O Aparelho Psíquico

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O aparelho psíquico

Maria Thereza Toledo

Descrição O aparelho psíquico e a teoria freudiana acerca do funcionamento


mental em seus diferentes vieses e conformações.

Propósito Compreender o aparelho psíquico e os fenômenos mentais a partir do


olhar de Freud é fundamental para o estudo da Psicanálise e para
atuação profissional como psicólogo.

Objetivos

Módulo 1 Módulo 2

O aparelho psíquico A importância e o


funcionamento do
Analisar o aparelho psíquico a partir da
primeira tópica freudiana e a relação entre
inconsciente
inconsciente, pré-consciente e consciente.
Definir o conceito de inconsciente, sua
importância na teoria psicanalítica e seu
modo de funcionamento.

Módulo 3 Módulo 4

A segunda tópica freudiana A compreensão do


e suas relações funcionamento psíquico
Descrever a segunda tópica freudiana e a Reconhecer a contribuição do texto O mal-
relação entre id, ego e superego. estar na civilização para a compreensão do
funcionamento psíquico.

meeting_room Introdução
Aparelho psíquico é o nome dado à organização proposta por Freud para
compreender a dinâmica mental. Descrever o aparelho psíquico foi uma
forma de tornar compreensível o funcionamento psíquico, dividindo-o e
atribuindo uma função específica a cada parte constitutiva.

A concepção do aparelho psíquico é uma construção teórica de Freud, que


traduzia para a teoria a sua vivência clínica. Essa prática teorizada da
Psicanálise nos permite observar várias alterações e/ou aprimoramentos
dos conceitos freudianos ao longo do tempo. Freud foi construindo sua
trama conceitual à medida que caminhava em sua experiência clínica.
Dessa forma, temos duas propostas para compreender o aparelho
psíquico:
Primeira tópica: Dividida em inconsciente, consciente e pré-
consciente;

Segunda tópica: Consiste na tríade id, ego e superego.

1 - O aparelho psíquico
Ao final deste módulo, você será capaz de analisar o aparelho psíquico a partir da primeira tópica
freudiana e a relação entre inconsciente, pré-consciente e consciente.

A primeira tópica freudiana:


inconsciente, pré-consciente e
consciente
Teoria fundamental para realizar o ponto de partida de Freud na compreensão do
psiquismo, a primeira tópica de Freud designa a primeira concepção do aparelho
psíquico e é composta por três sistemas:

(Ics) (Pcs) (Cs)


Inconsciente Pré-consciente Consciente

Trata-se de uma noção de aparelho psíquico como um conjunto articulado de


moda lugares (virtuais), que são explicitados no capítulo sétimo de A
interpretação dos sonhos, intitulado “A Psicologia dos Processos Oníricos”. Freud
relaciona a consciência à função de um órgão sensorial capaz de distinguir
qualidades psíquicas (prazer e desprazer, por exemplo). A excitação chega à
consciência de duas direções: do sistema perceptivo e do interior do próprio
aparelho, ou seja, os estímulos vêm de dentro ou de fora, na percepção do
sujeito.

Freud promove uma quebra de paradigma ao afirmar que a


consciência é apenas “a ponta do iceberg” quando se trata de
conhecer as reais motivações e desejos de alguém.

Segundo Gracia-Roza (1993):

Todo o pensamento moderno, de


Descartes a Hegel, tem na Consciência
uma referência central. Com Freud a Cons-
ciência perde esse estatuto. Passa a
representar uma pequena parte da
totalidade psíquica, além de deixar de ser a
sede da verdade.
(GARCIA-ROZA, 1993, p. 219)

A verdade passa a ser relacionada ao desejo (logo, ao inconsciente) e a


consciência passa a ser o lugar da ilusão. A imagem a seguir mostra a relação
entre esses três sistemas para Freud:

Representação dos sistemas de Freud pelo iceberg.

Podemos perceber que o funcionamento inconsciente é a principal fonte para a


compreensão dos fenômenos psíquicos. Entretanto, os dois outros sistemas são
fundamentais para a estrutura psíquica, proporcionando o desenvolvimento de
um bebê até sua inserção no meio social. Veja o detalhamento a seguir:

Consciente expand_more

Estão as representações mentais das quais estamos plenamente


conscientes no momento, o que faz com que esse sistema psíquico
esteja em permanente transformação, pois há uma grande circulação de
representações na consciência, de acordo com a vivência de cada
pessoa.

Pré-consciente expand_more

Localizam-se aquelas representações que podem vir à tona na


consciência, mas que não estão disponíveis no momento. Sobre o pré-
consciente, podemos pensá-lo ainda como algo entre o inconsciente e o
consciente, filtrando as informações que passarão para o consciente. O
sistema pré-consciente foi concebido como um sistema articulado ao
consciente (Pcs-Cs), funcionando, assim, como uma espécie de peneira.
O pré-consciente também funciona como um tipo de arquivo de registros
e, embora as ideias pré-conscientes possam estar fora do alcance da
consciência, elas não são inconscientes, ou seja, não foram recalcadas.
Dessa forma, os pensamentos pré-conscientes podem ser recordados
sem a resistência da censura.

Inconsciente expand_more

Estão as representações que já ocuparam o consciente e/ou o pré-


consciente, mas que foram expulsas porque causavam angústia. São
representações que sofreram recalque e, dessa forma, não podem mais
se tornar conscientes sem que se aplique um intenso trabalho.

O inconsciente merece destaque como conceito fundamental para a


compreensão da proposta psicanalítica, não somente como uma das
instâncias psíquicas.

O inconsciente
A ideia de inconsciente surge associada ao conceito de recalque, ambos
derivados do tratamento da histeria. Freud começou a tratar as pacientes
histéricas juntamente com Josef Breuer, utilizando o método catártico, com o
auxílio da hipnose.
O que nos interessa entender aqui, entretanto, não é o método e
sim a operação psíquica sobre a qual ele incidia.

Por meio da hipnose, a qual provocava um estado de rebaixamento da


consciência, a paciente lembrava do trauma que originou o sintoma. A partir
dessa lembrança, a paciente podia reagir da forma como não reagiu no
momento exato do trauma. Freud e Breuer chamaram de ab-reação essa emoção
que funcionava como uma catarse; daí o nome de “método catártico” conferido a
essa prática.

Exemplo
Para exemplificar brevemente o tratamento exposto, vamos abordar o caso de
Anna O., paciente de Breuer, cuja história causou grande interesse em Freud e
deu margem a vários desdobramentos teóricos. Anna O. era uma mulher de 21
anos que adoeceu enquanto cuidava de seu pai enfermo. Sua doença começou
como uma tosse intensa, evoluindo para vários outros sintomas.

Em determinado período de sua doença, durante algumas semanas, Anna O.


recusava-se a beber água e saciava sua sede apenas com frutas. Certa vez,
durante um estado de hipnose, ela descreveu uma cena em que ficara enojada
ao ver um cachorro bebendo água de um copo. Após lembrar e reagir ao
episódio traumático, pôde beber água normalmente.

Esse é apenas um exemplo dentro de uma questão muito mais complexa, não só
o caso de Anna O., mas também essa relação entre trauma e sintoma.

Por que Anna O. não podia recordar essa cena sem o auxílio da hipnose? Por que
todos os relatos das primeiras pacientes histéricas seguem essa mesma lógica?

Lembrando que essa prática de Freud foi a base para seus primeiros conceitos,
vamos entender, a partir do exemplo, o que é o inconsciente.

As pacientes não tinham acesso às lembranças traumáticas, não se tratava de


um esquecimento. O esquecimento relaciona-se à seleção de representações
que registramos ao longo da vida. Muitas vezes, pode estar associado ao tempo
decorrido entre o fato e a lembrança deste ou à importância de tal fato. É
possível, entretanto, que o contato com determinados estímulos leve à
lembrança do que foi esquecido.
Exemplo

Você não lembra de uma colega de infância, mas, ao se deparar com o cheiro do
perfume que ela usava, pode vir a lembrar-se dessa amiga, sem muitas
dificuldades.

No caso da histeria, não se tratava de um simples esquecimento, o que estava


em questão ali era o recalque, um mecanismo de defesa que impede a
lembrança. Estamos diante da distinção entre inconsciente e pré-consciente.

No pré-consciente, estão as No inconsciente, estão


representações que podem representações que foram
vir à consciência, mas não expulsas do sistema pré-
estão no momento, como close consciente/consciente por
no exemplo da amiga de causarem mal-estar, como o
infância. cachorro bebendo água no
copo, no caso de Anna O.

O recalque, dessa maneira, é uma forma de proteção diante da dor do trauma ou


do mal-estar causado em face das normas sociais vigentes. Assim, podemos
compreender o inconsciente como uma consequência do recalque. As
lembranças traumáticas perdem o investimento afetivo e se tornam
inconscientes.

Atenção!

Não é possível lembrar da ideia que subjaz ao trauma, entretanto, o conteúdo


recalcado continua a exercer força por meio das formações do inconsciente. O
sintoma do caso aqui exemplificado ilustra o retorno do recalcado, uma
formação patológica do inconsciente.

Nota-se que a primeira tópica teve como um dos seus eixos a natureza das
representações mentais que causavam angústia e sofriam recalque. Outra
característica foi a abordagem do ponto de vista econômico, que veremos a
seguir.
Princípio do prazer e princípio da realidade
Para abordar esses dois princípios, é necessário associá-los à oposição entre
processo primário e processo secundário. Eles correspondem às duas formas
de circulação de energia no psiquismo:

Energia livre Energia ligada


(processo (processo
primário) secundário)
No processo primário, a No caso do processo
energia escoa livremente de secundário, a energia está
uma representação para “ligada” antes de escoar e a
outra, como nos processos de satisfação pode ser adiada. O
condensação e deslocamento processo primário caracteriza
dos sonhos, e tende a investir o sistema inconsciente e o
aquelas representações processo secundário diz
associadas a experiências de respeito ao sistema pré-
satisfação. consciente/consciente.

O processo primário está relacionado à descarga de excitação imediata, sem


barreiras, enquanto o processo secundário se relaciona ao pensamento de
vigília, ao juízo, à atenção. Os processos psíquicos primários funcionam sob a
égide do princípio do prazer:

Pelo qual a realidade externa cede lugar à


economia pulsional, ou seja, à regulação
prazer-desprazer. E aparecem sob a forma
de sonho ou do fenômeno neurótico, pois
são incapazes de conduzir sua existência.
(FREUD, 1989g, p. 192)

De fato, os bebês nascem imersos no princípio do prazer, sem dispositivos para


lidar com as exigências da realidade. O princípio da realidade começa a operar à
medida que o desenvolvimento permite.

Nos Três ensaios sobre a teoria da


sexualidade (1905), Freud observa que
o bebê “alucina o seio”, repetindo a
experiência de satisfação advinda da
amamentação. Mas é quando o bebê
chora, comunicando ao meio externo a
sua demanda, que existe a
possibilidade do encontro com um
objeto real, que vai satisfazê-lo
naquele momento.

Apesar de o bebê, nos primeiros meses, não distinguir o seio de si mesmo, ele
está em contato com uma via real de satisfação. Vemos aí a ação do processo
psíquico secundário, que envolve uma ligação — catexia — do ego com um
objeto externo real.

Atenção!

O ego, nesse contexto, não é o ego da segunda tópica, que veremos mais
adiante; aqui o ego surge como um fator de ligação dos processos psíquicos,
associado ao sistema pré-consciente/consciente.

Freud assinala que a mais primitiva satisfação pulsional está relacionada à


nutrição e “não é sem boas razões que, para a criança, a amamentação no seio
materno torna-se modelar para todos os relacionamentos amorosos” (FREUD,
1989j, p. 209). A amamentação imprime uma marca de prazer no bebê que vai
além da necessidade biológica. Nesse sentido, Freud afirma que a satisfação
humana vai além das necessidades. Entretanto, é necessário que o bebê saia do
circuito da energia livre, no qual impera absoluto o princípio do prazer, para que a
vida aconteça. “Em última análise, é preciso amar para não adoecer” (FREUD,
1989i, p. 101).
Essa frase do texto Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914, é bastante
difundida nas redes sociais com uma conotação romântica. Mas, na verdade, é
disto que Freud está falando: é preciso fazer ligação com objetos reais, mesmo
que revestidos de fantasia, para não adoecer psiquicamente.

O desenvolvimento do princípio da
realidade é o que permite a inserção
no meio social. Por exemplo: um bebê
de três meses urina na fralda como
descarga de tensão imediata. Seria
impossível esperar dele algo diferente,
uma vez que não existe
desenvolvimento cognitivo, perceptivo
ou psicomotor para outra ação. No
entanto, de uma criança de 5 anos,
pode-se esperar que segure a
descarga imediata de urina e aguarde
sua vez para ir ao banheiro (dentro de
um limite aceitável, é claro), assim
como compreenda que é necessário
adquirir esse comportamento.

Por vezes, entretanto, o princípio do prazer pode imperar também no


funcionamento psíquico de um adulto. É uma forma de explicar a drogadição,
outras compulsões e até mesmo determinadas formas de se relacionar.

O equilíbrio entre princípio do prazer e princípio da realidade,


nesse sentido, está associado à saúde psíquica e à vida em
sociedade, na qual normas precisam ser introjetadas e o
prazer muitas vezes precisa ser adiado.

O desenvolvimento do princípio da
video_library realidade
O prof. doutor Luciano de Souza Dias aborda o processo de saída do ego do
circuito da energia livre, no qual impera absoluto o princípio do prazer, para que a
vida aconteça, além de falar sobre o equilíbrio entre princípio do prazer e
princípio da realidade, associado à saúde psíquica.

Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Durante a quarentena provocada pela pandemia da covid-19, muitas


mudanças e adaptações foram necessárias. Algumas famílias ficaram em
casa, com os pais trabalhando em home office e as crianças estudando on-
line. A dificuldade de concentração nas tarefas escolares, o confinamento e a
distância da escola, amigos e familiares foram motivos que deixaram as
crianças mais irritadas e, em alguns casos, agressivas. Débora é uma mãe
que se encontra nessa situação. Está trabalhando em casa e fica o dia inteiro
com suas duas filhas, Laura e Nina, sem contar com ajuda o tempo todo.
Laura tem 7 anos e Nina é um bebê de 3 meses. Na hora de amamentar Nina,
Laura pede a atenção da mãe em uma tarefa escolar. Quando Débora
responde que não pode ajudá-la naquele momento, a menina chora e diz que
a mãe não gosta dela. Ao mesmo tempo, Nina chora no berço. Débora segura
Nina no colo para amamentá-la e diz a Laura que vai conversar com ela mais
tarde e ajudar em toda a tarefa escolar.

Como podemos justificar a decisão da mãe em relação às duas filhas que


pediam sua atenção ao mesmo tempo? Marque a alternativa que apresenta a
resposta correta.
Laura pode prescindir da atenção da mãe, pois o desejo
A
inconsciente já não se faz tão presente na idade dela.

O processo primário é mais dominante no comportamento de


B
Laura do que no comportamento de Nina.

O princípio da realidade já se faz presente na vida de Laura, o


C
que faz com que ela consiga lidar com o adiamento do prazer.

No caso de Laura, o princípio do prazer não se faz mais


D
presente.

O processo secundário é o funcionamento primordial na idade


E
de Nina.

Parabéns! A alternativa C está correta.

O princípio da realidade se desenvolve com o processo de amadurecimento.


Um bebê de 3 meses é regido pelo princípio do prazer, que não suporta o
adiamento da satisfação. Assim, a filha mais velha, mesmo experimentando
certa frustração, é capaz de lidar com a espera pela atenção da mãe.

Questão 2

Entre as primeiras histéricas tratadas por Freud, ainda com o método da


hipnose, encontra-se o caso de Emmy von N. A seguir, temos um trecho do
tratamento descrito por Freud nos Estudos sobre a histeria:

“Em seguida, coloquei-a em hipnose e perguntei mais uma vez: Por que a
senhora não consegue comer mais? A resposta veio prontamente e consistiu,
mais uma vez, numa série de razões dispostas em ordem cronológica a partir
de seu acervo de lembranças: Estou pensando em como, quando eu era
criança, muitas vezes acontecia que, por malcriação, recusava-me a comer
carne ao jantar. Minha mãe era muito severa a esse respeito e, sob a ameaça
de um castigo exemplar, eu era obrigada, duas horas depois, a comer a carne,
que era deixada no mesmo prato. A essa altura a carne já estava muito fria e
a gordura, muito dura (ela demonstrou sua repulsa) …. ainda posso ver o
garfo na minha frente… um de seus dentes era meio torto. Sempre que me
sento à mesa vejo os pratos diante de mim, com a carne e a gordura frias.”
(FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Rio de Janeiro: Imago,
1989, p. 42).

Dentre as opções abaixo, assinale aquela que explica corretamente esse


fragmento clínico.

Emmy von N. tinha dificuldades alimentares que poderiam se


A
transformar em um transtorno alimentar, como a anorexia.

Freud tentava, por meio da hipnose, ter acesso ao pré-


B
consciente de Emmy von N.

O recalque incide sobre o fato traumático, mas esse processo


C
não tem relação com os sintomas.

Emmy von N. relata sua lembrança mais facilmente por meio


D da hipnose, porque, estando no inconsciente, a história não
estava esquecida, mas sim recalcada.

Mediante o recalque se forma o pré-consciente, no qual estão


E
representações que podem ser acessíveis à consciência.

Parabéns! A alternativa D está correta.


O recalque, mecanismo na base do inconsciente, impede a lembrança de uma
situação traumática, a não ser pelo trabalho da análise. Não se trata do
esquecimento de uma representação que pode vir à consciência caso algum
estímulo a essa lembrança aconteça. Esse tipo de representação esquecida
diz respeito ao pré-consciente, não ao inconsciente. Ainda, nesse contexto,
não se falava em transtorno alimentar.

2 - A importância e o funcionamento do inconsciente


Ao final deste módulo, você será capaz de definir o conceito de inconsciente, sua importância na
teoria psicanalítica e seu modo de funcionamento.

As formações do inconsciente:
sonhos, atos falhos e chistes
As formações do inconsciente são efeitos dos processos psíquicos
inconscientes. Trata-se de uma elaboração psíquica e simbólica que tem relação
com o conteúdo recalcado.
Os sonhos
Em sua obra A interpretação de
sonhos, publicada em 1899, Freud
(1989a, p. 99) escreveu que “O sonho
é a estrada real que conduz ao
inconsciente”. O trabalho com os
sonhos o levou a uma compreensão
profunda do psiquismo, que foi
fundamental para a criação da
Psicanálise.

A essência do sonho é um desejo que


fora recalcado durante a infância.
Nesse sentido, o sonho é sempre uma
realização de desejo. Podemos
entender os sonhos como processos
primários que produzem o modelo da
experiência de satisfação do princípio
do prazer (GARCIA-ROZA, 1993).

Segundo Freud, sempre haverá dois conteúdos básicos intrínsecos na


interpretação do sonho: o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos
oníricos latentes. O material do primeiro corresponde ao sonho lembrado, que
pode ser relatado pelo sonhador. Já o material do segundo é o que há de oculto
e inconsciente no sonho, o que se pretende atingir pela interpretação.
Afirmamos, então, que há uma distância entre o sonho sonhado (conteúdo
latente) e o relato do sonho (conteúdo manifesto).

Entre esses dois conteúdos, impera a censura, impedindo que o


conteúdo latente seja acessado pelo sujeito, exceto pelo trabalho
de interpretação analítica.

Podemos explicar a censura como uma tendência que domina a consciência de


uma pessoa, com a finalidade de inibir outra tendência que lhe é oposta,
mantendo, assim, o conteúdo inconsciente fora do alcance da consciência. A
censura atua, dessa forma, como uma força que impede o acesso ao fato
traumático.

Quando adormecemos, Ao acordarmos e


desligamo-nos dos lembrarmos do sonho,
estímulos externos, que entretanto, a censura se faz
permanecem parcialmente keyboard_double_arrow_right presente entre o que foi
afastados, ocorrendo um sonhado e o que pode ser
relaxamento da censura. lembrado.

Nisso consiste o trabalho do sonho ou elaboração onírica.

Ainda assim, apesar do trabalho da censura, Freud afirma que os sonhos são
sempre realização de desejo, especificamente de desejos que estão na
contramão das imposições sociais, como os costumes, a educação, a religião,
os tabus e as normas. Aquilo que lembramos do sonho passa pelo trabalho da
censura, assim, essa realização de desejo pode não ser percebida por aquele
que sonha.

Quando falamos do pesadelo, essa relação entre o que pode ser percebido e o
que se sonha fica mais evidente. O que ocorre nos pesadelos é uma falha no
processo de trabalho do sono. Um conteúdo inconsciente não teria sido
suficientemente deformado ao ponto de poder habitar a consciência. Segundo
Absáber (2005):

Sendo assim, o pesadelo tomaria


vantagem da diminuição da censura para
fazer existir na consciência um conteúdo
recalcado, o qual no estado de vigília não
estaria ‘autorizado’ a estar lá.
(ABSÁBER, 2005, p. 46)

Ou seja, a realização de desejo relacionada ao sonho não diz respeito a uma


sensação percebida pela consciência, mas ao próprio mecanismo do conflito
psíquico, que se atualiza no embate entre desejo e censura.

Atenção!
É importante ressaltar que, para Freud, esses desejos inconscientes se ligam a
restos diurnos. São fatos, afetos, acontecimentos experimentados durante o dia
ou no dia anterior. O desejo inconsciente atravessa a barreira da censura no
momento do sonho e se articula a esses elementos, que no sonho ganham um
sentido diferente daquele vivenciado quando estamos acordados. Por isso,
muitas vezes, os sonhos são absurdos, não “fazem sentido” para nossa
consciência: diversos elementos se fundem e o sonho não obedece à lógica da
consciência.

Para chegar à narrativa do sonho, faz-se necessário o trabalho da elaboração


onírica, por intermédio dos quatro mecanismos fundamentais do trabalho do
sonho: condensação, deslocamento, figuração e elaboração secundária, sendo
esta última um segundo momento da elaboração onírica, na tentativa de conferir
inteligibilidade ao sonho.

Condensação expand_more

Os elementos que lembramos dos sonhos são resumidos se os


compararmos aos elementos oníricos dos quais eles se originaram.
Vários elementos vivenciados se combinam em uma só ideia. O conteúdo
manifesto é menor do que o conteúdo latente; o contrário nunca
acontece. Assim, pode ocorrer o ocultamento de alguns acontecimentos
do sonho latente, passando apenas alguns fragmentos para o sonho
manifesto. A combinação de vários elementos em um só passa por uma
espécie de filtro, sob o comando da censura.

Um exemplo de condensação é quando sonhamos com uma pessoa que


conhecemos, mas no sonho ela é outra pessoa, tem a imagem de outra
pessoa, conhecida ou não. No sonho sonhado, esses dois elementos
estiveram presentes, mas, com o trabalho da condensação, lembramos
da fusão entre os dois, a princípio ininteligível.

Deslocamento expand_more

Consiste na inversão da intensidade psíquica de alguns elementos do


sonho. O aspecto mais significativo do sonho ganha menos importância,
enquanto os elementos secundários podem aparecer com riqueza de
detalhes. A intensidade é deslocada para elementos que não carregam
significados mais profundos.

Ao narrar o sonho, muitas vezes, nos damos conta da presença de


determinada pessoa, por exemplo, que apareceu no sonho sem que
tivesse muita importância, muitas vezes não vemos nenhum sentido em
sua presença. Podemos dizer que essa lembrança sem intensidade
carrega, no sonho, um significado importante no que diz respeito ao
desejo inconsciente. Mais uma vez, é compreensível a ação desse
mecanismo quando lembramos do funcionamento da censura sobre o
sonho.

Figuração expand_more

Consiste na seleção e transformação dos pensamentos dos sonhos em


imagens. A figuração, por si só, é um mecanismo responsável pela
distorção resultante da elaboração onírica.
Elaboração secundária expand_more

Ocorre a modificação do sonho, de forma que ele pareça uma história


coerente e compreensível. Esse mecanismo faz com que o sonho perca
parte de sua aparência de absurdidade. Acontece na narrativa do
conteúdo manifesto.

Conteúdos básicos intrínsecos na


video_library interpretação do sonho
O prof. doutor Luciano de Souza Dias esclarece, neste vídeo, que os sonhos são
processos primários que produzem o modelo da experiência de satisfação do
princípio do prazer; abordando o conteúdo latente e o conteúdo manifesto do
sonho e o papel da censura.

O ato falho
Quando Freud substitui a técnica da hipnose pela associação livre, a fala do
paciente toma um valor ainda mais imprescindível na clínica. A partir daí, Freud
percebe que o inconsciente insiste e surge também na fala, emergindo no
consciente pelo equívoco.

A narrativa é importante do ponto de vista do que é contado, mas


também nos momentos em que falha.
Em suas Conferências introdutórias XXI (1916-1917), Freud aborda o ato falho. O
lapso verbal, em especial, será considerado por Freud como o mais apropriado
para investigação, pois:

[...] ao enunciar algo distinto do que


intencionava, o que cada sujeito encontra é
perplexidade ou irritação. Por vezes, esse
fenômeno sequer é reconhecido pelo
falante, sendo revelado pela reação do
interlocutor. A perplexidade ou irritação,
como breve resposta afetiva, leva o sujeito
a se questionar sobre o que esse
fenômeno específico quer dizer.

(AYRES, 2017, p. 28)

Entende-se, portanto, que falar uma palavra no lugar daquela que seria
intencional conscientemente permite uma forma de acesso aos conteúdos que
são repelidos pela consciência. Para Freud, o ato falho evidencia que há mais de
uma intenção em jogo. “A interferência ou confronto de duas intenções
diferentes permite que uma dada expressão ou frase seja enunciada, a despeito
da intenção consciente do falante” (AYRES, 2017, p. 28).

Em outras palavras, o confronto entre intenções evidencia a existência de dois


sistemas psíquicos (consciente e inconsciente) e o conflito entre eles, o que está
na base de toda a teoria freudiana.

Podemos citar como exemplo de ato falho chamar uma pessoa pelo nome de
outra ou trocar palavras de sentidos diferentes: “hoje o dia está muito quente”,
quando a intenção consciente era dizer “hoje o dia está muito frio”. A palavra
quente, que emerge na narrativa, abre sentido para outro conteúdo, que seria
inconsciente.
Dessa forma, Freud afirma esse
fenômeno — do ato falho — como uma
formação do inconsciente. Tal como o
sintoma, há no ato falho uma
formação de compromisso entre a
intenção consciente da pessoa e o
conteúdo recalcado.

Os chistes
Em 1905, Freud escreve O chiste e a sua relação com o inconsciente. Nesse texto,
Freud analisa elementos, características e motivações por trás das piadas
cotidianas das quais a maioria de nós acha graça. Ele tenta compreender qual
seria o real motivo delas serem contadas.

As piadas, principalmente as tendenciosas, serviriam como uma forma de liberar


pensamentos inibidos.

O chiste também carrega o duplo


sentido, ou seja, a graça está no que
não é dito, mas é compreendido. Não
se explica uma piada, o riso é
provocado pela compreensão do não
dito. O conteúdo é, muitas vezes, de
cunho sexual, agressivo ou crítico.
Nesse sentido, Freud considera que
conteúdos inconscientes, muitas
vezes hostis e reprimidos socialmente,
podem ser externalizados pelo humor.

O chiste também é visto na Psicanálise como uma forma de laço social, é uma
narrativa feita ao outro. A piada provoca o riso do grupo para o qual é contada,
gerando uma satisfação em quem conta. Outro tipo comum de piada é aquele
direcionado a uma figura de poder, um credo, um povo etc.

Atenção!
Aquilo que não se pode falar abertamente devido às restrições da cultura, é
revelado pelo humor, configurando uma suspensão temporária da censura. Isto
é, por meio do chiste, do humor, também é possível observar a expressão do
inconsciente, não de forma explícita, já que o recalque incide sobre esse
conteúdo, mas de forma simbólica.

Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Em sua obra A interpretação de sonhos, publicada em 1899, Freud escreveu


que “O sonho é a estrada real que conduz ao inconsciente”. Essa afirmativa
continua atual na Psicanálise, sendo o sonho uma formação do inconsciente
que desperta o interesse do psicanalista no decorrer de uma análise. Assinale
a alternativa que apresenta o porquê de isso acontecer.

A O sonho latente é mais extenso do que o conteúdo manifesto.

O sonho é sempre uma realização de desejo e, nesse sentido,


B
uma via privilegiada para o inconsciente.

O sonhador consegue contar na análise tudo o que sonhou


C
durante a noite, revelando seus desejos e medos.

D O trabalho do analista consiste na interpretação dos sonhos.

A elaboração secundária permite total acesso ao sonho


E
sonhado.
Parabéns! A alternativa B está correta.

O sonho é sempre uma realização de desejo e, por essa razão, torna-se um


acesso privilegiado aos conteúdos recalcados. O desejo realizado não é
acessível à consciência devido à censura, mas o conteúdo manifesto do
sonho se presta à interpretação do analista.

Questão 2

Sonhos, atos-falhos e chistes são formações do inconsciente. Isso significa


que, apesar da força do recalque, o inconsciente consegue se expressar e
produzir efeito na vida consciente. Entretanto, para conseguir se expressar, é
necessário que o conteúdo passe por mecanismos que driblem a censura.
Entre esses três tipos de formação do inconsciente, os sonhos têm atenção
privilegiada como via para o inconsciente. Sobre os mecanismos do sonho,
assinale a alternativa correta.

O recalque permite que o conteúdo oculto e inconsciente no


A
sonho seja lembrado pelo sonhador.

B O sonho obedece ao tempo lógico, da consciência.

A elaboração secundária faz com que o sonho pareça mais


C
coerente.

O conteúdo latente é o sonho relatado ou, podemos dizer, o


D
sonho lembrado.

No sonho, muitas vezes, a imagem de uma só pessoa


E representa mais de uma pessoa. Isso é possível por meio do
processo de elaboração secundária.

Parabéns! A alternativa C está correta.

A elaboração secundária é o mecanismo que confere inteligibilidade ao


sonho. O mecanismo responsável pela fusão de vários elementos em um só é
a condensação. Os outros mecanismos mencionados nas demais
alternativas não correspondem ao sonho.

3 - A segunda tópica freudiana e suas relações


Ao final deste módulo, você será capaz de descrever a segunda tópica freudiana e a relação entre id,
ego e superego.

A segunda tópica freudiana: id,


ego e superego
Em O ego e o id, texto de 1923, Freud apresenta sua segunda tópica, uma outra
forma de compreender o aparelho psíquico, considerada estrutural. A divisão do
aparelho psíquico em consciente, pré-consciente e inconsciente começou a se
mostrar insuficiente à medida que Freud foi avançando em suas observações e
teorias.

O ego, até então, estava totalmente situado no consciente e no pré-consciente,


enquanto no inconsciente estariam as representações mentais que o ego teria
recalcado. Freud considerava que o conflito psíquico seria travado entre o ego e
o inconsciente. Um ego consciente que protegeria o sujeito de pensamentos e
ideias inconciliáveis com o sistema de crenças e valores versus um conjunto de
representações recalcadas.

Id, ego e superego.


A experiência clínica levou Freud a perceber, entretanto, que uma parte
considerável do ego também era inconsciente. Durante uma análise, a
dificuldade de lembrar ou falar de um assunto indica sua relação com
representações recalcadas, que são inconscientes. Freud observou que haveria
uma resistência do ego impedindo o acesso às representações mentais
recalcadas. Mas essa resistência também seria inconsciente, o paciente não
tinha consciência de sua ação.

Ora, se a resistência era uma função do ego e também era


inconsciente, o ego não poderia ser totalmente consciente.

Essa mudança do olhar de Freud reorganiza a concepção de ego e a torna mais


complexa, englobando também uma parte inconsciente. O aparelho psíquico
toma uma nova conformação teórica e passa a ser dividido em novas três
instâncias:

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Ego Id Superego

O id
O id é considerado o polo pulsional da personalidade, cujos conteúdos são
inconscientes. Do ponto de vista econômico, é o reservatório da libido (energia
psíquica de ordem sexual) e, do ponto de vista dinâmico, entra em conflito com o
superego, que tem a função do juízo moral.

Atenção!
O id não é sinônimo de inconsciente — o inconsciente se torna mais amplo na
segunda tópica —, mas seu funcionamento e conteúdo são de ordem
inconsciente.

Segundo Freud, o id seria nossa parte mais instintiva, que sustenta desejos,
ímpetos e vontades, sem conhecer freios morais. O id funciona de acordo com o
princípio do prazer e faz uma exigência constante de satisfação. O id é
organizado segundo a lógica inconsciente, na qual não existe tempo cronológico,
noção de espaço ou de certo e errado.

Podemos dizer que o bebê, em seus


primeiros momentos de vida, é puro id.
À proporção que o ego se desenvolve,
permite que a satisfação seja
alcançada com auxílio do princípio da
realidade, mediante investimentos em
objetos reais. É na relação entre id e
ego que o sujeito consegue construir
sua relação com o mundo, tornando-
se um ser social.

O ego
O ego da segunda tópica ganha uma versão ampliada, o que torna o conceito
mais complexo. Veja a seguir:

Primeira tópica Segunda tópica


Nela, como já vimos, Freud O ego continua sendo o polo
sinaliza um laço muito da consciência em que
estreito entre o ego e o podemos verificar a ação do
consciente/pré-consciente. princípio da realidade, tendo
uma função adaptativa.

O ego é uma parte diferenciada do id, a partir de seu contato com a realidade
externa.

A construção da segunda tópica leva em conta uma relação entre as instâncias,


e essa relação vai caracterizar o funcionamento psíquico. O ego mantém uma
relação com as reivindicações do id, com os imperativos do superego e com as
exigências da realidade, situando-se como um mediador. Sua autonomia,
entretanto, é relativa. Segundo Laplanche e Pontalis (2001):
Do ponto de vista dinâmico, o ego
representa eminentemente, no conflito
neurótico, o polo defensivo da
personalidade; põe em jogo uma série de
mecanismos de defesa, estes motivados
pela percepção de um afeto desagradável
— sinal de angústia.

(LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 124)

É importante ressaltar que o ego não tem função de bloquear o desejo. Em vez
disso, o que está em questão é garantir que as necessidades do id sejam
satisfeitas, mas de formas que sejam seguras, eficazes e adequadas. Do ponto
de vista econômico, o ego impede temporariamente a descarga de energia do id
até a hora e lugar adequado. Esse embate entre princípio do prazer e princípio da
realidade é constante e importante para lidar com situações da vida.

Exemplo
Pedro e João são dois colegas adolescentes que descem para o pátio comum
do condomínio onde moram. Pedro está comendo um hamburguer, João pede
um pedaço e Pedro diz não. A ação do princípio da realidade fará com que João
aguarde até poder comprar seu próprio hamburguer para, então, saciar esse
desejo. Esse comportamento, diferente de arrancar sanduíche da mão do colega,
propicia a vida em sociedade.

Freud compara o id e o ego com um cavalo e seu cavaleiro (FREUD, 1989e):


O cavalo representa o id: governado pelo princípio do prazer, ele busca
apenas satisfazer as suas necessidades, mas também fornece a
energia necessária para impulsionar os dois para a frente.

O cavaleiro representa o ego: guiado pelo princípio de realidade, ele


aproveita a energia do id e cria maneiras para guiá-lo na direção mais
adequada.

Embora seja conciliador e se adapte à realidade, o ego também funciona, em


parte, pela lógica do inconsciente. Diante do fato traumático, o ego lança mão de
mecanismos de defesa que são disparados sem que a consciência tenha acesso
a isso.

Os mecanismos de defesa do ego


Os mecanismos de defesa visam proteger a pessoa de traumas ou situações
desagradáveis que causam dor. É um movimento automático, que, apesar de
proteger, apresenta soluções que também podem causar dor e desconhecimento
sobre si mesmo. Vamos abordar os principais mecanismos e suas funções:

Recalque expand_more

O recalque é um conceito fundamental na construção da Psicanálise,


indissociável do conceito de inconsciente. Consiste em tirar da
consciência a representação dolorosa, desagradável ou inconciliável com
o sistema de crenças. O recalque “decide” que a pessoa “não quer saber”
sobre tal representação e a torna inconsciente. O material recalcado, que
compõe o inconsciente, retorna nos sintomas, o que demonstra que seu
caráter de defesa não é totalmente bem-sucedido.

Projeção expand_more

A projeção é um tipo de defesa que atribui ao outro características,


sentimentos e desejos que o sujeito se recusa a reconhecer em si
mesmo. É um movimento que lança para fora aquilo que o sujeito não
quer em si ou que causa incômodo. Verifica-se com certa frequência nas
relações interpessoais.

Por exemplo: uma mulher encontra-se insatisfeita no casamento e nutre


desejos inconscientes por outros homens, eventualmente. Ela passa a
ser extremamente ciumenta e receosa de que o marido a esteja traindo.
Por não saber lidar com o próprio desejo, ela o lança para fora, projetando
em seu marido o interesse por outras mulheres.
Outro exemplo em que podemos observar a projeção é na aplicação de
testes projetivos, muito utilizados para psicodiagnóstico na Psicologia
clínica. São testes que oferecem estímulos que não trazem em si um
conteúdo fechado. Essa atividade pressupõe que o sujeito vai projetar
conteúdos internos naqueles estímulos, frequentemente apresentados
em pranchas. Um exemplo é o teste de Rorschach, que se baseia, entre
outros pressupostos, em concepções psicanalíticas.

Teste de Rorschach.

Formação reativa expand_more

É um mecanismo caracterizado pela transformação de um pensamento


ou sentimento no seu oposto, em que o sujeito adere à ideia contrária
àquela que foi recalcada, muitas vezes de forma excessiva. As
formações reativas costumam ser investidas com intensidade, mantendo
vivos os desejos originais no inconsciente.

Como exemplo, podemos citar alguém com desejos homossexuais que


não consegue aceitá-los. Essa pessoa pode desenvolver um
comportamento homofóbico, intolerante a qualquer menção feita à
homossexualidade.

Racionalização expand_more

O mecanismo de racionalização indica a atribuição de motivações mais


aceitáveis e intelectuais do que as verdadeiras, das quais o ego se
defende. O conteúdo desconfortável para o ego é transformado em uma
justificativa de ordem racional ou ideal, no campo do pensamento. Trata-
se de uma defesa que se apoia num raciocínio lógico, explicando
sentimentos e emoções e, assim, disfarçando os conflitos internos.

Regressão expand_more

É um mecanismo que induz o retorno a uma fase anterior do


desenvolvimento, em que as satisfações eram mais imediatas e o
princípio do prazer tinha mais espaço.

Um menino tem 6 anos quando nasce a irmãzinha. Esse fato o faz


retornar, por exemplo, à fase oral. Ele passa a chupar dedo, pede
mamadeira e chupeta. O que está em jogo nesse exemplo? A criança
experimenta uma sensação de insegurança que gera desprazer de forma
excessiva, além do que ela consegue elaborar. O ego se defende com a
regressão a um estado em que a própria criança era um bebê e tinha a
atenção da mãe de forma mais intensa, tal como hoje a irmã recebe.

Percebemos que, mesmo em sua parte inconsciente, o ego tem a função de


preservar o “eu”, afastando representações dolorosas. Defesa, adaptação e
controle de impulsos são as principais funções dessa instância. A capacidade
de controlar impulsos e adiar a satisfação são características de uma
personalidade madura. Pelo processo de educação, as normas culturais são
introjetadas e as crianças vão aprendendo como controlar seus impulsos e se
comportar de formas que sejam socialmente adequadas.
video_library Os mecanismos de defesa do ego
O prof. doutor Luciano de Souza Dias aborda a importância dos mecanismos de
defesa do ego. Assista!

O superego
O superego é um elemento estrutural do aparelho psíquico, responsável pela
imposição de normas, padrões e sanções. É uma instância que incorpora uma lei
e proíbe sua transgressão, tendo como função fazer juízo moral. O superego é a
última das três instâncias a se desenvolver e, de acordo com Freud, é o herdeiro
do complexo de Édipo. Isso indica o papel central da vivência edipiana na
organização do psiquismo.

O complexo de Édipo
Freud atribui ao complexo de Édipo
funções fundamentais na construção
subjetiva. O complexo de Édipo é
apresentado sob a forma de uma
história que consiste, de maneira
simplificada, no fato de a criança do
sexo masculino experimentar, por
ocasião da fase fálica, desejos
sexuais com relação à mãe, sendo o
pai percebido como um rival. Isso
transcorre até que a criança seja
obrigada a renunciar a suas
expectativas amorosas, em
decorrência do medo da castração.

Para compreender melhor, é importante ressaltar o que significa a castração


nesse cenário.

A experiência edipiana é transpassada pela descoberta da diferença anatômica


entre os sexos e suas consequências no psiquismo infantil. Em A organização
genital infantil (1923), Freud inclui a fase fálica entre as fases psicossexuais do
desenvolvimento, descrevendo a fase em que os órgãos genitais constituem a
zona erógena para a criança.

Entretanto, quando as crianças se deparam com a diferença anatômica, o único


genital que é registrado psiquicamente é o masculino. Dentro da lógica infantil,
não são os dois genitais, o do menino e o da menina, que são levados em
consideração, mas apenas o órgão masculino.

Atenção!
É fundamental observar que, nesse contexto, Freud se refere ao órgão genital
masculino pelo termo falo. Ao escolher um termo diferente de pênis, que seria a
nomenclatura vigente, Freud sublinha o caráter simbólico dessa operação. Não
se trata exatamente do genital, mas do que ele simboliza, seja em sua presença,
seja em sua ausência.

As crianças percebem a diferença sexual como:

Ausência do falo Presença do falo


(no caso da menina) close (no caso do menino)

Para a criança que se encontra na fase fálica, aquilo que é presente, maior e
explícito representa mais prazer. As crianças criam fantasias chamadas de
“teorias sexuais infantis” antes de aceitar, de fato, essa diferença. Por exemplo: o
“falo” da menina é pequeno e ainda pode crescer ou ela o perdeu por causa de
alguma ação que resultou em punição.

Resumindo
Sendo assim, o falo funciona como símbolo do narcisismo, e a fantasia de
castração significa uma ameaça à onipotência infantil. O falo, em sua presença,
confere importância e valor e, em sua ausência, leva ao sentimento de
inferioridade. Inaugura-se a divisão entre fálico e castrado, estando tal divisão
definida em termos de ausência ou presença desse símbolo valorizado que é o
falo.

Tendo compreendido o significado da castração dentro do universo infantil,


voltemos ao complexo de Édipo:

child_care O menino direciona, então, suas fantasias sexuais e


amorosas para a mãe, enquanto o pai se transforma num
rival. Ao mesmo tempo, tem o órgão genital como zona
erógena privilegiada (fase fálica) e, naturalmente, explora
essa área de prazer, tocando frequentemente em seu genital.

child_care Essa ação é alvo de recriminação e, segundo Freud, o menino


associa as repreensões com a imagem da castração
feminina. Assim, podemos compreender o abandono da
vivência edipiana por medo da castração.

child_care A mãe é abandonada como objeto de desejo e esse


investimento amoroso dá lugar à identificação com a figura
paterna. O menino se identifica com os traços de
masculinidade do pai e fará, no futuro, uma escolha amorosa
tal como o pai fez ao casar-se com a mãe.
Toda essa história tem um significado maior do que amor e identificação com as
figuras parentais. O que está em jogo na teoria do complexo de Édipo é a
introjeção da lei que organiza a cultura. Ao renunciar ao forte impulso edipiano, a
criança aceita que não pode ter tudo o que quer e nem ser tudo para alguém,
nem mesmo para a mãe.

No complexo de Édipo, o menino quer


ser o objeto exclusivo do amor
materno; ele deseja a atenção, os
cuidados e o reconhecimento da mãe
só para ele. Ao aceitar que isso não é
possível, ele aceita que a mãe tem
outros interesses além dele e renuncia
a uma parcela de seu narcisismo. O
pai aqui funciona como um terceiro
elemento fundamental para cortar a
relação dual entre mãe e filho. Nesse
sentido, o menino não pode satisfazer
esse desejo, mas entra na ordem
simbólica da cultura, em que poderá
ter outros investimentos amorosos.

Trata-se, então, da introjeção da lei paterna, a lei que organiza a capacidade de


renunciar a outros desejos em nome da inserção na sociedade.

Saiba mais
É importante ressaltar que o complexo de Édipo é uma teoria muito mais
extensa do que aqui apresentada. Os sentimentos infantis são ambivalentes, o
menino tem o pai como rival, mas também o ama. Destaca-se ainda que o
desfecho do Édipo não acarretará, necessariamente, uma orientação
heterossexual e, além disso, essa experiência se dá de forma diferente para a
menina. Ela entra no Édipo ao se perceber castrada, ao contrário do menino que
sai do Édipo por medo da castração.

Como herdeiro do complexo de Édipo, o superego começa a se constituir a partir


do momento em que a criança renuncia ao pai/mãe como objeto de desejo. É a
introjeção da lei, que forma a instância responsável pelo julgamento a partir das
normas sociais. A instância que carrega a noção de certo e errado exerce
autoridade moral sobre as ações e o pensamento, e de onde surgem a vergonha,
a repulsa e a moralidade. Na relação entre o ego e o superego, este representa
as exigências da cultura, enquanto o id faz pressão para a satisfação pulsional.

E assim funciona o aparelho psíquico na segunda tópica,


como um esquema que busca um constante equilíbrio, a fim
de permitir a vida dentro das possibilidades consideradas
adequadas e adaptadas à realidade externa.

Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Na segunda tópica freudiana, o superego é responsável pela censura e pelo


juízo moral. Última instância psíquica a se desenvolver, Freud afirma que o
superego é o herdeiro do complexo de Édipo. Isso implica compreender a
importância da vivência edipiana como constitutiva do psiquismo,
correlacionando essa experiência com a formação do superego. Assinale a
afirmativa que explica corretamente a relação entre complexo de Édipo e
superego.

O complexo de Édipo está relacionado com a descoberta da


A diferença anatômica entre os sexos e isso faz com que o
superego seja rígido em coibir o desejo sexual.
O complexo de Édipo traduz um desejo de subverter a ordem,
ocupando o lugar do pai junto à mãe. Quando a criança
B
renuncia a esse desejo, há a introjeção da lei paterna, que está
associada à capacidade de inserção na ordem social.

Na saída do complexo de Édipo, a criança tem o ego


C
enfraquecido, o que permite a formação do superego.

O superego é herdeiro do complexo de Édipo porque engloba


D
um ideal de amor para o futuro.

O superego é responsável por todo o sentimento de medo do


E ser humano e isso se dá por causa do medo da castração, que
faz o menino abandonar a mãe como objeto de amor.

Parabéns! A alternativa B está correta.

O superego é herdeiro do complexo de Édipo devido à interdição do desejo


incestuoso, que organiza o psiquismo para que o sujeito seja inserido na
cultura. O superego é a instância responsável pelo juízo moral advindo da
experiência edipiana.

Questão 2

No texto O ego e o id, Freud utiliza a metáfora do cavalo e do cavaleiro para se


referir à relação entre o id e o ego: “O cavalo provê a energia de locomoção,
enquanto o cavaleiro tem o privilégio de decidir o objetivo e guiar o
movimento do poderoso animal” (FREUD, S. O ego e o id (1923). Rio de
Janeiro: Imago, 1989, p. 121).

Marque a alternativa que traduz adequadamente essa metáfora.


O id tem a força do desejo inconsciente, com a qual o ego não
A
consegue lidar. O movimento psíquico é definido pelo id.

O aparelho psíquico indica a necessidade de adaptação à


B
realidade, portanto, o ego domina completamente o id.

Os mecanismos de defesa do ego são voltados para o id, com


C
o objetivo de amansar a sua força.

O ego e o id, na verdade, têm a mesma função, mas como o


D ego tem contato com a realidade externa, Freud associa o ego
ao cavaleiro.

O id é o reservatório da pulsão e exerce sobre o ego a


E exigência de satisfação, cabendo ao ego garantir essa
satisfação por meios aceitáveis e possíveis.

Parabéns! A alternativa E está correta.

A metáfora usada por Freud diz respeito à relação entre o id e o ego, em que o
ego propicia a satisfação exigida pelo id por meio do processo secundário e
do princípio da realidade. O ego não suprime os impulsos do id, mas os torna
possíveis.
4 - A compreensão do funcionamento psíquico
Ao final deste módulo, você será capaz de reconhecer a contribuição do texto O mal-estar na
civilização para a compreensão do funcionamento psíquico.

O mal-estar na civilização
O texto O mal-estar na civilização foi publicado em 1930 e o seu conteúdo é
considerado bastante atual para refletir sobre a relação entre o homem e a
sociedade.

Freud observa que a civilização é


composta por um conjunto de regras e
regulamentos que exercem controle
sobre a natureza e os relacionamentos
humanos. Freud analisa as
consequências da inserção na
sociedade, descrevendo uma divisão
entre natureza e cultura; tal inserção
seria o que diferenciaria o homem de
outros animais da natureza.
O mal-estar provém do embate entre as normas da civilização e as exigências do
id, do princípio do prazer. Nessa obra de Freud, podemos pensar o aparelho
psíquico de forma prática, a partir da condição do homem civilizado.

O sentimento oceânico
Freud inicia o texto comentando a troca de correspondência com um amigo,
sobre religião. O amigo em questão era Romain Rolland, professor de História da
Arte. Rolland comenta o texto de Freud O futuro de uma ilusão (1927), em que o
autor trata a religião como ilusão. Rolland discorda sobre a fonte propulsora da
religião. Para ele, as igrejas e sistemas de religião se apoderam de um
sentimento que caracteriza a religiosidade: um sentimento de “eternidade”, de
algo ilimitado, sem barreiras, que denominou “oceânico”. Seria um fato
puramente subjetivo, não um artigo de fé e não traria qualquer garantia de
sobrevida pessoal.

O sentimento oceânico seria a base da religiosidade.

Freud passa a refletir, então, sobre o que Rolland chamou de sentimento


oceânico. Para Freud, esse sentimento não indicaria a religiosidade, embora
possa ter sido vinculado posteriormente à religião. Se há um sentimento
oceânico, ele estaria relacionado ao início da vida, antes da indiferenciação entre
o eu e o outro, quando havia o predomínio do princípio do prazer:

O bebê lactante ainda não separa seu Eu


de um mundo exterior, como fonte das
sensações que lhe sobrevêm. Aprende a
fazê-lo aos poucos, em resposta a
estímulos diversos. Deve impressioná-lo
muito que várias das fontes de excitação,
em que depois reconhecerá órgãos de seu
corpo, possam enviar-lhe sensações a
qualquer momento, enquanto outras —
entre elas a mais desejada, o peito
materno — furtam-se temporariamente a
ele, e são trazidas apenas por um grito
requisitando ajuda. É assim que ao Eu se
contrapõe inicialmente um “objeto”, como
algo que se acha “fora” e somente através
de uma ação particular é obrigado a
aparecer.

(FREUD, 1989h, p. 35)

No processo de diferenciação entre a criança e o mundo externo, surge a


tendência de afastar o eu de tudo o que pode se tornar fonte de desprazer, a
jogar isso para fora, formando um primitivo “Eu-de-prazer”. Essa ordenação de
fronteiras, no entanto, pode escapar à experiência da realidade. Esse momento,
que pode ser considerado mítico, em que o bebê e o seio eram um só e o
princípio do prazer imperava, é uma marca indelével de satisfação. Essa unidade
narcísica não deixa de impulsionar o sujeito em sua direção como um
movimento desejante, mesmo que seja inalcançável. É a partir desse movimento
desejante nostálgico que Freud poderia compreender a existência de um
sentimento oceânico.

Desse modo, o papel do sentimento oceânico indicaria o desejo de restabelecer


o narcisismo ilimitado, enquanto a religião remontaria mais ao desamparo
infantil, que encontraria conforto numa figura paterna protetora e divina. O mais
importante nessa reflexão de Freud são os questionamentos que daí se
depreendem.

O que revela a própria conduta dos


homens acerca da finalidade e
intenção de sua vida, o que pedem
eles da vida e desejam nela alcançar?
É difícil não acertar a resposta: eles
buscam a felicidade, querem se tornar
e permanecer felizes. (FREUD, 1989h,
p. 38)
Ao abordar a felicidade como finalidade humana, Freud vai discorrer sobre as
fontes de sofrimento e as estratégias utilizadas para combatê-las.

Civilização: renúncia e sofrimento


Vimos que, para Freud, a busca da felicidade é o que dá sentido à vida,
entretanto, pela própria condição humana na civilização, sabemos que a
felicidade só pode ser experimentada de forma descontínua e episódica. O
sofrimento, por sua vez, é muito mais fácil de ser vivido e advém de três fontes:

looks_one looks_two looks_3


A fragilidade de O meio externo O
nossos corpos relacionamento
entre os
homens
Nosso próprio corpo, observa Freud, é fadado ao declínio e à dissolução. O corpo
humano adoece, envelhece, sendo fonte de dor e medo até como sinais de
advertência. O mundo externo é aqui compreendido como a força superior da
natureza, que pode se abater sobre nós de forma inevitável e destruidora. Não
temos controle sobre acidentes e catástrofes naturais. A relação com outros
seres humanos, para Freud, é a maior fonte dos nossos sofrimentos, de forma
mais dolorosa do que qualquer outra:

Sob a pressão destas possibilidades de


sofrimento, os indivíduos costumam
moderar suas pretensões à felicidade —
assim como também o princípio do prazer
se converteu no mais modesto princípio da
realidade, sob a influência do mundo
externo —, se alguém se dá por feliz ao
escapar à desgraça e sobreviver ao
tormento, se em geral a tarefa de evitar o
sofrer impele para segundo plano a de
conquistar o prazer.

(FREUD, 1989h, p. 41)

A civilização é descrita por Freud como a soma das realizações e regulamentos


que nos distinguem de nossos antepassados animais e que servem a dois
intuitos: “o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar seus
relacionamentos mútuos” (FREUD, 1989h, p. 42).

Essas funções são cumpridas, porém, de modo precário, já que a civilização não
é capaz de proteger o homem dos perigos e sofrimentos que a natureza e seu
corpo lhe impingem; muito menos é eficaz na tarefa de regular os
relacionamentos para serem sempre fruto de satisfação. No entanto, conforme
Freud descreveu em Totem e tabu, não fosse essa tentativa, mesmo que falha, de
regulamentação, os relacionamentos ficariam a cargo da vontade arbitrária do
indivíduo, situação em que o homem fisicamente mais forte decidiria o destino
dos demais, de acordo com seus próprios impulsos pulsionais e interesses.

A civilização impede a satisfação irrestrita de todas as necessidades, mas


permite um quantum de satisfação para todos. Além disso, são inequívocos os
ganhos e a contribuição advindos da civilização.

Exemplo
Freud cita as estradas de ferro, o telefone, a Ciência, certa proteção do homem
diante das forças da natureza como produtos da cultura que facilitam e
prolongam a vida humana. Ainda assim, no texto, Freud ressalta o mal-estar
gerado pela civilização.

O princípio do prazer domina o desempenho do aparelho psíquico e é


contornado justamente pela inserção social. Sobre o princípio do prazer, Freud
afirma: “seu programa está em desacordo com o mundo inteiro, tanto o
macrocosmo como o microcosmo. É absolutamente inexequível, todo o arranjo
do Universo o contraria” (FREUD, 1989h, p. 45). A necessidade de adaptação
custa ao ser humano uma boa parte de sua natureza. É necessário abdicar da
intensidade originária dos impulsos sexuais e agressivos.

O homem, apesar de seus ideais


narcísicos, é constantemente obrigado
a encarar sua natureza incompleta: a
incerteza dos relacionamentos e a
finitude, por exemplo, são fatos que se
impõem à existência. Freud explica a
neurose como fruto dessa relação do
homem com a civilização. O recalque
é consequência de uma série de
normas sociais que entram em
choque com o desejo.

video_library Papel da civilização no nosso psiquismo


O prof. doutor Luciano de Souza Dias fala sobre as três fontes de sofrimento e
como o homem, apesar de seus ideais narcísicos, é constantemente obrigado a
encarar sua natureza incompleta. Assista!

A busca da felicidade

Segundo Freud, “a vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós, traz
demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos
dispensar paliativos” (FREUD, 1989h, p. 37). Freud indica, então, uma série de
técnicas que os homens utilizam para evitar o sofrimento e obter prazer, isto é,
ser feliz da forma que é possível.

Atenção!
É importante ressaltar que, nesse contexto, Freud usa o termo felicidade
associado ao princípio do prazer, que tem como objetivo evitar o desprazer e
alcançar o prazer.

Uma das saídas seria se isolar voluntariamente, como o eremita, com o objetivo
de evitar os sofrimentos provenientes das relações humanas e evitar as
adversidades do mundo externo. Freud assinala que essa opção pode alcançar a
felicidade pela via da quietude, mas, ao dar as costas para o mundo externo, o
indivíduo pode substitui-lo por um mundo criado conforme seus próprios
desejos e tal afastamento da realidade externa pode dar lugar à experiência da
loucura. Em geral, essa alternativa não é eficaz para encontrar a felicidade.

Outra forma que o homem usaria para


lidar melhor com os infortúnios da
realidade seria o uso de substâncias
que produzem sensações imediatas
de prazer, como o álcool e as drogas.
A ingestão dessas substâncias muda
as condições de nossa sensibilidade e
torna difícil absorvermos impulsos
desprazerosos. Trata-se, entretanto, de
sensações passageiras, que
dependem totalmente do acesso a
entorpecentes.

A sublimação é outra técnica para evitar o desprazer, que ocorre quando se


consegue desviar a meta da pulsão. A satisfação por essa via não se dá no
campo da sexualidade, do princípio do prazer. A satisfação viria através da
criação, da atividade intelectual, da arte.

A satisfação desse gênero, como a alegria


do artista no criar, ao dar corpo a suas
fantasias, a alegria do pesquisador na
solução de problemas e na apreensão da
verdade, tem uma qualidade especial, que
um dia poderemos caracterizar
metapsicologicamente.

(FREUD, 1989h, p. 40)

Segundo Freud, a sublimação seria um meio “mais fino e elevado”, além de


consistente e eficaz. No entanto, este método não é acessível a todas as
pessoas e, apesar de produtivo, não proporciona uma proteção completa contra
o sofrimento.

Entre todas as técnicas já citadas,


Freud ressalta aquela que mais se
aproxima da felicidade completa: diz
respeito à “orientação da vida que
situa o amor no ponto central, que
espera toda a satisfação do fato de
amar e de ser amado” (FREUD, 1989h,
p. 43). Por certo, os apaixonados
experimentam um êxtase no
enamoramento e têm a sensação de
serem um só, o que traz a ilusão de
completude, de que nada falta.

Essa demasiada felicidade, entretanto,


pode dar lugar ao extremo sofrimento
caso o objeto amado nos abandone de
alguma forma.

Freud termina essa parte do texto afirmando que em nenhum desses caminhos
podemos alcançar tudo o que desejamos e faz uma observação importante do
ponto de vista econômico: “Assim como o negociante cauteloso evita imobilizar
todo o seu capital numa só coisa, também a sabedoria aconselhará talvez a não
esperar toda satisfação de uma única tendência” (FREUD, 1989h, p. 47).

Dica

A ideia seria investir a libido de formas diversificadas para que, na ausência de


um desses objetos ou forma de satisfação, o sujeito não experimente um
sofrimento desnecessário, pois ainda haverá outros investimentos. O êxito
jamais é certo e seguro, mas encontrar felicidade dependeria da capacidade da
constituição psíquica em adaptar sua função ao meio e aproveitá-lo para
conquistar prazer.

O superego cultural e o sentimento


de culpa
Na obra O mal-estar na civilização,
Freud articula a sua teoria pulsional
com a cultura. Ele observa que o
desenvolvimento do aparelho psíquico
no sujeito tem grande semelhança
com instâncias sociais, mas seu
interesse recai sobre o superego, que
tem funções parecidas no indivíduo e
na cultura. Freud diz que a evolução
cultural impõe barreiras à felicidade
também pelo sentimento de culpa que
provoca.

Mesmo antes de o superego ter se desenvolvido no psiquismo, já havia a reação


de medo da criança perante as autoridades externas. A criança teme perder o
amor dos pais caso contrarie suas ordens e, caso o faça, se sente culpada.
Segundo Freud (1989):

Quanto à consciência de culpa, é preciso


admitir que se apresenta antes do
Superego, ou seja, também antes da
consciência moral. É então a expressão
imediata do medo à autoridade externa, o
reconhecimento da tensão entre o Eu e
esta última, o derivado direto do conflito
entre a necessidade do amor dela e o
ímpeto de satisfação instintual, cuja
inibição gera a tendência à agressão.

(FREUD, 1989, p. 54)

Depois da formação do superego, o sujeito passa a lidar com duas camadas do


sentimento de culpa, uma de origem externa e outra interna, uma vez que, sendo
o superego uma instância interna, não é preciso cometer o ato transgressor para
sentir culpa, basta desejar fazê-lo.

Atenção!
Freud ressalta que a pulsão não satisfeita gera agressividade, um impulso
natural e constitutivo do humano, que também precisa ser barrado pelas
exigências sociais. Assim, o preço do progresso cultural seria a perda da
felicidade também pela supressão da agressividade e pelo acréscimo do
sentimento de culpa.

Acerca do superego cultural, Freud afirma que toma como base a personalidade
que grandes líderes deixaram para aquela cultura. Não podemos deixar de
lembrar que Freud se baseia na cultura ocidental moderna para sua análise, pois
foi nela que viveu e construiu sua teoria. Nesse contexto, ele cita Jesus Cristo
como o mais impressionante exemplo. Para Freud, o cristianismo “institui
severas exigências ideais, cujo não cumprimento é punido mediante ‘angústia de
consciência’” (FREUD, 1989h, p. 57).

O mandamento “Ama teu próximo


como a ti mesmo” exigiria que a
humanidade visasse à satisfação
altruísta acima de qualquer outra, o
que seria impossível alcançar devido à
força pulsional do id e às dificuldades
do ambiente real. Ainda que seja
humanamente impossível cumprir um
ideal tão avesso à natureza humana,
“a civilização negligencia tudo isso;
recorda apenas que quanto mais difícil
o cumprimento do preceito, mais
meritório vem a ser ele” (FREUD,
1989h, p. 58).

É importante ressaltar que a intenção de Freud não é propor o fim das normas
culturais e morais, ou simplesmente criticá-las. Freud considera o progresso da
civilização como necessário e precioso. A ideia é analisar as restrições impostas
ao humano e suas consequências.

Ao estudar as neuroses, Freud se deparou com o recalque tal como uma defesa
do ego que visa resguardar a pessoa do sofrimento e de ideias inconciliáveis
com a moral civilizada. Logo, o sintoma, para a Psicanálise, seria uma
consequência da civilização ocidental. Nada mais natural que o interesse de
Freud no tema.

Nesse trabalho, Freud foca bastante a luta entre natureza e cultura, o embate
entre id e superego, no entanto, precisamos lembrar que o ego tem como uma de
suas funções encontrar satisfações substitutas, aceitas socialmente e a partir
de objetos reais (não alucinados).

É também na civilização que encontramos satisfação, tornando suportável a


frustração da existência e permitindo a formação de laços sociais.

Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

“O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo que, fadado ao
declínio e a dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo como
sinal de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com
forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com
os outros seres humanos” (FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Rio
de Janeiro: Imago, 1989h).

Esse é um trecho de O mal-estar na civilização, publicado em 1930. Freud


descreve as fontes de sofrimento que revelam a fragilidade humana. A
percepção desse fato, aliada ao princípio do prazer, faz com que o homem
utilize estratégias na busca da felicidade.

Entre as alternativas abaixo, assinale aquela que apresenta uma estratégia


descrita por Freud.

A As regras sociais, que permitem colocar ordem na sociedade.

B A religião, que permite lidar com a nossa angústia existencial.

Os chistes, que permitem rir daquilo que ameaça a nossa


C
felicidade.

A relação amorosa romântica, que traz a ilusão da


D
completude.

E Os sonhos, que nos permitem modificar a realidade.

Parabéns! A alternativa D está correta.

Para Freud, a experiência que as pessoas apaixonadas experimentam é muito


próxima à satisfação plena, por proporcionar um êxtase altamente efetivo e
prazeroso. As outras técnicas mencionadas nas demais alternativas não
correspondem ao objetivo mencionado no comando da questão.

Questão 2
Em O mal-estar na civilização, Freud analisa as consequências da inserção na
cultura. A vida em sociedade exige restrição da satisfação pulsional, o que
tem consequências para a natureza humana. Freud fala sobre o superego
cultural, que seria construído de forma correlata ao superego individual, tendo
como ideal o modelo que grandes líderes deixaram para a cultura. Esse
embate entre os impulsos primitivos humanos e a cultura pode ser descrito
pelos conceitos relacionados ao funcionamento do aparelho psíquico.

Entre as opções abaixo, marque a correta.

O recalque representa a defesa do ego que visa resguardar a


A pessoa do sofrimento experienciado diante da falta de
normas e restrições sociais.

O id cumpre a função de mediador entre as exigências do ego


B
e o imperativo do superego.

O processo primário passa a ser desnecessário em relação ao


C processo secundário para que a ligação com objetos reais
aconteça.

As exigências culturais demandam que o sujeito lide com dois


D
tipos de sentimento de culpa, um externo e outro interno.

O inconsciente consegue ser totalmente controlado a partir do


E
recalque.

Parabéns! A alternativa D está correta.

A vida civilizada só é possível a partir da renúncia de grande parte dos


impulsos sexuais e agressivos, o que Freud relaciona com o sofrimento.
Dessa forma, a culpa é experimentada tanto pela existência de impulsos
internos inaceitáveis como pelo superego cultural.

Considerações finais
Como vimos, o aparelho psíquico é fruto de uma teoria que busca compreender
o conflito psíquico na base da neurose. Tanto a primeira tópica como a segunda
tópica são teorias que trazem uma ideia central na Psicanálise: o embate entre
princípio do prazer e princípio da realidade.

A Psicanálise traz a ideia de um sujeito dividido, que precisa renunciar à


satisfação imperativa do princípio do prazer, e com isso, torna-se faltoso e
limitado, mas também desejante. É na cultura que encontramos as
possibilidades para nos inventarmos e reinventarmos, mas com muitos desafios:
nada cessará os conflitos entre os sujeitos, a fragilidade e a finitude do corpo é
uma realidade e a natureza sempre poderá mostrar a sua força de destruição.

Apesar das adversidades, caminhos podem ser construídos, não para a


felicidade plena, mas para uma vida com obtenção de prazer e saúde psíquica.
headset Podcast
Agora, o prof. doutor Luciano de Souza Dias encerra o conteúdo desenvolvendo a
ideia de um sujeito dividido, apresentando o papel da cultura nessa dinâmica.

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Para aprofundar este estudo, recomendamos os seguintes textos de Freud:

A organização genital infantil (1923).

A dissolução do complexo de Édipo (1924).

Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os


sexos (1925).

Sexualidade feminina (1931).

Referências
ABSÁBER, T. O sonhar restaurado: formas de sonhar em Bion, Winnicott e Freud.
São Paulo: Ed. 34, 2005.
AYRES, S. Atos falhos: interpretação e significação. Natureza humana, São
Paulo, v. 19, n. 1, p. 24-37, jul. 2017.

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (I) (1900). Rio de Janeiro: Imago, 1989a.
(Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. 4).

FREUD, S. A organização genital infantil (1923). In: Freud, S. O ego e o ID e


outros trabalhos (1923-1925). Rio de Janeiro: Imago, 1989b. (Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. 19)

FREUD, S. Conferência introdutória XXI: O desenvolvimento da libido e as


organizações sexuais. In: Freud, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise
(Parte III) (1916-1917). Rio de Janeiro: Imago, 1989c. (Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud, v. 16)

FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Rio de Janeiro: Imago, 1989d.


(Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. 2)

FREUD, S. O ego e o id (1923). In: Freud, S. O ego e o ID e outros trabalhos (1923-


1925). Rio de Janeiro: Imago, 1989e. (Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud, v. 19)

FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). In: Freud, S. O futuro de uma ilusão, O
mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago,
1989f. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v.
21)

FREUD, S. O inconsciente (1915). In: Freud, S. A história do movimento


psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Rio
de Janeiro: Imago, 1989g. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud, v. 14)

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: Freud, S. O futuro de uma ilusão,


O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago,
1989h. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v.
21)

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: Freud, S. A história do


movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-
1916). Rio de Janeiro: Imago, 1989i. (Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud, v. 14)
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Freud, S. Um
caso de histeria, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos
(1901-1905). Rio de Janeiro: Imago, 1989j. (Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud, v. 7)

GARCIA-ROZA, L.A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: J.Z.E., 1993.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

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