Da Ré-Existência À Resistência - SILVA BB
Da Ré-Existência À Resistência - SILVA BB
Da Ré-Existência À Resistência - SILVA BB
DA RÉ-EXISTÊNCIA À RESISTÊNCIA:
diálogos e tensões entre Ensino Superior, Questão Racial e Serviço Social
SANTOS, SP
2023
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO – UNIFESP
DA RÉ-EXISTÊNCIA À RESISTÊNCIA:
diálogos e tensões entre Ensino Superior, Questão Racial e Serviço Social
SANTOS, SP
2023
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovado em:
Banca Examinadora:
Julgamento:
Julgamento:
Julgamento:
Julgamento:
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Ao Pedro Henrique Higuchi, sempre (in memorian).
Todes que vieram antes e que vêm e virão depois.
Às tias crecheiras e Mães periféricas. É o corre delas que me permitem tecer isso aqui, apesar de
todas as adversidades
Todes que contribuem para meu desenvolvimento intelectual crítico, incluindo Eu, estudantes com
quem atuo, artistas, intelectuais e gente orgulhosamente periférica, panfletária e cotidiana, onde,
querendo, tudo se revela.
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Agradecimentos
Esse costuma ser o pedacinho que eu mais gosto de ler em um trabalho acadêmico.
Revela tanta coisa. Por vezes humaniza a relação que desenvolveremos com o trabalho
produzido. Imaginei algumas várias vezes o texto dos agradecimentos desse trabalho. Cheguei
a concluir que eu não queria agradecer nada. No máximo desagradecer. E cá estou escrevendo
um pouquinho. Foram quatro anos esperando esse momento. Quatro anos em que só
sobrevivo e a rejeição em seguir assim. Quatro anos cuja retrospectiva revela um período
muito difícil de existir, em que a dureza da realidade se confunde com a névoa de sua
transformação. Na dureza da realidade eu não quero agradecer nada e nem ninguém. Sentiria
como se legitimando todo esse processo. Mas na névoa da transformação, seria injusto
comigo mesmo e com outras pessoas que em meio aos seus desafios individuais e coletivos
também contribuíram para eu terminar. Em dado momento a dissertação foi só DISS “certa
ação” – na cultura Hip Hop uma “diss” é um rap em que se ataca ou defende algo, uma
discussão, uma treta – , o que fez eu falar inúmeras vezes que “ou eu acabo a dissertação ou
ela acaba comigo”. E quase acabou mesmo. Mesmo. Por isso, escrever os agradecimentos
marca a minha vitória sobre ela. Não é que a dissertação foi uma guerra. Mas é que as
condições, contextos e conjunturas para seu desenvolvimento foram difíceis. Do ponto de
vista estrutural das relações sociais mesmo, sabe? Eu sei que eu não fiz menos do que pude,
mas as condições e “poder” foram poucas. As interdições postas a pessoas negras que ousam
querer produzir conhecimento são muitas e ter consciência delas não alivia as limitações
Virgínia Woolf dizia que “uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu, se ela quiser
escrever ficção”. E Carolina Maria de Jesus diz que “quando percebi que eu sou poetisa fiquei
triste porque o excesso de imaginação era demasiado”. Em minha realidade, com a devida
licença poética, percebi que quando descobri que sou uma intelectual fiquei tão triste porque o
excesso de reflexão era demasiado e uma pessoa negra deve ter dinheiro, um teto todo seu, se
quiser pensar. Eu não tenho nenhum dos três e nem mesmo sou mulher. Minha orientadora,
desde o início me alertara que meu projeto não era de pesquisa, era de vida. E quem acabou
foi a dissertação, não eu. Escrever o agradecimento é o triunfo ante a todas as interdições e
desafios desses últimos quatro anos. Então tenho isso a agradecer. Especialmente a minha
Mãe que tem me parido algumas vezes e a mim mesmo, que também teve que aprender a parir
a si.
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“O pensamento é um furacão
Que move e remove tudo sem explicação
Eu me perco no tempo, me sinto ao relento
Por que todo contratempo vem com cheiro de missão, então segura que eu…
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Resumo
Esta pesquisa investiga a origem do ensino superior no Brasil, os processos de resistências de
pessoas negras e sua luta no acesso à educação com vistas a sua integração na sociedade de
classes ee os impactos advindos da ampliação do ensino superior no contexto da
contrarreforma universitária. No primeiro capítulo “As Origens da Educação Superior no
Brasil” recuperamos aspectos sócio-históricos que conformam a educação, especialmente a
formal e pública no Brasil. No segundo capítulo, “Resistências Negras, Educação e ampliação
do Ensino Superior” abordamos aspectos sócio-históricos sobre as formas de organização
política da população negra, especialmente no que se refere ao acesso à educação e ensino
superior. No terceiro capítulo, “Questão Social, Questão Racial e Serviço Social recupera
aspectos sócio-históricos sobre a gênese e institucionalização do Serviço Social no Brasil, seu
fundamento e atuação com a questão social junto a classe trabalhadora e os rebatimentos da
ampliação do acesso de pessoas negras ou pobres ao ensino superior na formação em Serviço
Social, especialmente no ensino superior público. A pesquisa é de base bibliográfica em de
fontes secundárias em uma abordagem radicalmente qualitativa.
Palavras-chave: Ensino Superior; Movimento Negro; Questão Racial; Fundamentos do
Serviço Social
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From re-existence to resistance: dialogues and stress between Higher Education, Racial
Issues and Social Work
Abstract: This research investigates the origin of higher education in Brazil, the resistance
processes of black people and their struggle to access education with a view to their
integration into class society and the controls arising from the extension of higher education
in the context of the university counter-reform In the first chapter “The Origins of Higher
Education in Brazil” we recover socio-historical aspects that shape education, especially
formal and public education in Brazil. In the second chapter, “Black Resistance, Education
and Extension of Higher Education”, we address socio-historical aspects of the forms of
political organization of the black population, especially with regard to access to education
and higher education. In the third chapter, “Social Question, Racial Question and Social
Service recovers socio-historical aspects about the genesis and institutionalization of Social
Work in Brazil, its foundation and action with the social question with the working class and
the repercussions of the extension of access for people black or poor to higher education in
training in Social Work, especially in public higher education. The research is
bibliographically based on secondary sources in a radically-qualitative approach.
Keywords: Higher Education; Black Movement; Racial Issue; Fundamentals of Social Work.
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Sumário
Prólogo - 13/01/2012 - Quando eu passei no vestibular 12
Introdução 13
Um pouquinho antes do início 13
Sobre o processo de pesquisa 23
Capítulo 1 – As Origens da Educação Superior no Brasil 31
Estado Nacional, Brasil-Império e Educação 37
Estado Nacional e Escolarização 38
As escolas étnicas 39
Educação de pessoas negras, escravizadas, mestiças e indígenas e abolição da escravatura 41
Admissão ao ensino superior e ensino profissional 44
Brasil-República (1889 – atualidade) 44
Entusiasmo pela Educação e surgimento das primeiras instituições com status de Universidades
46
Nacionalização Compulsória – Fim das escolas étnicas 50
Capítulo 2 - Resistências Negras, Educação e ampliação do Ensino Superior 54
O Movimento Negro Organizado 57
Frente Negra Brasileira - FNB (1931-1937) 61
Teatro Experimental do Negro – TEN (1944-1968) 62
Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial – MNUCDR (1978 – atualidade). 65
Capítulo 3 – Questão Social, Questão Racial e Serviço Social 82
As interpretações da gênese do Serviço Social 82
Perspectiva Endógena/Conservadora do surgimento do Serviço Social 83
Perspectiva histórico-crítica – relações sociais 87
Questão Social 91
E o que é a questão racial? 94
Livre para vender sua força de trabalho e servir ao capital 95
Determinações entre Questão Social e Questão Racial 99
Considerações Finais 102
Epílogo - Sou negro(a) e entrei na Unifesp, e agora? 107
Quem não tem crachá? 109
Vai se tratar 110
Trote 2014 110
Exposição 111
DIREÇÃO RACISTA 112
Referências Bibliográfica 115
10
Antiga Poesia
11
Prólogo - 13/01/2012 - Quando eu passei no vestibular
Já inscrita no Sistema de Seleção Unificada - SISU, eu aguardava a primeira chamada para o curso de
Serviço Social, turma vespertina, na Universidade Federal de São Paulo - Baixada Santista, prevista para dali
dois dias ainda. As inscrições haviam sido encerradas no dia anterior e meus planos eram acelerar o tempo da
espera e chegar logo domingo. Era sexta-feira, meu turno encerrou no meio da tarde e mesmo tendo sido
escalada para trabalhar no final de semana eu nem achei ruim, iria me distrair da espera. Eu sai do trabalho e ao
invés de começar a viagem de volta pra casa antes que o caos da mobilidade individual e coletiva de São Paulo
iniciasse seu show de horrores, eu fui para a Biblioteca Mário de Andrade. Poderia assistir às prateleiras de
livros, ler no local, passar horas assim e nem perceber. Já era noite quando eu saí da biblioteca, para começar a
volta pra casa. A cidade que festeja a chegada do fim de semana já estava instalada do lado de fora. Quando eu
fui pegar minha mochila no guarda-volumes um senhor, funcionário do local, acostumado a me ver absorta por
ali, fez questão de me lembrar que era noite de sexta-feira, que eu era jovem e que eu deveria estar no samba e
não ali naquele momento - dava para ouvir o samba ao vivo num bar ali perto. Eu só pensava em chegar em
casa, dali umas duas horas, e repetir o dia só mais uma vez, e tudo iria mudar. Já no vagão, meu celular tocou,
atendi e era minha irmã. Ela estava um misto de alegria e tristeza, me parabenizava entristecida, porque eu
agora teria que mudar de cidade, como é que ia ser, mas que estava feliz por mim, sua irmãzinha…. Eu a
interrompi, sem entender o que ela estava dizendo. “o- MEC antecipou a primeira chamada… você não viu? Já
saiu o resultado! Seu nome tá lá”. Nisso meus olhos pousaram na TV do metrô que noticiava sobre a
antecipação da primeira chamada do SISU, na época uma demonstração de capacidade técnica-gerencial do
Governo Dilma, ante os questionamentos ao ENEM e SiSU. Era o terceiro ano de utilização do sistema e não
estava nada fácil enfrentar os tensionamentos da ala conservadora na educação superior no Brasil contrários à
ampliação do acesso ao ensino superior que tais programadas promoviam. Meus olhos ficaram embaçados,
senti cada segundinho daquele momento, as vozes no vagão, o aviso sonoro, o abrir e fechar da porta, minha
irmã no outro lado da linha. Eu tinha passado no vestibular. Foi a primeira vez que a UNIFESP existiu em mim.
Quando entendi o que estava acontecendo comecei a chorar e rir, emocionada, tão confusa com as emoções,
quanto minha irmã, mas mais patética por estar ao celular, no transporte público. Era uma cena incrivelmente
poética para meus olhares periféricos. Algumas pessoas ao redor repararam no que acontecia, a maior parte
alheia aos arredores. Eu desliguei o celular, ainda faltava muito até chegar em casa e a bateria teria que durar
até lá. Mas não importava muito naquele momento, eu estava sorridente, distribuía sorrisos no entorno, eu
tinha passado no vestibular e com isso, mais uma vez, a interrupção de minhas jornadas no telemarketing.
12
Introdução
Minha primeira experiência como Assistente Social se deu na atuação junto à
população em situação de rua no município de São Paulo, como trabalhadora assalariada
CLT, 20horas semanais, em uma histórica organização social da sociedade civil, que se
coloca na defesa de direitos da população em situação de rua- Associação Rede Rua, no
período de novembro de 2017 a fevereiro de 2019. Minha atuação se deu em um projeto
considerado “piloto”, nomeado “Chapelaria Social”, cujos recursos para sua realização
haviam sido obtidos por meio da participação da instituição em um edital de uma instituição
privada. À época, a Rede Rua prestava serviços à Prefeitura Municipal de São Paulo
executando outros dois serviços socioassistenciais para a população em situação de rua.
Embora a Chapelaria Social não usufruísse da Parceria Público-Privada, sua concepção e
tipificação regiam-se pela Política de Assistência Social, como orienta a legislação da área, e
quando essa organização enfrentou desafios, também de ordem política dada sua defesa dos
interesses da população em situação de rua, perdeu os convênios públicos e precisou
reorganizar seu quadro de funcionários, eu fui demitida. Seis meses depois eu iniciava minha
atuação em um projeto social em uma instituição confessional e com recursos próprios, com
foco no atendimento a mulheres de baixa renda no contexto da prostituição na região de Santo
Amaro, na zona sul da cidade de São Paulo.
Quando “cheguei” a essas Assistentes Sociais, eu estava com dezesseis anos e desde
os dez realizava projetos socioculturais primeiramente em âmbito escolar, depois comunitário.
Já havia sido “disputada” pelo empreendedorismo social e mundo do trabalho, estava focada
em concluir o ensino médio e ingressar em uma faculdade, atuar “com justiça” e sofrido com
as mais diversas expressões da questão social e violação de direitos – abuso sexual
intrafamiliar, trabalho infantil, violência sexual no transporte público, racismo em suas mais
variadas formas, gordofobia, pobreza e pobreza extrema, insegurança alimentar e
habitacional, acesso precário à educação, saúde, transporte e emprego... Mesmo tendo nascido
em um período sócio-histórico cujo reconhecimento de direitos e cidadania haviam sido
reconhecidos, essa não era a minha realidade, nem a de meus pais, vizinhos, colegas...
Eu não teria chegado a essas Assistentes Sociais se não existisse o Centro de Defesa
de Direitos da Criança e do Adolescente – CEDECA Interlagos. E não teria chegado ao
CEDECA Interlagos se não fosse a Dielle Fernandes, a professora Vera Lúcia e um
Coordenadora Pedagógica, nova naquela escola, de quem já não recordo o nome. À época,
compreendendo que as ações socioculturais que realizávamos na escola “teriam um fim”
quando nos formássemos, um conjunto de estudantes, eu entre eles, entendemos a necessidade
de institucionalizar nossas ações por meio de um grêmio estudantil.
A essa altura, terceiro ano do ensino médio, essas atividades eram uma das minhas
favoritas. Meu grupo de amigas, acolhendo minhas angústias e indignadas com a situação do
grêmio, aceitaram como tema falar sobre “juventude no Brasil”. Eu, pelo visto desde cedo,
profundamente aflita, propunha que abordássemos a perspectiva de que “os jovens no Brasil
não é levado a sério”. Nisso a Dielle, ao que recordo, indignada mas não tão fatalista/taxativa
quanto eu, argumentava que não era bem assim. Eu, devolvia com outras situações da
realidade, nossos desafios... Ela concordava com meus argumentos, mas não com a minha
conclusão. Até que disse “eu conheço um lugar que é assim”. É, não é, é, não é. Definimos
que falaríamos sobre os jovens no Brasil, com dados da realidade, seus desafios e como parte
da pesquisa, visitaríamos o tal lugar que a Dielle dizia que lá não era assim, em que jovens
eram levados muito à sério.
Foi assim que eu cheguei de caderninho na mão para conhecer o tal lugar, o CEDECA
Interlagos, distante quase três quilômetros de onde eu morava e estudava. Cheguei
empunhando um caderno como quem empunha uma arma, querendo conhecer esse tal de
CEDECA que diz que defende direitos de crianças e adolescentes e não estava vendo o que
estava acontecendo na minha escola. Fui recebida pela Elânia Francisca, à época educadora e
estudante de psicologia, e dentre tantas outras maravilhosidades, uma pessoa negra, de
cabelos crespos, ostentando um cabelo black armado que foi me desarmando e, após me
apresentar aquele espaço, responder minhas inúmeras dúvidas e inquietações adolescente fez
eu entender o porquê a Dielle insistia em dizer que nem em todo lugar o jovem no Brasil não
era levado a sério.
Por mais que meu engajamento social tivesse iniciado na infância, no contexto escolar,
e tivesse a participação de outros estudantes e em alguns momentos maior ou menor apoio
institucional, a iniciativa na proposição dessas atividades era minha e não ter outros
adolescentes movidos pela mesma iniciativa e vontade fazia com eu me sentisse mais
deslocada socialmente. Encontrar outros adolescentes com trajetórias e com intenções
próximas a minha, me deu pertencimento e outra capacidade de organização e incidência
política.
Em apenas um dos projetos que desenvolvi na escola, o segundo na minha vida, havia
sido uma iniciativa da própria escola. Outros quatro projetos ainda tinham partido da minha
iniciativa junto aos demais estudantes e ainda que eu já tivesse encontrado outros pares para
realizá-los, esses projetos não diziam respeito à carreira profissional que eu queria seguir, mas
sim às necessidades e demandas imediatas ao lazer, educação e cultura. Talvez pela ausência
dessas garantias, até mesmo a perspectiva de projeto profissional ficava interditada, então,
essas eram atividades no campo do voluntariado. O máximo que minha visão de mundo me
apresentava era que justiça era coisa da área do Direito, daí meu foco para este curso nos
vestibulares. “Foco” porque a premissa de cursar o ensino superior me foi semeada em casa.
Mas as condições concretas e referências para isso, não existiam. Foi preciso muito foco para
este projeto.
16
Meu pai concluiu o ensino médio por meio da Educação de Jovens Adultos - EJA
quando eu já estava formada em Serviço Social. Minha Mãe, de uma sagacidade
empreendedora incrível e dotada de um intelecto ágil e estratégico foi privada da
escolarização em função do trabalho infantil. Minha irmã, quatro anos de idade mais velha do
que eu, estava ela própria pensando mais uma vez em como trabalhar para pagar um curso
técnico quando concluísse o ensino médio, quando eu, na oitava série, já me ocupava em
busca de possibilidades de trabalho formal possível de ser conciliado com os estudos
regulares e como complementaria minha formação, pois uma faculdade, só seria possível para
mim por meio de alto desempenho em avaliações vestibulares ou programas de bolsas.
Os desafios que enfrentei para poder me candidatar ao ensino superior1 para cursar
direito já me antecipavam que este nível de ensino não era, em qualquer área, “tão justo”
assim. Uma vez inserida nele, entendi que entrar era a parte mais fácil, não era só o vestibular
que era seletivo/excludente, ele era apenas uma expressão de um processo mais amplo
relacionado à história, constituição, significado e sentido do ensino superior, particularmente
neste país.
1
Minha trajetória educacional até a conclusão do ensino médio por si só já foi desafiadora, até concluir o
ensino médio eu mudei de escola treze vezes, passando por dez diferentes escolas públicas.
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isso. O sentido de justiça nessa sociedade, como toda ela, é atravessada por muitas
contradições produtoras de injustiças.
Antes de novamente estar matriculada no ensino superior eu ainda tive que enfrentar
“falhas técnicas” no Sistema de Seleção Unificada – SISU, ocorrida em 2011, que me
deixaram de fora da seleção e que eu não tive forças para recorrer, mesmo eu tendo obtido
uma nota que me habilitava a entrar pela ampla concorrência nas primeiras posições da
primeira chamada; uma depressão; conflitos familiares em razão do desemprego; empregos
precarizados e a realização, pela quarta vez, do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM,
que me habilitou na seleção do SISU do primeiro semestre de 2012, quando finalmente
ingressei na graduação em Serviço Social.
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aula como espaço de intervenção (uma visão limitada do campo da sociologia, eu sei, mas só
fui conhecer sociólogos com posicionamento e intervenção na realidades anos depois...).
19
sociorraciais, vocação para defesa de direitos em um período de ampliação do acesso ao
ensino superior.
Uma vez formada em Serviço Social, meu primeiro vínculo de trabalho não se deu
como Assistente Social, se deu como Orientadora Socioeducativa, na região norte da cidade
de São Paulo, em um Serviço Especializado de Abordagem Social à População em Situação
de Rua – SEAS Misto, ou seja, o público atendido era adultos, crianças e adolescentes – e foi
em razão deste último que fui atuar neste serviço e território, algo que desde o processo
seletivo deixei demarcado.
A atuação como orientadora durou pouco mais de três meses, pois, ainda que eu tenha
passado no período conhecido como “de experiência”, fui desligada da instituição, após
minha participação e mobilização popular em defesa do Sistema Único de Assistência Social
– SUAS, o que incluía os interesses de trabalhadores do SUAS – que a gestão do prefeito João
Dória e o secretário Felipe Sabará, responsável pela Secretaria Municipal de Assistência e
Desenvolvimento Social - SMADS acharam que poderiam desmontar por meio da Portaria
41/2017. Dentre outras coisas a portaria que alterava a tipificação do SEAS, algo que não
tinham a competência legal para realizar, diminuindo o horário de abordagem das equipes,
reduzindo o número de trabalhadores e por consequência de abordagem. O processo de
mobilização popular realizado por trabalhadores do SUAS nesse período ainda hoje é um dos
maiores desde a implantação do SUAS na cidade, orgulho-me de ter feito parte dele e ainda
não esgotei os aprendizados políticos dessa experiência.
Mesmo antes de ser desligada, o principal motivo que fazia eu atravessar a cidade num
percurso de pelo menos 5 horas de transporte público diariamente do lado sul para o lado
norte – que ampliava-se para 7 horas quando eu ia para as atividades da pós-graduação, na
zona leste - era a abordagem a crianças e adolescentes em situação de rua em um dos
territórios com uma problemática de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes,
reconhecida nacionalmente em razão do Terminal de Cargas da Fernão Dias, considerada um
“porto seco” – foi limitada institucionalmente. Tal limitação se dava especialmente pela
ameaça dos próprios agentes dessas redes de exploração à gestão do SEAS, de modo que para
preservar a segurança dos trabalhadores, éramos proibidos de realizar a abordagem neste
local, sem qualquer outra intervenção pensada junto a outras instâncias institucionais. Eu, que
atuara no Comitê Nacional, sabia que esse tipo de ameaça era uma realidade nacional e um
dos maiores desafios no enfrentamento à exploração sexual comercial, e exigia um
compromisso ético-político na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, que não era
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impossível de ser realizada, mas que não era assumido, nem mesmo nos serviços das políticas
sociais com esta finalidade e que tanto nos custou estabelecê-las, redundando numa opção
dos executores das políticas sociais pela manutenção da reprodução dessa realidade.
Por mais evidente que a questão racial pudesse se apresentar, sua apreensão não era
realizada, menos ainda as ações para seu enfrentamento. Dentre os motivos para sua não
apreensão, a ausência de uma formação profissional que subsidie tal compreensão é um dos
fatores, algo que desde o pós-abolição o movimento negro organizado reivindica e realiza –
então já temos um acúmulo de pelo menos 135 anos subsidiando esse debate. Se fosse
“apenas” isso, não teríamos a atuação profissional que considera a questão racial ao investigar
e intervir na realidade social, não sofreria cada vez maiores interdições, especialmente quando
esses profissionais também são pessoas negras. Logo, não se trata necessariamente da
ausência de referências para tal motivo, mas de sua incorporação e defesa na compreensão da
própria sociedade. O desafio está ainda para além da compreensão e apreensão dessas
relações na realidade social.
Dito de outro modo: atuar nestes espaços sócio-ocupacionais, nessas condições, ainda
que não fosse com crianças e adolescentes, possibilitaram dentre outras coisas, uma maior
aproximação com a realidade social destes: encontrei os pais e mães das crianças e
adolescentes que outrora eu esperava atender e encontrei adultos cujos direitos da criança e do
adolescente haviam sido reiteradamente violados e que, na atualidade, tornavam mais
21
complexa a compreensão das expressões da questão social que os afetam. Trajetórias
complexas, cor da pele e pertencimento étnico-racial igual. Não é coincidência, é um dado da
realidade material.
1. A percepção de que o modo como eu interpretava a realidade social destoava dos demais
profissionais, mesmos os comprometidos com a afirmação do projeto crítico do serviço
social. Ao considerarem a questão racial, geralmente apresentada como “recorte racial”,
esta se resumia a percepção fenotípica de que a pessoa é negra e a assunção de que esse é
um determinante que apenas a inferioriza. Quase um “carimbo” de que sua vida estará
determinada a violação de direitos, uma naturalização do lugar social vivido pelo sujeito.
E se é assim, porque a ação do Assistente Social será diferente? O “recorte racial” passa a
ser um salvo conduto que “recorta” as possibilidades de existência das pessoas negras.
Enquanto para mim, compreender a questão racial e ampliar a compreensão de classe-
raça-gênero-território-sexualidades, isso dará subsídios para pensar o enfrentamento
dessas determinações e não a naturalização e coadunação com a reprodução de
desigualdades sociorraciais.
3. Dada a necessidade cada vez maior de fundamentar minha intervenção, sendo educadora
popular, fui sendo considerada mais “didática” – o que, desde o ínicio de 2020 me levou
para docência em Serviço Social em uma instituição privada na região leste da cidade de
São Paulo;
22
4. Pelo mesmo motivo do tópico anterior, também uma maior interdição de minha ação, por
“saber demais” – tanto por parte de instituições, Estado e profissionais - “sabida demais”,
“tá querendo minha vaga”, “perigo”. Meu desempenho analítico sofre maiores
questionamentos simplesmente por eu ser pela minha condição racial. A branquitude se
sente ameaçada numa esfera pessoal quando se depara com sujeitos negros destoam do
lugar social que historicamente foi determinado para brancos e negros, sendo impossível
afastar da análise minha própria presença corpórea e subjetiva neste contexto, se eu fosse
uma pessoa não negra, as resistências seriam as mesmas? Na minha experiência cotidiana
eu conheço a resposta, mas, coletivamente isso é apreendido e compreendido?
Antes de tudo, esta pesquisa era um exercício para que eu me reconciliasse com o
Serviço Social. Das diferenças, quase incongruências, entre a formação acadêmico-
profissional e o cotidiano profissional, percebi algumas brechas que afetam demasiadamente
minha atuação profissional e que me colocam em movimento para compreender e costurar
essas lacunas.
Na última década, especialmente nos últimos cinco anos, temos visto no Serviço
Social uma série de tensionamentos quanto a formação acadêmico-profissional e questão
racial. Este tema tem sido um desafio no cotidiano da atuação profissional em diversos
espaços sócio-ocupacionais. Em minha percepção esse desafio, dentre tantos motivos, origina-
se principalmente pelo fato de o racismo ser estrutural e institucionalizado. Essas
23
características dificultam a compreensão das relações raciais na trama das relações sociais e
até mesmo a percepção dessa dificuldade, o racismo interdita nossa percepção da realidade
social..
Nesse sentido, sendo o Serviço Social parte dessa sociedade, não é de estranhar que
ele também contribua para essa reprodução. O que é de estranhar, é, sabendo que há essa
possibilidade, que a profissão, tendo o horizonte profissional que tem, tenha apresentado
tantas resistências ante a questão racial no Serviço Social. Considerando que tal, não
empreenda esforços para desvelar essas relações sociais racializadas. Tal desvelamento,
reconfigura profundamente a sociedade em que vivemos e, portanto, também as demandas
com que atuam os Assistentes Social. Esse não é um exercício fácil, já que também afeta a
autoimagem da profissão, seus significados sociais e históricos, entre outras dimensões que
impactam nos fundamentos, atualidade e identidade profissional.
Se, e é isso que considero, nos faltam camadas de informações, antigas e novas, para
compreender a realidade, e essas camadas faltantes impactam sobremaneira o ser e o fazer
profissional, como é que podemos intervir na realidade social, sem compreendê-la? Sabendo
que: o racismo é estrutural, estruturante e institucionalizado; que o Serviço Social é uma
profissão que se insere na divisão social e técnica do trabalho; que o Serviço Social é também
parte de cada tempo sócio-histórico; que é em dado contexto histórico do capitalismo que a
profissão surge, se institucionaliza e passa a atuar no enfrentamento das expressões da questão
social; e que neste mesmo período grandes mudanças, inclusive paradigmáticas, afetaram as
relações raciais no Brasil; Será que nossa profissão está conseguindo apreender essas
mudanças? Será que nossa profissão, no processo de seu surgimento e institucionalização,
também não “deixou algo de fora”, no que se refere às relações raciais? Será que os novos
conhecimentos que hoje temos sobre estes outros períodos sócio-históricos reconfiguram a
forma de ser, estar e atuar dessa profissão?
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Assim, estabeleci os seguintes objetivos para a pesquisa: objetivo geral - “Possibilitar
uma (nova?) perspectiva, reflexão e compreensão das relações raciais e sociais nos
fundamentos do serviço social incorporando às (novas?) demandas das relações étnico
raciais da sociedade contemporânea”. O alcance desse objetivo se daria a partir dos seguintes
objetivos específicos:
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como se implicam e o reprodução do racismo como parte do pacto narcísico da
branquitude.
A partir disso a dissertação proposta apresenta três capítulos, além desta introdução e
considerações finais.
Por fim, no terceiro capítulo, “Questão Social, Questão Racial e Serviço Social” Este
capítulo visa recuperar aspectos sócio-históricos sobre a gênese e institucionalização do
Serviço Social no Brasil, seu fundamento e atuação com a questão social junto a classe
trabalhadora e os rebatimentos da ampliação do acesso de pessoas negras ou pobres ao ensino
superior na formação em Serviço Social, especialmente no ensino superior público. Para isso
recuperamos elementos de sua gênese sob duas perspectivas de interpretação e apresentamos
e analisamos a questão social, que fundamenta a atuação profissional e sua relação com a
26
questão racial. Por que e como se deu a origem e institucionalização do Serviço Social no
Brasil? Que instituições contribuíram para isso? Que impactos a ampliação do ensino superior
gerou à formação e exercício profissional em Serviço Social? A pesquisa realizada, do tipo
bibliográfica, se estabelece em diálogo com pesquisadores das ciências sociais, serviço social,
bem como o acúmulo de minhas vivências e memórias como estudante da graduação, pós-
graduação e no exercício profissional em políticas sociais e na formação profissional.
O modo de pensar e agir na pesquisa, por ser uma pesquisa radicalmente qualitativa
para além da articulação e realização da pesquisa bibliográfica, essa pesquisa também tomou
a minha vivência como fonte de investigação da realidade. No campo das pesquisas
qualitativas, a abordagem radicalmente qualitativa possibilita que como pesquisadora eu
também vocalize e exista na pesquisa, possibilitando um percurso investigativo que expresse
as dialeticidades e contradições desse caminho. Se opõe à noção de neutralidade científica e
de afastamento entre pesquisador e objeto.
2
Foram cursadas as seguintes disciplinas: Fundamentos do Serviço Social; Movimentos Antirracistas,
Marxismo e Serviço Social; Redes Sociais Territoriais: perspectivas teóricas e metodológicas; Serviço Social e
Política Social; Trabalho e Questão Social; Violência de Estado e a produção de conhecimento a partir do
processso de r(existir) dxs sujeitxs; além do Programa de Acompanhamento Didático – PAD na disciplina de
Fundamentos Teóricos Metodológicos do Serviço Social II e do aproveitamento de créditos da disciplina de
Estado, Mudança Social e Participação Política e de Filosofia da Ciência, no Programa de Pós-Graduação em
Mudança Social e Participação Política – PROMUSPP, na Universidade de São Paulo – USP.
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Negro Drama Hum, nego drama de estilo
Pra ser, se for tem que ser
Nego drama
Se temer é milho
Entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar
Nego drama
Que sou homem e não um covarde
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura Que Deus me guarde, pois eu sei que ele
não é neutro
Nego drama
Vigia os rico, mas ama os que vem do gueto
Tenta ver e não vê nada
Eu visto preto por dentro e por fora
A não ser uma estrela
Guerreiro, poeta, entre o tempo e a memória
Longe, meio ofuscada
Ora, nessa história vejo dólar e vários
Sente o drama
quilates
O preço, a cobrança
Falo pro mano que não morra e também não mate
No amor, no ódio, a insana vingança
O tic-tac não espera, veja o ponteiro
Nego drama Essa estrada é venenosa e cheia de morteiro
Eu sei quem trama e quem tá comigo
Pesadelo, hum, é um elogio
O trauma que eu carrego
Pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu
Pra não ser mais um preto fodido
No clima quente, a minha gente sua frio
O drama da cadeia e favela Vi um pretinho, seu caderno era um fuzil, fuzil
Túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Nego drama
Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia
Que sobrevivem em meio às honras e covardias Crime, futebol, música, carai'
Eu também não consegui fugir disso aí
Periferias, vielas, cortiços
Eu sou mais um
Você deve tá pensando
Forrest Gump é mato
O que você tem a ver com isso?
Eu prefiro contar uma história real
Desde o início, por ouro e prata Vou contar a minha
Olha quem morre, então
Daria um filme
Veja você quem mata
Uma negra e uma criança nos braços
Recebe o mérito a farda que pratica o mal Solitária na floresta de concreto e aço
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural Veja, olha outra vez o rosto na multidão
Histórias, registros e escritos A multidão é um monstro sem rosto e coração
Não é conto nem fábula, lenda ou mito
Hei, São Paulo, terra de arranha-céu
Não foi sempre dito que preto não tem A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel
vez? Família brasileira, dois contra o mundo
Então olha o castelo e não Mãe solteira de um promissor vagabundo
Foi você quem fez, cuzão
Luz, câmera e ação, gravando a cena vai
Eu sou irmão do meus truta de batalha Um bastardo, mais um filho pardo sem pai
Eu era a carne, agora sou a própria navalha Hei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Tim-tim, um brinde pra mim Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé
Sou exemplo de vitórias, trajetos e glórias
Cê disse que era bom e as favela ouviu
O dinheiro tira um homem da miséria Lá também tem uísque, Red Bull, tênis Nike e fuzil
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela Admito, seus carro é bonito, é, e eu não sei fazer
São poucos que entram em campo pra vencer Internet, videocassete, os carro loco
A alma guarda o que a mente tenta esquecer
Atrasado, eu tô um pouco sim, tô, eu acho
Olho pra trás, vejo a estrada que eu trilhei, Só que tem que
mó cota Seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Quem teve lado a lado e quem só ficou na bota Eu sou problema de montão, de Carnaval a
Entre as frases, fases e várias etapas Carnaval
Do quem é quem, dos mano e das mina fraca Eu vim da selva, sou leão, sou demais pro seu
quintal
29
Problema com escola eu tenho mil, mil fita Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho?
Inacreditável, mas seu filho me imita Agora tá de olho no carro que eu dirijo?
No meio de vocês ele é o mais esperto
Demorou, eu quero é mais, eu quero até
Ginga e fala gíria; gíria não, dialeto
sua alma
Esse não é mais seu, oh, subiu Aí, o rap fez eu ser o que sou
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu Ice Blue, Edy Rock e KL Jay
Nóis é isso ou aquilo, o quê? Cê não dizia? E toda a família, e toda geração que faz o rap
Seu filho quer ser preto, ah, que ironia A geração que revolucionou, a geração que vai
revolucionar
Cola o pôster do 2Pac aí, que tal? Que cê
Anos 90, século 21, é desse jeito
diz?
Sente o negro drama, vai, tenta ser feliz Aí, você sai do gueto
Ei bacana, quem te fez tão bom assim? Mas o gueto nunca sai de você, morô irmão?
O que cê deu, o que cê faz, o que cê fez por mim? Cê tá dirigindo um carro
O mundo todo tá de olho 'ni você, morô?
Eu recebi seu ticket, quer dizer kit
Sabe por quê? Pela sua origem, morô irmão?
De esgoto a céu aberto e parede madeirite
É desse jeito que você vive, é o negro drama
De vergonha eu não morri, to firmão, eis-me aqui
Você não, cê não passa quando o mar vermelho Eu num li, eu não assisti
abrir Eu vivo o negro drama
Eu sou o negro drama
Eu sou o mano, homem duro, do gueto,
Eu sou o fruto do negro drama
Brown, oba
Aí Dona Ana, sem palavra
Aquele loco que não pode errar
A senhora é uma rainha, rainha
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk Mas aí, se tiver que voltar pra favela
E de onde vem os diamante? Da lama Eu vou voltar de cabeça erguida
Valeu mãe, negro drama (drama, drama, drama) Porque assim é que é, renascendo das cinzas
Firme e forte, guerreiro de fé
Aí, na época dos barraco de pau lá na
Vagabundo nato!
Pedreira
Onde cês tavam? Racionais MC
Que que cês deram por mim?
Que que cês fizeram por mim?
30
Capítulo 1 – As Origens da Educação Superior no Brasil
Este capítulo visa recuperar aspectos sócio-históricos que conformam a educação,
especialmente a formal e pública no Brasil. Para isso apresenta marcos históricos,
institucionais e jurídicos do Brasil-Colônia (1500-1822), Brasil-Império (1822-1889) e
períodos do Brasil-República (1889 – atualidade). Sempre que possível demarca-se aspectos
constitutivos da dinâmica das relações raciais em nesses “brasis”, desvelando como a situação
contemporânea do acesso e permanência na trajetória da educação de pessoas negras e
indígenas foi ativamente construída pelo Estado-Nação brasileiro. Busca responder
inquietações como: Qual a origem do ensino superior no Brasil? E o ensino
profissionalizante? Que forças o instituíram? Como se dava o ingresso? Para qual público se
dirigia? Pessoas negras e indígenas eram contempladas? Havia distinções étnicas? A pesquisa
realizada, do tipo bibliográfica, se estabelece em diálogo com pesquisadores do campo da
educação, história, ciências sociais, bem como legislações sociais.
Ao ser estabelecida como direito social educação passa a ser uma conquista em favor
da cidadania do povo brasileiro. Antes de adquirir status de cidadania, educação já carregava
a promessa de uma mudança de vida e diferentes atores investiram suas ações para instituir,
garantir e acessar este direito e para o desenvolvimento da educação no Brasil.
31
A educação é o campo escolhido para as reflexões aqui realizadas devido ao fato de
ser um direito social, arduamente conquistado pelos grupos não hegemônicos do
Brasil e que durante muito tempo foi sistematicamente negado aos negros e às
negras brasileiros. Na luta pela superação desse quadro de negação de direitos e de
invisibilização da história e da presença de um coletivo étnico-racial que participou
e participa ativamente da construção do país, o Movimento Negro, por meio de suas
principais lideranças e das ações dos seus militantes, elegeu e destacou a educação
como importante espaço-tempo passível de intervenção e de emancipação social,
mesmo em meio às ondas de regulação conservadora e da violência capitalista
(GOMES, 2018, p.24-25).
Neste sentido, compreender a conjuntura social, política, cultural e econômica vigente
nestes contextos sócio-históricos, facilita a compreensão do significado e intencionalidade
destas políticas, o conjunto de ações públicas realizadas pelo poder público, uma vez que a
educação em si não é um campo de neutralidade, estático, necessariamente libertadora ou
conservadora.
No Brasil a Educação Nacional está organizada em dois níveis: Educação Básica, que
abarca o Ensino Infantil, o Ensino Fundamental I e II e o Ensino Médio; e a Educação
Superior, conforme a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional.
32
do tema “educação” irá se desenvolver, isso porque, a res pública, a coisa pública e o público
passam a ser objeto de maior intervenção política e a própria educação passa a ser um
instrumento de consolidação da república.
Nesses colégios era oferecido o ensino das primeiras letras e o ensino secundários.
Em alguns acrescia-se o ensino superior em Artes e Teologia. O curso de Artes,
também chamado de Ciências Naturais ou Filosofia, tinha duração de três anos.
Compreendia o ensino de Lógica, de Física, de Matemática, de Ética e de
Metafísica. O curso de Teologia, de quatro anos, conferia grau de doutor. Em 1553,
começaram a funcionar os cursos de Artes e Teologia. No século XVIII, o Colégio
da Bahia desenvolveu os estudos de Matemática a ponto de criar uma faculdade
específica para seu ensino. Cursos superiores também oferecidos no Rio de Janeiro,
em São Paulo, em Pernambuco, no Maranhão e no Pará (CUNHA, 2016, p.152).
Aos que não pertenciam a essa elite escravocrata e eram livres, restava ao que hoje
reconhecemos como educação profissional e que, à época, era realizado por “Corporações de
Ofícios”. No Brasil, este tipo de instrução necessariamente buscou distinguir-se do trabalho
realizado pela força de trabalho de pessoas africanas e indígenas que foram escravizadas,
estabelecendo e aprofundando uma cisão racial na divisão social do trabalho:
33
não pertencer ao grupo de trabalhadores do sistema escravista e, por conseguinte não
se identificou (SANTOS, 2016, p.204)
Com isso, o preconceito contra o trabalho manual centra-se no tipo de inserção e status
do trabalhador na sociedade – escravizado ou pessoa livre, não-branco ou branco. Em função
disso, a aprendizagem profissional, realizadas por meio de Corporações de Ofícios,
diferenciou-se do mesmo tipo de ensino realizado nos países europeus e “possuíam rigorosas
normas de funcionamento, que contavam, inclusive, com o apoio das Câmaras Municipais
para dificultar ao máximo, ou até mesmo impedir, como era o caso de algumas delas, o
ingresso de escravos” (SANTOS, 2016, p. 206).
Todo irmão em que se notar raça de mulato, mouro ou judeu, será expulso, sem
remissão alguma. O mesmo se estenderá de suas mulheres tendo qualquer das
sobreditas falta” (SANTOS, 2016, p. 206).
Inicialmente considera-se que esta discriminação não teve maiores impactos na
disponibilidade de força de trabalho, pelo contrário, demarcava os papéis e lugares sociais
com base na etnicidade dos indivíduos e o escravismo alimentava a demanda da força de
trabalho manual “não especializado”.
Nem mesmo com a Revolução Industrial, quando o “trabalho manual” nas indústrias
passa a ser operado com maquinários isso foi afetado, uma vez que Portugal freou o
desenvolvimento industrial no século XVIII no Brasil, preservando as características
agroexportadora do sistema escravocrata e ativamente atuou para a destruição da estrutura
34
industrial que se instalava nos idos do século XVIII, em favor da manutenção do pacto
colonial.
Ainda no século XIX uma das “soluções” encontradas para a “escassez” da força de
trabalho foi a aprendizagem compulsória para crianças e jovens “órfãos e desvalidos”, sob
responsabilidade de
É importante recuperar também que o ensino superior foi proibido por Portugal
durante o Brasil-Colônia, por entender este tipo de instituição como uma ameaça aos seus
interesses coloniais, tendo vigorado na maior parte de seu domínio uma educação para poucos
e a cargo dos Jesuítas:
35
revolucionário do Iluminismo fez-se sentir em vários pontos da América’ (CUNHA,
2016, p. 152).
Este cenário começa a se modificar com a vinda da família real para o Brasil, quando a
sede do reino de Portugal foi transferida para cá e posteriormente no Brasil-Império, com o
surgimento do Estado Nacional e uma tardia refundação do ensino superior.
36
Estado Nacional, Brasil-Império e Educação
Com a Proclamação da Independência, em 1822, a discussão de um projeto de nação
ganhou maior espaço na agenda política. Contraditoriamente, tal projeto era pensado a partir
do deslocamento de imigrantes europeus para cá e não a partir da população originária que
aqui estava, as que vieram sequestradas na condição de escravizados e as demais populações
que aqui estavam em função do pacto colonial.
37
Estado Nacional e Escolarização
Há uma forte vinculação entre a formação do Estado Nacional e a escolarização que
importa recuperar. Sobre a formação do Estado-Nação Brasileiro e a imigração, cumpre
considerar que o nacionalismo pressupõe a afirmação de uma unidade simbólica, sendo
necessário para a modernização econômica nos rumos capitalistas. Como parte dessa
unificação a escolarização era uma instituição que tanto servia para disseminar tal unidade,
quanto promover uma escolarização dita igualitária, assumindo um papel central na
configuração de uma identidade nacional:
38
África e daqui do que convencionamos chamar como Brasil, como indicado, esta formação
prescindiu recorrer a imigração, majoritariamente europeia:
As escolas étnicas
A organização de escolas étnicas envolve a dinâmica da tradição escolar dos
imigrantes, o local onde se fixaram, se no incipiente contexto urbano ou no rural, a
diversidade étnica entre os mesmos grupos e ainda suas religiões. Onde os imigrantes foram
concentrados em núcleos etnicamente homogêneos – “colônias alemãs”, “colônias italianas”,
“colônias polonesas” – o isolamento em relação a população brasileira favoreceu o
estabelecimento de uma estrutura comunitária em apoio ao processo escolar, religioso e
sociocultural. Essa organização adotava características do ensino do país de origem e em
muitas situações contava com o apoio dos países de origem para manutenção dessa estrutura –
por exemplo, com o material didático:
39
Para a organização física dos núcleos de imigrantes tinha-se como princípio que
determinado número de imigrantes (entre 80 e 100 famílias) pudesse organizar-se
em torno de um centro para a comunidade, com infraestrutura de artesanato,
comércio e atendimento religioso-escolar, devendo ter as condições básicas para a
integração entre os moradores (KREUTZ, 2016, p. 354)
Dada a ausência de um sistema escolar brasileiro suficiente, essas iniciativas foram
estimuladas inicialmente por diversos estados, tendo inclusive legislações permitindo o ensino
na língua estrangeira nas escolas públicas da região e desobrigando o ensino na língua
portuguesa, como foi o caso do Rio Grande do Sul, contrariando a queixa do administrador do
São Leopoldo – no município haviam apenas três escolas públicas e vinte e três escolas de
imigrantes, das quais apenas uma lecionava em português (KREUTZ, 2016).
A etnia com maior número de escolas com maior número de escola de imigração no
Brasil até 1939 foi a dos imigrantes alemães, com 1.579 escolas, seguindo-se a dos
imigrantes italianos, com 396 escolas em 1913 (e 167 na década de 30). Os
imigrantes poloneses tiveram 349 escolas e os imigrantes japoneses 178. No entanto,
o número de escolas dos diversos grupos étnicos também não é uma questão
pacífica. No período da nacionalização compulsória a partir de 1938, segundo o
então secretário de Educação do Rio Grande do Sul, Coelho de Souza, havia no
estado 2.418 escolas étnicas alemãs. O então interventor do estado, Cel. Oswaldo
Cordeiro de Farias, afirmava que era 1.841. E na listagem das duas associações dos
professores da imigração alemã, na qual se específica nome e localidade das escolas,
seu número é de 1.041, em 1937. Entre outros grupos de imigrantes também houve
algumas iniciativas de escolas étnicas, porém em pequeno número (KREUTZ, 2016,
p.355).
Apesar das divergências quanto ao número de escolas, a experiência alemã foi a mais
robusta e vale observamos sua organização
40
Isso permitiu que nas décadas de 20 e 30, quando o índice nacional de analfabetismo
ainda estava em torno de 80%, os núcleos alemães de imigrantes tivessem poucos
analfabetos” (KREUTZ, 2016, p. 358).
Embora a escolarização fosse uma instituição de apoio para a criação de uma
identidade nacional, tanto no Império, quanto nas primeiras décadas do período Republicano,
dada as políticas migratórias, essa uniformidade nacional das escolas étnicas não foi uma
premissa. No entanto “a total liberdade de ensino concedida às escolas particulares,
juntamente com uma relativa autonomia cultural para imprensa própria e um associativismo,
era barganhado com a troca de apoio político” (KREUTZ, 2016, p. 365).
E suas implicações:
Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a seqüestra,
mutila a capacidade de aprender etc. É uma forma de seqüestro da razão em duplo
sentido: pela negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em
outros casos lhe é imposta. Sendo, pois, um processo persistente de produção da
inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades
41
intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades realiza, sobre
seres humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui, uma tecnologia que
integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por característica específica
compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder, a saber,
disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É um elo de ligação que não mais se destina
ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e corações (CARNEIRO,
2005, p.97)
42
Diante da interdição da escolarização de negras, negros e pessoas escravizadas, muitos
pesquisadores ampliam a compreensão da educação além da escola formal, como uma
tecnologia social capaz de influenciar comportamentos (GONÇALVES, 2016; GOMES,
2017). Embora, em alguma medida, eu também faça essa ampliação, vale ressaltar que ela não
é equivalente a escolarização formal, não outorga grau, não emite diploma, não habilita para
as relações de trabalho...
Quanto a organização de pessoas por meio das Irmandade e a atuação social por elas
desenvolvidas nesse tipo de instituição, as Irmandades Negras foram espaços de protagonismo
negro, estabelecendo dinâmicas de proteção mútua e contribuindo para sua organização
política para além daquele período histórico:
43
apesar da baixa condição social de seus membros, as irmandades funcionaram como
associações de assistência e de ajuda material(...) Eram associações que integravam
e liberavam os indivíduos liberando seus anseios, ‘funcionando como um canal de
suas queixas, palco de suas discussões’ Por tudo isso podiam interferir (como
interferiram) no comportamento de seus membros, educando-os para a vida
associativa no mundo urbano. Formava-se a partir delas um embrião do que seriam
as organizações negras combativas que dominaram a primeira metade do século XX
(GONÇALVES, p. 336)
Admissão ao ensino superior e ensino profissional
Desde o período colonial, a admissão ao ensino superior tinha como condição a
aprovação em exames de estudos preparatório. Entretanto, em 1837, “os concluintes do curso
secundário do recém-criado Colégio Pedro II passaram a ter o privilégio da matrícula, sem
exames, em qualquer escola superior do Império” (CUNHA, 2016, p. 155).
O Colégio Pedro II, em seus primórdios, teve origem em uma instituição assistencial
para órfãos e desvalidos, o Seminário São Joaquim. Seu decreto de funcionamento indicava
(BRASIL, 1837) o regime de internato ou externato, o pagamento de honorários o ensino de
línguas (inglês, francês, latim e grego), geografia, história, filosofia, zoologia, mineralogia,
botânica, química, aritmética, álgebra, geometria, astronomia, além da língua portuguesa.
Poderiam ainda ser admitidos gratuitamente até 11 (onze) estudantes.
44
ressentidos. (SCHWARCZ, 2015; CUNHA, 2016). A Constituição promulgada em 1891
resultou dos conflitos e composições dessas correntes político-ideológicas:
45
Entusiasmo pela Educação e surgimento das primeiras instituições com status de
Universidades
Com o processo de instauração da República, investe-se na organização de um sistema
de ensino modelar, especialmente as forças oligárquicas de São Paulo. Assim, a escola
paulista estrategicamente torna-se uma referência modelar para os demais estados. No
entanto, o modelo paulista entra em crise, especialmente por “motivações políticas, sociais e
econômicas que confluíram para o chamado ‘entusiasmo pela educação’”(CARVALHO,
2016, p. 227).
46
estudantes das escolas que apresentassem o mesmo currículo e que essas escolas era
majoritariamente escolas étnicas e sem a presença de pessoas negras e indígenas.
47
Na prática essas medidas dificultavam o acesso especialmente da população negra, já
vimos anteriormente que embora todo o sistema educacional fosse deficitário, foram as
populações escravizadas quem mais foram privadas do espaço escolar. Os investimentos da
política de educação concentraram-se em núcleos de colonização, embora a taxa de
analfabetismo fosse maior fora do grupo de imigrantes, posto que estavam alijados dos
espaços escolares.
É por isso que, relembrem minha crítica anterior, quando pensamos as iniquidades no
acesso à educação, embora reconheça-se o papel educador que outras formas de organização
dos negros no Brasil-Império e mesmo nas primeiras décadas da República, a exemplo das
Irmandades Negras, não possuem o mesmo impacto do ponto de visto formal, quando mais do
que o conhecimento sobre um assunto, que poderia ter sido aprendido de modo autodidata ou
em espaços não escolares, exige-se a certificação destes por meio das instituições escolares.
48
Em 1931, já no período da Era Vargas, o Decreto 19.851 de 11 de abril de 1931,
estabelece o “Estatuto das Universidades Brasileiras”, ainda que só houvesse duas delas até
então, centralizando a política administrativa com a criação do Ministério da Educação (à
época, “Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública”). O estatuto organiza os
padrões de funcionamento das instituições, a administração, o corpo docente e a admissão –
de novo, além da aprovação no vestibular e certificado de conclusão do ensino secundário
exige-se prova de “idoneidade moral” (CUNHA, 2016; BRASIL, 1931).
Também em 1934 temos a criação da Universidade de São Paulo, dessa vez pública e
estatal. O contexto político da Revolução Constitucionalista de 1932 contribui para a criação
da instituição:
49
convergiram com os da nova instituição e tinham característica e pretensão política de retomar
a hegemonia política na federação a partir da formação de uma elite intelectual. Em 25 de
Janeiro de 1934, e promulgado o Decreto estadual de criação da Universidade de São Paulo,
incorporando-lhe instituições existentes e criando outras faculdades, bem como a
incorporação de institutos de pesquisa técnico-científica e contratação de corpo docente (SÃO
PAULO, 1934; CUNHA, 2016):
Com isso quero caracterizar o quanto, embora não seja dada formalmente a segregação
racial nos espaços escolares, especialmente nos cursos superiores, o surgimento dessas
instituições carrega o ethos de uma divisão racial e social da sociedade, produzindo maiores
desvantagens aos grupos étnicos não pertencentes (não-brancos) ao grupo étnico hegemônico
dominante (brancos). Isso não apenas no que se refere ao público que é admitido nestas
instituições, mas, primordialmente, o conhecimento, significado e objetivo da superioridade
desses cursos.
Quando o ensino superior público brasileiro passar por uma nova expansão, já no
século XXI, que será objeto de exposição e reflexão no capítulo 2 e 3, essas tensões raciais
serão trazidas à consciência, marcando o período de maior acesso coletivo de populações não-
brancas ao ensino superior brasileiro.
51
próximo capítulo, recuperando aspectos relacionados a luta pela educação realizada pelo
Movimento Negro.
52
Pedagoginga
Orumila jogou os búzios pra ver Não é leve não, mano, pesado pique um fardo
Que futuro ia ter a ave que enfrentou o Oxossi Eu tenho amigos no outro lado, são exceções que
Índio guerreiro que era justo, que era forte eu tenho amor
Que pra defender o povo tinha apenas uma flecha Mas se tem coisa que a escola não me ensinou
em sua posse É que o amor é indispensável em qualquer lugar
E que mostrou que o impossível não era improvável que for
E o que não era tranquilo se fez favorável
E uma hora cês vão ver o inevitável Minha percepção de mundo diz que nós
Nossa fé é imensurável e transforma dor em Mesmo não vendo nada em volta, nunca estamos
motivação sós
Pra superação, tanta humilhação Faço minha oração, peço força pro meu guia
Atravessar o oceano para trampar na sua plantação E que ele não me abandone nas lutas do dia a dia
Café, algodão, cana, escravidão
Alforriaram o nosso corpo, mas deixaram as mentes Mano, vou te falar ein, ô lugar que eu odiava
na prisão Eu não entendia porra nenhuma do que a professora
Não! Abre logo a porra do cofre me falava
Não tô falando de dinheiro, eu falo de Ela explicava, explicava, querendo que eu
conhecimento Criasse um interesse num mundo que não tinha
Eu não quero mais estudar na sua escola nada haver com o meu
Que não conta a minha história, na verdade me Não sei se a escola aliena mais do que informa
mata por dentro Te revolta ou te conforma com as merdas que o
Me alimento da sabedoria de entidades de terreiro mundo tá
Sou guerreiro da falange de Ogum, zum zum zum Nem todo livro, irmão, foi feito pra livrar
Capoeira mata um, mata mil Depende da história contada e também de quem vai
Pedagoginga na troca de informação contar
Papo de visão, nossa construção Pra mim contaram que o preto não tem vez
Passa por saber quem somos e também quem eles E o que que o Hip-Hop fez? Veio e me disse o
são contrário
Não entrar em conflitos que não tragam solução A escola sempre reforçou que eu era feio
Evitar a fadiga, não dar um passo em vão O Hip-Hop veio e disse: Tu é bonito pra caralho
Quando todo campo de conhecimento é válido O Hip-Hop me falou de autonomia
Só tem que o homem pálido Autonomia que a escola nunca me deu
Nos vende que somente o seu que serve A escola me ensinou a escolher caminhos
Levanta-se a voz daquele que se atreve Dentro do quadradinho que ela mesmo me prendeu
A expor seu desconforto mesmo que o sistema não
releve (Thiago Elnino)
53
Capítulo 2 - Resistências Negras, Educação e ampliação do Ensino Superior
Este capítulo visa recuperar aspectos sócio-históricos sobre as formas de organização
política da população negra, especialmente no que se refere ao acesso à educação e ensino
superior. Para isso recuperamos aspectos da formação étnico-social, econômica e política do
Brasil, demonstrando tópicos constitutivos das relações sociais e das relações raciais e seus
desdobramentos no âmbito da educação e da organização do Movimento Negro em suas
reivindicações. Busca responder e/ou refletir questões como: Por que e como se organizou
politicamente a população negra no pós-abolição? Que elementos constituem e determinam as
relações étnico-raciais no Brasil? Como isso afeta o acesso à educação? Que respostas
políticas foram construídas pelo Movimento Negro? Quais os impactos destas respostas? A
pesquisa realizada, do tipo bibliográfica, se estabelece em diálogo com pesquisadores e
ativistas do campo da educação, história, ciências sociais, bem como legislações sociais e
experiências que vivenciei no contexto universitário.
Tal miscigenação não ocorreu apenas com um fato biológico, tendo se constituído
como um fato social contribuindo para a dominação dos interesses da elite branca brasileira,
dificultando a formação de um grupo étnico unificado politicamente. A filosofia étnica
organizada por meio de uma escala de valores no ordenamento da sociedade escravista,
mesmo após sua abolição ainda determinou a organização da sociedade com base na cor e
origem de nascimento (MOURA, 2014).
54
população se diversificava cromaticamente via miscigenação, criava se, em
contrapartida, um julgamento de valor para cada uma dessas diferenças.
O ideal tipo das elites brasileiras, como ideologia de prolongamento do colonizador,
continuou e continua simbolicamente sendo o branco. O antimodelo étnico e estético,
como símbolo nacional, continua sendo o negro (MOURA, 2014, p. 206).
3
Por escravismo pleno, entendemos a proposição de Moura “Chamamos de escravismo pleno aquele
período de escravidão que se estende no Brasil no ano de 1500 (+ ou -) até aproximadamente 1850, é jurídico e
efetivamente extinto o tráfico internacional de escravos africanos. Abrange, portanto, todo o período colonial, a
fase do reinado de Dom João VI, o Império de Dom Pedro I e de Dom Pedro II. Nesse longo período de mais de
trezentos anos, estrutura-se o modelo de produção escravista no Brasil com todas as características que
determinarão o comportamento básico das duas classes fundamentais da estrutura social: senhores e escravos”
(MOURA, 2014, p. 62-63). Assim como escravismo tardio, também na perspectiva de Moura, tem o que
“denominamos como tardio, é o cruzamento rápido e acentuado de relações capitalistas em cima de uma base
escravista. Com a particularidade de que essas relações capitalistas emergentes são dinamizadas, na sua
esmagadora maioria, por um vetor externo: capitais vindos de fora e instalados aqui como seus promotores
dinamizadores e dirigentes. Em face desse fenômeno quase todos os espaços econômicos, que poderia ser
ocupado por uma burguesia autóctone em formação, foram ocupados pelo capital alienígena, na sua esmagadora
maioria inglês. [...] O longo período de duração da escravidão no Brasil, que somente terminará já na época do
imperialismo, garroteou a possibilidade do desenvolvimento de um capital nacional não dependente, fazendo-nos
uma nação subalternizada economicamente às forças do capitalismo internacional, com todas as implicações
políticas que isto determina” (MOURA, 2014, p. 86-87).
4
Para uma compreensão dessas “fugas, dos quilombos, das insurreições ou do bandoleirismo
quilombola” ver as obras de Clóvis Moura: Rebeliões da Senzala - Quilombos, Insurreições, Guerrilha (2020);
Quilombos – Resistências ao escravismo (2020) e Os Quilombos e a rebelião negra (2022).
55
Esse preterimento às pessoas de cor teve como uma das respostas da população
preterida a imprensa mulata (Rio de Janeiro), imprensa negra (como ficou conhecida em São
Paulo)5 e outras regiões, criando uma imprensa com caráter reivindicativo e agitativo,
evidenciando as restrições sofridas em razão de sua condição. Sobre a Imprensa Negra
Paulista, MOURA irá dizer que
5
São exemplos destas imprensas: O Mulato ou o Homem de Cor, O Brasileiro Pardo, O Cabrito, O
Crioulinho, O Meia Cura, Elite, O Menelick, O Clarim da Alvorada, A Voz da Raça, O Alfinete, dentre outros,
(MOURA, 2014; MOURA, 2019; DOMINGUES, 20019)
6
Para uma análise e periodização desta imprensa ver Sociologia do Negro Brasileiro (MOURA, 2019);
Dialética Radical do Brasil Negro (MOURA, 2014); Protagonismo negro em São Paulo (DOMINGUES, 2019)
56
O mesmo pode ser considerado em relação aos povos indígenas, mas que, no entanto,
por serem originários desta terra, embora também tenham sido dizimados por estes Estados,
encontram e desenvolvem outras possibilidades de resistências a partir de suas culturas
originárias:
7
IMPORTANTE: A primeira edição da obra citada, “Dialética Radical do Brasil Negro”, foi publicada
em 1994 e a segunda edição, utilizada nesta pesquisa, em 2014, refletindo a compreensão da questão indígena à
época. Atualmente, o Movimento Indígena ou Povos Originários, majoritariamente já não utilizam expressões
como ‘indío’, e sim indígena; “primitivos”; “tribos” e sim etnias ou povos; “destribalizados” e, a depender do
sentido “indígena em contexto urbano”, dentre outras mudanças discursivas que corroboram com a perspectiva
de retomada indígena e não colonial.
8
Para uma aproximação com a questão indígena contemporânea ver: A queda do Céu - palavras de um
xamã yanomami (KOPENAWA & ALBERT, 2015); A terra dos mil povos – história indígena do Brasil contada
por um índio (JECUPÉ, 2020) e Índios no Brasil - História Direitos e Cidadania (CARNEIRO, 2013).
57
A mestiçagem embranqueceu (e enegreceu) uma grande parte da população Africana
em diáspora que, independentemente dos traços fenotípicos e cor da pele, encontram desafios
e dificuldades na elaboração e compreensão de sua subjetividade, cultura e consciência
étnico-racial. Não à toa, as primeiras organizações de pessoas negras irão investir no
fortalecimento e valorização cultural, passando à seara político-institucional, sendo essas as
principais formas de organizações negras; culturalista, com vistas à integração nacional; e
políticas, ora pela integração nacional, ora pela discussão de um projeto de nação pluriétnico.
58
Como muito do que sabemos e do que tem sido desvelado sobre o papel da negra e
do negro no Brasil, as estratégias de conhecimento desenvolvidas pela população
negra, os conhecimentos sobre as relações raciais e as questões da diáspora africana,
que hoje fazem parte das preocupações teóricas das diversas disciplinas das ciências
humanas e sociais, só passaram a receber o devido valor epistemológico e político
devido à forte atuação do Movimento Negro. Esse movimento social trouxe as
discussões sobre racismo, discriminação racial, desigualdade racial, crítica a
democracia racial, gênero, juventude, ações afirmativas, igualdade racial,
africanidades, saúde da população negra, educação das relações étnico-raciais,
intolerância religiosa contra as religiões afro-brasileiras, violência, questões
quilombolas e antirracismo para o cerne das discussões teóricas e epistemológicas
das Ciências Humanas, Sociais, Jurídicas e da Saúde, indagando, inclusive, as
produções das teorias raciais do século XIX disseminadas na teoria e no imaginário
social e pedagógico. (GOMES, 2017, p. 17).
Assim, as organizações de pessoas negras terão o desafio de reunir a população negra,
desenvolver um senso de solidariedade étnica, promover uma consciência racial, identificar e
priorizar suas pautas e interesses políticos e atuar pela sua representação em uma sociedade
estruturada no racismo que cumpre uma função ideológica de dominação. Por estes desafios a
depender do período sócio-histórico, maiores ou menores condições para essa luta a política
se estabelece.
A educação tem merecido atenção especial das entidades negras ao longo da sua
trajetória. Ela é compreendida pelo movimento negro como um direito
paulatinamente conquistado por aqueles que lutam pela democracia, como uma
possibilidade a mais de ascensão social, como aposta na produção de conhecimentos
que valorizem o diálogo entre os diferentes sujeitos sociais e suas culturas e como
espaço de formação de cidadãos que se posicionem contra toda e qualquer forma de
discriminação. (GOMES, 2012, p.735)
Assim, temos que a imprensa negra possibilitou o início de uma ruptura
com o imaginário racista do final do século XIX e início do século XX que, pautado
no ideário do racismo científico, atribuía à população negra o lugar de inferioridade
intelectual. Os jornais tinham um papel educativo, informavam e politizavam a
população negra sobre os seus próprios destinos rumo à construção de sua
integração na sociedade da época (GOMES, 2012, p. 736)
Ainda no escravismo, pleno e tardio, e em sua transição para o trabalho
livre/capitalismo, o racismo científico, que fundamenta a eugenia, constituiu-se como um dos
fatores que favoreceu a dominação europeia. Foi neste período que as bases da eugenia foram
gestadas, revelando mais um aspecto da conformação do racismo brasileiro, que se sofistica
por meio da sustentação científica e biológica, com materialidade na vida concreta e
cotidiana.
59
Com a Proclamação da República (1889), a “explicação” que a elite do Brasil
encontrou para o “atraso” brasileiro foi a formulação do pensamento eugênico e racista.
Nos anos 30, a construção do Estado Novo, reprojetava a unificação do povo, após ter
alimentado suas cisões a partir da “injeção” de etnias europeias e extermínio e escravização
de outras. Como vimos, é também nesse período, imbuído do espírito da salvação do Brasil
9
Perde-se força neste período, no entanto, não desapareceu e ainda encontra formas contemporâneas no
Brasil e no mundo, especialmente por meio de projetos da extrema direita. Em “Educar, Higienizar e Regenerar:
Uma História da Eugenia no Brasil”, livro de Paulo Ricardo Bonfim (2017), realiza uma breve memória da
vitalidade desse pensamento na mídia brasileira no final do século XX e início do século XXI, anterior a
ascensão da extrema direita no país.
60
por meio da educação, de ascensão da eugenia e do fascismo, que ocorre a retomada da escola
pública como central para a difusão do projeto de nação por meio do Estado. A Era Vargas dá
forma a um projeto de nação que elege o branco/cáucaso como tipo ideal do “homem
brasileiro” e organiza a ação do Estado nesse sentido, chegando até mesmo a prever na
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, a incumbência da União,
Estados e Municípios de“estimular a educação eugênica”. Assim como um conjunto de outras
ações que permeia os debates das Sociedades Eugênica, como “adotar medidas legislativas e
administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social,
que impeçam a propagação das doenças transmissíveis”; “cuidar da higiene mental e
incentivar a luta contra os venenos sociais”, restringir a entrada de imigrantes no território
nacional para “garantia da integração étnica”. (BRASIL, 1934).
Para uma parte dos eugenistas, a mestiçagem seria uma salvação, pois possibilitaria o
embranquecimento e aumento do quantum da raça ariana na composição étnica brasileira;
enquanto para outros, como Nina Rodrigues, esta é um problema, uma vez que misturar um
tipo/raça superior à degenerescência associada aos indígenas e africanos, tornaria impura e
inferior àquela superior.
Esses são alguns dos elementos que a população negra enfrentou no pós-abolição.
Com a negação de sua integração à sociedade, desenvolver formas de integração, geralmente
à perspectiva ideológica do branco, passou a ser projeto de suas formas de organização
política.
61
Lélia Gonzalez considera que as atividades desenvolvidas por entidade negras ou
recreativas ou culturais de massa, como afoxés, cordões, maracatus, ranchos e,
posteriormente, blocos e escolas de samba, foram relevantes para o exercício de uma prática
política, assim como a imprensa negra militante, possibilitaram que a FNB atraísse milhares
de negros para a organização, conjugando a característica cultural e política. Destaca ainda o
caráter urbano dessa organização, especialmente a partir da cidade de São Paulo e depois
outros municípios, posto que a industrialização e a modernização iniciada ali iniciará também
“o processo de integração do negro na sociedade capitalista, sobretudo nos anos 1930, quando
a imigração europeia é interrompida pelo governo Vargas” (GONZALEZ, 2022, p.31).
Em 1936 a FNB transformou-se em partido político e foi extinto em 1937, como parte
do autoritarismo de Vargas, que colocou na ilegalidade todos os partidos políticos. Antes,
porém, de ser extinto, o fato de ter uma base de sócios com altos índices de analfabetismo, por
vezes é apontado como um erro político ao transformar a organização em um partido político,
uma vez que a alfabetização era um requisito para votar. No entanto, pode-se considerar que,
esse poderia, na verdade, ser mais um impulso para o compromisso político com a educação
de seus sócios.
Com o fechamento do partido, bem como as ações do Estado Novo, outros elementos
para a compreensão enquanto grupo étnico emergiram. Entre os anos 40 e 60 outra forma de
organização política alcança relevância como forma de organização política das pessoas
negras: o Teatro Experimental do Negro.
62
alfabetizava seus primeiros participantes, recrutados entre operários, empregados
domésticos, favelados sem profissão definida, modestos funcionários públicos, e
oferecia-lhes uma nova atitude, um critério próprio que os habilitava também a
indagar o espaço ocupado pela população negra no contexto nacional (GOMES,
2017, p. 30).
Por dois anos o TEN também manteve o Jornal Quilombo, apresentando em todas as
edições a declaração com o programa político do grupo:
Embora tenham tido uma relevante atuação política no movimento negro, movimento
de mulheres e movimento sindical, incluindo a produção de conhecimentos sobre a realidade
social brasileira, propondo e realizando respostas a tal realidade, o apagamento da
contribuição destas pessoas ao Serviço Social vigorou por mais de meio século e só começará
63
a ser rompido a partir da segunda década do século XXI, com ampliação do acesso de pessoas
negras ao ensino superior público no Serviço Social.
10
Todas as edições do Jornal Quilombo encontram-se disponíveis no sítio eletrônico do Instituto de
Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros - IPEAFRO. Disponível em:
64
inclusão do seu nome em vários inquéritos policiais militares, acaba por exilar-se
nos Estados Unidos. (ITAÚ CULTURAL, 2023, s/n).
Abdias do Nascimento, ao refletir sobre o TEN conclui que este foi:
Fiel à sua orientação pragmática e dinâmica, o TEN evitou sempre adquirir a forma
anquilosada e imobilista de uma instituição acadêmica. A estabilidade burocrática
não constituía o seu alvo. O TEN atuou sem descanso como um fermento
provocativo, uma aventura da experimentação criativa, propondo caminhos inéditos
ao futuro do negro, ao desenvolvimento da cultura brasileira. Para atingir esses
objetivos, o TEN se desdobrava em várias frentes: tanto denunciava as formas de
racismo sutis e ostensivas, como resistia à opressão cultural da brancura; procurou
instalar mecanismos de apoio psicológico para que o negro pudesse dar um salto
qualitativo para além do complexo de inferioridade a que o submetia o complexo de
superioridade da sociedade que o condicionava. Foi assim que o TEN instaurou o
processo de revisão de conceitos e atitudes visando à libertação espiritual e social da
comunidade afro-brasileira. Processo que está na sua etapa inicial, convocando a
conjugação do esforço coletivo do presente e das futuras gerações afro-brasileiras.
(NASCIMENTO, 2004, p 223).
Além do TEN, Lélia Gonzalez, nos anos 80, ressalta que:
Ao lado do teatro negro, a poesia também foi uma das mais vigorosas expressões
das elites negras daquela fase, que, sem perda de continuidade, marcou as novas
gerações. Solano Trindade de certo modo sintetiza esses dois aspectos, tanto pela
criação do seu Teatro Popular, quanto por sua extraordinária produção poética.
Afirmação de identidade cultural e denúncia da exploração dos oprimidos
constituíram a temática da poesia revolucionária de Solano. O movimento poético
dos dias de hoje não perde de vista a perspectiva de que racismo e exploração
socioeconômica estão muito bem articulados quando se trata de limitar e reprimir a
comunidade negra.
Acrescento à essas reflexões que nas décadas seguintes, especialmente a partir dos
anos 90, esse movimento poético se amplia por meio da Cultura Hip Hop, coletivos culturais,
saraus, batalhas de poesia, batalhas de rima, entre outros espaços de expressão poética
mediados pela oralidade (SILVA, 2019), constituindo-se, inclusive, em um elemento
mediador da práxis política e da formação das pessoas moradores das periferias (DANDREA,
2022).
65
mobilização política negra (2020). Esta intelectual irá situar o Movimento Negro Unificado
contra a Discriminação Racial – MNUCDR, em sua relação com Frente Negra Brasileira -
FNB e o Teatro Experimental dos Negro – TEM, mas compreendendo que o período histórico
em que ele emerge, distingue-o das formas de organização anteriores.
66
ser ou para conviver faz parte da vida, ocorre no dia-a-dia”(MNU, 1990, s/n), que vai além das
escola, mas que essa,
se o que se quer é extinguir o racismo de uma vez por todas, o MNU não pode
restringir-se apenas a defender princípos gerais sobre o direito à educação e a defesa
da cultura negra;[tem que] formular sugestões curriculares que atendam às
exigências educacionais da população negra ; indicar a dívida dos poderes públicos
com o povo negro. É PRECISO MUITO MAIS. Afinal de contas, ao longo da
história do Brasil, o RACISMO, mais que a escola, já deu muitas e duras lições. A
prática pedagógica, que conspira contra crianças, jovens e adultos negros, tentando
silenciá-los enquanto cidadãos, realiza-se no interior das escolas. Sejam públicas ou
particulares, estejam no centro ou na periferia, nas zonas urbanas ou rurais. Essa
violência praticada dentro da escola traz consequências sempre fundamentais da
pessoa humana, quanto para o cidadão negros em formação. É fato que os negros
que conseguem concluir algumas etapas da escolarização são submetidos a
humilhações que dificultam, ou até impedem, a formação de uma identidade racial
negra. No período escolar, o negro é obrigado a aceitar um processo de
embranquecimento, que busca atingi-lo em sua essência. Não raro, e por razões já
sabidas, muitas crianças e jovens afastam-se de sua comunidade, de seu povo,
rejeitando-o em consequências da violência racial de que foram vítimas. É o preço
que pagam por terem permanecido na escola” (MNU, 1990, s/n).
Compreendem que a educação não significa apenas a negação da pessoa negra e
quando não está a serviço dos interesses de dominação pode favorecer novos caminhos para a
população negra e fortalecer a organização político-cultural, percebendo a educação como
uma tecnologia para ampliação da cidadania e poder político:
a escolarização não produz tão só o silêncio, a negação. Ela gera, ainda que não seja
o seu objetivo, o inconformismo e a indignação. Muitos negros resistem aos
ensinamentos racistas e, em lugar de afastarem-se de seu povo, reforçam junto a ele
a identidade racial negada pela escola. EDUCAM-SE NEGROS O Movimento que
insurge, e não cessa, contra a violência racial, coloca outras questões sobre educação
e aponta novos caminhos. Dentre esses, assinala-se aquele que indica que a
educação de crianças, jovens e adultos negros, para além da escola, passa pelas
organizações político-culturais negras. Portanto, é preciso investir, cada vez mais,
em experiências significativas em educação, que apontem para a formação da
cidadania que convém ao interesse do negro, enquanto o grupo oprimido que se
organiza na perspectiva de participar do PODER (MNU, 1990, s/n)
E concluem, indicando a relevância da reivindicação da educação escolar e popular
para o povo negro:
67
Sem dúvida, esta é uma razão soberana para que a comunidade aproprie-se de seu
processo educacional e, soberanamente, imponha um projeto de cidadania baseado
na educação de crianças, jovens e adultos para a luta de libertação do povo negro.
Neste sentido o MNU propõe duas linhas de atuação. UMA, que dê continuidade às
pressões para a redefinição da escola, seus métodos e conteúdos ; a OUTRA,
prioritária, que busque construir uma proposta de EDUCAÇÃO AUTÔNOMA,
sustentada pelo povo negro. Através dessas experiências, o MNU buscará mostrar ao
NEGRO que ele é capaz de entender e modificar o mundo, que é ativamente livre
para agir, julgar, compreender e criar. Além desta descoberta de que É GENTE NA
HISTÓRIA, o negro também poderá perceber-se como AGENTE DA HISTÓRIA,
com poder para intervir na realidade que o cerca (MNU, 1990, s/n)
Para dar conta desta tarefa orienta seus militantes a:
Não é à toa que desde sua fundação o MNU é responsável pela formação direta e
indireta de parte da intelectualidade negra contemporânea. Com a redemocratização, o MNU
passou por uma reconfiguração, acentuando seu caráter educador, com ênfase especial na
educação:
Contudo, no Plano de Ação de Durban (ONU, 2001), do qual o Brasil é signatário, foi
a primeira vez em que o “Estado Brasileiro reconheceu internacionalmente a existências
institucional do racismo em nosso país e se comprometeu com medidas para sua superação.
Entre elas, as ações afirmativas na educação e no trabalho” (GOMES, 2017, p. 34). De volta
ao Brasil, tal adesão política do país foi um importante subsídio para ação do Movimento
Negro.
No início dos anos 2000, como resultado da incidência do Movimento Negro notamos
e creditamos algumas medidas em diálogo com a agenda política da luta prioritária pela
educação: algumas universidades adotam políticas afirmativas de cotas raciais, apesar do
debate em contrário; a criação de uma secretaria especial com status de ministério na estrutura
de governo nas gestões petistas, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial –
SEPPIR…
11
Como resultado dessa incidência, meses depois, em fevereiro de 1996 o presidente FHC cria o Grupo
de Trabalho Interministerial pela Valorização da População Negra.
69
Mas a conquista até então mais representativa desse período, que subsidiou e
instrumentalizou outros estágios para o enfrentamento do racismo no Brasil, toma por espaço
justamente a política educacional: a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e privadas dos ensinos
Fundamental e Médio. Em 2008 ela foi alterada pela Lei 11.645 para incluir também a
questão indígena (BRASIL, 2003; BRASIL, 2008; GOMES, 2017), com isso temos
instrumentos legais para fortalecer o enfrentamento ao epistemicídio de negras e indígenas no
Ensino Básico e Médio12, bem como valorizar o patrimônio histórico-cultural destes povos.
Isso exigiu pesquisar, documentar, produzir conhecimentos, sistematizar e disseminar uma
perspectiva sobre história e cultura afro-brasileira e indígena deslocando o olhar e
interpretação quanto a própria história brasileira. Também ampliou o espaço de ação política
do Movimento Negro, exigindo de seus membros novas ações políticas, como o próprio
processo de formação acadêmica, mobilização e formação popular, incidência e relação com o
Estado, mobilização de recursos e orçamento público, entre outros.
12
Diferentes projetos culturais, educacionais e sociais terão a referida lei como expressão e motivação.
No âmbito educacional, cabe destacar a experiência do projeto “A cor da cultura” que formou mais de 26 mil
professores num processo formativo baseado nos princípios de equidade, respeito às diferenças, pluralidade,
diversidade, diálogo e trocas, o projeto tem como objetivo contribuir para a valorização do patrimônio cultural
afro-brasileiro. Como parte do projeto, foram realizadas pesquisas e produzidos diversos recursos didático-
pedagógicos audiovisual, formação e acompanhamento de professoras/es em 14 estados brasileiros, por meio da
Fundação Roberto Marinho/Canal Futura com o apoio de onze instituições formadoras com acúmulos na área de
educação e relações étnico-raciais: Ação Educativa (SP), Geledés (SP), Associação Centro de Estudos Afro-
Asiáticos da Universidade Candido Mendes – ACEAA (RJ), Centro de Articulação de Populações
Marginalizadas – CEAP (RJ), Instituto de Juventude Contemporânea – IJC (CE), Instituto de Desenvolvimento
Cultural Nova Iguaçu – INDEC (RJ), Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal do Paraná –
NEAB/UFPR (PR), Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de Uberlândia – NEAB/ UFU
(MG), N’Zinga – Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte (MG), Instituto Odara (BA) e Inclusão TECX
(PA)..
70
em algumas de suas ações e políticas, especialmente na educação “ (p.711). Nilma atribui isso
ao Movimento Negro organizado por meio de suas diversas organizações e elenca alguma
destas reivindicações:
A síntese a que foi reduzido o debate sobre cotas na sociedade brasileira no início do
século XXI, tinha de um lado uma tese contrária às cotas, defendendo que pessoas negras não
seriam capazes de absorver o saber universitário em razão da baixa qualidade de sua formação
escolar, o que resultaria no rebaixamento da qualidade acadêmica, com espaço e projeção
midiática e defendido por uma elite intelectual; e de outro uma tese que defendia a inserção
de negros e indígenas como reparação histórica e contrapondo que não haveria um
rebaixamento na qualidade, sem o mesmo apoio e projeção midiático (NASCIMENTO, 2020)
– e de fato não houve, pelo contrário nota-se desde uma virada epistemológica;
aprofundamento crítico, criativo e científico; surgimento de novas intersecções e
interdisciplinaridades a partir da inserção destes grupos em todas as áreas das ciências… No
âmbito do Serviço Social, vive-se uma virada étnica com desdobramentos na formação e
exercício profissional.
71
Tamires Guimarães do Nascimento (2020) recupera que mesmo diante da oposição
posta pela defesa ou ataque às políticas de cotas raciais no ensino superior:
No ano de 2001, o estado do Rio de Janeiro criou a lei n° 3.708 que institui a cota
mínima de até 40% (quarenta por cento) para a população negra, para preenchimento
das vagas relativas aos cursos de graduação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), que
passou a vigorar no vestibular dessas universidades em 2002. Na mesma trincheira,
a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) passou a ofertar para todos os cursos de
graduação e pós-graduação, presenciais e à distância, 40% do seu total de vagas para
negras/o egressas/os da rede pública de ensino e outros 5% para indígenas. A
Universidade de Brasília (UnB) entrou para a história sendo a primeira universidade
federal brasileira a implantar o sistema de cotas no ano de 2003 e passou a reservar
20% das vagas do seu vestibular tradicional. Outras universidades, como a
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em 2004 e a Universidade Federal
da Bahia (UFBA), em 2005, seguiram neste mesmo caminho. (NASCIMENTO,
2020, p. 61)
E analisa que
13
Segundo o Sistema de Seleção do FIES - SISFIES “O Fundo de Financiamento Estudantil(Fies) é um
programa do Ministério da Educação destinado a financiar a graduação na educação superior de estudantes
matriculados em cursos superiores não gratuitas na forma da Lei 10.260/2001. Podem recorrer ao financiamento
os estudantes matriculados em cursos superiores que tenham avaliação positiva nos processos conduzidos pelo
Ministério da Educação. Em 2010, o FIES passou a funcionar em um novo formato: a taxa de juros do
financiamento passou a ser de 3,4% a.a., o período de carência passou para 18 meses e o período de amortização
para 3 (três) vezes o período de duração regular do curso + 12 meses. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE) passou a ser o Agente Operador do Programa para contratos formalizados a partir de 2010.
Além disso, o percentual de financiamento subiu para até 100% e as inscrições passaram a ser feitas em fluxo
contínuo, permitindo ao estudante o solicitar do financiamento em qualquer período do ano. A partir do segundo
semestre de 2015, os financiamentos concedidos com recursos do Fies passaram a ter taxa de juros de 6,5% ao
ano com vistas a contribuir para a sustentabilidade do programa, possibilitando sua continuidade enquanto
política pública perene de inclusão social e de democratização do ensino superior. O intuito é de também realizar
um realinhamento da taxa de juros às condições existentes no ao cenário econômico e à necessidade de ajuste
fiscal” (2023, s/n).
72
período de ampliação do acesso ao ensino superior privado. Até 2020, ano mais recente em
que os dados abertos sobre o programa foram informados, o PROUNI havia concedido
aproximadamente 2,9 milhões de bolsas parciais ou integrais14; enquanto o FIES concedeu
esse montante na segunda década do século XXI. Ambas as políticas contam com vagas
afirmativas, anteriores a Lei de Cotas de 2012.
Essa inserção de pessoas negras ou pobres no ensino superior não gerou a mesma
reação como quando se tratou do ensino superior público.
O tema da educação superior que mais mobiliza o debate público sobre ações
afirmativas, gerando extensa produção acadêmica não é somente sobre o princípio
das ações afirmativas, mas também sobre os processos de implementação das
políticas de cotas nas instituições públicas de ensino superior e análises sobre os
estudantes cotistas. A forte reação à política de cotas, no entanto, não teve a mesma
repercussão quando o governo implementou um programa de ações afirmativas no
sistema privado, responsável por cerca de 80% das matrículas no ensino superior
brasileiro. O que está em jogo, portanto, não é apenas o uso do critério o racial, mas
o tipo de recurso mobilizado e o público afetado por essas políticas (p. 86).
14
Da origem até 2020, foram 2.859.373 bolsa (dois milhões e oitocentos e cinquenta e nove mil e
trezentos e setenta e três) por meio do PROUNI
73
É importante que se considere essa reação profundamente vincula com o pacto
narcísico da branquitude. Essa talvez tenha sido a ação política do Movimento Negro que
mais tensionou a cisão racial desse país desde a abolição.
Cida Bento, psicóloga, intelectual negra e uma das principais especialistas em relações
étnico-raciais e relações de trabalho, desenvolveu suas análises a partir de suas experiências
profissionais na área da psicologia organizacional, e identificou que
Não temos um problema negro no Brasil, temos um problema nas relações entre
negros e brancos. É a supremacia branca incrustada na branquitude, uma relação de
dominação de um grupo sobre outro, como tantas que observamos cotidianamente
ao nosso redor, na política, na cultura, na economia e que assegura privilégios para
um dos grupos e relega péssimas condições de trabalho, de vida, ou até a morte, para
o outro (BENTO, 2022, p. 14-15).
Em sua produção de conhecimento, BENTO elabora o modo como essa discriminação
é reiterada por meio das organizações, funcionando como um pacto. Em suas elaboração ela
foi
74
coletivo. Gera esquecimento e desloca a memória para lembranças encobridoras comuns. O
pacto suprime as recordações que trazem sofrimento e vergonha, porque são relacionadas à
escravidão (BENTO, 2022, p. 25).
75
negros15 apresentaram alguns desses elementos, pois, ao nosso ver, havia a possibilidade de
serem diminuídos ainda durante o processo de seleção, sem ferir o que já estava posto no
edital. No entanto, não houve o atendimento dessa demanda naquela seleção e entendo que a
mudança posterior em relação a um dos tópicos – a possibilidade de apresentar recursos por
email e não apenas presencialmente - esteja mais relacionada com a aceleração digital
provocada pela pandemia, do que com o a demanda anterior apresentada por um conjunto de
estudantes.
15
A solicitação apresentada ao PPGSSP e a resposta obtida encontram-se nos anexos. Cinco
estudantes assinaram a solicitação, no entanto, éramos cerca de vinte candidatos organizados e muitos
temiam que assinar nominalmente a solicitação pudesse acarretar prejuízos a sua participação naquele
e em processos seletivos futuros. Diante da negativa da solicitação, organizamos nossas redes pessoais
para garantir que candidatos de territórios afastados pudessem apresentar seus recursos, diminuindo o
impedimento que a seleção “igualitária” proporcionava.
16
O inteiro teor do acordão de arguição da ADPF 186 esta disponível em: Em 2017 também a reserva de
vagas em concursos públicos foi objeto de debate no STF, dessa vez a Ação Declaratória de Constitucionalidade
41 e o inteiro teor do acordão, favorável às cotas e o reconhecimento de sua constitucionalidade, pode ser
consultado em:
17
Expressão em latim para “amigos da corte”, admitida como uma terceira parte que pode realizar
sustentação oral
76
antagonismos raciais em sua expressão contemporânea. Rememorando-se a origem do ensino
superior, não é difícil compreender as bases reacionárias e supremacistas ante a medida e a
reiteração do pacto narcísico da branquitude.
Tal tensão jamais se expressaria não fosse o legado histórico de luta e organização do
Movimento Negro, em suas diferentes fases e conjunturas. A disputa por políticas afirmativas
no âmbito da educação superior pública possibilitou um avanço na compreensão da dinâmica
das relações étnico-raciais, à medida em que especifica e reconhece-se as interdições que as
pessoas negras sofrem em um país que tem em sua estrutura e institucionalidade as bases do
racismo. Seus desdobramentos extrapolam a seara educacional e ainda estão em
desenvolvimento.
Na análise de Nilma
18
No final de 2012 dediquei-me a criação de um Cursinho Pré-Universitário no âmbito da UNIFESP
Baixada Santista. A criação e desenvolvimento do cursinho não foi fruto de ação do coletivo negro ou em
decorrência direta da aprovação da Lei de Cotas, mas certamente contou com o negro em movimento e
minhas motivações e compromisso com o seu desenvolvimento passava pela luta prioritária 4. O grupo que
instituiu o Cursinho Cardume era formado por trabalhadores, estudantes e docentes. Elegemos a educação
popular freireana como abordagem, bem como a opção por ser um cursinho com vistas a preparação para o
Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM. Durante o ano de 2013 ocupamo-nos com a concepção, articulação,
aprovação do projeto em âmbito institucional, bem como e seleção dos estudantes, dando início a primeira
turma no início de 2014. Fui educadora no eixo Redação durante três anos, quando diminui minha atuação em
razão da finalização da graduação. Em 2023 o Cursinho Cardume, iniciou sua décima turma prepatatória para o
ENEM e iniciou turmas preparatórias, com vistas no ingresso ao “vestibulinho” das escolas técnicas estaduais.
19
No bojo das mudanças em razão da lei de cotas, recordo que também foi objeto de nossa reflexão no
NERP a preocupação com o ingresso e permanência na pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. A
reflexão era simples e objetiva: a biblioteca não possuía a bibliografia que abarcassem discussões no campo
das relações étnico-raciais, fossem autores brancos ou não; não haviam pessoas que naquela época se
autodeclarava ou fosse heteroidentificada como negras e/ou indígena, a exceção era a líder do grupo; com isso
havia uma maior dificuldade suporte ao desenvolvimento de nossas pesquisas, desde o nível da graduação,
quem dirá na pós-graduação. A época a Profa. Renata Gonçalves sistematizou e articulou o envio de uma
77
Nilma nos indica que:
à medida que o movimento negro aprimora a sua luta por emancipação social e pela
superação do racismo, mais se intensifica a variedade de formas de opressão e de
dominação contra as quais ele tem que se contrapor, bem como se amplia a
multiplicidade de escalas (local, nacional e transnacional) das lutas em que ele se
envolve. Esse processo exige a construção de outras formas de organização política,
que produzirão novos conhecimentos e pedagogias (GOMES, 2012, p. 741).
Menos de dois meses após a aprovação da Lei de Cotas, criamos o Núcleo Reflexos de
Palmares. Já narrei esse surgimento em outro texto e o recuperarei aqui:
proposta de formação com vistas ao ingresso de pessoas negras ou pesquisadores no campo das relações
raciais, submetendo-a a um edital do governo federal. A proposta foi aprovada em 2015, no entanto, com a
conjuntura política desse período a financiamento deste projeto ocorreu apenas em 2018, por meio do
Programa de de Desenvolvimento Acadêmico Abdias do Nascimento – PDAAN, uma espécie de “cursinho
preparatório” para ingresso na pós. Eu havia sido uma estudante da graduação que esperava encontrar uma
formação como esta quando concluísse minha graduação, mas, com a demora, minha vinculação se deu como
tutora, uma vez que eu estava finalizando meu primeiro mestrado. O programa contou apenas com 1 edição,
com três turmas nas unidades Baixada Santista, Guarulhos e São Paulo. Há a expectativa de que o programa
possa ser parte das ações institucional da UNIFESP. Mas, como tutora e posteriormente mestranda nessa
instituição e que também se graduou por aqui, entendo a necessidade de um “cursinho preparatório” para os
programas de pós-graduação. A dificuldade no ingresso e permanência de estudantes negras não está
relacionada a capacidade técnico-científica dos estudantes e sim a reprodução do racismo institucional,
estrutural e também interpessoal no modo de organização e funcionamento dos programas, da seleção à
defesa.
78
foram sendo desenvolvidas e amadurecidas. Conforme as aulas avançavam, as investigações
sobre a população negra naquela região também se desenvolviam e foi desvelando
processos históricos da cidade de Santos, Brasil e África e de diversos eventos ocorridos
naquele lugar. Quilombo, abolicionistas, escolas de samba, blocos de carnaval, terreiros,
Bantus... O tema extrapolou o trabalho em sala de aula, a sala de aula e aquele semestre. A
partir das descobertas e reflexões do grupo e da turma, alguns estudantes, negras e negros,
sujeitas/os periféricas/os, e também não-negros/as (importante que se recorde, já que
durante o período de sua maior força política, o grupo que se constituía foi acusado de
“sectarismo”) e não-periféricos/as, propuseram encontros para dar continuidade aos
estudos sobre o assunto. Com alguns encontros após às aulas vespertinas, o grupo havia
firmado o interesse em criar um núcleo de estudos. Na mesma época, parte dessas/es
mesmas/os estudantes também fomentaram outros espaços na universidade. Procuraram
por grupos que já existiam, como o Núcleo Heleieth Saffioti e o Núcleo sobre Violência Social.
E fomentaram a criação de um grupo de estudos em Antropologia Urbana. No entanto, dos
grupos demandados por estudantes, apenas o de relações raciais foi instituído. Nomeamo-
nos como Reflexos de Palmares em referência a necessidade de sermos vistos, termos
reflexos espelhos, numa inspiração e referência direta ao texto “Espelhos” de Osvaldo
Faustino e também em referência ao Quilombo de Palmares, evocando a trajetória de lutas
sociais das negras/os no Brasil. Em 2013 o Núcleo de Estudos Reflexos de Palmares oficializou
suas atividades propondo atividades formativas e culturais, a exemplo da Semana da
Consciência Negra, hoje parte do calendário acadêmico da universidade. O grupo passou a
realizar o estudo sistemático de intelectuais negras/os invisibilizados na produção
acadêmica, bem como acabou aglutinando estudantes negras/os da universidade,
conferindo, em muitas vezes, uma condição considerada peculiar no contexto acadêmico
por reunir características de “núcleo de estudo e extensão” e “coletivo estudantil”, dada a
atuação política de seus membros – e lá existe intelectual que não seja político? - Além das
Semanas da Consciência Negra, o grupo realizou pesquisa e estudos, sistemáticos em
matérias de relações raciais; recebeu estudantes de graduação e pós-graduação que
desenvolveram pesquisas de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso e
dissertações de mestrado; realizou projetos de extensão; visitas pedagógicas; organizou
eventos acadêmicos e culturais; e ofertou disciplinas na graduação e na pós-graduação e
79
contribuiu para a revisão do conteúdo das unidades curriculares da matriz de formação do
Serviço Social. Também nesse período, as/os participantes do NERP enfrentaram
sindicâncias, processos judiciais e a hostilização, fosse por suas pesquisas tidas como
“panfletárias”, mesmo quando atendiam aos quesitos do dito “rigor acadêmico”, fosse por
um posicionamento antirracista ante as expressões do racismo no contexto universitário.
80
COTA NÃO É ESMOLA E nem venha me dizer que isso é vitimismo
Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu
Existe muita coisa que não te disseram na escola racismo
Cota não é esmola E nem venha me dizer que isso é vitimi
Experimenta nascer preto na favela, pra você ver Que isso é vitimi
O que rola com preto e pobre não aparece na TV Que isso é vitimismo
Opressão, humilhação, preconceito
A gente sabe como termina quando começa desse E nem venha me dizer que isso é vitimismo
jeito Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu
Desde pequena fazendo o corre pra ajudar os pais racismo
Cuida de criança, limpa a casa, outras coisas mais E nem venha me dizer que isso é vitimi
Deu meio-dia, toma banho, vai pra escola a pé Que isso é vitimi
Não tem dinheiro pro busão Que isso é vitimismo
Sua mãe usou mais cedo pra correr comprar o pão
E já que ela ta cansada quer carona no busão São nações escravizadas
Mas como é preta e pobre, o motorista grita: Não! E culturas assassinadas
E essa é só a primeira porta que se fecha A voz que ecoa no tambor
Não tem busão, já tá cansada, mas se apressa Chega junto, e venha cá
Chega na escola, outro portão se fecha Você também pode lutar
Você demorou, não vai entrar na aula de história E aprender a respeitar
Espera, senta aí, já já da uma hora Porque o povo preto veio para revolucionar
Espera mais um pouco e entra na segunda aula
E vê se não se atrasa de novo, a diretora fala Não deixem calar a nossa voz não!
Chega na sala, agora o sono vai batendo Nascem milhares dos nossos cada vez que um
E ela não vai dormir, devagarinho vai aprendendo nosso cai
que Nascem milhares (Marielle Franco, presente)
Se a passagem é três e oitenta, e você tem três na Dos nossos
mão Nascem milhares dos nossos cada vez que um
Ela interrompe a professora e diz: Então não vai ter nosso cai
pão E é peito aberto, espadachim do gueto, nigga
E os amigos que riem dela todo dia samurai!
Riem mais e a humilham mais, o que você faria?
Ela cansou da humilhação e não quer mais escola
E no natal ela chorou, porque não ganhou uma bola Experimenta nascer preto, pobre na comunidade
O tempo foi passando e ela foi crescendo Cê vai ver como são diferentes as oportunidades
Agora lá na rua ela é a preta do suvaco fedorento E nem venha me dizer que isso é vitimismo hein
Que alisa o cabelo pra se sentir aceita Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu
Mas não adianta nada, todo mundo a rejeita racismo
Agora ela cresceu, quer muito estudar Existe muita coisa que não te disseram na escola
Termina a escola, a apostila, ainda tem vestibular Eu disse, cota não é esmola
E a boca seca, seca, nem um cuspe Cota não é esmola
Vai pagar a faculdade, porque preto e pobre não vai Eu disse, cota não é esmola
pra USP Cota não é esmola
Foi o que disse a professora que ensinava lá na Cota não é esmola
escola Cota não é esmola
Que todos são iguais e que cota é esmola Eu disse, cota não é esmola
Cota não é esmola
Cansada de esmolas e sem o dim da faculdade Cota não é esmola
Ela ainda acorda cedo e limpa três apartamentos no Cota não é esmola
centro da cidade
Experimenta nascer preto, pobre na comunidade Bia Ferreira
Cê vai ver como são diferentes as oportunidades
81
Capítulo 3 – Questão Social, Questão Racial e Serviço Social
Este capítulo visa recuperar aspectos sócio-históricos sobre a gênese e
institucionalização do Serviço Social no Brasil, seu fundamento e atuação com a questão
social junto a classe trabalhadora e os rebatimentos da ampliação do acesso de pessoas negras
ou pobres ao ensino superior na formação em Serviço Social, especialmente no ensino
superior público. Para isso recuperamos elementos de sua gênese sob duas perspectivas de
interpretação e apresentamos e analisamos a questão social, que fundamenta a atuação
profissional e sua relação com a questão racial. Por que e como se deu a origem e
institucionalização do Serviço Social no Brasil? Que instituições contribuíram para isso? Que
impactos a ampliação do ensino superior gerou à formação e exercício profissional em
Serviço Social? A pesquisa realizada, do tipo bibliográfica, se estabelece em diálogo com
pesquisadores das ciências sociais, serviço social, bem como o acúmulo de minhas vivências e
memórias como estudante da graduação, pós-graduação e no exercício profissional em
políticas sociais e na formação profissional.
É com toda a confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do
Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, se não
apelamos para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução
eficaz. Ora, como é principalmente a Nós que estão confiadas a salvaguarda da
religião e a dispensação do que é do domínio da Igreja, calarmo-nos seria aos olhos
de todos trair o Nosso dever. Certamente uma questão desta gravidade demanda
ainda de outros a sua parte de actividade e de esforços; isto é, dos governantes, dos
senhores e dos ricos, e dos próprios operários, de cuja sorte se trata. Mas, o que nós
afirmamos sem hesitação, é a inanidade da sua acção fora da Igreja. E a Igreja,
efectivamente, que haure no Evangelho doutrinas capazes de pôr termo ao conflito
ou ao menos de o suavizar, expurgando-o de tudo o que ele tenha de severo e
áspero; a Igreja, que se não contenta em esclarecer o espírito de seus ensinos, mas
também se esforça em regular, de harmonia com eles a vida e os costumes de cada
um; a Igreja, que, por uma multidão de instituições eminentemente benéficas, tende
a melhorar a sorte das classes pobres; a Igreja, que quer e deseja ardentemente que
todas as classes empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à
83
questão operária a melhor solução possível; a Igreja, enfim, que julga que as leis e a
autoridade pública devem levar a esta solução, sem dúvida com medida e com
prudência, a sua parte do consenso” (LEÃO XIII, 1891,s/n).
A resposta que a Igreja propõe é a da caridade, seria uma solução definitiva e
organizado, lhe atribuindo autoridade para essa ação. Essa resposta já estava sendo
experimentada em algumas regiões, como a Inglaterra, por meio de Sociedades de
Organização da Caridade – SOC, como uma evolução da filantropia:
(...) a primeira proposta de prática para o Serviço Social no final do século XIX.
Entendia a Sociedade que só coibindo as práticas de classe dos trabalhadores,
impedindo suas manifestações coletivas e mantendo um controle sobre a “questão
social” é que se poderia assegurar o funcionamento social adequado (
MARTINELLI, 1989, p. 99).
A principal bandeira dessas Sociedades era a organização científica da assistência,
crendo que por este meio seria possível ter controle sobre a questão social:
20
Não é objeto de análise a configuração do Serviço Social neste país, mas, importante indicar que a transição do
escravismo para o capitalismo naquele país se dá em meados do século XIX, tendo por conflito a Guerra da
Secessão (1861-1865). Em 1965 é publicada a 13ª Emenda à Constituição EUA, abolindo a escravidão, no
entanto, tal como no Brasil, a abolição não alterou substancialmente a situação economica dos novos livres. À
época, o Brasil, e em especial o Estado de São Paulo, recebeu mais de 2 mil americanos “descontentes” com o
resultado da referida Guerra, ou seja a abolição da escravidão, concentrando-se na região de atual dos municípios
de Santa Bárbara d’Oeste, Americana, Nova Odessa.
84
Sociedade de Organização da Caridade de Baltimore que Mary Richmond promoveu a
aprendizagem da aplicação científica da filantropia, como ela postulava o Serviço Social
(MARTINELLI, 1989). Com essa expansão, a ação assistencial referenciada em
conhecimentos técnicos especializados, extrapolava a prática assistencial unicamente à
motivação religiosa.
No caso brasileiro, essa atuação da Igreja Católica também já não era inédita, uma vez
que católicos que não participavam do clero, desde o período colonial, atuou de forma
assistencial no campo da educação, sociedade e saúde, por meio das Irmandades, Confrarias e
ainda Ordens religiosas.
Assim, a Igreja Católica teve um o papel ativo na gênese do Serviço Social, sob o
mando de sua doutrina social e por meio de seus fiéis – o laicato. Junto a orientação da
85
doutrina docial da Igreja Católica, a institucionalização do Serviço Social também recebe a
influência do pensamento social positivista, articulando o arranjo teórico-doutrinário que
caracteriza o projeto profissional e sua intervenção na questão social nesse período.
Assim, o laicato mobilizado pela Ação Católica organizado por meio do Centro de
Estudos e Ação Social – CEAS funda a primeira Escola de Serviço Social, em São Paulo,
instalada em 15 de fevereiro de 1936. Em 1937, no Rio de Janeiro21, ocorre a fundação do
Instituto de Educação Familiar e Social, que se encarregará da formação de mulheres, de
todas as classes sociais e contará com a Congregação das Filhas do Coração de Maria, ordem
francesa recém-chegada ao Brasil e que organizará a escola com base no trabalho social
realizado na França (AGUIAR, 1995.
21
Importante indicar que, embora seja inegável a influência da Igreja Católica no Serviço Social brasileira,
retomadas histórico-sociais tem apresentado se não uma nova interpretação, novos elementos para compreender
esse processo, como a reivindicação de uma origem negra e laica do Serviço Social no Rio de Janeiro, como
provocado por Graziela Scheffer (2016).
“No início, o Serviço Social era destinado só para as mulheres. Depois surgem escolas masculinas, no período
22
noturno. Só com o tempo é que teremos escolas para rapazes e moças” (AGUIAR, 1995, p.30).
86
estimulando a entrada de docentes católicos nas escolas que não tinham orientação, alargando
a influência do arranjo teórico-doutrinário
23
O desenvolvimento de cada um destes projetos profissionais não será objeto deste trabalho, no
entanto, ante a ampla abordagem da literatura profissional, IAMAMOTO (2019; 2006), NETTO (2005)
e a síntese de CARDOSO (2013).
87
classes sociais, seus conflitos, o reconhecimento da centralidade da categoria trabalho e dos
trabalhadores. (IAMAMOTO, 2019).
88
É a existência dessas forças políticas que torna possível a contestação, expressa
massivamente pelos assistentes sociais brasileiros no III CBAS (IAMAMOTO, 2019). Tal
virada ressoa o movimento de reconceituação do Serviço Social na América Latina que dentre
outros elementos, preocupou-se com:
Por outro lado, é por meio dessa mesma contrarreforma que ocorre a ampliação do
ensino superior com a inserção massiva de pessoas negras, indígenas e de baixa renda. Por um
lado, precariza-se a formação histórico-crítica e por outro inclui-se pessoas alijadas do ensino
superior privado subordinado à ordem do capital.
89
Temos como expressão desse processo a criação do Grupos Temáticos de Pesquisa
(GTP) - Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Feminismos,
Raça/Etnia e Sexualidades24 (2010) no âmbito da Associação Brasileira de Pesquisa e Ensino
em Serviço Social – ABEPSS; ; a publicação “Subsídios para o debate da questão étnico-
racial na formação em Serviço Social” (ABEPSS, 2018); a publicação da série Assistente
Social no combate aos preconceitos, com um caderno temático dedicado ao Racismo (2016), a
campanha “Assistente Sociais no combate ao racismo”, bem como o livro desta campanha
criação da Frente Nacional Assistentes Sociais no Combate ao Racismo (2020) realizado pelo
Gestão 2017-2020 do CFESS; organizada pelo conjunto CFESS-CRESS, bem como a
produção de conhecimento incorporando da questão racial na área do Serviço Social
24
Criado em dezembro de 2010 durante o XII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social - ENPESS
realizado no Rio de Janeiro, como uma estratégia coletiva de fortalecimento e visibilidade das discussões sobre
as relações sociais de gênero, raça/etnia, geração e sexualidades no âmbito do Serviço Social, bem como “forma
de resistência contra o produtivismo, a pressão e o isolamento dos(as) pesquisadores(as), mediante a
coletivização dos debates de ponta e a indicação dos temas relevantes para a área” (ABEPSS, 2013)
90
Estudantes de Serviço Social - ERESS da VII Região da ENESSO, região que corresponde ao
Estado de São Paulo e abrange o maior número de escolas de Serviço Social que organizou
um encontro histórico no ano de 2013.
Questão Social
A questão social é/foi objeto de reflexão de diferentes pesquisadores desde o final do
século XIX, mas ganhou maior espaço de discussão no século XX, dada a ampliação de suas
expressões capitalista quanto a sua compreensão/interpretação - ora ameaça, ora próprio do
capitalismo, ora um atraso…
91
No Serviço Social, também encontramos diferentes tratamentos quanto à questão
social, especialmente em razão de sua vinculação ao surgimento da profissão, interpretação
possível a partir dos trabalhos de José Paulo Netto (1996) ao identificar que foi justamente no
processo de ampliação das expressões da questão social, em razão da fase monopólica do
capital, que além destas serem notadas e discutida, também foram mobilizadas as condições
para intervenção na questão social, se prepara que a citação é longa:
92
Ora a ‘questão social’ é determinada por essa lei, tal ‘questão’, obviamente, ganha
novas dimensões e expressões à medida que avança a acumulação e o próprio
capitalismo experimenta mudanças. Mas ela é insuprimível nos marcos da sociedade
onde domina o MPC (modo de produção capitalista). Imaginar a solução da ‘questão
social’ mantendo-se reproduzindo-se o MPC é o mesmo que imaginar que o MPC
pode se manter e se reproduzir sem acumulação do capital (2007, p. 97)
Iamamoto e Yazbeck, compreendem que a ‘questão social’ expressa a banalização do
humano, resultante de indiferença frente à esfera das necessidades das grandes maiorias e dos
direitos a elas atinente” (2019, p.37) e que:
93
Deve-se observar que as/os autores brasileiros citados coadunam quanto a origem da
questão social, compreendem-na como indissociável do trabalho livre e própria do conflito
capital/trabalho, mas, com exceção de Octávio Ianni, nenhum destes autores dedicam atenção
para compreender a formação da classe trabalhadora no Brasil e o trabalho livre no Brasil.
Concentram suas análises já no contexto de generalização do trabalho livre, ainda que se
referenciam em autores que o fizeram - como o próprio Octávio Ianni e José de Souza
Martins.
94
e também por outros sujeitos sociais, ela atende aos interesses dominantes de senhores de
escravo-capitalista, motivo que os levou a organizar tal transição da forma mais lucrativa
possível. É necessário atenção na compreensão desse arranjo no modo de produção, do
mesmo modo que, no campo ideológico, racismo e eugenia sustentam estes arranjos.
Tal arranjo contou com o papel ativo do Estado, especialmente por meio de um
conjunto de Leis, que desde meados do século XIX preparavam esta transição, a saber: Lei
Feijó (1831), Lei Eusébio de Queiroz (1850), Lei de Terras (1850), Lei do Ventre Livre
(1871), Lei do Sexagenário (1885) e Lei Áurea (1888).
A Lei Feijó, Lei de 7 de novembro de 1831, que “declara livre todos os escravos
vindos de fora do Império e impões penas aos importadores dos mesmos” (BRASIL, 1831).
Conhecida como “lei para inglês ver”, mais cumpriu um papel diplomático com a Inglaterra
do que efetividade na libertação das pessoas escravizadas - mas esta lei foi subsídio para que
Luiz Gama argumentasse pela alforria de centenas de escravizados.
2ª parte seria aplicada para a libertação, até a metade do seu valor, dos escravos de
lavoura e mineração cujos senhores quisessem converter em livres;
96
3ª parte seria destinada a subvencionar a colonização por meio do pagamento de
transporte de colonos que forem efetivamente colocados em estabelecimentos agrícolas de
qualquer natureza.
Por fim, a Lei 3353 de 13 de maio de 1888, Lei Áurea, declarou extinta a escravidão
no Brasil. Diferente das legislações citadas anteriormente, que especificaram a
operacionalização das referidas leis, a lei da abolição nada legislou quanto ao destino da
população liberta (BRASIL, 1888).
A primeira diferença entre estes dois tipos de trabalho livre é que, apesar de ambos
estarem separados dos meios de produção, no escravismo a força de trabalho e o trabalhador
não eram separados, eram uma coisa só; enquanto no colonato (e depois no capitalismo) força
de trabalho e trabalhador, são estatutos diferentes.
O regime do colonato foi uma estratégia capitalista, criada pelo capital personificado
pelo fazendeiro, por uma necessidade de atender ao comércio, sem a necessidade de
transformar drasticamente a forma de produção, sem perdas econômicas da passagem de um
modo para o outro.
Por isso, José Martins vai indicar, o regime escravista era mais sujeito ao comércio do
que à produção: “A escravidão definia-se, portanto, como uma modalidade de exploração da
força de trabalho baseada direta e previamente na sujeição do trabalho, através do
trabalhador-mercadoria, ao capital comercial” (MARTINS, 2017, p. 10)
98
forma capitalista de renda, e portanto, o fazendeiro não é um senhor feudal, como por vezes
alguns intérpretes do surgimento do capitalismo no Brasil sugerem.
Por fim, vale lembrar ainda que, teria sido impossível a expansão do capitalismo sem a
escravidão colonial.
99
encontrando maiores dificuldades em ter sua força de trabalho comprada pelo novo modo de
produção. É dessa cisão racial no interior da própria classe que é instituída que forma-se o
exército industrial de reserva e sob a qual recaem principalmente as mazelas do conflito
capital/trabalho.
100
sofisticada que favorece a manutenção da supremacia branca, e que pode se manifestar como
uma das formas específicas de expressão da questão social; embora também seja um elemento
constitutivo da própria questão social.
Considerações Finais
Tal como na Europa a Igreja Católica desenvolveu o Serviço Social para se ocupar
com os operários, também no Brasil essa vai ser sua preocupação, bem como suas famílias
Inicialmente, inicialmente apreendidos como classes subalternas e, posteriormente, com base
nas concepções teóricas, políticas e ideológicas assentadas em base nas formulações da
tradição marxista, apreendida como classe trabalhadora, tendo como objeto de seu trabalho a
questão social.
Assim o Serviço Social sempre atuou com as expressões da questão social, no entanto,
ao longo desse período, modifica-se a compreensão do significado da questão social, suas
diversas expressões, o posicionamento e sentido da profissão em face delas.
Diante destes percursos, tenho entendido que embora raça seja um fenômeno anterior
à formação da classe, a invenção da raça é uma lógica específica que sustentou as bases
fundantes do capitalismo por meio da escravidão. Num embate dialético com sua negação, o
trabalho livre e assalariado, seus antagonismos podem incorporar, objetivar, reproduzir,
multiplicar ou resistir, contestar, repelir, combater a dialética racial. Uma vez incorporada à
nova ordem instituída, o ônus do conflito capital/trabalho é o que convencionamos nomear
como “expressões da questão social”. Seu fundamento é também a divisão racial e a divisão
social que sustenta a supremacia branca desde a escravidão colonial. Daí a dualidade de
apresentar-se como expressão e também como constitutiva da questão social; e ainda de se
fazer presente em qualquer esfera da vida social.
Por fim, quero refletir que a compreensão e incorporação da questão racial à dinâmica
da questão social só se torna uma tensão quando da negação da questão racial, e essa encontra
maior resistência nos espaços hegemônicos da elite, como a universidade e isso, obviamente,
não excetua o Serviço Social.
25
Eu cresci em uma periferia urbana na cidade de São Paulo - Grajaú - e fui formada por movimentos sociais,
organizações da sociedade civil, coletivos cultuais e elementos da Cultura Hip Hop que em suas práticas,
apresentavam-me esses fundamentos - a exemplo das canções “Leis”, Face da Morte; Brasil com P de GOG,
Castelo de Madeira de A Familia, Negro Drama de Racionais, Homem na Estrada de Racionais, Mudar o Mundo
de Face da Morte, Zumbi de Tocais MCs, todo o album “A Peste Negra” do Clã Nordestino, todo o álbum
Sobrevivendo no Inferno do Racionais MC’s.
104
tem sido apreendida pela classe trabalhadora e que contrasta com os limites postos com a
interpretação posta pelos no contexto acadêmico.
Sobre isso, Tiarajú Pablo D’Andrea (2022), na esteira de Helena Silvestre, que dá
origem ao termo, indica que:
105
Ismália Primeiro cê sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles
Nega o deus deles, ofende, separa eles
Com a fé de quem olha do banco a cena Se algum sonho ousa correr, cê para ele
Do gol que nós mais precisava na trave E manda eles debater com a bala que vara eles, mano
A felicidade do branco é plena Infelizmente onde se sente o sol mais quente
A pé, trilha em brasa e barranco, que pena O lacre ainda tá presente só no caixão dos adolescente
Se até pra sonhar tem entrave Quis ser estrela e virou medalha num boçal
A felicidade do branco é plena Que coincidentemente tem a cor que matou seu ancestral
A felicidade do preto é quase Um primeiro salário
Duas fardas policiais
Olhei no espelho, Ícaro me encarou: Três no banco traseiro
"Cuidado, não voa tão perto do sol Da cor dos quatro Racionais
Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei" Cinco vida interrompida
O abutre quer te ver de algema pra dizer: Moleques de ouro e bronze
"Ó, num falei?!" Tiros e tiros e tiros
No fim das conta é tudo Ismália, Ismália O menino levou 111
Ismália, Ismália Quem disparou usava farda (Ismália)
Ismália, Ismália Quem te acusou nem lá num tava (Ismália)
Quis tocar o céu, mas terminou no chão É a desunião dos preto junto à visão sagaz (Ismália)
Ismália, Ismália De quem tem tudo, menos cor, onde a cor importa demais
Ismália, Ismália "Quando Ismália enlouqueceu
Ismália, Ismália Pôs-se na torre a sonhar
Quis tocar o céu, mas terminou no chão Viu uma lua no céu
Ela quis ser chamada de morena Viu outra lua no mar
Que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena No sonho em que se perdeu
A raiva insufla, pensa nesse esquema Banhou-se toda em luar
A ideia imunda, tudo inunda Queria subir ao céu
A dor profunda é que todo mundo é meu tema Queria descer ao mar
Paisinho de bosta, a mídia gosta E num desvario seu
Deixou a falha e quer migalha de quem corre com fratura Na torre, pôs-se a cantar
exposta Estava perto do céu
Apunhalado pelas costa Estava longe do mar
Esquartejado pelo imposto imposta E, como um anjo
E como analgésico nós posta que Pendeu as asas para voar
Um dia vai tá nos conforme Queria a lua do céu
Que um diploma é uma alforria Queria a lua do mar
Minha cor não é uniforme As asas que Deus lhe deu
Hashtags #PretoNoTopo, bravo! Ruflaram de par em par
80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo Sua alma subiu ao céu
Quem disparou usava farda (Mais uma vez) Seu corpo desceu ao mar"
Quem te acusou nem lá num tava (Banda de espírito de
porco) Olhei no espelho, Ícaro me encarou:
Porque um corpo preto morto é tipo os hit das parada: "Cuidado, não voa tão perto do sol
Todo mundo vê, mas essa porra não diz nada Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei"
O abutre quer te ver no lixo pra dizer:
Olhei no espelho, Ícaro me encarou: "Ó, num falei?!"
"Cuidado, não voa tão perto do sol
Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei" No fim das conta é tudo Ismália, Ismália
O abutre quer te ver drogado pra dizer: Ismália, Ismália
"Ó, num falei?!" Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
No fim das conta é tudo Ismália, Ismália Ter pele escura é ser Ismália, Ismália
Ismália, Ismália Ismália, Ismália
Ismália, Ismália Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão Quis tocar o céu, mas terminou no chão
Ter pele escura é ser Ismália, Ismália (Terminou no chão)
Ismália, Ismália Ismália
Ismália, Ismália (Quis tocar o céu, terminou no chão)
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
(Terminou no chão) Emicida
106
Epílogo - Sou negro(a) e entrei na Unifesp, e agora?26
“Sou negro(a) e entrei na Unifesp e agora?” Era esse o tema da roda de conversa que aconteceria
como parte da programação da II Semana da Consciência Negra na Unifesp Baixada Santista, em 2014.
Confesso que não gostava do nome da atividade, por considerá-la meio alarmista. Mas talvez eu tenha
subestimado a complexidade que é ser pobre, preto e periférico no ensino superior público. O que a
memória me permite lembrar, é que nosso convidado para mediar a atividade teve um imprevisto e
por isso indicou outra pessoa para cobrir sua ausência. A nova pessoa utilizava cadeira de rodas para
se locomover e chegaria de carro. Quando chegou, a pessoa teve dificuldades para utilizar o
estacionamento da UNIFESP, que era essencial para facilitar seu acesso ao campi. A mediação para a
autorização da entrada do carro da pessoa convidada, estava demorando e entre nosso público
tínhamos adolescentes que para nós eram muito importantes. Eram adolescentes que moravam nas
adjacências periféricas do campi e que não conheciam a universidade. Eram adolescentes e jovens que
tínhamos nos empenhado em cativar para que ocupassem a universidade, mas que só havíamos
conseguido acessá-los pelo vínculo afetivo e comunitário que tinham com o Ricardo. Como parte da II
SCN, realizamos um ato em memória do Ricardo, realizando percurso que envolvia a Unifesp, a
delegacia e o local em que Ricardo morou. Ricardo Ferreira Gama era um trabalhador terceirizado que
atuava na equipe de limpeza da Unifesp. Pouco mais de um ano antes, o Ricardo estava em frente a
faculdade em seu horário de almoço, quando presenciou uma intervenção policial num imóvel vizinho
à Unifesp. Apesar do Ricardo estar num contexto em que as abordagens policiais se dão de modo
diferenciado, os policiais trataram-no como o tratavam há duas quadras dali, onde ele residia. Naquela
área, periférica, a violência policial é uma velha conhecida. Então, mesmo o Ricardo estando
uniformizado e em seu local de trabalho, os policiais que realizavam uma intervenção no imóvel
vizinho à UNIFESP, tratou o Ricardo como o trataria há duas quadras dali: com violência. Incomodados
com o Ricardo ali, agrediram-no e estavam levando-o no camburão sem qualquer motivo. Dois
estudantes decidiram intervir no que acontecia, questionando os policiais sobre o que estava
acontecendo, para onde e o motivo pelo qual Ricardo, já machucado, estava sendo conduzido. Um
outro estudante gravou parte da cena. Os estudantes não foram respondidos e os policiais levaram
Ricardo ferido no camburão. Os estudantes que haviam se envolvido na cena foram procurar por
Ricardo na delegacia e no pronto-socorro. Em nenhum dos dois lugares encontraram informaçõees
oficiais de Ricardo. Na delegacia, a pessoa que foi procurar informações, ao não conseguí-las informou
que queria prestar queixa e denunciar o que havia assistido. Enquanto ouviam o depoimento, os
agentes da segurança constrangiam e insinuavam ameaças, ao ponto da pessoa desistir de registrar a
denúncia. De volta a universidade, encontraram o Ricardo. Ele estava com curativos nos ferimentos e
mesmo após o ocorrido, havia voltado para realizar sua jornada de trabalho. Abalado, ele pediu aos
estudantes que não divulgassem o vídeo realizado quando ele foi levado ferido pelos policiais. Sobre o
período em que ele ficou desaparecido, sabe-se que os policiais levaram-no ao pronto-socorro para
fazer os curativos e depois levaram-na até a casa de Ricardo, bairro em que atuavam e aterrorizavam a
população dali. A delegacia, a moradia do Ricardo e a universidade localizavam-se há cerca de três
26
Esta narrativa é a reprodução integral, revista e ampliada de um dos ensaios que formam o Caderno
“Universidade: produção e reprodução do conhecimento OU de opressão por meio do conhecimento” que é parte
de minha dissertação de mestrado intitulada “‘Faz isso por nóis, faz essa por nóis’: reflexões sobre a periferia
como sistema cultural e a universidade pública contemporânea”, defendida em 2019 no Programa de Pós-
Graduação em Mudança Social e Participação Política - PROMUSPP na Escola de Artes, Ciências e
Humanidades - EACH da Universidade de São Paulo - USP.
107
quadras de distâncias entre si, formado um triângulo. Os estudantes, compreendendo que Ricardo
havia sido ameaçado e possivelmente torturado no período em que ficou desaparecido e em poder da
polícia, respeitaram o pedido de não divulgarem o vídeo. No entanto, pelo abuso e violência, havia o
desejo de se refletir como enfrentar essa situação, se formalizavam a denúncia, entre outros. No dia
seguinte ao ocorrido, na quinta-feira, os estudantes continuaram sem divulgar o vídeo, mas
organizavam uma reunião mais restrita para refletir o ocorrido. Eu não recordo com exatidão se essa
reunião ocorreu mesmo, mas se ocorreu acredito que deva ter sido reunião com público restrito,
considerando a gravidade do caso. Na época eu era engajada em diversos espaços da universidade,
inclusive os de organização de estudantes, mas não compunha a elite branca do movimento estudantil
e se essa reunião tivesse acontecido de modo mais aberto, eu certamente teria participado. Não foi o
caso. Na quinta-feira Ricardo continuou a trabalhar mesmo ferido. Na madrugada de quinta-feira para
sexta-feira, já em casa, o Ricardo se dirigia para um trailer de lanches próximo de sua casa, quando um
carro com vidros escuros passou por ele dando-lhe tiros e executando-o. Na manhã de sexta-feira, o
campi da Unifesp, estava completamente mobilizado e envolvido no ocorrido. Não tinha como não
associar a execução aos episódios ocorridos menos de 48 horas antes. Um clima de medo envolveu a
universidade, mesmo sabendo que a maior parte daquele público nunca sofrera ou mesmo sofrerá
violência policial. Mas esse medo foi bem presente naqueles que historicamente são alvos da polícia.
Houve também uma preocupação imediata com os estudantes que haviam interagido com os policiais,
sendo necessário retirá-los da cidade de Santos, temendo-se pela integridade física deles. Num
primeiro momento a universidade teve uma postura de não dar publicidade ao caso, temendo-se pela
segurança de toda a comunidade acadêmica, especialmente a que se envolveu no episódio da
agressão. A preocupação também residia no fato de ser sexta-feira, portanto véspera do fim de
semana, período em que a comunidade acadêmica não estaria na universidade e também período em
que “acertos de conta” poderia ser realizados. Contudo, em dado momento, nós, estudantes,
percebemos que a intenção da universidade também indicava um silenciamento sobre o ocorrido,
divergindo da intenção de estudantes, de não normalizar e naturalizar a execução nas periferias.
Muitas ações e histórias ocorreram (e ocorrem) em torno desse assassinato. Mas, para o que preciso
contar, acredito que essas informações são suficientes para compreender um dos desdobramentos
desse cenário, que foi a aproximação do e fortalecimento no território periférico do campi e a luta por
justiça e memória de Ricardo Ferreira Gama. Assim, em 2014, como parte das atividades da II Semana
da Consciência Negra na UNIFESP Baixada Santista, uma caminhada em memória de Ricardo foi
realizada, percorrendo-se o quadrante onde ele vivia e trabalhava, mobilizando movimentos sociais,
familiares e comunidade acadêmica.
O término da caminhada era na própria UNIFESP, na sala do Espaço Estudantil, onde ocorreria
também a nomeação do centro acadêmico de Serviço Social em memória ao Ricardo – passando-se a
chamar Centro Acadêmico Livre Ricardo Ferreira Gama – CARFG. Somente nessa atividade
conseguimos atrair alguns adolescentes para a universidade, mesmo desde o ano anterior termos
realizado diversas outras ações com essa intencionalidade. No dia seguinte a caminhada, os
adolescentes tornaram a ir à universidade, o que para muitos de nós era uma conquista e
esperávamos fortalecer esse vínculo e a possibilidades de construção de uma universidade pública que
disso poderiam surgir.
108
Quem não tem crachá?
Então, enquanto aguardávamos a mediação para a entrada de nossa convidada para a roda de
conversa sobre negras/os na universidade, os adolescentes que aguardavam para participar da
atividade foram incentivados a conhecer o campi. Eles viram o saguão, a biblioteca, o espaço
estudantil... E chegaram ao laboratório de informática. Aberto e sem nenhum informação que
restringisse o acesso ao laboratório, os adolescentes adentraram esse espaço e começaram a utilizar
alguns computadores. Outras pessoas também estavam na sala e utilizavam os computadores quando
a diretora do campi, Regina Spadari, acompanhadas por seguranças patrimoniais chegaram ao
laboratório e de forma hostil anunciou para as pessoas que quem não fosse estudante da UNIFESP se
retirasse daquele ambiente. Estudantes questionaram-na quanto ao motivo de se retirarem, já que
aquele espaço era público e nunca houve qualquer forma de restrição ao seu uso. Em resposta, a
diretora interpela a estudante que a questionou perguntando “você pode entrar na prefeitura e usar
uma sala da prefeitura? Podem entrar no palácio da república e usar?” E insiste, que, “por favor,
saiam, isso não é uma lan house”, que ali era um local “público de caráter determinado. Não é para
qualquer pessoa de fora entrar e usar (...) aqui não é uma lan house”. Obviamente que o pedido se
dirigia aos adolescentes, que constrangidos e entendendo que ali não era um lugar para eles estarem,
cabisbaixos e sem titubear ou responder uma palavra à diretora, levantaram-se e retiraram-se do
ambiente. Nisso, alguns estudantes, avisados do que estava acontecendo e considerando a medida
violenta, dirigiram-se até o laboratório para mediar o conflito que a diretora estava gerando. Quando
chegam nesse espaço, já encontram os adolescentes sendo convidados a se retirar de modo
constrangedor. Dirigem-se à diretora tentando contextualizá-la sobre quem eram os adolescentes, o
que estavam aguardando, etc, mas não são ouvidos e sem margem para diálogos, se alteram e
discutem com a diretora. A diretora, novamente volta sua atenção para dentro do laboratório de
informática e torna a repetir que quem não fosse estudante da UNIFESP que se retirasse e como
ninguém mais se retirava, ela dirige-se à duas estudantes, negras, as únicas pessoas negras na sala, e
pedi-lhes os crachás. Confusas com os acontecimentos e constrangidas pela inquisição, procuram o
crachá para apresentar à diretora, ao mesmo tempo em que estudantes não-negros questionam a
medida da diretora. Uma estudante não-negra dirige-se à diretora e pergunta o motivo delas terem
que apresentar o crachá, já que havia outras pessoas na sala que não estavam com crachá visível e nem
por isso estavam sendo questionadas. A diretora responde-lhe que não pediu o crachá para a
estudante que a questionou, pois a conhecia, mas que pediria o de outras pessoas também, que
aquela era a primeira fila. A resposta quase teria convencido, não fosse o fato que na primeira fileira
antes das estudantes negras e antes da estudante que a diretora dizia reconhecer como pertencente à
comunidade acadêmica havia ainda mais uma estudante, a primeira pessoa da primeira fila, não negra,
sem crachá e que também compreendeu que o que acontecia ali era um processo discriminatório. A
primeira estudante da fila dirige-se à diretora dizendo que elas não se conhecem, que ela nunca havia
visto a diretora na vida e um novo conflito surge. Estudantes identificam o racismo se expressando, as
estudantes vítimas ficam confusas sobre como reagir, os adolescentes se retiram da universidade – e
pelos três anos que eu ainda segui ali, sei que nunca voltaram. As estudantes vítimas do racismo
expressado pela diretora, tão concreto que gerou a intervenção de pessoas não-negras no momento
em que o ato discriminatório ainda acontecia, decidiram e foram apoiadas à registrar o boletim de
ocorrência e dirigiram-se à delegacia – a mesma delegacia envolvida no caso de Ricardo. Depois de um
longo período de espera, não foi registrado o boletim de ocorrência pelo crime de racismo, pois, na
compreensão do delegado, a diretora poderia fazer o que quisesse na instituição em que dirige.
109
Vai se tratar
Os estudantes organizadores da II SCN, bem como estudantes que haviam se mobilizado para
participar da roda de conversa cujo tema era “Sou negro(a) e entrei na UNIFESP e agora?”, cientes de
que o que acontecera naquele início de tarde era justamente expressões do cotidiano que motivara a
proposição daquela roda de conversa, tornam a atividade uma atividade de denúncia ao ocorrido.
Enquanto narravam o que tinha acontecido no espaço em que seria a roda de conversa, um estudante
branco se aproxima da roda. Com os braços para trás, riso no rosto, posiciona-se de modo imponente
e ri do que ouve e vê. Reconhecido por ter sido o responsável pela prática de um trote de teor racista
na semana de recepção daquele mesmo anos, algumas/ns que estavam na roda de conversa dirige-se à
ele e questionam-o, perguntando do que ele estaria rindo, se ele achava o racismo engraçado. Ele
responde que se eles não achavam, o problema é deles. E um novo conflito se instala, com
intimidações, posturas corporais, discussões verbais. O estudante autor do trote racista recebe o
apoio de alguns amigos que em sua defesa dirige-se aos estudantes negras/os dizendo que eles tinham
que esquecer o trote, que já fazia tempo aquela história. Seus amigos são informados de que o
conflito em curso não se relacionava ao episódio do trote e sim a provocação que ele havia lançado aos
estudantes negros em um momento de fragilidade. Seus próprios amigos tem dificuldade em
defendê-lo nessas circunstâncias, e passam a tentar retirá-lo daquele ambiente. Ele ainda segue
algumas estudantes, constrangendo-as, intimidando-as. Uma delas chega a tentar desferir-lhe um
soco, mas não o alcança – esse estudante é alto e de porte atlético. Ele ciente de que uma agressão
física poderia complicá-lo, apenas segue as estudantes, com braços para trás e peitoral para frente,
curvando-se em direção a elas e despejando-lhes agressões verbais. Em dado momento ele leva as
mãos para a frente do corpo, segura seu saco escrotal e força sua pelvis em direção à uma das
estudantes que também é dissuadida a se afastar do conflito.
Antes de se retirar da cena conflituosa esse estudante ainda tem tempo de virar para alguns
estudantes negras, eu entre eles, e dizer que isso estava acontecendo por terem inveja dele, por ele
ter olhos verdes, que estava sofrendo racismo reverso e que precisávamos ir nos tratar, pois o racismo
estava em nossas cabeças. Finalmente algumas amigas dele conseguem retirá-lo do ambiente. Ao
fundo, o futuro diretor do campi assiste toda a cena, literalmente de braços cruzados.
Trote 2014
O trote a que faziam menção refere-se ao episódio ocorrido no início daquele ano. Durante o
período de matrícula da calourada, estudantes veteranos costumam celebrar esse momento. Trata-se
de um momento importante na vida do estudante que iniciará sua vida acadêmica e quando não-
violento, o trote pode ser um momento importante para o acolhimento e integração de novos
estudantes. Sabendo-se que os trotes também ocorrem de modo violento e ao invés de significar o
início de uma nova fase pode se tornar uma prática vexatória, violenta e humilhante, cada vez mais as
universidades mobilizam-se para combater trotes nesses moldes. Como as matrículas ocorrem antes
do início das aulas, nem todas/os as/os calouras/os se mobilizam para esse momento, por estarem no
período de férias. Contudo, por conta da greve realizada em 2012, os anos letivos seguintes foram
afetados, de modo que no início de 2014, quando ocorriam as matrículas, ainda estávamos concluindo
o ano letivo de 2013 e por isso muitas/os estudantes mobilizaram-se para realizar o trote. Eu sempre
me envolvi com as atividades de recepção de estudantes e isso incluía o trote. Acompanhei muitos
momentos dedicados ao trote, para fazer a defesa de que quem não queria passar por aquilo não seria
obrigada/o. Como eu me envolvia em outras atividades de recepção, não era incomum as/os
110
calouras/os me reconhecerem das redes sociais e do momento da matrícula – aproveitávamos o
tempo em que aguardavam na fila da matrícula para conversar com quem chegava, tirar dúvidas,
prestar apoio, parabenizá-las/os, entre outros – era comum que depois que a matrícula desse certo me
procurassem para agradecer, comemorar e, conforme fosse o caso pedir proteção contra o trote ou
também para “aplicar o trote”. Por ser uma universidade no litoral, era comum aplicarmos o tema
marítimo/litorâneo em TUDO que desenvolvíamos – Cursinho CARDUME (que tem peixessores e
peixestudantes), Coletivo CONTRA-MARÉ (coletivo LGBT), Centro Acadêmico NAUTILUS .... No trote de
2014 alguém apareceu com alguns potes de tinta branca e como geralmente as cores pintadas nos
estudantes relacionam-se com as cores do curso em que são calouros, para aproveitarem a tinta
branca, veteranas/os estavam pintando calouras/os de qualquer curso com aquela tinta. Pintavam-as
com marcações simulando o protetor solar, afinal, era a “federal no litoral”. Contudo, ao aplicar o
trote numa caloura de Fisioterapia, negra, um veterano de Educação Física, de características
caucasiana, passou-lhe tinta branca, mas ao invés de fazer menção ao filtro solar disse à garota que
agora ela poderia entrar na universidade, pois “a universidade é branca”, mencionando de forma
descontextualizada a frase que havia num cartaz-denúncia que havia no campi. Eu não presenciei essa
cena, já havia “encerrado meu turno” naquele dia. Apesar de não ter presenciado, logo me
informaram sobre isso, pois algumas pessoas sentiram-se desconfortáveis com aquela frase e
perceberam que a estudante e sua família, haviam ficado desconcertadas com o teor racista do trote,
mas ninguém conseguiu interferir/mediar a situação. Eu não conhecia/tinha conversado com essa
estudante, mas havia visto-a durante o dia. Sua presença no campus foi percebida por mim e outras
estudantes negra/os e/ou periféricas/os. Sabendo das particularidades que nos afetam, a cada nova
turma, procurávamos reconhecer entre àquelas/es que chegavam, quem compartilhavam dessas
particularidades, procurando ampliar as possibilidades de permanência, especialmente simbólica. Mas
nem precisava estar atenta à isso para ter notado aquela estudante e sua família já que eram a única
família negra acompanhando uma estudante naquele dia.
Exposição
Sabendo do ocorrido, entrei em contato com a estudante pelas redes sociais. Procurei
orientação junto ao Núcleo de Apoio ao Estudante, que não apresentou nenhuma estratégia de busca
ativa para alcançar e acolher e estudante vítima. Também fiz uma postagem em minha rede social no
Facebook em que eu desabafava e problematizava o ocorrido. Apesar da postagem não ter sido
pública, uma pessoa copiou o texto e publicou a reflexão no grupo de facebook mais utilizado pela
comunidade acadêmica da UNIFESP Baixada Santista, no facebook: o Unifespianos. Acredito que quem
realizou a postagem não tinha a intenção de me expor, tanto que não postou que era uma postagem
minha, provavelmente intencionava chamar a atenção para o fato, promover a reflexão, sei lá.... Só sei
que essa postagem gerou um grande desgaste e exposição do caso e do texto, tanto para mim,
quanto para quem reproduziu minha postagem. Na postagem, eu não falava quem fez o que, eu
focava a reflexão na expressão do racismo naquele gesto, nem mesmo caracterizava o autor do trote,
exceto com a informação de que ele era caucasiano – o que, na época, ainda significava a maior parte
das/os estudantes. Nos comentários a discussão foram intensas e colocaram o racismo em questão.
Havia uma diversidade de comentários e posicionamentos sobre o ocorrido, em apoio à estudante e
em apoio ao veterano, ainda que desconhecido. Em alguns comentários falava-se em um pedido de
desculpas à estudante. O autor do trote, incomodado por ter sido interpretado como racista resolveu
ele mesmo se identificar, reivindicando a autoria do trote numa nova postagem. A postagem pedia
desculpas à comunidade unifespiana. Mas não eram desculpas pelos fatos ocorridos. Eram desculpas
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por terem que ler o texto de algum negro que distorcia a realidade. Pedia desculpas às pessoas que
foram incomodadas com um texto daqueles. E afirmava que não pediria desculpas pelo trote, afinal,
ele não era racista a postagem seria um ataque que tinha apenas a intenção de “denegrir” a imagem
dele. A postagem gerou a comoção da branquitude unifespiana que rapidamente se reconheceu nesse
estudante. Eu não desejo que seus olhos leiam tudo que foi escrito naqueles comentários, embora eu
mantenha em arquivo pessoal todas estas postagens. Como parte do apoio surgido ao estudante
autor do trote racista, duas valem a pena de serem mencionadas: o estudante adicionou seu pai, um
policial civil, no grupo do facebook e o pai passou a fazer a defesa do filho nos comentários e também
a se posicionar em outras assuntos no grupo27; e no dia seguinte, no trote, veteranos pintaram-se com
tinta preta, fotografaram-se, postaram no Unifespianos, protestando contra o racismo reverso. A
estudante que sofreu o trote racista nunca deu início ao curso e evadiu.
DIREÇÃO RACISTA
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Inclusive nas postagens sobre furtos na região, dizendo que se fosse o território de atuação dele, os
furtos não estariam impunes. Quando questionado se aquilo insunuava a execução de assaltantes ele
respondeu apenas que “Deus é quem encomende, eu só passo”
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resultado absolvia os estudantes acusados pela diretora. Já na Polícia Federal, foi necessário constituir
defesa das/os acusadas/os, depois de algumas oitivas de recursos, o processo foi arquivado, não sem
antes nos gerar muito trabalho para levantar recursos financeiros para pagar advogados para realizar
a defesa dos estudantes, revitimizar as estudantes e gerar danos psicológicos e morais ainda hoje não
reparados
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Os pretinhos bem
Dizem que eu sou agressivo mas mano eu não acho O pensamento é um furacão
De perto de mim racistas eu despacho Que move e remove tudo sem explicação
Cêis vêem despacho e dizem Deus me livre Eu me perco no tempo, me sinto ao relento
Eu faço despacho, Eu sou um preto livre Por que todo contratempo vem com cheiro de
missão, então segura que eu…
Na fé de quem me orienta que é meu Orixá
Cêis calarem nossa voz eu não posso deixar Assumo a culpa, assumo as contas, seguro as
O que é bom e tem minha cor eles querem pintar pontas, meiuca
De branco, é dizer que é deles pra depois lucrar Já fui mais tonta e cabeluda agora só meto a maluca
De tanto lidar com biruta, é tanta desculpa barata
A muito tempo eles caçam nosso povo Mexem tanto na sua cuca, todo dia isso te mata
Usando nosso próprio povo como cão de caça
E o nosso povo morde o nosso próprio povo Nem respira, parece tão comum
Pois mano, pro nosso povo a carne e sempre As poucos a mente sente que vai definhar
escassa, desgraça A sobrevida sendo apenas mais um
Que não sabe se hoje poderá voltar
E as orações pra um Deus pintado de branco não
surtem efeito Quantos mais precisam morrer
Um defeito de cor Até que essa guerra acabe
E as orações pra um Deus pintado de branco não Marielle disse e ainda que o ciclo se repetisse
surtem efeito Mostrou o que geral já sabe
Pelas pretas e máscaras brancas
If you don't know, now you know
Então procure por mim na tempestade If you don't know, now you know
Que no vento de Oya eu vou causar tumulto If you don't know, now you know
Eu causo alarde pois a causa é alarmante É tanta dor que no verso no cabe
E dessas lagartixa eu não aceito insulto
Que Oya me guarde, fortaleça minha vontade
Ofensivo né? Viu como é ruim? De viver e a você que nunca seja tarde
E cêis ainda chamam os preto de macaco Nos livre da maldade, da mediocridade
Eu recolho meus cacos feito uma Fênix com uma De morrer na mão desses covarde
tocha no bico
E que a cada agressão eu me refaça, eu renasço Eu só quero os pretinho bem
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