GILBERGUES - Do-que-ainda-posso-falar-E-BOOK

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 213

Universidade Estadual da Paraíba

Profª. Célia Regina Diniz | Reitora


Profª. Ivonildes da Silva Fonseca | Vice-Reitora

Editora da Universidade Estadual da Paraíba


Cidoval Morais de Sousa | Diretor

Conselho Editorial
Alessandra Ximenes da Silva (UEPB)
Alberto Soares de Melo (UEPB)
Antonio Roberto Faustino da Costa (UEPB)
José Etham de Lucena Barbosa (UEPB)
José Luciano Albino Barbosa (UEPB)
Melânia Nóbrega Pereira de Farias (UEPB)
Patrícia Cristina de Aragão (UEPB)

Editora indexada no SciELO desde 2012 Editora filiada a ABEU

EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA


Rua Baraúnas, 351 - Bairro Universitário - Campina Grande-PB - CEP 58429-500
Fone: (83) 3315-3381 - http://eduepb.uepb.edu.br - email: eduepb@uepb.edu.br
GILBERGUES SANTOS SOARES

DO QUE AINDA
POSSO FALAR E
OUTROS ENSAIOS
(Ou quanto de verdade
ainda se pode aceitar)

Campina Grande - PB
2023
Editora da Universidade Estadual da Paraíba
Cidoval Morais de Sousa (Diretor)

Expediente EDUEPB
Design Gráfico e Editoração
Erick Ferreira Cabral
Jefferson Ricardo Lima A. Nunes
Leonardo Ramos Araujo
Revisão Linguística e Normalização
Antonio de Brito Freire
Elizete Amaral de Medeiros
Assessoria Técnica
Carlos Alberto de Araujo Nacre
Thaise Cabral Arruda
Walter Vasconcelos
Divulgação
Danielle Correia Gomes
Comunicação
Efigênio Moura

Copyright © EDUEPB
A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da
Lei nº 9.610/98.
Às Santos Soares, pelo que de mim fizeram.
À Liliann, pelo que fez e faz.
À Dante, pelo que de mim fará.
À Lívia, Clara e Vinícius pelo coração novo,
pela vida, por tudo que foi feito.
“Houve outrora um funcionário chamado ‘lembrete’, um
eufemismo para cobrador de dívidas. A tarefa oficial era
lembrar às pessoas o que elas gostariam de ter esquecido.
A função do historiador é, assim, ‘deixar um lembrete’ sobre
aquilo que se costuma fazer questão de esquecer”.1

“Na democracia você pode pedir tudo, inclusive


ditadura. Mas, experimente pedir democracia
numa ditadura para ver o que te acontece”2

“... contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu


tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tem-
pos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscu-
ros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa
obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando
a pena nas trevas do presente”.3

“Quanta é a verdade que um espírito suporta, quanta é a verdade


a que ele se aventura? — Eis o que sempre foi para mim o genuíno
critério dos valores. [...] Toda a realização, todo o passo em frente
no conhecimento resulta da coragem, da dureza contra si mesmo,
da integridade para consigo ... Não refuto os ideais, calço simples-
mente luvas diante deles ... Nitimur in vetitum: neste sinal há de
um dia a minha filosofia vencer, pois até agora a verdade foi sempre
fundamentalmente apenas proibida.”4

1 BURKE, Peter. Variedades de história cultural. SP: Civilização Brasileira, 2000


2 Entrevista ao Canal do Cortella, em 9 de julho de 2018, Disponível no Youtube.
3 AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC:
Argos, 2009.
4 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo (Como se vem a ser o que se é). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

6
APRESENTAÇÃO

Este livro é uma coletânea de artigos, ensaios e colunas já


publicados em jornais, sites e no meu próprio blog5. Aqui, temos
uma espécie de balanço do que produzi até agora. Como pretendo
seguir escrevendo, faço um apanhado do que já tratei para ver o que
ainda posso abordar em futuras produções. Estou me impondo o
desafio de seguir escrevendo, com novos elementos, mesmo que não
possa deixar de lado o arsenal (de conhecimentos) que pude recolher
ao longo de minha vida profissional, acadêmica e pessoal. O título
dessa coletânea diz algo sobre essa intenção.
Os artigos trazem a data de publicação e onde foram “postados”
pela primeira vez. É o “cacoete” do historiador que precisa contex-
tualizar, para situar-se no espaço/tempo. Assim, questões que me
pareciam corretas à época em que foram escritas, soarão absurdas.
Já outras parecerão repetitivas e/ou óbvias. A(o) cara(o) leitora(o)
me desculpe, mas é que como o “Brasil não é para principiantes”,
como diria Tom Jobim, ficamos sempre com a impressão de que não
mudamos nada nos últimos dois séculos. No entanto, e de fato, “o
passado nunca fica onde a gente deixa”6.
No entanto, o analista político desenha cenários, faz projeções.
Dessa forma, algumas de minhas hipóteses passadas são, hoje, certe-
zas. São convicções, conjunturais, mas são minhas convicções. Com
alguma (in)modéstia recôndita, devo dizer que minhas certezas
5 www.gilberguessantos.blogspot.com.br
6 Frase pronunciada pelo personagem Kari Sorjonen, da série “Bordertown”
(2016), disponível na plataforma de streaming Netflix.

7
frutificaram a medida em que tornei hábito, quase diário, o acompa-
nhamento e a análise de nossa tragicomédia política nacional. Con-
siderando a renitência pela qual trato de alguns temas, devo dizer
que as variações existem. Sendo uma coletânea que cobre um espaço
considerável de tempo, para o cientista político, não para o historia-
dor, permito-me tratar de temas e assuntos diferentes - aquilo que
compõem meu universo.
Como não pretendo cansá-la(lo) com certas formalidades, gos-
taria, apenas, de lhe dar algumas “recomendações”. Sem querer en-
trar em detalhes sobre a minha pessoa, mesmo porque nunca soube
bem legislar em causa própria, e como a partir de agora é função
sua julgar, criticar, analisar, opinar, e mesmo elogiar (se merecido
for) evitarei maiores comentários. Apenas, gostaria de dizer que fui
articulista de jornais, fiz comentários e análises em programas de
rádio e televisão, principalmente nas muitas eleições que tivemos a
partir da primeira metade dos anos 1990, sem contar, claro, que sigo
como professor do Curso de História da UEPB (Campus I) onde essa
produção se retroalimenta.
Nesta coletânea, você verá uma preocupação recorrente, di-
ria mesmo uma obsessão, que os estudos sobre a História do Bra-
sil (principalmente em seu período republicano) e Ciência Política
me levaram a ter. Falo de nossa mentalidade pretoriana (autoritária,
golpista) que insistimos em preservar, na esperança de que ela nos
valha nas variadas e muitas crises que vivemos. Dito de outra forma,
o ponto de origem, para onde sempre retorno, é a fragilidade demo-
crática em nosso país. É o fato de não sermos nem termos uma de-
mocracia minimamente consolidada e/ou uma cultura política que
possa, ao menos, aceitar ideias do federalismo de tipo iluminista,
para não falar de ideias político-sociais rubras.
Enfim, estou sempre atento ao oximoro “democracia autoritária”
em que vivemos. É que parte considerável de nossa sociedade se uti-
liza de procedimentos democráticos (como liberdade de expressão)
para pedir o fim da democracia e a implantação de uma ditadura.
Tem mesmo razão o escritor Luiz Fernando Veríssimo quando diz
que “no Brasil, o fundo do poço é só uma etapa”. Esse estado de coi-
sas me preocupa, me inspira, e me leva a fazer análises, buscando

8
contribuir de alguma forma para o debate. De forma pretensiosa,
confesso, o que quero é contribuir para uma saudável polêmica, pois,
e como bem disse Berthold Brecht, “em tempos de discórdia, cri-
ses e confusão a ausência política é um verdadeiro crime e deve ser
combatida”.

Campina Grande, março de 2024.

9
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO, 7

CAPÍTULO I
ARTIGOS DE OPINIÃO E CRÔNICAS -
O ACOMPANHAMENTO DA VIDA POLÍTICA NACIONAL
E OUTRAS QUESTÕES, QUANDO FUI APRENDENDO A
OPINAR A PARTIR DE ALGUNS CONHECIMENTOS, 17

QUE FILME É ESSE, COMPANHEIRO?, 19


Publicado em 07 e 08 de agosto de 1998 no Jornal da Paraíba

A NECESSIDADE DE SE TER INIMIGOS, 22


Publicado em 22 de setembro de 1998 no Jornal da Paraíba

PRETÓRIA UEPB, 24
Publicado em 23 de agosto de 2000 no Jornal da Paraíba

ESTAMOS EM GUERRA?, 26
Publicado em 06 de junho de 2001 no Jornal da Paraíba

A PRAGA DA ESMOLA, 28
Publicado em 20 de junho de 2001 no Jornal da Paraíba
QUE ME VALHA CHICO BUARQUE, 30
Publicado em dezembro de 2005 no www.paraibaonline.com.br

O LEVIATÃ ESTÁ MORTO?, 34


Publicado em junho de 2006 no www.paraibaonline.com.br

ELEIÇÕES 2006 - TODOS GANHAM E NINGUÉM PERDE!, 38


Publicado em agosto de 2006 no www.paraibaonline.com.br

EM DEFESA DA POLÍTICA COMO CIÊNCIA E DE ALGUNS


PRINCÍPIOS, 42
Publicado em setembro 2006 no www.paraibaonline.com.br

INTOLERÂNCIAS EM “NOVAS” E “VELHAS” CONSCIÊNCIAS,


46
Publicado em fevereiro de 2007 no www.paraibaonline.com.br

DEBILIDADES DA DEMOCRACIA LATINO-AMERICANA, 49


Publicado em março de 2007 no www.paraibaonline.com.br

O FATOR LULA E O DILEMA DO POSTE, 53


Publicado em setembro de 2008 no www.paraibaonline.com.br

SOBRE ELEIÇÕES, CONTRATOS E DEMOCRACIA, 56


Publicado em outubro de 2008 - www.paraibaonline.com.br

QUERIA TER 40 ANOS EM 1969, 59


Publicado em junho 2009 no www.paraibaonline.com.br

DO QUE NÃO ME UFANO, 64


Publicado em dezembro de 2009 no www.paraibaonline.com.br
UM PAÍS DE TIRIRICAS, 68
Publicado em outubro de 2010 no www.paraibaonline.com.br

DEUS COMO COISA ÚTIL, 71


Publicado em fevereiro de 2011 no www.paraibaonline.com.br

COM BURCAS NÃO HÁ DEMOCRACIA OU PORQUE REIS


NÃO GOSTAM DE DEMOCRACIA? , 75
Publicado em maio de 2011 no www.paraibaonline.com.br

PCC DIZ QUE VAI “TOCAR O TERROR!”, 80


Publicado em outubro de 2013 no www.paraibaonline.com.br

A LSN E A SEMIDEMOCRACIA BRASILEIRA, 83


Publicado em outubro de 2013 no www.paraibaonline.com.br

CAMPINA, UM MONUMENTO À MISÉRIA., 86


Publicado em novembro de 2013 no www.paraibaonline.com.br

HOJE, NÃO TE DOU PARABÉNS!, 89


Publicado em março de 2014 no www.paraibaonline.com.br

IDEOLOGIA, VOCÊ TEM UMA PARA VOTAR?, 92


Publicado em setembro de 2014 no www.paraibaonline.com.br

VIVA A DEMÊNCIA COLETIVA, 97


Publicado em março de 2015 no www.gilberguessantos.blogspot.
com.br

52 ANOS APÓS O GOLPE, PAÍS NÃO ACEITA VALOR


UNIVERSAL DA DEMOCRACIA, 101
Publicado em 01 de abril de 2016 no www.uol.com.br
CIDADÃOS TEM QUE SE RESPONSABILIZAR PELAS
ESCOLHAS FEITAS NAS URNAS, 103
Publicado em 10 de maio de 2016 no www.uol.com.br

CULTURA POLÍTICA AUTORITÁRIA CONTESTA


HEGEMONIA DA DEMOCRACIA, 107
Publicado em 22 de agosto de 2016 no www.uol.com.br

A “BANALIDADE DO MAL” ENTRE NÓS , 110


Publicado em fevereiro de 2017 no www.gilberguessantos.blogspot.
com.br

UMA ESQUERDA QUE A DIREITA GOSTA , 113


Publicado em 15 de novembro de 2020 no www.brasil247.com.br

OS VOTOS NÃO MOVEM MOINHOS, 117


Publicado em 01 de dezembro de 2020 no www.brasil247.com.br

O “PUTSCH DA CERVEJARIA” DE TRUMP OU QUEM COM


GOLPE FERE COM GOLPE SERÁ FERIDO, 121
Publicado em 14 de janeiro de 2021 no www.brasil247.com.br

CAPÍTULO II
ENSAIOS -
PONTOS DE VISTA E ARGUMENTOS SOBRE QUANDO,
COMO E PORQUE DECIDIMOS QUE NÃO GOSTAMOS DE
DEMOCRACIA, 125

ENTULHOS AUTORITÁRIOS NA DEMOCRACIA


BRASILEIRA, 127

OS ESQUELETOS SE REMEXEM NO ARMÁRIO, 137

DITADURAS DITAM, NÃO PEDEM, 147


VIVANDEIRAS QUEREM GOLPE PARA SALVAR A
DEMOCRACIA, 153

CAPÍTULO III
COLUNAS -
QUANDO A NECESSIDADE DE OPINAR, ATRAVÉS DA
ESCRITA, PASSOU A SER UMA ATIVIDADE DIÁRIA,
FALADA NO RÁDIO, 159

MAS, DE QUAL VERDADE ESTAMOS FALANDO? (QUARTA-


FEIRA, 16 DE MAIO DE 2012), 161

JOSÉ NÃO QUER APOIAR O CANDIDATO W (QUARTA-


FEIRA, 30 DE MAIO DE 2012), 163

O PARQUE DO POVO HIGIENIZADO (SEGUNDA-FEIRA, 11


DE JUNHO DE 2012), 165

MAS, AFINAL, O QUE É A MORTE? (SÁBADO, 02 DE


NOVEMBRO DE 2012), 167

VIVA A BOSSA NOVA! (QUINTA-FEIRA, 25 DE JANEIRO DE


2013), 170

FOI ASSIM QUE FICAMOS SEM DEMOCRACIA E SEM


REFORMAS (SEGUNDA-FEIRA, 01 DE ABRIL DE 2013), 173

HOUVE UMA ÉPOCA EM QUE NOS MOBILIZAMOS


(QUINTA-FEIRA, 25 DE ABRIL DE 2013), 176

O PARTIDO DAS FARDAS VERDES VAI ÀS URNAS (QUINTA-


FEIRA, 13 DE DEZEMBRO DE 2013), 179
POBRES DE NÓS, QUE NASCEMOS PARA SER GOLEADOS
(QUARTA-FEIRA, 09 DE JULHO DE 2014), 182

HOJE É A FESTA DA DEMOCRACIA? NÃO, É O DIA DA


ELEIÇÃO! (DOMINGO, 26 DE OUTUBRO DE 2014), 185

RICARDO, A ANATOMIA DE UMA VITÓRIA (TERÇA-FEIRA,


28 DE OUTUBRO DE 2014), 188

CÁSSIO, A ANATOMIA DE UMA DERROTA (QUARTA-FEIRA,


29 DE OUTUBRO DE 2014), 191

COM O MURO, ÉRAMOS SEM GRAÇA (TERÇA-FEIRA, 11 DE


NOVEMBRO DE 2014), 194

PORQUE NOSSAS LEIS NÃO PEGAM? (QUINTA-FEIRA, 22 DE


JANEIRO DE 2015), 197

QUANTO VALE A SUA FÉ? (SEGUNDA-FEIRA, 16 DE


FEVEREIRO DE 2015), 200

CAPÍTULO IV
POST SCRIPTUM OU SCRIPTUM ANTE -
AS SOBRAS DO “CESTO DEPARTAMENTO”, 203

O "CESTO DEPARTAMENTO", 205

O QUE ESPERAR DOS ELEITOS? (1998), 206

A TV QUE FAZ CHORAR (2000), 208

FÉ E IOGURTES (2001), 210


CAPÍTULO
CAPÍTULOI I
ARTIGOS
ARTIGOSDE
DEOPINIÃO
OPINIÃO
E CRÔNICAS
E CRÔNICAS-
O acompanhamento
O acompanhamento da da vida
vida política
política nacional
nacional e outras questões, quando
e outras questões, quando fui aprendendo a
fui aprendendo
opinar a opinarconhecimentos
a partir de alguns a partir
de alguns conhecimentos

17
QUE FILME É ESSE, COMPANHEIRO?

Publicado em 07 e 08 de agosto de 1998 no Jornal da Paraíba

Infelizmente, nem sempre vou ao cinema em Campina Gran-


de, mesmo que seja o Cine Babilônia com suas deploráveis insta-
lações e seu público mal educado, para assistir um filme nacional
como é o caso de “O que é isso, companheiro?” de Bruno Barreto. O
filme tem excelente qualidade técnica, ótimos atores e concorreu ao
Oscar de melhor filme estrangeiro, até porque foi feito para agradar
ao mercado norte-americano.
“O que é isso, companheiro?” fala do sequestro do embaixador
Charles Elbrick, em 1969, por guerrilheiros do MR-8 e da ALN, ou
seja, trata de nossa recente história política, apesar de seu diretor afir-
mar que “não se trata de um documentário, mas uma interpretação
ficcional da realidade”. Acho louvável que se “visite” nossa história
para transformá-la em película, que irá atingir milhares de pessoas.
Porém, não acho interessante, em nome da 7ª arte e da liberdade de
criação, se apropriar da memória de determinados acontecimentos
para deturpá-los como nosso diretor hollywoodiano fez.
Bruno Barreto partiu do livro, homônimo ao filme, escrito pelo
ex-guerrilheiro e deputado federal pelo PV\RJ, Fernando Gabeira,
para fazer o roteiro do filme. A impressão que temos, no livro, é que
Gabeira era uma grande liderança de sua organização, o que não é
verdade, ele era um militante iniciante que só soube do sequestro
quando este aconteceu e dele só participou porque, por motivos
diversos, estava no “aparelho” onde seria escondido o embaixador.

19
Gabeira tenta nos convencer que suas críticas à guerrilha eram fei-
tas no momento em que os fatos aconteciam, quando, na verdade, o
livro só foi escrito na volta do exílio em 1979, quando este estava de
posse de toda uma análise crítica sobre os fatos. Inclusive, essa análi-
se não é propriedade sua, mas de todos os que estiveram envolvidos
nos acontecimentos.
As pessoas que produziram este filme cometeram graves erros.
Um, foi reproduzir informações falsas, sobre acontecimentos histó-
ricos, que já tinham sido corrigidas muito antes do filme ser feito.
Um bom exemplo disso é quando se mostra que foi o guerrilheiro
Paulo (Gabeira) quem teve a ideia do sequestro e que redigiu um
manifesto dos grupos guerrilheiros. Na verdade, isso foi feito por
Franklin Martins, jornalista da TV Globo. Outro erro, grave, é quan-
do se distorce a feição de personagens em nome da liberdade de cria-
ção. É o caso de como se retratou a imagem do torturador, a serviço
do governo militar, e a do guerrilheiro “Jonas” (o operário Virgílio
Gomes da Silva).
O torturador se permite crises existenciais, devido a sua “profis-
são”, com atitudes que expõem suas dúvidas diante dos fatos, che-
gando a demonstrar grande sensibilidade quando confessa, entre
lágrimas, à sua esposa o que faz para sustentá-la. Já o guerrilheiro
é truculento com seus companheiros, não admite divergências, faz
intrigas e submete todos a tortura psicológica. Por que tentar, unila-
teralmente, absolver o torturador e condenar o guerrilheiro? Por que
só o torturador tem direito a ter conflitos? Por que só o guerrilheiro
é tão bem resolvido?
O que se coloca como “liberdade de criação artística” é, na verda-
de, um desejo de rever fatos ocorridos sem no entanto incomodá-los,
afinal não já tivemos a Anistia ampla, geral e irrestrita e o processo
de democratização já não foi concluído? É como mergulhar no mar
e não movimentar a areia. Bruno Barreto disse que não queria fazer
um filme monolítico, porém em sua ânsia de entrar para o primeiro
mundo cinematográfico, recriou o pior dos clichês do cinema – a
eterna luta do bem contra o mal. O bem encarnado no guerrilhei-
ro\herói Paulo (Gabeira) que é corajoso, inteligente, bem humora-
do, crítico e humano e o mal encarnado pelo guerrilheiro\bandido

20
Jonas (Virgílio) que é violento, autoritário, impiedoso, mesquinho e
despolitizado.
Mas, no tempo real, os guerrilheiros representados no filme foram
presos e torturados e o “bandido” teve sua cabeça – literalmente – es-
magada por “homens em crise de consciência”, leia-se torturadores,
a serviço de uma ditadura que muitos insistem em minimizar seus
atos, como parece ser o caso de Bruno Barreto que não tenta analisar
as características da ditadura militar. Não se pode ficcionar demais
em cima de personagens e fatos que realmente existiram e aconte-
ceram. É tudo tão absurdo que se aproxima do ridículo. Como dar
crédito a um filme que mostra um sequestrador seguindo a polícia
para saber se ela sabe onde se encontra o sequestrado? Em condições
reais, ou normais, é a polícia que segue e persegue o sequestrador!
Vi na TV a atriz Claudia Abreu, que faz a guerrilheira Reneé no
filme, defendendo que ele serve para atingir pessoas que não viveram
a época e\ou não tiveram oportunidade de estudar esse assunto na
escola. Nasci 3 meses antes do sequestro e, felizmente, tive e tenho a
oportunidade de estudar sobre o tema. Fico arrepiado só em pensar
que se não fosse assim estaria condenado a conhecê-lo pela ótica de
pessoas preocupadas em fazer sucesso lá fora.
Mas, não deixem de assistir ao filme, até mesmo para que possam
tirar suas próprias conclusões. Apenas, não se iludam pelo sucesso
e pela exaustiva propaganda sobre ele. Busquem outras formas de
informação sobre os acontecimentos, inclusive as que foram feitas
por outros ex-guerrilheiros. O que mais precisamos, hoje, não é de
heróis e bandidos caricaturando uma situação, mas de analisar seria-
mente coisas que persistem em não ficar guardadas no passado, em
vir à tona nos “incomodar”, num saudável e imprescindível balanço
histórico.

21
A NECESSIDADE DE SE TER INIMIGOS

Publicado em 22 de setembro de 1998 no Jornal da Paraíba

Fico estarrecido com a banalização de algo tão nefasto


quanto a guerra. Se ela é tão ruim, por que promovê-la? Não já te-
ríamos conhecido todos os malefícios que essa “atividade” produz?
Poderíamos apontar irracionalidade, inconsequência e até mesmo
altas doses de burrice, como motivos, mas vendo as últimas inves-
tidas dos Estados Unidos sobre o Iraque, talvez possamos encontrar
outras explicações bem mais plausíveis.
Na Guerra Fria, EUA e União Soviética justificavam suas belige-
râncias baseados no fato de que existia um inimigo pronto a destruí-
-los e que, portanto, era preciso se prevenir. Assim, quanto maior
a área de influência que possuíssem mais fortes seriam. Daí as in-
tervenções praticadas em países do 3° mundo. Sem contar que pre-
cisava-se investir em armamentos, que geram lucro para quem os
fabrica, para sempre se praticar a “arte” da guerra.
Mas, com o fim da Guerra Fria, e com as mudanças nos países
socialistas, a situação mudo. A queda da URSS tirou um dos joga-
dores do tabuleiro e os EUA tiveram que encontrar um novo ini-
migo, pois como justificariam a seus contribuintes a continua ele-
vação de impostos, para aplicar em gastos com armas, se não mais
existia o “perigo vermelho”? Com as conturbadas relações políticas
entre os países árabes e a grande quantidade de petróleo que estes
possuem, bem que o novo inimigo poderia vir do mundo árabe. A
cientista política Chantal Mouffe disse que “faz-se necessário ter-se

22
inimigos, do contrário, como se justifica atitudes que são quase sem-
pre injustificáveis”.
Foi isto que aconteceu quando Saddam Hussein, outrora aliado
dos EUA, invadiu o Kuwait alegando que seu território pertence ao
Iraque. Temos que ver Saddam como o que de fato ele é, um ditador.
Porém, notemos que este novo inimigo veio em boa hora, por se
encaixar bem às necessidades dos EUA. Por isso, Saddam Hussein
foi satanizado.
Imagine se, numa entrevista, o presidente Clinton diria “vou in-
vadir o Iraque para pegar o petróleo que tem lá e porque as indústrias
bélicas, que bancaram minha campanha, estão exigindo”? “No, of
course not!”. Como na Guerra Fria, o sangue derramado tem que ser
racionalizado. Quer melhor justificativa do que a de salvar o mundo
das garras de um ditador ensandecido? Fouad Ajami, professor da
Universidade Jonhs Hopkins, em Washington, afirma que um dos
problemas de Clinton foi ter reconstruído Saddam Hussein: “falaram
tanto que construíram um novo Saddam, transformaram-no numa
figura maior do que é de fato. E agora precisam lidar com o monstro
que ajudaram a criar”. De fato, os EUA não poderiam ter dado tanta
centralidade a Saddam, mas era isso ou não se poder fazer a guerra.

23
PRETÓRIA UEPB

Publicado em 23 de agosto de 2000 no Jornal da Paraíba

Na Roma antiga, pretor era o magistrado encarregado da


administração e da justiça, sendo pretória sua jurisdição. O pretor
tinha poderes excepcionais, uma vez estabelecido em seu cargo. Por
isso, uso pretoriano para se dizer que algo ou alguém é autoritário.
Vivemos em uma sociedade pretoriana! Os ritos antidemocráticos
da ditadura militar ainda estão entre nós. Se os militares governa-
vam através de Atos Institucionais e Decretos-Lei, FHC vale-se das
Medidas Provisórias. Os exemplos desse pretorianismo são muitos
e podem ser encontrados até mesmo na Universidade Estadual da
Paraíba.
Temos, em nossa agenda, o concurso público para professores,
que pode garantir melhorias em nosso quadro docente, e que vem
sendo protelado, a “Estatuinte universitária”, que pode dotar a UEPB
de regimento mais moderno, além das eleições para reitor. Aqui,
nosso estatuto prevê que o reitor em exercício não pode se candi-
datar à reeleição. Porém, ele mesmo solicitou ao Conselho Univer-
sitário que aprovasse emenda ao regulamento, para que pudesse ser
reconduzido ao cargo, mediante reeleição. Mesmo que não concorde
com isso, pois alternância no poder é condição necessária, apesar de
insuficiente, para se ter democracia, admito a solicitação, pois ela só
se efetuaria se a comunidade acadêmica permitisse. O que não se
admite é o modus operandi!
Dois dias antes do Consuni se reunir, para apreciar a matéria,

24
o governador do Estado, ferindo nossa autonomia, e ao que tudo
indica em comum acordo com o reitor, impôs o Decreto nº 21.209
(02\08\2000) determinando que o “mandato do Reitor e Vice-Reitor
será de 4 anos, sendo permitida uma única recondução ao mesmo
cargo, para mandato subsequente.”. Ao invés de se esperar o Consuni
definir as regras do jogo, se impôs algo muito parecido com os decre-
tos-lei da ditadura militar. Lamentável!
De fato, não se respeita os ritos democráticos da UEPB. Ao in-
vés das eleições submeterem-se ao regimento, é este que tem que se
adequar a elas. Dito de outra forma, regimento e eleições tem que se
submeter aos interesses de um reitor (pretor). Diante disso, como
querer atitudes democráticas dos que sempre veem seus direitos
sendo negligenciados por pretores instalados em suas pretórias. Não
vivemos mais à época da ditadura militar! Atitudes como essa devem
ser rechaçadas pela comunidade acadêmica, caso contrário só afir-
maremos esta mentalidade pretoriana que tanto mal já nos fez.

25
ESTAMOS EM GUERRA?

Publicado em 06 de junho de 2001 no Jornal da Paraíba

Existe, no Brasil, um grupo de empresas que produzem e ven-


dem material bélico e serviços para as Forças Armadas. É um merca-
do que movimentará, em 2001, orçamento de R$ 1,4 bilhão, segundo
a Revista Isto É Dinheiro de março. É um setor estratégico que mexe
com muitos interesses, por isso a lista das empresas é um segredo
bem guardado. Para se ter noção do poder de lucro delas, vejamos
o caso Embraer, responsável pela modernização dos aviões Mirage
F-5E/E da Força Aérea Brasileira, um projeto orçado em U$$ 285
milhões.
E que não se pense que este montante é diminuto, pois apenas
9,4% do orçamento do Ministério da Defesa sofreu cortes este ano.
A prova do quanto o governo se preocupa com os militares é que só
a agricultura sofreu um corte de 40,7% para 2001. Sem contar que
fazemos péssimos negócios. Em 2000, FHC autorizou a compra de
um porta-aviões francês, batizado de São Paulo, por US$ 12 milhões.
Nenhum problema, se este brinquedinho de guerras não tivesse sido
construídos em 1963. Enquanto esteve incorporado à esquadra fran-
cesa, ele serviu em batalhas no Líbano, Bósnia e Kosovo. Mas, o go-
verno francês considerou o São Paulo obsoleto e o Brasil o compro
como se fosse um colecionador de armas antigas.
E já é hora da perguntar porque gastar tanto com um porta aviões
se não estamos em guerra, nem entraremos numa? Porque investir
em armas, se o Estado brasileiro adota postura pacífica? Basta ver

26
que FHC assumiu posições pacifistas frente aos conflitos existentes
no mundo, inclusive recusou “convites” dos EUA para participar de
suas aventuras bélicas. Afinal, porque as Forças Armadas investem
tanto em material bélico?
Sempre se poderá dizer que estamos investindo na defesa de nos-
sas fronteiras. Mas, se é assim, por que Rio de Janeiro, São Paulo,
Porto Alegre, Recife, comportam mais contingentes e mais quartéis
do que a Amazônia, que é alvo de interesses estrangeiros, ao ponto
de norte-americanos, japoneses e europeus defenderem a interna-
cionalização da Amazônia, alegando ser este o “pulmão do mundo”?
A questão é que, enquanto sociedade civil, ainda não efetivamos me-
canismos de controle sobre os militares e, por isso mesmo, eles se
sentem livres para determinar, utilizando um fenomenal poder de
pressão, quanto (e como) gastar com armas, como se estivéssemos
nos preparando para entrar em uma guerra secular.

27
A PRAGA DA ESMOLA

Publicado em 20 de junho de 2001 no Jornal da Paraíba

Quando o sociólogo Herbert de Souza (Betinho) lançou a


primeira fase da Campanha contra a fome em 1992, que previa a co-
leta e doação de alimentos para pessoas famintas, teve a mídia a seus
pés. Foi manchete nos principais meios de comunicação do país.
Mas, quando propôs o início da segunda fase, a geração de emprego e
renda para populações carentes, desapareceu dos órgãos midiáticos.
Talvez por ressentimento, Betinho voltou a defender que doássemos
alimentos, esquecendo o mais importante. Ele propunha a mesma
coisa que a elite pós-escravocrata sempre fez: a cultura da esmola.
De repente, todos combatiam a fome. Não mais do que de repen-
te, brasileiros incomodados com a secular miséria do povo passaram
a dizer que cada um tinha que fazer a sua parte, doando um pouco
de comida. Betinho contava, em um comercial, a estória do passari-
nho que leva água em seu bico para apagar um incêndio na floresta.
Quando indagado que assim jamais apagaria o fogo, respondia: “ Eu
estou fazendo a minha parte”.
E muitos bons brasileiros colocaram água no bico. Articularam-
se e permaneciam às portas dos supermercados para que ricas se-
nhoras doassem quilos de sal e de farinha. Depois, iam para casa
dormir, tranquilamente, achando que, no dia seguinte, não mais
encontrariam mendigos pelas ruas. Ledo engano! A fome crônica
do povo brasileiro não se resolve com esmolas, mas com políticas
públicas concretas capitaneadas pelo Estado.

28
A elite tupiniquim tem uma mentalidade calcada no mais puro
assistencialismo, disfarçado de comovente solidariedade. Ela não en-
tende as leis do sistema capitalista que diz adotar; aquela que diz que
é melhor ter consumidores do que mendigos. Precisamos de ações
políticas concretas. Que tal trabalho que dê ao indivíduo a verda-
deira cidadania, aquela que dá dignidade para viver sem precisar
esmolar?
Porque não estender o Programa Bolsa Escola para todos os bra-
sileiros carentes? Pois, já se provou os efeitos positivos desse pro-
grama sobre a economia de cidades de porte médio, como Campina
Grande. Por que não criar postos de trabalho através de linhas de
crédito, a pequenos e médios empresários, vindas de Bancos Popula-
res? O que mais precisamos é de vontade política, é de compromis-
so estatal com o povo brasileiro e não com o Fundo Monetário In-
ternacional. Não precisamos de bonitas campanhas televisivas, que
maquiam a realidade, e fazem com que o brasileiro se sinta o pior
dos criminosos por não doar um quilo de sal ou de farinha a uma
instituição de caridade.

29
QUE ME VALHA CHICO BUARQUE

Publicado em dezembro de 2005 no www.paraibaonline.com.br

Em “Leitura dos clássicos é remédio contra crise”, publica-


do no Jornal O Estado de São Paulo em 1994, o historiador Carlos
Guilherme Mota afirmava: “Em tempos de crise, voltamo-nos para
os clássicos, num recuo estratégico, em busca de perspectivas e algu-
ma paz. Uma pausa para o reencontro de nossa temporalidade per-
dida ou, como por vezes acontece, nossa sensibilidade enfastiada”.
Mas, o que é um clássico? O clássico pode ser um livro, um filme,
uma pintura, uma música, enfim é aquilo que é atemporal, sem ser
anacrônico, que agrada gerações, sem mudar sua essência. Clássico
é algo que fica! É o que reencontramos sempre para rever, reinter-
pretar e redimensionar para o momento em que vivemos. O clássico
cabe em muitos presentes e não só no em que foi feito. Os buscamos
em momentos de crise para descobrir outras dimensões de nossa
existência coletiva e/ou individual. O Clássico muda? Certamente
não! Mudamos nós, por isso a necessidade de voltarmos a eles.
Falo dos clássicos para poder falar de Chico Buarque, que me es-
timulou a revisitá-lo, com o lançamento dos seis primeiros DVD´s,
que contam aspectos da vida e da carreira de quem e foi apontado
por Tom Jobim como o sucessor de Noel Rosa. E eu diria mais: além
de sucessor, o continuador do que Noel não pode fazer por ter mor-
rido tão cedo. Chico, com todo o seu virtuosismo literário, musical
e letristico, reencarna e representa Pixinguinha, Lupicínio Rodri-
gues, Nelson Cavaquinho, Cartola, Ari Barroso, Dorival Caymmi,

30
responsáveis pela adequação do samba ao que se convencionou
chamar de Música Popular Brasileira (MPB). Chico soube recolher
elementos no que de melhor tivemos na música, desde os chorões e
Chiquinha Gonzaga, passando por Villa Lobos, até Vinícius de Mo-
rais e Tom Jobim, e converter isso tudo numa produção inovadora.
Chico se define como letrista, mas ele é o maior letrista da MPB.
Diria que é um caçador de palavras, um arqueólogo dos grandes
achados linguísticos. Ninguém como ele para, com as palavras cer-
tas, dizer as coisas corretas. Imagine o verso “amo tanto e de tanto
amar, acho que ela é bonita”. Pronto, não precisa dizer mais nada, não
importa quem seja a mulher, ele a ama e todas as questões se encer-
ram. Chico foge ao óbvio e nos força a buscar conhecer e entender as
coisas. Quem mais usaria gelosia ao invés da usual janela?
E pouco importa os que tentam desqualificá-lo por sua auto reco-
nhecida desafinação, pois ele sabe construir belas canções, onde letra
e música são melodiosamente unidas. Em “Choro Bandido”, Chico
diz que o que interessa é a música: “Mesmo que os cantores sejam
falsos como eu / Serão bonitas, não importa /São bonitas as canções
/ Mesmo miseráveis os poetas / Os seus versos serão bons”.
Chico é o símbolo que se contrapõem, pela qualidade, a tudo que
virou moda. Ele está para nossa música, assim como Sérgio Buarque
de Holanda, seu pai, está para a historiografia brasileira - inovador,
revolucionário, clássico. Se o caro leitor tem dúvida basta ler “Raízes
do Brasil”, do pai, e ouvir “Bye, Bye Brasil”, “Construção” e “A Banda”,
do filho. Chico consegue antever as conjunturas – antes mesmo de a
ecologia virar chavão na boca de nossa intelectualidade desavisada,
ele já praticava o ativismo verde. Ouçam a música “Os homens vão
chegar” que manda passarinhos tomarem cuidado com nossos desa-
tinos em relação à natureza.
Talvez, já se tenha dito tudo sobre Chico. Acho até que estou sen-
do redundante. Mas, em tempos de crise, quando a MPB é enxo-
valhada pelo lixo escatológico vindo das gravadoras – falo dos rit-
mos “populares” como sertanejo, pagode, “axé music”, funk, forró
de plástico, que ignora Jackson do Pandeiro e Luís Gonzaga. Enfim,
falo do que dispensa talento para ser feito. O momento é mesmo
muito ruim, pois para cada Lenine, Zélia Duncan, Zeca Baleiro, que

31
surgem, logo aparecem dez ou quinze daqueles que não têm nada a
dizer. Ainda mais, quando Caetano Veloso, vendo-se acima do bem
e do mal, chancela os resíduos expelidos pela indústria fonográfica.
Sofro vendo Caetano defendendo esses “estilos musicais”, queren-
do nos convencer de que isso é a “expressão da cultura dos oprimi-
dos”. As vezes penso que Caetano está se divertindo a nossas custas
ao dizer que Tati Quebra-Barroco é “a maior revelação da música
brasileira dos últimos dez anos”. Até admito que Regina Casé diga
que está surgindo uma “nova MPB”, pois o papel dela é mesmo des-
cobrir o que não presta. Mas, porque o autor de Sampa, Podres Pode-
res, Panis et Circenses, Baby, Trem das Cores, assume tais posições?
Lamentável e paradoxalmente, me vi, dia desses, defendendo a
censura. Em um lapso de tempo pensei que a única solução para me
livrar da poluição sonora que infecta as ruas, com aqueles carrinhos
odiosos, seria a censura. Refeito de minha incorreção autoritária,
quis saber como alguém que escreve e publica, ou seja, depende da
liberdade de expressão, defende algo tão nefasto? Me vi tão irritado
com essa escatologia musical que pensei que para o bem de nossos
corações e mentes fosse melhor censurá-la. Mas, sossegue caro leitor,
ao contrário dos escatófagos da música ainda sou dotado de sufi-
ciente inteligência e sensibilidade para rever meu erro: não quero a
censura! Ela é tóxica, nociva, que o diga quem já sofreu seus efeitos.
Mas, se não posso censurar, nem quero, estou condenado a ouvir
esta música fecalóide?
E pouco me importa que Caetano Veloso e Lobão consideram
essa sedeca um “movimento musical”. Numa entrevista à Revista Im-
prensa (de setembro), Lobão, editor da Revisa Outra Coisa, desan-
dou a dizer asneiras. Pasmem!, ele disse que Chico Buarque é “sinô-
nimo da ditadura militar, que nasceu velho e que suas músicas são
depressivas”. Pobre Lobão! Sempre tive atenção pelo seu trabalho.
Admirei ele ter criado seu próprio selo, para vender seus discos em
bancas de jornal a preços módicos, e para provar que é possível fugir
do esquema das gravadoras. Sempre gostei do seu jeito franco, mas
dessa vez ele foi longe demais. Na já citada entrevista, um Lobão irre-
conhecível desatinou ao dizer que prefere a tal “Lacraia” a Edu Lobo
e que “Elis Regina, Tom Jobim e Chico Buarque são o que há de pior

32
na nossa música”. Não sei o que causou tamanho estrago, mas torço
para que Lobão se recupere.
Alguém me disse (SIC) “essa música toca direto porque o povão
não sabe escolher, escuta o que for colocado”. Se for assim, então
além de Sertanejo, Pagode, Axé, Forró Eletrônico e outras “comer-
cialiadades” do ramo, porque não tocar MPB, Jazz, Blues, Rock in
Roll e Música Clássica na rádios? Porque não “impor” ao povo Tom
Jobim, Elis Regina, Djavan, Leila Pinheiro, Beatles, Ray Charles, Mi-
les Davis? Se o “povão não sabe escolher”, então que seja “obrigado”
a ouvir Beethoven e Tchaikovsky.
O “povão” “não sabe escolher” porque não teve oportunidade de
estudar, de recolher subsídios e elementos que lhe permitam optar
ao invés de aceitar. Muitos não escolhem porque não tem poder polí-
tico, econômico e cultural para decidir. Quem faz isso é a mídia cor-
porativa, controlados pelos que veem na diarreia musical uma forma
de lucro. O mercado se fia na equivocada visão de que não importa
o estilo, mas sim se ele está “tocando direto” e se está “na moda”, e
no fato de vivermos em sociedades consumistas, que privilegiam a
simplificação em detrimento da elaboração. Recuso-me aceitar que
valores culturais nossos, como a MPB, se reduzam à valores comer-
ciais. Não quero ver a “calcinha-não-sei-lá-das-quantas” como pro-
tagonistas do cenário musical.
É por tudo isso que ouço, agora mesmo, canções feitas quando
Chico expressava toda sua sensibilidade para falar da ditadura mili-
tar. Em “Vai Passar”, “Cálice” e “Roda Viva”, ele faz da política, poesia.
Recorro a Chico como um clássico para me valer das “modas” da
música. É por isso que eu o “prescrevo” como remédio para a crise.
Parodiando o próprio, indico: beba Chico, cheire Chico, fume Chico,
use Chico, injete Chico na veia; não tem contraindicação – pode se
viciar nele, só vai fazer bem a você.

33
O LEVIATÃ ESTÁ MORTO?

Publicado em junho de 2006 no www.paraibaonline.com.br

Alguém já disse que “vivemos sob a ditadura dos fatos”. Já


muito se disse, também, que vivemos em um Estado democrático
e de direito. Concordo com a primeira assertiva, pois os eventos ir-
rompem sem pedir licença. Mas, discordo da segunda pelo que a
nossa realidade apresenta. Não temos um Estado e uma sociedade
democráticos, pois ter eleições periodicamente não nos torna uma
sólida democracia. É que eleição é condição necessária, porém insu-
ficiente das democracias.
Para sermos uma democracia estável, precisaríamos não ver a
maior cidade do país conflagrada. Em São Paulo, cidadãos, policiais
e bandidos foram mortos, os bens públicos e privados depredados,
prisões transformadas em arenas de terror, a segurança pública dei-
xou de existir. Foram cenas de uma guerra civil de proporções alar-
mantes e isso me faz constatar que o Estado de direito está mesmo
ameaçado.
A impressão, falsa espero, é que voltamos ao estado de natureza
demonstrado por Thomas Hobbes em “O Leviatã”, onde os homens
não se submetem às regras, valendo apenas a “lei do mais forte”. É o
homem em seu estado natural, sem razão, dotado apenas de instin-
to, se submetendo a reações que levam indivíduos a lutarem para se
manterem vivos, mesmo que para isso precisem matar.
No Estado de Direito ninguém está acima da lei, as instituições
políticas devem exercer o poder e a autoridade por meio da norma, e

34
devem, elas próprias, submeterem-se aos constrangimentos impos-
tos pelo ordenamento jurídico. Em um Estado, regulado por uma
constituição, que prevê uma pluralidade de órgãos dotados de com-
petência distinta e explicitamente determinada, os cidadãos devem
se dispor a obedecer às leis, ou seja regras e regulamentos. Se assim
não for, voltamos à barbárie, o homem em seu estado bruto, primiti-
vo, enfim tudo isso que vimos acontecer em São Paulo.
Vive-se em um Estado de Direito pleno quando o cidadão confia
que seu lar não será invadido pela polícia, sem ordem judicial, ou
por bandidos; que seu filho terá uma vaga na escola e que sua família
terá tratamento em bons hospitais públicos; que seu salário estará
garantido no fim do mês. Este mesmo cidadão deverá ter certeza que
não será preso sem um devido processo legal, que seu nome não será
utilizado sem a sua devida autorização e que um bem seu não será
alienado sem seu expresso consentimento.
O cidadão não tem, por obrigação, que conhecer todas as leis e
nem tem que saber citar artigos dos Códigos Civil ou Penal. Mas,
precisa compreender que existe uma série de instrumentos norma-
tivos que asseguram que ele não precisará entrar em conflito todas
as vezes que buscar seus direitos. Se a pessoa vê bandidos fuzilando
um policial em plena luz do dia, pode se sentir encorajado a burlar
as normas, pois entenderá que o Estado não lhe assegura direitos e
deveres. Esta situação cria o hábito de desrespeitar as regras e con-
tribui, sobremaneira, para uma cultura pretoriana que nos leva em
muitos momentos a buscar saídas de força para os nossos impasses,
sejam eles institucionais ou não.
Prova cabal da fragilidade do nosso Estado de Direito foi o go-
verno de São Paulo ter ido dialogar com as lideranças do PCC, como
se eles estivessem reivindicando algo legítimo que merecesse uma
negociação. Ao decidir dialogar com o crime organizado, o governo
sinalizou em fortes cores de como é frágil à democracia que repre-
senta. Em entrevista, o governador de São Paulo, Cláudio Lembo,
afirmou que era cedo para colocar o Exército nas ruas. Ele tentou
ser categórico ao afirmar que “forças de segurança têm o controle
da situação pública no Estado”. Enquanto isso a cidade era alvo de
ataques e uma onda de rebeliões insurgia pelos presídios. Talvez por

35
desconhecer a realidade gritante das ruas, o governador pediu à so-
ciedade que colaborasse efetivamente e demonstrasse tranquilidade.
Óbvio, não disse como se faz isso diante de um tiroteio cerrado!
Lembrei, então, que por causa de três míseros fuzis, o Exército
ocupou as ruas no Rio de Janeiro. Sendo assim, já não teríamos ra-
zões suficientes para soltar tropas federais nas ruas de São Paulo? A
crescente onda de ataques criminosos não já estaria configurando
grave ameaça à ordem pública? Não seria necessário decretar estado
de defesa e\ou intervenção federal em São Paulo? Porque no Rio de
Janeiro tem intervenção e em São Paulo não? Teríamos, aqui, con-
dicionantes eleitorais?
Erro grosseiro do governo paulista foi não ter demonstrado à po-
pulação (e ao crime organizado) que dispunha de instrumentos den-
tro do Estado Democrático de Direito para reagir. Claudio Lembo
afirmou que não poderia tomar determinadas medidas pelo fato de
vivermos em uma democracia. Esqueceu-se que medidas de forças
devem servir, sim, a democracia, inclusive para mantê-la. Não é à toa
que a Constituição Federal estabelece a figura do Estado de defesa,
via que decreto presidencial,.
Estado e sociedade estavam sendo agredidos. Urgia tomar medi-
das! Precisava-se de elementos regulamentares que possibilitassem
um maior poder de investigação e repressão ao aparelho coercitivo
do Estado, bem como mobilidade suficiente para tomar decisões que
permitissem uma resposta imediata à ação criminosa. O governo te-
ria que ter reagido em relação ao problema gerado pelo uso dos celu-
lares dentro dos presídios, pois isso poderia ter sufocado o comando
das ações criminosas. O Estado de defesa existe para resguardar os
limites do Estado Democrático de Direito. O nome já diz tudo, são
medidas tomadas para defender o Estado ameaçado.
Esse tal Estado de defesa não pode durar por tempo indetermina-
do, nem ser confundido com o Estado de sítio. Ele serve para que se
possa lidar com ameaças internas ou catástrofes naturais e, mesmo
assim, em locais previamente delimitados dentro do território nacio-
nal. Já o Estado de sítio justifica-se pela ameaça externa e tem que ser
adotado em todo o território nacional. Como afirmam os constitu-
cionalistas, deve-se respeitar os princípios jurídicos da razoabilidade

36
e da proporcionalidade para que os excessos sejam coibidos e para
que se evite que decretos ou intervenções federais deem ao Estado
instrumentos para agir de forma autoritária.
É fundamental nunca esquecer que esta foi (ou é) uma exceção
dentro de uma sociedade que adota ritos democráticos. Temos que
lembrar que, historicamente, convulsões sociais, como a que vimos,
justificaram medidas de força e a usurpação do poder por grupos
que não tinham legitimidade democrática para fazê-lo. A gravidade
da situação não pode justificar excessos. Um erro não deve justificar
o outro e não se pode confundir autoridade com autoritarismo.

37
ELEIÇÕES 2006 - TODOS GANHAM
E NINGUÉM PERDE!

Publicado em agosto de 2006 no www.paraibaonline.com.br

Na primeira pesquisa feita pelo IBOPE, após o início do ho-


rário eleitoral, o presidente Lula (PT) aparece com 49% das intenções
de votos, dois pontos a mais do que no último levantamento feito
antes do início do guia. Já Geraldo Alckmin (PSDB) obteve 25% na
pesquisa pós-guia eleitoral, um ponto a mais em relação à pesquisa
pré-guia. Heloísa Helena (PSOL) aparece com 11% na pesquisa pós-
-guia e 12% na pesquisa pré-guia. Em quarto lugar temos Cristovam
Buarque (PDT) com 1% nas duas pesquisas. Luciano Bivar (PSL),
José Maria Eymael (PSDC) e Ruy Costa Pimenta (PCO) aparecem
com menos de 1% em cada uma das pesquisas.
O Datafolha simulou possível 2º turno entre Lula e Alckmin. O
petista venceria com 55% dos votos e o tucano ficaria com 36%. En-
quanto a taxa de rejeição do presidente vem diminuindo a do ex-go-
vernador só aumenta. Em junho, 31% dos entrevistados afirmavam
que não votariam em Lula, mas em agosto esse percentual cai para
26%. Em contrapartida, a rejeição de Alckmin, que em junho era de
19%, aumentou para 24% neste mês de agosto. A rejeição a Heloísa
Helena era de 21% em junho e julho, e em agosto oscilou entre 23 e
24%. Buarque, Eymael, Bivar e Rui Costa atingem algo em torno de
23% de rejeição, cada um.
O governo Lula é aprovado como “ótimo” ou “bom” por 52% dos
brasileiros; já os que o classificam como “regular” caiu de 36% para

38
31% e os que acham “ruim” ou “péssimo” foi de 18% para 16%. Essa
não é só a maior taxa de aprovação, já obtida por Lula desde sua
posse, como o maior índice de aprovação já registrado por um pre-
sidente desde 1990. Assim, a possibilidade de Lula ganhar no 1º tur-
no aumenta, posto que seu principal adversário vem caindo, mesmo
com a exposição no horário eleitoral.
Esse débil desempenho faz com que Alckmin sofra de “cristiani-
zação” - termo cunhado nas eleições de 1950, quando o PSD lançou
Cristiano Machado à Presidência, mas apoiou oficiosamente Getú-
lio Vargas, que tinha vitória certa. Na Paraíba, aliados de Alckmin¸
pragmáticos que são, se afastam e colam em Lula. Cássio C. Lima e
José Maranhão, os dois mais bem colocados na disputa pelo governo
do estado, esforçam-se em demonstrar boas relações com Lula. No
Ceará, o candidato do PSDB, Lúcio Alcântara, utilizou imagens de
Lula em seu guia e evita falar em Alckmin. No Rio Grande do Sul, só
na terceira semana do guia eleitoral é que a candidata a governadora,
pelo PSDB, Yeda Crusius fez breve referência a um certo Geraldo.
Certo, o que aqui é o velho instinto de sobrevivência dos políticos
brasileiros.
A tarefa hercúlea de Alckmin é convencer o eleitorado a não re-
conduzir à presidência um candidato cujo mandato tem sido bem
aprovado. O PSDB não mais consegue fazer com que o escarcéu
mensalista tire pontos percentuais de Lula, que atua como o time
de futebol que pode perder a final do campeonato por dois gols de
diferença e ainda assim ser campeã.
A candidatura do PSDB nasceu de um imbróglio. Alckmin foi
escolhido candidato em março, após intricado episódio entre caci-
ques tucanos, superando José Serra que seria o único em condições
de bater Lula. O PSDB não investiu para ganhar e sim para perder!
Como assim? Pragmatismo, caro leitor! O PSDB sabe o que é en-
frentar uma reeleição, conhece as amplas vantagens que um presi-
dente-candidato possui. FHC, Tasso Jereissati, Aécio Neves, Serra e
Alckmin desenharam o cenário correto e evitaram entrar na disputa
2006, entendendo que o verdadeiro embate será em 2010, sem Lula
candidato.
Privilegiaram suas eleições regionais, pois Serra não queria

39
acrescentar ao seu currículo mais uma derrota. O que levou Alckmin
aceitar conduzir essa nau fadada ao soçobro? Mais uma vez, pragma-
tismo! Mesmo derrotado, ele termina a eleição conhecido em todo
o Brasil, gabaritado para as próximas pelejas. E é esse o cálculo de
Heloisa Helena e de todos os outros. Como se vê, todos ganham e
ninguém perde!
Outra questão é que quando Alckmin fala em desenvolvimento
econômico, cortes de gastos e eficiência administrativa, brandindo
dados da economia paulista, não contesta a política econômica do
governo Federal. Quando obteve de Lula, em 2002, o compromisso
da manutenção da política econômica de FHC/Malan, o PSDB en-
redou-se em sua própria teia. Resultado? Perdeu os direitos autorais
dessa política e ficou sem discurso. Como Alckmin não aponta para
mudanças, o eleitorado fica com o que tem.
Se Lula e Alckmin não se diferenciam tanto, para que mudar? Os
dois assumiram um padrão civilizado na prática política e utilizam
os termos universais da democracia, assim como postulam os mes-
mos paradigmas da economia de mercado. A diferença? Lula tem
carisma e visão social apurada, coisas inexistentes em Alckmin. A
campanha gira em torno das tentativas dos candidatos em dar claras
demonstrações de eficiência como gestores. Ambos tentam demons-
trar, através de suas realizações como governantes, que podem de-
sempenhar bons papéis e isso é salutar.
Quanto a recorrente pecha do mensalão, Lula parece ter conse-
guido a fórmula mágica para que ela não o atinja mais, pois tem con-
seguido se descolar do seu partido. Se antes tínhamos “Lula do PT”,
agora temos “Lula do povo brasileiro”. A população associa o mensa-
lão ao PT e preserva a imagem do presidente, caso contrário ele não
teria uma aprovação de 52%. Lula transcendeu o petismo, encarnan-
do a imagem do “salvador da pátria”. O nosso “Sasá Mutema” bar-
budo, seguindo a tradição getulista, supera mazelas do pragmático
mundo político e segue firme para se tornar um fenômeno eleitoral.
É preciso lembrar que os programas sociais, que transferem ren-
da, contribuem para essa crescente popularidade juntos aos pobres,
que de tão pobres contentam-se com pouco. Estes programas não
criam dificuldades para as metas traçadas na política econômica, até

40
porque estão presentes na relação de itens que o Banco Mundial re-
comenda como forma de compensar os tais “efeitos reducionistas da
política de ajuste fiscal”. Política esta que quase todo o espectro polí-
tico brasileiro é laudatório.
Um ponto positivo é que, até agora, Lula e Alckmin se negam a
descer à vala comum do denuncismo, fugindo das agressões e do
vale-tudo televiso, mesmo porque se começarem a se acusar mutua-
mente chegaram a um resultado de soma-zero, onde ninguém ganha
e todo mundo perde. E como vimos, os atores políticos pretendem,
pragmaticamente, ganharem com essa eleição, mesmo aqueles que
não serão eleitos.

41
EM DEFESA DA POLÍTICA COMO
CIÊNCIA E DE ALGUNS PRINCÍPIOS

Publicado em setembro 2006 no www.paraibaonline.com.br

Interessante o fórum de discussões, na sessão de opiniões,


pois nós (os colunistas) podemos ter um retorno das ideias que apre-
sentamos. Agradeço aos comentários e ao fato de os leitores apon-
tarem aquilo que percebem de positivo e/ou negativo nos artigos,
isso me incentiva a tentar escrever mais e melhor. Uma leitora afir-
mou que fui imparcial sem ser tendencioso, pois quem trabalha com
temas polêmicos como os que aqui exploro, corre sempre muitos
riscos. Óbvio, meu compromisso é com a busca do conhecimento,
através de um processo produtivo que leva em consideração leituras
sistemáticas e a contínua busca de dados e informações. Isso, claro,
com a perspectiva de colaborar para um consequente processo infor-
mativo dos nossos leitores.
Por ser um fórum livre, pessoas podem se expressar da forma que
bem quiserem. Mas, essa liberdade embriaga alguns que, como bê-
bados trôpegos pelas calçadas, cambaleiam nas palavras, nos concei-
tos, nos meandros da língua portuguesa e até em metáforas por mim
utilizadas. É temerário utilizar esse valioso espaço para fins outros.
Fins acusatórios e desprezíveis, fins que, enfim, nunca são esclareci-
dos. São sempre maquiados de uma verborragia que ignora tacita-
mente os significados dos termos e conceitos da linguagem usual da
Ciência Política, que por motivos óbvios utilizo.
Não me interessa tratar das mesquinharias, avarezas e miudezas

42
daqueles que não aparecem à luz do sol e ficam nas catacumbas ur-
dindo desditas. Comentários que vi na sessão de “opiniões” me fez
lembrar Aristófanes, o dramaturgo grego, que nos deixou a seguinte
pérola: “A juventude envelhece, a imaturidade é superada, a igno-
rância pode ser educada e a embriaguez passa, mas a estupidez dura
para sempre”. Como professor de uma Universidade pública tenho a
dizer que é graças a um processo que vem sendo trilhado já algum
tempo que hoje me dou “ao luxo” de atuar em duas áreas correlatas:
a História e a Ciência Política.
A Ciência Política é uma área de conhecimento como outra qual-
quer sem a aura e a pecha que alguns tentam lhe atribuir. Também,
não se propõe as pretensas “revoluções pós-estruturalizantes-indivi-
dualizadas” à moda foucaultiana e alhures, apenas dedica-se ao estu-
do dos fenômenos políticos das sociedades atuais, calcada em sólida
base metodológica de pesquisa. A expressão Ciência Política pode
ser usada em um sentido amplo (e não meramente técnico) para in-
dicar qualquer estudo dos fenômenos e das estruturas institucionais
políticas. Este estudo deve ser apoiado num amplo e cuidadoso exa-
me dos fatos expostos, com argumentos racionais. Afinal de contas,
e como já afirmava Webber, a ciência nos proporciona método e al-
guma previsibilidade.
Mas, o que significa ocupar-se cientificamente da política? Ex-
pressa não se render ou acomodar-se a opiniões e crenças vulgares,
demonstra, ainda, não formular juízos com base em dados impreci-
sos ou mesmo inverídicos. Para começar, faz-se necessário estudar o
poder, essa força ancestral que induz os homens às guerras e a cria-
ção do instrumento que os domina chamado Estado (ou “O leviatã”
hobbesiano). Estudar a organização da polis, significa olhar para os
Estados reais e não imaginários.
De nada adianta pensar o poder político, e as instituições po-
líticas, como gostaríamos que fossem, mas como realmente são. E
aqui, então, o estudioso encontrará a elaboração maquiaveliana, não
maquiavélica, note-se bem. Para Nicolau Maquiavel, a política tem
ética própria, direcionada para conceitos amplos, como as Razões de
Estado, que escapam à moral das convicções humanas e podem jus-
tificar conflitos e guerras. A Ciência Política contemporânea herdou

43
do mestre florentino essa racionalidade.
O estudo da política leva ao entendimento das formas de or-
ganização humana e o melhor modo de iniciá-lo é pelos clássicos.
Maquiavel, Hobbes, Burke, Locke, Montesquieu, Kant, Hegel, Toc-
queville, Stuart Mill, Rousseau, os Federalistas, tentaram entender as
complexas relações políticas e sociais. A elaboração deles formatou a
ordem política da qual o Estado-Nação é ainda o melhor resultado.
A Ciência Política não se enquadra como sub área de qualquer
outra disciplina, pois apresenta objeto próprio como os estudos so-
bre o poder e as elites; o Estado, a nação e a soberania; a sociedade
civil e os dilemas da participação\representação; os poderes e sua
separação; os partidos políticos e as eleições; Forças Armadas e rela-
ções civil-militar; políticas públicas (sociais) e a constituição da au-
toridade democrática.
Cerca de oitenta anos após sua inserção formal na academia, a
Ciência Política é hoje um campo de estudo acadêmico consagra-
do, com universo conceitual e discurso científico próprios, além de
amplo acervo de conhecimento e com uma agenda de pesquisa fu-
tura promissora. Cientistas políticos brasileiros se preparam, agora,
para as análises da problemática da reforma política, que promete
ser o centro das atenções após as próximas eleições. A Ciência Polí-
tica brasileira tem contribuído nos estudos teóricos e nos baseados
em evidências empíricas. Temos trabalhos, com novos tratamentos,
sobre temas como a natureza e o funcionamento das instituições de-
mocráticas; os condicionantes políticos do sistema econômico e de
sua reforma; a formação e a implementação das decisões de governo;
a interação dos governos e atores sociais na produção de políticas
públicas. Muitos trabalhos trazem análises relevantes sobre a polí-
tica normativa: os fundamentos do poder, as condições da ordem
política, as distintas concepção do justo, as tensões entre liberdade e
igualdade, as relações entre ética e política, a produção do conflito e
da cooperação em escala mundial.
Cientistas Políticos sérios não articulam “estratégias de campa-
nha e discursos para figurinhas de postura ética e pública extrema-
mente questionáveis, envolvidas em escândalos de corrupção”, como
disse uma leitora que me honrou com sua arguta percepção. Essa

44
função deixamos aos marqueteiros maquiadores de candidaturas.
O problema que se apresenta para nós, os cientistas políticos, é
em relação à quantidade. Qualidade, digo sem falsa modéstia, te-
mos, mas ainda precisamos crescer numericamente. Porém, esse
crescimento não deve se dar a qualquer custo. Precisamos que nos-
sos alunos, espalhados pelos mais variados cursos de graduação, se
dediquem mais a leitura dos clássicos da política, de todo conceitual
da filosofia contratualista que foi sólida base para o iluminismo e
as revoluções burguesas. Insisto, estamos voltados para o estudo da
problemática da democracia no Brasil e para o funcionamento das
Instituições Políticas, pois quando falamos em democracia inevita-
velmente terminamos tratando de ditaduras e autoritarismos de toda
a sorte.
Mas, é preciso ter cuidado com a forma como se emprega os ter-
mos e conceitos. Uma coisa é falar em ditadura, como oposto daqui-
lo que ainda queremos para a nossa sociedade, outra é utilizar-se das
normas regimentais de uma Instituição para cumprir ou não tarefas.
O nosso exercício diário é contribuir para irmos construindo uma
cultura política democrática em nossa sociedade e não para reafir-
marmos, através de uma prática pretoriana, uma realidade histórico-
-política das mais perversas. Como bem disse outra leitora, citando
Rosa Luxemburgo, “ser democrático com quem pensa igual é fácil;
difícil é ser democrático com quem pensa diferente”.

45
INTOLERÂNCIAS EM “NOVAS” E
“VELHAS” CONSCIÊNCIAS

Publicado em fevereiro de 2007 no www.paraibaonline.com.br

Cenas de intolerância, desrespeito e agressão foram vistas


no Encontro para a Nova Consciência (edição 2007) em Campina
Grande. Vimos, estarrecidos, jovens evangélicos patrocinando ce-
nas horrendas em frente ao Teatro Municipal. Eles pronunciaram
agressões verbais, atearam fogo em objetos e tentaram impedir que
pessoas adentrassem ao recinto das palestras. Esses alheados jovens
tentaram, também, atrapalhar, com apitos, um ato ecumênico no
anfiteatro do Parque Evaldo Cruz, no domingo - 18/02. Ironia das
ironias, o ato era em defesa da paz e da pluralidade religiosa.
Ano após ano situações como essas tem se repetido sem que as
autoridades tomem quaisquer providências. Até onde irá a dispo-
sição desses apedeutas em ofender e melindrar as suscetibilidades
alheias? Onde querem chegar? Desejam que o evento deixe de acon-
tecer? Aspiram realizar amplo processo de conversão dos que consi-
deram hereges? Na verdade, exercitam a autoritária e odiosa intole-
rância religiosa tautologicamente pregada à exaustão por alguns dos
pastores desse rebanho de ecúleos. Reproduzem a velha mentalidade
pretoriana que grassa nossa sociedade, onde é quase impossível acei-
tar como normal aquilo que nos é diferente.
Sobre Nova Consciência se dispensa maiores comentários a não
ser o fato de que, goste-se ou não, lá é bem-vindo todo aquele que
queira participar, independente de crenças, ideologias ou visões de

46
mundo. Concorde-se ou não, as pessoas que participam desse even-
to estão gozando de direitos constitucionais como o de ir e vir. A
Constituição Federal em seu Título II (Dos Direitos e Garantias Fun-
damentais), Art. 5° § VII, consigna que “É inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cul-
tos religiosos”. Ou seja, atos como estes descumprem a lei. Portanto,
as autoridades instituídas devem cominar as devidas penalidades aos
seus descumpridores.
O Encontro para a Nova Consciência é democrático em sua es-
sência, pois defende como princípio inalienável que todo e qualquer
crente pratique à convivência e o diálogo com outras confissões re-
ligiosas. Quem se der ao trabalho de ir às suas atividades verá que
lá existe uma forte tendência a se aceitar os vários modos de pensar
e agir dos indivíduos ou de grupos políticos e religiosos. Mas, terá
que se despir de superstições e crendices, deixar de lado suspeições,
intolerâncias, ódios irracionais e/ou aversões xenofóbicas a outras
raças, credos e religiões.
E já é hora de perguntar: porque evangélicos podem realizar seu
enorme evento em um espaço público (é bom lembrar), sem serem
importunados, e os esotéricos não? O que aconteceria se, por exem-
plo, seguidores do Hare Krishna resolvessem adentrar à gigantesca
arena montada pelos evangélicos, no Parque do Povo, entoando
seus cantos? Um jihad às avessas?! Uma verdadeira guerra santa em
nome de Jesus?! E é preciso que se diga que alguns seguidores, dessas
Igrejas evangélicas, não possuem estatura moral para questionar as
religiões esotéricas, pois há muito são alvos de desconfianças, ques-
tionamentos e até processos judiciais.
Como não tenho nenhum tipo de compromisso (espiritual, ma-
terial que seja) com esta ou aquela religião, posso\devo considerar
absolutamente necessário se ter profundo respeito por tudo que con-
sideramos diferente de nós e que não concordamos. Este artigo é,
antes de qualquer coisa, meu mais profundo repúdio aos atos aqui
descritos. Durante muito tempo não tínhamos liberdade de expres-
são em nosso país, agora que temos é preciso saber lidar com esse
direito de forma responsável sob pena de voltarmos a perdê-lo. O
respeito à diferença é também um dos itens necessários para que a

47
democracia passe a ser um hábito nosso, e não um evento determi-
nado pelo calendário eleitoral.

48
DEBILIDADES DA DEMOCRACIA
LATINO-AMERICANA

Publicado em março de 2007 no www.paraibaonline.com.br

Já dizia Chico Buarque que “não existe pecado do lado de


baixo do Equador!”. Nós, latino-americanos, somos quase imunes
aos acessos falsos moralistas anglo-saxões, mas, não somos afeitos
à organização do mundo capitalista-presbítero. Aquela ética protes-
tante e o tal espírito capitalista weberianos chegaram até nós atrasa-
dos e distorcidos.
Foi assim que o modelo tocquevilliano de democracia, onde
igualdade e liberdade são complementares e não excludentes, nos
chegou desvirtuado e mal-ajambrado. Acontecimentos políticos de
mais de um século demonstram isso: ditaduras e autoritarismos de
toda sorte; repúblicas coronelísticas e militarizadas, populistas e/ou
nacionalistas; democracias tuteladas e não consolidadas, sofrendo os
malefícios causados por um pretorianismo ancestral.
Ancorado nisso tudo, Hugo Chávez foi reeleito com mais de 61%
dos votos, em que pese na Venezuela ele não ser obrigatório, para um
mandato que vai até 2013. Ele fez uma campanha pedindo ao povo
para não ter medo do socialismo, afirmando que vai “aprofundar
a revolução bolivariana” e criar um “sistema de comunas” - projeto
que acabaria com as 335 prefeituras e 24 estados, substituindo-os por
conselhos comunais locais ligados ao Executivo.
Chaves propôs a reeleição indefinida, para se perpetuar no gover-
no, desconsiderando que a alternância no poder é uma das condições

49
para se ter democracia. Ele tem uma visão utilitarista das institui-
ções e das normas que regem as relações diplomáticas entre nações.
Controla imprensa, judiciário, parlamento, partidos. Parece querer
fugimorizar a Venezuela – fechando instituições com o argumento
(factível) de que elas agem contra os interesses do povo. Inclusive,
sugeriu a criação de um “partido único da revolução”. Chávez en-
caminhou à Assembleia Nacional o projeto da Lei Habilitante que
lhe permitirá governar por decreto por 18 meses. Tendo quase todos
os deputados ao seu lado, pois a oposição boicotou as eleições de
2005, alegando manipulações no sistema eleitoral, não terá proble-
mas para aprová-la. Assim, o parlamento permitirá a Chávez legislar
sobre tudo ou quase tudo.
Justificando os motivos para a concessão de tantos e ilimitados
poderes a um só homem, o texto da lei diz que os decretos que tratam
das questões econômico-sociais objetivam “transformar o paradigma
econômico capitalista atualmente hegemônico”. E mais: demonstran-
do o quão subserviente tornou-se ao poder executivo, o parlamento
concedeu regime de urgência para aprovar o novo instrumento e,
pelo projeto, os deputados só conhecerão as leis decretadas quan-
do elas já tiverem sido publicadas no Diário Oficial. Chávez vai en-
carnar o próprio poder legislativo, passando por cima deste quando
bem lhe aprouver. Seria uma espécie de poder moderador?
Transformações econômicas e sociais são necessárias neste ca-
pitalismo arcaico e subserviente existente na América Latina. Mas,
porque tem que ser ao custo da democracia política? Isso lembra
a forma como os militares lidavam com o parlamento brasileiro
durante nossa última ditadura. A diferença? Eles eram de direita e
Chávez é de esquerda. A similaridade? A visão autoritária na con-
dução do processo político. Convém não esquecer que Chávez tem
profunda inserção nos meios militares, até por ser originário deles. E
bem sabemos por que presidentes latino-americanos tentam manter
boas relações com os militares. Já dizia Jânio Quadros: “Só tem uma
coisa pior do que depender dos militares é não tê-los por perto quando
necessário”.
Chávez é carismático, populista, pretoriano, falastrão, debochado
e militarizado. Mas, tem uma preocupação com as condições de vida

50
do seu povo e quer seguir pela via cubana onde questões sociais são
sempre prioritárias. Criou o Fundo de Desenvolvimento Nacional,
com orçamento de US$ 6 bilhões, para promover “crescimento en-
dógeno” e iniciou a estatização de empresas de telecomunicações e
energia. Vai, ainda, criar uma companhia aérea estatal e aumentar o
financiamento para as cooperativas que terão preferência nas com-
pras e contratos do governo. Obvio, nacionalizará investimentos de
extração de petróleo e gás na bacia do rio Orinoco. Sendo a Venezue-
la o 5° maior produtor de petróleo do mundo, seria pouco inteligente
negligenciar esta área estratégica.
Ele parece esperar (ou desejar) um conflito, pois tem gastado
quantias significativas do PIB com equipamentos bélicos e garante
que vai armar o povo para que este se autodefenda de ameaças es-
trangeiras. No seu discurso de posse, afirmou que restam duas alter-
nativas para a Venezuela: socialismo ou morte. O povo deve querer
a primeira alternativa, tanto que o elegeu, mas será que aceitaria ir
pela segunda alternativa?
Hugo Chávez almeja suceder a Fidel Castro na liderança da es-
querda latino-americana. Já se vê comandando Evo Morales (Bo-
lívia), Rafael Correa (Equador), Tabaré Vasquez (Uruguai), Daniel
Ortega (Nicarágua) em uma cruzada contra os EUA. Parece ter de-
sistido das investidas sobre Lula e busca as boas graças com Néstor
Kirchner (Argentina) e Michelle Bachelet (Chile). Importa, ainda,
que Chávez explique o que pretende quando se reúne com Mahmoud
Ahmadinejad (Irã) e Kim Jong-il (Coréia do Norte), homens que
brincam com artefatos nucleares enquanto comandam seus países.
Chávez premedita suas atitudes. Chegando ao Rio de Janeiro, para
a cúpula do MERCOSUL, disse (SIC) “ser o único capaz de desconta-
minar a América latina da doença mortal do neoliberalismo”. Precisa-
va agradar a plateia que foi lhe saudar como se fosse um Fidel Castro
rejuvenescido. Para a imprensa, disse que vai construir o “socialismo
do século XXI” e aprofundar o combate às desigualdades sociais. Ele
tenta atualizar o discurso revolucionário de Che Guevara, propondo
uma última guerra de independência na América Latina contra os
EUA, e retoma a elaboração trotskista da revolução permanente.
O socialismo chavista é capenga - deseja anular, ao invés de

51
aprofundar, os canais da participação e representação popular. Con-
cebe ampla transformação social, que vá inibindo os altos níveis de
pobreza, mas prevê o fechamento dos canais democráticos da par-
ticipação. Chávez recoloca o velho (falso) dilema: para se ter refor-
mas sociais, é preciso renunciar às liberdades políticas. Dito de outra
forma: só se vive na igualdade sem a liberdade. Retoma a estratégia
da esquerda dos anos 1960 por não aceitar que ter igualdade, sem
liberdade, é como amputar um membro do próprio corpo.
Mas a demanda relevante de nosso tempo é lidar com os dilemas
da democracia política, com os mecanismos, instituições e práticas
associados a formas de decidir políticas que interessem a sociedade.
É preciso valorizar e conviver com as práticas e normas que regem
a vida dos partidos e organizações ou com as atitudes que marcam
a relação entre estes e as instituições e entidades políticas da socie-
dade. Não adianta lutar contra a dominação imperialista, acabando
com o oxigênio político de uma sociedade: a participação. Este foi o
caminho que os bolcheviques russos tomaram e bem conhecemos
o resultado: a instalação da ditadura de um partido e depois de um
homem só.
Segundo o Instituto Latinobarômetro existem cerca de 140 pa-
íses no mundo vivendo sob regimes democráticos. No entanto, só
em cerca de 60 pode-se considerar que há uma consolidação da de-
mocrática. Em menos da metade as possibilidades de haver reverses
autoritários reduziram-se quase a zero. Muitos governos eleitos de-
mocraticamente apresentam acentuada tendência a manterem sua
autoridade com métodos não democráticos. Utilizam-se de vários
expedientes: modificam as constituições de seus países para benefí-
cio próprio, intervém nas eleições, restringem a independência dos
outros poderes, além de não exercerem controle sobre os militares.
A democracia não pode ser reduzida ao ato eleitoral, em que
pese ele ser condição necessária para se tê-la. Ela requer eficiência,
transparência e equidade na atuação das instituições políticas. Exige,
também, uma cultura política que aceite a legitimidade da oposição
e que reconheça os direitos de todos. Não será negando estas con-
dições, em nome da melhoria de vida do povo, que vamos abater as
debilidades das democracias latino-americanas.

52
O FATOR LULA E O DILEMA DO POSTE

Publicado em setembro de 2008 no www.paraibaonline.com.br

A ironia é bem-vinda - nunca na história deste país houve um


presidente tão popular! Ibope, Datafolha, Vox Populi e CNT/Sensus
atestam a mesma coisa: a popularidade de Lula continua nas alturas.
Hoje, ele é o grande cabo eleitoral do Brasil. Bem dito, ele é cabo
eleitoral de si mesmo, pois está de olho em 2010.
A próxima eleição ajuda a redesenhar o mapa político-eleitoral.
É, por isso, que o embate PT X PSDB em São Paulo deve ser acom-
panhado. E é assim que surge Dilma Rousseff como a preferida do
presidente. Suponho que Lula não queira um 3° mandato a iniciar-se
em 2011, que prefira a ministra no seu lugar e uma volta triunfante
em 2014. Preservaria sua biografia e teria estatura moral para criticar
interesses continuístas de adversários e aliados mais afeitos ao poder.
Lula segue sobrevivendo às intempéries. Enfrentou crises em
graus diversos de complexidade. Tivemos o mensalão e as sangues-
sugas, o dinheiro na cueca dos aloprados, o dossiê com as despesas
de FHC e agora a crise dos grampos. Mas, Lula passa por tudo in-
cólume. Em 2006, quanto mais Alckmin batia, mais forte ele ficava.
Sempre se poderá dizer que a tentativa, desastrosa, de compra do
dossiê contra José Serra causou o 2º turno. Mas, tivéssemos um 3° ou
4° turnos e ainda assim Lula seria reeleito.
Pesquisa da CNT/Sensus traz a popularidade do presidente em
77,7%. Em abril era 69,3% e dizia-se que não mais subiria. Subiu! E,
admitamos, a força dos programas sociais do governo é inconteste.

53
75,3% afirmaram que vão votar nos candidatos do governo para a
continuidade deles. Mas, variações dessas condições podem fazer a
popularidade despencar. Sarney e Collor foram do céu ao inferno em
menos de um ano. Convém, por exemplo, não descuidar da inflação.
O monstro que corrói salários e popularidades presidenciais.
Em julho de 2003 Lula tinha popularidade de 77,6%. Estava em
lua-de-mel com o eleitorado, os aloprados do PT não tinham lança-
do sua sanha contra adversários e o “Bolsa Família” estava em fase
de implantação. Ao contrário de FHC, que viu sua popularidade pul-
verizada pela crise econômica de janeiro de 1998, a de Lula nunca
caiu, variou, mas sempre acima dos 50%. No 1° mandato e até aqui,
metade do 2°, ela continua no cimo. Agora, é a mesma do início do 1°
mandato, i.e., após a nação conhecer os defeitos e qualidades de Lula,
ele continua popularíssimo. A constatação é só uma: para 77,7% da
população Lula tem mais qualidades do que defeitos.
Estes índices têm efeito dominó. Lula empresta sua boa estampa
ao governo e a população o avalia positivamente. No Brasil, não se
diferencia a imagem do presidente da do governo. Se os candidatos
se escondem de um presidente impopular, no caso contrário, querem
aparecer ao lado dele. Pode ser numa fotomontagem para os menos
poderosos das cidades menos importantes ou em comícios para os
mais poderosos das cidades mais relevantes. Até os oposicionistas
querem ser próximos do presidente. Tentam convencer os eleitores
que pelo bem do país superam divergências.
Prova inconteste do fator Lula, nesta eleição, é o caso de Silvio
Mendes, candidato à reeleição em Teresina, que usou a imagem de
Lula em sua campanha. Nada a estranhar, se ele não fosse do PSDB.
Seu adversário, Nazareno Fonteles (PT) acionou o tucano na Justi-
ça Eleitoral. Lula mira em 2010, deixa de favorecer candidatos do
PT para apoiar os de partidos aliados. No Rio de Janeiro, Marcelo
Crivela (PRB) tem apoio em detrimento de Alessandro Molon, que
contestou judicialmente o que chamou de uso indevido da imagem
de Lula. Em Fortaleza, a prefeita Luizianne Lins não conta com o
apoio do presidente, pois este o empresta a Patrícia Saboya (PSB).
Fiquemos com estes exemplos, eles são suficientes para provar que o
lulismo suplantou o petismo.

54
Como cabo eleitoral, Lula retroalimenta sua popularidade. Ao
tempo em que pede votos para seus aliados, aumenta sua exposição,
fala de suas realizações e turbina sua popularidade. Em campanha
eleitoral, sem ser candidato, Lula faz o que mais gosta que é falar
de si mesmo. A mãe de todos os testes para esta popularidade será
em 2010. Conseguirá Lula transferir para Dilma Rousseff seu capital
eleitoral? Enquanto Lula é bem avaliado, a performance da ministra,
nas simulações para 2010, deixa a desejar. O seu melhor desempenho
foi de 12,3%, mas num cenário em que José Serra não era citado. Sua
média, em quatro simulações, ficou em pífios 9,82%.
Se ela é ungida por Lula, para sua sucessão, se é a gestora do PAC
(que lhe dá visibilidade altissonante), se o presidente a leva pelos pa-
lanques e plataformas de petróleo, se aparece nos guias eleitorais, e
mesmo assim não decola, falta-lhe algo. Ela não tem o carisma de
Lula e seu perfil técnico é útil para gerenciar programas sociais, mas
na seara política pode ser um empecilho. Não desconsideremos que
em 20 das 26 capitais os candidatos lulistas aparecem em 1º lugar nas
pesquisas. Em 2004 apenas 11 venceram o pleito municipal. Na pes-
quisa CNT/Sensus, 44,1% admitiram votar no candidato apoiado por
Lula. Desses, 15,5% declararam que o candidato de Lula é “o único
em quem votariam”. O fator Lula tem mesmo uma função relevante.
Se o que vemos não é algo conjuntural, Dilma Rousseff pode co-
meçar a pensar na roupa de sua posse. Mas, se a popularidade de
Lula é pessoal (e intransferível), se é algo que a população dá a ele e
somente a ele, aceitando, apenas, que ele indique candidatos a cargos
que jamais ocupará, então das duas uma: ou muda-se a candidata ou
muda-se o eleitorado. O problema não é se o presidente transfere ou
não votos. O enigma a ser decifrado é: quanto ele consegue transferir
e se isso faz até um poste ser eleito. Daí que o(a) candidato(a) tem
que se mostrar viável e crível aos olhos do eleitorado. Querer ser elei-
to(a) por uma força motriz, de tipo Lula, pode ser uma subestimação
da capacidade de escolha do eleitor, mas pode ser, também, o claro
entendimento que o dilema do poste já foi devidamente resolvido.

55
SOBRE ELEIÇÕES, CONTRATOS
E DEMOCRACIA

Publicado em outubro de 2008 - www.paraibaonline.com.br

Em 1976 o governo militar realizou eleições para lastrear a


abertura lenta e gradual, capitaneada pela dupla Geisel/Golbery. As-
sim, alterou a propaganda eleitoral na televisão. Se antes o candidato
tinha um minuto para verbalizar sua mensagem, com a “Lei Falcão”
amordaçou-se a disputa, pois só se mostravam fotografias e uma voz
lacônica cantilenava o currículo do postulante. Nada mais! Eram
campanhas enfadonhas, sem forma e conteúdo. Finda a ditadura, a
legislação eleitoral mudou e as campanhas ganharam muito na for-
ma, em que pese continuarem pobres de conteúdo. Na verdade, as
eleições se tornaram grandes espetáculos e isso merece ser analisado.
Veja-se que o promotor eleitoral de mídia em Campina Gran-
de, Herbert Targino, propôs o fim das carreatas, pois (SIC) “causam
turbulências no tecido social e têm alto custo”. Tateando o humor
partidário, sugeriu uma reflexão sobre a possibilidade de as carreatas
serem suprimidas. Os atores políticos se posicionaram. O deputado
Ruy Carneiro defendeu o fim delas, devido aos acidentes causados e
aos altos custos. Para o deputado Vital Filho, elas mostram o enga-
jamento e sentimento popular e devem ser reguladas e fiscalizadas.
Mas, algumas coligações não aceitam o seu fim.
Usará a Justiça Eleitoral suas prerrogativas e proibirá esses even-
tos ou pelo menos os regularizará e fiscalizará para impedir que o
“tecido social se esgarce”? As eleições são recorrentemente tratadas

56
como a “festa da democracia”. Temos comícios, passeatas, carretas,
festas, corpo-a-corpo. As aparições públicas dos candidatos são
acompanhadas de música, fogos, bandas, artistas, trios elétricos -
tudo para chamar a atenção do eleitor. Um atento observador tem
dificuldades de ver e ouvir com nitidez o candidato, pois o que está
em seu entorno causa tumulto, desordem e alvoroço.
Estranha-me que os debates, na televisão principalmente, sejam
hermeticamente controlados, com regras muito bem definidas pela
Justiça Eleitoral, pelos candidatos e por quem os promove. Já assisti
a um debate em que os candidatos tinham (pasme!) quinze segundos
para perguntar e um minuto para responder. Eles não podiam nem
se referir diretamente um ao outro, sob argumento (frágil) de manter
o nível da discussão, em respeito ao telespectador. Neste momento, a
imprensa e analistas políticos pisam em ovos ao se referirem aos can-
didatos e as questões político-eleitorais, pois tudo parece ser passível
de reprimendas e processos.
Os debates são ideais para os candidatos se mostrem por inteiro
aos eleitores. Na Paraíba, um pífio desempenho na altercação já con-
tribuiu para que se perdesse uma eleição. Sim, devemos inquirir o
candidato inseguro, que não é objetivo nas respostas, que gagueja e
lancina a língua portuguesa, que foge dos temas espinhosos e que, de
tão maquiado, mais parece um ator de novelas. Imagem é importan-
te, mas sem conteúdo, não passa de dissimulação.
Se os debates têm tantas regras, porque os momentos em que o
candidato aparece para sorrir, acenar, abraçar, beijar, também não?
Porque permitir passeatas, pelas principais ruas da cidade, que
transtornam nossas vidas? Porque permitir tanto barulho, tantos fo-
gos, tantas pessoas e carros nas ruas nos horários onde o trânsito já
é normalmente complicado? Para quê transformar uma campanha
eleitoral em um espetáculo que se arrasta por mais de três meses?
Qual o real sentido de se insistir nas carreatas e passeatas se elas são
tão caras?
O que faz alguém seguir em uma imensa fila de carros, por horas
a fio, num barulho ensurdecedor? Seriam “bônus” distribuídos para
que se preencha os tanques de combustíveis dos carros, em geral
no posto de gasolina de um aliado do candidato? Lembrando que

57
sempre existem trocas de favores e a imposição a muitos de irem às
atividades de campanha sobre pena de perderem benesses dadas e/
ou prometidas. As carreatas são, ainda, uma opção de lazer. É um
passatempo, uma festa que embriaga e alivia dos estresses semanais.
Os próprios eleitores exigem dos seus candidatos que façam as car-
reatas, e estes não seriam insanos de negarem. Afinal, os políticos só
dão pão e circo porque tem quem receba.
As carreatas são eventos que nada dizem do candidato que as pro-
move. Elas não aferem engajamento ou popularidade do candidato,
pois ele é tão somente uma das atrações. Com elas multiplicam-se
acidentes e tantos outros problemas advindos do uso indiscriminado
de bebidas alcoólicas. A poluição sonora campeia através dos carros
que, com suas malas abertas, conspurcam a cidade. Carreatas permi-
tem tão somente uma fugidia alegria que logo acaba.
Muitos não entendem que eleição é um contrato em que poucos
representam muitos. Os contratantes (eleitores) devem fiscalizar os
atos dos contratados (eleitos) após estes tomarem posse em seus car-
gos. Transformar uma eleição em uma festa só contribui para mas-
carar os problemas e deficiências de um candidato. Se ele dispõe de
meios que permitem que sorria muito e pouco fale, poderá vender
seu produto adulterado que depois tantos problemas causará.

58
QUERIA TER 40 ANOS EM 1969

Publicado em junho 2009 no www.paraibaonline.com.br

Faço 40 anos como se degustasse um vinho raro, sorvendo


sua essência. Aos 40 não se é mais jovem, imprudente, mesmo que
ainda não se ganhe lenços e meias. Sinto-me bem, os cabelos bran-
cos não me incomodam e o colesterol está em 166. Tenho esposa
e filhos, que me amam, um mínimo de experiência, já fiz algumas
coisas boas, e outras nem tanto, e ainda não penso na aposentadoria.
Nasci em 1969, o ano maldito em oposição a 1968, que para muitos
não terminou. Se um não findou, o outro não pode ter começado. Já
li que 1969 começou na fatídica 6ª feira, 13\12\1968, quando o AI-5
foi decretado. Nessa excêntrica visão, fatos parecem não se proces-
sarem, acontecem de forma randômica. Se ‘68’ mudou vidas, ‘69’ fez
o quê? Meu apreço por este ano se dá pelo que nele aconteceu e não
porque nele nasci. Farei uma seleção, arbitrária, claro, de fatos que
queria ter visto in loco, não importando se bons ou ruins, pois a rea-
lidade é assim, diferente do ideal. Veremos que o “museu de grandes
novidades”, do qual nos falava Cazuza, começou aqui.
Em 1969 “Butch Cassidy & the Sundance Kid”, com Paul Newman
e Robert Redford, foi lançado, com bela trilha sonora. O 6° filme
de James Bond, “007 a serviço de sua majestade”, saiu com George
Lazenby – pior, só Daniel Craig que desconhece a psique bondiana.
Tivemos ainda clássicos como “Satiricon”, “Macunaíma”, “Meu ódio
será sua herança”, “Perdidos na noite”, “Easy Rider”, “Z” de Costa-
Gravas e “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” de Glauber

59
Rocha.
Meus heróis, The Beatles, fizeram “Abbey Road” - arte em for-
ma de disco. Nasci embalado por Something, Come Together, Here
Come the Sun, Golden Slumbers, Octopus´s Garden. Eles se apre-
sentaram pela última vez, no telhado da Apple Records, em Londres.
O show foi encerrado pela polícia, eles riram e John Lennon senten-
ciou: “the dream is over”. Lennon disse que era só mais uma banda
de rock que acabava, pois havia uma nova realidade. Era “apenas”
uma banda de rock, mas que banda! Azar meu, cheguei quando eles
iam embora.
Pink Floyd lançou “Ummagumma” – experimentação e psico-
delismo levados as últimas consequências.The Who, com Daltrey
& Townshend drogadíssimos, lançou a ópera-rock “Tommy” e em
“Led Zeppelin II” o rock era como tinha que ser: guitarras pesadas e
distorções. Caetano Veloso lançou seu “álbum branco”, os Mutantes
fizeram seu segundo disco com versos como “a vida é um moinho/é
um sonho o caminho” e Gal Costa surgiu com seu primeiro disco.
Brian Jones, do Rolling Stones, apareceu morto numa piscina. Fiéis
ao lema “pedras rolantes não criam musgo”, os Stones lhe dedicaram
o show do Hyde Park, em Londres, três dias após a tragédia. Simon
& Garfunkel fizeram a turnê “Bridge Over Troubled Water”. Quinze
anos depois, saiu “Live 1969”, que comprei e ouvi até que minha mãe
implorasse para parar.
Chico Buarque foi para a Itália e lançou um disco com músicas
em italiano. Lá ficou, pois a obtusidade militar não o pouparia. Fi-
cou seu alônimo Julinho da Adelaide que gravou “Acorda Amor”,
mostrando como era o Brasil de 1969. Dizia Julinho: “se eu demorar
uns meses convém, às vezes, você sofrer; mas depois de um ano eu
não vindo, ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”. Caetano
e Gilberto Gil foram presos, humilhados e exilados, mas Gil deixou
“Aquele Abraço”.
O IV Festival Internacional da Canção e o V Festival da MPB
aconteceram, polêmicos como queria a época e ricos em talentos,
apesar de “Dom & Ravel”, o Chitãozinho e Xororó da época, só que
pior e a serviço da ditadura. Surgiu o tablóide “Pasquim”, irreverente
e debochado, que vendeu 200 mil cópias com Leila Diniz na capa.

60
Enquanto isso, Vinícius de Moraes casava-se pela 5ª vez, tomava seu
cachorro engarrafado e compunha, com Tom Jobim, belas canções.
Vera Fisher foi eleita Miss Brasil e entrou para o show business. E
teve o festival de Woodstock - um desbunde geral, regado a sexo,
drogas & rock and roll. Imagine ver Joe Cocker cantando “A Little
Help From My Friends”, com aquele vozeirão de bluzeiro do meio-o-
este americano?!
Tivemos as estréias do Concorde, do Boeing 747, da ArpaNet, em-
brião da Internet, e se isolou um gene. Nada como Neil Armstrong
pisar em solo lunar e dizer a tal frase que, acho, não foi de sua lavra.
Os soviéticos não vacilaram e a Soyuz 6 foi dar uma voltinha no es-
paço. Foi à primeira transmissão de TV via satélite para o mundo.
Contava minha mãe que assistiu aquilo tudo, emocionada, enquanto
eu resumia 1969 ao precioso líquido que jorrava do peito dela. Para o
bem e para o mal, estreou o Jornal Nacional da Rede Globo, com Cid
Moreira, que já tinha cabelos brancos, e Jackie Stewart foi campeão
na Fórmula 1. Com o alterego de Edson Arantes do Nascimento, que
fez seu milésimo gol, o Santos foi campeão e meus times, Campi-
nense e Flamengo, não ganharam nada – resguardavam-se para me
alegrar no futuro.
Nos EUA, Charles Manson mandou os fanáticos de sua seita as-
sassinarem a atriz Sharon Tate e a imprensa usou o fato para desviar
a atenção das atrocidades que o exército cometia no Vietnã, como
o massacre de My Lai em 1968. Nixon entrou na Casa Branca e foi
lépido e fagueiro até o desastre da guerra. 250.000 pessoas marcha-
ram em Washington pedindo o fim da Guerra do Vietnã. Na Líbia,
Kadhafi tomou o poder com um golpe e teve sólida carreira de di-
tador. O Congresso Nacional Palestino apontou Yasser Arafat como
líder da OLP e Charles de Gaulle renunciou à presidência devido às
ebulições do “maio francês”. Prova que 1968 acabou e foi sucedido
por 1969, goste-se ou não disso. O processo histórico é assim mesmo.
A VPR, de Lamarca, e a ALN, de Marighella, sequestraram o em-
baixador Elbrick. Puderam, por momentos, emparedar a ditadura.
Mas, ela deu o troco e fuzilou Marighella no final do ano. Morria
um ícone da esquerda. Já Lamarca desertou do quartel onde servia e
foi à luta armada, fez uma imperceptível cirurgia plástica e namorou

61
a musa da revolução, Iara Iavelberg. Tudo em 1969, não dava para
perder tempo, logo ele, também, seria morto.
Achando o AI-5 limitado, Costa e Silva decretou 11 Atos Institu-
cionais e outorgou uma Constituição, incorporando atos e decretos
desde o golpe de 1964. A ditadura era legalista, o suprassumo do au-
toritarismo era disposto em lei. Pródiga em crises institucionais, teve
uma séria quando Costa e Silva teve trombose e afastou-se. Assumiu
uma junta de três militares, logo alcunhada de “3 patetas”, que impe-
diu o vice (civil) Pedro Aleixo de assumir para ele aprender a não ser
“do contra”, pois tinha se recusado a assinar o AI-5. Os “patetas” bai-
xaram o AI-14, instituindo a Lei de Segurança Nacional – que previa
pena de morte, prisão perpétua e banimento. A linha dura bancou
a candidatura de Médici, tido como o pior dos ditadores, mas outro
qualquer seria igual, era a lógica da época. Para moldar a geração que
viria (a minha) o Decreto-Lei nº 869 pôs “Educação Moral e Cívica”
no sistema educacional. E ainda teve Paulo Maluf assumiu a prefeitu-
ra de São Paulo, iniciando eficiente carreira de predador do Estado.
Sinto inveja de Benjamin Button, o personagem de Scott Fitzge-
rald que nasce velho e morre bebê. Poderia ter nascido em 1929 com
80 anos. Regredindo, em 1969 teria 40 anos e veria os fatos aqui des-
critos. Assistiria a um show de Chico Buarque, refletindo sobre as
canções, ao invés de ir para os shows de hoje onde se pede ²prá tirar o
pezinho do chão e jogar a mãozinha prá cima². Ouviria lançamentos
da época: Abbey Road, Led Zeppelin II, Tommy, Ummagumma, dis-
cos de Chico, Caetano e Gil, ao invés de ter que aturar o excremento
que a indústria musical atual produz. Acompanharia as lutas e fatos
políticos da época, ao invés de assistir a pasmaceira previsível que
se tornou a política atual. Me preocuparia com o “pequeno” passo
de Armstrong, ao invés da gripe suína, do aquecimento global e da
corrupção no Brasil. Gostaria de ter 40 anos em 1969 e acompanhar
tudo in loco. Mas, assim, tal qual Button, hoje eu teria dois meses de
vida e seria inane. Como diria Lennon & McCartney, let it be...

Dedico este artigo a minha “Daisy” (eterna namorada). “No


curioso caso de Benjamim Button”, Daisy (Cate Blanchett) é sua
paixão. Enquanto ele rejuvenesce, ela envelhece, mas o amor deles

62
resiste a tudo, principalmente ao tempo. Em meu caso, minha Daisy
não envelhece. Com seu amor, ternura e alegria oxigena minha
vida, impedindo que eu mesmo envelheça. Assim, nosso amor nos
eterniza!

63
DO QUE NÃO ME UFANO

Publicado em dezembro de 2009 no www.paraibaonline.com.br

Na Copa do Mundo de 1958, o técnico da Seleção Brasileira


era Vicente Feola. Conta-se que na véspera do jogo contra a União
Soviética, “seu” Feola insistia que bastaria fazer a bola chegar aos
pés de Garrincha que a vitória estaria garantida. Foi quando “mané”
perguntou: “Seu Feola, já combinou isso com os russos?”
Nossos governantes se esqueceram de combinar com os “russos”
ao trazerem para o Brasil a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas
(2016). Ao abateram um helicóptero da polícia carioca, os traficantes
estavam dizendo que faltou combinar também com eles. Claro que é
inadmissível que as instituições fiquem a mercê de criminosos, mas
o Rio é uma cidade conflagrada, com o crime organizado dominan-
do áreas cada vez maiores.
Como eventos desse porte podem ocorrer em centros urbanos
onde as instituições coercitivas são combatidas com armamento pe-
sado? Pior, quando não demonstram condições de reverter a situa-
ção. A solução? Dar poder de polícia ao Exército. Na verdade, quem
deve ter poder de polícia é a própria polícia. Esperar que as Forças
Armadas garantam a segurança pública é temerário, posto não se-
rem talhadas para isso, mesmo tendo prerrogativas constitucionais,
egressas da ditadura militar, e a Doutrina de Garantia da Lei e da
Ordem (GLO), utilizada cada vez mais em operações urbanas.
Devo me regozijar por que o Rio de Janeiro foi escolhido sede das
Olimpíadas? Devo me envaidecer, pois nem Barack Obama impediu

64
que o Rio fosse eleito? Não, não vejo motivos para nos jactarmos. Os
governantes devem se blasonar, pois Olimpíadas vitaminam projetos
eleitorais. Como se impedirá que traficantes atrapalhem a organi-
zação do evento caso entendam que este trará prejuízos aos “negó-
cios”? Se podem derrubar um helicóptero, o que não farão com todo
o resto? Como tamanho evento acontecerá com uma polícia corrom-
pida, cooptada e minada pelo crime organizado?
Definido o Rio como sede, a polícia subiu o morro. Queria tomá-
-lo dos traficantes e lá ficar até as Olimpíadas? Instalaram as Unida-
des de Polícia Pacificadora (UPPs) em alguns morros e, ato contínuo,
os traficantes atacaram para garantir territórios. O governador do
Rio afirmou que a segurança será reforçada próximo aos eventos e
o comando da PM disse que as UPPs aumentarão a segurança nas
favelas, pois forçarão os traficantes a agirem longe das instalações
olímpicas, i.e., a preocupação não é combater e acabar com o poder
deles, mas estabelecer uma coexistência pacífica. O prefeito do Rio
disse que Londres, após ser escolhida sede olímpica sofreu atentados
terroristas mais graves do que os fatos no Rio. Apenas não disse que
desde então lá não houve mais atentados. Já no Rio eles acontecem
sempre. Por isso mesmo, não tenho do que me ufanar.
Enfim, o que se quer saber é como se retirará os traficantes de
seus domínios, forçando-os a depor armas. O monopólio delas, pelo
Estado, é requisito essencial para que a população possa sentir-se
segura. A polícia tem que fazer o trabalho de inteligência e efeti-
var políticas de segurança visando o bem-estar do cidadão, além de
armar-se para poder fazer frente ao aparato bélico dos traficantes.
Simples assim. Tudo o mais é verborragia político-eleitoral.
Também, não serão as promessas de medalhas em profusão que
me farão esquecer os acontecimentos na organização do Pan-2007. O
tal legado social do PAN não existiu (nunca existirá) e o que ficou foi
déficit operacional, dívidas gigantescas e denúncias variadas de mal-
versação do dinheiro público. Tendo desperdiçado as oportunidades
trazidas pelo PAN, aproveitaremos as duas próximas? Temo que não,
pois não temos instituições republicanas. A Copa do Mundo é um
negócio privado comando pelo inefável Ricardo Teixeira, através de
sua possessão, a CBF. As Olimpíadas terão Carlos Arthur Nuzman,

65
posseiro único dos haveres, bens e cabedais do esporte olímpico bra-
sileiro, como aquele que ditará todos os procedimentos.
Como sediaremos uma Copa do Mundo, se os projetos para a
construção e reforma de aeroportos estão parados? Existem proble-
mas financeiros e as empresas e os governos estaduais não demons-
tram como pagarão os empréstimos contraídos junto ao BNDES;
inexiste controle institucional sobre o fornecimento de insumos para
as obras; há desperdício de material e ameaças ao meio ambiente; e
pululam pelos tribunais contestações aos processos de licitação de
obras feitas.
Se nas férias o tráfego aéreo vira um caos, o que dirá num evento
que deve trazer cerca de 500 mil pessoas ao país? O governo quer
mudar o status da Infraero – de estatal passaria a sociedade anônima
de capital fechado para que não se submetesse à fiscalização alguma,
i.e., o governo quer transformar a questão estratégica dos aeroportos
em um negócio livre de controle – quer desrepublicanizar a já frágil
gestão aeroportuária no Brasil.
Estima-se que só a Copa do Mundo custará ao país algo entre
80 e 150 bilhões de reais. Como esses montantes serão auditados?
As transferências de recursos públicos para a iniciativa privada, para
que se construam estádios, serão críveis? Ou se farão na base de
“para os amigos tudo, para os inimigos os rigores da lei”? Pergunto-
me, pasmo, como se pode escolher o Brasil se não temos, hoje, um
único estádio em condições de receber jogos em nível do evento.
Poderia sim ufanar-me se tivesse a certeza de que, com os even-
tos, teríamos obras que contribuiriam para que problemas crônicos
(segurança, transporte, moradia, saneamento, poluição) de nossas
cidades fossem sanados. Vestiria uma camisa verde-amarela se vis-
se que isso fortaleceria a capacidade competitiva do Brasil mundo
afora. Colocaria uma bandeira em minha varanda se soubesse que
esses eventos trariam um consistente legado para a qualidade de vida
das pessoas. O ministro das Cidades, Márcio Fortes, afirmou que no
dia seguinte à Copa cada empreendimento terá que ser um legado
verdadeiro, funcionando sem déficits operacionais ou subsídios do
governo. Certo! Concordo. Mas, como isso acontecerá? Sugiro pri-
meiro passar o Pan-2007 a limpo e só depois pensar-se em legados

66
futuros. Assusta saber que centenas de atletas continuarão a míngua
até 2016 e que um ou dois serão pinçados para as vitórias e que ao
ganharem uma mísera medalha, não a terão para si mesmo, fruto do
seu próprio mérito, mas para o “Brasil-sil-sil!!!!”.

67
UM PAÍS DE TIRIRICAS

Publicado em outubro de 2010 no www.paraibaonline.com.br

Eis nossa 21ª eleição direta para presidente. Em 121 anos de


história republicana tivemos, em média, uma eleição a cada seis
anos. Mesmo com os desrespeitos sofridos por nossas instituições,
há 22 anos elegemos governantes e parlamentares para os três entes
da federação. Assim, com tantas eleições, achamos que “nossa demo-
cracia está amadurecida, pois o sistema eleitoral brasileiro é modelar
para o mundo inteiro”.
Seria alvissareiro ter tido tantas eleições, não fossem os quinze
militares presidentes; os quatro presidentes empossados e depostos,
os três que renunciaram e dois que, eleitos, não foram empossados,
além de sete que governaram sem ter votos. Foram nove eleições in-
diretas (com votações no Congresso Nacional) e quatro golpes de
Estado bem-sucedidos, para não falar das tentativas. Nosso processo
eleitoral evoluiu manquitolando. Em 1960, última eleição antes do
golpe de 1964, 6 milhões de eleitores votaram. Na seguinte, 29 anos
depois, foram 120 milhões de eleitores. Crescíamos quantitativamen-
te enquanto desaprendíamos a votar.
Lidamos com a democracia em termos quantitativos e não cuida-
mos de sua qualidade, pois não atentamos para o fato de que eleição
é condição necessária, porém insuficiente das democracias. Há tanto
exercendo o sufrágio, o que sabemos sobre a representatividade? Ao
ver o palhaço Tiririca eleito, com mais de 1 milhão de votos, a res-
posta é pouco, quase nada! Seguimos sem saber o real significado de

68
contratar a representação política pelo sufrágio.
Useiros e vezeiros na “arte” da representação nos blasonamos dos
números exacerbados, mas não da qualidade. Ufanamo-nos da efi-
ciência do sistema eleitoral com suas urnas eletrônicas e a rapidez
com que saem os resultados, i.e., valorizamos a forma, não o con-
teúdo. Tivéssemos uma essência democrática, Tiririca não seria se-
quer candidato. Mas, porque ele não poderia ser candidato? Por que
é semianalfabeto? Em hipótese alguma! Em tempo, no Dicionário
Aurélio, o verbete Tiririca possui três significados: (1) erva daninha
que invade terrenos cultivados ou caule tuberculoso que dificilmente
se erradica; (2) pessoa furiosa; (3) punguista, batedor de carteiras.
Tiririca não existe, é criação de Francisco Oliveira Silva – um
imigrante nordestino que, tendo ido tentar a sorte em São Paulo, re-
solveu fazer graça de sua miserabilidade econômica, social e intelec-
tual e fez-se famoso por (des)graça da indústria do entretenimento
que transforma o nada em tudo. Votou-se neste tal Francisco ou em
um palhaço? Quantos votaram conscientes? Quantos votaram para
protestar ou desvalorizar o sistema eleitoral?
Tiririca não tem méritos para reivindicar uma cadeira no parla-
mento. A forma risível como se apresentou diz muito do que preten-
de. O escárnio como trata a instituição que fará parte justificaria não
obter votos. Seus bordões de campanha retratam o descompromisso
para com res pública. Ao dizer “vote em Tiririca, pior não fica”, avisa
que o tipo de representação que temos é ruim e que vai piora. Ao
zombetear: “Você sabe o que faz um deputado federal? Eu não sei,
mas vote em mim que eu te conto”, sinaliza que pretende se locupletar
do erário. Os que elegeram Tiririca não pensaram na qualidade da
democracia, nem no que ele pode fazer em nome da representação.
Claro, o que quer que ele faça é responsabilidade, também, de todos
os “tiriricas” que nele votaram.
A revista Época trouxe matéria mostrando que pouco se sabe das
funções de um deputado. Em uma pesquisa, 60% dos entrevistados
afirmaram que um parlamentar serve para arrumar empregos, aju-
dar aliados em negócios com o governo e promover eventos de lazer.
A lógica é tacanha mesmo - o deputado não serviria para aprovar leis
ou fiscalizar os atos do governo, ele seria a mão invisível que retira

69
do Estado benesses (e outras coisas mais) para si e para seus aliados.
Tiririca dizia que queria ser deputado para ajudar os miseráveis, a
começar pelos seus parentes.
Agora, a dúvida é em qual das três categorias, dispostas no Auré-
lio, ele se encaixará. Será uma erva daninha dificilmente erradicável?
Um deputado furioso? Será um contumaz punguista das finanças pú-
blicas? Ou as três coisas juntas? Aguardemos, o tempo nos dirá. Mas,
por favor, não façamos apostas, pois as três opções são péssimas.
Resta-nos o Jus esperniandis – o direito de protestar ex-post facto.
Tiririca, os ex-jogadores de futebol, os cantores escatológicos e os
néscios de toda sorte dizem a mesma coisa: “Quero me eleger para
me dar bem”. Foram eleitos por um sistema que quase tudo aceita
e que se recusa a fazer uma reforma política que impeça que a pa-
lhaçada se instale no Congresso Nacional como erva daninha. Esses
tiriricas expuseram a face mais ridícula, antidemocrática e cruel de
uma sociedade que costuma fazer pouco caso de suas instituições.
Em 1953 Robert Dahl cunhou o termo poliarquia para deno-
minar um tipo de democracia representativa. Um sistema político
dotado de instituições democráticas, com funcionários eleitos, elei-
ções livres, justas e frequentes, onde liberdade de expressão, fontes
de informação diversificadas, autonomia para associação e cidada-
nia inclusiva sejam de fato e de direito. Esta poliarquia não poderia
preceder desses elementos e a falta de um deles deixaria o conceito
capenga. Como se vê, estamos bem longe de sermos uma poliarquia.
Com tantas tiriricas a solta, empestando as instituições como ervas
daninha, nosso sistema político mais parece uma “palhaçocracia”.

70
DEUS COMO COISA ÚTIL

Publicado em fevereiro de 2011 no www.paraibaonline.com.br

A sociedade da informação requer espaços para anunciar


suas novidades, curiosidades e produtos. As redes sociais, os blogs e
os sites são outdoors virtuais onde se diz o que bem quer. Mas, pare-
ce pouco, pois vemos automóveis anunciando de tudo. Vemos para-
-brisas declarando que o casal proprietário do carro está “CASADO
PARA SEMPRE”. Desconhecem que relações, assim como carros,
se sujeitam as ações corrosivas do tempo. E tem os que trazem os
nomes de sua prole. Então, vemos Danniellys, Thaysys, Davysons,
Francyellys - grafados ao bel prazer e à revelia da nossa detratada
língua portuguesa.
Têm autos com frases jocosas: “ANDO NESTE CARRO, MAS
DEUS ME DARÁ UM CROSS FOX NOVO.” Além do bom humor,
ela transparece que a pessoa só se vê feliz em um carro novo e que
espera que Deus lhe dê um. Nunca vi um adesivo com o desejo de se
ter um carro pela via do trabalho. Por que Deus daria um Cross Fox
a seja lá quem for?! Se pudesse pedir um carro a Ele quereria um As-
ton Martin (igual ao do James Bond), mas duvido que Ele atendesse
logo quem tem lá suas reservas para com as religiões que falam em
Seu nome.
A questão é esperar que Deus e/ou o Estado dê aquilo que se po-
deria obter pelo trabalho. Formados pela égide do escravismo, enca-
ramos o trabalho como um pesado fardo. Assim, esperamos de ou-
trem aquilo que podemos conseguir pelo esforço próprio. Em artigo

71
na Folha de São Paulo, Hélio Schwartsman, fala de como pessoas,
categorias profissionais e empresas tentam “sequestrar a autoridade
do Estado para impor-se a todos e garantir ‘o seu”. O fato é que muitos
veem o Estado como um butim a se conquistar e Deus seria uma
“coisa útil” da qual se aproximam para tirar proveito.
Vejo frases que exprimem da repulsa aos políticos, passando pe-
las locuções subliminares que lançam candidaturas em períodos não
eleitorais, até os desejos de “PAZ PARA O MUNDO”. E temos as as-
sertivas emprestadas dos pára-choques de caminhão: “SUA INVEJA
É A VELOCIDADE DO MEU SUCESSO”. Mas, nada se iguala aos
dizeres em que crenças são proclamadas. Temos menos a convicção
de cada um e mais, muito mais, o fenômeno em que fé, religião e
Deus são tratados de forma utilitária. As pessoas vão abraçando ra-
mos do cristianismo para obter benesses. A mais vista das frases é
a que atribui a Jesus uma fidelidade a toda prova – “JESUS É FIÉL”.
Mas, a quê ou a quem Jesus é fiel? Não seriam seus seguidores que
teriam que restituir lealdade a seus ensinamentos? Mas, serei justo, vi
uma frase em que se estabelece uma via de mão dupla para com ele:
“JESUS É FIEL... E VOCÊ?”.
No entanto, temos aquela que recupera a via de mão única: “ATÉ
AQUI NOS AJUDOU O SENHOR”, i.e., Jesus tem como função úni-
ca ajudar seus seguidores. E os prosélitos de Jesus auxiliam em quê
ou a quem? Nesta mesma linha temos: “DEUS CUIDA DE MIM”,
onde Ele é privatizado e tem a função de tratar de uma só pessoa. Vi
uma frase que é o cúmulo da prepotência: “TODOS ME SEGUEM,
SÓ DEUS ME ACOMPANHA”. O indivíduo se vê como o centro,
todos o seguem e Deus o acompanha por onde quer que vá. Mas, se-
gundo o Dicionário Aurélio, “ir em companhia de” é a mesma coisa
de seguir. Assim, até mesmo Deus marcha, caminha, persegue este
motorista encarcerado em seu complexo de superioridade.
E existem as simplificações conformistas: “ORA QUE MELHO-
RA”. Simples assim! Não precisa fazer mais nada. Basta orar e ficar
sentado (ou ajoelhado) que tudo vai melhorar. O bom emprego (pú-
blico, de preferência), o carro novo, a casa própria, o consumismo
desenfreado, numa palavra, a boa vida, acontecerão para o devota-
do crente automaticamente. Quisera fosse assim! Mas, é bom não

72
esquecer, as benesses divinas só são alcançadas mediante pagamento
do dízimo, pois, segundo interpretações e/ou deturpações as “graças”
só são alcançadas mediante pagamento, i.e., é dando que se recebe! E
quem se utilizar de tal frase pode, constatando que a vida melhorou,
afixar o seguinte em seu possante: “COM DEUS SOMOS MAIS QUE
VENCEDOR”. Não deveria ser vencedores? Até nessa hora a língua
portuguesa é achincalhada.
Em outra frase a preocupação gira em torno do eu: “SE JESUS
VOLTASSE HOJE COMO EU ESTARIA?”. Não importa a volta dele
e sim como estará o fiel, pois o retorno de Jesus só deve significar
algo para ele próprio. Sem contar que sendo Deus onipotente, oni-
presente e onisciente tornar-se-ia desnecessário Seu regresso. E va-
mos às frases onde Deus é mero instrumento para saciar interesses
materiais. As mais famosas são: “PRESENTE DE DEUS”; “ESSE FOI
JESUS QUE ME DEU”; “PROPRIEDADE EXCLUSIVA DE DEUS”.
Por que Deus sairiam por aí distribuindo carros? Imaginemos quan-
to inverossímil é um deus que se preocupa em dar carros para seus
seguidores.
A racionalização disso mostra que se adere a esta ou aquela Igreja
para poder “ganhar” um carro, numa relação mercantil. É isso que
se coloca para os futuros crentes – venha para nossa Igreja e terás
tudo o que quiseres. Você quer um carro novo? Assim seja! Mas, não
esqueça, se não pagares o dízimo, cometerás o maior de todos os pe-
cados. Uma abnegada colaboradora recolheu a seguinte frase: “RAS-
TREADO POR JESUS”. Teria Jesus um GPS para rastrear seus fiéis
mais fiéis? Também me brindou com a pérola: “DEUS QUANDO
QUER FAZ ASSIM”. Assim? Como? A frase tenta, implicitamente,
provar que Deus só faz maravilhas para alguns poucos iluminados
que creem cegamente nele.
Li certa vez, não lembro onde e nem o autor, que “acreditar é mais
fácil do que pensar, daí, existirem mais crentes do que pensadores”.
Eis outra mensagem subliminar, não pense, não reflita, apenas creia
cegamente e você será “divinamente” recompensado. Vão longe os
tempos em que os fiéis queriam “apenas” o reino dos céus. Hoje, eles
se “contentam” com um carro novo. Todos querem o reino de Deus,
a salvação e seja lá mais o que for, mas é preciso lembrar que antes

73
existe um período probatório aqui mesmo na terra. No dia do “juízo
final” não importará ter um Cross Fox vermelho, mesmo que tenha
sido dado por Deus. Na hora de “acertar as contas” com o Todo Po-
deroso serão os atos e as palavras distribuídos aqui na Terra que vão
definir quem vai para o “Nosso Lar” e quem vai para o “Umbral”.

74
COM BURCAS NÃO HÁ DEMOCRACIA
OU PORQUE REIS NÃO GOSTAM
DE DEMOCRACIA?

Publicado em maio de 2011 no www.paraibaonline.com.br

A questão política no Oriente Médio é complexa o bastante


para ser explicada brevemente. São as tentativas vãs de interpretá-la
que dificulta e mistifica o entendimento. Interessa o essencial e das
aparências só se pode mesmo esperar o que se mostra à primeira
vista. Verifiquemos se o que está acontecendo pode ser chamado de
“onda de democracia” ou o “esgarçamento de ditaduras renitentes”.
Vejamos onde acontecem lutas em prol da democracia e onde se in-
tenta mudanças pontuais para depor ditadores.
Importa entender o comportamento dos países desenvolvidos em
relação ao Oriente Médio. Existe o propósito de defender a demo-
cracia e seus valores ou interessa apenas as tais “Razões de Estado”
maquiavelianas? A mesma França que ajuda a bombardear a Líbia
foi a que recebeu de braços abertos Muammar al-Gaddafi dois anos
atrás. Os EUA têm contumaz hábito de transformar aliados em ini-
migos, sendo a recíproca verdadeira. Fiquemos com dois exemplos:
Osama Bin Laden e Saddam Hussein! Tenho uma hipótese. Os pro-
testos objetivam deter anacrônicos ditadores e não está claro se rei-
vindicam um sistema democrático. Luta-se para que procedimentos
democráticos (eleições, sim; liberdade de culto e expressão, não) se
unam a regimes que mesclam, quando não sobrepõem, poder reli-
gioso e poder político.

75
Ainda precisamos considerar que: (1) a democracia, como siste-
ma e cultura política, é cara ao ocidente, e assim mesmo onde as re-
voluções burguesas vingaram e ditaduras totalitárias serviram como
contraste; (2) a democracia tem valor universal, do contrário a luta
pelos direitos humanos não se daria, por exemplo, no Irã; (3) cultura
não é variável independente, com papel central no mapeamento de
dois conjuntos, ela não explica (muito menos justifica) tudo, se assim
fosse a democracia seria inviável, inclusive na Europa; (4) o arcabou-
ço jurídico de um Estado pode afiançar ou cercear a lei que tanto
pode servir as democracias quanto as ditaduras; (5) se no ocidente
liberdade é um conceito político-filosófico, no léxico árabe-islâmico
ela é “a condição (econômica) de quem não é escravo”.
Ainda, precisamos de aporte teórico, pois se fala em democracia,
mas não de seus significados. Por isso se diz que ela está chegando
ao Oriente Médio. Sem conceituar, apegamo-nos as aparências, pois
democracia tem várias definições – façamos escolhas. Ontologica-
mente, Alexis de Tocqueville, em “A democracia na América”, diz
que democracia é o somatório, em doses iguais e sem hierarquias,
de liberdade e igualdade. Realisticamente, serve a descrição “mi-
nimalista procedural” do cientista político Scott Mainwaring que,
em “Classificando Regimes Políticos na América Latina”, diz que a
democracia é o regime que promove eleições competitivas, livres e
limpas; pressupõe cidadania adulta e abrangente; protege liberdades
civis e direitos; onde governos eleitos de fato governam e militares
são controlados pelos civis.
O cientista político Ian Shapiro, em “Fundamentos morais da po-
lítica”, diz que democracia é o sistema onde “legitimidade dos Esta-
dos relaciona-se ao grau de preservação ou enfraquecimento das li-
berdades que podem (ou querem) promover”. Se um desses modelos
for replicável às realidades que descreverei, então, sim, a democracia
bate às portas do Oriente Médio. Do contrário, e isso não me anima,
a hipótese se comprova.
A renúncia de Hosni Mubarak (Egito) e a queda de Abidine Ben
Ali (Tunísia) fez a imprensa ocidental crer que a democracia estaria
por lá aportando. A que se notar a mistura de governos autoritá-
rios e revoltas populares gerando conflitos, a presença indelével do

76
componente religioso, além do petróleo que faz potências intervi-
rem. Mas, a natureza dos protestos me faz cético sobre uma onda
democrática. Vejamos.
No Marrocos fala-se em reformas democráticas, mas, na prática
se reivindica menos poderes para o Rei Mohammed VI (12 anos no
poder). A questão é que a democracia só convive com reis se eles
tiverem reduzido ou nenhum poder. Na Argélia se quer a deposição
do Presidente Abdelaziz Bouteflika (12 anos no poder) e reformas
econômicas e sociais. Aqui temos um histórico de golpes e ditadura
e uma dolorosa luta pela independência da França. Os manifestantes
vão se contentar com a queda do presidente ou quererão ir adiante?
Não se sabe, só o tempo dirá. Na Tunísia o presidente Zine Ben Ali
(no poder por 24 anos) foi deposto. Um caso clássico de esgarça-
mento de uma recalcitrante ditadura. Se isto redundará num sistema
político democrático não se sabe, pois se pedia apenas a saída do
ditador.
Na Líbia protestos levaram a guerra civil para a deposição de Ka-
dafi (no poder desde 1969). Mesmo com demandas por reformas de-
mocráticas, a Líbia está destruída institucionalmente. O judiciário é
manietado por Kadafi, não existe parlamento ativo e imprensa livre.
A única instituição forte é a guarda pessoal do ditador – por aí se vê o
quão longe a Líbia está da democracia. No Egito lutava-se pela depo-
sição de Mubarak (30 anos no poder) e por reformas democráticas.
Mubarak deixou o poder, mas ficaram instituições fragilizadas. Hoje
a grande (simples) questão é: quem governa o Egito? Na Jordânia
fala-se em reformas e diminuição dos poderes do Rei Abdullah II
(12 anos no poder). Em Omã se pede aumentos salariais e reformas
democráticas. O presidente Qaboos bin Said (41 anos no poder) diz
aceitar as reivindicações desde que permaneça no poder. Ele aceita a
democracia, desde que possa tutelá-la.
Interessa ver que houve uma onda (na década de 1980) que levou
parte destes ditadores ao poder, agora temos outra onda demandan-
do que eles saiam ou que tenham seus poderes diminuídos. A de-
mocracia não deve tergiversar, pois um ditador não se torna bom
governo com poderes reduzidos, e não deve aceitar conviver com os
entulhos do sistema autoritário que a precedeu. No Iêmen fala-se em

77
reformas e na deposição do presidente Ali Abdullah Saleh (33 anos
no poder). Mas existe demanda por secessionismo que pode levar a
uma guerra civil. No Bahrein luta-se pela deposição do rei Hamad
al-Khalifa (oito anos no poder) e por reformas políticas. O Bahrein
não chega a ser um Estado-nação, mais parece um sultanato, diria
mesmo a propriedade do Rei Hamad e sua família. No Irã temos
protestos contra o regime dos Aiatolás e de Mahmoud Ahmadine-
jad, mas o Estado é infenso a democracia. Uma recente eleição foi
fraudada e se tornou alvo de protestos. Muitos foram presos e sen-
tenciados. A imagem do jovem, algemado e cabisbaixo, indo à forca
depois de condenado por participar de manifestações diz muito. Eis
um sintoma da precária situação: tanto o sequestro seguido de morte
como crimes políticos são punidos com pena capital. A forma como
a mulher é tratada lá mostra uma cultura política autoritária que
mantém o chefe supremo religioso como chefe político.
A democracia não é alternativa crível para os dilemas do mundo
árabe-islâmico. Uma possibilidade é a entronização da Irmandade
Muçulmana no poder e assim teríamos mais alguns Estados teocrá-
ticos. Dá para conciliar um Estado religioso com a democracia? Um
regime de liberdades só é possível se houver uma forte laicização da
sociedade, como de fato ocorreu em muitos países do mundo oci-
dental e como, fato também, ainda não ocorre no Oriente Médio.
Como em muitas revoluções, o povo foi às ruas sem bem saber o que
quer, mas sabendo o que não mais queria. A dúvida é: onde se en-
contra a democracia para estes povos, na lista de coisas que querem
ou na lista de coisas que não querem?
O historiador e islamólogo Bernard Lewis afirma que a importa-
ção de modelos eleitorais ocidentais pode levar ao poder movimen-
tos islâmicos fundamentalistas, bem organizados e com forte inser-
ção nas sociedades árabes. O que pode acontecer com países que,
não tendo familiaridade com a cultura política democrática, utili-
zem sazonalmente procedimentos democráticos como eleições? Um
cenário não desprezível são os chefes religiosos sendo guindados ao
poder político pela força do voto. No limite, podemos ver as urnas
legitimando o terrorismo de Estado.
Luiza Nagib Eluf, procuradora do Ministério Público de São

78
Paulo, apontou a contradição de sociedades que falam em democra-
cia e negam os direitos humanos. Diz ela que “acharão normal que
passada a revolução e atingido o objetivo de derrubar ditadores, as
mulheres voltem para casa e se recolham ao cárcere domiciliar (...)
com burcas não pode haver democracia”.

79
PCC DIZ QUE VAI “TOCAR O TERROR!”

Publicado em outubro de 2013 no www.paraibaonline.com.br

Nos últimos dias o “Primeiro Comando da Capital”, mais co-


nhecido por sua sigla PCC, mandou avisar ao Comando Geral da
Polícia Militar de São Paulo que (SIC) “vai tocar o terror na Copa do
Mundo do ano que vem”. Líderes do PCC se deixaram flagrar, em
conversas telefônicas, para que a justiça soubesse que ordenariam
novos ataques caso fossem transferidos para o Regime Disciplinar
Diferenciado (RDD), na penitenciária de Presidente Bernardes, no
interior de São Paulo. Vejam a porca miséria em que vivemos.
A escuta telefônica (que só pode ser utilizada com a devida auto-
rização judicial) passou a ser um mecanismo de comunicação entre
o crime organizado, que manda e desmanda nos presídios, e as auto-
ridades policiais, que seguem sem saber com lidar com ele. Funciona
assim: quando os líderes do PCC querem se fazer ouvir, deixam-se
pegar pelas escutas que o serviço de inteligência da Polícia Militar
utiliza e vão repassando suas demandas, reivindicações e ameaças.
Ou seja, o próprio Estado termina disponibilizando, para o crime
organizado, o instrumento que deveria servir para combatê-lo. Pro-
motores do Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Or-
ganizado (GAECO/SP) repassaram ao Comando Militar do Sudeste
o resultado de suas investigações, pois o Exército terá importante
papel na segurança durante a Copa. Parece que os promotores não
acreditam na eficiência da PM quando o assunto é PCC.
Marcos Willians Camacho, o Marcola, é o chefe supremo do

80
PCC. Foi ele quem começou com as ameaças ao saber que o Ministé-
rio Público (SP) havia pedido sua transferência para o RDD de Pre-
sidente Bernardes. Em 2012 o PCC ordenou uma série de ataques no
interior e na capital de São Paulo para mostrar força e para se vingar
de uma série de prisões. Na ocasião, 106 agentes da Polícia Militar
foram assassinados. Agora, o PCC ameaça “tocar o terror” porque
teve acesso, através de advogados, aos detalhes da investigação, que
vem sendo realizada a mais de três anos, que revela que a estrutura
organizacional do PCC é muito bem elaborada. O serviço de inteli-
gência da PM de São Paulo viu que o PCC tem uma estrutura hierár-
quica para o caso de a cúpula ser isolada no RDD. Cada líder, como
Marcola, tem uma espécie de vice que assume o lugar do titular caso
ele morra ou vá para o RDD. Dessa forma, a administração da orga-
nização e o negócio do tráfico não sofrem solução de continuidade.
Os líderes fizeram as autoridades saber que não mais aceitarão
que novos membros da organização sejam levados para o RDD e
avisaram que querem ter trânsito livre nos pátios dos presídios, ao
invés de ficarem trancafiados em suas celas, como é praxe no RDD.
Ainda disseram que se, e quando, a ordem de tocar o terror for dada,
os presídios comandados por oficiais da PM terão suas atividades
paralisadas independente de qualquer comunicado. Pior, se Grupo
de Intervenção Rápida ou a Tropa de Choque entrar em presídios,
onde os chefões estão, os atentados nas ruas se iniciam sem que al-
guma ordem expressa seja dada.
O Estado se queda diante de um PCC que faz ameaças em repre-
sália ao fato de a justiça paulista estar analisando dois recursos do
Ministério Público contra decisões de juízes que negaram a transfe-
rência da cúpula do PCC para o RDD. O fato, é que o PCC é ciente
do alto poder de barganha que possui para negociar com o Estado.
Com que cara ficaremos se o PCC tocar o terror em plena Copa? O
que diremos ao mundo se tivermos policiais e turistas sendo mortos
pelas ruas enquanto o evento acontece?
Mas, o que fazer? Negociar com o PCC, esperando a boa vontade
de Marcola? Será que o Estado tem condições de enquadrar o PCC?
Se o tiro sair pela culatra, as manifestações de julho e as bandalheiras
dos “black blocs” vão ser mera diversão frente ao PCC tocando o

81
terror sob a sociedade. Talvez não seja tarde, ainda, para que as ins-
tituições coercitivas estudem a fundo a organização criminosa que
tanto nos ameaça. Aliás, o PCC sabe bem como agir frente ao Estado,
porque o conhece bem. Marcola, por exemplo, é um estudioso da
Teoria Geral do Estado. Quando não está cuidando dos negócios, lê
obras de Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke, enfim, filósofos
que elaboraram as bases do nosso sistema político.
O sociólogo José de Souza Martins, professor da USP, diz que o
“PCC criou uma sociedade paralela, com regras que parecem as nos-
sas, mas que funcionam ao”. O PCC não dispõe do aparato legal que
governos e instituições coercitivas têm, mas leva a incrível vantagem
sobre o Estado de poder agir na clandestinidade e de não precisar
respeitar as normas e procedimentos democráticos, já que está à
margem do Estado de direito. Assim, pode transformar a simples
delinquência numa atividade empreendedora, que atinge altos níveis
em termos de competência empresarial.
O PCC modernizou a atividade criminosa tornando-a gerencial.
O delinquente isolado e amador é coisa do passado. O crime, para
o PCC, é uma atividade racional como outra qualquer, como uma
empresa, um banco, uma rede de lojas ou de supermercados. Da ca-
deia, o PCC administra empresarialmente a atividade fim, que é o
tráfico de drogas, e dá conta de um sem número de atividades, que
vão do suborno a agentes públicos corrompidos, passando pelos as-
sassinatos e chegando a proteção de seus associados. O fato é que de
nossas estranhas surgiu essa anomalia que foi se fortalecendo e que
age, como um Estado paralelo, para que não acreditemos nas insti-
tuições e no próprio sistema democrático que temos. A impressão
que fica é que voltamos ao Estado de natureza onde a lei que vale é
a do mais forte.

82
A LSN E A SEMIDEMOCRACIA BRASILEIRA

Publicado em outubro de 2013 no www.paraibaonline.com.br

O caro leitor, que aqui me acompanha, já deve ter lido que


o sistema democrático brasileiro é instável e que nossas instituições
políticas são frágeis, na medida em que nós mesmos não acreditamos
na efetividade delas. Também, já leu que nosso sistema é uma zona
cinzenta entre democracia e autoritarismo. Na verdade, vivemos em
uma semidemocracia. Um sistema híbrido que mescla procedimen-
tos democráticos com elementos do autoritarismo. Não deveríamos,
mas aceitamos conviver pacificamente com eleições e liberdade de
expressão e com o que chamo de entulhos autoritários, presentes, in-
clusive, em nossa Constituição. Não é difícil perceber isso em nosso
entorno, pois costumamos recorrer a esses entulhos autoritários na
tentativa de resolvermos problemas gerados na própria democracia.
As manifestações que assistimos desde junho têm gerado mais
custos do que benefícios para a sociedade brasileira. É triste consta-
tar que manifestantes, sem liderança aparente e com agendas nebu-
losas, deram lugar aos “black blocs” ensandecidos. Existe uma coisa
em comum entre esses vândalos abilolados e as instituições coerci-
tivas (leia-se polícia, militarizada) quando entram em choque nas
ruas. Eles não acreditam na democracia! Para ambos, só existe a lin-
guagem da força. Se o meio para se manifestar é uso da força sem li-
mites, e fora da lei, a forma para se reprimir é o uso da força acima da
lei. É como se a cada novo protesto se abrisse um portal que levasse
manifestantes e polícia para os tempos da ditadura militar.

83
No dia 07 próximo passado um casal de namorados participava
de mais uma dessas manifestações quando acabou preso. Até aí nada
demais, pois os manifestantes iriam tratar a prisão como um troféu.
Mas, a justiça paulista radicalizou e indiciou a estudante de moda
Luana Bernardo Lopes, 19 anos, e o artista plástico Humberto de oli-
veira Caporalli, 24 anos, com base na Lei de Segurança Nacional. A
LSN prevê pena de três a dez anos para quem “praticar sabotagem
contra instalações militares, meios de comunicação, estaleiros, por-
tos, aeroportos, entre outros”. O crime é inafiançável, por isso que o
casal já foi enviado para o Centro de Detenção Provisória. A LSN
era o principal instrumento coercitivo da ditadura e foi criada para
pôr em prática a Doutrina de Segurança Nacional que definia que o
inimigo interno deveria ser identificado e eliminado. Inimigos eram
todos os que questionavam o regime ditatorial.
Luana e Humberto saíram de Mogi-Guaçu, a 164 km de São Pau-
lo, para participar das manifestações na tarde\noite do dia 07 no
centro da capital paulista. Os protestos foram violentos, como pu-
demos ver pela televisão, com “black blocs” alucinados depredaram
propriedades privadas e bens públicos. A polícia prendeu várias
pessoas, dentre elas Luana e Humberto - um casal de jovens, como
outro qualquer, querendo expressar sua rebeldia incontida. Segundo
a polícia, o casal portava latas de spray, uma bomba de gás lacrimo-
gêneo e uma cartilha de como se portar em protestos. No boletim de
ocorrências consta que eles picharam prédios, incitaram a violência
e ajudaram a virar um carro da polícia.
Mas, porque o delegado, que preside o inquérito, enquadrou o ca-
sal com base na LSN se pichar prédios, incitar a violência e depredar
bens públicos são crimes previstos no ordenamento que temos? Por
que se recorrer a um instrumento da ditadura para processar os que
cometem crimes em tempos de democracia?
Não que eu ache que os atos de Luana e Humberto devam ser
perdoados, caso eles realmente sejam culpados. Se temos uma lei,
feita a partir de procedimentos democráticos, que ela seja aplicada.
Por outro lado, devemos entender que os instrumento autoritários aí
estão para serem usados, não como meras peças decorativas. É como
a pessoa que anda armada e que, ao se envolver numa confusão, se

84
pergunta por que não usar sua arma. A questão é: o que esse en-
tulho autoritário segue fazendo em nosso ordenamento jurídico? O
fato é que nós não acreditamos em nossas instituições democráticas.
Acreditamos, isto sim, na força da exceção autoritária para resolver
nossos problemas. Hoje, nós até aceitamos viver nessa democracia
eleitoral, desde que nossos entulhos autoritários estejam ali, ao al-
cance da mão, para os momentos em que não sabemos bem o que
fazer com tantas leis e com tanta liberdade.

85
CAMPINA, UM MONUMENTO À MISÉRIA.

Publicado em novembro de 2013 no www.paraibaonline.com.br

Há uns dias atrás parei no sinal vermelho, quase ao lado de


onde a Prefeitura Municipal está construindo um monumento em
comemoração aos 150 anos de emancipação política de Campina
Grande. E, tive um susto, pois não vi o Açude Velho, nosso cartão
postal. Eu estava só no carro, mesmo assim disse em voz alta: “onde
está o Açude?!”. O nosso Açude Velho, claro, continua onde sempre
esteve. A diferença, agora, é que temos uma edificação monumental
que está sendo erguido ali a esmo, como se não houvesse outro lu-
gar melhor para fazê-lo. É já é hora de perguntar se não haveria um
lugar mais apropriado para se por este símbolo que mais parece um
mausoléu de uma tradicional família da cidade?
Ter aquele mastodonte bem ali, roubando a visão do Açude Ve-
lho, incomoda. É estranho que a prefeitura tenha tido a ideia de er-
guer um ícone à nossa história política, logo ali, tomando a vista de
nosso símbolo maior. O problema é que nada mais pode concorrer
com aquele edifício que tem a função de marcar uma data. Claro, o
monumento dos 150 anos vai ser marca da gestão Romero Rodri-
gues. Sim, uma marca, mas duvido que se torne um marco.
Como a visão do lado esquerdo incomodava, redirecionei o olhar
para o lado direito, e o que era inoportuno se tornou desgosto. É que
bem ali, onde eu parara, em frente ao tal monumento, havia uma
criança pedindo esmolas. Uma menina, com seis ou sete anos, apro-
veitara o sinal fechado para pedir algumas moedas para, por certo,

86
comprar algo que lhe saciasse a fome estampada em seu rosto. Eu me
revoltei e, também em voz alta, me perguntei que espécie de cidade
é essa que deixa suas crianças abandonadas na rua enquanto ergue,
como diria Chico Buarque, uma estranha catedral?
E vai ser assim mesmo! A faraônica pirâmide dos 150 anos ficará
ali, confrontando nossa triste realidade social. Porca Miséria essa em
que vivemos! Constrói-se uma obra surreal, mas não se retira aquela
menina da triste situação em que se encontra. Enquanto houver uma
criança, que seja, abandonada, nenhuma administração poderá se
gabar de absolutamente nada. Se um governo não consegue prover
bem estar aos seus cidadãos, que se esqueça todo o resto, inclusive
as belas obras, totens, monumentos, belas praças, viadutos e seja lá
mais o que for.
Nós, os campinenses, nos orgulhamos de nosso passado glorio-
so e falamos de um futuro que pensamos ser brilhante. Adoramos
lembrar nossa vocação para o trabalho e para o desenvolvimento.
Gostamos de pensar que somos a cidade que não para de crescer,
que tem quase 500 mil habitantes, que tem muitos prédios bonitos
e belo Shopping Center, em expansão. Tudo balela! Tudo falso, pois
aceitamos que nossas meninas e meninos fiquem jogados ao léu.
Sempre trafego pela Avenida Canal e sempre vejo um senhor, de
idade avançada, pedindo esmolas. Sabe o que mais me chama aten-
ção? É que ele não pede simplesmente. Em troca de algumas moedas,
profere frases provocativas. Dia desses, ele me disse, após lhe dar o
pouco dinheiro que dispunha em minha carteira, que “não adianta
viver de ostentação, pois dessa vida não se leva nada”. Outra vez, as-
solada por uma miséria sem fim, ele me falou que “os maiores idiotas
do mundo são os políticos por se acharem espertos”. Fico imaginan-
do que função o titânico monumento teria para esse senhor ou para
aquela menina que pode estar, nesse exato momento, no mesmo si-
nal a pedir esmolas? Qual o sentido de erguer algo tão horroroso,
quando temos tantas prioridades sociais?
Vi uma reportagem na TV sobre a educação em Campina Gran-
de. Na Escola Adalgiza Amorim, a repórter perguntou a uma aluna
o que ela gostaria que fosse providenciado para sua escola. Imaginei
que ela pediria, ao prefeito, que entregasse, de uma vez por todas,

87
os tablets prometidos ainda na eleição de 2012. Tive uma surpresa,
pois a aluna pediu que colocassem um vaso sanitário no banheiro da
escola. Simples assim! A aluna da escola Adalgiza Amorim não está
pensando em grandes recursos tecnológicos, ela quer um simplório
vaso sanitário!
Na placa afixada, junto ao monumento, se diz que a obra custará
R$ 1.459.177,22. Daria para comprar muitos vasos sanitários e para
propiciar vida digna para a menina que pede esmolas em frente ao
tal monumento. Inclusive, numa propaganda, que fala dos grandes
feitos da prefeitura campinense, se diz que obra custará 2 milhões
e 200 mil reais. Seria preciso, então, verificar como está a questão
orçamentária da obra e qual o seu real custo.
O fato é que o monumento desagrada aos que têm senso estético
e sensibilidade social. O Ministério Público da Paraíba chegou a sus-
pender a obra, pois ela infringe normas de preservação ambiental e
a prefeitura a teria iniciado sem consultar quem quer que seja e sem
ter apreciação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da
Paraíba. O Conselho do Patrimônio Cultural de Campina Grande
condenou a obra por ela prejudicar a visibilidade do espelho d´água
no local e obstruir a paisagem do sítio histórico do Açude Velho.
Nada disso foi argumento suficiente para que a prefeitura deixasse de
tocar a obra, mesmo que não tenha conseguido cumprir o prazo para
sua inauguração, que seria exatamente o dia 10 de outubro próximo
passado, o aniversário da cidade.
Eu não sou contra aos monumentos, históricos ou não, até acho
graça neles. Mas, me preocupa saber que eles sejam construídos por
cima de nossa realidade social. Que se construam os monumentos,
mas só depois que nossas crianças estiverem devidamente protegidas.

88
HOJE, NÃO TE DOU PARABÉNS!

Publicado em março de 2014 no www.paraibaonline.com.br

Hoje é aquele dia em que nos sentimos obrigados a parabeni-


zar todas as mulheres. É que com o passar do tempo, o Dia Interna-
cional da Mulher foi deixando de ser um dia de lutas para ser um dia
de festas. Cada vez mais o papel político desse dia vai sendo substi-
tuído por um dia destinado a homenagear as mulheres, com aquelas
mensagens que, em geral, servem para escamotear a realidade em
que vivemos. Hoje, mulheres vão receber flores, declarações de amor
e mensagens que as enaltecem. Em apenas um único dia a mulher
será tratada como se não tivesse defeitos, como se não fosse um ser
humano normal. Mas, é só por hoje. Amanhã, mulheres de todas as
etnias, credos, classes sociais, ideologias, profissões, voltarão a ser
desrespeitadas em seus direitos e bastante cobradas em seus deveres.
As empresas gostam de promover uma efeméride. Vi um folder
alusivo à data onde não havia nada que lembrasse o papel político do
oito de março, pois não se aludia ao fato dessa data ser consagrado às
mulheres pelas lutas que elas travaram ao longo da história. O folder
enfatizava que a mulher é “raiz da sensibilidade, tronco da multipli-
cidade, folha da serenidade, essência da natureza humana”.
O fato, é que o oito de março foi consagrado à mulher em reco-
nhecimento às lutas por ela empreendidas. Foi em 8 de março de
1857 que operárias de New York ocuparam uma fábrica têxtil, onde
trabalhavam, para reivindicar redução na jornada de trabalho, equi-
paração de salários com os homens e tratamento digno dentro do

89
ambiente de trabalho. As manifestantes foram violentamente repri-
midas. Elas foram trancadas na fábrica, que foi incendiada. Cerca
de 130 tecelãs morreram carbonizadas. Em 1910, numa conferência
na Dinamarca, se convencionou o oito de março como o “Dia Inter-
nacional da Mulher” em homenagem àquelas que, como as têxteis,
lutavam por seus direitos. Em 1975, a ONU oficializou a data.
Assim, e pelo mundo afora ao longo do século XX, o oito de mar-
ço ficou sendo usado para que mulheres se manifestassem e lutassem
pelos seus direitos. A data passou a ser o símbolo da luta das mulhe-
res contra opressão, violência, preconceito e pelos direitos sociais. É
por isso que, hoje, não é um dia para se dar parabéns às mulheres.
Hoje não é o dia ideal para você ofertar flores para sua amada. A me-
lhor coisa a dar a ela hoje é RESPEITO. Diga a ela, com sinceridade,
claro, que a respeita pelo que ela é, pelos valores e opiniões que ela
têm.
Se você é daqueles que costuma violentar física e/ou emocional-
mente a mulher que diz amar, aproveite o dia de hoje para refletir.
Já que o oito de março é uma homenagem às mulheres que se le-
vantaram contra a opressão. Use o dia de hoje para prometer a sua
amada que nunca mais vai oprimi-la. Quando chegar o dia do ani-
versário dela, ou o Dia dos Namorados, ou ainda o aniversário de
casamento de vocês, aí sim, você solta a imaginação. Declara-se para
ela, manda flores, da os parabéns, recita poemas, manda mensagens
apaixonadas.
Hoje, é um dia para as mulheres se manifestarem politicamente
e para reafirmarem seus direitos, mesmo que algumas reavaliem se
valeu a pena lutar tanto para entrar no mercado de trabalho e ter os
mesmo direitos e deveres dos homens. O movimento feminista não
fez a luta completa. Deveria ter lutado para que a mulher fosse para o
mundo do trabalho, com os mesmo direitos dos homens, e para que
estes assumissem as tarefas de casa. Nessa luta as mulheres saíram
perdendo na medida em que passaram a ter a dupla jornada de tra-
balho e os homens seguiram tendo a jornada de sempre, mesmo que
muitos sejam bons donos de casa.
Outra coisa que fugiu do roteiro foi o fato de que a mulher entrou
pela porta dos fundos na política institucional. Vejam que deputadas,

90
vereadoras e prefeitas da Paraíba (e do Brasil) são, com raras exce-
ções, meras extensões dos interesses de seus maridos, país ou irmãos.
Mas, elas tiveram conquistas fabulosas, como a de não mais precisar
adotar o sobrenome do marido após o casamento. É que antigamen-
te os senhores cravavam no gado, nos escravos e em suas esposas a
marca que carregavam, como símbolo de poder. O fato é que não
adianta, hoje, parabenizar a mulher, apontando as qualidades dela, e
passar o resto do ano desrespeitando-a em seus direitos. Eu mesmo,
hoje, não vou dar parabéns para minha esposa e para minhas filhas.
Eu vou, na verdade, reafirmar todo o respeito que tenho por elas.

91
IDEOLOGIA, VOCÊ TEM UMA PARA VOTAR?

Publicado em setembro de 2014 no www.paraibaonline.com.br

Datafolha trouxe pesquisa com intensões de votos para


presidente da República. A aferição veio acompanhada de dados que
nos ajudam a entender a cabeça do eleitor. Na pesquisa, Marina Sil-
va, que ainda não enfrentou de verdade os dissabores de suas con-
tradições, ameaça Dilma Rousseff. A presidenta aparece com 35% e
a ex-senadora com 34%. Aécio Neves vem em 3º lugar com seus 14%
e a “nanicada”, animada como sempre, soma 4%. Datafolha vê aco-
modação nas intenções de votos para Marina, aquele crescimento
vertiginoso parece não mais acontecer, pois esmorecem os efeitos da
catarse pós-morte de Eduardo Campos.
Com o crescimento nas pesquisas, Marina virou alvo dos ad-
versários e suas contradições e equívocos começaram a aparecer, a
exemplo da dubiedade de opiniões em relação à “criminalização da
homofobia”, da questão da camada pré-sal e da autonomia do Banco
Central. Vejamos como Datafolha simula a eleição no 2º turno. Na
última semana de agosto, Marina tinha 50% das intenções de voto
contra 40% de Dilma. Na primeira semana de setembro, a diferença
caiu 7 pontos percentuais. Marina tinha 48% contra 41% de Dilma.
Não tínhamos, ainda não temos, uma eleição definida, mesmo que
os “marineiros” mais empedernidos queiram acreditar no contrário.
Mas, aqui, interessa ver a preocupação do Datafolha com o perfil
ideológico dos eleitores de Dilma e de Marina.
A princípio se viu Dilma mais bem votada entre eleitores de

92
esquerda e centro-esquerda e Marina ganhando entre eleitores de
direita e centro-direita. Aqui, temos dados qualitativos para que não
esqueçamos que ideologias existem, mesmo que tenhamos que lem-
brar que, quando o assunto é ideologia política, o eleitor brasileiro
não sabe muito bem o que é e nem o que quer. Nunca fomos dados
a cultivar ideologias do jeito que nos chegaram, tampouco fomos
capazes de criar uma. O federalismo iluminista e liberal, da inde-
pendência dos EUA, foi, aqui, sendo transformado nesse republica-
nismo escravocrata nada republicano. Os ideais socialistas foram ex-
propriados por setores de nossa sociedade, ganhando formas e cores
das mais diversas.
Em outro artigo, tratei das colorações ideológicas nas eleições
desse ano. Em nosso cardápio temos Levi Fidelix, José Maria Eymael
e o Pastor Everaldo representando ideias de uma direita conservado-
ra e autoritária. Representando concepções de uma esquerda, com
viés mais liberal, mesclado com o ambientalismo, temos Eduardo
Jorge. E temos, também, a esquerda revolucionária, dita bolivaria-
na, também autoritária, representada por Zé Maria, Luciana Genro,
Mauro Iasi e Rui Costa. Certo, até aqui tudo bem. Mas, e Dilma Rou-
sseff, Marina Silva e Aécio Neves? Onde colocá-los? Aécio pode ficar
numa centro-direita, com tendências liberalizantes, em que pese os
pendores fisiológicos do PSDB.
Datafolha detectou que quanto mais a direita estiver o eleitor, me-
lhor o desempenho de Aécio. Detectou, também, que uma crescente
direita colocou Marina em vantajosa situação. Ao mesmo tempo, viu
que quanto mais à esquerda estiver o eleitor, mais cresce potencial
de votos de Dilma. Nos eleitores, tidos como de esquerda, Marina
fica 9 pontos percentuais atrás de Dilma. Na simulação para o 2º tur-
no, no mesmo universo de eleitores de esquerda, Dilma aparece com
50% e Marina com 43%. Já quando se inverte a situação, para se lidar
com eleitores de direita, Marina tem boa margem sobre Dilma. Entre
eleitores de centro-direita, Marina aparece com 49% contra 37% de
Dilma. Já entre eleitores de direita, a diferença vai a 14 pontos pró
Marina. Podemos dizer que Dilma é de esquerda e Marina é de di-
reita? Não, claro que não. Queremos, apenas, entender a preferência
dos eleitores, considerando ideologia política.

93
Para cruzar dados entre preferência eleitoral e questões ideoló-
gicas, Datafolha aplicou dois questionários. Em um perguntou as
questões de sempre como em quem se vai votar, quem se rejeita e
como se avalia o governo. Noutro, se fez perguntas que levam o elei-
tor a se colocar num campo de ideias políticas. São questões sobre
religião, drogas, criminalidade, desigualdade social, pena de morte,
homossexualidade, pobreza, aborto, etc. A lógica é um tanto quando
formal, mas funciona. A maioria dos que são, por exemplo, a favor
da descriminalização das drogas e contra a pena de morte disserem
que votam em Dilma. Assim se conclui que ela tem mais votos no
eleitorado de esquerda. A maioria dos eleitores de direita vota em
Marina, porque são contra a descriminalização das drogas e a favor
da pena de morte.
Até aqui vimos a maioria dos eleitores, tidos como de direita,
preferindo Marina e a maioria, dos de esquerda, escolhendo Dilma.
Claro, isso não torna Marina uma empedernida direitista e nem faz
de Dilma uma fiel seguidora dos ideais de esquerda. É que num país
como o nosso ser de esquerda ou de direita é, em muitas situações,
uma postura de ocasião. Norberto Bobbio, um respeitado pensador
italiano, já dizia que direita e esquerda se tornaram categorias uni-
versais da política e que fazem parte das noções que informam o
funcionamento de nossas sociedades. No mundo bicolor dos tempos
da Guerra Fria tudo era mais fácil. O cidadão seria de direita se fosse
a favor dos EUA, do capitalismo e da liberdade. E seria de esquerda
se fosse a favor da União Soviética, do socialismo e da igualdade.
Com o fim da Guerra Fria, e dessa bipolarização maniqueísta, as coi-
sas ficaram bem mais complexas. Igualdade e liberdade puderam ser
aceitas como coisas que possuem valor universal, para acima e além
de alguns interesses políticos. Bobbio se considerava emotivamente
de esquerda e se identificava com a defesa dos direitos do cidadão.
Ele dizia que uma esquerda digna desse nome tem, por obrigação,
que resistir a tentativa liberal de desmantelar os aparatos do Estado
social.
A questão é se essa discussão reflete bem nossa realidade e cul-
tura políticas. Não, não refletem. Mas, não deixa de ser interessante
perceber que em vários setores da sociedade essas questões estejam

94
sendo tratadas. Vejam que quando Marina disse, e depois desdisse,
ser contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a liberaliza-
ção da maconha, suscitou um interessante debate pelas redes sociais
e na imprensa, pois não basta mais se fazer um vago discurso, a favor
da liberdade ou da igualdade, para definir uma ideologia. Hoje, é
preciso se posicionar sobre um sem número de questões das mais
polêmicas.
Em geral, é de esquerda quem é a favor da liberalização da maco-
nha e contra o porte de armas. E é de direita quem é contra a libera-
lização e a favor do porte de armas. Digo em geral, pois existem sub-
divisões. É possível ser de esquerda e ser a favor de privatizações ou
ser de direita e ser a favor do intervencionismo estatal. A esquerda
defende que o governo deve ser o maior investidor, para promover
desenvolvimento, e que quanto mais ele beneficiar a população mais
bem estar se gera. A esquerda ainda acredita que o intervencionismo
estatal pode ser bom. Para a direita é a livre iniciativa que leva ao de-
senvolvimento, através de seus investimentos. A direita acredita que
é melhor pagar menos impostos e contratar, junto a empresas par-
ticulares, os serviços de educação e saúde, por exemplo. A esquerda
segue vendo o Estado como responsável único em prover bem-estar
ao cidadão.
A direita acredita que os adolescentes que cometem crimes de-
vem ser punidos como se fossem adultos. Já a esquerda defende que
adolescentes infratores devem passar por um processo de reedu-
cação dirigido pelo próprio Estado. Em relação ao sindicalismo, a
esquerda segue defendendo sua importância como instrumento de
defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores. Já para a direita,
o sindicalismo é tão somente uma forma de projetar pessoas para a
política partidária. A esquerda brasileira é bastante apegada as suas
tradições, pois segue defendendo causas sobre pobreza, criminalida-
de, desigualdade sociai, etc.
A direita, claro, faz tábula rasa disso e defende que pobreza e ri-
queza são coisas naturais, inerentes aos homens e suas sociedades. Já
a criminalidade recebe, de uma direita cada vez mais conservadora,
um tratamento moral, até religioso. De acordo o Datafolha, o eleito-
rado de direita e de centro-direita aumentou significativamente nos

95
últimos quatro anos. Já o de esquerda vem encolhendo timidamente,
mas sem deixar de cair. O que será que está acontecendo? Será que
na medida em que vamos envelhecendo, vamos nos “endireitando”?
Ou será que nossos valores são bem mais resistentes as mudanças
do nosso tempo? Em todo caso não custa lembrar que, sim, somos
dotados de ideias, temos ideologias.

96
VIVA A DEMÊNCIA COLETIVA

Publicado em março de 2015 no www.gilberguessantos.blogspot.


com.br

Debati com um grupo de alunos sobre a conturbada conjun-


tura política que enfrentamos. Falamos das manifestações que pe-
dem impeachment da presidenta Dilma e intervenções autoritárias.
Um dos estudantes, um tanto quanto impaciente com minhas expli-
cações sobre porque temer a volta de uma ditadura, disse que deve-
ríamos tentar um governo forte já que a democracia não deu certo
nesses 30 anos que nos separam do fim da ditadura militar. Disse ele:
“A democracia teve a sua chance, agora é a vez de tentarmos uma
ditadura”.
Argumentei, tentado disfarçar minha irritação para com esse tipo
de ideia tão frágil, que não acredito em saídas de força para nossos
dilemas institucionais. Afirmei que a primeira melhor alternativa é o
fortalecimento das instituições democráticas. Inclusive, mostrei que
temos um ordenamento jurídico capaz de combater a corrupção. Eu
tentava demover meu aluno da ideia de que só uma intervenção mi-
litar poria fim à corrupção.
Insisti que o sistema democrático estadunidense se afirmou por
ter oferecido a tese de que para males republicanos, remédios re-
publicanos. Os Federalistas propuseram que a democracia deveria
ter seus próprios mecanismos para solucionar seus problemas, sem
que fosse preciso buscar “ajuda” em sistemas autoritários. Já nossa
republicanização teve leve verniz federalista e sólida base positivista,

97
conservadora, devidamente militarizada, que nos legou uma socie-
dade autoritária infensa a democracia. Uma sociedade despolitizada
que pensa que os venenos de uma ditadura são solução para os males
de um sistema representativo frágil.
Já enfrentamos ditaduras, por isso não podemos renunciar aos
procedimentos democráticos, pois eles permitem, por exemplo, a
liberdade de manifestação tão cara aos que querem o fim da demo-
cracia. Aliás, eis a mãe de todos os nossos paradoxos: os que são a
favor de intervenção militar, e outros itens ditatoriais, usam proce-
dimentos próprios do regime, que querem o fim, para se manifestar.
Escrevo este artigo deprimido, envergonhado, irritado, abismado
com o que vejo nos canais de televisão, redes sociais e portais de no-
tícias. No domingo, 15 de março de 2015, parte da sociedade brasilei-
ra foi às ruas exercitar sua mentalidade pretoriana e seu oportunis-
mo travestido de nacionalismo. Minha irritação é por não conseguir
mais argumentar contra a tese de que só um regime de força cura os
males da democracia. Logo eu que, historiador, me especializei em
estudar as ditaduras que enfrentamos durante o século XX. Chorei,
literalmente, ao ver os que não viveram os tempos da ditadura, sem
constrangimento algum, pedir ao Exército para intervir na ordem
social e política do país.
Fico abismado com essa gente estulta pedindo coisas como “in-
tervenção militar já!” ou afirmando que “nossa última chance está
nas mãos das Forças Armadas”. Na manifestação do Rio de Janeiro,
o estudante de engenharia Aramis Farias dizia: “Não defendo a vol-
ta da ditadura, apenas uma intervenção militar para restabelecer a
ordem e combater a corrupção. Defendo intervenção militar que é
diferente de ditadura militar. Eu quero que militares entrem na po-
lítica e corrijam o que está errado, pois a política está envolta em
corrupção”.
Aramis parece saber o que aconteceu nos últimos 50 anos em
nosso país. Ao que tudo indica, ele quer intervenção militar, e não
ditadura, por saber que brasileiros foram presos, torturados e mortos
na ditadura dos generais. No fundo, Aramis receia a volta de um Es-
tado torturador. Mas, por ingenuidade, oportunismo ou por ter sido
acometido pela demência coletiva, que pensa que bater panelas é

98
solução, aceita a tese do caminho mais curto para acabar com a cor-
rupção, que a ditadura militar não resolveu, até porque dela se valia.
Conheço alguns Aramis que defendem intervenção militar, para
acabar com a corrupção, por um colossal desconhecimento de nosso
passado autoritário. Apesar de que se a pessoa reúne condições para
defender suas ideias, numa rede social, também pode ler um livro
que lhe faça entender que regimes de força não são solução para os
problemas que vivemos na democracia. De fato, está em nossa cul-
tura política republicana a contumaz ideia de que militares são os
únicos capazes de resolver os problemas que nós, civis, criamos.
No domingo, 15/03, senti a tal vergonha alheia quando vi uma
paulistana com um cartaz dizendo: “Não consigo mais empregadas
que durmam no emprego. Maldito Lula”. Ao seu lado, tinha um se-
nhor com outro cartaz afirmando: “Aeroporto agora parece rodoviá-
ria”. Porca miséria essa que vivemos! No Brasil de hoje, têm pessoas
se comportando como se vivessem na segunda metade do século
XIX, lutando contra a abolição da escravidão. Essa gente quer o im-
peachment de Dilma, quer golpe, intervenção e quer trucidar Lula
porque as classes sociais que ficam no final do alfabeto passaram a
ter acesso educação, moradia, consumo, e isso é inadmissível para
quem sempre se alimentou de nossas amplas desigualdades sociais.
As sinhás e senhorios que batem em suas caríssimas panelas de
teflon, em seus confortáveis espaços gourmet, não se conformam em
ter perdido mais uma eleição. É que essa gente não suporta a ideia de
saber que parte dos impostos que pagam vai para os programas so-
ciais do governo federal, a exemplo do “Bolsa Família”. Essa canalha
não está preocupada com a corrupção. Tal qual os militares e civis
que deram o golpe de 1964, usam um discurso nacionalista e piegas
apenas para maximizar seus interesses mais comezinhos.
E ainda temos que enfrentar o dilema de um país dividido em
dois grandes grupos: um que defende a democracia e outro que quer
que os militares intervenham na ordem social e política. Na verdade,
temos uma visão instrumental dos sistemas políticos. Historicamen-
te aceitamos este ou aquele tipo de governo a depender dos interes-
ses sociais e/ou políticos que possamos vir a ter. Aceitamos viver na
democracia desde que ela não nos contrarie, que faça nossos gostos,

99
do contrário aceitamos alegremente enveredar pelos caminhos obs-
curos do autoritarismo. Assusta-me a facilidade com que vários seto-
res de nossa sociedade pedem golpe e ditadura. Fico abismado como
se pode pedir a volta dos tempos obscuros quando “amigos eram
presos ou sumiam para nunca mais”, como nos dizia Gilberto Gil.
Vejo uma direita reacionária, conservadora, estulta, pedindo in-
tervenções militares com o mesmo ódio de 1964 por não aceitar que
a verdadeira luta é pelo fortalecimento da democracia. Mas, como
se luta pela democracia num país em que parte da população segue
cevando seus entulhos autoritários? Eu sou a favor da democracia.
O que farei? Participarei de manifestações vestido de verde amarelo?
Baterei panelas em minha varanda cada vez que a presidenta apare-
cer na televisão? Não, nada disso, eu tenho o senso do ridículo.

100
52 ANOS APÓS O GOLPE, PAÍS NÃO ACEITA
VALOR UNIVERSAL DA DEMOCRACIA

Publicado em 01 de abril de 2016 no www.uol.com.br

Passados 52 anos do golpe civil-militar de 1964 temos que re-


avaliar o fato histórico, pois à medida que nos distanciamos tem-
poralmente do acontecimento nossa visão sobre ele muda. Assim,
temos que redimensionar o 31 de março para nossos dias. É preciso
refletir sobre a cultura política pretoriana herdada da ditadura mili-
tar, já que em nossa atual conjuntura só falamos de golpes de toda
sorte e das ameaças que nossa frágil democracia segue sofrendo.
Por que as memórias do golpe e da ditadura militar ainda nos
são tão vivas? Seria pelas feridas ainda não cicatrizadas e por termos
uma sociedade e um Estado recheados de “entulhos autoritários”,
que um débil processo de liberalização não foi competente para ex-
trair do nosso entorno político?
A principal causa para o golpe de 1964 foi a tensão (um falso dile-
ma) existente entre democracia e mudanças sociais. O amplo espec-
tro político-partidário nacional antagonizava esses dois fatores, des-
necessariamente. Os atores políticos à direita acreditavam que pela
democracia poderia se chegar às mudanças sociais, e por isso deram
o golpe. Os atores à esquerda defendiam que só teríamos mudanças
sociais acabando com a democracia. O confronto entre as forças po-
líticas contrárias e favoráveis às reformas de base destruiu as institui-
ções democráticas. O resultado a que se chegou bem conhecemos:
democracia inexistente e nenhuma reforma social!

101
O processo de liberalização política (notem que não falo em rede-
mocratização ou transição), efetivado com a eleição de Tancredo Ne-
ves, é torto, pois não afastou do cenário nacional os atores políticos
da ditadura. O que nós tivemos foi um pacto entre as forças políticas,
iniciado ainda em 1974 e capitaneado por Ernesto Geisel e Golbery
do Couto e Silva. O resultado foi um processo em que lentamente
se foi inserindo alguns elementos do ritual democrático nas insti-
tuições sem, no entanto, reformá-las e, principalmente, mantendo
intocada a espinha dorsal do regime ditatorial: o poder militar.
Se democracia política são os mecanismos e práticas associados
às formas de decidir em favor dos interesses sociais, além das nor-
mas que regem o bom funcionamento das instituições e as atitudes
que marcam a relação entre elas e a sociedade civil, veremos que
não temos uma democracia consolidada. Não tivemos um processo
em que sociedade civil e Estado pudessem firmar um compromisso
para banir as prerrogativas que os militares atribuíram para si du-
rante 21 anos. Como na ditadura, e seguindo a lógica da Doutrina
de Segurança Nacional que dizia que o inimigo a se combater estava
dentro do território nacional e não fora dele, as Forças Armadas con-
tinuaram mais preocupadas com a segurança interna do que com a
externa.
Vivemos um momento difícil por não percebermos o quanto ain-
da temos que avançar no sentido de efetivarmos uma democracia em
que aqueles que detêm as armas irão obedecer aos que não as tem. É
preciso, também, que os atores políticos não cedam às tentações de
mudar as regras do jogo político enquanto ele estiver sendo jogado,
além de concordarem em se submeterem às incertezas democráticas
dos resultados. Falta-nos, ainda, aceitar que democracia tem um va-
lor universal.

102
CIDADÃOS TEM QUE SE RESPONSABILIZAR
PELAS ESCOLHAS FEITAS NAS URNAS

Publicado em 10 de maio de 2016 no www.uol.com.br

Os nascidos em 2000 poderão votar nas eleições deste ano


numa democracia parida da liberalização iniciada pelo regime mi-
litar. Quando os atuais jovens de 16 anos nasceram, havia apenas 15
anos que a ditadura acabara. São latentes em nosso entorno seus en-
tulhos autoritários.
A Constituição de 1988 traz os germes da ditadura, vide os artigos
142 e 144, inexistentes em várias democracias, que dão prerrogativas
aos militares para agirem sobre a ordem política e social do país. E
isso para não falar que o Congresso Nacional e a sociedade brasileira
são povoados por uma fauna de saudosistas do regime militar. O
discurso do deputado Jair Bolsonaro, na sessão da Câmara dos De-
putados que abriu o processo de impeachment contra a presidente
Dilma, reverenciando a memória de um torturador, é um plangente
exemplo disso. Nossa democracia repousa sob escombros de um re-
gime que tinha a tortura como política de Estado.
Como viver em uma democracia tão frágil? Como respeitar uma
eleição se os eleitos não pretendem cumprir as funções delegadas
pelos eleitores? Como o jovem eleitor quererá participar sabendo
que suas decisões poderão ser desfeitas por golpes travestidos de
impeachment? Por que valorizar um sistema que pode desmanchar
decisões tomadas nas urnas? 54.501.118 eleitores decidiram que Dil-
ma Rousseff nos governaria entre 2015 e 2018. Como eles se sentem

103
ao ver um grupo de parlamentares corruptos, conservadores, opor-
tunistas, autoritários e pateticamente irresponsáveis processando a
destituição da presidente eleita democraticamente e que não come-
teu crime algum?
Eleições permanentes e alternância no poder são essenciais. Mas,
o cidadão tem que se responsabilizar pelas escolhas feitas nas ur-
nas. Não adianta fazer discursos enfurecidos diante dos escândalos
de corrupção e depois dar ao corrupto o conforto de ter um man-
dato e foro privilegiado. Eleições em profusão pouco adiantam se
não estamos dispostos a cumprir os mecanismos institucionais que
permitem que os que descumprem suas funções (e as leis) sejam res-
ponsabilizados com pressupostos penais que causem punibilidade.
Por que supomos que esse revezamento de nomes e siglas nos cargos
governamentais é solução única para nossos males? Por que nos con-
tentamos com tão pouco?
Nosso processo eleitoral evoluiu com dificuldades. Em 1960, na
última eleição presidencial antes do golpe de 1964, 6 milhões de
eleitores votaram. Na eleição seguinte, 29 anos depois, foram 120
milhões de eleitores. Crescíamos quantitativamente enquanto desa-
prendíamos a votar. Já em 2004, os eleitores entre 16 e 25 anos foram
cerca de 25 milhões. Quantos destes amadureceram para intervirem
no processo eleitoral e para atentarem para a responsabilidade de se
eleger um reconhecido corrupto?
O governo e o sistema representativo devem ter o consentimen-
to do cidadão para serem legítimos. Essa anuência vem do contrato
social, materializado no sufrágio universal, onde os cidadãos dão
autoridade para que leis sejam criadas. Em “Capitalismo, Socialis-
mo e Democracia” o economista e cientista político austríaco, Jo-
seph Schumpeter, se refere à democracia como um método político
por onde se escolhe os que decidem e que dá ao cidadão o poder de
substituir um governo por outro para que ele próprio se proteja dos
riscos dos escolhidos se tornarem uma força inamovível. Dizia ele:
“A democracia significa apenas que o povo tem a oportunidade de
aceitar ou recusar os homens que a governam”.
Devemos nos contentar com isso? Não, é insuficiente! Mas, se
não consolidarmos nem isso, como avançaremos para um sistema

104
que contemple aspectos mais amplos do funcionamento de um Esta-
do que seja a um só tempo legal e legítimo, e, portanto, de direito e
democrático? Hoje, ditaduras parecem coisa do passado e eleições se
sucedem a cada dois anos. Falta-nos ter a política como o que orien-
ta as relações sociais e uma mentalidade democrática que substitua
essa pretoriana visão de mundo que temos. Mas, isso não se faz ape-
nas com discursos. Eleições podem ser uma via para isso. Se é ruim
conviver com elas, o que dirá sem?
Pela educação, nosso passado autoritário precisa ser revisto. Na
ditadura, Estudos Sociais, Educação Moral e Cívica, Organização
Social e Política do Brasil e Estudos dos Problemas Brasileiros cons-
tavam nos currículos escolares para afirmarem os interesses e a ide-
ologia do regime militar. Mas, paradoxalmente, essas matérias eram
subvertidas por professores que driblavam a censura e o medo para
ensinar “assuntos diferentes”. Foi assim que muitos, como eu, pude-
ram ter acesso à filosofia, política, história, sociologia.
Os que se lembrarem disso são menos jovens do que esses que
vão votar pela primeira vez e podem contribuir num processo de
educação política. Se não estamos em uma ditadura e temos liberda-
de de expressão, por que não usar espaços devidos para educar para
a cidadania que ensina para que servem as instituições políticas? O
que é a república, a federação, a constituição, os poderes e suas fun-
ções, as eleições e os partidos, os direitos e os deveres, o papel da im-
prensa. É preciso munir o jovem para que ele entenda a democracia
e possa valorizá-la como algo útil para sua existência.
No século 20 vivemos 36 anos sob ditaduras, sem contar os anos
nos quais vestígios de democracia coexistiam com uma couraça de
autoritarismo. Desde a Proclamação da República, ainda não tive-
mos mais de 35 anos contínuos de democracia sem que ditaduras
e autoritarismos de toda sorte solapem as instituições. Do fim do
regime militar, em 1985, até aqui, ainda somamos menos anos do que
os vividos sob as duas ditaduras do século XX.
Nossa jovial e festiva democracia eleitoral ainda tem muito que
evoluir. É preciso ter instituições responsáveis com cidadãos respei-
tados em seus direitos e igualmente responsáveis. Temos que nos
submeter às incertezas do jogo eleitoral democrático. Do contrário,

105
seguiremos nos perguntando se realmente devemos defender a de-
mocracia ou, dito de outra forma, se não seria melhor vivermos em
uma ditadura.

106
CULTURA POLÍTICA AUTORITÁRIA
CONTESTA HEGEMONIA DA DEMOCRACIA

Publicado em 22 de agosto de 2016 no www.uol.com.br

Em 2009, as Forças Armadas de Honduras efetivaram um


clássico golpe de Estado, sacando do poder o presidente, democra-
ticamente eleito, Manuel Zelaya, sob acusação de que ele poria, nas
eleições daquele ano, um item plebiscitário para que os hondurenhos
opinassem sobre a inclusão da reeleição na Constituição Federal. O
golpe foi ilegítimo e legal. É que a Constituição de Honduras, tal qual
a brasileira, possui dispositivo que dá as Forças Armadas prerrogati-
vas para garantir a lei e a ordem. O que não se questionou é se a or-
dem político-social hondurenha estava mesmo ameaçada pelo fato
de Zelaya querer se reeleger.
Em 2012, o presidente paraguaio Fernando Lugo, eleito democra-
ticamente, sofreu um impeachment em apenas 48 horas. A maioria
conservadora do Congresso Nacional golpeou Lugo, se valendo de
uma crise política, gerada pelo confronto entre policiais e campo-
neses num ato de reintegração de posse de uma fazenda. O processo
cerceou o amplo direito de defesa de Lugo. A Comissão Interame-
ricana de Direitos Humanos condenou a rapidez do julgamento e
a falta de concretude das acusações. O golpe foi dado com a contri-
buição da Suprema Corte Eleitoral, do Partido Colorado, das Forças
Armadas e do vice-presidente Federico Franco que assumiu o cargo.
Nunca devemos considerar como meras, as coincidências com
um enorme país fronteiriço ao Paraguai. Nunca foram, nem devem

107
ser, não na América Latina que segue precisando de “ridículos tira-
nos” como bem disse aquele “antigo compositor baiano”.
Vimos agora um golpe de Estado na Turquia. Mesmo fracassa-
do, ele reforça a noção de que uma cultura política autoritária viceja
mundo afora e contesta a hegemonia da democracia. Essa aventura
golpista custou a vida de centenas de pessoas e mais de três mil fo-
ram presas. Li que os turcos ficaram traumatizados com tanques de
guerra atropelando as vias públicas. Mas, como nós, eles estão acos-
tumados com golpes, pois tiveram cinco ao longo de 56 anos. O
presidente Recep Erdogan proclamou que a democracia havia saído
vitoriosa. Vitória de Pirro essa, pois um sistema democrático só se
consolida quando seus procedimentos e instituições funcionam li-
vres de ameaças golpistas. Cada tentativa de golpe intensifica a ideia
de que sistemas de força são mais eficientes para lidar com crises
econômicas e políticas.
O prêmio Nobel, Adolfo Pérez Esquivel, aqui esteve e se assustou
com tantos brasileiros defendendo golpes e ditaduras. Ele lembrou
Honduras e Paraguai, que afastaram presidentes através do orde-
namento jurídico, tendo o Parlamento como protagonista da ação
golpista. Temos uma nova modalidade de golpe de Estado, que se
respalda nos entulhos autoritários que as constituições trazem. Con-
tinua-se depondo presidentes eleitos, mas agora é a elite político-
-partidária quem dá cabo das ações golpistas, contando ou não com
o apoio das Forças Armadas. Senão, vejamos o atual caso brasileiro.
No passado, o totalitarismo desafiou a democracia que espalhou
suas ideias numa primeira onda a partir de 1945. Os rigores da Guer-
ra Fria fizeram surgir uma segunda onda de autoritarismo militari-
zado na década de 1960. No início dos anos 1980, ele caiu em desuso
e uma terceira onda de redemocratização se fez sentir em que pese
países como Brasil, Honduras e Paraguai terem se tornado demo-
cráticos sem reverem seus passados autoritários. E agora, o que te-
mos? Seria uma quarta onda de reversos golpistas, comandados por
Parlamentos e Judiciários? Temos um padrão ou esses exemplos são
pontos fora da curva?
Sistemas políticos que mesclam elementos autoritários com pro-
cedimentos democráticos são cada vez mais comuns. Na “Primavera

108
Árabe”, as revoltas populares contra governos queriam deter ana-
crônicos ditadores, mas não se falava em democracia. Defendia-se
eleições livres, mas se fechava os olhos para liberdade de culto e ex-
pressão. Lutava-se pelo fim da opressão estatal, mas as mulheres não
podiam participar das manifestações.
A democracia, como sistema e cultura política, importa bastante,
mas o arcabouço jurídico de um Estado pode afiançar ou cercear a
lei que serve tanto às democracias como às ditaduras. Essas são as
questões que podem iluminar o debate sobre em que sistema político
é melhor viver. Cientista político, Scott Mainwaring, diz que demo-
cracia é regime que promove eleições competitivas, livres e limpas,
que pressupõe cidadania abrangente, que protege liberdades e direi-
tos, onde governos governam e militares são controlados pelos civis.
Proponho um exercício simples. Verifiquemos se esses itens são de
fato praticados em nossa sociedade. Se a resposta for sim, ótimo!,
vivemos em uma democracia minimamente consolidada. Mas, se a
resposta for não, sugiro que comecemos desde já a ler tudo que pu-
dermos sobre ditaduras.

109
A “BANALIDADE DO MAL” ENTRE NÓS

Publicado em fevereiro de 2017 no www.gilberguessantos.blogspot.


com.br

Nesses tempos bicudos, vivo sobressaltado! Parece ser nor-


mal desejar a morte de uma mulher por ela ter sido casada com um
ex-presidente, que fez reformas, para que os excluídos de sempre
acessassem coisas educação, saúde e moradia. São tempos nebulosos,
pois o que a filósofa Hannah Arendt classificou como “banalidade do
mal” ressurgiu dos escombros de um mundo formatado por guerras.
Falo do nazismo.
Sempre que preciso dialogar com pessoas com as quais divirjo
política e ideologicamente, e/ou que não concordo com seus valores,
lembro dos tais valores universais da democracia. Não sou receptivo
a ideias “novas” que, na verdade, pertencem ao receituário ideoló-
gico do tempo em que ditaduras eram hegemônicas. Não, não pos-
so aceitar como normais ideias autoritárias, racistas, homofóbicas,
misóginas, além de preconceitos de uma classe social sobre outra.
Não defenderei o “direito” de um aprendiz de médico de campo de
concentração nazista “defender” que uma mulher seja levada a óbito.
Não, isso não é liberdade de expressão!
Nesta semana, o deputado federal Jair Bolsonaro proferirá pa-
lestra em Campina Grande. Por coerência não presenciarei a ver-
borragia nazificante do parlamentar do Partido Social Cristão que
não crê na democracia, trabalha sistematicamente para acabar com
ela, e que instrumentaliza procedimentos para maximizar interesses

110
comezinhos. Bolsonaro se compraz em publicar as opiniões mais
torpes sobre questões como a tortura.
Relaciono abaixo ideias pronunciadas pelo mais ardoroso defen-
sor do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos chefes do
aparato de repressão política e tortura do regime militar, conhecido
por ter, dentre outras coisas, enfiado um rato na vagina da ex-pre-
sidente Dilma Rousseff, quando a torturava nas dependências do
DOI-CODI de São Paulo no início dos anos 1970. As declarações
abaixo foram compiladas a partir da conta “Bolsonaro Cristão”, cria-
da na rede social TUMBLR por Fernando Paladini e Guilherme Eu-
frásio, ambos estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina.
Se você, como eu, não aceita estes disparates não vá ao show de
horrores que certame Bolsonaro propiciará. Se você sofre da síndro-
me de São Tomé, que só após ver e ouvir é que passa a crer, a solução
é assistir a tal palestra, mas não deixe de levar consigo carradas de
senso crítico. Se você não vê a hora de votar em Bolsonaro para pre-
sidente, por que concorda com as estultices dele, então vista sua ca-
misa amarela da CBF, ou aquela preto-fascista, tanto faz, e vá para a
palestra desse Josef Mengele redivivo. Mas, se você quer ir à palestra
tentar fazer com que incautos de toda sorte vejam mais e melhor a
realidade das coisas, ou mesmo para mostrar quanto os “bolsonazis”,
que por aí pululam, estam equivocados, sugiro refletir sobre a frase:
“Nunca discutas com um idiota. Ele arrasta-te até ao nível dele, e de-
pois te vence em experiência.” (Autor desconhecido).
Na sessão da Câmara dos Deputados, em 17/04/2016, que apro-
vou a abertura do impeachment contra Dilma Rousseff, Bolsonaro
disse: “Nesse dia de glória para o povo tem um homem que entrará
para a história (...). Perderam em 1964 e agora em 2016. Pela família e
inocência das crianças que o PT nunca respeitou, contra o comunismo,
o Foro de São Paulo e em memória do coronel Brilhante Ustra, o meu
voto é sim”.
Numa participação, no programa Pânico da rádio Jovem Pan (em
08/07/2016) Bolsonaro afirmou: “O erro da ditadura foi torturar e
não matar”. Já na Revista Veja de 02/12/1998, recriminou um de seus
mentores: “Pinochet devia ter matado mais gente”. Como todo dita-
dor, Bolsonaro é um censor e numa entrevista à repórter Manuela

111
Borges da Rede TV provocou: “Você é uma idiota. Você é uma anal-
fabeta. Está censurada!”. Claro, ele crê na tese do “bandido bom é
bandido morto”, pois afirmou, sobre o massacre do Carandiru, que
“a PM devia ter matado 1.000 e não 111 presos”.
Não se sabe bem porque, mas o fato é que homossexualismo, ra-
cismo e mulheres são temas recorrentes na transcursão bolsonaria-
na. Na Revista Playboy, em julho de 2011, disse que: “Seria incapaz
de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num
acidente do que apareça com um bigodudo por aí”. Em outra oportu-
nidade disse “Eu não corro esse risco, meus filhos foram muito bem
educados”, sobre um dos seus se relacionar com uma mulher negra
ou com homossexuais. E quando FHC segurou a bandeira com as
cores do arco-íris, Bolsonaro disparou: “Não vou combater nem dis-
criminar, mas, se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”.
Ele parece concordar com o estupro, pois disse para a deputada fede-
ral Maria do Rosário: “Não te estupro porque você não merece”.
Em 28/03/2011, numa entrevista ao programa CQC da TV Ban-
deirantes, Bolsonaro estava inspirado em sua logomania. Primeiro
afirmou que: “se eu pegasse meu filho fumando maconha, o tortura-
va”. Sobre cotas raciais, disse: “Eu não entraria em um avião pilotado
por um cotista nem aceitaria ser operado por um médico cotista.”. So-
bre a presidente Dilma afirmou: “O kit gay não foi sepultado ainda.
Dilma Rousseff pare de mentir. Se o teu negócio é amor com homos-
sexual, assuma”. Teria ainda muito mais coisas para colocar, mas ...
paciência tem limites!

112
UMA ESQUERDA QUE A DIREITA GOSTA

Publicado em 15 de novembro de 2020 no www.brasil247.com.br

Como assim?! Existe uma esquerda que a direita gosta?! Logo


essa direita brucutu que odeia com suas extremadas forças a esquer-
da verde-amarela, digo vermelha? Se ela não gosta dos liberais, a la
FHC, o que dirá dos “esquerdopatas”? Mas, que sinistra seria essa
que a destra gosta? Dizia Darcy Ribeiro, exagerando é bem verdade,
que o “PT é a esquerda que a direita gosta”. Luiz Carlos Prestes dizia
que a esquerda “não luta pelo fim da desigualdade por crer num capi-
talismo bonzinho, sem contradições”.
Fosse eu destro não desgostaria dessa esquerda simpática a bur-
guesia. Hoje, parte da esquerda tupiniquim desistiu de lutar pelo
socialismo, se é que tentou, por achar ser possível humanizar o capi-
talismo. Poderia seguir sendo gostada pela direita? Sim, se esta não
fosse tão bronca a ponto de não aceitar nem ao menos políticas pú-
blicas, que geram crescimento e desenvolvimento, sempre nos mar-
cos do capitalismo, nunca do socialismo. Alguns fazem o jogo da
direita rústica. Por interesse, estratégia, tática, ou seja lá pelo que for,
são os que nas eleições maximizam lucros e minimizam perdas ao
evitar alianças com os que lhes são próximos. São os “puros de alma”,
cheios de boas intenções, sempre abertos ao diálogo com Deus e o
diabo, não importando se na terra do sol, da lua ou de Marte.
Desde 2018, com a vitória da direita extremosa, que se fala do
comportamento egoísta de uns propiciando a derrota de Fernan-
do Haddad e da esquerda. Teríamos melhor sorte se Marina Silva,

113
sempre esquiva, tivesse deixado de lado seus paradoxos e se aliado a
Haddad. Tivesse Ciro Gomes, curado de seu orgulho de “cabra ma-
cho”, ido ao ato no Sindicato dos Metalúrgicos, que antecedeu a pri-
são de Lula, e tudo poderia ser diferente. É fato que Lula queria uma
chapa com Ciro candidato a presidente e Haddad vice. Mas, Ciro
rejeitou, lançou chapa com a senhora do agronegócio, Katia Abreu,
e, não satisfeito, abriu fogo contra o candidato fascista e contra Had-
dad como se ambos fossem iguais e ele diferente e melhor que todos.
Ciro não tirou votos do candidato miliciano, pois seu eleitorado era
consciente para não votar no fascismo, mas um tanto ingênuo em
acreditar que o PT era o “mal maior”. Não sei por que motivos, mas
Ciro e Marina foram, sim, a “esquerda” que a direita gosta.
Mangabeira Unger, que nunca foi mentor de Ciro Gomes, posto
que este se basta a si mesmo, afirmou que “ele perdeu por arrogância
ao recusar o PT (...) abrir mão do cacife eleitoral de Lula foi gesto de
arrogância mortal”. Unger, coordenador da campanha do PDT em
2018, confirmou que foi oferecido a Ciro ser o vice na chapa do PT,
para que assumisse a candidatura quando Lula fosse impedido. Ciro,
consciente de que a direita gosta de seu papel, recusou. Preso, Lula
entendeu que precisava mudar a estratégia e que urgia minimizar o
protagonismo do PT. Ciro entendeu a estratégia, mas errou na tática
ao rejeitar o cacife de Lula. Ciro, tão dono de si, teve medo de ser
teleguiado pelo lulismo. Perdeu ele, perdemos todos!
Mas, o que fazer para não ser a “esquerda que a direita gosta”?
Como reverter a realidade que nos arrasta para mais uma ditadu-
ra? Deve-se entender que eleição é condição necessária, porém in-
suficiente para se ter democracia. Ela não é o fim único que orienta
todos os meios. Ela é tão somente uma forma de se chegar ao poder
político. Se até o presidente/miliciano conseguiu entender isso, o que
falta a esquerda para mudar suas táticas e estratégias?
Notas de repúdio não nos servem, nunca serviram! Manifesta-
ções de rua não são um fim em si mesmas. Elas servem para mostrar
a insatisfação social e importam para que se possa, por exemplo, im-
pedir golpes de Estado. As manifestações são uma via de mão dupla,
pois a mãe de todos os paradoxos no Brasil, hoje, é se utilizar a li-
berdade de expressão para justamente pedir o fim da democracia. Se

114
vamos às ruas gritar FORA PRESIDENTE!, mas ele continua dentro,
algo não está funcionando bem. Lutar é preciso, sempre, mas a luta
tem que ser feita de uma forma que incomode aquele que nos opri-
me, pois se ele segue sobrevivendo às manifestações alguma coisa
que está sendo feita pela esquerda anda agradando a direita.

A FRENTE AMPLA QUE NÃO AMPLIA


O recente encontro entre Luciano Huck e Sérgio Moro, mo-
vimento da direita golpista que se pretende civilizada, que aponta
para 2022, fez a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, descar-
tar qualquer possibilidade de uma frente ampla de várias forças (de
direita, centro e esquerda) para enfrentar Bolsonaro. Gleisi desancou
a aliança Huck\Moro: “É a junção da Lata Velha com a Lava Jato”. A
mídia, que integra o conglomerado golpista de sempre, deu destaque
para o tal encontro supondo ser esta a solução para o imbróglio, que
ela mesma se meteu desde que apoiou o golpe de Estado de 2016 e a
candidatura de Bolsonaro em 2018.
Vendo os porta-vozes da mídia grande, falando em frente ampla,
lembrei de Leonel Brizola que dizia para sempre desconfiarmos das
intenções da Rede Globo, mesmo “quando ela está sendo boazinha”.
Lembrei disso naquele dia que baixou um “santo democrático” na
“vênus platinada”. Foi quando a Globo, que reconhecidamente de-
fendeu o golpe civil-militar de 1964 e a ditadura militar, a mesma
Globo que apoiou o golpe de 2016 e que promoveu a Lava Jato, teve a
pachorra de lançar uma “frente ampla” contra Bolsonaro.
Os irmãos Marinho puseram Miriam Leitão lá na Globo News,
num debate com três arautos da democracia liberal: Marina Silva,
Ciro Gomes e FHC. A ideia era promover uma “frente ampla” contra
Bolsonaro e a favor da democracia, que essa gente tanto despreza.
Gleisi Hoffmann, sempre ela, disse que foi “a nata do antipetismo
entrevistada pela campeã do mercado”. E foi desse jeito mesmo! Além
da desfaçatez de ver a árvore defender o machado, “esqueceram” de
chamar Fernando Haddad, do PT, e\ou Guilherme Boulos, do PSOL
- legítimos representantes da esquerda que lutou e luta contra a as-
censão do fascismo. E é preciso lembrar que Haddad não foi para
Paris, após a derrota no 2º turno da eleição em 2018, ele ficou aqui e

115
enfrentou os inimigos da democracia.
Considerando o resultado do 1º turno de 2018, essa gente não
tem legitimidade para liderar frente ampla articulada por emissora
habituada a apoiar golpes. Ciro, Marina e Alckmin tiveram, juntos,
18,23% dos votos válidos, enquanto só Haddad teve 29,28%. Qual a
representatividade de uma frente ampla que junta alhos e bagulhos?
Por que as frentes amplas da Globo não dão espaço para a esquerda?
Se a proposta é ser contra Bolsonaro porque os que o enfrentam de
verdade não são chamados? Tinha razão o velho Brizola, é para se
desconfiar!
Falei em notas de repúdio que dão em nada, e lembrei dos mani-
festos escritos entre a FIESP e o Instituto FHC que dizem para “dei-
xar de lado velhas disputas”. Lutar por vida, democracia, igualdade
e liberdade é disputa velha? Falam que esquerda e direita devem ser
unir pelo bem comum. Mas, qual? O do povo ou o da elite, pois o que
existe mesmo são as classes sociais e seus interesses. Porque divulgar
manifestos assinados por Luciano Huck, FHC, Lobão, Alice Setubal
(do Banco Itaú) e toda a gente que se “solidarizou” com Aécio Ne-
ves, quando ele se recusou aceitar o resultado das urnas de 2014, que
apoiou o golpe de 2016, que votou em Bolsonaro em 2018 “para tirar
o PT”?
Estranho ver essa gente “preocupada com a democracia brasilei-
ra”, quando em 2019 silenciou ante a escalada fascista. “Deixar de
lado as diferenças e lutar pelo bem comum” termina sempre do mes-
mo jeito, com a esquerda sendo reprimida, presa, torturada e morta.
Para tirar a esquerda, que fazia reformas e promovia desenvolvimen-
to social, do poder essa gente promoveu um golpe de Estado, com
direito a Lava Jato, e elegeu um fascista. Mas, para tirar esse fascista
do poder lançam “manifesto em defesa da democracia”. Estranho,
não?! Não posso “assinar” manifestos junto com a direita pois é ela
que sempre dá os golpes de Estado no Brasil. Não votei em Haddad,
em 2018, para agora me juntar com os que votaram em Bolsonaro.
É uma questão de coerência política e ideológica! É uma questão de
resistência e, por que não, de sobrevivência!

116
OS VOTOS NÃO MOVEM MOINHOS

Publicado em 01 de dezembro de 2020 no www.brasil247.com.br

Já diziam os Secos & Molhados que ”os ventos do norte não


movem moinhos”. E não movem mesmo! Os ventos, digo os votos,
saídos das urnas não farão os moinhos da esquerda girarem na ve-
locidade desejada. Mas, como o que “importa é não estar vencido”,
nos apeguemos às nossas conquistas mesmo a mais frágeis. Aquele
“antigo compositor baiano” segue tendo razão, pois “é preciso estar
atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.
Confesso minha contradição. Nem deveria falar tanto de eleições,
pois as considero tão somente o procedimento democrático que es-
colhe governantes e legisladores. Mas, nossa cultura política nada
democrática costuma vir à tona nas eleições. Então, farei breve ava-
liação delas e tratarei de perspectivas futuras. Peço-lhe apenas, caro
leitor, que não desconsidere que a análise é de momento, pois a polí-
tica eleitoral, como as nuvens, dança ao sabor do vento.
Jair Bolsonaro é o derrotado das eleições 2020. Onde pôs a mão,
seus escolhidos malograram. No 1º turno, dizia não querer se envol-
ver, mas quando o fazia seus candidatos “embicavam” para baixo.
Celso Russomano e Wal do Açaí que o digam. Nas pavorosas “lives”
do 2º turno, detonou o capital eleitoral de seus seguidores. Ele pediu
votos para 13 candidatos a prefeito, mas apenas Gustavo Nunes em
Ipatinga (MG) e Mão Santa em Parnaíba (PI) se elegeram. Crivella
no Rio e Capitão Wagner em Fortaleza provam como o bolsonaris-
mo pode erodir um projeto eleitoral.

117
A direita não bolsonarista, mas que se valeu do próprio quan-
do lhe foi conveniente, se saiu bem. Trabalhará para se ver livre de
Bolsonaro e ter condições de disputar as eleições 2022 com alguém
palatável ao eleitorado que se encanta com “antipetismo”, Lava Jato,
combate a corrupção, etc. Essa tal direita deve dispensar os serviços
de seus “bons moços” (Moro\Huck\Dória\Covas\Amoedo) e ter um
nome que lhe seja confiável, de “dentro da política”. Como as organi-
zações criminosas, que só confiam em bandidos, os políticos tradi-
cionais preferem os que não rejeitam a política, que não se travestem
de novos, apolíticos.
Eduardo Paes, eleito no Rio de Janeiro, disse que o DEM deve
“lançar um quadro da política para a eleição de 2022 e que há resis-
tências a Sergio Moro e a Luciano Huck, mesmo que este converse
com o DEM”. Dizendo de onde virá o canto da sereia, Paes mostra
que seu partido descarta as “novidades”, que quer lançar um nome e
que este nome pode ser o seu. ACM Neto, prefeito de Salvador e pre-
sidente nacional do DEM, disse que “não vamos apoiar um Bolsona-
ro dos extremos em 2022”. Desdenhando do bolsonarismo, a direita
quatrocentona aponta para uma correção de rumos no sentido de
uma volta aos tempos em que PSDB\PFL\PMDB governavam.
A direita venceu em Recife e Porto Alegre, pelo menos, se ba-
seando em “fake News” (inseridas de vez nas campanhas), no dis-
curso racista\machista\misógino, com um conservadorismo rea-
cionário flertando com o fascismo e na mais descarada compra de
votos. Despida de qualquer pudor, a direita de São Paulo foi para
o 2° turno e venceu. FHC não larga Covas para impedir que bolso-
naristas se aproximem. Neoliberais golpistas de 2016 (PSDB, DEM,
MDB), extrema direita abrigada em siglas como Republicanos e o
“centrão” de sempre governarão 85% dos eleitores dos 5.570 municí-
pios brasileiros.
É preciso entender que quem melhor sabe jogar o jogo eleitoral é
a direita. Sua maior vitória é quando impõe à esquerda que escolha
entre dois dos seus atores políticos como aconteceu em João Pessoa e
no Rio de Janeiro. Em São Paulo, a direita venceu jogando nos erros
da esquerda que não soube, não quis ou não pode se unir. Do ponto
de vista das vitórias, a esquerda saiu-se mal nessas eleições, mesmo

118
com boas votações em Recife, São Paulo, Vitória e Porto Alegre. Ve-
jamos que ela elegeu prefeitos em 12 cidades de 9 estados diferentes.
É muito pouco. O PT precisa entender que não é mais o protagonista
da esquerda. Precisa aceitar que o PSOL deixou de ser mero coad-
juvante, do contrário Boulos não teria chegado ao 2º turno em São
Paulo.
É certo que a esquerda mantém alto capital eleitoral, mesmo con-
siderando o comportamento volúvel do eleitor brasileiro. Considero
pontual a vitória de Edmilson Rodrigues (PSOL), em Belém, pois
ela não prova uma onda de votos à esquerda como nas eleições de
2008 e 2012. A esquerda não saiu em bloco para enfrentar as eleições
municipais. Ao contrário da direita, não pensou nos cenários para
2022. Como sempre, o erro foi PT, PSOL e PCdoB se dedicarem às
suas questões paroquiais, esquecendo que a luta contra o fascismo\
neoliberalismo é diária, independente de estarmos ou não em elei-
ções. Resultado? Mais uma vez, a esquerda terminou fazendo o jogo
da direita.
Tomemos como exemplo a cidade do Rio de Janeiro onde a es-
querda enfrentou o jogo eleitoral esfacelada. A direita se uniu e foi
para 2° turno podendo se livrar do bolsonarista de plantão e ainda
vencer com um político “mais do mesmo”. A esquerda se viu tendo
que escolher entre Paes e Crivella. Muito me incomoda essa situação
de ter que escolher entre o “menos ruim”. É preciso entender, de uma
vez por todas, que conciliar com partidos de centro direita e com
setores das elites não constrói um projeto social e político que pro-
mova profundas transformações no país.
A esquerda deve, ainda, compreender que a tal frente ampla só
beneficia projetos de poder do grande capital. De que adianta com-
por uma ampla frente política, contra o bolsonarismo, com partidos
que participaram do golpe de 2016 e apoiaram Jair Bolsonaro em
2018? A esquerda precisa saber que não é a árvore que tem que amo-
lar o machado.
Ainda tenho que tratar do fator Ciro Gomes e seu comportamen-
to destrutivo em relação a esquerda. Ele sabe que seus 10% não o
levarão ao 2º turno em 2022, como não o levaram em 2018. Isso o
deixa irado, ressentido, agressivo, invejoso. Ciro segue agredindo o

119
PT e Lula, com os despautérios de sempre, atingindo Boulos com a
pecha de radical e dizendo que Flavio Dino está fora da realidade por
ter ido votar com uma camisa vermelha escrito “Lula Livre”. Ciro não
assimila o golpe de ver Boulos e Dino ocupando o lugar que pensa
ser seu.
O que fazer? Sugiro que uma liderança da esquerda dê uma decla-
ração definitiva, dizendo o que Ciro Gomes é e com todas as letras,
sem tergiversar. É preciso dizer que ele não é de esquerda, nem de
centro esquerda e que o PDT gravita na centro direita. Ideologica-
mente Ciro nunca se identifica com os valores da esquerda. Politi-
camente seus interesses estão do centro para a direita. Importa que
tudo fique claro. Quando Ciro chama Boulos de radical faz o papel,
que a direita lhe atribuí, e que ele quer fazer para se tornar palatável
à direita. Deixar as coisas claras é o melhor para se seguir em frente,
sempre pensando em como fazer para que os ventos possam mover
nossos moinhos.

120
O “PUTSCH DA CERVEJARIA” DE
TRUMP OU QUEM COM GOLPE FERE
COM GOLPE SERÁ FERIDO

Publicado em 14 de janeiro de 2021 no www.brasil247.com.br

É difícil dizer o que “entra” para a história e o que dela fica


“fora”, mas é provável que o 06 de janeiro de 2021 venha a ser tratado
como o dia em que a extrema direita supremacista dos EUA, liderada
por Donald Trump, tentou dar um golpe de Estado. Meus alunos de
História do Brasil e da América poderão, em suas aulas, dizer que
um presidente dos EUA tentou permanecer no poder, após perder
uma eleição, incitando seus eleitores a invadirem o Congresso. Te-
nho uma certeza: o 06\01 será visto como o dia em que o modelo de
democracia, tido como sólido, rachou. Os chineses gostam de dizer
que isso é o começo do fim do império.
Tido e havido como modelo a ser imitado, a democracia estaduni-
dense agoniza, pois os princípios do federalismo foram trocados pe-
los interesses do Complexo Industrial Militar que Fred James Cook
tão bem analisa em “O Estado militarista”. Nessa obra seminal (aqui
publicada em 1965 pela Editora Civilização Brasileira) vemos como
se desenvolveu o “Estado total e a estratégia da guerra total”, após
a 2ª Guerra Mundial, quando os EUA se “dedicaram ao verdadeiro
poder - do dólar e das armas”. Cook cita o Presidente Eisenhower
que, em 1961, alertou para a existência nefasta de “um colosso que
domina vastas áreas da vida americana (que) é a verdadeira ameaça
à democracia”. O autor relata como os EUA adotaram, nos anos 1950,

121
o modelo prussiano militar industrial que produz ditadores como
Hitler e faz da guerra sua própria razão de ser.
Os EUA provam que não existem democracias imunes às ofensi-
vas da cadela do fascismo, sempre no cio, como diria Bertolt Brecht.
A mãe das ironias é o berço da democracia moderna, o império da
liberdade, “pagando” de república bananeira com um ditador bufão
que arregimenta seguidores para invadir o parlamento. Quem crava-
ria que a eleição dos EUA terminaria sob toque de recolher?! Deses-
perados com a derrota e com a revolta do povo negro, Trump e sua
malta supremacista lançaram mão da ideia Coringa: “quando tudo
estiver perdido, estabeleça o caos”.
A democracia não é mais hegemônica no ocidente, se é que um
dia foi. Nós, que vivemos bem ao sul da América, vimos congres-
sistas confirmarem a eleição de Joe Biden ancorados nas armas. Os
EUA adotaram o modus operandis aplicado nas republiquetas cari-
benhas e latino-americanas onde as armas costumam garantir a de-
mocracia. Foi trágico, cômico, patético! Confesso que sorri ao ver os
congressistas, lívidos, reafirmando a vitória de Biden sob a ameaça
das bombas de uma extrema direita chucra que se fantasia de bisão
para defender seus interesses.
Estadunidenses sentiram na pele o que é ver seu sistema político
derretendo pelo fogo do autoritarismo. Os Vargas, Peróns, Arbenzs,
Jangos, Allendes, Dilmas, experimentam o agridoce sabor da vin-
gança vendo o “stupid white man” tocando fogo em suas instituições
democráticas. Enquanto via a escumalha supremacista arruinar seu
capital democrático disse ao meu sofá: “bem feito, pois eles invadem
nossas instituições para fazer valer seus interesses”.
Vi jornalistas e analistas dos EUA evitando falar em golpe de es-
tado. Não existe, no inglês, uma palavra para designar o ato de se
tomar, pela força das armas, o poder conquistado pelo voto – é que
os EUA nunca tiveram um golpe de estado. Por isso, tomam em-
prestado do francês o “coup d’état” (sem acento, claro). Países que já
viveram a experiência da usurpação autoritária do poder possuem
expressões para isso. Na Alemanha e em países do leste europeu, por
exemplo, golpe de estado é “putsch”. Como no Brasil a democracia é
apenas uma fina camada sobre um espesso extrato de autoritarismo,

122
não precisamos pedir emprestado aos franceses o “coup d’état”.
Devia-se criar um termo, nos EUA, para o que pode vir a ser re-
gra, já que os supremacistas não parecem dispostos a uma conversão
democrática. Talvez possam usar o termo alemão numa referência
ao “Putsch da Cervejaria” – a tentativa farsesca de golpe de estado do
Partido Nazista em 1923. A ideia de assaltar o poder fracassou, mas
foi a partir disso que o nazismo se fez conhecer até Hitler subir ao
poder em 1933. O que Trump e seus bisões amestrados fizeram não
difere tanto do putsch nazista. Na verdade, o fascismo precisa dessas
ações teatralizadas para vir a público atestar suas reais intenções e
arrecadar a simpatia popular.
A invasão do Capitólio pode ser o primeiro de uma série de atos
nos quatros anos do governo Biden. Temos o efeito bumerangue das
democracias burguesas, onde a liberdade pouco importa, a igualda-
de é um estorvo e a fraternidade uma farsa. Em eleições, os donos
do capital se valem dos Trumps e Bolsonaros onde os votos dão a
impressão de legitimidade política e social, porém o retorno é a fas-
cistização das sociedades. Assim como Hitler, desmerecem o proce-
dimento que os levou ao poder, pois não creem na democracia.
Desde que se convenceram de que perderiam as eleições, Trump e
sua trupe lançaram dúvidas sobre a legalidade das eleições, pois pre-
cisavam de uma muleta que ancorasse a derradeira tentativa de ficar
no poder. A ideia é que se as eleições foram fraudadas, o povo tem o
direito de reagir. Para Bolsonaro isso tudo é um laboratório – ele já
sabe o que fazer caso perca as eleições em 2022. Pouco importa que
Trump seja cancelado nas redes sociais pelas big techs. Importa que
o fascismo viceja, pois ele teve mais de 70 milhões de votos, na elei-
ção de novembro, e Bolsonaro teve quase 50 milhões em 2018. Hitler
revive nesses homens apoiados por milhões. Isso é o que importa!
Em 2016 o conglomerado golpista depôs Dilma Rousseff contan-
do com a colaboração do Departamento de Estado, do FBI e da CIA
estadunidenses. Os golpes civil-militar de 1964 e parlamentar\jurí-
dico\midiático\militar\religioso de 2016 foram apoiados pelos EUA,
mas os brasileiros golpistas agora defendem a democracia. Os EUA
racionalizam os golpes que deram na América Latina como a “defesa
da liberdade e da democracia”, mas a invasão do Congresso foi um

123
ato de “terroristas domésticos”, como disse Joe Biden. Não vi nin-
guém dizer que os EUA estão tendo o que merecem depois de tantos
golpes de estados que já promoveram mundo afora. Pelo contrário,
tomou-se para si as dores da democracia estadunidense.
Vi jornalistas e analistas políticos brasileiros admirados com a
marcha lúgubre dos supremacistas em direção ao Capitólio. Qual a
surpresa? O fascismo usa os procedimentos democráticos para ocu-
par o poder. Feito isso, age para desmontar o Estado de direito aca-
bando com as garantias da lei e da ordem política e social. Bolsonaro
só esteve próximo do procedimento democrático eleitoral para se
tornar presidente. Feito isso, atuou e atua para desmontar os vestí-
gios de democracia que ainda temos. Se amanhã ele marchar, junto
com seus seguidores bovinos, para fechar o STF e/ou Congresso Na-
cional, quem há de se surpreender?
Em “Como as democracias morrem”, Steven Levitsky e Daniel
Ziblatt mostram como as democracias tradicionais vão se enfraque-
cendo, de modo legal ou não, até perecerem. Eles nos fazem pensar
porquê as democracias sólidas se fragilizam ao ponto de deixarem-se
dominar pelo fascismo e tratam da “crise do sistema político norte-
-americano – sobretudo a partir das ameaças trazidas pela ascensão
de Donald Trump”. Outra questão é por que países renunciam a seus
sistemas democráticos para viverem sobre o tacão das ditaduras. Por
que brasileiros e estadunidenses aceitam ser (des)governados por
homens como Bolsonaro e Trump? Essa é a questão para pensarmos,
pois o “retrocesso democrático, hoje, começa nas urnas”.

124
CAPÍTULO
CAPÍTULOIIII
ENSAIOS
ENSAIOS-
Pontos dede
Pontos vista e argumentos
vista e argumentossobre
sobre
quando,
quando,como
como e porque
e porquedecidimos
decidimos
que não gostamos de democracia
que não gostamos de democracia

125
ENTULHOS AUTORITÁRIOS NA
DEMOCRACIA BRASILEIRA7

Há quase 20 anos acontecem, regularmente, processos elei-


torais que historicamente brasileiros, e latino-americanos, não foram
acostumados a assistir e participar. Após as eleições presidenciais de
2002, com a consequente vitória de Lula, o discurso corrente é o de
que a democracia brasileira está consolidada, pois fomos capazes de
eleger um ex-metalúrgico, de esquerda, sem maiores sobressaltos e
conflitos.
Este discurso foi fartamente feito na mídia e por vários políticos
como Fernando Henrique Cardoso e o próprio Lula. Veja-se, como
exemplo, que para FHC “ninguém põe mais em dúvida as institui-
ções democráticas, pois está havendo uma verdadeira transição de-
mocrática”8. Mas, não é bem assim. É certo que sem eleição não se
tem democracia, mesmo que ela não seja garantia única de demo-
cracia. Em que pese procedimentos e instituições como parlamento,
judiciário, imprensa, voto, liberdade de expressão e de culto, amplo
espectro partidário, etc, não somos uma democracia consolidada
por dois motivos básicos.
O primeiro, óbvio, é que parte dos brasileiros não tem acesso
aos meios para prover suas necessidades básicas (educação, saúde,
moradia, alimentação), fazendo com que essa parcela da população
não participe da vida política do país. Não temos uma democracia
7 Originalmente publicado em outubro de 2005 no www.paraibaonline.com.br
8 Entrevista concedida a Roberto Pompeu de Toledo, publicada na Revista Veja,
edição de 20/11/2002.

127
substancial que permita a plena cidadania e amplas condições de
igualdade. Aliás, no Brasil, não temos nem a igualdade aristotélica,
que diz que ela deve existir apenas para os iguais. Nossa ideia de
igualdade é a da monarquia, onde muitos são iguais na pobreza e
poucos na nobreza.
O segundo motivo, objeto desse artigo, é que não temos uma
democracia consolidada e sim um sistema político que mescla ele-
mentos da democracia liberal com o que chamo de entulhos autori-
tários, presentes nas mais variadas instituições políticas do país. O
que temos no Brasil é uma democracia pela metade, onde se per-
cebe resquícios pretorianos herdados de uma história republicana
antidemocrática, em que grupos políticos e/ou econômicos (sempre
ancorados\capitaneados pelas Forças Armadas) utilizaram golpes de
força como modus operandi para chegar ao poder e nele permanecer.
Foi assim com a Proclamação (unilateral) da República em 1889,
por um grupo de militares e civis positivistas; com o Tenentismo, a
partir de 1922, que dá o tom de como seria a prática política dos mili-
tares em todo o século XX, e com o Movimento de 1930, que colocou
Getúlio Vargas no poder; com a Intentona de 1935, quando a esquer-
da comunista tentou chegar ao poder através de um putsch, e com o
golpe (fascista) do Estado Novo em 1937; com a Redemocratização
em 1945, que apeou o mesmo Vargas do poder; e, finalmente, com o
clássico Golpe Civil-Militar de 1964.
Devo, ainda, citar um exemplo sintomático de como a força é
quase sempre o recurso preferido no Brasil. É o caso de quando o
General Henrique Teixeira Lott deu o famoso “golpe preventivo” ou
“golpe pela legalidade”. Lott golpeou as instituições para assegurar a
posse do presidente, eleito, Juscelino Kubitschek já que a União De-
mocrática Nacional (UDN), liderada por Carlos Lacerda, articulava
uma saída de força para impedir que JK governasse. Nossa democra-
cia era tão débil que precisa de sua antítese para poder sobreviver!
E já é hora de dizer que por consolidação democrática entendo
não só a existência de amplas condições de igualdade econômi-
ca como a possibilidade de erradicação dos elementos ditatoriais
que possam ameaçar o funcionamento democrático da sociedade e
de suas instituições. Pode-se considerar que uma democracia está

128
consolidada quando relevantes atores político-sociais concordam
em respeitar as regras democráticas procedurais e aceitam submeter
seus interesses políticos as incertezas do jogo eleitoral. Será este o
nosso caso? A realidade política brasileira nos diz que não, pois ve-
mos atores políticos, em Brasília, querendo criar formas que possam
permitir mudar o jogo político-eleitoral, do próximo ano, ainda nos
momentos em que ele estiver sendo decidido.
É preciso provar a fragilidade da ideia, defendida por FHC, de
que a operação de consolidar a democracia brasileira está completa
já que protagonistas de uma ordem autoritária, os militares, se reco-
lheram aos quartéis e o povo escolhe livremente seus representantes.
Ato contínuo, um animado FHC afirma: “Hoje a liberdade e a demo-
cracia são como o oxigênio – você pensa que não tem importância
porque tem em abundância”.9
Ledo engano! É justamente por não estarmos acostumados a vi-
ver numa democracia que temos enorme dificuldade de percebê-la
em nosso entorno. Já dizia Sérgio Buarque de Holanda que a “de-
mocracia brasileira foi sempre um lamentável mal-entendido”. (HO-
LANDA, 1995, p. 160). É que ele percebeu que experiências demo-
cráticas europeias chegavam ao Brasil e logo eram distorcidas pela
cultura autoritária que nosso processo de formação nos legou.
A partir daqui elencarei entulhos presentes em nossa tosca de-
mocracia, mostrando como eles se originam da e na ditadura militar
e, por fim, concluirei definindo uma questão: nossa democracia não
está consolidada, posto que é tutelada por elementos autoritários,
que ao não serem rompidos, pelo contrário mantidos, nos condena
ao atraso político-social.

ENTULHOS AUTORITÁRIOS NA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ


DE 1988
Com o fim da Ditadura militar, e o início de um processo de
democratização, era preciso remodelar as instituições para um novo
período em que civis voltariam a governar o país e militares, pelo
menos na teoria, retornariam aos quartéis, para lidar com suas fun-
ções técnicas, deixando a política sob responsabilidade dos civis.
9 Idem

129
Esse foi o expediente utilizado na Espanha, que teve suas insti-
tuições democráticas estralhaçadas, após enfrentar a ditadura do
Generalíssimo Franco por 40 anos. Ao voltar à democracia, os espa-
nhóis implantaram um efetivo controle dos civis sobre os militares.
Os poderes e a sociedade civil conseguiram impor limites as Forças
Armadas, fazendo com que estas se voltassem para a defesa do país
contra ameaças externas. A transição democrática na Espanha foi
bem sucedida, pois civis passaram a controlar os assuntos políticos e
militares aceitaram os comandos democráticos sem maiores contes-
tações. (ZAVERUCHA, 1994).
É bom pontuar, concordando com Norberto Bobbio, que demo-
cracia política é a junção dos mecanismos, instituições e práticas as-
sociadas às formas de decidir políticas que interessem à sociedade.
(BOBBIO, 2000). O filósofo italiano nos lembra que democracia po-
lítica é, também, a prática e a norma que rege a vida dos partidos e
organizações, do parlamento, dos governos e de setores como as For-
ças Armadas. Democracia, claro, são atitudes e práticas que marcam
a relação entre as instituições e a sociedade civil. (BOBBIO, 2000).
Esses mecanismos, normas e práticas são condições para que uma
sociedade consolide sua democracia.
Em “Rumor de Sabres”, o cientista político Jorge Zaverucha afir-
ma que a “consolidação de uma democracia depende da capacidade
e do compromisso do governo e da sociedade civil em libertar-se
das amarras criadas pelo poder militar durante o período ditatorial”.
(ZAVERUCHA, 1994, p. 16). O autor aprofunda a questão, discutin-
do as transições democráticas da Espanha, Argentina e Brasil, mos-
trando que o primeiro país tentou, e conseguiu, um efetivo controle
dos civis sobre os militares; que o segundo só tentou e que o terceiro
nem sequer isso. E Já é hora de perguntar: será que tentará? A julgar
pela forma com que os governos (de Sarney a Lula, passando por
FHC) tratam as Forças Armadas, penso que não existe uma política
deliberada neste sentido.
O processo de liberalização política no Brasil (notem que propo-
sitadamente não utilizo redemocratização, democratização ou tran-
sição), efetivado em 1985 com a eleição de Tancredo Neves, ao con-
trário do espanhol, é torto, pois não afastou do cenário nacional os

130
atores políticos do regime ditatorial que se tentava encerrar. Na ver-
dade, o que tivemos foi um pacto entre as forças políticas, iniciado
ainda em 1974, capitaneado por Ernesto Geisel e Golbery do Couto e
Silva. Efetivamente, tivemos um longo processo em que muito lenta-
mente se foi inserindo alguns elementos do conceitual democrático
nas instituições sem, no entanto, reformá-las e, principalmente, sem
se mexer na espinha dorsal do regime ditatorial: o poder militar.
Os militares acusados de crime de tortura, contra presos polí-
ticos, não foram punidos; José Sarney (primeiro presidente desse
período) pertenceu sempre aos partidos que davam sustentação ao
regime militar – ARENA, PDS e PFL. Pelo contrário, os atores polí-
ticos egressos da ditadura foram “premiados” com cargos, mandatos
e toda sorte de favores políticos e econômicos. Não é à toa que a
expressão “filhote da ditadura” ficou célebre por denominar aque-
les que mantinham um pé na extinta ditadura e outro na natimorta
democracia.
Já que tínhamos uma “Nova República” era preciso ter uma nova
constituição que exprimisse não os interesses de um governo auto-
ritário e sim de um governo civil e democrático. Assim, a Constitui-
ção de 1988 é democrática na forma, pois os deputados constituintes
foram eleitos e todos os seus artigos foram debatidos e votados nas
Comissões e no Plenário, e autoritária no conteúdo, já que “velhos”
personagens que, deveriam ter saído da cena política, se utilizaram
de estratégias várias para garantirem que não teriam antigos interes-
ses e privilégios contrariados e que, mesmo retirando-se do governo,
permaneceriam com um altíssimo poder político de decisão. Ou,
“teriam o bônus de estar no poder sem ter o ônus de ser governo”.
(ZAVERUCHA, 1994, p. 173).
A expressiva participação de militares na confecção da Constitui-
ção demonstra bem isso. Ex-ministros do período militar (é o caso
de Jarbas Passarinho) foram eleitos deputados e participaram da
Comissão que discutia qual seria o papel das Forças Armadas nes-
sa “nova” sociedade democrática. Urgia garantirem que não seriam
tratados, pelos governos civis, do mesmo modo que seus colegas es-
panhóis foram - julgados e condenados por crimes de tortura. Os
militares brasileiros se inspiravam no caso do Chile, onde o General

131
Pinochet deixou o governo, mas não deixou o sistema político. Na
primeira constituição, após a ditadura, ele garantiu para si um man-
dato vitalício de Senador da República, mantendo-se impune peran-
te os crimes que cometeu enquanto era Presidente. (ZAVERUCHA,
1994). Vejamos, então, exemplos do latente autoritarismo de nossa
Carta Magna.
O Capítulo II (Das Forças Armadas) no seu Artigo 142 é um caso
raro no mundo inteiro em que militares ganham direitos constitu-
cionais para intervirem na ordem política e social, ao invés de terem
suas funções restritas à defesa do país contra ameaças externas. Ve-
jamos o que diz seu texto:

“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha,


pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições
nacionais permanentes e regulares, organizadas
com base na hierarquia e na disciplina, sob a auto-
ridade suprema do Presidente da República, e des-
tinam-se à defesa da Pátria, a garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes,
da lei e da ordem”.

O Parágrafo 1° desse artigo diz que caberá a uma Lei Comple-


mentar o estabelecimento das normas que regerão a organização, o
preparo e o emprego das Forças Armadas. Não fica claro (e deveria)
em que, e para que, as Forças Armadas serão empregadas, se inter-
na (exercendo um papel de polícia) ou externamente, cuidando das
fronteiras para prevenir ameaças vindas de fora. É por isso que tenho
dificuldades em entender porque o Exército Brasileiro mantém mais
efetivos em grandes cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo, Brasí-
lia e Recife do que na vasta fronteira amazônica.
É temerário ter, em um país com uma história política autoritá-
ria como o nosso, um dispositivo que permite que um determinado
poder solicite às Forças Armadas que garanta a lei e a ordem. Sendo
os militares detentores do poder armado, não é tão difícil submeter
outro poder (desarmado) a seus interesses, sejam eles coorporativos
ou de grupos econômicos nacionais e/ou internacionais.

132
Já no Capítulo III do Artigo 144, o Parágrafo 6° diz que “as Po-
licias Militares e corpos de bombeiros militares, (são) forças auxi-
liares e (de) reserva do Exército...”. Ora, se em tempos de paz deve
caber ao Exército proteger as fronteiras da nação e às Polícias fazer
a segurança pública, não seria aquele que deveria ser a força auxiliar
dessas e assim mesmo só em casos de grave desordem ou calamidade
pública?
Como na ditadura, e seguindo a lógica da Doutrina de Segurança
Nacional (dos tempos da Guerra Fria) que dizia que o inimigo a se
combater estava dentro do território nacional e não fora dele, aquilo
que seria obrigação das polícias segue sendo dos militares em nossa
combalida democracia. Deve ser por isso que, atualmente, cerca de
quinze Secretarias de Segurança Pública (SSP) brasileiras são che-
fiadas por oficiais da reserva do Exército. (ZAVERUCHA, 2005). A
Constituição Cidadã (feita para ancorar uma democracia) manteve
prerrogativas que os militares só poderiam ter em um período dita-
torial. Legalmente falando, eles podem intervir na ordem pública se
a considerarem em perigo. No limite, se interpretarem que ela está
sendo ameaçada, podem até mesmo dar um golpe, “para defendê-la”,
respaldados na Constituição.
Imaginemos que o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra
(MST) lance uma grande campanha para ocupar terras em todo o
Brasil (inclusive a fazenda do Presidente da República, como de fato
ocorreu) ou que haja uma explosão de greves de trabalhadores urba-
nos por todo o país e que, obviamente, a ordem política e social fique
seriamente ameaçada. Poderão os militares intervir? Não só podem,
como devem fazê-lo, já que este é, para eles, um dever constitucional.
É preciso lembrar que um preceito não tem que ser democrático
para ser legal. Se assim o fosse, o Ato Institucional n° 5 (de Dezembro
de 1968) poderia ser considerado democrático, já que foi institucio-
nalizado pelos militares. Necessário, ainda, entender que a Consti-
tuição não define a forma da intervenção. Mas, pelos exemplos que
temos em nossa história republicana, bem sabemos como ela pode se
processar. Assim, é preciso questionar: se estamos em uma democra-
cia, porque seguimos utilizando os mesmos instrumentos usados no
tempo em que a força das armas sustentava o governo?

133
Outro exemplo desses entulhos autoritários é o uso desenfrea-
do que os Presidentes da República, pós ditadura militar, fazem das
Medidas Provisórias. Elas foram criadas em 1988 como uma conces-
são ao Presidente para enfrentar casos de “relevância” e “urgência”.
Como estes conceitos são subjetivos e não foram definidos no texto
que criou a lei, fica fácil, então, se usar este recurso para governar. Na
medida em que se criam leis e elas entram em vigor por um prazo
de 30 dias, podendo ser indefinidamente reeditadas se o Congresso
não as apreciar, está-se passando por cima deste, como se fosse mera
figura decorativa.
Lembremo-nos que o Plano Real entrou em vigência na forma
de uma MP e como tal permaneceu por cerca de três anos – a cada
vencimento mensal o governo FHC a reeditava mudando apenas sua
numeração e data. Agora mesmo, vemos o Governo Federal utilizan-
do-se desse expediente para institucionalizar a chamada “superrecei-
ta”. Sabedor das dificuldades de aprovar este novo tributo pelas vias
democráticas, o governo prefere fazer ele mesma o papel de legis-
lador. Nada mais perigoso para nossa incipiente democracia! Nada
mais ameaçador para uma sociedade que vê seu parlamento como
um antro de marginais dedicados a gatunagem explícita para com o
dinheiro público.
As MPs têm similares em várias democracias de todo o mundo,
mas só são usadas como meios normativos extraordinários para
emergências, guerras ou catástrofes naturais. Não é prática comum
nas democracias europeias, por exemplo, transformar decreto-lei em
instrumento para assegurar governabilidade.
As MPs não são democráticas por serem constitucionais, pois a
legalidade de um preceito constitucional pode estar em desacordo
com os princípios da democracia política. Ao lançar mão indiscri-
minadamente das MPs, os governos parecem querer nos fazer crer
que o Congresso é dispensável, quando sem ele não há democracia
política. Inclusive, temos que combater a ideia de que se pode viver
sem o Congresso, pois ele deve existir para intermediar a relação so-
ciedade/executivo. É este tipo de atitude que termina por privilegiar
a ação de aventureiros como Alberto Fugimore. Refiro-me ao gol-
pe dado pelo ex-presidente peruano, no começo dos anos 1990, que

134
fechou o Congresso após uma exaustiva prática de desvalorização de
suas prerrogativas constitucionais.
No passado tínhamos os Atos Institucionais e os Decretos-Lei,
hoje temos as MPs. É preciso questionar porque, nos dias atuais,
ainda se mantém formas autoritárias de atuação política como esta,
que permite o executivo legislar, fazendo o Presidente parecer o
Poder Moderador dos tempos imperiais. Não gostaria de encerrar
sem ao menos citar uns tantos outros entulhos presentes em nossa
democracia.
A Lei de Segurança Nacional (instrumento coercitivo da ditadura
militar) não foi ainda extinta. Quando o MST lançou, em 2002, o
“Abril vermelho”, a União Democrática Ruralista (UDR) quis proces-
sar João Pedro Stédile, líder do MST, com base na LSN. As policias
estaduais, responsáveis pela segurança pública, são militarizadas,
além de serem força auxiliar do Exército. Por isso mesmo, os ser-
viços de informação das Polícias Militares estaduais integram os do
Exército. A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) - civil - é con-
trolada por um general da ativa e tem a função, dentre outras, de fis-
calizar as atividades de parlamentares. Os Códigos Penais Militares
são os mesmos da ditadura e as Forças Armadas fazem a segurança
pessoal do Presidente e do Vice-Presidente. Tanto militares da ativa
como inativos fazem parte do gabinete governamental. Civis podem
ser julgados por tribunal militar federal, por crime comum ou polí-
tico. No entanto, militares só podem ser julgados por tribunais mi-
litares, mesmo que tenham cometido crimes civis. Militares federais
podem prender civis sem mandato judicial e sem flagrante delito nos
casos de transgressão militar ou crime propriamente militar. O espa-
ço aéreo, civil, e a Marinha Mercante são controlados por militares.
As Forças Armadas podem vender propriedade militar sem prestar
contas ao Tesouro Nacional. O Congresso Nacional não é consultado
nos processos de promoção de oficiais-generais.
A intenção, aqui, foi demonstrar a ambiência política no Brasil
atual com a perspectiva de demonstrar o quanto equivocados são
os discursos que saúdam a sociedade brasileira, acreditando que
esta consolidou sua democracia. Vivendo um dos momentos mais
difíceis de nossa história política, justamente pela dificuldade de

135
perceber o quanto ainda temos que avançar no sentido de efetivar-
mos uma democracia em que aqueles que detêm as armas irão obe-
decer aos que não as tem e os atores políticos relevantes no cenário
nacional não tentarão mudar as regras do jogo político enquanto ele
estiver sendo jogado.
Não temos uma democracia substancial. Não somos uma demo-
cracia consolidada devido ao patrimonialismo (herdado de nosso
passado colonial) instalado em nossa sociedade. O que temos, e isso
é pouco, é uma democracia eleitoral que vive sendo ameaçada pela
presença de todos estes entulhos autoritários. A questão a ser colo-
cada é: o que é preciso fazer para que sociedade civil e instituições
políticas estabeleçam um efetivo controle sobre os militares? Como
proceder para que esses elementos pretorianos sejam retirados das
instituições, para que se possa implantar uma cultura política demo-
crática no Brasil?

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz & Terra,


2000.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Compa-


nhia das Letras, 1995.

ZAVERUCHA, Jorge. Rumor de Sabres – Tutela Militar ou Controle


Civil? São Paulo: Ática, 1994.

__________________. FHC, Forças Armadas e Polícia – entre o


autoritarismo e a democracia (1999-2002). Rio de Janeiro: Record,
2005.

136
OS ESQUELETOS SE REMEXEM
NO ARMÁRIO10

O Governo Federal lançou compilação com casos de mortes


e desaparecimentos durante o regime militar. O livro-relatório “O
Direito à memória e à verdade – Comissão Especial sobre os Mortos
e Desaparecidos Políticos” é um alentado volume de 500 páginas,
com tiragem de 5.000 exemplares, que será distribuído entre ONGs,
bibliotecas públicas e órgãos oficiais.11
Como as polêmicas sobre a ditadura militar estão longe de ter
fim, publicações neste sentido devem ser louvadas posto que possam
contribuir para que esclarecimentos sejam feitos. Mas, advirto desde
já, nada é simples ou natural quando o assunto é o nosso passado
autoritário. Os mortos e desaparecidos da ditadura militar ressur-
gem como renitentes espectros a nos lembrar que nosso processo de
transição para a democracia está inacabado.
Livros como este já foram lançados – vide os relatórios publica-
dos, na década de 1980, sob o título “Projeto Brasil: Nunca Mais”.
Importa, também, livros escritos por ex-militantes, onde as torturas
sofridas são fartamente relatadas, como “Combate nas Trevas” de Ja-
cob Gorender; “Tirando o Capuz” de Álvaro Caldas; “Viagem a Luta
Armada” e “Nas Trilhas da ALN” de Carlos Eugênio Paz; “O que é
isso, companheiro?” de Fernando Gabeira; “Mulheres que foram à
10 Originalmente publicado em novembro de 2007 no www.paraibaonline.com.br
11 O livro foi organizado pela Secretaria Especial dos Direitos Humana (SEDH) da
Presidência da República e pormenoriza processos sobre mais de 400 desapare-
cidos políticos.

137
Luta Armada” de Luiz Maklouf; “Batismo de Sangue” de Frei Betto;
etc. Digno, ainda, de nota, pela qualidade das informações e análises
apresentadas, é a série “As ilusões armadas”, em cinco volumes, do
jornalista Elio Gaspari onde, por exemplo, fica comprovado que Er-
nesto Geisel não só sabia do que acontecia nos bastidores dos órgãos
de repressão, como apoiava as ações de tortura e assassinato.
Porque logo este livro, então, seria tão importante? Sendo do Go-
verno Federal, é um documento oficial que declara sem tergiversar
que adversários do regime militar foram torturados e que muitos
morreram através desse expediente abominável. É o Estado reconhe-
cendo que forças da repressão cometeram crimes como tortura, as-
sassinato e ocultação de cadáveres. As versões apuradas pela Comis-
são Especial sobre os Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP)
foram postas no livro e ganharam status de versão oficial. No livro,
afirma-se: “Não poderiam seguir coexistindo versões colidentes com
a de inúmeros comunicados farsantes sobre fugas, atropelamentos e
suicídios, emitidos naqueles tempos sombrios pelos órgãos de segu-
rança, e a dos autores das denúncias sobre violação de direitos huma-
nos”. (SEDH, 2007, p. 29)
Tacitamente, o livro afirma que se instalou um “terror de Estado”
no Brasil e sugere que as Forças Armadas deem explicações com base
no argumento de que a maioria das mortes de militantes se deu em
dependências militares e que os depoimentos tomados não foram
suficientes para localizar corpos de vítimas. (SEDH, 2007). Outro
ponto sensível é que os autores instigam a criação de uma instân-
cia administrativa que se destine a interrogar pessoas envolvidas nos
episódios.
Na solenidade de lançamento do livro, o Presidente Lula disse
que a não localização dos corpos dos desaparecidos “é uma ferida
que permanece aberta (...) familiares têm direito de reivindicarem
os corpos de seus entes para enterrá-los (...) é esse direito que quere-
mos resgatar sem rancor, sem revanchismo de qualquer ordem”.12 Por
isso mesmo, não se imagine que o livro propõe radicalizar. Logo na
apresentação pode-se ler que “nenhum espírito de revanchismo será
12 “Lula promete a famílias que comissão vai ouvir militares”. Folha de São Paulo,
30 de agosto de 2007.

138
capaz de seduzir o espírito nacional, assim como o silêncio e a omis-
são não funcionarão como barreira para a superação de um passado
que ninguém quer de volta”. (SEDH, 2007, p. 15)
É nítido que não existe a perspectiva de passar a limpo a ditadura
militar – ou seja, de complementar o inacabado processo de transi-
ção iniciado com a instituição da Lei da Anistia em 1979. Não existe
sequer o desejo de se efetivar o processo, lento é bem verdade, que
vem sendo trilhado pela justiça argentina que, recentemente, conde-
nou o padre Christian Federico Von Wernich à prisão perpétua por
vários crimes cometidos entre 1976 e 1983.13 Já no mandato de Raúl
Alfonsín, primeiro presidente civil pós-ditadura, os comandantes de
quatro juntas militares que governaram o país foram julgados e con-
denados. Carlos Menen, mais flexível aos interesses castrenses, os
indultou. Mas, em 2005, no governo Néstor Kirchner, os processos e
julgamentos, contra integrantes do regime militar, foram retomados.
Como se quisesse compartilhar possíveis e futuras responsabi-
lidades, o presidente Lula lembrou que a CEMDP foi instituída no
governo de FHC. Foi sobre a coordenação do então secretário de
Direitos Humanos, José Gregori, e de Nelson Jobim (na época mi-
nistro da Justiça, hoje da Defesa) que o governo editou, em 1995,
um decreto (que logo virou a Lei 9.140/95) que criava a CEMDP.14
A justificativa era a necessidade de reconhecer formalmente casos
de mortes e desaparecimentos, pelas mãos dos órgãos de repressão,
aprovar a reparação indenizatória e buscar a localização de corpos
para que fossem entregues às famílias. No governo Lula, a lei teve a
sua abrangência ampliada e a análise de quase todos os casos apre-
sentados foi concluída.
A CEMDP é formada por membros do governo, das Forças Ar-
madas, do Ministério Público Federal, da Câmara dos Deputados e
por representantes dos familiares dos mortos e desaparecidos. Julgou
339 casos e indenizou 221 - além dos 136 que já constavam em um
anexo da Lei 9.140/95. Desses 136 casos, 118 foram indeferidos. Todo
13 “Argentina condena padre por crimes na ditadura”. Folha de São Paulo, 10 de
outubro de 2007.
14 Sobre a Lei 9.140\95 ver https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-
-9140-4-dezembro-1995-348760-normaatualizada-pl.html

139
o processo de levantamento das informações foi feito com base em
depoimentos prestados por ex-presos políticos e por agentes do Es-
tado, envolvidos com a repressão, além dos poucos documentos já
abertos a consulta.15
No entanto, mais urgente e relevante, do que o livro, é a abertura
dos arquivos oficiais do período da ditadura militar. Pois, nenhum
livro será plenamente crível se não apresentar todas as informações
alocadas nos arquivos ainda fechados à consulta. O que se espera é
que o presidente edite um decreto que ponha fim ao sigilo eterno,
que é a possibilidade de manter, indefinidamente, em segredo docu-
mentos considerados ultrassecretos. Não é à toa que o Grupo Tortu-
ra Nunca Mais considerou o livro “um passo ainda pequeno para a
elucidação de fatos ocorridos no regime militar”.16
Sabe-se que Lula encarregou a ministra da Casa Civil, Dilma
Rousseff, de encaminhar a criação de um Centro de Documentação
sobre a repressão. Obviamente, este Centro só será política e social-
mente relevante se puder contar, em seu acervo, com a documenta-
ção que pertencia ao extinto Serviço Nacional de Informação (SNI)
e com documentos espalhados pelos arquivos do Exército e alhures.
É paradoxal a atitude de um governo que, se por um lado lança um
livro deste quilate, por outro, não provoca a abertura dos arquivos
militares. Dando uma no cravo e outra na ferradura, parece preten-
der agradar a todos indistintamente e/ou não desagradar aos mili-
tares que mantiveram, em todos os governos pós-ditadura, aquelas
prerrogativas que dispunham ainda no período militar.
Sobre a memória documentada da ditadura, a questão é comple-
xa. Em dezembro de 2002, faltando poucos dias para Lula ser empos-
sado, FHC alterou a legislação sobre o acesso público a documentos
oficiais. Ampliou para 50 anos o prazo de divulgação de documentos
ultrassecretos e oficializou o sigilo eterno, possibilitando, ainda, que
uma Comissão Interministerial (CI) renovasse o prazo de confiden-
cialidade sem restrições de tempo – um claro e absurdo retrocesso
político.
15 Informações coletadas no site da CEMDP – www.cemdp.mdh.gov.br
16 “Tortura Nunca Mais elogia livro com ressalvas”. Folha de São Paulo, 28 de agos-
to de 2007.

140
Ainda no seu primeiro mandato, Lula alterou a lei, mas manteve
sua essência autoritária. Reduziu o prazo de divulgação dos docu-
mentos ultrassecreto de 50 para 30 anos, mas prevendo uma reno-
vação por mais 30. Manteve, também, a tal CI para manter o sigilo,
dentro do prazo total de 60 anos, dos documentos que possam via a
ameaçar “a soberania, a integridade do território nacional ou as re-
lações internacionais do país”. Na prática, acrescentou-se 10 anos ao
meio século imposto por FHC. Enfim, sob um verniz democrático,
existe uma espessa camada pretoriana que dificulta sobremaneira a
sociedade civil de ter acesso às informações.
Causa estranheza a iniciativa de FHC, corroborada por Lula, de
manter fechada parte considerável desses arquivos para consulta pú-
blica. Porque FHC e Lula, que concordam que a democracia brasi-
leira está consolidada, não sentiram segurança em abri-los? Se não
sofremos mais ameaças de um revés autoritário, se a ditadura é mes-
mo uma coisa do passado, então só resta abrir os arquivos oficiais
do período da ditadura militar. Só assim, o desejo manifestado no
discurso presidencial poderá virar fato. Uma boa forma de enten-
der os meandros da problemática, acerca dos arquivos da ditadura, é
continuar fazendo o histórico dessa questão.
Em 2003, a juíza federal Solange Salgado deferiu sentença auto-
rizando a quebra dos sigilos documentais e a intimação dos “agentes
militares ainda vivos que tenham participado das operações”. In-
clusive, em setembro passado, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ)
manteve integralmente essa sentença. Criou-se, assim, a possibilida-
de de serem ouvidos militares de todas as patentes ativos e inativos.
Óbvio, os militares ficaram revoltados e revidaram.
Pressionado pela caserna, o governo recorreu dessa sentença,
através da Advocacia Geral da União (AGU), argumentando que ela
rompia limites “ao determinar a abertura indiscriminada de todos os
arquivos sigilosos” e ao impor pagamento de multa diária em caso
de desobediência. A AGU não se esqueceu de tentar amenizar possí-
veis consequências e justificou que estava recorrendo pelo fato de “as
Forças Armadas e o poder civil estarem plenamente integrados na
garantia da ordem pública”. Uma justificativa esdrúxula, já que isto
não anula os fatos ocorridos durante a ditadura militar.

141
Em 2004, o Vice-presidente e então ministro da Defesa, José
Alencar, disse que o governo, por não temer reações à abertura dos
arquivos, não deveria recorrer. Mas, o executivo federal apelou ates-
tando que tinha, sim, seus temores. Então, o Tribunal Regional Fe-
deral (TRF) do Rio de Janeiro deu um passo significativo ao julgar o
recurso da AGU e decidir que ministros e comandantes das Forças
Armadas deveriam comparecer a audiências, sob pena de serem pre-
sos, e que se deveria iniciar a abertura dos arquivos.
Mas, um passo atrás, ministros e autoridades militares obtiveram
salvo-conduto no Supremo Tribunal Federal (STF), para não irem às
audiências, e o STJ derrubou a decisão do TRF/RJ, apelando para um
expediente meramente burocrático – o de que a sentença tem que
ser executada pela Justiça de primeiro grau e não por um tribunal
federal. E assim, o pêndulo do processo democrático brasileiro con-
tinuou a movimentar-se: ora para o lado da manutenção de segredos
que não podem (ou não devem) ser revelados, ora para o lado das
tentativas de gerar fatos que contribuam para que o processo de tran-
sição democrático, iniciado no começo da década de 19, finalmente
se complete.
É preciso entender que esse estado de coisas, e o próprio regime
militar, são obstáculos à melhoria das relações entre civis e militares
no Brasil. Celso Castro, pesquisador do Centro de Pesquisa e Docu-
mentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fun-
dação Getúlio Vargas (FGV), conduziu uma pesquisa instigante. Ele
consultou vários estudiosos sobre relações civil-militar no Brasil e
88% dos entrevistados concordaram com a seguinte assertiva: “mi-
litares devem explicações e desculpas públicas por atos praticados
durante regime militar”.
Castro levantou, no CNPq, 46 doutores que estudam as Forças
Armadas (desses, 39 responderam a seu questionário). Isso aponta
a relevância desse tipo estudo, mesmo que 61% dos entrevistados te-
nham dito que essa temática é vista com desconfiança nas universi-
dades. Em que pese 74% dos entrevistados terem dito que as relações
civil-militar melhoraram nos últimos dez anos, 72% garantiram que
os militares se consideram superiores aos civis, o que só dificulta o
trato das questões relativas à ditadura militar.

142
Maria Celina D’Araújo, também pesquisadora do CPDOC/FGV,
ao discutir os “modelos institucionais” das Forças Armadas, de-
monstra que existem “três grandes matrizes” norteadoras do com-
portamento dos militares: o positivismo, a ideia das Forças Armadas
como um “lugar de saber”; o corporativismo; e o papel da caserna
como um espaço de discussão política. Após a ditadura militar, com
a chamada profissionalização dos militares, sobreviveu fortemente o
corporativismo. O que explica a insistência da Aeronáutica em man-
ter o controle sobre o tráfego aéreo; o fato de a Justiça Militar con-
tinuar intacta, com as mesmas funções e prerrogativas da época da
ditadura; a forte intervenção do Exército nas questões de segurança
pública; etc.
Voltando a tratar da solenidade de lançamento do livro, devo
pontuar as presenças e as ausências. Ela foi marcada pela emoção
dos parentes das vítimas e pela presença de ministros que foram per-
seguidos na ditadura, como Dilma Roussef e Tarso Genro. Um mo-
mento que demonstrou que as feridas não cicatrizaram, foi quando
Elzita Santa Cruz (uma senhora de 94 anos) pediu, chorando, a Lula
que lhe permita enterrar seu filho, desaparecido desde 1974.
Mas, as ausências foram bem mais significativas do que as pre-
senças. Sintomaticamente, comandantes do Exército (General Enzo
M. Peri), da Marinha (Almirante Júlio Soares de M. Neto) e da Ae-
ronáutica (Brigadeiro Juniti Saito) não compareceram. Eles foram
convidados pela própria presidência da República, ou seja, deixaram
de atender a um convite de seu Comandante-em-Chefe. Óbvio, a au-
sência foi uma das maneiras que o alto comando castrense encontrou
para demonstrar o quanto os meios militares ficaram irritados, não
só com o livro, mas com o fato do governo ter assumido oficialmente
os atos ilícitos por eles cometidos e jamais avocados.
Sugestivo foi o discurso de Nelson Jobim que, fitando o Presiden-
te, afirmou como se estivesse enviando aos notórios ausentes uma
mensagem: “Afirmo que estamos em um processo efetivo de con-
ciliação e que as Forças Armadas brasileiras recebem este ato como
absolutamente natural. Não haverá indivíduo que possa a isto reagir
e, se houver, terá resposta”.
Foi vexaminoso ver Jobim tentando enquadrar as Forças

143
Armadas. Não tanto pelo discurso em si, mas pelas previsíveis conse-
quências. Primeiro, os comandantes militares não se pronunciariam.
Em seguida, consideraram o discurso uma “ameaça e uma afronta
desnecessária” (e que) “não havia necessidade do tom agressivo, pois
a solenidade em si já era um ataque”. Por fim, o Comando do Exérci-
to declarou que “todo fato histórico tem diferentes interpretações” e
que a “eventual revisão da Lei da Anistia representaria um retrocesso
no atual momento”. E, no costumeiro tom ameaçador, arrematou:
“Não há Exércitos distintos. Ao longo da história, temos sido sempre
o mesmo Exército de Caxias”.
Ou seja, apelando para o espírito corporativo, o que se quis de-
monstrar é que o mesmo Exército que lastreava a ditadura é o que
assegura a democracia e, portanto, não faz sentido punir este pelos
crimes cometidos por aquele. E, o que é grave, se referiu ao calcanhar
de Aquiles do processo de transição: a Lei da Anistia, que atingiu a
todos indistintamente. Se isto vai ou não criar constrangimentos nas
relações de Jobim com os oficiais não é a questão. Resta saber o nível
da gravidade desses constrangimentos e se eles podem vir a contri-
buir para que o ministro da defesa seja “convidado” a sair do cargo
pelas imposições castrenses, como foi possível ver nos casos dos ex-
ministros José Viegas e Valdir Pires.
Em um movimento pendular, que ora cobra responsabilidades,
ora afaga, e tentando não ferir as suscetibilidades castrenses, Lula
afirmou que os comandantes militares não são responsáveis por atos
praticados na ditadura e diplomaticamente pediu (não seria o caso
de ordenar?) que caso ainda houvesse arquivos em dependências mi-
litares que estes sejam entregues ao governo.
A CEMDP afirma que, em 1993, o Ministério da Justiça recebeu
relatórios das Forças Armadas tratando de mortos e desaparecidos e
defendeu que os autores desses relatórios devem prestar depoimen-
tos. Em março deste ano, um relatório da CI registrou que as Forças
Armadas informaram “ter destruído, com base na legislação, todos
os documentos das operações militares”. Mas, que legislação seria
essa que autoriza a destruição de documentos se existe a lei do sigilo
eterno? É temerária a demora para se abrir os arquivos, pois além
dos efeitos destrutivos que só o tempo pode provocar, existem os

144
efeitos causados pelo fogo criminoso, como foi possível ver no episó-
dio dos documentos, encontrados nas dependências de uma base aé-
rea da Bahia em 2004, semi destruídos pelo fogo comprovadamente
intencional.
Ainda dentro da lógica de cobranças, seguidas de afagos, o Secre-
tário Nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, afirmou que
não aceitaria a informação de que arquivos foram queimados. Mas,
no lançamento do livro, declarou que as Forças Armadas contribuem
hoje significativamente na defesa dos direitos humanos, como se não
fosse ele próprio que estivesse à frente das cobranças feitas no livro.
As reclamações do Alto Comando das Forças Armadas são tama-
nhas. Afirmam que o livro é extemporâneo e que não traz nenhum
dado novo. Consideram um acinte o seu lançamento e o fato de ser
assumido como documento oficial. Apontam como falha central o
fato de só considerar a versão de uma das partes envolvidas. Acusam
que a única intenção dos seus autores é fomentar a “indústria da in-
denização de criminosos políticos”.
Tentando minimizar as consequências de todo esse imbróglio, o
governo enviou recentemente ao Congresso Nacional uma proposta
para o orçamento de 2008 que aumenta de R$ 6,5 bilhões para R$ 10
bilhões os gastos com defesa. Quer agradar os militares naquilo que
lhes é mais caro, além das questões salariais, óbvio. Mas, pelo visto,
o gesto não serviu para acalmar os militares que retaliaram numa
outra questão sensível. O Clube Militar do Rio de Janeiro entrou
com um pedido de liminar no TRF/RJ para caçar a promoção do
ex-guerrilheiro Carlos Lamarca e a pensão para a sua viúva. O TRF/
RJ acatou o pedido e suspendeu a decisão da CEMDP que promoveu
Lamarca de capitão a coronel do Exército, concedendo à sua viúva
pagamento de vencimentos no valor de R$ 12.152,61 (o mesmo que
recebe um general-de-brigada) e uma indenização de quase cem mil
reais.
Para os militares, Lamarca não passa de um desertor criminoso
e não mereceria nenhuma honra militar. E a juíza responsável pelo
parecer final afirmou que Lamarca não tem direito aos benefícios
porque desertou da unidade do Exército onde servia e que “não foi
atingido por atos de exceção consubstanciados em atos institucionais

145
ou complementares”. Note-se que o mesmo TRF-RJ que acatou a li-
minar é o que, em 2004, julgou o recurso da AGU como já demons-
trado. A que se cuidar, ainda, de mais uma questão espinhosa. O
problema da Lei de Anistia, pois, no lançamento do livro, membros
do governo negavam de forma veemente que haveria algum tipo de
revanchismo na iniciativa. Mas, a pretensão exata do governo não
ficou clara.
Lançar um livro que aponta sem evasivas e subterfúgios as culpas
dos militares, afirmando que “crimes contra a humanidade foram
cometidos”, significa exatamente o quê? Que militares responsáveis
por torturas e desaparecimentos de presos políticos devem ir a julga-
mento? Se este raciocínio é correto, poderá, em oposição, a caserna
reivindicar que as ações da guerrilha (assaltos a bancos, assassinatos,
sequestros, roubos, etc) sejam igualmente tipificadas como crime e
seus patrocinadores tenham que ir para o banco dos réus?
A Lei da Anistia de 1979 foi uma garantia que os militares tiveram
para aceitar deixar o governo ordeiramente. O processo de liberali-
zação, que nos levou de uma ditadura militar até a Nova República,
dependeu disso. A questão não é se deve ou não remexer nos segre-
dos do período militar, deixando que os esqueletos sem identificação
saiam dos armários, mas se o governo e a sociedade civil estão dis-
postos a enfrentar o ônus de entrar em rota de colisão com aqueles
que têm seus bons motivos para querer que segredos e sigilos conti-
nuem bem guardados.

REFERÊNCIAS

ROTTA, Vera. Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políti-


cos. Rio de Janeiro: Acervo, v. 21, nº 2, p. 193-200, jul/dez 2008.

Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH). Comissão Espe-


cial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à
memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políti-
cos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.

146
DITADURAS DITAM, NÃO PEDEM17

Emílio e Augusto, presidentes quando ditaduras eram co-


muns na América Latina, conversavam quando aquele perguntou a
este se seria capaz de torturar, matar e ocultar o corpo de um dissi-
dente político para calar a oposição e permanecer no poder. Augusto
não titubeou e assentiu. Emílio, então, indagou se ele faria o mes-
mo com 30.000 pessoas. Augusto, indignado, retrucou: “O que você
pensa que sou?” Emílio retorquiu: “Já está bem claro o que somos,
vamos nos deter em métodos e quantidades”.
Certo, o diálogo é surreal, como estranho é discutir se houve dita-
duras brandas e regimes duros! Com premissas equivocadas, termos
diferentes se equipararam. Se tivemos um governo constitucional
deposto; se se cassou mandatos e o parlamento e o judiciário foram
subjugados; se o governo ditava Atos Institucionais e decretos-lei; se
partidos foram extintos; se não havia liberdade de imprensa, asso-
ciação e expressão; se pessoas eram pressas, torturadas e mortas ...
Então, por favor, não tergiversemos! O Brasil, entre 1964 e 1985, viveu
uma DITADURA.
Até criou-se o neologismo “ditabranda”. Stanislaw Ponte-Preta, se
vivo, teria mais uma para seu o seu Festival de Besteiras que Assola
o País - FEBEAPÁ. Importa discutir se a ditadura foi mais ou menos
branda? Só se é ditatorial a partir de certo número de mortes provo-
cadas? Pode-se aniquilar opositores e seguir democrático? Importa
os prejuízos sentidos até hoje, não se a dita foi branda ou dura.
É factível classificar o regime militar brasileiro pelas fases em que
17 Originalmente publicado em março de 2009 no www.paraibaonline.com.br

147
os militares, divididos grosso modo entre “linha dura” e “modera-
dos”, revezaram-se no poder. Mas, o comedido Geisel defendia ani-
quilar opositores para manter, literalmente, a ordem e o progresso.
Em “A ditadura derrotada”, Elio Gaspari reproduz um diálogo en-
tre Geisel e seu ministro Dale Coutinho que dizia que as coisas só
melhoraram quando começaram a matar. E Geisel, que comandou a
liberalização do regime e dizia-se contra a tortura, emendava: “Esse
troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser”. Seu
interlocutor seguia o raciocínio: “Eu fui obrigado a tratar esse proble-
ma em São Paulo e tive que matar”. Esses eram os da “ditabranda”!
Imagine-se o que não diriam e fariam os da ditadura. Como se vê o
dilema é falso! Vamos, então, ao que realmente interessa.
É preciso falar da recorrência do tema ditadura militar 24 anos
após o seu fim. Tratamos o golpe de 1964, o regime autoritário e suas
consequências como se estivéssemos em 1985. É sempre bom lem-
brar que golpes de Estado são o que são, pois consistem em desmon-
tar instituições democráticas e/ou submetê-las a interesses pouco
republicanos. Qual o problema? Nosso passivo pretoriano não foi
contabilizado ao contrário, por exemplo, da Espanha que impôs um
controle civil sobre os militares após a ditadura franquista. Temos
uma agenda de trabalho a cumprir: a Lei da Anistia deve ser revista;
os que, a serviço do Estado, torturaram e/ou mataram devem ser pu-
nidos; e os arquivos do antigo Serviço Nacional de Informação (SNI)
precisam ser definitivamente postos à disposição de quem quer que
seja.
O Ministro Gilmar Mendes, reverberando outras vozes, afirmou
que revisar a Lei da Anistia traz instabilidade ao Estado de Direito.
Ora, não seria investigando os crimes de tortura e morte, e punindo
culpados, que asseguraríamos o Estado de Direito e a democracia?
Nossas fragilidades impedem uma varredura nos atos do regime mi-
litar. Comparativamente, democracias eleitorais como a nossa revi-
ram suas ditaduras e em nenhuma delas se viu a derrocada do Estado
de Direito.
Na Argentina, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de
Pessoas investigou os crimes da ditadura. Membros das quatro jun-
tas militares, que presidiram o país entre 1976 e 1983, foram julgados

148
e até condenados. A Marinha admitiu que sequestrou, torturou e
assassinou cidadãos. Houve até instabilidade institucional, mas não
quebra do Estado de Direito. No governo de Nestor Kirchner, com
orientação política próxima a do Presidente Lula, viu-se 800 proces-
sos reabertos, 534 pessoas processadas e 378 presas. Agora, dois ex-
-oficiais do Exército foram condenados à prisão perpétua, acusados
de terem sequestrado e torturado três pessoas, além de fazerem seus
corpos desaparecerem. Note-se que os poderes executivo e judiciário
pelejaram sobre a forma dos julgamentos, mas isso não impediu o
andamento de investigações e processos. Também não houve agita-
ções nos quartéis e muito menos quebra do Estado de Direito.
Nos seus sete anos, a ditadura argentina matou 30.000 pesso-
as. Nos Brasil, foram 635 mortos em 21 anos. Os militares de lá têm
bem mais coisas a esconder, mas isso não dificulta o empenho dos
argentinos em resolver seu passivo autoritário. Os julgamentos dos
militares portenhos se dão na justiça federal, utilizando-se o código
penal. No Brasil, os militares continuam a ter a Justiça Militar como
foro, i.e., são julgados pelos seus pares. Como se vê a questão não se
restringe a quantidades, e sim a substância que se quer que a demo-
cracia tenha.
No Uruguai o parlamento revogou a lei que anistiou militares
torturadores. No Chile, a Comissão de Verdade e Reconciliação re-
volveu a ditadura Pinochet e o Exército e a Marinha admitiram que
haviam torturado presos políticos. O Chile tem, hoje, uma das me-
nos frágeis democracias de toda América Latina. Em El Salvador,
a Comissão da Verdade levou o Exército a se responsabilizar pelo
massacre de El Mozote e na Guatemala uma Comissão de Esclare-
cimento Histórico responsabilizou militares pelo genocídio contra
comunidades indígenas. Nem por isso, estes dois países voltaram ao
autoritarismo, mesmo que suas democracias estejam longe de serem
modelares para o mundo.
Em geral, os que participaram e/ou se beneficiaram das ditadu-
ras são os mesmo que se opõem às investigações. Tal qual Gilmar
Mendes, são os que falam nas tais ameaças ao Estado de Direito. Na
Argentina e no Chile só se propôs reconciliação (não esquecimen-
to) quando os fatos foram admitidos e os culpados começaram a ser

149
punidos. É só assim que o Estado de Direito pode se sobrepor ao
“direito” da força. No Brasil, o que se pretende é um projeto de olvi-
damento nacional.
Após o julgamento de Nuremberg, tentou-se ocultar as atroci-
dades nazistas. O que fez Hannah Arendt afirmar que “Os alemães
vivem da mentira e da estupidez”. Foi só quando parou de dissimular
suas culpas que a Alemanha conseguiu passar a limpo seu pretéri-
to totalitário. Hoje, ela não é mais responsabilizada pelo que houve
mesmo que os museus sobre o holocausto existam para que ninguém
esqueça. Como afirmava Walter Benjamin, não se passa borracha na
história. Tentativas de fazê-lo resultam em atrocidade intelectual,
maculada de falsidade e mentira.
Não rever a Lei de Anistia, isentando de punição os que, a serviço
do Estado ditatorial, cometeram crimes de tortura, morte e oculta-
ção de cadáver é uma forma de “apagar” a história. Os crimes são
imprescritíveis e passíveis de penalidades, independente de quanti-
dades. Pouco importa que tenham sido 635 mortos no Brasil, contra
30.000 na Argentina e 3.200 no Chile. Tivéssemos uma única morte
e ainda assim teríamos que apurá-la até o fim sob pena de continu-
armos, geração após geração, a sermos responsabilizados pelo nosso
passado pretoriano. Reconciliação, aqui, significa remexer o passado
em busca de paz no presente.
O que importa é que o Estado usou seu poder de coerção para
aniquilar pessoas. Disso, não se pode duvidar. Se soubermos em que
circunstâncias essas coisas aconteceram, poderemos, então, aceitar
que a ditadura pertence ao passado. Adianta pouco pagarmos polpu-
das quantias, a título de indenização às famílias das vítimas, se vamos
continuar tentando impedir que a verdade venha à tona. Muito já se
ouviu que melhor é não reabrir as feridas. Tivessem elas cicatrizadas
e o golpe de 1964 seria “apenas” uma data histórica. Como o processo
de transição da ditadura para a democracia foi (está) incompleto, os
mortos e desaparecidos do regime militar ressurgem como reniten-
tes espectros.
O Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se posicionar
sobre os limites da Lei da Anistia, i.e., quem ela perdoou e o que
acontecerá com quem ela não absolveu. A Advocacia Geral da União

150
(AGU) afirma que “estão perdoados os crimes de tortura cometidos
durante a ditadura”. Bem ao gosto de setores do governo, aferrou-se
a tese de que a Anistia é “ampla, geral e irrestrita”. E vai adiante, de-
fendendo que os delitos cometidos durante a ditadura prescreveram
e que, concordando com Gilmar Mendes, punir torturadores traria
insegurança jurídica ao país. A AGU parece temer que os acusados
não aceitem passivamente serem julgados.
Na raiz do problema está o fato de que na transição, da ditadura
para a Nova República, estimulou-se a distorção de conceitos da lei,
de que se queria ocultar crimes e manter a impunidade. Como o úl-
timo governo militar, que encaminhou a lei da Anistia ao Congresso,
não reconhecia a prática de delitos como a tortura, então eles não se
encontram na gênese da Lei da Anistia. O governo está dividido e
isso traz insegurança. De um lado, pela punição, estão Tarso Genro
e Paulo Vannuchi. Do outro, Nelson Jobim, porta voz da caserna,
diz que a anistia é fruto de uma negociação entre sociedade civil e
regime militar. Jobim lembra um pacto para não haver revanchismos
de ambos os lados, onde o lema era esquecimento, e que só assim foi
possível a democracia.
Para a AGU as convenções e tratados internacionais, dos quais o
Brasil é signatário, que têm a tortura como imprescritível subordi-
nam-se à Constituição Federal, i.e., não interessa posições assumi-
das no passado se elas estão em desacordo com leis atuais. A AGU
defende a União no processo aberto pelo Ministério Público Federal
para punir os militares reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e
Audir Maciel por tortura, morte e ocultação de 64 cadáveres durante
a ditadura. E assume a defesa deles alegando que a anistia é factual e
impessoal – não podendo ser personalizada.
No governo, os favoráveis a punição são minoria. A eles se jun-
ta a ministra Dilma Rousself, por ser ex-presa política. Mudará de
opinião quando estiver em campanha? Com a AGU e o Ministro da
Defesa estão a Controladoria Geral da União e o Itamaraty. E, óbvio,
o presidente Lula que, por atos, deu provas que concorda com Jobim,
portanto, com os militares.
Dilma afirma que na Lei de Anistia não foram contemplados os
agentes que, durante a ditadura, cometeram lesão corporal, estupro,

151
homicídio, ocultação de cadáver e tortura. Jobim diz que não dá para
responsabilizar pessoas pelos delitos. Quer passar uma borracha na
história, pois (SIC) “nem a repulsa que nos merece a tortura impede
reconhecer que toda amplitude que for emprestada ao esquecimento
penal desse período negro da nossa história poderá contribuir para
o desarmamento geral, desejável como passo adiante no caminho da
democracia”.
A União é ré na questão da abertura dos arquivos da ditadura.
Já foi sentenciada a tornar público documentos do período. Mas, a
questão é complexa. Faltando poucos dias para Lula ser empossado,
FHC alterou a legislação sobre o acesso público a documentos ofi-
ciais. Ampliou para 50 anos o prazo de divulgação de documentos
ultrassecretos e oficializou o sigilo eterno, possibilitando, ainda, que
uma Comissão Interministerial (CI) renovasse o prazo de confiden-
cialidade sem restrições de tempo – um claro e absurdo retrocesso
político.
Lula alterou a lei, mas manteve sua essência autoritária. Reduziu
o prazo de divulgação dos documentos ultrassecreto de 50 para 30
anos, mas prevendo uma renovação por mais 30. Manteve a CI e
o sigilo de documentos que possam ameaçar a soberania nacional.
Numa palavra, ao ½ século imposto por FHC, acresceu mais 10 anos.
Sob um verniz democrático, temos uma espessa camada pretoriana
que impede a sociedade civil de ter acesso às informações. Porque
FHC e Lula, que concordam que nossa democracia está consolidada,
não caminharam no mesmo sentido da Argentina, por exemplo? Se
não temos mais ameaças de um revés autoritário só nos resta abrir os
arquivos da ditadura e revolver nosso passado autoritário.

152
VIVANDEIRAS QUEREM GOLPE
PARA SALVAR A DEMOCRACIA18

Em junho de 1950, numa entrevista ao Jornal paulista “Folha


da Noite”, Getúlio Vargas disse: “Conheço meu povo, tenho certeza de
que serei eleito. Mas, sei que não chegarei ao fim do meu governo. Se
não me matarem, não sei até onde meus nervos aguentarão, mas não
tolerarei humilhações”. Tirante o tom messiânico, o sentimentalismo
populista e a extorsão emocional próprios de Vargas, temos a res-
posta do então candidato a presidente a um editorial do jornalista
Carlos Lacerda publicado no Jornal carioca “A Tribuna da Imprensa”.
O artigo é o suprassumo do autoritarismo. Dizia “O Corvo”, alcu-
nha que uns usavam para denegrir Lacerda e outros para destacar
sua sagacidade política, que: “O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve
ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito não
deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para im-
pedi-lo de governar”. Inclementemente simples.
No Brasil era assim: onde houvesse a palavra revolução logo se lia
golpe, assalto ao poder, intervenção militar. Carlos Lacerda liderava
a União Democrática Nacional (UDN) uma espécie de PSDB só que
bem mais conservadora, autoritária e sem viés liberal algum. A UDN
era para Vargas e seu PTB o que, guardando as devidas e enormes
proporções, o PSDB é para Lula, Dilma e o PT – uma feroz oposição
disposta a tudo para derrubá-lo. Com seu libelo golpista, Lacerda
expressava a impaciência de setores elitizados cansados de verem
seus interesses represados pelo nacional-desenvolvimentismo. Fruto
18 Originalmente publicado em novembro de 2015 www.paraibaonline.com.br

153
de uma sociedade desacostumada a praticar ritos democráticos, La-
cerda pedia golpe aos militares ao invés de pedir votos para UDN.
O resto desse imbróglio é história que nos ensina muito sobre
nosso presente. O governo Vargas foi tumultuado desde o começo,
com a oposição implorando aos militares para tomarem o poder,
com o presidente se suicidando em agosto de 1954 e com Lacerda
tendo o desfecho autoritário que tanto ansiava dez anos depois, em
1964. Não pretendo fazer ilações entre este período com o momento
crítico em que vivemos, mas lembro que, como nas décadas de 1950
e 1960, muitos seguem acreditando que a força é solução única para
nossas crises institucionais. A tese de que nossa democracia repre-
sentativa se consolidou ruiu de vez! Fôssemos uma sociedade que re-
conhecesse os valores da democrática (liberdade e igualdade em do-
ses equilibradas) e não veríamos vivandeiras rondavam os quartéis.
Vivandeira vem do francês “vivandière” e significava (na Guer-
ra de Canudos, por exemplo) a mulher que seguia a tropa levando
mantimentos para os soldados. O jornalista Elio Gaspari, numa co-
luna para a Folha de São Paulo em janeiro de 2010, afirmava que
o marechal Humberto Castello Branco chamava de vivandeiras os
políticos que iam aos quartéis conchavar com a oficialidade. Dizia
Castello Branco: “São os que, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos
bivaques bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias ao Poder
Militar”. Se déssemos o real valor que a democracia tem, vivandeiras
seriam coisas do passado e não assistiríamos a deplorável cena de
brasileiros vestidos de verde-e-amarelo, cantando o hino nacional
e pedindo aos militares para intervirem na ordem política e social
do país enquanto, frenética e pateticamente, batem panelas em suas
luxuosas varandas. De fato, quase a metade de nossa população acei-
taria alegremente trocar nossa frágil democracia por um regime de
força.
Este cenário de crise político-econômica não se agravou por cau-
sa da corrupção que grassa instituições e sociedade. Temos uma mo-
ralidade seletiva na política, onde se escolhe como e porque ser ou
não desonesto. Onde o presidente da Câmara dos Deputados, Edu-
ardo Cunha, não é criticado pelo envolvimento em negócios escusos,
mas por ter se deixado flagrar com tanta facilidade. Também não

154
indicaria as pedaladas fiscais do governo Dilma como fato gerador
da crise. Aliás, o que vem a ser este “crime bárbaro” que se quer usar
para golpear as instituições? “Pedalar” é quando o governo toma
dinheiro emprestado aos bancos para pagar contas. Como a dívida
pública brasileira é sempre alta, governos usam este expediente para
manter o equilíbrio financeiro. Até 2014, pedaladas eram vistas como
mal necessário. Houve quem se gabasse de pedalar para não arrom-
bar as contas. Pedaladas se tornaram motivo para impeachment
como estratégia de quem não consegue chegar ao poder pelas urnas.
Sim, a crise se agravou pela instabilidade do governo Dilma. A
presidente foi reeleita dizendo que não faria tudo o que passou a
fazer a partir de 02 de janeiro passado. Ela negava que estávamos em
crise durante a campanha eleitoral de 2014. Atitude temerária, pas-
sível de uma reprimenda da sociedade, mas não na forma de vaias
e atitudes desrespeitosas para com a pessoa da Presidente. Quando
a sociedade lhe retirou apoio, jogando para as calendas sua popula-
ridade e a aprovação ao governo, estava justamente repreendendo a
presidente pelos erros cometidos.
Caberia, ainda cabe, ao governo buscar corrigir seus erros e re-
conquistar, através de políticas públicas relevantes, o respeito e a le-
gitimidade perdidos. Estranho mesmo é ver o governo tão dócil a
este presidencialismo de extorsão, praticado em larga escala, tendo
o PMDB como achacador-mor da República. A desgastada fórmula
de governar por meio de uma coalização de partidos fracassou na
medida em que as siglas aliadas chantageiam o governo por cargos e
verbas em troca de apoios na seara parlamentar.
Estranho, também, foi ver a oposição abrindo mão de suas prer-
rogativas legais, buscando a porta lateral do golpismo calcada na
mentalidade udenista onde crises institucionais se resolvem com sa-
ídas de força. Não se buscou o golpismo tradicional, ativado pelas
Forças Armadas, mas sim um golpismo que segue ritos e procedi-
mentos democráticos. Seria possível conviver com este paradoxo?
Em democracias consolidadas procedimento democrático é a água
que jamais se mistura com o óleo da mentalidade autoritária. Em
nosso caso, com a criatividade que temos para misturar água e óleo,
encontramos uma forma de exercitar nossa mentalidade pretoriana

155
sem ter que rasgar a Constituição Federal. E é bom lembrar que te-
mos em nossa Constituição o Art. 142 que dá lastro a uma interven-
ção militar ao definir que as Forças Armadas “destinam-se à defesa
da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem”. A mesma Constituição que define
como se procederá em caso de impeachment presidencial é a que dá
poderes aos militares para intervirem.
Tal qual em outros idos, sempre existe a possibilidade das vivan-
deiras baterem às portas dos quartéis. Ao que tudo indica a oposi-
ção sondou as Forças Armadas sobre a possibilidade de apoio para
destituir Dilma Rousseff. Assim como fez Fernando Collor para ver
se se mantinha no poder e como fez Itamar Franco para garantir
que assumiria mesmo a presidência no desfecho da crise gerada pelo
impeachment de 1992. O senador José Serra (PSDB) se referiu várias
vezes, entre os meses de julho e setembro, sobre a possibilidade da
crise descambar para uma intervenção militar ao comparar o atual
momento com aquele abril de 1964. Serra, vivandeira de quatro cos-
tados, batia a porta da caserna. Era como se ele quisesse lembrar aos
militares que estava na hora deles tomarem as rédeas novamente.
A prova disso foi que o Gal. Eduardo Dias da Costa Villas Bôas
teve que esclarecer o posicionamento da instituição que comanda
neste momento tão conturbado. Este fato por si só quer dizer algo. Se
a ordem política e social, e as instituições, estivessem funcionando
normalmente o Comandante do Exército ficaria em seu lugar. Numa
entrevista a Folha de São Paulo, em 14 de outubro, o General Villas
Bôas negou a possibilidade de uma intervenção militar, mas admitiu
que uma “crise social (poderia) afetar a estabilidade do país e isso di-
ria respeito às Forças Armadas”. Ele chegou mesmo a dizer que: “E aí,
nesse contexto, nós nos preocupamos porque passa a nos dizer respeito
diretamente”.
Certo. Se a crise é de tal monta, que afeta a estabilidade do país
e diz respeito às Forças Armadas, o que fazer então? Cumprir a
Constituição Federal e intervir na ordem social e politica? Ou deixar
que os civis ponham ordem no frege que eles mesmos causaram? A
entrevista do Gal. Villas Bôas é algo dúbia. Num momento ele diz,
numa provável resposta ao senador Serra, que é a “sociedade que tem

156
que aprender com seus erros e ter consciência que cabe a ela solucio-
nar esses problemas”. Já em outro ponto da entrevista afirma que “as
Forças Armadas têm que estar em condições de atender às demandas
da população”.
É como se ele estivesse dizendo que o Exército não vai intervir
para corrigir os erros da sociedade, mesmo que possa vir a atender
uma demanda de intervenção vinda da população. Nunca é demais
lembrar que quase a metade da população brasileira se mostra sim-
pática a volta dos militares ao poder central do país, segundo pes-
quisas do Datafolha e do Ibope realizadas neste ano. É preciso aten-
tar para os perigos de costumeiramente se pedir, aos que detém o
monopólio da força, para que intervenham no poder político (civil,
por excelência). Nossa história nos exemplifica que não raras vezes
vivandeiras terminaram sendo perseguidas pelos que tomaram o po-
der a força dos sabres e tanques de guerra – Carlos Lacerda, a Igreja
Católica e a classe média brasileira que o digam.
Em democracias frágeis agitações políticas na caserna querem
sempre dizer algo. Agora, no mês de outubro, o Ministro da Defesa,
Aldo Rebelo, teve que exonerar o Comandante Militar do Sul, Gal.
Antônio Hamilton Martins Mourão, por ele ter dito que: “mera subs-
tituição da presidente não trará mudanças significativas (...) mudança
seria o descarte da incompetência, má gestão e corrupção (...) toda
consciência autônoma, livre e de bons costumes precisa despertar para
a luta patriótica, contribuindo para o retorno da autoestima nacional”.
Com tais comentários o Gal. Mourão incorreu em vários erros: (1)
desrespeitou a (sua) comandante em chefe das Forças Armadas; (2)
atingiu a ordem hierárquica das instituições coercitivas; (3) opinou
sobre uma seara que não lhe diz respeito; (4) induziu civis e militares
a atuarem em defesa de valores pouco democráticos.
Para piorar a situação, se promoveu no quartel da 3ª Divisão
do Exército, em Santa Maria (RS), homenagem póstuma ao coro-
nel Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório torturador da ditadura
militar que chefiou o DOI-CODI de São Paulo. Homenagear figura
tão abjeta, num país governado por uma ex-militante que foi pre-
sa e barbaramente torturada, soa como um escarnio, mas não deixa
de ser uma movimentação política da caserna. Os militares gaúchos

157
quiseram enviar um recado ao governo que acusou o golpe e tomou
uma atitude drástica, coisa rara nos dias de hoje, mandando o gene-
ral boquirroto realizar tarefas burocráticas em Brasília.
O ímpeto golpista das manifestações de rua arrefeceu, mas o ati-
vismo autoritário nas redes sociais segue firme, forte, bem articula-
do em que pese não conseguir disfarçar uma contundente estupidez
quando o assunto é a recente história política brasileira. Não passa
um dia sequer sem que alguém cite um caso de corrupção para logo
em seguida pedir aos militares para nos salvarem (SIC) “do horror de
viver numa democracia”, frágil, mas uma democracia. Se é verdade
que os militares não estam interessados em fazer cumprir o art. 142
de nossa Constituição, é bem verdade, também, que quase metade da
população cansou de viver sob os dilemas da democracia. O proble-
ma é que essa metade não viveu os tempos obscuros da ditadura e se
recusa a travar conhecimento acerca do que acontecia com aqueles
que se oponham ao regime militar.
Brasileiros apontam a possibilidade de termos uma nova ditadura
por não considerarem a democracia como o único sistema político
possível. Essa insistente lembrança que temos da ditadura quer dizer
que não apostamos todas as nossas fichas na democracia. Sérgio Bu-
arque de Holanda já dizia que a “democracia, no Brasil, foi sempre
um lamentável mal entendido”. Foi, e continua sendo, para pelo me-
nos 45% da população que pensa ser bom viver num sistema onde as
liberdades e os procedimentos democráticos são artigos de luxo para
bem poucos.

158
CAPÍTULO
CAPÍTULOIIIIII
COLUNAS
COLUNAS -
Quando
Quando a necessidade
a necessidade dede
opinar,
opinar,
através dada
através escrita, passou
escrita, a ser
passou uma
a ser uma
atividade diária, falada no rádio
atividade diária, falada no rádio

159
MAS, DE QUAL VERDADE
ESTAMOS FALANDO? (QUARTA-
FEIRA, 16 DE MAIO DE 2012)

Hoje, vou tratar da “Comissão Nacional da Verdade” (CNV),


instituída pela presidenta Dilma Rousseff. É que me pediram para
falar dessa Comissão, explicando o que a torna tão polêmica. A CNV
investigará violações aos direitos humanos cometidos entre os anos
de 1946 e 1988. O objetivo central é investigar mortes, torturas e de-
saparecimentos na ditadura militar.
O projeto de lei que criou a Comissão foi aprovado em setem-
bro do ano passado pelo Congresso Nacional e logo em seguida foi
sancionado pela presidenta Dilma. A CNV demorou a sair do pa-
pel, pois seu projeto definia que quem escolheria seus membros e
assessores seria a própria presidenta Dilma. A CNV poderá acessar
documentos oficiais, independente do grau de sigilo que tenham re-
cebido. Ela poderá ter todo tipo de informação, convocar pessoas
para prestar depoimentos e determinar perícias e diligências, mas
não terá papel policial e/ou jurídico, mesmo que possa indicar no-
mes para irem a julgamento.
A CNV foi proposta no 3º Programa Nacional de Direitos Hu-
manos, assinado pelo presidente Lula em dezembro de 2009. Este
documento diz que a Comissão busca “trazer à tona a verdade his-
tórica sobre o período militar e promover a reconciliação nacional”.
Por isso a polêmica, pois o que se quer é trazer à tona crimes prati-
cados por agente do Estado a serviço de um governo ditatorial. O
texto da lei foi alterado em vários pontos para atender aos que, como

161
os militares, temem que a Comissão termine por propor uma efe-
tiva revisão da Lei da Anistia, sancionada em 1979, e que impediu
a responsabilização penal, por crimes políticos durante a ditadura
militar, pois “perdoou” os que lutaram contra a mesma e os que nela
atuaram. O fato é que os que pegaram em armas contra a ditadura
foram duramente punidos e os que agiram no sistema repressivo fi-
caram impunes.
Em todo caso, não posso negar que a Comissão é limitada e que
veio atrasada se a compararmos com as de outros países. Desde o
fim da ditadura militar, a 27 anos, que discutimos se devemos ou
não punir os que torturaram e mataram em nome do Estado. Porque
resistir a esclarecer como os crimes se deram e identificar os respon-
sáveis por eles? Na Argentina, a Comissão para o Desaparecimento
de Pessoas foi criada em 1984 e muitos já foram julgados, inclusive
um ex-presidentes da ditadura militar argentina. Mas, aqui, o STF
chancelou a impunidade dos torturadores ao decidir, em 2010, que
não examinaria se a Lei da Anistia é compatível com a Constituição.
O fato é que precisamos dessa Comissão para que se passe a limpo
nosso passado autoritário. Mas, ela de nada servirá, se os culpados
não forem punidos. Do contrário, nunca nos reconciliaremos com os
erros cometidos no passado.

162
JOSÉ NÃO QUER APOIAR O CANDIDATO
W (QUARTA-FEIRA, 30 DE MAIO DE 2012)

Na política, toma-se caminhos iguais, mesmo sendo diferen-


te, ou segue-se por caminhos diversos, mesmo estando do mesmo
lado. Acompanhei candidatos mudando de palanque à revelia de
seus gostos e interesses. Um candidato a vereador (vou chamá-lo
de José), filiado ao partido A, tinha como estratégia de campanha
apoiar o candidato X a prefeito. Mas, a direção do partido de José re-
solveu leiloar seu apoio entre os candidatos W, Y e X para prefeitura
de uma cidade que chamarei de Campina Grande mesmo. Como a
negociação era pouco republicana, a cada novo dia nosso intrépido
candidato acordava em um novo palanque.
Num dia, o partido de José tratou com o “candidato Y” para apoi-
á-lo em troca de certa quantia em dinheiro e de cargos no 2º escalão
da administração municipal. O partido de José até anunciou a deci-
são tomada. Mas, ele nem teve tempo para reclamar, pois já no dia
seguinte o partido A fez outro acordo mais vantajoso. Em troca de
substancial quantia em dinheiro e de duas secretarias no governo
municipal, o partido A decidiu apoiar W. Assim, José, que preferia X,
foi obrigado a mudar de palanque mais uma vez. De nada adiantou
José argumentar que já tinha feito um acordo com X. Ele reclamou,
brigou, e foi para a imprensa chorar suas mágoas.
Como o partido A não nutre afeições pela democracia, mandou
José seguir a orientação partidária e apoiar o candidato W. José se-
guiu na imprensa a reclamar, dizendo-se desiludido com a demo-
cracia, que a política é uma sujeira só, e até ameaçou ir à justiça.

163
O partido A, que de democrático mesmo só tem o D em sua sigla,
disse a José que ou ele seguia a orientação dada ou procurasse outro
partido para chamar de seu. José engoliu seco, calou fundo, e mudou
suas estratégias. Mas, o estrago estava feito, e as arestas ficaram para
futuras eleições.
Este, meus amigos, é o jogo que está sendo jogado neste momen-
to em Campina Grande. Um jogo onde inexistem motivações ideo-
lógicas. Onde o partido impõe uma vontade a partir dos interesses
de um único dirigente - um jogo anti democrático em todos os seus
quadrantes. Nele, não se discute ideias e projetos, pois impera a von-
tade de poucos em torno de interesses paroquiais. Aqui, a maioria se
submete a vontade da minoria e ponto final.
Neste jogo, o que conta são os tais minutos, na propaganda elei-
toral, que um partido leva para sua coligação. Claro, contam cargos a
serem distribuídos e o tal vil metal. Se você é ou quer ser um candi-
dato, como José, avalie se vale mesmo a pena entrar num jogo onde,
como diria Cazuza, seus sonhos serão vendidos tão baratos que você
não vai nem acreditar. E, por fim, quero dizer que qualquer coinci-
dência de nossa realidade com o conteúdo dessa coluna não é, não
pode ser, mera coincidência.

164
O PARQUE DO POVO HIGIENIZADO
(SEGUNDA-FEIRA, 11 DE JUNHO DE 2012)

Vou parodiar Chico Buarque que, em “Homenagem ao malan-


dro”, disse que foi a “Lapa e perdeu a viagem, pois aquela tal malan-
dragem não existe mais”. Eu fui ao Parque do Povo e perdi a viagem,
pois aquele tal São João não existe mais. Constatei que não temos
mais uma festa popular, pois o que vi foi um local para se divertir
sem que isso se relacione com nossa cultura. Aliás, ficou até difícil
saber que o São João começou, pois não se vê sinais de nossa festa
maior pela cidade. Andei pelo centro de Campina Grande e quase
não vi símbolos do São João. A festa começou, mas parece que a
cidade não se preparou para ela.
Onde estão as bandeirolas e os balões? Afora tímida decoração,
feita por particulares, a prefeitura não enfeitou a cidade. As duas
principais entradas de Campina Grande não avisam, a quem está
chegando na cidade, que se está entrando na cidade do maior São
João do mundo. Eu sei que muitos não vão gostar da comparação.
Mas, a principal entrada de Caruaru foi dotada de um portal perma-
nente para que se saiba que ali se respira São João.
Em Campina Grande, um viajante desavisado pode entrar e sair
da cidade sem perceber que já estamos no São João. O próprio Par-
que do Povo perdeu sua identidade. Vão longe os tempos em que se
montava, no “Forródromo”, um grande arraial com barracas e comi-
das típicas. A mãe de todas as ironias é que não se encontra pamonha
e canjica no Parque do Povo, pois ele foi “higienizado”, de lá se reti-
rou os símbolos maiores da festa da colheita do milho.

165
Outra ironia é que São João, Santo Antônio e São Pedro foram
confinados à parte interna da pirâmide. É como se os organizadores
da festa tivessem vergonha deles. Hoje, a estrutura montada mais
parece uma feira de negócios. Aquilo que chamávamos de barracas
juninas, mais parecem stands de venda. A decoração que se vê no
Parque do Povo, no Açude Velho e no contorno da entrada principal
de Campina são enormes balões com logomarcas dos patrocinado-
res da festa. Certo, que se coloque quem banca a festa. Mas, porque
esconder os santos e a decoração junina? A maioria das “barracas
juninas” são, na verdade, filiais de restaurantes da cidade. Algumas
são mais luxuosas do que suas matrizes. O Sítio São João foi banido
do Parque do Povo! Agora, sobrevive desestruturado e afastado do
seu habitat natural.
Às vezes penso que os organizadores do São João não gostam da
festa, que só a promovem por mera obrigação. Parece haver um pro-
pósito na descaracterização - é como se quisessem fazer outra coisa,
não uma festa popular. O fato é que aquele clima de São João, de
outros tempos, não mais existe. Hoje, o São João é tratado de forma
protocolar, não remete às nossas tradições. Por isso, fui lá e perdi a
viagem.

166
MAS, AFINAL, O QUE É A MORTE?
(SÁBADO, 02 DE NOVEMBRO DE 2012)

Hoje, eu vou falar da morte. Vou tratar desse fenômeno que


é a única certeza que temos enquanto vivos. Se a morte adotasse um
sistema político seria a democracia, pois ela não descrimina nin-
guém. Não importa o que somos, a classe social a que pertencemos,
a cor que temos em nossa pele, muito menos se cremos ou não em
um ser superior, a morte não poupa ninguém. Ela é a afirmação de
que somos iguais a despeito do que muitos possam querer. A morte
nos faz lembrar que existe um limite para a vida.
Não é à toa que a maioria das culturas e religiões valorizam mais a
vida do que a morte. Claro, como podemos considerar mais algo que
não sabemos como de fato se processa? Se a morte é democrática,
a vida é uma coisa das mais ditatoriais, pois pela vida a fora somos
levados a fazer coisas que não queremos ou não gostamos. Mas, a
morte nos traz uma vantagem. É que quando tentamos entende-la
passamos a nos conhecer mais e melhor. Talvez, ela seja o maior en-
sinamento que possamos ter.
A cada vez que alguém próximo a nós morre, nos reviramos para
tentar entender o que está acontecendo. O processo em que chora-
mos nossos mortos é na verdade a busca para tentar entender o que
nos acontece. Enquanto velamos nossos mortos estamos constatan-
do o quanto somos frágeis diante da vida. Sim, é desesperador saber
que não mais iremos conviver com aquela pessoa querida. Sofremos
mais por nós mesmos, que ficaremos nesse mundo sem nossos en-
tes queridos, que estão indo para outras dimensões, outros planos,

167
outros mundos.
Não choramos pelos nossos mortos, mas sim por nós mesmos
ao constatarmos que a morte é inevitável. Choramos, pois um dia
também estaremos ali, num caixote de madeira, prontos a sermos
devorados pela terra. Falar sobre a morte provoca desconfortos por
atestarmos que até para o que tanto valorizamos, a vida, existe um
fim. É a certeza acachapante de que um dia a vida chega ao fim. Deve
ser por isso que várias religiões e doutrinas propõem um completo
desligamento das questões materiais. É por isso que a morte ganha,
então, uma dimensão imaterial, filosófica, algo que vai além de nós
mesmos, paupérrimos mortais. Cada povo possui uma herança que
determina nossa forma de ver a morte. O modo como a interpre-
tamos é consequência das tradições que as gerações passadas nos
legam.
A tradição de depositar o corpo material, de um ente querido,
num recipiente fechado, numa posição pré-determinada, e enterrá-
-lo vem de muito longe. Nossos antepassados já ritualizavam seus
morto de forma parecida com o que hoje fazemos. A construção da
identidade coletiva sobre a morte é um dos elementos mais impor-
tantes que dá forma a um povo, a sua cultura e a sua tradição.
No Egito e na Mesopotâmia as pessoas eram enterradas com os
símbolos de suas identidades pessoal e familiar, com pertences, ri-
quezas, roupas e até com suas comidas prediletas. Já os hindus não
viam necessidade de conservar marcas. Corpo e identidade eram re-
duzidos às cinzas, lançadas ao vento ou nas águas dos rios. O mor-
to era privado de seus traços identitários. A destruição do corpo,
acreditavam os antigos hindus, livraria o morto de seus pecados. Os
gregos também incineravam seus mortos. Mas, as cinzas eram guar-
dadas para que, num sentido oposto ao dos hindus, se preservassem
as características e a identidade do morto. O ato da cremação enfren-
tava a morte no que ela tem de igualitária.
Existiriam duas mortes. De um lado, a morte regular, uniforme
e anônima. Os comuns eram cremados juntos e depositados numa
vala única. Os não tão comuns, os grandes heróis, eram cremados
em uma pira e homenageados na cerimônia da boa morte. A mor-
te é um desorganizador social e cultural. A morte pode servir para

168
reestruturar o poder, através da guerra. O fato é que não temos al-
ternativa diante dela. Resta-nos ritualizá-la em nossos cultos para
assim, quem sabe, podermos lidar com ela da melhor forma que
pudermos.

169
VIVA A BOSSA NOVA! (QUINTA-
FEIRA, 25 DE JANEIRO DE 2013)

Hoje é o dia da Bossa Nova, por isso não vou falar de políti-
ca e sim de um movimento musical que surgiu no Brasil e ganhou
o mundo, se tornando referência de bom gosto. Aliás, se instituiu o
25 de janeiro como “Dia da Bossa Nova” numa homenagem a Tom
Jobim, que nasceu nesse dia no ano de 1927. Acreditem, houve uma
época em que, nos EUA e na Europa, o Brasil era o país da Bossa
Nova. Pelo mundo afora, Tom Jobim era tão famoso quando Pelé. Foi
uma época em que o Brasil era referência em termos de boa música.
Em pensar que hoje a maior referência musical brasileira na Europa
é Michel Teló...
Em 1958, Elizeth Cardoso gravou “Canção do amor demais” com
músicas de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Foi neste ano que Car-
los Lyra, Roberto Menescal e João Gilberto definiram a estrutura
musical do que depois se chamou de Bossa Nova. Oficialmente, a
Bossa Nova surgiu quando João Gilberto lançou o disco “Chega de
Saudade” em 1959. Era um ritmo novíssimo! Cheio de acordes so-
fisticados e tendo a marca do improviso, daí muitos terem dito que
a Bossa Nova era o jazz verde-amarelo. Caetano Veloso disse que
tomou um susto quando ouviu João Gilberto pela primeira vez, pois
ele ia para um lado, com seu violão, e a orquestra ia para o outro, e
no final todo mundo se entendia.
A Bossa surgiu nos bares e apartamentos da Zona Sul do Rio de
Janeiro. Surgiu e sempre foi uma coisa das classes sociais mais abas-
tadas, apesar de que Tom Jobim a fez subir o morro da Mangueira

170
com piano e tudo. Certo, a Bossa era um movimento musical elitista.
A classe média carioca a criou, mas isso não quer dizer nada. Pois
o que importa é a qualidade. Na verdade, a Bossa é o movimento
mais eclético que já existiu no Brasil. Seus criadores se inspiraram
no samba, no jazz, na música erudita e onde mais puderam buscar
sonoridades. João Gilberto disse certa vez que aprendeu a tocar vio-
lão ouvindo Jackson do Pandeiro, que, não por acaso, era conhecido
como o Rei do Ritmo.
Apesar disso a Bossa Nova foi um movimento musical minima-
lista. Para eles, bastava um banquinho e um violão. Nem era preciso
ter uma boa voz. Vejam que João Gilberto tem aquela vozinha sem
graça que chega a irritar. Aliás, as deficiências vocais de Tom Jobim
e João Gilberto eram tão apontadas que virou tema de uma música.
Em “Desafinado”, eles diziam que: “Se você disser que eu desafino/
saiba que isso em mim provoca imensa dor”. E terminavam ironi-
zando ao disserem que no “peito dos desafinados também bate um
coração”.
Em 1962, Tom & Vinícius fizeram o clássico da Bossa Nova e da
própria MPB. Uma das 10 músicas mais gravada e regravada de to-
dos os tempos surgiu numa mesa de bar e para chamar a atenção de
uma moça que vinha, passava e não dava bolas para ninguém. Reza
a lenda, que eles passavam os dias tomando chope no Bar Veloso,
hoje Garota de Ipanema. Quase todos os dias, Helô Pinheiro, no es-
plendor de seus 20 e poucos anos, passava pela calçada do bar com
“aquele doce balança a caminho do mar”. Eles davam todas às canta-
das possíveis e Helô não dava a menor atenção aqueles dois bebuns
com um violão. Até que um dia eles resolveram usar o talento e a
cantada funcionou. Tom Jobim contou, numa entrevista muitos anos
depois, que lá vinha Helô, com o doce balanço, e eles começaram a
cantarolar: “olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é essa
morena que vem e que passa, num doce balança a caminho do mar”.
Aí não teve jeito. Helô, parou, sentou à mesa com os dois e virou a
garota do Tom e do Vinícius. Depois a garota ganhou o Rio, o Brasil,
os EUA e o mundo.
Até Frank Sinatra se dobrou as curvas sinuosas da Garota de Ipa-
nema. Eu estou falando da música, não da garota. Tom & Cia foram

171
fazer shows nos EUA e na Europa. João Gilberto gravou um memo-
rável disco com Stan Getz, que era o Jobim dos EUA. A Bossa in-
fluenciou muita gente boa. Chico Buarque, os tropicalistas e os gran-
des da MPB nas décadas de 1970 e 1980. Até Roberto Carlos flertou
com a Bossa. Tim Maia gravou um disco só com clássicos e dizia que
era Bossa sem fazer biquinho.
Mas, o que teria acontecido com o país que abrigou tão rico mo-
vimento musical? Hoje Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gil-
berto não são mais conhecidos por uma geração que só ouve esse
excremento que indústria musical deposita nas ruas. Se eu fosse vivo
em 1962, e estivesse nos EUA, andaria com uma camisa da seleção
brasileira para que todos soubessem que eu vinha do mesmo país de
Tom Jobim. Hoje, se eu for a Europa, fico de boca fechada para que
ninguém saiba que sou do mesmo país de Michel Teló.

172
FOI ASSIM QUE FICAMOS SEM
DEMOCRACIA E SEM REFORMAS
(SEGUNDA-FEIRA, 01 DE ABRIL DE 2013)

Passados 49 anos do golpe civil militar de 1964, sugiro uma


reflexão. O golpe foi dado no dia 01 de abril, mas ele nunca foi uma
mentira, pelo contrário, foi o marco para longos 21 anos que tive-
mos de duras verdades. Quero, aqui, relacionar o fato histórico com
nossa realidade e quero lembrar que o passado só nos serve se for
para fazer com que entendamos mais e melhor o nosso presente. Ao
contrário do que muitos querem crer, importa sim o que se fez no
passado. É preciso reavaliar o que fizemos, pois à medida que nos
distanciamos temporalmente dos acontecimentos, de nossas vidas,
mudamos nossa visão sobre eles.
É preciso redimensionar os fatos vividos, nos primeiros dias de
abril de 1964, pois, claro, não vivemos no passado. O que quero é
refletir sobre o que herdamos em termos de cultura política do golpe
e do regime militar que tivemos. Por que as memórias do golpe e
da ditadura ainda nos são tão vivas? Seria pelas feridas ainda não
cicatrizadas? Como querer que os que foram reprimidos pelo Estado
militarizado esqueçam tudo que passaram? Saímos da ditadura e en-
tramos na “Nova República” alegremente, sem revermos nossos atos.
A Anistia Política de 1979 foi uma grande e pesada pedra colocada
sobre erros e crimes cometidos. Assim, herdamos uma sociedade e
um Estado recheados de “entulhos autoritários”, que o débil proces-
so de liberalização que tivemos não foi competente para extrair de
nosso entorno político. A ditadura acabou, mas seus procedimentos

173
permaneceram conosco.
A principal causa do golpe de 1964 foi uma suposta tensão exis-
tente entre democracia e mudanças sociais. É fato que parte conside-
rável da sociedade queria mudanças, mas não parecia haver grupos
organizados para lutar pela democracia. O amplo espectro políti-
co-partidário nacional fingia aceitar o falso dilema entre mudanças
sociais e democracia. Os atores políticos à direita acreditavam que
a democracia levaria às mudanças sociais - por isso mesmo deram
o golpe. Os atores à esquerda defendiam que só teríamos mudanças
sociais acabando com a democracia, pois eles defendiam a violência
revolucionária como motor das amplas reformas que parte da so-
ciedade desejava. O fato é que o confronto entre as forças políticas
favoráveis e contrárias às reformas de base destruiu as instituições
democráticas. O resultado a que se chegou nós bem conhecemos:
nenhuma reforma social e democracia inexistente!
O processo de liberalização política (notem que não utilizo o ter-
mo redemocratização), efetivado com a eleição de Tancredo Neves
foi torto, pois não afastou do cenário nacional atores políticos que
atuaram durante a ditadura militar. A ditadura não acabou e se criou
um Estado democrático. O que nós tivemos foi um pacto entre as
forças políticas - iniciado ainda em 1974 e capitaneado pelo general
Presidente Ernesto Geisel e seu senhor de todas as maldades, Gol-
bery do Couto e Silva. O resultado foi um processo em que lenta-
mente se foi inserindo alguns elementos do ritual democrático nas
instituições sem, no entanto, reformá-las e, principalmente, manten-
do intocada a espinha dorsal do regime ditatorial: o poder militar.
A democracia é a junção dos mecanismos associados às formas
de decidir em favor dos interesses sociais. Democracia são as normas
que regem o bom funcionamento das instituições. Assim, é fácil ver
que não temos uma democracia consolidada. A forma como a dita-
dura foi sendo encerrada não permitiu que tivéssemos um processo
em que sociedade civil e Estado firmassem um compromisso para
banir as prerrogativas que os militares atribuíram para si durante 21
anos. Como na ditadura, seguindo a lógica da Doutrina de Seguran-
ça Nacional que dizia que o inimigo a se combater estava dentro do
território nacional e não fora dele, as Forças Armadas continuaram

174
mais preocupadas com a segurança interna do que com a externa.
Vivemos um momento difícil por não percebermos o quanto ain-
da temos que avançar no sentido de efetivarmos uma democracia em
que aqueles que detêm a força irão obedecer aos que não a tem. Os
atores políticos não devem ceder às tentações de mudar as regras do
jogo político enquanto ele estiver sendo jogado. Devem se submeter
às incertezas democráticas dos resultados. Esse é o nosso maior gar-
galo político. Falta-nos, ainda, aceitar que democracia deve ter um
valor universal e rejeitarmos aquele dito do humorista Millôr Fer-
nandes que diz que “ditadura é você mandar em mim e democracia
sou eu mandar em você!”.

175
HOUVE UMA ÉPOCA EM QUE
NOS MOBILIZAMOS (QUINTA-
FEIRA, 25 DE ABRIL DE 2013)

Hoje, eu estou um tanto quanto saudosista para falar de um


tempo em que ainda éramos capazes de nos mobilizarmos para ir-
mos às ruas protestar e reivindicar pelo que considerávamos legal e
legítimo. Eu tinha 15 anos em 1984 e ainda enxergava o mundo pe-
las cores monocromáticas de um sistema educacional militarizado.
Mas, foi exatamente em 1984 que eclodiu o Movimento das Diretas
Já! que me salvou dos efeitos deletérios da ditadura militar. Em pou-
cos meses aprendi mais sobre participação política do que em todos
os anos em que fui obrigado a estudar Educação Moral e Cívica e
Organização Social e Política do Brasil.
Foi num 25 de abril, de 1984, que o Congresso Nacional rejei-
tou a emenda Dante de Oliveira que pretendia instituir o voto direto
para presidente da República. Havia uma enorme esperança de que
a emenda fosse aprovada. A sociedade se mobilizou em torno dis-
so. E não sem razão, pois desde o ano de 1960 que não votávamos
para Presidente. Ver a emenda Dante de Oliveira ser aprovada no
Congresso significava, para nós, que estávamos de fato encerrando
o ciclo da ditadura militar e começando a instituir uma democracia.
Já em 1979, os militares aceitavam algumas liberdades democrá-
ticas, com a extinção do bipartidarismo e o surgimento de novos
partidos. Com eles, pode-se atuar politicamente e isso contribuiu
para as futuras mobilizações. Em 1982 houve eleições para governos
estaduais e para o parlamento. Leonel Brizola, inimigo figadal dos

176
militares, se elegeu governador do Rio de Janeiro. Foi assim que a
oposição ao regime militar articulou uma lei para que se instituísse
o voto direto. A sociedade, que tinha uma demanda represada por
participação política de quase 15 anos, viu naquela articulação a pos-
sibilidade de ir às ruas não só para dizer que queria votar para presi-
dente como para gritar todas as suas necessidades.
A emenda Dante de Oliveira foi o estopim que precisávamos para
ganhar às ruas. Lideranças políticas de oposição e da esquerda reali-
zavam comícios em defesa da emenda e do direito de escolher o pre-
sidente. As “Diretas Já!” foi um dos maiores movimentos políticos
de nossa república. Algo inusitado acontecia naqueles comícios, pois
podíamos ver os perseguidos pela ditadura militar ao lado de artistas
e intelectuais, além de lideranças políticas.
Pela televisão eu via tanta gente boa nos palanques que só podia
achar que aquilo era algo muito bom. Eu vibrava quando via Sócra-
tes, Casagrande e Wladimir, os craques da democracia corintiana,
defendendo as “Diretas Já!”. Em janeiro de 1984, 500.000 pessoas se
reuniram na Praça da Sé, em São Paulo, para gritar “Diretas Já!”. Em
março, um milhão de pessoas tomaram as ruas do centro do Rio
de Janeiro. Foi quando a Globo teve que falar das Diretas no Jornal
Nacional.
Inclusive, foi com o Comício do Rio que Chico Buarque compôs
“Pelas Tabelas”, onde dizia: “Quando vi todo mundo na rua de blusa
amarela, achei que era ela puxando o cordão”. Chico não falava de
uma mulher, se referia à revolução que, por sinal, nunca veio. Os
comícios aconteciam em todo país. Muitos se assustavam, pois ainda
vivíamos numa ditadura, e aquelas bandeiras vermelhas lembravam
os acontecimentos de antes do golpe de 1964. Eu tive a sorte de parti-
cipar de dois desses comícios. O primeiro aqui em Campina Grande.
Uma multidão tomou toda a extensão que vai da Praça da Bandeira
até o começo da Rua João Pessoa. Eu nunca tinha visto tantas pesso-
as de vermelho e de amarelo juntas.
Aquela multidão sem fim podia se expressar livremente. Podia
falar e defender suas ideias sem se preocupar muito com a repressão.
Aquela foi uma das melhores aulas de política que eu tive em toda a
minha vida. Em João Pessoa, no Ponto Cem Réis, vi um mundaréu

177
de gente gritando sem parar: “um, dois, três, quatro, cinco, mil,
eu quero votar para presidente do Brasil!”. Mas, e com tudo isso, a
“Emenda Dante de Oliveira” foi rejeitada no Congresso na noite de
25 de abril por uma diferença de 22 votos e com absurda quantidade
de abstenções. Em 1985 tivemos eleições indiretas e foi aí que Tancre-
do Neves foi eleito presidente.
Na manhã do dia 26/04/1984, no caminho para a escola, vi um
senhor chorando. Perguntei o que estava acontecendo e ele me disse,
irado, que chorava porque “os safados dos deputados tinham rejeita-
do a Emenda Dante de Oliveira”. Essa foi outra grande lição que tive.
Aprendi o quanto é perigoso, na política, frustrar expectativas e re-
presar demandas. Mesmo que com a emenda sendo rejeitada, aquilo
tudo foi útil para minha geração que pode aprender que participar
da vida política do país é uma necessidade.

178
O PARTIDO DAS FARDAS VERDES
VAI ÀS URNAS (QUINTA-FEIRA,
13 DE DEZEMBRO DE 2013)

Desde que nos tornamos uma República, no final do século


XIX, que os militares brasileiros participam ativamente das coisas
da política. Aliás, a República foi instituída por um golpe de for-
ça militarizado. Em 1922, os tenentes do Exército se lançaram num
movimento que definiu o modus operandi autoritário dos milita-
res intervirem na política. Entre as décadas de 1930 e 1960, eles se
acostumaram a disputar eleições. Os generais Eurico Gaspar Dutra,
Eduardo Gomes, Henrique Teixeira Lott e Juarez Távora foram todos
candidatos a presidente da República, mesmo que apenas Dutra te-
nha sido eleito em 1945.
Fiéis a essa tradição, um grupo de militares acabaram de criar o
Partido Militar Brasileiro que já teria 490 mil filiados. Faltariam 80
mil filiados para que o PMB pudesse requerer, junto ao TSE, o regis-
tro para atuar como partido político. Por enquanto, e a exemplo do
que acontece com os membros da REDE de Marina Silva abrigados
no PSB, políticos e militantes do PMB se acoitaram no PRTB, para
poderem disputar as eleições 2014. Curioso, é que o PMB não tem a
estrutura oficial para ser aceito no sistema político, mas já tem can-
didato a presidente. Trata-se do General Augusto Heleno Ribeiro, de
66 anos, que foi comandante militar da Amazônia e da Missão para
Estabilização do Haiti. Não se sabe se ele pode ser candidato. Para
isso, teria que ter se filiado a algum partido até outubro de 2013. Gal.
Heleno não afirma, nem nega, se cumpriu as exigências eleitorais.

179
Mas, e se ele tiver se filiado, discretamente, ao PRTB?
Gal. Heleno é o típico militar político, mesmo que as análises po-
líticas mais conservadoras ou superficiais não tenham conseguido
detectá-lo. Ele não aparece nas pesquisas eleitorais, até porque não
dispõem de uma estrutura partidária oficial que lhe dê lastro, mas é
um desses fenômenos da internet. Ele possui um blog, além de perfis
no Facebook e no Twitter, por onde se manifesta sobre tudo e, claro,
sobre política. Inclusive, existe um movimento virtual intitulado
“General Heleno Presidente”. Segundo o Capitão do Exército Augus-
to Rosa, ativo aliado de Heleno, este movimento conta com quase 6
milhões de apoios manifestados virtualmente. Apesar de que, o que
conta mesmo são as fichas de filiação devidamente assinadas.
Gal. Heleno é, hoje, a liderança política mais ativa entre os mi-
litares. Ele se tornou uma espécie de porta-voz das associações de
militares da reserva, que refletem em cores vivas o pensamento da
caserna. Heleno faz comentários que agradam os setores mais con-
servadores. Certa vez ele afirmou que a política indigenista do gover-
no Lula era “lamentável, para não dizer caótica”. Por causa disso, foi
exonerado do comando militar da Amazônia. Em outro momento,
ironizou o que chamou de “passado ilibado de Renan Calheiros” e
chamou o Mercosul um “mero tratado bolivariano”. Ele não perde
tempo em criticar a política econômica do ministro Guido Mantega
e até gosta de fazer piadas. Outro dia, definiu José Dirceu como “o
maior colecionador de rabos presos da República”. Heleno se auto
define como parte de um “movimento anti-PT”. Enquanto estava na
ativa, evitava comentários sobre o golpe civil militar de 1964. Mas,
ao ir para a reserva, passou a saudá-lo como movimento ou como a
“revolução de 64”. Mesmo se dizendo a favor dos valores democráti-
cos, sempre se refere ao ciclo dos governos militares como o melhor
momento que já tivemos na política.
Gal. Heleno e o PMB atraem interesses difusos e atenções díspa-
res. O deputado Jair Bolsonaro (PP) trabalha ativamente na organi-
zação do PMB no Rio de Janeiro. Mas, nem deveria, pois o que ele
quer mesmo é implantar uma ditadura sem partidos. O Cel. Mar-
cos Pontes, o astronauta brasileiro, atua na organização do PMB em
São Paulo e já disse que fará parte de seu diretório assim que ele for

180
criado. O fato é que a ideologia conservadora do PMB atrai muita
gente. Quem é contra as cotas, ao aborto e ao casamento entre pes-
soas do mesmo sexo, vai encontrar no PMB entusiasmada defesa das
bandeiras conservadoras.
Para o PMB as investigações conduzidas pelas Comissões da
Verdade, em torno dos crimes cometidos no Regime Militar, não
passam de puro revanchismo. Claro, o Gal. Heleno já se manifestou
contrário à revisão da Lei da Anistia. O fato é que os militares têm,
sim, direito a se manifestarem, afinal vivemos em uma democracia,
frágil, mas uma democracia. A questão é: os militares pertencem a
um poder coercitivo e o argumento deles é a força. Poderiam eles
se envolver nos assuntos dos poderes constituídos que usam o voto
para alicerçar seus argumentos? Quando aqueles que seguram o fuzil
passam a querer segurar, também, a urna eleitoral é sinal de que a
democracia está cedendo espaço para outro tipo de sistema político.

181
POBRES DE NÓS, QUE NASCEMOS
PARA SER GOLEADOS (QUARTA-
FEIRA, 09 DE JULHO DE 2014)

Ontem, depois que a Alemanha fez o 5º ou o 6º gol, um amigo


me mandou uma mensagem dizendo que o vendaval que varria a
Seleção Brasileira era um castigo dos deuses do futebol, sobre nós,
que definitivamente desaprendemos a jogar futebol. Eu já tinha dito,
numa dessas colunas sobre a Copa do Mundo, que os deuses do fu-
tebol estavam nos brindando, com tantos jogos maravilhosos, numa
espécie de compensação por tudo que tivemos que aturar para ter
esta Copa no Brasil. Certo, vamos continuar discutindo se é cer-
to ou errado torcer contra a seleção brasileira. Muitos acham que
não haveria justificativa para torcer contra a Seleção, por causa dos
desmandos que vimos na organização da Copa. Os argentinos, por
exemplo, acham que é uma tremenda imbecilidade torcer contra a
seleção de seu próprio.
O fato é que não termos os tais legados sociais não deveria nos
impedir de ganharmos o hexa campeonato mundial. Ou, dito de ou-
tra forma, perder em campo não poderia ser uma espécie de castigo
pelos muitos problemas que ocorrem fora de campo. O fato é que a
Seleção Brasileira perdeu, aliás, foi humilhada, execrada em campo,
porque não sabia o que fazer para ganhar. Quando a Alemanha abriu
sua artilharia pesada sobre a meta do goleiro Júlio Cesar não havia
o que fazer. Quando a tragédia se configurou, alguém perguntou,
numa rede social, se não tinha como acabar aquele jogo ali mesmo,
ainda no primeiro tempo. Eu cheguei a pensar que a solução poderia

182
ser a metade do time desmaiar e a outra metade fugir de campo. O
José Simão, da Folha\Uol, disse que bom mesmo é no UFC, onde o
juiz manda parar o combate quando percebe que um dos lutadores
está correndo riscos de vida. Essa foi só mais uma das muitas piadas
que vi nas redes sociais logo após o massacre.
Quando o valente rubro-negro alemão se impôs sobre o amarelo
covarde brasileiro, eu só pensava num jeito de acabar com aquela
saraivada de gols. Aquilo era surreal. Nem Nelson Rodrigues, em
seus delírios literários, pensaria algo tão cruel. Veio-me à mente
a Blitzkrieg, o termo em alemão para a “guerra-relâmpago”. Na 2ª
Guerra Mundial, o exército alemão atacava seus inimigos com forças
móveis, em ataques rápidos e de surpresa, de forma que o adversário
não tivesse como reagir. Quando a seleção alemã lançou sua guer-
ra relâmpago sobre o time brasileiro foi triste ver aquele jogadores,
que nunca foram soldados, acovardados, atemorizados, perdido no
campo de batalha. Eu sentia vergonha, da vergonha que eles sentiam.
Pior, era ver o comandante Felipão, pálido, sentado no banco de re-
servas, falando com seu fiel escudeiro, mais preocupado em cobrir
a boca, para que não lhe fizessem a leitura labial, do que em tomar
alguma providência para estancar a sangria de gols.
O que vimos ontem foi o antifutebol. E, por favor, não me venham
falar de uma suposta falta que Neymar teria feito, pois ele não fez lá
muito por merecer o título de melhor jogador da Copa enquanto
esteve em campo. Aliás, eu vi uma vantagem na saída prematura de
Neymar. É que a tal “neymardependência” chegou ao ponto extremo
da imbecilidade, misturada a um nacionalismo estulto, capitaneado
por Galvão Bueno e seus asseclas. O problema não foi ausência de
Neymar com suas criancices. Também não se sentiu falta daquele
tresloucado zagueiro capitão, Thiago Silva. O problema da seleção é
a total e completa falta de força coletiva. A seleção nunca foi, nesta
copa, um time.
Como ser um time sem promover o entrosamento? Bastou a
Alemanha apertar a marcação para o Brasil confessar suas maiores
fragilidades com aqueles chutões para frente. O que víamos? Uns
pobres diabos sem criação, sem força, sem conjunto. O decanta-
do descontrole emocional foi à senha para que os mais experientes

183
entendessem que o fracasso viria, apesar de que nem o mais pessi-
mista dos torcedores preveria algo tão desgraçadamente trágico.
As situações que vimos na sofrida vitória por pênaltis sobre o
Chile, quando Thiago Silva chorou descontroladamente com as mãos
na cabeça, nos avisavam que em algum momento perderíamos. Mas,
quem imaginaria que seria desse jeito acachapante? Agora, não res-
ta mais nada a fazer, até porque duvido que algum brasileiro esteja
interessado em saber se a seleção ficará em 3º ou 4º lugar. Talvez,
possamos aprender algo com essa duríssima lição. Talvez possamos
reaprender a joga o futebol de outrora. Talvez, dirigentes do futebol
brasileiro entendam que precisamos mudar, pois a Copa vai acabar e
vamos voltar a viver a dura realidade de um futebol medíocre como
esse que se vem praticando no Brasil ano após ano.
A goleada de ontem me fez lembrar muitas coisas ruins. Fez-me
lembrar de tantas outras goleadas que já sofremos. Na Educação, no
IDH, no desenvolvimento econômico. A goleada de ontem foi só
mais uma das tantas que já levamos. Os 7 gols de ontem são nada,
se lembrarmos que só a Alemanha já ganhou 101 prêmios Nobel. A
Holanda ganhou 19, a Argentina 5 e nós nunca ganhamos um prêmio
Nobel sequer. Pobres de nós, Thiagos, Freds, Hulks e Marcelos que
nascemos para ser goleados.

184
HOJE É A FESTA DA DEMOCRACIA?
NÃO, É O DIA DA ELEIÇÃO! (DOMINGO,
26 DE OUTUBRO DE 2014)

Hoje é domingo, é dia de eleição. Aliás, não seria melhor que


a eleição acontecesse em outro dia da semana? Pois domingo é um
dia para ficar em casa, descansando. O domingo existe para que fi-
quemos desacelerados nem que seja torcendo para que ele acabe
logo. Não que eu não goste de votar. Na verdade, não se trata de gos-
tar ou não. Trata-se, de realizar um direito, eu diria mesmo cumprir
um dever. Certo, mas hoje é domingo e tem eleição. Estamos agora
nos preparando para ir às urnas. Para votar é preciso não esquecer
algumas coisas. Primeiro, claro, ninguém pode deixar de levar con-
sigo o título de eleitor.
É preciso não esquecer, também, que hoje vamos escolher as pes-
soas que vão executar nossos interesses e direitos, além de nossos
deveres. É sempre bom lembrar que nosso sistema político dá aos
eleitos uma liberdade de ação inimaginável. Por isso eu sugiro que
você, caro ouvinte, guarde num lugar seguro aquela colinha que le-
vou para votar. Procure não esquecer, pelos próximos quatro anos,
em quem votou. É que se você não lembra em quem votou como vai
poder cobrar alguma coisa de alguém. Eu sei que muita gente prefere
mesmo é esquecer em quem votou por ter vendido o voto a um can-
didato desqualificado. É que corrompido e corruptor sabem bem que
estão fazendo algo errado, então é melhor esquecer.
É que na relação de compra e venda do voto, aquele que ven-
deu é tão responsável quanto o que comprou. Imagine quando você

185
entra num supermercado para adquirir um iogurte. Após efetuar o
pagamento, este produto pertence exclusivamente a você. Ao pagar,
você adquiriu o direito de fazer o que bem quiser com ele, inclusive
derramá-lo na pia de sua cozinha. Quando você vende seu voto para
um político está fazendo uma transferência de propriedade, assim
como o iogurte que se compra. O político pode fazer o que quiser
com os votos que pagou para ter, até jogá-los fora depois de eleito.
Se você já vendeu seu voto, paciência. Se ficou a noite passada, pelas
calçadas, esperando que viessem comprar seu voto, não adianta fazer
mais nada.
Aos olhos do político que comprou seu voto você não represen-
ta absolutamente mais nada. Se você trocou seu voto por um saco
de cimento, por tijolos, remédios e consultas médicas, por gasolina,
ou seja lá o que for, saiba que ele está perdido. O comprador fará
com seu voto o que bem quiser. E, lamento informar, pelos próximos
quatro anos você não poderá fazer nada. Não adianta reclamar, di-
zer que todo político é ladrão. Vai ter que esperar a próxima eleição
para, quem sabe, adotar outra postura. Se você conseguiu 200 ou 300
votos para um candidato em troca de um emprego público, de um
cargo de assessor ou mesmo de substancial quantia em dinheiro aí,
não tem jeito, não dá para saber se nesta relação você é vendedor ou
comprador.
Se você é do tipo de eleitor que não vende o voto, que está cons-
ciente de sua escolha, ótimo, isso é muito bom. Fossem todos os elei-
tores como você, teríamos um sistema político robusto e respeitável.
Se você está, ainda, indeciso não precisa se preocupar ou mesmo
se culpar, pois é melhor ter dúvidas, ficar indeciso, do que votar no
primeiro político que bateu a sua porta. Estar indeciso não é ruim.
Significa que você oferece o benefício da dúvida aos candidatos. E,
cá entre nós, tem que ser assim mesmo, pois vamos entregar o cofre
de nosso Estado e do nosso país para um desses candidatos, então se
permita as dúvidas que bem quiser.
Na eleição vale a regra do trânsito que diz que na dúvida não
ultrapasse. Se você segue com dúvidas, se os candidatos não foram
capazes de tirá-las, tem na urna uma opção para o eleitor indeciso.
Quando você sair de casa, em direção ao seu local de votação,

186
poderá ver homens armados, com roupas verdes, camufladas. Não
se preocupe, eles não estão indo para uma guerra. É que nossa de-
mocracia é tão frágil que precisa da força para se sustentar. Eu tenho
uma sugestão. Afaste-se dos que encaram a eleição como uma festa,
pois amanhã eles terão esquecido tudo que aconteceu hoje. Convém
evitar contato com os que dependem da vitória de um candidato
para sustentarem a si e a sua família.
Como eles estão lutando pela sobrevivência são capazes de tudo.
Eles podem ficar raivosos se, por exemplo, perceberem que o candi-
dato deles vai perder a eleição. Esse tipo de eleitor encara a eleição
como uma luta de vida e morte. Eu sei que dar um conselho é coisa
de grande responsabilidade. Mas, eu vou correr o risco. Não discuta
com quem quer que seja porque esta pessoa votou em um adversário
de seu candidato, pois os adversários de hoje podem ser os aliados de
amanhã. Nunca, nunca mesmo, discuta com um idiota, por causa do
resultado da eleição, pois ele lhe fará descer ao nível dele e, por certo,
ganhará a parada por ter bem mais experiência do que você.

187
RICARDO, A ANATOMIA DE UMA VITÓRIA
(TERÇA-FEIRA, 28 DE OUTUBRO DE 2014)

Ricardo Coutinho foi reeleito, para governar a Paraíba en-


tre 2015 e 2018, com 1.125.956 votos contra 1.014.393 votos de Cássio
Cunha Lima. A diferença foi de 111.563 votos. O caro ouvinte, por fa-
vor, guarde bem este número, pois ainda precisaremos dele. A vitória
do governador foi robusta. Se no 1º turno Ricardo havia ficado em
2º lugar, com aqueles 28.388 votos de diferença para Cássio, agora a
virada foi absoluta. Claro, eu estou falando da vitória nas urnas, pois
sempre se pode esperar um 3º turno judicial.
No 1º turno, Ricardo ganhou em 99 municípios paraibanos con-
tra 124 cidades onde Cássio ganhou. Agora tivemos uma inversão.
Ricardo foi mais bem votado em 117 cidades contra 106 de Cássio.
Percentualmente falando, Ricardo teve 52.61% dos votos válidos
e Cássio teve 47.39%. Em termos percentuais, esta diferença foi de
5.22%. Guarde, também, esse percentual, pois é ele que nos explica
porque Ricardo, afinal, ganhou a eleição.
Nos dois turnos Ricardo venceu em João Pessoa e Cássio ganhou
em Campina Grande. Inclusive, uma reportagem do UOL/FOLHA
chamou Campina de “ilha tucana”. É que nossa cidade foi a única da
Paraíba onde Cássio e Aécio ganharam nos dois turnos. Um dos da-
dos que explica a vitória de Ricardo é que em João Pessoa o governa-
dor aumentou a diferença de votos para Cássio entre o 1º e 2º turnos.
No 1º turno a diferença foi de 76.253 votos, aumentando para 90.774
votos no 2º turno. Já em Campina Grande a diferença encurtou. No
1º turno, Cássio teve 63.854 votos a mais do que Ricardo e no 2º turno

188
teve 56.609 votos a mais. Ricardo aumentou sua vantagem em seu
reduto eleitoral e diminuiu sua desvantagem no reduto de Cássio.
Mas, onde foi que Ricardo buscou os votos necessários para ul-
trapassar Cássio e ganhar a eleição? Elementar, meu caro ouvinte.
A virada eleitoral de Ricardo se ancorou nos votos que o PMDB lhe
transferiu do 1º para o 2º turno. Lembra aquela diferença de 111.563
votos que Ricardo teve sobre Cássio ao final do 2º turno? Sabe de
onde ela veio? Dos votos que Vital Filho teve. O senador do PMDB
terminou o 1º turno com exatos 106.162 votos ou 5.22% dos votos
válidos. Coincidência ou não, 5.22% foi a diferença de Ricardo para
Cássio como já vimos. É bom lembrar que PSOL e PSTU se declaram
neutros no 2º turno e que o PROS, do Major Fábio, declarou apoio a
Cássio. Ou seja, daí não deve ter saído votos para Ricardo.
O PMDB transferiu boa parte seu capital eleitoral do 1º turno
para Ricardo. A família Vital, José Maranhão e outras lideranças fo-
ram à luta em favor de Ricardo neste 2º turno. Vejamos, por exemplo,
o caso da cidade de Guarabira. Lá, Cássio ganhou no 1º turno com
uma diferença de 2.560 votos e perdeu no 2º turno com uma dife-
rença de 1.331 votos. Aí tivemos o efeito PMDB com o trabalho do
ex-governador Roberto Paulino. Isso significa que PMDB vai fincar
sua presença no 2º governo de Ricardo e cobrar reciprocidade do
governador nas eleições municipais de 2016 pelo Estado afora, prin-
cipalmente em Campina Grande e em João Pessoa.
Não fosse o PT e o PMDB Ricardo provavelmente teria perdido.
O benefício disso é que o governador poderá ter uma relação mais
equilibrada com a Assembleia Legislativa em 2015, ao contrário do
que foi até agora. O custo disso é que a fatura do PMDB e do PT,
já naturalmente alta, vai crescer exponencialmente. Não vai faltar
quem queira lembrar a Ricardo que se não fosse o PMDB e o PT ele
não conseguiria seu segundo mandato.
Mas, Ricardo teve, sim, seus próprios méritos nessa vitória. O pri-
meiro deles foi ter mantido a avaliação positiva de seu governo sem-
pre em alta, mesmo quando os índices de rejeição lhe desafiavam.
Outro mérito de Ricardo foi ter conseguido entender o dilema dessa
eleição. O governador viu o desejo de mudança do eleitor e viu, tam-
bém, que o eleitor estava disposto a aceitar que a situação propusesse

189
essa mudança. Ricardo soube como ninguém lançar mão da absur-
da vantagem de ser candidato a reeleição sem precisar se afastar do
cargo de governador. Ele foi paulatinamente fazendo a transição do
governador/candidato para o candidato/governador.
Outro fator determinante foi que Ricardo fez uma campanha ino-
vadora em termos de formato midiático em oposição à campanha
eleitoral de Cássio Cunha Lima que não soube se renovar, que usou e
abusou dos velhos clichês midiáticos. Um exemplo disso foi a sacada
marqueteira de transformar um discurso de Ricardo em um rapp.
Ricardo aparecia no guia eleitoral discursando sob efeitos sonoros
que atraiam o eleitorado, pois tornavam dinâmico o que tinha tudo
para ser monótono. Ricardo, bem assessorado que foi, nos dava a
impressão de ser a candidatura nova desafiando as velhas estruturas
de poder. Parecia, por vezes, não ser o candidato à reeleição. Dessa
forma, impunha a Cássio o perfil da candidatura velha, atrasada.

190
CÁSSIO, A ANATOMIA DE UMA DERROTA
(QUARTA-FEIRA, 29 DE OUTUBRO DE 2014)

As eleições paraibanas desse ano entrarão para nossa histó-


ria política por um fato representativo, que promete ter implicações
futuras. Falo da primeira derrota sofrida pelo senador Cássio Cunha
Lima em toda sua carreira política. Desde que Cássio se elegeu de-
putado federal constituinte, em 1986, com apenas 23 anos de ida-
de, nunca havia perdido uma eleição sequer. É certo que ele sofreu
reverses eleitorais apoiando pessoas do seu próprio grupo político.
Nas eleições de 2004 e 2008, Cássio apoiou, com todo seu prestí-
gio político, Rômulo Gouveia e viu seus principais opositores, do
PMDB, elegerem Veneziano Vital em seu reduto eleitoral, Campina
Grande, também conhecida como a “ilha tucana”.
A quem diga que foi neste processo que Cássio começou a expe-
rimentar o desgaste político que agora parece ser mais nítido. Obvia-
mente, não podemos esquecer a cassação de 2009, algo que abateu
o senador e o marcou profundamente. A eleição de 2010, quando
Cássio teve mais de um milhão de votos para o senado, compõe essa
carreira com bem mais altos do que baixos. O fato é que desde a
cassação o senador tem ido e voltado ao inferno dos políticos com a
questão da Lei da Ficha Limpa. Este ano, o senador se lançou candi-
dato ao governo. Acreditava que poderia apagar a tal cassação de seu
currículo se voltasse, eleito, ao governo do Estado. Lêdo engando,
tem coisas que ficam aferradas à carreira de um político.
Poucos duvidariam que com aquela estrondosa votação para o
Senado, Cássio não pudesse se candidatar e ser eleito. Supor que

191
aquele um milhão de votos, lá de 2010, se transfeririam automatica-
mente para a eleição desse ano, foi o primeiro erro de Cássio. É que
cada eleição tem sua própria dinâmica. Em 2010, muitos paraibanos
entenderam que votar em Cássio era uma forma de inocentá-lo. Mas,
a mãe de todos os erros de Cássio foi interromper a aliança política
com o governador Ricardo Coutinho. Aquilo que deveria acontecer
apenas em 2018 foi precipitado para atender interesses paroquiais e
a um sentimento de vingança que não combina com uma atividade
tão racional como a política.
Cássio seria o candidato natural, inconteste, na eleição para o go-
verno de 2018 que não poderia ter um candidato do calibre de Ri-
cardo Coutinho. Em 2018, Cássio concorreria sem ter um oponente
à altura, pois Ricardo estaria pleiteando uma cadeira ao Senado. O
segundo erro de Cássio foi supor que, rompendo com Ricardo, leva-
ria consigo uma legião de aliados e eleitores. Ele rompeu, mas quem
ficou no governo foi Ricardo que soube se utilizar das vantagens de
ser governador e candidato ao mesmo tempo. Cássio perdeu muitos
votos com aquilo que soou como uma brutal incoerência. Muitos
não aceitaram o fato dele ter pedido para que se gostasse de Ricardo,
em 2010, e agora ter pedido para que se odiasse o governador.
Vi e ouvi muita gente dizer que os motivos que levaram Cássio a
romper com Ricardo eram só dele, que não poderiam ser estendidos
para seus eleitores. Muitos não aceitaram que Cássio lhes pedisse de
volta aquilo que transferiram em 2010. Nessa campanha vimos um
Cássio Cunha Lima atípico. No lugar daquele político centrado, com
um discurso bem articulado, com plenos poderes no trato com as
massas, vimos alguém por vezes evasivo em suas respostas. O dis-
curso de Cássio foi pré-produzido e não sofreu mutações durante o
processo. Aliás, o formato midiático da campanha foi engessado por
um modelo, que já deu certo em outras épocas, mas que se mostrou
frágil frente às inovações apresentadas por Ricardo.
Nessa eleição, vimos um Cássio quase sempre irritado, impacien-
te. É como se ele não estivesse querendo mais cumprir o ritual que
tão bem desempenhou em outros momentos. Cássio fez essa cam-
panha bem mais com o fígado do que com o cérebro. Acompanhei
debates (no rádio e na TV) bem de perto e vi um Cássio Cunha Lima

192
no limite de suas forças e bastante intranquilo, ao contrário de um
Ricardo Coutinho que surpreendeu pela simpatia, pela calma e pa-
ciência em lidar com as pessoas. O terceiro erro de Cássio foi ter
subestimado seu eleitorado. Já vai um pouco distante o tempo em
que a massa eleitoral deixava-se guiar pelo líder sem lhe oferecer o
benefício da dúvida. Hoje, as massas até se deixam manobrar, desde
que conscientes disso.
Os políticos não entendem que a massa eleitoral tem vida própria
mesmo que aceite a liderança de alguém. Sim, persistem os meca-
nismos de controle do líder sobre a massa, mas ela pode ou não se
deixar manobrar a depender das conjunturas. Até este ano, Cássio
Cunha Lima ainda não tinha sido testado nas urnas enfrentando um
adversário realmente a sua altura e com qualidades que ele mesmo
não possui. Ricardo Coutinho se mostrou este concorrente e Cássio
não soube lidar com isso. Com tudo isso, estou querendo dizer que
Cássio está enfrentando o ocaso de sua carreira? Não, em absoluto.
Outros processos virão para que possamos verificar mais e melhor o
que por ora é tão somente uma derrota como outra qualquer.

193
COM O MURO, ÉRAMOS SEM GRAÇA
(TERÇA-FEIRA, 11 DE NOVEMBRO DE 2014)

Em 1989 eu tinha 20 anos e acreditava que o mundo se dividia


em dois grandes blocos. Um desses, o socialista, ficaria do lado es-
querdo do mundo e seria aquele onde as melhores coisas acontece-
riam. O outro, o capitalista, ficaria do lado direito e seria responsável
por todas as mazelas existentes na humanidade. O caro ouvinte, por
favor, não me entenda mal, mas era assim mesmo. A minha geração
foi, ainda é, extremada e paradoxal. Minha geração não é digital, é
analógica. Não somos randômicos. Para nós, que nascemos bem no
finalzinho dos anos 1960, as coisas são lineares, não aleatórios e se-
guem sempre uma ordem específica.
Fomos ensinados a pensar de forma maniqueísta. Gostemos ou
não, seguimos a doutrina que diz que o mundo seria dominado por
duas forças: a do bem e a do mal. Eu cresci e me formei sabendo que
existiam duas “Alemanhas”, uma capitalista e outra socialista, divi-
didas por um muro colossal. Para mim, a lógica do mundo era a do
Harvey “Duas Caras”, aquele inimigo do Batman, cujo rosto é me-
tade deformada metade humana. Para “Duas Caras”, e para minha
geração, não haveria meio-termo, ou se era bonito ou se era feio. Ou
se era triste ou se era alegre. Para nós, ou se era de esquerda ou se era
de direita. Ou se defendia a liberdade ou se lutava pela igualdade. Ou
se era pró-URSS ou se era a favor dos EUA. Ou se gostava de MPB ou
se adorava rock in roll. Mundinho chato esse em que vivíamos, não?
Mas, eis que o mundo girou e mudou. A globalização varreu nos-
sas certezas e verdades para bem longe e de uma forma impiedosa

194
derrubou o Muro de Berlim. Não mais do que repente aquela mu-
ralha, que parecia indestrutível, ruiu, desmoronou. Eu lembro bem
daquele 09/11/1989. Já tínhamos computadores, mas internet era coi-
sa de apenas se ouvir falar. As notícias nos chegavam ao vivo e em
cores, mas não em todo momento. Tínhamos que esperar o noticiá-
rio da noite para saber os fatos do dia. Foi no Jornal Nacional, ainda
com Cid Moreira, que Pedro Bial anunciou que o Muro de Berlim
estava caindo. E ele estava lá, bem ao lado dos manifestantes que
quebravam o muro.
Aquilo foi algo que jamais esqueci. Que nunca esquecerei. Ali
acontecia algo bem maior do que um simples fato. Naquele mo-
mento, pela TV, tive a sensação de que aquele fato transcenderia sua
época, que entraria para a história. Naquele momento eu não me
dava conta da extensão dos danos, muito menos dos benefícios. Só
depois entendi que a unificação das “Alemanhas” permitiu que as
gerações seguintes não fossem tão maniqueístas como a minha. O
fim da bipolarização entre dois sistemas permitiu que víssemos para
acima e além dos vários muros que nos cercavam. Foi quando eu
pude entender que liberdade e igualdade não são excludentes, pelo
contrário, se somam.
A crise do socialismo no Leste-Europeu, e o fim da URSS, expôs
que, por trás das maravilhas que a esquerda acreditava existir, havia
ditaduras que oprimiam seus cidadãos do mesmo jeito que se fazia
desse lado de cá do muro durante a Guerra Fria. Foi Mikhail Gor-
batchev, último líder da URSS, entre 1985 e 1991, quem deu uma boa
explicação para a queda do império vermelho soviético e a crise do
socialismo. Ele disse que o problema foi que seu país não deu conta
de algumas questões materiais. Gorbatchev dizia que o jovem sovié-
tico queria tomar Coca-Cola, ouvir rock in roll, usar calça jeans, mas
sem renunciar as suas conquistas. A contradição era tão profunda
que dentro daquele sistema ela não se resolveria. Solução? Derrubar
os muros.
Mas, o muro caiu por cima das ideologias da esquerda. Ele soter-
rou as certezas de uma esquerda que não estava preparada para mu-
dar. O problema é que não caiu um único tijolo no pé de um grande
capitalista. No final de 1989, o Papa João Paulo II comemorava o fim

195
do socialismo e agradecia a Deus por ter nos livrado do perigo ver-
melho, mas ele reconheceu que não seria bom deixar o mundo nas
mãos dos capitalistas. Se o socialismo não resolveu os problemas da
desigualdade e fez a liberdade sucumbir, imagine o capitalismo que
tem na desigualdade o seu oxigênio. Aquele mundinho chato pre-
to & branco acabou, mas esse que temos hoje não é lá essas coisas
também.
Eu só me dei conta disso tudo quando vi um velho comunista
chorando ao ver, na TV, aquele muro sendo demolido. É que a uto-
pia, a qual ele dedicou sua vida, ruía feito um castelo de areia e isso
doía muito nele e em mim também. O velho Maia não sobreviveu a
tudo isso, o coração dele não aguentou. Eu, como se percebe, sobre-
vivi. E sabe de uma coisa? Eu prefiro mesmo é este mundo em que
vivemos. Não temos certeza de nada, mas pelo menos temos alguma
liberdade. Há 25 anos atrás eu passava o tempo todo tendo que es-
colher entre uma coisa e outra. Eu não podia ouvir Chico Buarque e
The Beatles ao mesmo tempo. Como diria Belchior: “Não sou feliz,
mas não sou mudo: hoje eu canto muito mais”.

196
PORQUE NOSSAS LEIS NÃO PEGAM?
(QUINTA-FEIRA, 22 DE JANEIRO DE 2015)

Certa vez, eu estava participando de um encontro da Asso-


ciação Brasileira de Ciência Política, em Belo Horizonte, e fui assistir
um debate onde se discutia a maneira errática como nós brasileiros
lidamos com a lei. Os debatedores tratavam dessa questão, tão nos-
sa, de que tem lei que pega e lei que não pega. Muitos presentes ao
debate, inclusive eu, ríamos desse nosso jeito, nem um pouco repu-
blicano, de lidar com o instrumento que nos daria alguma civilida-
de. Foi quando uma professora uruguaia perguntou: “Porque vocês
aprovam leis se não estão dispostos a obedecê-las?”. Ninguém con-
seguiu responder, ou explicar, esse paradoxo político, tão próprio de
uma sociedade acostumada a lidar com as leis de forma instrumen-
talizada. Só cumprimos a lei quando ela nos favorece, do contrário a
ignoramos classicamente.
Alguém disse que a professora fez uma pergunta ingênua, pois,
afinal de contas, o Brasil é assim mesmo, tem muita coisa que não
se explica. A pergunta tanto não foi ingênua, que ninguém conse-
guiu responde-la. De fato, vivemos selecionando, aqui e ali, as leis
que vamos respeitar e as que vamos ignorar. É comum vermos par-
lamentares, no guia eleitoral, se auto intitulando campeões em apre-
sentação de projetos de lei. Mas, entre apresentar a minuta de uma
lei e ela vir a ser aprovada em plenário e sancionada pelo governo
vai uma distância siberiana. Não adianta transformar belos projetos
em leis reluzentes se elas não forem efetivas, eficazes, abrangentes,
vigorosas. A Reforma Política, por exemplo, será sempre um belo

197
projeto, um sonho dourado para alguns ou um enorme fardo para
outros, enquanto não for inserida em nossa Constituição. Por isso
que muitos, como eu, falam em revisão constitucional ao invés de
Reforma Política.
A eficácia da lei se refere à maneira como a vigência da norma
produz efeitos. Aqui, importa perceber a eficácia social, a aplicação
prática da lei. Um bom exemplo é quanto ao uso do cinto de segu-
rança que foi uma lei que, literalmente, pegou. Mas, o que importa
é sabermos como e porque uma lei vigente, com eficácia compro-
vada, não consegue ter efetividade. Porque temos leis que não são
capazes de causar efeito sobre o cidadão, que não se relacionam com
sua realidade? A lei que obrigava motoristas andarem com um kit
de primeiros socorros em seus carros é um exemplo de lei que não
pegou, que não teve efetividade. É que ela foi feita para favorecer o
fabricante dos kits que doara dinheiro para campanhas eleitorais.
A Assembleia Legislativa da Paraíba é, historicamente, pródiga
em criar leis que, mesmo vigentes, não são eficazes e muito me-
nos efetivas. Em quase 180 anos de história, o parlamento estadual
já criou mais de 10 mil leis. Nossos deputados estaduais são espe-
cialistas em criar leis sem serventia. O caro ouvinte sabe que a lei
10.246/2014 instituiu o “05 de outubro” como o Dia Estadual da De-
mocracia? Não? Pudera, isso nunca foi divulgado. Mas, vejam que lei
pomposa! O deputado Anísio Maia teve essa brilhante ideia porque
foi neste dia que as constituições federal e estadual foram promulga-
das. Para que mesmo precisamos ter um dia dedicado à democracia?
Será que é porque sempre esquecemos que vivemos numa? E o que
dizer da lei 6.597/1998, de autoria da ex-deputada Francisca Motta,
que instituiu a “Semana Estadual da Cidadania”? Mesma coisa. Se
somos cidadãos, temos que vivenciar a cidadania diariamente. Por-
que ter apenas uma semana dedicada a ela?
Na Paraíba, temos quase 300 leis para garantir direitos e proteger
crianças, adolescentes, mulheres, idosos, portadores de necessidades
especiais. Mas, para que tantas leis? Não bastaria se cobrar a efetivi-
dade do artigo 5º da Constituição Federal? Aquele mesmo que diz
que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natu-
reza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,

198
à igualdade...”. Bem melhor do que ter muitas leis, é fazer as mais
relevantes funcionarem. Os deputados dizem que as leis são pouco
efetivas, porque a população não as conhece. Sim, não se pode exigir
o cumprimento daquilo que não se sabe. Mas, não adianta produzir
leis no atacado se elas não atentam para nossa realidade no varejo. Se
ter leis em grande quantidade fosse garantia de alguma coisa, serí-
amos a sociedade mais democrática e desenvolvida do mundo. Este
não é nosso problema. A questão é que temos leis de mais e vontade
de segui-las de menos.

199
QUANTO VALE A SUA FÉ? (SEGUNDA-
FEIRA, 16 DE FEVEREIRO DE 2015)

Certa vez me dei ao trabalho de, discretamente, assistir al-


guns eventos dos muitos encontros religiosos que acontecem anual-
mente em Campina Grande. Não, eu não estava buscando uma des-
sas religiões, ou mesmo uma seita, para aderir. Minha motivação não
era espiritual, pois tenho um modo próprio de manifestar minhas
crenças sem que tenha que entrar em templos, catedrais, tendas, etc.
Na verdade, estava interessado em saber de que maneira os organiza-
dores desses eventos investem, ou gastam, as verbas que a Prefeitura
Municipal de Campina Grande lhes entrega a título de subvenção, ou
seja, em nome de uma ajuda do poder público.
Estava, ainda estou, interessado em saber como o nosso dinheiro
está sendo utilizado nesses eventos religiosos. E qual foi a minha sur-
presa quando, num desses eventos, ouvi a seguinte pregação proferi-
da por um líder religioso: “Vocês não tem que ter vergonha de ofer-
tar ao Senhor Jesus e podem fazer da maneira que quiserem. Se for
em dinheiro é só vir aqui ao lado. Mas, se for no cartão, nossos co-
laboradores irão até aí com as maquinetas”. Fiquei pasmo, incrédulo
em meio a tantos crentes. As pessoas estavam sendo convidadas (ou
seria intimadas?) a doarem seus dízimos através do cartão de crédito.
Será que poderiam parcelar o dízimo em dez vezes sem juros?
Naquele momento, lembrei as indulgências que os cristãos pa-
gavam, durante a Idade Média. Em seus primórdios, a Igreja impu-
nha pesadas penas morais e carnais para que os cristãos pudessem
remir seus pecados. A absolvição só era dada aos penitentes que

200
reconhecessem seus pecados e se submetessem a pesadas penas. Era
comum o pecador ser condenado a jejuar por 40 dias até o pôr do
sol, trajando molambos e usando o silício para autoflagelação. Já na
baixa Idade Média a Igreja comutou as penitências pelo pagamento
das indulgências. Tudo ficou mais fácil. Bastava reconhecer os peca-
dos e por ele pagar uma quantia que era, claro, depositada nos cofres
da própria Igreja.
Hoje, muitas religiões cobram de seus fiéis seguidores o chama-
do dízimo. Não deixa de ser uma forma das pessoas limparem suas
consciências. Também é uma maneira de não se perder a esperança
de ir para o reino do Todo Poderoso após a morte. Mas, se é assim,
porque esses eventos precisam de dinheiro público para serem re-
alizados? Não bastaria as Igrejas pedirem a contribuição dos seus
seguidores para a montagem de seus eventos? Baseada em que nossa
prefeitura faz essas doações?
Desde que tomou posse o prefeito Romero Rodrigues afirma que,
“apesar das dificuldades, o governo não deixaria de apoiar eventos
que projetam Campina no cenário turístico nacional”. Certo, even-
tos injetam recursos na economia da cidade. Mas, a única forma da
Prefeitura contribuir com esses eventos é entregando recursos finan-
ceiros aos seus promotores? Não custa lembrar que a maioria dos
eventos são autossustentáveis do ponto de vista econômico. O En-
contro da Consciência Cristão, um evento que congrega quase todas
as Igrejas evangélicas da cidade, e que acontece no Parque do Povo,
recebeu, a título de subvenção, a quantia de R$ 160 mil.
O evento é patrocinado por empresas e os evangélicos lotam suas
dependências pagando ingressos e doando dízimos. Um dos coorde-
nadores do evento, o pasto Euder Faber, tem uma justificativa, apa-
rentemente plausível, para a subvenção da prefeitura. No ano pas-
sado, ele afirmou que “a ação do prefeito merece reconhecimento,
pois contribui para o crescimento espiritual do povo de Campina
Grande”. Mas, porque o poder público deve promover o crescimento
espiritual de seus cidadãos? Ao que me conste, cabe à prefeitura pro-
mover o desenvolvimento econômico e social de seus cidadãos. Até
porque, nunca esqueçamos isso, o Estado brasileiro é constitucio-
nalmente laico, ou seja, ele não pode aceitar ou receber influências

201
religiosas.
A prefeitura já dá grande contribuição para o evento evangélico
quando cede o Parque, que é de todo o povo de Campina Grande,
não apenas dos evangélicos, para que um determinado ramo reli-
gioso promova seu evento. É estranho que o local onde se realiza
nossa festa maior, o São João, seja privatizado por alguns dias para
a realização de um evento religioso. Eu fico me perguntando se a
coordenação do evento tem alguma contrapartida a dar a prefeitura.
O fato é que todos os anos, quando da realização desses eventos, fico
a me perguntar se é realmente necessário pagar para se ter fé. Como
diria Gilberto Gil, para falar com Deus, é preciso ficar a sós, apagar
a luz, calar a voz.

202
CAPÍTULO
CAPÍTULOIVIV
POST
POSTSCRIPTUM
SCRIPTUMOU OU
SCRIPTUM
SCRIPTUMANTE
ANTE- -
AsAs
sobras dodo
sobras “cesto departamento”
“cesto departamento”

203
O "CESTO DEPARTAMENTO"

Remexendo no “cesto departamento” (um arquivo para onde


vão coisas que finjo que estou jogando na lixeira) encontrei esses
artigos, escritos entre 1998 e 2001, e que nunca foram publicados.
Não sei, não lembro, porque não “postei” o primeiro, “O que esperar
dos eleitos?”. Talvez, ele tenha se mostrado tão frágil, que eu mesmo
tenha preferido esquecê-lo. Acontece! Os outros dois foram censura-
dos pelo jornal, com o qual contribuía semanalmente. Sobre o artigo
“A TV que faz chorar”, a justificativa foi que eu estaria (SIC) “indo de
encontro à TV da qual a empresa é associada”. É que o jornal, onde
eu publicava, era afiliado de umas das emissoras que havia criticado.
De fato, havia mesmo, mas ... acontece, também! Sobre o artigo “Fé e
iogurtes”, não lembro que justificativa se deu para o artigo ter “caído”,
mas desconfio que exploradores da fé alheia não gostariam do texto.
Não queria publicar estes três artigos, pois os considerei “datados”,
mas sob os incentivos de minha editora\filha\leitora Lívia Freitas,
resolvi que eles deviam vir a público. Pensando bem, eles não estão
tão obsoletos assim!

205
O QUE ESPERAR DOS ELEITOS? (1998)

Chama atenção a quantidade de votos brancos\nulos para


governador e senador nesta eleição. Para se ter ideia, o 2° colocado
para governador, Gilvan Freire, teve 175.234 votos, enquanto bran-
cos\nulos somaram 588 mil votos. Uma explicação para isso é a fal-
ta de boas opções apresentadas aos eleitores. A apregoada falta de
interesse do povo com as coisas da política é frágil, pois gostamos
tanto de eleição quanto de futebol e novelas. Tivemos um processo
eleitoral onde o governador/candidato, José Maranhão, monopoli-
zou as eleições. Outra questão é que não houve renovação para a
bancada paraibana na Câmara Federal, no Senado e na Assembleia
Legislativa. Sempre se poderá dizer que muitos não se reelegeram e
que outros vão ao parlamento pela primeira vez. Mas, não é desse
tipo de renovação que falo.
A renovação que importa é a de ideias e práticas políticas. Não há
nada de novo sobre o senador e os 12 deputados federais eleitos. As
práticas são as mesmas desde o começo do século, mudam apenas a
forma de realizá-las. Um distribui consultas médicas em programas
de rádio, outro mal sabe expressar-se, um terceiro ocupou o guia
eleitoral para ensinar como votar nele e ainda tem o que se diz her-
deiro político de um outro que já faleceu. Sem contar o «senador do
povão» que facilmente transita entre o trágico e o cômico.
O que estes senhores irão fazer em Brasília? Será que sabem para
que serve um mandato? Eles dizem que vão lutar por verbas para
a Paraíba, mas e quanto a “Reforma Política”, que traz a fidelidade
partidária e a revisão da reeleição dos prefeitos, e a questão fiscal,

206
criando e aumentando impostos, além da administrativa para de-
mitir funcionários públicos? E sobre a reforma da previdência so-
cial, eles sabem o que fazer? Foi possível, durante as eleições, ver o
que eles tem a dizer sobre estes assuntos? Sabemos que um único
voto, de um deles, pode mudar totalmente nossas vidas. É por isso
que não podemos ficar impassíveis, esperando que eles “lutem pela
Paraíba” da forma que bem quiserem, pois não foram eleitos para
distribuir cadeiras de rodas e nebulizadores, e sim para envolverem-
se nos grandes temas nacionais, como nossos representantes. Além
disso, estes senhores, que serão protegidos pelo manto da imunida-
de parlamentar, precisam ser monitorados pela sociedade civil, caso
contrário teremos que viver apenas com a renovação de nomes, não
de práticas políticas.

207
A TV QUE FAZ CHORAR (2000)

É domingo. Ligo a TV e vejo o apresentador de popular pro-


grama de auditório, com os olhos vermelhos, falando tristemente da
vida de uma mulher que, abandonada pelo marido, teve que criar
os filhos e ainda teve seu casebre destruído por um incêndio. A mu-
lher está no palco, com os filhos, para dar veracidade a estória do
comovido (des)animador. Ao fundo, ouve-se uma música para nos
fazer chorar. Por fim, o benevolente apresentador oferta uma casa
mobiliada para a família e todos se regozijam. Mas, por ser domin-
go, quero relaxar, ver algo ameno. Mudo de canal. Aparece-me ou-
tro apresentador que, gritando descontrolada e irritantemente, quer
comover o público com sofridos detalhes da vida de uma atriz de
novelas. Não há interatividade, ele faz as pergunta e ele mesmo as
responde. Parece que só ele pensa. Sigo querendo relaxar, mudo o
canal e vejo um terceiro apresentador que tenta ser a síntese dos dois
anteriores: grita burramente, como o segundo, e faz caridades como
o primeiro. Trágico, cômico, bizarro! Minha busca só termina quan-
do me convenço que é melhor desligar a TV.
A questão é que os canais da TV aberta não nos dão opção, pos-
suem uma programação que só considera o baixo nível educacional
do povo brasileiro. Com o advento da TV paga e com a programa-
ção segmentada (programas dirigidos a grupos específicos) criou-
se a lógica de mercado (cruel e excludente) que se o telespectador
quer ver boa programação que pague para tê-la, senão aguente as
porcarias que lhe são impostas. Não é à toa que a Rede Globo exibe
seu “apresentador” ao invés de um jogo de futebol. Quer assisti-lo?

208
Pague para isso! Devido à ausência de um Estado social, que efetive
políticas públicas, as populações pobres ficam à mercê da própria
sorte e terminam recorrendo aos oportunistas de plantão, no caso
apresentadores em busca de pontos no Ibope, que renderão polpu-
dos contratos de publicidade. Se lembrarmos a eles que somos nós
que fazemos a audiência, mudando de canal e até desligando a TV,
com certeza irão se preocupar em melhorar o nível da programação.
Ou não?!

209
FÉ E IOGURTES (2001)

Um cidadão, com R$ 100,00, uma ata que o designa represen-


tante de um grupo e um estatuto que regerá este grupo, vai até a
Receita Federal cadastrar-se. Em dois dias, ele tem a sua disposição,
pela Internet, o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica que permite
que o estabelecimento funcione. Não estou falando de um comércio,
e sim de uma igreja evangélica. Para se abrir uma igreja no Brasil
basta ter fé, pois as facilidades mundanas são muitas. Veja-se que não
se cobra taxa de IPTU, nem licenciamentos, e não se paga imposto
de renda, já que os templos são considerados entidades filantrópicas.
Mas, essas igrejas têm alto poder de lucro que vem, principalmente,
da contribuição que cada fiel dá a seu pastor. É o chamado dízimo -
aqueles 10% que cada “um oferta a Deus”.
Vi um membro de uma dessas igrejas dizer que (SIC) “o aluguel
da sede custa R$ 2.500,00 e é preciso mantê-la, pois a contribuição
está prevista no livro bíblico de Malaquias”. Mas, vemos muitas de-
núncias de enriquecimento ilícito de pessoas inescrupulosas que, a
título de dar conforto espiritual a quem precisa, exploram a fé das
pessoas. Para se ter ideia de como se dá a exploração, vejamos o caso
das Igrejas neopentecostais, conhecidas pelos seus cultos barulhen-
tos, onde os fiéis gritam a plenos pulmões palavras de exaltação a
Deus. Prometem prosperidade material, ou seja, o fiel que contribui,
com o dízimo, investe em si próprio, já que “terá em dobro tudo o
que doou”. Assim, Deus funciona como uma poupança: entrega-se
uma quantia a Ele e após certo tempo Ele a devolve com juros e cor-
reção. Mas, é bom lembrar, “pequena” parte fica com o pastor para

210
investimentos no “negócio da fé”, como diria o cangaceiro do Auto
da Compadecida.
Em tempos de crise qualquer um que prometer prosperidade ma-
terial só pode conquistar adeptos. São palavras mágicas para ouvidos
desesperados. O fato é que essas igrejas são negócios privados como
outro qualquer, onde o lucro é a meta. Por isso deixemos de hipocri-
sia e passemos a tratá-las como tal. Já que elas viraram um lucrativo
negócio, que explora a fé do povo, como quem vende iogurtes no
supermercado, porque o Estado não as trata como tal e passa a co-
brar delas impostos para fazer, pelo povo, aquilo que elas mesmas
não fazem?

211
Sobre o livro

Projeto gráfico e capa Erick Ferreira Cabral

Mancha Gráfica 10,5 x 16,7 cm


Tipologias utilizadas Adobe Garamond Pro 11/13,2 pt
213

Você também pode gostar