é mais do que
consciência: A consciência como qualidade intrínseca uma tautologia.
Creio que a fonte do equívoco de Natsoulas está numa
Thomas Natsoulas (1993) distingue três teorias da cons- passagem do Projeto, da qual ele tirou a denominação “teoria
ciência. A primeira considera a consciência como uma pro- do acessório” (appendage theory). Esta passagem envolve duas
priedade intrínseca dos fenômenos psíquicos. Estes teriam questões que, se bem que imbricadas, devem ser distinguidas:
uma natureza “auto-reveladora” (em inglês, self-intimatio- a questão da explicação da consciência e a questão da relação
nal), segundo o termo de Ryle (1949). Se aplicada a todos consciência-cérebro (Gomes, 1995; 1998). Comparando sua
os fenômenos psíquicos, esta tese exclui, evidentemente, a teoria da consciência com outras, Freud escreve:
existência de processos psíquicos inconscientes. Mas é tam-
bém possível considerá-la válida tão somente para uma parte Segundo uma teoria mecanicista avançada, a consciência é
dos fenômenos psíquicos, como o faz o próprio Natsoulas. um simples acessório9 dos processos fisiológico-psíquicos, cuja
A segunda teoria considerada por este autor, por ele cha- não ocorrência nada alteraria ao transcorrer psíquico. (Freud,
mada de “teoria do olho mental”, considera a consciência [1895/]1950/1975, p. 320).
como uma forma de percepção voltada para os fenômenos
mentais. Para esta teoria, a consciência não é uma propriedade O que está em questão aqui? Será a relação da consci-
intrínseca dos processos conscientes. Nestes, considera-se ência com os outros processos psíquicos (seja qual for a
que há dois elementos: o próprio processo mental e sua relação tanto destes quanto da própria consciência com os
“percepção” pela consciência. processos fisiológicos)? Ora, se a consciência fosse também,
Para a terceira teoria, a consciência também não é intrín- neste contexto, considerada como um “processo fisiológico-
seca aos processos mentais em questão, ela depende igual- psíquico” (como decorre de sua conceituação como atividade
mente da ocorrência de outro processo mental, mas este não do sistema neuronal ômega), a frase citada não teria sentido.
é concebido como uma percepção. Esta teoria é chamada por Se x pertence a A, x não pode ser um acessório de A (no
Natsoulas de “teoria do acessório” (em inglês, appendage sentido de algo externo a A, cuja omissão não mudaria A).
theory). Um evento mental não basta para se ter consciência, Ao que tudo indica, não é da consciência enquanto função
é preciso haver dois, o segundo conferindo consciência ao psíquica que ele está falando, mas da consciência tal como
primeiro. Nesta categoria o autor inclui a teoria de Rosenthal a conhecemos pela introspecção.
(1986), segundo a qual o que confere consciência a um estado O que está em questão, portanto, é o problema colocado
mental é um pensamento de ordem superior, o qual é, em pela consciência, considerada da perspectiva da primeira pes-
geral, ele mesmo inconsciente. soa, à concepção da relação mente-cérebro (Gomes, 1995;
Natsoulas rejeita tanto a terceira quanto a segunda teoria, 1998). A teoria considerada por Freud na passagem citada é
e também não considera que esta última corresponda à po- a do epifenomenalismo, segundo a qual a consciência é uma
sição de Freud. A despeito de todas as afirmações de Freud realidade imaterial, porém completamente determinada pelos
assimilando a consciência a um órgão sensorial e atribuindo processos cerebrais (ou, pelo menos, paralela a eles), sobre
a ela uma função de percepção, Natsoulas (1984) crê que, os quais não exerce qualquer ação. O “simples acessório” de
para Freud, a consciência é propriedade intrínseca a uma que fala Freud é o epifenômeno na relação mente-cérebro.
parte dos eventos mentais e que estes, são, portanto, “auto- Já o acessório do qual fala Natsoulas é outro, é o estado
reveladores” (self-intimating). mental que torna consciente um outro estado mental (como na
Segundo ele, no esquema do Projeto, os processos do teoria de Rosenthal). Dentro desta concepção, o “acessório”
sistema ômega são intrinsecamente conscientes. O que ele (ou seja, o estado mental de ordem superior) pode muito bem
esquece é que, neste esquema, todos os processos psíquicos ser um outro processo “fisiológico-psíquico”, que pode muito
(exceto a própria consciência), se desenvolvem no sistema bem ter efeitos causais (negados ao epifenômeno), ou seja,
psi. Não há nem pensamentos, nem lembranças, nem desejos, sua omissão não deixaria inalterado o transcorrer psíquico.
etc. no sistema ômega. Mesmo as percepções, segundo o Pro- Vejamos agora as duas outras teorias consideradas por
jeto, ocorrem inicialmente em psi. (Voltaremos, adiante, ao Freud na seqüência de seu texto. Uma delas considera que “a
caso das percepções conscientes, na concepção posterior ao consciência é o lado subjetivo de todos os eventos psíquicos
Projeto.) Os processos ômega são tão somente a consciência e é portanto inseparável do processo anímico10 fisiológico”
de todos esses outros processos. Portanto, os pensamentos, (Freud, [1895/]1950/1975, p. 320). Reconhecemos aqui a
lembranças, desejos, fantasias, etc. não são nunca intrinse- teoria da identidade ou dos dois aspectos, na relação mente-
camente conscientes. Eles podem tornar-se conscientes (se cérebro (ou relação consciência-cérebro), fundida à tese de
pertencerem ao pré-consciente) e isto ocorre quando eles que todos os eventos psíquicos são conscientes.
desencadeiam processos ômega.
Ora, dizer que os próprios processos ômega são intrinse-
camente conscientes, como faz Natsoulas, recai numa afir- 9 No original, Zutat, traduzido em inglês por appendage.
10 A palavra alemã aqui traduzida por “anímico” (seelisch) pode ter, mas
mação vazia. O que importa é saber se um desejo consciente, não tem necessariamente (e neste contexto não tem) a conotação de ser
por exemplo, é intrinsecamente consciente ou não, ou seja, algo imaterial.

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A outra, adotada por ele, considera a consciência como cientes. Freud concebe os afetos como processos de descarga
o lado subjetivo de uma parte desses eventos fisiológicos ou acumulação de tensão que ocorrem no aparelho psíquico
psíquicos. Temos aqui, novamente, a teoria dos dois aspec- e são percebidos pela consciência como sensações da série
tos, aplicada, no entanto, apenas a uma parte dos eventos que vai do prazer ao desprazer (aí incluindo a angústia). Em
psíquicos. Freud formula sua teoria, explicitamente, da 1926, ele escreve:
seguinte maneira:
[Fazemos a hipótese da existência de]... um sistema, um órgão,
A consciência é aqui o lado subjetivo de uma parte dos pro- cuja excitação, por si só, faz com que o fenômeno que chamamos
cessos físicos do sistema nervoso, a saber, os processos ω, e a consciência se produza. Este órgão pode ser excitado tanto
não ocorrência da consciência não deixa o acontecer psíquico do exterior... quanto do interior, onde pode tomar conheci-
inalterado, mas inclui em si a não ocorrência da contribuição mento, primeiro, das sensações [sentimentos] no isso [id], e
de ω. (Freud, [1895/]1950/1975, p. 320). em seguida, igualmente, dos processos no eu [ego]. (Freud,
1926/1994, p. 21).
Quanto à relação mente-cérebro, sua teoria é portanto uma
teoria dos dois aspectos, não aplicada a todos os processos Isto significa que os processos do isso (id) não são com-
psíquicos (como em outros autores), mas a uma parte deles. pletamente inacessíveis à consciência, ao contrário do que se
A omissão da consciência compreende a omissão da atividade poderia pensar. As representações do isso (ou do inconsciente
dos neurônios ômega. Portanto, não se trata mais da omissão sistemático) são sempre inacessíveis à consciência, mas não
de uma realidade psíquica considerada como imaterial, mas as descargas afetivas.
ligada ainda assim a processos cerebrais (como na teoria Os afetos são, portanto, processos do isso (ou id), perce-
epifenomenalista). Consciência e atividade dos neurônios bidos pelo sistema Cs. De fato, Freud considera que, exceto
ômega correspondem a dois aspectos da mesma realidade. quando são impedidos de se desenvolver, ou seja, suprimi-
Não é possível que ocorram os processos neurais deste sis- dos (unterdrückt) (Freud, 1915/1982, p. 137), os afetos são
tema sem que ocorra a consciência. obrigatoriamente percebidos pela consciência.
Além disso, é uma teoria que atribui a consciência a um
sistema neural específico. Mais ainda, ela considera que os Em sentido estrito..., não há afetos inconscientes como há
pensamentos, desejos e lembranças ocorrem, eles mesmos, representações inconscientes... Toda a diferença vem de que
fora deste sistema. Ou seja, eles são eventos mentais que se as representações são investimentos – no fundo, de traços
tornam conscientes ao serem percebidos pela consciência, de lembranças – enquanto que os afetos e sentimentos [ou
mas que já existem, enquanto eventos mentais, antes disso. emoções, Gefühle] correspondem a processos de descarga,
Não são, portanto, intrinsecamente conscientes. cujas manifestações finais são percebidas como sensações
A percepção, por outro lado, a partir da carta de 1º de [ou sentimentos, Empfindungen].11 (Freud, 1915/1982, p. 137,
janeiro de 1896, pode ser considerada como um processo sublinhado por mim)
intrinsecamente consciente. Como vimos, ele propõe aí que
a excitação proveniente do mundo externo, através de phi, Parece que, se não há, para Freud, emoção ou afeto
atinge inicialmente ômega. Se as percepções ocorrem em propriamente inconscientes, esta inexistência é mais uma
ômega, podemos de fato considerá-las, neste novo esquema, contingência de fato que um pertencimento da consciência a
como sendo intrinsecamente conscientes. Para a percepção estes processos como propriedade intrínseca. Pode acontecer
não haveria a necessidade de outro evento mental para tor- que estes processos se tornem sempre conscientes, mas, para
ná-la consciente. Em textos posteriores, Freud manterá esse Freud (1923/1982, p. 291), eles ocorrem no sistema incons-
novo esquema. ciente e só se tornam conscientes ao afetarem o sistema da
Natsoulas (1985) reconhece que, na teoria freudiana, mui- consciência. Na citação acima, a consciência aparece como
tos processos mentais não são intrinsecamente conscientes. efeito das “manifestações finais” desses processos e, mais
Chama a consciência destes de “derivada” ou “adquirida”, uma vez, como percepção.
ocorrendo quando processos não conscientes “obtêm aces- Em O Eu e o Isso, Freud volta à questão da consciência
so a certos... processos psíquicos que são intrinsecamente dos estados afetivos:
conscientes...” (Natsoulas, 1985, p. 185). Seja como for, isto
já basta para concluir que a consciência, para Freud, não é A percepção interna fornece sensações [ou sentimentos,
necessariamente uma propriedade intrínseca. E nos casos de Empfindungen]... [que] são mal conhecidas, podendo valer
consciência derivada, a concepção de Freud se encaixa no que
Natsoulas chamou de “teoria do olho mental”, considerando a
consciência como uma forma de percepção, a qual não deixa 11 A tradução dos termos Gefühl e Empfindung é problemática, já que o
também de ser um “acessório” (no sentido de Natsoulas), ou primeiro pode ser traduzido como emoção (emotion, na Standard Edi-
tion, vol. 14, p. 178) ou sentimento (sentiment, nas Œuvres complètes:
seja, um processo mental suplementar que torna consciente o Psychanalyse, vol. 13, pp. 219-220)) e o segundo como sentimento
processo originalmente inconsciente (pré-consciente). (feeling, na Standard Edition, ibid.) ou sensação (sensation, nas Œuvres
complètes: Psychanalyse, ibid.; sensation, na Standard Edition, vol.
19, pp. 21-22). Não há correspondência perfeita entre as palavras das
A consciência dos afetos diversas línguas, e mesmo em cada uma destas, estes termos não têm
um campo semântico claramente delimitado e distinto. Gefühl, por
exemplo, também pode ser usado no sentido de sensação (por exemplo,
Vimos que, além das percepções, tornam-se conscientes de frio), assim como sensação pode ser usada no sentido de sentimento
sensações de prazer e desprazer e certos processos pré-cons- ou emoção (por exemplo, na expressão “causar sensação”).

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A Teoria Freudiana da Consciência

como melhores modelos delas as sensações da série prazer- sucessivas – no pensamento pré-consciente). A consciên-
desprazer... Chamemos o que se torna consciente como prazer cia, ao contrário, se caracteriza por seu caráter transitório,
e desprazer de uma “outra coisa” [ein Anderes], quantitativa fugitivo.
e qualitativa, no transcorrer mental... Permanece certo... que
também as sensações [ou sentimentos, Empfindungen] e O caráter transitório da consciência
sentimentos [ou emoções, Gefühle] só se tornam conscientes
ao chegar ao sistema Pcp; se a progressão é barrada, não se Nada permanece, ao nível da consciência.
realizam como sensações, embora a “outra coisa” que cor-
responde a elas, no transcorrer da excitação, seja a mesma. ...em geral, a consciência é somente um estado extremamente
(Freud, 1923/1982, pp. 290-291) fugitivo. O que é consciente só o é por um momento. Quando
nossas percepções não o confirmam, isto é só uma contradição
Vemos que, se Freud acha que deveríamos respeitar a aparente; ela é explicada pelo fato de que os estímulos que
norma terminológica de só falar em afetos, emoções, senti- evocam a percepção podem persistir por períodos mais longos,
mentos, etc., quando estes forem conscientes, ele reconhece de tal forma que a percepção pode se repetir. Todo este estado
que há processos inconscientes que são a causa dessas ex- de coisas é claro em relação à percepção consciente de nossos
periências conscientes. Podemos mesmo ver uma diferença processos de pensamento, que podem igualmente persistir, mas
de posição entre 1915 e 1923. Em O Inconsciente, Freud podem também passar num piscar de olhos . (Freud, 1938/1941,
diz que “ao afeto inconsciente só corresponde [no Ics] uma cap. 4, p. 83)
possibilidade de começo, à qual não foi permitido chegar a
desdobrar-se” (Freud, 1915/1982, p. 137). Já em O Eu e o Freud expressou, em várias ocasiões, sua adesão à tese
Isso, como vimos, ele fala em uma “outra coisa” que per- de Breuer (1895/1955, pp. 188-189, n.) sobre a incompati-
manece a mesma, no Ics, quer seja percebida ou não pela bilidade entre percepção e memória, válida também para a
consciência. consciência (Freud, [1895/]1950/1975, p. 308; 1900/1982,
Enfatiza uma diferença, entretanto, entre os processos cap. 7, B, p. 514; 1925/1961, p. 228). O sistema percepção-
afetivos inconscientes e as representações inconscientes. consciência não deve reter qualquer traço, para que esteja
Estas só se tornam conscientes através da etapa interme- sempre receptivo aos novos estímulos. Imagina ainda que
diária do pré-consciente (Pcs). As sensações, ao contrário, esta transitoriedade das impressões conscientes seja efetivada
atingem diretamente o sistema Pcp-Cs. “Para os sentimentos da seguinte maneira. O sistema Pcp-Cs receberia pequenos
[ou sensações, Empfindungen], a distinção entre Cs e Pcs investimentos, vindos do inconsciente (Freud, 1925/1961,
não tem sentido..., os sentimentos ou são conscientes ou p. 231), ou do eu (Freud, 1925/1982, p. 376), em impulsos
inconscientes” (Freud, 1923/1982, p. 291). periódicos rápidos. Só teria sua capacidade perceptiva ao
estar assim investido, de forma que a intermitência deste
A consciência dos processos do eu investimento apagaria continuamente as impressões do mo-
mento imediatamente anterior.
Quanto às representações, elas só podem ser percebidas
pela consciência se pertencerem ao pré-consciente (na segun- Relações entre a consciência, o pré-consciente e o
da tópica, ao eu). Isto significa que todo o pensamento cons- inconsciente
ciente (desejos conscientes, lembranças conscientes, fantasias
conscientes, pensamentos conscientes propriamente ditos, Tornar-se consciente, para uma representação, significa,
etc.) corresponde a processos que se passam nessa região portanto, ser percebida por este sistema onde as excitações
do eu que é o pré-consciente e que são percebidos por essa se produzem de maneira fugaz e sem deixar traço. Entre as
outra região do eu que é o sistema Cs. representações do pré-consciente, só algumas são escolhidas
A propriedade de ser pré-consciente, isto é, suscetível de pela atenção, a cada momento, para tornarem-se conscientes.
tornar-se consciente, é dada para Freud pela ligação entre Podemos desde logo observar que a prática psicanalítica vai
representações de coisa (Dingvorstellungen) e representações exercer uma grande influência sobre esta escolha, ao insistir
de palavra (Wortvorstellungen). Isto significa que o sistema sobre a verbalização e a exploração das idéias incidentes
da linguagem é indispensável, segundo Freud, não para a (associações livres), ao apontar os lapsos, ao sublinhar as
percepção consciente nem para os sentimentos e emoções reticências, as interrupções, a repetição de certos signifi-
conscientes, mas sim para o pensamento consciente (aí in- cantes, etc., induzindo assim o paciente a seguir cadeias
cluindo as lembranças conscientes, as fantasias conscientes, associativas que normalmente não seguiria. No consultório
os desejos conscientes, etc.). do psicanalista, diversas representações pré-conscientes, que
A ligação com uma representação de palavra torna uma ordinariamente não teriam chegado à consciência, se tornarão
representação pré-consciente, mas não ainda consciente. O conscientes. E este exercício se generaliza a momentos fora
pensamento consciente é mais seletivo, mais focalizado, mais do consultório, em que o paciente, em sua vida cotidiana,
dirigido. É preciso um mecanismo de atenção, que Freud será levado a tomar consciência de representações de seu
descreve como um novo superinvestimento (ou hipercatexia), pré-consciente que, sem esta influência, teriam permanecido
para tornar consciente uma representação pré-consciente. não conscientes.
As representações pré-conscientes são formações duráveis Devemos supor que esta nova consciência de representa-
e até seus investimentos são relativamente estáveis (embora ções do pré-consciente exerce, por sua vez, uma influência
também haja processos – ou seja, séries de transformações sobre as relações deste com o inconsciente propriamente dito.

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Esta questão, entretanto, não parece ter sido aprofundada nos Referências
textos freudianos, que nos dão apenas algumas indicações.
Em O Inconsciente, Freud diz que há no Pcs derivados do Baars, B.J. (1988). A Cognitive Theory of Consciousness.
Ics que, quando mais intensamente investidos, sofrem a Cambridge: Cambridge University Press.
ação de uma segunda censura, que os impede de tornarem- Baars, B.J. (1997). In the theatre of consciousness. Oxford:
se conscientes. Osford University Press.
Block, N. (1995a). On a confusion about a function of consciousness.
No tratamento [Kur] psicanalítico..., convidamos o doente a Behavioral and Brain Sciences, 18 (2), 227-287.
formar derivados do Ics, em abundância, fazemos com que se Block, N. (1995b). Consciousness. Em S. Guttenplan (Org.),
comprometa a superar as objeções da censura contra o tor- A Companion to the Philosophy of Mind, p. 215. Oxford:
nar-se consciente destas formações pré-conscientes, e abrimos Blackwell.
caminho12, através da vitória sobre esta censura, para a sus- Bornstein, R.F. & Pittman, T.S. (org.) (1992). Perception without
pensão do recalque, que é obra da censura anterior. (Freud, Awareness. Nova York: Guilford.
1915/1982, parte VI, p. 152) Breuer, J. (1955). Theoretical. (Capítulo 3 de “Studies on Hysteria”
de J. Breuer & S. Freud.) Em S. Freud, Standard Edition, vol 2.
Ao perguntar “Em que você está pensando?”, o analista Londres: The Hogarth Press. (Trabalho originalmente publicado
pede que o paciente vença suas objeções à verbalização de um em 1895)
conteúdo consciente. Isto pode levá-lo a novos caminhos as- Chalmers, D.J. (1996). The Conscious Brain. Oxford: Oxford
sociativos, ou seja, pode levar sua atenção a tornar conscien- University Press.
tes outros conteúdos pré-conscientes. Ao perguntar “Isto faz Damásio, A. (2000). O Mistério da Consciência. Trad. L.T.
você pensar em que?”, o analista pede que o paciente vença Motta. São Paulo: Companhia das Letras. (Original publi-
objeções a tornar conscientes (e verbalizar) novos conteúdos cado em 1999)
pré-conscientes (que podem ser derivados de conteúdos do Crick, Francis (1994). The Astonishing Hypothesis. Londres: Simon
Ics). Freud não explicita de que forma isto abre o caminho & Schuster.
para a suspensão do recalque, ou seja para tornar pré-cons- Edelman, G.M. (1989). The Remembered Present: A Biological
cientes (e conscientes, podendo então ser verbalizadas) certas Theory of Consciousness. New York: Basic Books.
representações inconscientes (recalcadas). Erdelyi, M.H. (1985). Psychoanalysis: Freud’s Cognitive
Não devemos esquecer aqui o papel da interpretação. Po- Psychology. W. H. Freeman.
demos, de fato, por em dúvida a vantagem de uma completa Fernandes, S.L.C. (1995). Filosofia e Consciência. Rio de Janeiro:
evitação das interpretações. Por outro lado, podemos supor Arete.
que o fator decisivo na superação das censuras contra tornar Flanagan, O. (1992). Consciousness reconsidered. Cambridge,
pré-consciente e tornar consciente sejam os estados afetivos MA: MIT Press.
do paciente, tais como vividos na relação com o analista. Freud, S. (1975). Entwurf einer Psychologie. Em M. Bonaparte, A.
Freud e E. Kris (Orgs.), Aus den Anfängen der Psychoanalyse.
Conclusão Frankfurt am Main: Fischer. (Trabalho [redigido em 1895 e]
originalmente publicado em 1950)
Concluímos que, embora Freud não tenha publicado um Freud, S. (1966). Extract from Freud’s letter 39 to Fliess of
trabalho específico sobre o assunto, as passagens em que January 1, 1896. Em Standard Edition, vol. 1, pp. 388-9.
abordou questões relativas à consciência são suficientes para Londres: The Hogarth Press. (Trabalho [redigido em 1896 e]
montarmos um quadro bastante nítido de sua concepção sobre originalmente publicado em 1950)
ela. Foi atingido, portanto, o objetivo proposto no início deste Freud, S. (1982). Die Traumdeutung. Em Studienausgabe, vol. 2.
trabalho. Vimos que, para Freud, a consciência é a função de Frankfurt am Main: Fischer. (Trabalho originalmente publicado
um sistema específico do aparelho psíquico, responsável pela em 1900)
percepção do mundo exterior, de sentimentos e de processos Freud, S. (1960). The Psychopathology of Everyday Life. Em
do pré-consciente. Vimos como esses processos de tomada Standard Edition, 6. Londres : The Hogarth Press. (Trabalho
de consciência se articulam às instâncias do aparelho psí- originalmente publicado em 1905)
quico freudiano, explorando ainda sua relação com a clínica Freud, S. (1955). Notes upon a Case of Obsessional Neurosis.
psicanalítica. Isso nos dá uma base para um novo desafio, o Em Standard Edition, vol. 10. Londres: The Hogarth Press.
de verificar como essa concepção teórica freudiana pode se (Trabalho originalmente publicado em 1909)
relacionar aos recentes desenvolvimentos da teoria da cons- Freud, S. (1993). Le trouble de vision psychogène dans la conception
ciência, nas áreas da neurociência, da psicologia cognitiva e psychanalytique. Em Œuvres complètes: Psychanalyse, vol. 10.
da filosofia da mente. Paris, PUF. (Trabalho originalmente publicado em 1910)
Freud, S. (1958). Remembering, repeating and working-through
(Further recommendations on the technique of psycho-
analysis II). Em Standard Edition, vol. 12. Londres: The
Hogarth Press. (Trabalho originalmente publicado em 1914)
Freud, S. (1982). Das Unbewusste. Em Studienausgabe, vol. 3.
12 No original, Wir... bahnen uns... den Weg... Ao verbo bahnen correspon-
de o substantivo Bahnung, usado desde o Projeto de 1895, no sentido Frankfurt am Main: Fischer. (Trabalho originalmente publicado
de facilitação, ou trilhamento, de caminhos associativos. em 1915)

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A Teoria Freudiana da Consciência

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Recebido em 10.11.2002
Primeira decisão editorial em 22.04.2003
Versão final em 27.06.2003
Aceito em 01.07.2003 „

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