Quando Nos Colidimos - LJúpiter - Nodrm
Quando Nos Colidimos - LJúpiter - Nodrm
Quando Nos Colidimos - LJúpiter - Nodrm
Um ano antes
Sinto que estou sendo observada.
E tenho certeza disso quando uma respiração quente bate contra o
meu rosto.
Preciso respirar fundo para prender o riso que tenta escapar de mim
antes que eu abra apenas um olho, encarando a minha mini pestinha. Ela
está deitada no meu travesseiro, seu rosto praticamente grudado ao meu
enquanto seus olhos grandes me encaram. Os cabelos longos estão
bagunçados e ela sorri para mim com a sua primeira janelinha, quando
percebe que já estou acordada.
— Posso saber por que estou sendo observada tão cedo?
Seu riso preenche o quarto e, de alguma forma, é como se o som
retumbasse também em meu peito, me causando a mesma sensação de
sempre.
Pertencimento.
O que é estranho de se dizer levando em consideração que estou
acostumada com isso. No entanto, quando o assunto é Elisa, todas as coisas
sempre parecem a primeira vez, não importam quais.
Meu raio de sol continua sendo o motivo pelo qual eu acordo todos
os dias e tento, mesmo falha, ser a minha melhor versão. Por ela e apenas
por ela.
— É o dia mais especial do ano! — anuncia, jogando-se em cima
de mim.
— Será? — Finjo pensar, enquanto tento domar seus cabelos soltos
e desgrenhados com as mãos. — Não, não lembro de nada especial no dia
de hoje.
Elisa franze o narizinho, como sempre faz quando é contrariada.
Como ele sempre fazia.
E é ridículo da minha parte comparar seus trejeitos com o dele com
tanta frequência, ao passo que impossível não fazer isso porque ela herdou
de mim apenas os cabelos ondulados e escuros.
— Claro que sim! — insiste, ofendida. — É o meu aniversário,
mamãe!
— Ah, meu Deus! — Simulo estar chocada. — Ainda bem que
comprei o seu presente e que ele está dentro do meu armário! Imagina se eu
esqueço?
— Sério? — pergunta, animada, enquanto eu balanço a cabeça. —
E eu já posso ver o que é?
— Só depois da mamãe fazer isso… — Abraço-a com força, até
que Lis ria e reclame ao mesmo tempo, fazendo-me afrouxar o aperto e
começar a encher seu rosto de beijinhos.
— Mamãe — ela reclama de novo, rindo. — Eu não sou uma
boneca.
Eu rio da sua resposta e paro com o meu ataque, olhando-a com
todo o amor que há em mim. Com todo o amor que é destinado apenas a
ela.
Chega a ser engraçado olhar para o passado e lembrar o quão
desesperada fiquei com a ideia da sua chegada. Eu me perguntava
diariamente como daria conta de cuidar de uma criança com apenas
dezessete anos e conciliar isso a um futuro na patinação.
Foi assustador durante todos os nove meses em que a gerei.
Minha cabeça não descansava, embora eu tivesse meus irmãos
como rede de apoio, eu ainda continuaria sendo a responsável legal por um
bebê que mudaria toda a minha vida. Sem um pai presente.
Tudo em mim era dúvida. E eu não fazia — e nem faço — ideia de
onde Benjamin estava. Ele se foi e me deixou. Não posso mentir e dizer que
ele não me avisou que isso aconteceria, mas achei que, ao menos, me
contaria para onde estava indo, apenas para o caso de eu precisar ir também.
No fim, eu comprovei que verdades são difíceis de engolir.
E a verdade sobre nós dois era que, para Benjamin, eu fui apenas
uma aventura, um namoro adolescente bobo e sem significado.
Entretanto, esse acabou sendo o menor dos meus problemas,
porque o que me deixava acordada durante a noite, era o medo.
Medo de não ser uma boa mãe.
Medo de não conseguir dar uma vida estável para Lis — e isso ia
além do dinheiro.
E o pior de tudo: tive medo de não conseguir amá-la o suficiente.
A minha ficha nunca caiu enquanto estava grávida. Até o dia em
que minha bolsa rompeu antes da hora, tudo parecia uma brincadeira.
Ela chutava e eu ria.
Ela me fazia vomitar meu café, almoço e jantar e eu ficava mal-
humorada.
Ela mexia com o meu humor e eu sabia apenas chorar.
Até que ela nasceu.
E senti na pele aquela história que muitas mães contam sobre o
sentimento avassalador que nos toma a partir do momento em que o choro
histérico preenche o vazio, porque no instante em que senti Lis nos meus
braços, foi como renascer.
Existia uma vida antes e depois dela.
E quando a peguei nos braços pela primeira vez, eu apenas soube
que aquela garotinha mudaria todo o meu conceito de mundo.
Meu coração se encheu de tanto amor que era como se ele não
coubesse mais em meu peito. As lágrimas molharam meu rosto, seu pranto
cessou e nunca, nunca mais, a solidão fez morada em mim.
Lis fez do meu coração uma ode, onde tudo é colorido e bom.
Tudo é do jeito que ela pinta, e sempre é perfeito. Mesmo com os riscos
tortos e os borrões de tinta.
— Sabia que eu te amo do tamanho do mundo?
— E eu te amo do tamanho da galáxia inteira!
— Não vale — resmungo. — Eu não sabia que a galáxia estava
valendo.
Meu bebê respira fundo, como se eu estivesse tirando a sua
paciência, que, sendo sincera, é bem curta para alguém que acaba de
completar cinco anos.
— E o meu presente?
Reviro os olhos dramaticamente.
— A mamãe não ganha nenhum beijinho antes?
— Não seja boba, mamãe. — Ela ri, e acho que nunca a vi tão
animada na vida. — Depois do presente, posso te dar um beijinho.
— Dois — refuto, mostrando os dedos.
Lis semicerra os olhos, em sua pose de negociadora – na qual ela é
péssima, mas que adoro. Minha menina é uma figura.
Levanto-me da cama e seguro sua mão, levando-a em direção ao
closet.
— Vou te dar só três, então — diz, erguendo o dedo para mim.
Finjo pensar.
— Três beijinhos serão muito bem-vindos hoje.
Sei que deveria corrigi-la e dizer que três não é menor do que dois
ou um, mas acho fofo o fato de ela sempre achar que está certa nessa
matemática que só existe na cabeça dela. E, além do mais, é seu aniversário.
Quem sou eu para contrariá-la no único dia do ano em que não age como o
Garfield[3]?
Recosto-me na porta do closet, vendo-a caminhar em direção a
caixa grande e desfazer o laço. Lis tira a tampa com cuidado e solta um
gritinho entusiasmado quando vê o que há dentro.
Eu rio sozinha enquanto a vejo tirar com dificuldade o enorme gato
de pelúcia laranja, o qual ela é viciada, que também poderia ser considerado
sua alma gêmea. O Garfield. Ela o adora porque diz que ele parece o
Matteo, meu irmão mais velho, que está sempre com essa carinha de quem
chupou limão.
Palavras dela, não minhas. Nunca falei isso para ela, mas não
posso discordar.
— Mamãe, esse é o melhor presente do mundo! — anuncia, aos
berros. — Olha só, ele é maior do que eu. Preciso mostrar para todo mundo!
Ela tenta correr com ele em mãos, mas uma catástrofe acontece.
Lis vai ao chão mais rápido do que previ que aconteceria. Por
sorte, cai em cima do enorme animal de pelúcia. Penso em ajudá-la,
contudo, antes que me aproxime, seu corpo começa a balançar em cima
dele e ouço o som da sua risada abafada soar por todo o closet.
Preenchendo tudo.
— Acho que não dá para correr com ele, mamãe — diz, sorrindo
para mim.
— Eu tenho certeza. — Ajudo-a a levantar e a segurar a pelúcia de
uma forma em que não cause um acidente. — Bom, acho que agora você
precisa me pagar aqueles beijinhos que me deve e vamos escovar os dentes,
fiquei sabendo que os seus tios estão chegando com outros presentes.
— Posso fazer cara feia se o tio Matteo me der outro quebra-
cabeças?
— Não, Lis! — repreendo-a, querendo rir, porque apenas sendo
muito sem noção para dar um quebra cabeça de mil peças a uma criança de
quatro anos, como ele fez no ano passado. — Você agradece e apenas isso.
— Mas eu fiz isso ano passado e ele quis me ajudar a montar,
mamãe, e se ele perguntar sobre ele?
— Dizemos que você jogou na privada. Ele não vai ficar chateado
se você o abraçar.
Na verdade, nós doamos. Lis detesta tudo que envolva logística,
embora tenha um pouco de jeito com isso. Um quebra-cabeças pareceu
complexo demais e meu irmão é um pouco reticente em aceitar que apenas
ele gosta de coisas complexas na nossa família.
Lis gargalha.
— Somos a melhor família do mundo, não é, mamãe?
Meu peito bate com força.
— Sim, querida, somos a melhor família do mundo.
Atualmente
Eu abro os olhos.
Tomo um banho frio.
Me olho no espelho.
Sinto pena de mim mesmo.
Trabalho.
Passo um tempo com meu irmão.
Deito-me novamente.
Fecho os olhos.
Ela me invade.
Eu abro os olhos.
E então, tudo se repete.
Donnatella, contudo, não abandona minha mente nem por um
segundo sequer.
Li muitos livros para passar o tempo enquanto estive aqui. Um
deles dizia que após um tempo, nosso cérebro tende a se esquecer de como
é o som da voz das pessoas. E talvez, esse fosse o meu maior medo
enquanto estive dentro daquelas grades; esquecer o som da voz e
principalmente da risada de Donna.
Em meus sonhos, consigo vê-la com clareza de detalhes, enquanto
fico me perguntando como deve estar agora. Se continua escondendo as
sardinhas das quais eu amava beijar, se os olhos continuam tão expressivos
quanto antes, se seus cabelos ainda têm a textura da qual me lembro bem.
Penso se ela encontrou alguém melhor que eu.
Se tem a paz e o conforto que nunca consegui proporcionar para
ela.
E então, entro num ciclo vicioso em que minha cabeça lembra,
constantemente, que Donna nunca quis se meter em problemas. E que, de
certa forma, enquanto eu estou longe, ela tem a sua vida calma que um cara
problemático nunca poderia garantir para ela.
O que mais me incomoda é o pensamento de que nunca sequer se
importou o suficiente para ter me procurado e dizer que o que havia entre
nós havia acabado. Alguma parte de mim, a mais tola e inocente, prefere
acreditar que ela não sabia de nada. Que não sabia que eu estava preso, ou o
motivo pelo qual isso aconteceu. Às vezes, esse pensamento até me
conforta. Isso me faz pensar que, talvez, ela ainda me ame, ou ao menos,
acredita que embora problemático, não sou alguém ruim.
Há também outro lado. Aquele em que não consegue pensar em
coisas boas, tem certeza de que Donna percebeu que não sou o suficiente
para ela e seguiu em frente. Talvez, ao longo desses anos, tenha encontrado
alguém que tenha conseguido deixá-la tranquila em todos os instantes ao
invés de um garoto que respirava problema. Pensar nessa última opção me
faz sentir orgulho dela por ter esse senso de autopreservação. Eu também
não confiaria em alguém que fez o que eu fiz. Não saberia dormir tranquilo
ao lado de alguém que teve coragem o suficiente para atirar e tirar a vida do
próprio pai.
O quê, sinceramente? Eu faria de novo. Passaria pelo mesmo
inferno de novo para proteger meu irmão. Para defender a minha bailarina.
Para eliminar do mundo um verme tão brutal quanto Michael.
Eu o odiava. E tive tempo para pensar antes de puxar o gatilho. Eu
sabia que não deveria. Que era um crime, e até um pecado. Mas nunca
dormiria tranquilo sabendo que se não o matasse, poderia estar chorando
pela morte do meu irmão até hoje. Assim como faço pela minha mãe, minha
doce bailarina.
A única coisa que eu gostaria de ter tido tempo de fazer era de ter
olhado nos olhos de Donna e ter dito que fiz o que fiz para proteger a minha
família. E gostaria que ela me olhasse nos olhos e dissesse o que eu já sei
que sou.
Um monstro e que nunca mais gostaria de me ver.
O problema é que não sei onde ela está e, mesmo assim, ela tem
me perseguido.
Dia e noite.
A cada instante.
Ela perturba os meus sonhos.
Deturpa meus pensamentos.
Me faz duvidar se fomos reais.
Invade meus sentidos.
Me persegue. Me domina. Me tem.
E eu não faço ideia de onde ela está.
Fiz algo que jurei nunca fazer depois que entrei no presídio.
Fui a Boston.
Dirigi por três horas até lá.
Eu voltei ao lugar que tanto me machucou, ao lugar que me
transformou em alguém tão ruim quanto aquele que me criou. Voltei ao
lugar da minha vergonha.
A procurei em todos os cantos.
Na sua antiga casa, no seu lugar favorito, nas faculdades.
E ela não estava em lugar nenhum.
Até ontem.
Quando a vi na TV.
Algo sobre seu parceiro ter se lesionado enquanto patinavam e,
com isso, ela estar praticamente fora da competição nacional que poderia
dar a vaga para o mundial.
Não sei.
Eu não consegui prestar atenção em quase nada do que diziam. A
única coisa da qual eu conseguia focar era da forma com que ela deslizava
no gelo.
Com outro alguém.
E machucou pra caralho.
Acho que, em menos de dois minutos – tempo do qual seu vídeo
foi reproduzido –, eu me senti mais angustiado do que quando estive preso.
Ela seguiu a vida.
E me deixou vivendo na realidade onde ela me abandonou. A vida
em que ela me pertencia e em que eu era dela. Que éramos inalcançáveis.
Poder apreciar pequenas coisas e momentos depois de anos
vivendo enclausurado dentro de uma cela, deveria me deixar eufórico por
tudo o que posso viver do lado de fora. Deveria me encher de vontade de
viver tudo o que não pude antes daquele dia.
Mas não.
Até ontem, tudo o que sentia em estar “livre” era que eu nunca me
senti tão preso.
Existe algo completamente estranho em estar fora daquelas grades
e longe da familiaridade que me trouxeram com o tempo.
Elas me deixaram perdido.
E esse é o sentimento que mais tem me acometido.
Tudo o que eu senti quando coloquei os pés para fora do presídio
foi que eu não tinha mais para onde ir. Não tinha mais o que eu chamava de
lar. Quem eu chamava de lar.
Foram os anos mais difíceis da minha vida.
Os horrores que vi lá dentro. As coisas que precisei fazer para
sobreviver. Os dias em que estive à beira da morte. As cartas que escrevi,
implorando para que ela me respondesse, nem que fosse para dizer que me
odiava.
Tem uma coisa que se aprende quando se passa muito tempo
dentro de um presídio: você nunca mais recupera a sua essência.
Para um detento, existe uma vida antes e uma depois da prisão.
Quando a noite caía, eu tocava minhas costelas e não sentia nada
além dos meus ossos. Eu conseguia senti-los se unir à pele. Minha barriga
roncava dia e noite. Eu odiava a comida daquele lugar. Doía respirar, falar e
até mesmo abrir os olhos.
O homem – que nunca tive a oportunidade de me tornar de verdade
fora dali – estava em algum lugar dentro da minha mente, encarando-me
com pena.
A verdade era essa.
Eu sentia pena de mim, da forma com que a minha mente
conseguia me levar a lugares perigosos em questão de segundos e do jeito
com o qual a liberdade parecia tão distante.
Meu estômago roncava e minha cabeça já não era mais a mesma.
Era cruel e, ao mesmo tempo, parecia justo.
Vivia numa ambiguidade terrível sobre aceitar que aquele era o
meu fim ou ansiar por um futuro onde os muros daquela prisão não fossem
a minha casa.
Não só da prisão literal, mas também daquela em que a minha
mente foi deixada.
Porque é isso que sinto agora, quase um ano depois do dia em que
fui solto.
Estou livre, respiro ar puro e minhas costelas já não são tão
aparentes.
Minha cabeça, entretanto, ainda está aprisionada.
A única coisa que parecia fazer sentido naquele lugar era o tempo
em que passava escrevendo para ela. Pensando nela. Sonhando acordado
com o dia em que anunciariam que ela estava ali para me visitar, ou que
chegasse uma carta dela.
Quantas vezes não perguntei ao meu irmão se ela havia me
procurado e a resposta foi um olhar de pena?
Tantas que até perdi as contas.
Sobrevivi naquele lugar com esperança de que a encontraria
novamente. Mesmo que de longe. Só para saber se seguiu seu sonho, se está
bem, ou simplesmente ouvir de sua boca que não somos mais nada.
Tudo o que eu precisava era vê-la apenas uma vez.
Agora, eu tenho a chance.
Irei até Lake Thorne[6]. Irei até ela.
Só para saber o que aconteceu.
Só para saber se ela ainda se lembra de mim. De nós.
— Tem certeza disso? — Ouço a voz do meu irmão no mesmo
instante em que o som do zíper da mala se fechando irrompe o quarto onde
fiquei no último ano. — Sabe que eu não me importo de que more comigo.
— Eu sei — respondo.
Não é a primeira vez que ele diz isso e não é a primeira vez que
respondo a mesma coisa.
Embora queira ficar perto do meu irmão, nos últimos onze meses
trabalhando para Loren Ballard e podendo acompanhá-lo de perto, eu
percebi que Asher cresceu. Ele já não é mais o garotinho no qual eu
roubava comida para alimentar, dividia a cama e ensinava a se virar.
Ele é um homem agora.
Meu irmão conseguiu um agente e finalmente irá deixar as lutas
clandestinas. O futuro está esperando-o para novas oportunidades e eu não
poderia estar mais orgulhoso. Ele conheceu uma boa garota, eles se amam e
isso é incrível.
E isso me acendeu uma fagulha de esperança. Uma que me faz
perceber que preciso, ao menos, vê-la. Nem que de longe. Nem que seja
uma última vez.
— New Haven não é o meu lugar, Ash. — Suspiro, sentando-me
na cama e o encarando. — Sua vida é aqui. A minha não.
— Minha vida é com a minha família — ele rebate. — E você e a
Kim são a minha família. Gostaria que pudéssemos ficar todos juntos.
— Um dia — eu prometo a ele. — Um dia, quando voltar a ser eu
mesmo, prometo que vamos ser vizinhos e eu vou estragar seus filhos.
— Ben…
— Estou orgulhoso em saber que você é um homem agora, Ash, e
que se tornou alguém completamente diferente de mim e de Michael. — Ele
abre a boca para rebater e eu continuo: — Eu te amo, irmão, e entendo que
é complicado entender o que está acontecendo. Mas eu já te atrasei o
suficiente por continuar aqui, fazendo algo do qual não vai me dar a
liberdade que quero.
Sou grato ao meu irmão por ter lutado por mim. Sou grato por ter
tido a oportunidade de trabalhar com Loren, sua sogra. Mas… não é isso
que quero. Não é isso que foi planejado para mim, quando eu ainda sonhava
com o futuro.
Meu irmão se senta ao meu lado na cama, fazendo o colchão
afundar.
— Eu só me tornei quem sou por sua causa, Ben, porque sabia que
o que te colocou naquele lugar foi para nos livrar de algo pior. Só que… eu
queria poder te compensar por tudo isso, eu queria que você…
— Não — o interrompo, com o coração doendo em pedir o que irei
pedir. — Você é a pessoa que eu mais amo no mundo, Asher, e eu faria tudo
de novo para te proteger. Faria tudo de novo e ainda pior se pudesse trazer a
nossa bailarina de volta. Eu faria muitas coisas por amor a você, Ash, mas
não ficar aqui. Eu não posso ficar aqui enquanto não a encontrar. Então, por
favor, não me peça para ficar. Porque essa é a única coisa que não posso
fazer por você.
Ele suspira e seu rosto desvia para a parede, fugindo do meu olhar
quando uma lágrima escorre. Asher nem sempre foi o garoto fechado e
resistente que é hoje. Na infância e parte da adolescência – quando pude
conviver com ele – meu irmão era tímido e tinha medo da própria sombra.
Ter que morar com um tio que mal conhecíamos e ter o irmão preso,
fizeram-no criar uma espécie de proteção entre ele e o mundo que o
transformaram no homem que é hoje.
— Eu sei que é egoísta da minha parte — diz.
— Não é — rebato. — Mas eu irei resolver, ok? Prometo que
assim que tudo se ajeitar, estaremos juntos novamente.
Ash não diz nada e quando menos espero, ele me dá um abraço
apertado, deixando suas lágrimas molharem a minha camiseta.
Um abraço de despedida, do qual não pudemos dar da última vez.
— Vou sentir sua falta.
— Eu também, Ash. — Aperto-o de volta. — Eu te amo.
— Eu e você para sempre.
PASSADO
— Benjamin. — A voz dele ecoou mais alta do que normalmente
era assim que atravesso a porta de casa. Asher estremece ao meu lado e
consigo sentir o medo emanar do meu irmão, mesmo que Michael esteja se
dirigindo a mim. — Venha cá.
Meu irmão tentou limpar os ferimentos dos meus punhos antes de
chegarmos em casa, mas não adiantou muito. Ainda sangra, e desconfio que
os arranhões não sairão tão cedo. Ele ficou apavorado. Por isso, resolvi
levá-lo para uma das sorveterias que fica a alguns quilômetros da nossa
casa e comprei sorvete para nós com o pouco dinheiro que consegui guardar
da última competição de patinação que participei. Iria me fazer falta nas
economias que guardo dentro do colchão que nós dois dividimos, mas eu
precisava fazer com que Ash se distraísse.
O problema é que demoramos demais na rua e mamãe ainda tinha
algumas aulas antes de chegar em casa. Além de que a apresentação que eu
faria com Donna seria apenas à noite, ainda restavam boas horas antes
disso. O que significa que somos só nós três por enquanto. E o problema
não é apenas esse, e sim o tom que ele usou para se referir a mim. Porque
sabia o que me aguardava.
Briguei com um merdinha na saída do colégio. Por sorte, mamãe
não viu ou soube do ocorrido, mas Renè, o idiota que provocou Donna, é
filho do delegado e chefe de Michael, e com certeza já contou para ele.
Ou seja, eu já sabia o que me aguardava enquanto passava pela
soleira da porta.
— Não vá, Ben — meu irmão pediu, baixinho, ainda longe do
nosso genitor. — Podemos sair para a casa de Zoe e ficar lá até a mamãe
chegar.
Zoe era a nossa vizinha de frente. Apesar de ter uma situação tão
humilde quanto a nossa, ela, seu irmão e sua mãe nos tratavam muito bem e
nos ajudavam como podiam, até mesmo com um prato de comida.
Mamãe não gostava de incomodá-los e eu e Ash também não, mas
às vezes, a casa deles acabava se tornando nosso único escape. E ficávamos
lá por horas seguidas, jogando basquete na cesta improvisada que Hayden e
eu fizemos ou só deitados no gramado esquisito olhando para o céu e
tentando ver o formato das nuvens.
Com exceção do pai tóxico, tínhamos muitas coisas em comum. O
principal era o desejo de sairmos daquele bairro e termos uma vida
minimamente digna.
Normalmente, eu ouvia o pedido de Asher. Sempre o ouvia quando
chegávamos e víamos Michael bêbado no sofá ou desmaiado devido às
drogas. Mas aquela era uma situação diferente. Michael estava com raiva. E
se não descontasse em mim, iria sobrar para Asher. Então, não era difícil
decidir o que fazer.
Eu entrei em casa e olhei para meu irmão.
— Vai ficar tudo bem, Ash, não tem com o que se preocupar.
Exceto que tinha.
O caminho em direção a Michael era curto, afinal, o cubículo em
que moramos era minúsculo. Morávamos em uma casa pequena em
Dorchester[11]. Não era grande. Só tinha um quarto, um banheiro e uma sala
que também servia como cozinha. Asher e eu dormimos em um colchão que
achei no lixão aqui em frente nesta mesma sala e Michael sequer fazia algo
para mudar isso.
Antes mesmo que eu chegasse, o cinto me acertou em cheio na
lateral do corpo, derrubando-me sentado na cadeira da cozinha, que rangeu
devido à velhice, por pouco não se partindo ao meio. Ouvi Asher
choramingar e o olhar de Michael correr para ele, mas meu irmão era
esperto.
Ele já havia entendido que quanto mais chorava, mais Michael
batia.
Quando mais ele pedia para parar, mais Michael me levava ao
limite.
Então, Asher aprendeu a me ver apanhar em silêncio. Assim como
fazia com ele. Embora tudo dentro de mim corroesse, não havia nada que eu
pudesse fazer para mudar aquela situação. Não enquanto Elisa não
concordasse em fugir conosco.
Era durante a noite que nos consolávamos. Que eu deixava que ele
me abraçasse e chorasse, pedindo desculpas por não poder fazer nada para
impedir que ele fosse um monstro.
O cinto me atingiu mais uma vez, dessa vez, na costela que ele
mesmo havia fraturado pouco tempo antes e que não foi totalmente
cicatrizada. A dor alucinante me faz chiar em protesto, contudo, não dou a
ele o que quer.
Não mostrava vulnerabilidade.
Nunca para ele.
— Eu sei o que você fez, seu merdinha.
Eu estava apenas me defendendo, é a resposta que qualquer um
daria no meu lugar.
Mas não eu.
Eu já sabia, já esperava.
Ele era covarde. Agia quando sabia que não tinha como me
defender. Não quando tinha o dobro do meu tamanho e meios para acabar
comigo em um piscar de olhos, ou pior, para acabar com Asher e mamãe.
— O que estava pensando ao tentar desfigurar o rosto do filho do
meu superior, seu moleque ridículo?
Não respondi. Apenas o encarei, do jeito que sabia que ele odiava;
como se eu não o temesse.
Mesmo com as mãos vazias, a antecipação pela surra fazendo-me
suar e a dor que corroía meu sangue depois, eu o olhava como se ele não
significasse nada. Porque era isso que simbolizava para mim. Nada.
— Vai ficar caladinho?
Soltei um riso nasalado, em deboche, o que só o enfurece mais.
— Vai aprender a se comportar como homem na porrada.
Quando o cinto de couro bateu contra minha boca com força, eu
não chorei.
Quando espremi as mãos para evitar o grito, meu corpo entrou em
chamas.
Quando fechei os olhos para não ver o choro do meu irmão, eu fiz
uma promessa.
Michael já era um homem morto.
Eu estava farto.
Aquele era o meu limite e Michael havia acabado de ultrapassá-lo.
Não deixaria mais que a minha família fosse submetida às
maldades de alguém como ele.
Era raiva que corria em meu sangue.
Ódio.
Ódio de Elisa por amar um monstro.
Ódio de quem quer que tenha achado uma boa ideia permitir que
um homem tão cruel como ele tivesse filhos.
Ódio dele, sobretudo.
Eu ardia com tanta ira dele que eu podia perceber em seu olhar que
ele sabia.
Meu genitor sabia que se um dia eu resolvesse agir, eu não
revidaria da mesma forma, porque não o deixaria vivo.
E foi isso que fiz.
Cada vez que ele me acertava, meu corpo se enchia da mais
profunda raiva.
Meu peito se debatia em cólera.
E meu sangue corria enfurecido.
Tudo.
Tudo doía, mas eu não o deixava ver o quanto me machucava.
Ele batia e eu o encarava.
Meus olhos ardiam.
A vista embaçava.
Ele me batia e esperava pela minha rachadura.
Mas ela não vinha.
Não havia mais nada que ele pudesse quebrar.
Nada que eu mesmo já não tivesse quebrado antes.
E ele ficava puto com isso. Com o fato de eu não temê-lo.
Para Michael, eu era uma decepção. Para mim, ele não era
ninguém.
Foi por isso que me arrastou para o seu quarto enquanto Asher
chorava silenciosamente por me ver naquela situação.
Foi por isso que me prendeu dentro dele.
Por horas.
Horas se passaram enquanto estive lá.
E eu planejei.
Eu planejei como o mataria.
Eu quis matá-lo.
Desejei por isso em todos os instantes daquela tarde e início da
noite.
Quando Elisa chegou, eu ouvi apenas o barulho da porta do quarto
tentando ser aberta em vão. Eu sabia que ele havia escondido as chaves,
mesmo assim, ela tentava abrir a fechadura.
— Já procurei em todos os lugares e não encontrei — Asher
contou, sua voz soando do outro lado da porta. — Ele levou as chaves,
mamãe.
— Benjamin? — Ela tentou novamente, mesmo sabendo que não
abriria. — Você está bem?
— Sim, mãe — respondi, tentando não transparecer na voz a
fadiga que sentia todas as vezes que respirava. — Não se preocupe.
— Não é verdade. — A voz do meu irmão soou estremecida,
nunca escondendo nada de Elisa. — Ele bateu no Ben com o cinto e deu
muitos chutes na costela dele. Acho que quebrou.
Conseguia ouvir o suspiro de Elisa. Assim como sabia que ela
estava se culpando por isso.
— Vá para a mesa, Ash, trouxe seu macarrão favorito — ela falou
para meu irmão, mas ele, sempre tão preocupado, não a obedeceu de
imediato, pois tudo ficou em silêncio por alguns segundos. — Vai, filho,
vou conversar com o seu irmão.
— Ele não fez nada, mamãe. Estava apenas defendendo a Donna.
— Foi a última coisa que ouvi ele dizer antes de seus passos se afastarem.
— Está quebrada, meu bem? — perguntou baixinho e preocupada
assim que ele pareceu um pouco longe.
— Acho que sim — disse, sendo sincero daquela vez. — Dói
bastante quando respiro.
— Desculpe, filho.
Ela não precisava de mais palavras para que eu entendesse o que
queria dizer.
Desculpe por amar um monstro.
Desculpe por não conseguir deixá-lo.
Desculpe por te manter aqui.
Era ruim estar aqui, nessa casa, onde as paredes eram construídas
de dor e o alicerce é formado por medo. Nessa casa, não habitava o amor,
perdão ou qualquer tipo de benevolência. Tudo sobre a família Dempsey
tinha a ver com violência.
E aquilo só ficou mais claro cinco minutos depois, quando a porta
de entrada se abriu novamente.
— Quem você pensa que é para tratar meu filho desse jeito? —
mamãe questionou, enfurecida.
Dava para ouvir tudo do quarto onde estava porque não havia
corredores ou muitas paredes. Era apenas um banheiro, um quarto e uma
sala que era dividida com a cozinha.
— E quem você pensa que é para falar comigo nesse tom?
— Michael, eu confiei meus filhos a você por um dia e olhe o que
faz!
— Fale baixo comigo — exigiu, e apenas pelo tom sei que ele se
aproximou dela, o que me deixava aflito.
— Eu falo da forma que eu quiser!
— Você precisa aprender a me obedecer!
A voz dele reverberou por toda a casa. Michael queria que
fizéssemos tudo do jeito dele. Principalmente, ela.
Quer que ela vista as roupas que ele dita. Que fale baixo. Que
apanhe calada. Que deixe seus filhos serem espancados. Que ela finja que o
ama incondicionalmente; apesar das traições, das drogas, da bebida, do
modo como ele fala, age, demonstra.
E a pior parte era saber que Elisa ainda acreditava que ele poderia
se tornar um bom homem. Ela pareceu acreditar em um amor que,
sinceramente, aos meus olhos, nunca existiu.
Acho que no fundo, ela vivia em um mundo de ilusões que criou
quando fugiu de casa para viver uma vida com ele. Quando abandonou sua
família, seus pais amorosos e seus luxos achando que ele seria a sua
salvação. A sua resposta para noites insones.
A realidade não foi tão suave com ela.
Elisa sempre me contou sua história. Ela nasceu em uma família
rica, que apesar da abundância de dinheiro, nunca deu para ela a atenção
que queria. Nunca pôde amá-la como uma garota boa e gentil que ela é.
Mas ele apareceu.
Michael apareceu e a manipulou com toda essa carga que ele fez
com que parecesse amor.
Não demorou até que ela deixasse tudo para trás e engravidasse
dele.
Não demorou até que ela entendesse que nada mudou quando
ultrapassou os portões da casa de seus pais. Elisa achou que havia ganhado
liberdade para voar, mas, na verdade, ela perdeu as asas que tinha.
Ele as cortou.
E se engana quem pensa que ele fez isso de uma vez, da forma que
transformaria a dor mais tolerável e a superação mais rápida.
Meu genitor cortou as asas da minha bailarina aos pouquinhos, em
pequenos pedaços que ela mal sentia sendo retirados, até que um dia, ela
não as tinha mais. Queria voar, mas não tinha como. Ela estava presa a ele.
— Eu não sou sua filha e meus meninos não são seus escravos! —
Elisa gritou de volta, fazendo o pânico voltar a tomar conta de mim.
Não tinha um bom pressentimento.
Elisa era corajosa. Eu gostava disso nela. E não era como se eu
quisesse que ela ficasse em silêncio enquanto ele enchia a boca para insultá-
la. Eu queria que Elisa ficasse em silêncio para preservar sua integridade.
Coisa que ela não fez naquela noite e em dia nenhum desde que o
conheceu.
Minha bailarina era sábia sobre muitas coisas. Menos quando o
assunto era ele. Ela se transformava em uma mulher boba, com sonhos
irreais e desejos inconcebíveis. Eu queria que ela pudesse me ouvir alguma
vez.
Queria que confiasse em mim quando dizia que se fugíssemos, eu
daria um jeito para nos manter. Daríamos um jeito de ficar bem. Só eu, ela e
Asher.
Eu sabia o que sempre vinha depois de desafiá-lo daquela forma. E
o simples pensamento me apavorava porque Elisa era quase como um anjo.
Não queria que nada de ruim acontecesse.
— O meu filho, não é um delinquente! — me defendeu. — Não
vou deixar você prendê-lo por causa de uma besteira.
— Benjamin precisa aprender que não sou nenhum dos amigos
dele e que se levantar a voz para mim, será castigado.
Não foi o único motivo por ter me batido.
Nunca era. Na verdade, ele sequer precisava de um. Bastava estar a
fim e ele o fazia.
— Ele estava apenas defendendo uma amiga, Michael, não pode
culpá-lo por isso.
— Ele deixou o rosto do menino desfigurado.
— E você vai e faz o mesmo com ele? — mamãe gritou de novo,
ainda mais alto que ele. Nunca a tinha visto tão enfurecida. Ela sempre me
defendia e isso sempre a deixava em maus lençóis, naquela noite, porém,
ela parecia cansada, no seu limite. — Que belo exemplo! É exatamente
assim que ele vai aprender a se comportar.
— Eu deveria prendê-lo! — Michael disse, num tom de ameaça. —
Quem sabe assim, aquele moleque não aprende de uma vez a ser gente! Ou
melhor deveria dar um fim nos dois! Asher parece uma menininha, com
medo de tudo e todos, já o outro inútil só me dá desgosto e vergonha! Seria
muito mais fácil se você parasse com essa idiotice de dar aulas de dança, e
eles tivessem a mãe em casa para educá-los.
Ele falava de nós como se fossemos um objeto. Era nojento a
forma natural que as palavras saíam de sua boca quando se referia a “dar
um fim em nós”. Era ridículo que aos olhos da sociedade, figuras como ele,
um policial visto como bonzinho, sempre eram aplaudidos.
— É mesmo, Michael? E como vamos alimentar as crianças?
Como vamos conseguir pagar as contas?
— O meu trabalho não conta?
— Por Deus, você gasta todo o seu dinheiro em bebidas e drogas
— mamãe disse, erguendo a voz novamente. — Sou eu que mantenho essa
casa de pé.
Precisava fazer algo antes que as coisas saíssem de controle. Antes
que ele se descontrolasse.
— Asher! — gritei, ainda preso no quarto e batendo na porta com
o máximo de força que conseguia apesar das dores. Eu aproveitaria a
discussão dos dois para tentar livrar minha mãe de qualquer maldade que
ele pudesse tentar contra ela. — Asher, vem abrir a porta.
O problema era que meu irmão não lidava bem com o medo ou
qualquer outro sentimento negativo. Asher paralisava. Literalmente. Suas
pernas travavam e o seu semblante se transformava em algo tão
aterrorizante que conseguia me atormentar por dias. Era por isso que eu
fazia de tudo para protegê-lo. Porque jamais conseguiria lidar com a ideia
de viver num mundo onde meu irmão não pudesse ter paz.
No entanto, sabia que assim como eu, Ash amava a nossa mãe
acima de qualquer coisa. Acima de qualquer medo. Eu sabia que ele viria.
Sabia que conseguiria destrancar a porta. Por ela. Por mim. Por nós três e a
família que nunca pudemos ser.
Ao passo que essa ideia pareceu irreal segundos depois.
Ouvi a cadeira se arrastar no assoalho, indicando que ele havia se
levantado. No entanto, foi um erro meu imaginar que Michael estaria
distraído demais com a discussão para notar algo porque consegui ouvir,
com exatidão de detalhes, quando a respiração da minha mãe e do meu
irmão ficaram suspensas e um clique que eu conhecia muito bem ecoou por
todo o lugar.
Ele era policial e, em seus dias bons, aqueles em que não cheirava
o pó que roubava das apreensões da delegacia, ele levava Asher e eu para lá
e atirava em qualquer coisa que achasse interessante. Sem se importar que
meu irmão e eu podíamos nos machucar por estar em um lugar com tantas
armas.
Tudo se fez silêncio. Eu mesmo duvidei de que estava respirando
naquele momento.
O desespero não dito podia ser palpável em qualquer canto da casa.
Para as pessoas do outro lado da porta, aqui dentro morava apenas uma
família confusa e briguenta, com um pai alcoólatra e uma mãe que
trabalhava mais do que suportava para poder dar dignidade aos filhos.
Mas nós sabíamos que aquilo era uma idiotice.
Acima disso, eu senti que aquela noite nos marcaria para sempre.
Eu era conhecido na vizinhança, no bairro e na escola por atrair
problemas maiores do que era capaz de lidar.
Aos olhos de todos, eu não tinha medo.
A realidade, porém, era outra.
Eu suportaria tudo. Enfrentaria a todos, abdicaria de tudo o que era
importante para que pudéssemos ter harmonia e paz.
Sem a presença de Michael.
E naquele momento, esse desejo só era reforçado em minha mente.
Por poucos segundos, minha mente viajou, lembrando-me de onde eu
deveria estar naquela hora da noite.
Com Donna. Conquistando nossos sonhos. Agarrando a única
oportunidade que eu tinha de tirar minha família daquela vida miserável e
manter a minha garota.
Minha mãe aprovava nosso relacionamento. Mas acho que, no
fundo, ela tinha medo que eu fosse como ele. Eu percebia isso todas as
vezes que a pegava encarando Donna com atenção, como se procurasse
qualquer sinal de que eu não era bom o suficiente.
E, de alguma forma, isso parecia me torturar. Não pela ideia de
minha mãe me achar um monstro. Mas a ideia de saber que ela sabia que
Michael não era bom para ela e ainda assim sempre o escolhia.
Mamãe nunca encontraria em Donna um motivo para se
decepcionar comigo. Não da forma como ela esperava.
As duas podiam vir de famílias semelhantes quanto à dinâmica
disfuncional, e eu poderia ser um homem pobre que queria arrancar Donna
da sua família, mas não para machucá-la. Nunca.
Eu queria formar uma família com Donna. Uma família de
verdade, mesmo que fossemos só nós dois para sempre. Desde que
mantivéssemos o respeito um pelo outro e que entendêssemos as
necessidades que tínhamos, tudo seria perfeito.
Nunca cortaria suas asas.
Nunca a aprisionaria em uma gaiola.
Nunca sequer a pediria para parar de voar.
Acho que talvez aquele fosse o meu problema em relação a Donna.
Ela poderia partir a hora que quisesse. E eu não a impediria.
Crescer vendo a minha mãe anular todas as suas vontades em prol
de um homem que sequer respeitava suas opiniões me fez entender que nem
tudo na vida se resolve com amor e palavras bonitas.
Amor não mata a fome.
Amor não cura.
Amor não satisfaz.
É o respeito que faz isso. É o respeito que cativa, que conquista e
faz ficar. Não o amor. Amor não é suficiente. Em nenhuma situação.
Se, em algum universo paralelo, Michael respeitasse Elisa, ele
nunca apontaria uma arma para o filho.
— Pai — ouvi Asher implorar, o medo era perceptível em sua voz
trêmula. As palavras saiam com dificuldade, como se doesse respirar com a
mínima possibilidade dele apertar o gatilho. E doía. — Papai, para com
isso. A mamãe… a mamãe só está nervosa.
Enquanto isso, meu coração esmurrava minha caixa torácica. E eu
sentia que essa dor era real. Porque as costelas doíam a cada respirada,
mesmo que curta — mais tarde, eu descobri que realmente as havia
quebrado e elas estavam comprimindo tudo dentro de mim, tornando tudo
mais insuportável.
— Asher, vem abrir a porta! Mano, abre a porta! — Minhas
palavras saíam em desespero ao passo que minhas mãos sangravam de
tamanha força que depositava para bater na porta de madeira maciça. A
cada soco, era como se estivesse quebrando meus dedos, todas as vezes que
a pele escorregava, eu sentia as farpas entrarem, entranharem em minha
carne como um espinho. — Grita, Asher. Grita!
Meu desespero não me fazia pensar. Eu não tinha opções.
As paredes do quarto eram grossas e eram coladas com os fundos
de um estabelecimento. Não havia janelas. Não havia como sair. O celular
velho e que mal ligava devido as vezes que Michael o arrancava de mim e
jogava longe não estava por perto. Não tinha como ligar para Donna e pedir
ajuda. Ou, ao menos, de dizer para ela que não a estava deixando. Que
aquela nossa briga de mais cedo era apenas um mal-entendido e que eu só
queria protegê-la.
Eu não podia chamar a polícia. Michael era um deles. E mesmo
que não fosse, não havia como fazer aquilo sem um meio de comunicação.
Não havia como ganhar tempo para que ele se acalmasse ou
qualquer coisa do tipo. Ele tinha uma arma. Estava apontando para eles.
— Papai, por favor. — A voz de meu irmão terminou de me
quebrar.
Eu senti.
Senti que era como ele. Meu pai.
Tão covarde. Tão inútil. Tão filho dele. Sangue do seu sangue.
Não havia saídas.
Nunca havia orado antes, sequer entendia quem era Deus ou o que
ele simbolizava, mas quando ouvir meu irmão implorar por misericórdia a
um homem que nunca nos respeitou, eu fiz uma prece.
Fiz uma prece usando o pouco de fé que tinha em qualquer coisa.
— Pare de implorar, Asher. Você precisa aprender a ser homem de
verdade. Ainda se lembra o que eu te disse sobre eles?
Homem de verdade.
Parecia uma piada a forma com que ele usava as palavras para
tentar nos dar um pingo de educação. Ele não era ninguém para ensinar
alguém a ser um homem, pois ele mesmo não era um. Michael não podia
nem mesmo ser considerado humano.
As coisas que ele dizia… aquilo deveria ser o suficiente para ser
exterminado da face da Terra. Era ridículo, hipócrita.
— Homens de verdade não choram. — Asher fez o que ele
mandou.
Pensei comigo naquele momento que era por isso que Michael
castigava Asher com mais brutalidade. Meu irmão tinha medo. Para ele,
Asher era como um fantoche, um boneco no qual ele podia controlar sem
muito sacrifício se usasse como ameaça a nossa bailarina ou a mim.
E doía pensar que meu irmão não se adaptaria àquilo. Seu medo
não era uma vergonha, nunca seria, embora ele sentisse vergonha disso. O
medo era uma proteção, uma que eu já não tinha a tempos.
Michael gostava de ver o medo e a dor nos olhos de Asher
enquanto o torturava. Fosse com palavras, fosse com força física.
Ele não sentia o mesmo prazer em me bater, embora também o
fizesse com mais frequência. Eu sentia medo. Mas bem no fundo. E não era
por mim. Era por eles. Por Asher. Pela minha bailarina. Mas nunca, sob
nenhuma hipótese, permitiria que Michael percebesse isso. Ele poderia me
bater até a morte e nunca encontraria em meus olhos um resquício sequer
do homem covarde que ele sempre foi e que tentou me tornar.
Esse trabalho, eu deixava para o espelho.
— E o que mais?
— Mulheres são uma fraqueza.
Asco. Nojo. Repulsa.
Acho que esses eram e sempre seriam os sentimentos que me
vinham à mente e que cruzavam o meu corpo quando se tratava do meu pai.
— Asher, grite!
Implorei. Com todas as minhas forças.
Alguém precisava intervir. Talvez não fosse tarde demais.
Exceto que era.
Foi tarde demais.
— O que acontece quando elas nos desafiam?
Elas são castigadas. Era isso que ele tentava ensiná-lo.
Para mim, não era isso que qualquer mulher representava. Muito
menos Elisa.
Ela era a mulher mais linda que já vi.
O amor da minha vida.
Elisa era a personificação do amor.
Ela reluzia em meio ao caos e a dor.
Tudo sobre ela, significava força.
Mamãe exalava vida.
Era um anjo.
Um anjo que se apaixonou por um monstro.
— Responda, Asher.
Eu sentia que não havia mais chances daquilo não acabar em
tragédia.
Foi por isso que pela primeira vez, em muito tempo, fiz o que
sempre jurei não fazer.
Chorei de medo.
As lágrimas banhavam meu rosto e fazia meu peito doer de tal
forma, que a dor física era a última coisa que eu conseguia sentir. Todos os
meus sentidos pareciam aguçados pelo medo de perder qualquer um dos
dois.
— Asher! Abra a porta! Por favor, venha abrir a porta. O que está
acontecendo?
As batidas na porta do quarto só aumentavam.
A porta já estava começando a tomar um tom de vermelho
escarlate onde eu batia.
— O que acontece, Asher? — pressionou, sua voz ainda mais
firme, como se ele precisasse que meu irmão fizesse aquilo para terminar de
fazer o que ele queria.
Destruir nossas vidas.
— Por favor, papai — meu irmão implorou. Mais uma vez. — Ela
não.
— Se não ela, quem? — Minha mão parou no caminho até bater na
porta quando o tom de ameaça soou. — Quem deveria ser castigado no
lugar dela?
— Não, não, não, não, Asher! — Foi a minha vez de implorar, mas
acho que sequer estava sendo ouvido. — Não diga isso, Asher, não dê a ele
permissão para isso.
— Eu, papai. Me machuque, mas não faça nada com a minha
bailarina.
Mas ele deu permissão. E a voz do meu garoto dizendo aquelas
palavras, pedindo para ser castigado, implorando para manter nossa
bailarina viva, foi o que me atormentou durante incontáveis noites.
Nem sempre é um bom momento para demonstrar coragem, foi o
que eu disse a ele certa vez, quando o ensinei a dar um soco da forma
correta, sem se machucar.
Aquele não era um bom momento para demonstrar coragem.
Não era o momento de ser corajoso.
Era o momento de usar a força dos seus pulmões para gritar por
piedade a quem quer que estivesse do outro lado da porta. Para pedir
misericórdia a Deus. Para implorar pela vida.
Não era a hora de quase implorar para ser morto.
Não quando Elisa estava ali.
Porque ela nunca lutou por ela mesma. Mas lutou por Asher. Por
mim. Por nós.
Por nós.
Nós dois, que nunca tivemos boas notas ou um bom
comportamento.
Nós dois, que sempre interrompíamos sua privacidade para ganhar
um abraço.
Nós dois, que a seguíamos como cachorrinhos.
Nós dois, que fomos um dos motivos para que ela não conseguisse
seguir o sonho.
Nós dois, que sempre a metemos em problemas maiores do que
nós mesmos.
Michael sabia que aquilo aconteceria. Sabia que Elisa lutaria por
nós sob qualquer tipo de ameaça.
— Mãe! — Ouvi o grito do meu irmão e em seguida, o baque.
E aquele som era… Deus, o som do corpo de Elisa caindo no chão,
ecoava em minha cabeça como uma sinfonia perturbadora, que eu sabia que
iria me acompanhar até o fim dos meus dias.
Eu não respondi mais por mim.
No instante seguinte, me senti como uma besta enjaulada que usou
de toda a sua força para sair de seu cativeiro e vingar quem o prendeu.
Asher reagiu. Sabia que sim porque ouvia o gemido dos dois no
que parecia ser uma briga corporal. Mas meu irmão não ganharia tão fácil,
não sozinho.
Não podia deixar nada daquilo acontecer com Asher.
— Isso que eu estou sentindo molhar as minhas pernas, é mijo? —
sua voz asquerosa soprou com dificuldade.
Tomei distância da porta e tentei uma, duas, três vezes seguidas.
Aquela madeira parecia ser a única coisa que tinha força naquela casa.
Parecia indestrutível.
E eu a derrubei mesmo assim.
A derrubei a tempo de vez Elisa se debulhar em sangue,
engasgando com ele enquanto tentava chamar por Asher, tentava pará-lo.
Tentava salvá-lo.
— Corra. — Foi a única palavra coerente que consegui ouvir e,
ainda assim, ela parecia um canto suave.
Elisa, que para mim sempre foi um sinônimo de vida, estava tendo
a sua esvaída do seu próprio corpo. Aquilo me trouxe a pior dor que já senti
na minha vida. Saber que eu tinha um pouco de culpa em como o rumo de
sua vida foi traçado.
— Se está me enfrentando, pelo menos tenha coragem de me
encarar, seu moleque filho da puta! — Michael estapeou o rosto de Asher
com tanta força que eu podia jurar que o som foi mais alto que o tiro. —
Seja homem, ao menos dessa vez, aproveite que estou sendo benevolente ao
te dar alguns minutos de vantagem.
Tomei distância da porta mais uma vez.
A arma parou sob meus pés quando Asher a empurrou para longe,
lutando para sair do aperto dele, que o prendia no chão.
Meus olhos desviaram para Elisa rapidamente. Seus olhos me
encaravam como se implorasse para que eu acabasse com aquele pesadelo
de uma vez por todas. Ela sabia que não sobreviveria. Mas queria que Asher
e eu o fizéssemos por ela.
— Seu filho de uma puta — xingou meu irmão quando conseguiu
ficar por cima dele, colocando as mãos em seu pescoço como se estivesse
prestes a sufocá-lo.
Eu tive tempo para pensar no que fazer.
Eu podia sair dali e pedir por ajuda.
Mas não fiz.
Nunca faria.
Nunca, sob nenhuma hipótese, deixaria Michael viver mais uma
noite. Nem que, para isso, eu tivesse que ir junto com ele. Nem que para
isso, eu precisasse matá-lo com as minhas próprias mãos, sem precisar usar
uma arma ou seja lá o que estivesse ao alcance das minhas mãos.
Os dois barulhos soaram ao mesmo tempo.
As sirenes e o tiro.
Meu corpo nem mesmo sentiu o impacto que a trinta e oito deu
quando acertei a bala em sua cabeça.
E então meu choro explodiu na sala.
Empurrei seu corpo sem vida de cima do meu irmão antes de ir em
direção a ela, que antes tão cheia de vida, agora tinha seu rosto estampado
pela morte.
— Mãe, abre os olhos! — gritei, nervoso, batendo no rosto pálido
dela, mesmo sabendo que aquilo não adiantaria. — Bailarina, por favor.
Ergui seu corpo, deitando-a em meu peito com cuidado, como se
ela fosse a coisa mais preciosa que eu tinha na vida. E era.
Elisa era o meu grande amor.
Aquela mulher era a minha força quando eu não sabia o que isso
significava.
— Mes amours — sua voz doce sussurrou. A mão esquerda
segurou meu braço e a direita se apoiou entre os cabelos de Asher, que
assim como eu, implorava para que a vida retornasse a ela. — La ballerine
continuera à danser dans vos coeurs[12].
Mamãe fechou os olhos.
Sua mão perdeu a pouca força.
Asher e eu gritamos, nos agarramos cada vez mais no corpo gelado
e sem vida da mulher que nos deu à vida, mas que agora estava sendo tirada
de nós.
Os olhos da mulher mais linda do mundo estavam opacos. Mortos.
E tudo o que eu conseguia pensar era que deveria ter pego aquela
arma antes. Muito antes daquela noite. Eu deveria ter matado Michael
antes. Poderia ter acabado com o nosso sofrimento. Poderia conviver com a
ideia de Elisa me achar um monstro por matá-lo se isso a libertasse da
gaiola.
Eu poderia ter apreciado a dança da minha bailarina favorita por
mais tempo.
Quando a polícia arrombou a porta, não questionaram nada. Não
perguntaram como aquele sangue todo foi parar ali, nem como dois
adolescentes estavam segurando um corpo sem vida no meio da sala.
Alguém gritou sobre eu ser a desgraça daquela família e eles só
precisaram daquilo para me segurarem com toda a força e me arrancar dali,
fazendo com que o corpo de Elisa batesse contra o chão e Asher se
desesperar ainda mais.
Ele era só um garoto.
Eu perdi a minha bailarina, mas naquele momento eu só conseguia
pensar que Asher também havia perdido tudo. Por minha causa. Porque eu
não agi antes. Porque não lutei por nós antes. Eu iria para a cadeia e ele
ficaria sozinho.
Ele era só um garoto.
E se jogou sobre mim, agarrando minhas pernas com força e sendo
arrastado junto comigo enquanto me levavam para longe, implorando em
meio ao choro para que me soltassem.
Aquilo terminou de quebrar o restante do meu coração. Piorou
quando vi chutarem seu queixo, desmaiando-o na mesma hora e o fazendo
me soltar.
Semanas depois, quando consegui notícias de que ele não estava
desabrigado, consegui respirar fundo pela primeira vez. Mas não estava
aliviado.
Asher sempre me visitava. Mas eu nunca deixava que chegássemos
ao assunto daquela noite. Não queria ter que revivê-la, embora sempre o
fizesse. Não queria que ele se culpasse. Não quando sabia que nossas dores
em relação àquela noite podiam ser diferentes mas doíam na mesma
intensidade.
Deixei Donna sozinha, na competição que deveria ser a que
mudaria nossas vidas.
E nunca mais ouvi falar dela.
Minha bailarina parou de dançar.
Mas no meu coração, sua dança nunca teria fim.
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
O Quereres | Caetano Veloso
Eu sou pai.
Três palavras.
Oito letras.
Seis anos sem ter a mínima ideia disso.
Pai.
Eu sou pai, cacete.
Tenho uma filha.
E ela é a garotinha mais linda do mundo inteiro.
Minha garotinha.
Elisa Lombardi. O mesmo nome da minha bailarina.
Um dia, Elisa Lombardi-Dempsey.
Meu Deus.
Eu sou mesmo pai.
Quando me imaginei sendo pai?
Tenho uma filha.
Alguém para continuar a minha descendência fodida.
Para carregar meu sobrenome.
Para continuar a minha história.
E por que agora não consigo me lembrar de um dia em que não
sonhei em ser pai de Lis?
Elisa.
O nome da minha mãe.
O nome mais lindo que Donnatella poderia ter dado a nossa filha.
Meu Deus.
Eu realmente tenho uma filha.
Acho que eu deveria estar me sentindo em choque. Ou atordoado.
Ou perturbado. Ou desconfiado. Ou pelo menos, questionando o que será
do futuro.
Mas não.
Eu estou feliz.
Poderia dizer que essa é a melhor coisa que me aconteceu em anos,
mas estaria mentindo. Essa é a melhor coisa que já aconteceu na minha vida
toda.
Porém, a única coisa da qual tenho medo agora é de não ser um
bom pai para ela. O medo de não conseguir ser o que ela merece.
Porque eu quero.
Quero recuperar o tempo que perdi sem saber da sua existência.
E quero proporcionar a ela o que ela sempre quis.
Um pai.
O problema é que isso não me deixa dormir.
Não tenho nenhuma referência paterna. Sei apenas o que não devo
fazer, baseado na minha experiência.
Não tenho nenhuma lembrança de Michael como pai. Na verdade,
nem mesmo gosto de me referir a ele assim, porque mesmo que não saiba o
que é ter um, sei que nada do que ele fez por mim era certo.
Ele usava de força física para me imobilizar, das minhas emoções
para me manipular e de palavras para me machucar. Além disso, presenciei
diariamente ele fazer o mesmo com minha mãe e Asher, o que tornava a
experiência de dividir o mesmo tipo sanguíneo com ele ainda pior.
Inquieto demais para conseguir dormir, tiro o cobertor de cima de
mim e jogo longe. Finalmente abro a sacola com o carregador novo que
precisei comprar mais cedo. O meu simplesmente parou de funcionar há
alguns dias e apenas hoje consegui encontrar um compatível.
Coloco o aparelho para carregar, pensando em, talvez, mandar uma
mensagem para Asher, tentar contar para ele sobre a minha descoberta, ou
talvez, pedir algum conselho, mesmo sabendo que ele estaria tão ou mais
perdido que eu em uma situação como essas.
O celular liga poucos segundos depois que o conecto a tomada, no
entanto, assim que tento desbloqueá-lo, uma centena de notificações
começa a aparecer na tela, me impedindo de fazer qualquer coisa.
Está completamente travado.
Não há nada que eu consiga fazer para que ele destrave, sequer
consigo desligá-lo antes que uma nova notificação chegue e me impeça.
São marcações, mensagens e ligações de números desconhecidos.
Muitas notificações das quais não faço ideia do que sejam.
Chego até mesmo a retirar a capinha e virar o aparelho inteiro para
conferir se é mesmo o meu celular e não consigo pensar em qualquer
possibilidade que me coloque em uma situação como essa.
Até antes do meu carregador antigo pifar, eu tinha, tipo, três
contatos e um perfil privado em uma rede social qualquer que Asher
instalou e eu nem gostava de usar.
— Puta que pariu! — Largo o aparelho na mesinha de canto e
volto a me sentar na cama, com os cotovelos nos joelhos e a cabeça entre as
mãos.
Minha atenção, no entanto, é puxada para o lado de fora quando
ouço risos escandalosos e o som de movimentos bruscos. Levanto-me,
atento e sigo até a minha janela, vendo quando Donna e Elisa começam a
saltar – ou tentar fazer isso –, na cama elástica.
Lis grita, rindo quando cai e sua mãe continua pulando, bem forte,
impedindo-a de levantar de onde caiu. Sua gargalhada fica cada vez mais
forte, mas, em algum momento, Donna se cansa e se joga ao lado da
menina, que começa a tentar fazer o mesmo, sem sucesso.
Minhas bochechas chegam a doer de tanto que estou sorrindo.
— Estou… cansada demais… mamãe.
— Eu também, neném — Donna responde ofegante quando Lis cai
ao seu lado.
— Quando ele chegar, a gente vai poder brincar mais, né?
Minhas sobrancelhas se unem em confusão.
— Quando quem chegar? — ela pergunta, parecendo tão confusa
quanto eu.
— O papai. Você disse que ele pode voltar logo, lembra? —
explica e não consigo decifrar a confusão de pensamentos que me tomam
quando ela diz isso. — Acha que ele vai gostar de brincar com a gente?
Ela não parece estar falando apenas sobre brincar. Parece ter mais
por trás das suas palavras, e não me passa despercebido a insegurança que
há em sua voz quando questiona isso.
Donna suspira, e como se soubesse que estou às observando, olha
diretamente para a minha casa, para cima. Ela provavelmente nota a minha
sombra na janela quando responde:
— Tenho certeza de que ele será o melhor que você pode ter,
pequena.
Exceto que eu não tenho.
Minha cabeça tem se dividido em pensar se serei mesmo um bom
pai para Elisa e a insegurança de não ser o que ela espera.
Não sei o que é ser pai.
Isso está consumindo todos os segundos do meu dia, e está me
deixando completamente apavorado.
E me pergunto se é certo querer fazer parte da vida dela agora, se
eu não seria mais um problema do qual Lis ou Donna não merecem lidar.
CATORZE ANOS
Algumas informações sobre mim:
Amo minha mãe.
Protegeria meu irmão com a minha vida.
Gosto de Maneskin.
E sou viciado em Garfield.
Me considero alguém básico. Comum até demais para alguém tão
fodido.
Poucas coisas conseguem me tirar da realidade que vivo, uma delas, é
a patinação.
Estar no gelo, sentir minha pele esfriar até que não sinta mais as
pontas dos meus dedos, poder sentir a liberdade que os patins me dão a cada
deslize…
É libertador.
Quando era criança, as pessoas diziam que, talvez, fosse melhor que a
minha mãe me incentivasse a jogar hóquei por conta da minha “fama”.
Problemático.
É assim que eles me veem.
Um garoto brigão, irresponsável e mal comportado, que não se
importa em desafiar o próprio pai.
O que eles não entendem é que não conhecem o monstro com o qual
divido o espaço. Não sabem do que ele é capaz de fazer.
Felizmente, minha mãe sempre respeitou as minhas vontades, e
percebeu que meu amor pelo gelo não tinha absolutamente nada a ver com
o esporte.
Também foi bom quando ela notou que mesmo que meu sonho fosse
patinar, eu não era o melhor no que fazia e me ajudou nisso, apesar de
nunca ter colocado um patins nos pés. Mamãe se recusa a fazer isso, pois
tem medo do gelo. O que é, no mínimo, contraditório, já que fica na ponta
dos pés usando um sapato nada confortável.
Elisa deu um jeito de me colocar em um dos horários em que ela dava
aula de balé e isso tem me ajudado muito a me desenvolver na patinação
solo. No entanto, tudo ainda parece tão… solitário.
E isso piora quando as coisas em casa parecem ruir gradativamente,
como se fosse algo perpétuo.
— Parece um pouco disperso hoje, querido — a voz dela soa quando
ultrapassamos os portões para dentro do colégio. — Algo te incomodando?
Estou incomodado com a mancha roxa que vi no seu pulso quando
estava preparando nosso café hoje de manhã.
Estou triste porque sei o que ele fez com você noite passada.
Estou com raiva porque você o ama, e não importa o quanto eu tente,
você não quer sair de lá.
— Estou nervoso para a seletiva da competição regional — conto
uma meia-verdade.
— Você vai conseguir, Ben — meu irmão se intromete, de mãos
dadas com Elisa. — Todos sabem que você é o melhor patinador da cidade.
Reviro os olhos, mesmo que deixe um sorriso escapar.
Ele, com certeza, é meu fã número um e sei que nunca irei patinar
sem plateia na vida, porque Asher sempre estará lá.
Meu irmão é calmaria. Totalmente o meu oposto. E isso o torna frágil
aos olhos de Michael, o que faz minha raiva por ele crescer ainda mais.
— Obrigado, mano, mas estou em terceiro lugar.
— Terceiro é melhor do que último, não acha? — Minha mãe tenta
me animar, parando na entrada do colégio. — Precisa parar de se cobrar
tanto, Benjamin, é apenas um menino. Ainda há muito a viver.
Suspiro, sabendo que tem razão, mesmo querendo muito ganhar as
regionais.
— Vou tentar — resmungo. — É que é bem mais difícil competir nas
apresentações solo. Não há muita visibilidade, sabe?
Elisa me lança um sorriso enigmático.
— Isso será resolvido logo, querido, eu prometo.
Passa das três da manhã quando abro a porta de casa e noto que o sofá
está vazio.
Meus olhos se arregalam e um leve desespero toma conta de mim.
Subo as escadas devagar, imaginando que ele possa estar com Lis,
mas não está.
Minha menina ressona quietinha, com a sua luminária de aurora
boreal iluminando o quarto. Ela está vestindo um dos seus pijamas de cetim
favoritos e Oddie dorme ao pé de sua cama, cercado de almofadas que Lis
deve tê-lo obrigado a ficar – não que ele reclame de ser mimado dessa
forma.
Beijo seu rostinho com cuidado para que não acorde e acaricio os
pelos macios de Oddie, que suspira alto e se abre inteiro em busca de mais,
fazendo-me controlar o riso antes de fechar a porta devagar para não
acordá-los.
Sigo o caminho até meu quarto, e não me surpreendo ao ver Benjamin
deitado de bruços, ocupando metade da minha cama, bastante confortável
e… vestindo apenas uma cueca branca.
Fecho a porta atrás de mim, mas acabo deixando que ela bata com um
pouco mais de força do que planejei, fazendo com que Ben levante a cabeça
na mesma hora, atento. Já percebi que ele tem um sono leve, provavelmente
algo que adquiriu na cadeia. E só consigo pensar no quanto deve ter sido
cruel viver lá.
— Desculpe — peço, retirando os saltos com cuidado. — Não queria
te acordar.
— Oi, linda — resmunga com a voz sonolenta. — Achei que era Lis.
— Ela e Oddie estão dormindo como pedra — respondo-o, e Ben ri,
me encarando com o rosto no colchão. — Vou tomar um banho quente e
dormir.
— Vou voltar para o sofá — diz, mas não move um músculo para
fazer isso. — Só preciso de um minuto.
Eu rio.
— Não precisa, Ben — asseguro-o, surpreendendo até mesmo a mim.
— Se chegar um pouco para o lado, terá espaço para nós dois.
É a sua vez de deixar um pequeno riso escapar, se arrastando na cama
até o lado direito e fechando os olhos, parecendo voltar a dormir na mesma
hora.
Giro os calcanhares em direção ao armário, pegando um pijama e
seguindo para o banheiro. Tiro minhas roupas, tentando me livrar do cheiro
de álcool e aproveito para fazer minha rotina de skincare noturna, retirando
a maquiagem pesada.
Demoro um pouco mais do que planejei debaixo do chuveiro quente,
pensando em tudo que as garotas e eu conversamos e, principalmente, no
homem que está dormindo apenas de cueca na minha cama.
Ele continua na mesma posição quando me deito do lado oposto ao
seu.
Quando menos percebo, deixo com que meus pensamentos intrusivos
vençam e aperto sua bunda.
— Apalpou minha bunda? — ele pergunta, me assustando.
Coloco a mão em frente à boca e Benjamin sorri, abrindo os olhos
devagar.
— Não — nego, envergonhada demais.
— Não acredito que fez isso, Donna. — Continua rindo, causando-me
a mesma sensação. — Mas se te deixa melhor, pode me apalpar quando
quiser.
— Benjamin!
— Estou sendo sincero, linda.
— Você parece cansado, precisa dormir — constato, notando os olhos
avermelhados e a piscada lenta.
— E você está mudando de assunto.
Reviro os olhos e finjo bufar, cobrindo-me até os ombros e me
virando de costas para ele.
— Ben? — chamo baixo, algum tempo depois, achando que ele já
adormeceu.
— Sim, linda — responde, dissipando a minha ideia.
— Posso te contar algo?
— Sim.
— Eu tinha esquecido do seu cheiro.
O silêncio recai sobre nós e quando penso que não fará nada em
relação ao que falei, sua mão toca a minha cintura, deslizando o polegar
para cima e para baixo com carinho, me trazendo um pouco de conforto e
calmaria.
— Estou aqui agora, amor.
Não tento lutar contra o sono quando ele chega, sabendo que não
importa o que aconteça ou quanto tempo se passe, daremos um jeito.
Independentemente do medo ou da insegurança que o futuro tem a oferecer.
Em algum momento da noite, nossos corpos simplesmente se
procuram e se unem em uma conchinha e Benjamin enfia o rosto em meus
cabelos, inspirando contra eles e enrolando seus braços em volta da minha
cintura, apertando-me contra si.
Enquanto eu relaxo em seus braços, também sentindo que,
finalmente, encontrei o caminho para casa.
Nossos melhores dias ainda são desconhecidos
Que este momento é nosso para possuir
Porque estamos parados à beira do incrível
Edge Of Great | Julie And The Phantoms
Até algumas semanas atrás, a maior certeza da minha vida era que
meus irmãos sempre seriam meu porto seguro, pessoas nas quais poderia
contar em qualquer circunstância, não importa o que acontecesse.
Pode parecer besteira estar com tanto ressentimento dos dois por algo
que não posso mudar.
Mas eles não tinham o direito de ter feito isso.
Seis anos.
Seis anos me acolhendo quando tudo que eu queria desabar.
Seis anos em que a maternidade mudou a minha vida.
Seis anos nos quais me questionei incontáveis vezes se estava
tomando as melhores decisões por Lis.
Eu quase desisti da minha carreira.
Eu nunca mais deixei ninguém se aproximar do meu coração.
Eu esqueci de viver.
Passei seis anos amaldiçoando alguém que sequer sabia onde eu
estava.
Alguém que achou que eu o havia abandonado, alguém que achei que
havia rejeitado a mim e nossa filha.
Não é uma simples mentira.
É algo que mudou todo o rumo das nossas vidas.
Lis desejou o pai por seis anos.
E eles sabiam.
Eles ouviam.
A ouviam chorar, me ouviam chorar.
Eles presenciaram meu desespero.
Minha dor.
Minha insegurança.
A forma com que tudo relacionado à paternidade de Lis me levava à
exaustão em um piscar de olhos e mesmo assim eu continuava firme por
ela.
Matteo literalmente me segurou quando desmaiei de tanto chorar em
seu colo.
Alessandro cuidou de mim quando Lis gritou que me odiava pela
primeira e única vez, quando eu disse que não sabia onde seu pai estava.
Eles estavam lá. Sempre.
Me esconder algo como saber que Benjamin estava preso, foi cruel.
O que eles fizeram comigo foi cruel.
Não sei como Benjamin consegue entendê-los, porque para mim, não
faz sentido o que fizeram.
Eu faria de tudo pelos meus irmãos, sim.
Daria a minha vida por eles. Por lealdade. Por amor. Por eles.
Porque os amo apesar da minha vida.
Mas jamais esconderia algo desse nível, não importa o quanto doeria.
Eu estaria ao lado deles para os acalentar.
Não é como se, caso eles tivessem me contado antes que sabiam sobre
Benjamin, eu fosse correndo para a cadeia atrás dele. Na verdade, tenho
passado os últimos meses me perguntando o que eu faria se soubesse que
Benjamin estava preso.
Penso se eu iria até ele. Se o ajudaria a sair de lá. Se entenderia seus
motivos. Se permitiria que Lis o visitasse. Se ele iria querer nos ver.
Se.
Se.
Se.
São tantas dúvidas e possibilidades, que chego a ficar confusa. Mas
são coisas das quais eu gostaria de ter tido o poder de escolha.
Por que o que esconderam diz respeito a mim e à minha filha, não aos
meus irmãos, embora eu prezasse muito pela opinião deles.
— Não consigo entender — é a primeira coisa que digo, após os
minutos de silêncio ensurdecedor que sucederam a minha chegada à casa de
Matteo. — Não entendo como puderam me esconder algo dessa magnitude
e por tanto tempo.
Eles me deram um tempo quando descobri tudo, mesmo que não
quisessem. Mas pela manhã, recebi uma mensagem de Alessandro
perguntando se podíamos nos encontrar aqui para conversarmos.
Não os ignorei. Apenas precisei de um pouco de espaço para
processar o que havia descoberto e pensar no que isso afetaria no meu
relacionamento com eles.
E acho que cheguei à conclusão de que mesmo que eu tente os
perdoar ou entender seus motivos, nada mudará a sensação de ser traída.
— Eu fiz pensando no seu bem — Alessandro refuta.
— Nós pensamos no que era melhor para vocês, Donna — reitera o
outro.
— No melhor? Melhor em quê, exatamente? — pergunto, recebendo
o silêncio dos dois como resposta. É quando eu começo a me enfurecer. —
Quem são vocês para ditarem o que ou quem, deve ou não fazer parte da
minha vida?
— Somos seus irmãos — Matteo justifica. — Queríamos o melhor
para você.
— Acha que o melhor pra mim foi me sentir a pior mãe do mundo?
— Donna, não…
— Não tentem se justificar. Vocês não entendem? Livre ou preso,
Benjamin tinha o direito de saber sobre Lis, assim como eu tinha direito de
saber onde o pai da minha filha estava.
— Você já visitou uma prisão? — Matteo pergunta, na defensiva. —
Já ouviu falar do quão cruel é o processo apenas de entrar para uma visita?
É quando eu toco em sua ferida.
— Você já se sentiu um péssimo pai? — Ele se cala ao me ouvir, eu
vejo a dor em seus olhos. Eu sei o quanto isso o machuca e não me importo
em usar isso nesse momento. Quero que eles sintam o quanto foi difícil,
mesmo que seja errado fazê-los lembrar de seus respectivos passados. Viro-
me para Alessandro. — Você consegue dormir com a consciência limpa
sabendo que a sua vida nunca desejou algo que você poderia ter dado a ela
muito antes?
— Não entendo por que precisa tocar nesse assunto — Matteo me
responde, inflado de raiva.
— Não é óbvio? — pergunto, abrindo os braços. — Vocês ficam
repetindo para que eu entenda a porra do lado de vocês, mas não entendem
o meu. É como se vocês esquecessem a quantidade de vezes que chorei no
colo de vocês, querendo desistir de tudo. Eu quase perdi a minha carreira.
Eu passei uma gestação inteira sozinha. Dentro de uma casa onde eu podia
fazer o que quisesse contra a minha vida e a vida da minha filha.
“Eu estava sozinha quando descobri que estava grávida, quando
descobri que era uma menina, quando contei para vocês e fui ignorada,
rejeitada. Matteo falava do meu bebê como se ela fosse uma aberração,
Alessandro se recusou a falar comigo por nove meses. E eu aguentei tudo
sozinha. Você diz que viu o quanto foi difícil crescer com o Francesco para
mim, mas nunca experimentou ouvir sua própria mãe desejar que o bebê
que gerava em seu ventre fosse o mal encarnado para que você pagasse por
todos os pecados que seu pai cometeu. O inferno que passei com Francesco
não chega aos pés do inferno em que passei com uma mente ansiosa, um
bebê na barriga e a minha solidão.
“E anos depois, quando tudo parece estar voltando aos eixos,
descubro que vocês não apenas sabiam onde o pai da minha filha estava,
como esconderam de mim que ele me procurou. Mentiram para mim
quando disseram que não o acharam. Se aproveitaram do amor que sinto
por vocês quando olharam nos meus olhos e disseram que sentiam muito,
mas que não havia mais nada que pudessem fazer!
“Então é claro que não entendo vocês, porra! Vieram do mesmo pai
que eu. Da mesma crueldade, sentiram a dor de ser um Lombardi.
Prometemos lealdade um ao outro. Acima das nossas diferenças.
Prometemos nunca mentir. E foi o que fizeram. Não foi só eu que perdi seis
anos, mas Lis também. Vocês foram egoístas, mesquinhos e imbecis.
Pensaram em vocês mesmos, no que faziam para vocês e se esqueceram de
mim! É horrível dizer em voz alta e é horrível pensar que vocês fizeram
exatamente a mesma coisa que ele faria. E isso, eu não esperava de nenhum
dos dois. Vocês me traíram. Me apunhalaram pelas costas e depois agiram
como se nada tivesse acontecido. É cruel. Até mesmo para quem nasceu
com o sangue Lombardi.”
Preciso respirar fundo quando me calo, notando que me exaltei um
pouco. Encaro-os ainda cheia de raiva, com lágrimas nos olhos e
percebendo que Matteo não me encara enquanto o outro, espreme os lábios,
com tantas lágrimas presas quanto eu.
— Entendemos nossos erros agora, Donna… — Matteo diz, a voz
soando estrangulada como ouvi poucas vezes em minha vida. — Sabemos
que não há como reparar nada disso.
Lombardis não choram. Francesco nos ensinou assim e desse jeito
vivemos a vida.
— Sentimos muito — Alessandro afirma, e sei que está sendo
sincero. — Realmente não foi a nossa intenção.
— Sentir muito não adianta de nada.
— Francesco dizia que eu era um monstro — ele continua, desviando
os olhos dos meus dessa vez. — Na cadeia, eu me vi como um. Pensei em
fazer absurdos. Quis fazer absurdos. Aquele lugar moldou em mim alguém
sem controle, Donna. Ele tirou de mim a humanidade e qualquer coisa boa
que houvesse em mim.
Eu sei o que ele quer dizer.
Não é como se Alessandro fosse um garoto animador antes da cadeia.
Ele era fechado e quieto, muito mais do que Matteo. Era difícil que alguém
além de nós ganhasse a confiança dele e o fizesse sentir algo que não fosse
apatia.
Mas aconteceu um ano antes da cadeia.
Uma garota. Giulia Thorne. Ela foi a responsável por transformar
Alessandro em alguém feliz e, no segundo seguinte, a pessoa mais frígida
que já conheci.
A herdeira da cidade destruiu meu irmão. Fez um estrago muito maior
do que Francesco ou qualquer um poderia tentar.
— Você não é um monstro — eu digo, engolindo o nó em minha
garganta. — Você é humano.
— Não é assim que eu me sinto — diz, erguendo os ombros.
— Alessandro…
— Não estou pedindo que me entenda — me corta, erguendo os olhos
e me permitindo ver um pouco de vulnerabilidade ali. — Estou pedindo que
pense só um pouco em como me senti quando descobri onde Benjamin
estava. Eu falhei com você durante a gravidez, te abandonei e você nunca
fez o mesmo comigo ou com Isabella, nem quando todos ao nosso redor me
tratavam como o bastardo que eu sou.
— Também não estamos te pedindo perdão porque agora entendemos
o que fizemos e o quanto isso prejudicou você e a nossa família — Matteo
completa.
— Eu vi a forma que ele te olhou — meu irmão diz, parecendo preso
a algum momento. — Vi a forma com que Lis falou com ele. E aquela
garotinha é a minha vida, Donna. Minha vida começou quando os olhos
dela se abriram, quando percebi o quão importante ele havia se tornado para
ela em tão pouco tempo, eu entendi a merda que fiz.
“Não espero que me perdoe. Eu mesmo não farei isso. Sei que não é
justo te pedir para me entender porque, sinceramente, minha cabeça é toda
fodida. Mas eu lembro de como foi para você ser a única garota entre dois
meninos. Eu vi o quanto ele odiava os seus sonhos, o quanto te
menosprezava e eu sabia bem o que ele faria com Lis se eu não tivesse…”
Ele se cala, engolindo em seco.
— Se você não tivesse…? — Tento fazer com que ele me conte.
— Donna… de todas as coisas do mundo, nunca me peça para dizer
isso em voz alta.
Meu olhar se desvia para a tatuagem da cobra engolindo a si mesma
em volta do pescoço. Automaticamente, os flashes de quando Francesco
deu o comando para a sua Píton[31] de estimação se enrolasse na garganta de
Alessandro. Tão apertado que o animal parecia estar engolindo a si mesma
enquanto ele encarava nosso pai com ódio flamejando em seus olhos antes
de perder todos os sentidos.
É a pior memória da minha existência. Ter visto meu irmão ali,
naquela cadeira, amarrado como um animal selvagem e sendo sufocado até
não conseguir mais se manter acordado enquanto um dos homens de
confiança do nosso pai tampava minha boca para que eu não gritasse.
Eu tinha apenas quinze anos.
Teria matado Francesco aquela noite se não estivessem me segurando.
— Eu pedi para que viesse porque guardei tudo e acho que o mínimo
que posso fazer por você é te entregar a caixa.
— O quê? — pergunto, confusa.
— As cartas que ele te enviava. Sua mãe me enviou todas.
Suspiro, jogando-me na poltrona atrás de mim e deixando que o peso
do mundo venha junto comigo quando enfio o rosto entre as mãos, sentindo
que a minha cabeça pode explodir a qualquer momento. Parece que, a cada
segundo, descubro algo que me decepciona mais.
Minha genitora não é exatamente o tipo de pessoa que alguém goste
de conviver. Ela passou vinte anos casada com meu pai, até que um dia ele
se cansou e a mandou ir embora para New Haven, onde fui morar alguns
anos depois. Ela sempre foi conivente com todas as atitudes e falas de
Francesco. Tão culpada quanto ele.
Então, não foi surpresa para mim ou Matteo quando não fez questão
que nenhum de nós dois a acompanhássemos.
Quanto irei ganhar deixando eles com você?
Na verdade, isso foi a primeira coisa que ela perguntou quando ele
disse em alto e bom som, na mesa de jantar, que ela deveria arrumar as suas
malas pois o jatinho estaria esperando ela na primeira hora da manhã.
Ela sabia que, para ele, valia muito ter a imagem de bom pai que
demonstrava ser para o público, na época. Isso mudou um tempo depois.
Um ano depois, engravidei e, com o fundo que juntei da mesada, fui
morar sozinha. Apenas eu e uma barriga enorme. Giane e eu nos vimos
raramente e depois que meus irmãos me buscaram na maternidade não a vi
nunca mais. Nem tive notícias.
Não a odeio, apesar de tudo.
Mas também não gosto nada de saber que um dos meus irmãos teve
contato com ela pelas minhas costas quando fez tão mal para nós.
— Acho que não preciso repetir o quanto estou me sentindo traída por
isso — digo, limpando as lágrimas e encarando a caixa de madeira que
agora repousa na mesa de centro.
— Não — Matteo concorda. — Não precisa.
— Vou viajar depois da sua apresentação — anuncia Alessandro, de
repente. — Não sei quando volto. Mas preciso cuidar do Templo por um
tempo. Acha que… posso passar alguns dias com Lis antes disso?
Exalo com força, encarando-o.
— Não se preocupem com Lis. — Deixo claro. — Eu não perdoei
vocês, e sinceramente, não sei se um dia isso irá acontecer, mas vocês
continuam sendo meus irmãos e parte mais que importante na vida dela. Eu
quero apenas que entendam que, de agora em diante, Elisa tem um pai. Um
pai que a ama desde antes de conhecê-la. Mas isso nunca vai ser o
suficiente para tirar daqui — pressiono meu indicador na cabeça e em
seguida no meu peito — ou daqui, todas as vezes em que ela assoprou as
velinhas pedindo pelo pai. Lis continua sendo sobrinha de vocês, eu
continuo sendo sua irmã. Mas acho que nunca mais confiarei em uma
palavra sequer que saia da boca de vocês, sem ter plena convicção de que
não estão fazendo isso porque acharam que era o melhor para nós.
E então, me levanto, evitando olhar para eles e ver suas expressões.
Não quero quebrar na frente deles. Não hoje, quando eles são os
causadores disso.
Pego a caixa, sentindo-a um pouco pesada para um compartimento
que há apenas papel. Por alguns segundos, pego-me presa ao que há em
minhas mãos.
Eu quero abri-las?
Eu quero saber o que ele estava tentando me dizer durante todos
esses anos?
Puxo o ar com calma, ajustando minha bolsa em meu ombro antes de
dar as costas aos dois e passar pela porta de entrada, sem encará-los.
Alguns passos depois, abro meu carro, coloco a caixa no carona e
sento-me no banco do motorista, encostando a cabeça no volante por um
tempo – que não faço ideia de quanto –, sentindo o alívio de ter dito em voz
alta tudo o que tem permeado minha cabeça nos últimos tempos.
Encaro a caixa pesada no banco ao lado.
Isso vai doer pra caralho.
Contando os dias, contando os dias
Desde que meu amor se perdeu em mim
Bruises | Lewis Capaldi
DIA 10
“Hoje é vinte de junho. Só sei disso porque faz dez dias que estou
preso aqui. Me sinto um merda.
Sei o que fiz. Sei que essa é a consequência do meu ato, mas não
consigo parar de pensar na minha bailarina.
Estou com tanta saudade dela.
Eles vão me acusar de duplo homicídio doloso. Mas eu não a matei,
Donna. Não a matei. Todos sabem disso. Eu nunca faria mal nenhum à
minha mãe.
Tentei ligar para sua casa, queria explicar para você o que
aconteceu, mas a sua mãe atendeu e me disse coisas… coisas que não
quero ter que te contar.
Preciso que me entenda, Donna. Eu não quis perder nossa
apresentação. Não quis te deixar sozinha. Mas ele ia matá-la. Eu não podia
deixar que isso acontecesse.
Desculpe. Desculpe por ter acabado com as nossas chances de
ganhar. Desculpe.
Eu espero que receba as cartas. E espero que me entenda nem que
seja um pouco.
E por favor, cuide do Ash para mim.
Não sei onde ele está. Não sei como procurá-lo.
Por favor, me perdoe. E por favor, não me odeie.
Sempre seu, Ben.”
DIA 31
“Esse lugar é horrível.
Não consigo dormir.
Não confio nas pessoas daqui.
Não sou um cara bonzinho. Sempre soube que não era o mais
comportado e nem o menos briguento. Mas aqui é diferente.
As brigas terminam na enfermaria e alguns deles não voltam para
suas celas.
É cruel.
Não sei se irei suportar mais tempo aqui.
Sinto saudades da minha mãe. Sinto saudades do Asher. E sinto
saudade de você.
Não quero que me visite. Não quero que me veja dessa forma. Mas
peço que, por favor, me responda.
Preciso apenas saber se me acha um monstro, como todos os outros.
Preciso saber se me odeia.
Se tem vontade de gritar comigo ou me socar.
Sinceramente, prefiro que grite, porque o seu soco dói para caramba.
As coisas parecem se repetir na minha cabeça, como se eu estivesse
louco.
Vivo o mesmo dia todos os dias.
Sinto a mesma saudade todos os dias.
E meu egoísmo espera que você também sinta.
Sempre seu, Ben.”
DIA 44
“Entre estas paredes frias desse inferno, encontro conforto nas
lembranças de você. A única coisa que consegue me ajudar a suportar a
realidade deste lugar é lembrar de nós. Escrever para você é minha forma
de sentir sua presença, mesmo à distância.
Todos os dias, acordo pensando em seu sorriso, em seus olhos que
sempre me deram a sensação de casa.
No entanto, minha mente também faz questão de me lembrar de todas
as coisas que não vivemos e que provavelmente não viveremos.
Queria ter te levado a um primeiro encontro, ter te dado flores e
poder te oferecer tudo o que você merece.
Mas acho que não sairei mais desse lugar.
O sistema já disponibilizou três advogados para mim. E todos
desistiram da minha causa.
Sinto muito, amor, por não ser o homem que você merecia.
Sinto muito por te envergonhar estando em um lugar como esse.
Sinto muito em te decepcionar.
Quero que saiba apenas isso. Que sinto muito por ser alguém que
você não merece.
Espero que você esteja bem e segura.
Eu te amo infinito. E um pouquinho além dele.
Mas se por acaso você não me amar mais de volta. Não tem
problemas, eu o farei por nós dois.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 75
“Só queria dizer mais uma vez que te amo infinito e um pouco além
dele.
Estou com saudades do seu cheiro.
Sempre seu,
Ben”
DIA 101
“Sinto sua falta a cada instante do meu dia.
Espero que sinta a minha também.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 273
“É dia vinte e sete de março.
Sei que vai soar estranho e contraditório o que direi agora, mas há
um sentimento bom em meu peito que não saberia colocar nessas palavras.
Donna, parece que meu coração vai sair pela boca a qualquer
instante.
Nunca experimentei uma sensação tão estarrecedora e complexa
quanto essa.
É como se o lugar onde eu estou fosse o céu.
É assim que me sinto.
No céu. Como se algo divino estivesse acontecendo dentro de mim.
E é bom.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 407
“Estou desistindo, Donna.
Me desculpe.
Acho que nunca irei sair daqui. Faz mais de um ano que estou aqui e
nada muda. Todos os dias são os mesmos, todos os meus pensamentos são
iguais.
Asher me visitou essa semana, ele está morando com o nosso tio e
finalmente conseguiu a liberação para visitar, mesmo que eu não queira
isso. Não quero receber visitas.
Mas, ainda assim, perguntei a ele sobre você e ele me disse que não
te encontrou, que te procurou, mas que não te encontrou nem mesmo
quando foi à sua casa.
Por onde você anda?
Está recebendo as minhas cartas?
Me perdoe.
Não queria que nada disso acontecesse.
Sinto sua falta.
Não tenho notícias suas desde aquele dia.
A saudade parece querer explodir o meu peito.
Pode apenas responder dizendo que não me quer mais?
Prometo que paro de te enviar essas cartas que agora parecem
inúteis.
Mas enquanto eu não souber que você não me quer de volta,
continuarei mandando. Continuarei na esperança de que lê todas as minhas
palavras e apenas não responde.
Por favor, apenas responda. Nem que seja para dizer que me odeia,
que sou um monstro e que não me quer mais em sua vida.
Por favor, me dê notícias.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 599
“Te amo infinito e um pouco além dele.
Sempre seu,
Ben”
DIA 603
“Eu tento te deixar em paz, mas as memórias de você não me deixam.
Desculpe.
Mas não consigo parar de te escrever.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 638
“É vinte e sete de março.
Me sinto diferente, mas não estou triste.”
DIA 756
“Lembra de quando quase fomos pegos na sala do reitor?
Pensei nisso esses dias e me dei conta do quão era bom passar por
essas coisas estúpidas com você.
Sinto falta de ser eu. Em quem me transformo quando estou com
você. Mas acho que nunca mais serei eu mesmo, porque acho que você já
não me quer mais.
Sempre seu,
mesmo que não me queira,
Ben.”
DIA 847
“Sinto falta da minha bailarina.
Não sei onde ela foi enterrada. Se foi enterrada.
Não queria que aquilo tivesse acontecido.
Eu teria dado um fim em Michael independente da situação.
Mas ela não deveria estar lá.
Ela não deveria tê-lo amado tanto.
Ela deveria ter aceitado fugir comigo e Asher.
Deveríamos ter ido embora daquela casa sem que ele notasse.
Não era pra ter sido desse jeito, Donna.
Agora, eu perdi a minha bailarina.
Perdi você.
Estou perdendo a adolescência do Asher.
E não me lembro mais da sensação de correr ou patinar.
Sinto falta de estar do lado de fora desses muros.
Mas, acima de tudo, a falta de você consegue ser a mais esmagadora.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 900
“Te amo infinito e um pouco além dele.
Sempre seu,
Ben”
DIA 991
“Esses dias percebi que nunca fui livre. Sempre estive preso em
minha própria mente.
Me aprisionei de tal forma que até mesmo me surpreendi quando me
dei conta de que nunca irei me livrar desse peso.
Os únicos momentos dos quais me sentia livre eram quando estava
com você.
E estou preso novamente agora. Em um lugar diferente e na minha
própria cabeça.
Acho que nunca serei o suficiente para o mundo do lado de fora.
É melhor que eu fique aqui para sempre.
Assim não machuco mais ninguém, já que perdi todos que eu amava.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 1002[32]
“Estou morrendo.
Consigo sentir a dor nas minhas costelas a cada vez que respiro.
Pedi ao enfermeiro para que me ajudasse a pegar o material
necessário para te escrever uma carta.
A última, eu acredito.
Passarei a noite na enfermaria. E acho que essa será a minha última.
Tudo dói.
Eu não tenho mais forças para lutar contra isso.
Eu quero desistir. Quero a morte.
Eu não aguento mais.
Então, se um dia receber isto, quero que saiba o quanto você
significou para mim. Você foi mais do que apenas um amor; você foi a
minha melhor amiga. E eu sou muito grato por isso.
Sou grato por nunca ter esquecido das estrelas do seu rosto. E por
elas sempre me trazerem ao eixo quando penso no mundo aí fora.
Sou grato por ter me escolhido.
E sou grato por ter preenchido o vazio.
Sou grato por muitas coisas, amor, mas não tenho mais forças para
escrever tanto.
Então, espero apenas que você seja feliz.
Que encontre alguém que lhe dê toda a estabilidade que eu não pude.
E que você tenha dias mais felizes do que tristes.
Que realize seus sonhos e que seja campeã. Em todas as competições
que participar.
Você merece o topo. E eu te amo porque você sabe disso.
Te amo infinito, além e um pouco mais.
Adeus, meu amor.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 1018
“Eu sonhei com uma menininha linda.
Ela disse que eu tinha borboletas ao meu redor. Que elas eram a
minha mãe. Pessoas que nós amamos sempre retornam dessa forma.
Ela era muito inteligente e esperta. Gostava do Asher como se ele
fosse seu humano favorito e os dois estavam sempre juntos.
Ela me acordou, Donna.
Eu estava morrendo.
Meu coração havia parado.
Haviam desistido de me reanimar.
Então vi olhos enormes olhando para mim e respirando no meu rosto.
Ela disse: “Você não pode ir agora, eu ainda não te conheço”.
E eu despertei.
Fiquei oito dias em recuperação.
Mais oito tentando me manter de pé.
E fiquei o tempo todo pensando: quem era aquela garotinha?
Porque a voz dela me acalmou tanto?
Não acreditava em Deus. Até aquele dia.
Naquele dia eu conheci um anjo.
E era o anjo mais lindo do mundo.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 1356
“Hoje foi um dia ruim.
Tem ficado difícil conseguir papel e caneta para escrever para você.
O guarda que consegue isso para mim quase foi pego e me avisou
que, a partir de agora, a frequência que receberei minhas encomendas
serão mais escassas.
Como se isso não fosse o suficiente, no meu horário livre no pátio,
um idiota me confundiu com outro idiota e eu acabei ganhando um olho
roxo de graça.
E isso nem foi a pior coisa que já me aconteceu aqui. Na verdade, foi
uma das mais leves.
Porém, não quero e não vou me aprofundar nesse assunto com você.
Não consigo, Donna.
Imaginar que possa sofrer enquanto lê o que relato, me dói.
Isso sim pode ser uma das piores coisas que podem me acontecer.
E eu já estou sofrendo demais, amor.
Então, se eu puder pedir algo, peço que viva uma vida tranquila.
Você é a minha vida.
E se você está bem, eu também estou.
Não importa o lugar que eu esteja.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 1368
“Vinte e sete de março.
Consigo respirar aliviado.
Meu peito não dói.
Por que nessa data sempre me sinto assim?”
DIA 1601
“Você está recebendo as minhas cartas?
Eu sinto sua falta. E já estou chegando no meu quinto ano neste
lugar…
Eu quero pedir desculpas, mesmo que já tenha passado tanto tempo e
que talvez você se lembre de mim apenas como um idiota que estragou um
dia tão importante para você. E acho que um pedaço de papel não será o
suficiente para isso. Então… será que pode, por favor, me visitar?
Não queria que fizesse isso durante todos esses anos, mas sinto que
apenas assim seria capaz de te explicar tudo.
E também porque sou egoísta e quero ter algum motivo para me
sentir bem.
Preciso te explicar o que aconteceu. Você precisa me ouvir. Por favor.
Se está me deixando, ao menos me deixe te explicar o que houve.
Eu te imploro.
Escreva uma carta para mim quando sentir saudade. Ou até mesmo
se não sentir.
Vou ficar esperando uma resposta, pensando que você sentiu e não
me contou. E se isso for real, irei passar a te admirar ainda mais por ter
essas duas habilidades. A de não sentir saudades e a de não pensar em
mim.
Porque eu sinto. Eu penso.
Todo dia, Donna.
Sinto sua falta todo dia.
Sempre seu,
Benjamin.”
DIA 1733
“É vinte e sete de março.
Eu daria tudo para entender por que essa data sempre me deixa
bem.”
DIA 1943
“Te amo infinito e um pouco além dele.
Sempre seu,
Ben”
DIA 2004
“Hoje eu demorei a lembrar o som da sua voz.
Doeu pra caralho.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 2017
“Saio daqui em dois dias.
Asher não sabe ainda.
E eu não tenho mais ninguém a quem contar que não seja você.
E eu queria que você fosse a primeira a saber.
Fico imaginando como você deve estar agora.
Se deixou o cabelo crescer, se ainda faz aquelas tranças que eu
adorava ou se as ondas do seu cabelo continuam macias como me lembro.
Fico apenas… te imaginando.
E isso é que tem me dado força para aguentar esses últimos dias.
Só mais dois dias.
E eu vou atrás de você onde quer que esteja.
Te vejo em breve, linda.
Sempre seu,
Ben.”
Porque eles dizem que lar é onde
Seu coração está gravado em pedra
É onde você vai quando está sozinho
É onde você vai para descansar
Home | Gabrielle Aplin
— Papai, não vai acreditar no que eu vi. — Lis volta alguns passos,
gritando alto o suficiente para chamar a atenção de algumas pessoas, e não
dá a chance de Benjamin responder antes de voltar a tagarelar eufórica: —
Um Garfield de pelúcia, pai! Pode pegar para mim? Por favor, por favor,
preciso de um Garfield de pelúcia e eu nunca te pedi nada, papai, por favor,
por favorzinho…
— Calma, neném — Ben pede, rindo e soltando minha mão para
carregá-la. — Mostra para o papai onde tem, e eu vou pegar para você.
— Você tem que acertar uma bolinha, pai, mas tudo bem se não
conseguir, a gente pode comprar depois.
— É claro que eu vou conseguir acertar, filha.
— Você nunca levou a sério aquela conversa sobre não mimá-la, não
é? — pergunto, seguindo os dois.
— Desculpa, amor — ele diz, mas não há culpa alguma em seu
sorriso. — Esse é um pedido muito difícil de cumprir.
Ao chegarmos no brinquedo, Ben entrega o bilhete a um senhor gentil
que explica como funciona a dinâmica simples. Não posso evitar de rir com
o entusiasmo de Elisa ao dizer palavras de incentivo para o pai, que se
concentra para acertar o alvo.
— Papai, você é o melhor! — ela diz com um sorrisão. — E os
melhores sempre conseguem qualquer coisa!
Ben ri, com os olhos semifechados, encarando o alvo com
determinação, mas sem tirá-la do seu braço.
Balanço a cabeça em negação, vendo os dois se concentrarem para o
arremesso.
E quando Benjamin acerta o alvo, fazendo o sininho da barraca soar, a
alegria é garantida. Elisa começa a pular descontroladamente e quase
arranca o enorme urso de pelúcia das mãos do funcionário do parque, que
estende para ela.
— Obrigada, obrigada, obrigada, papai! — ela mal consegue abraçar
o pescoço de Ben, já que o brinquedo praticamente ocupa todo o seu
esforço. — Me põe no chão! Vou mostrar meu neném para todo mundo!
Parece um enorme sacrifício para ele fazer o que ela pede e eu rio
quando nossa pequena se afasta alguns passos, saltitando com a sua nova
coisa favorita nos braços.
— Você a faz feliz — constato, enlaçando seu braço e acompanhando
Lis.
— Não faço nada mais do que a minha obrigação.
— Eu sei disso. — Soo convencida e ele pensa o mesmo ao erguer a
sobrancelha em minha direção. — Quis dizer que você nos completa.
— E…? — Ele dá ênfase, querendo que eu continue.
— O que quer ouvir?
— A verdade.
— Nunca deixei de te amar — admito, enquanto caminhamos. —
Acho que no fundo, algo em mim sempre soube que você voltaria.
— Eu amo vocês. Mais do que sou capaz de expressar em palavras ou
com qualquer atitude. Antes de vocês, tudo o que eu sabia sobre o amor
machucava.
— E agora não mais.
— Nunca mais.
Eu não ligo pro que os outros falam
Me arrependo só do que não fiz
Nesses casos de amor, o coração é quem diz
Quando a Gente Ama | Xamã
FIM.
Mesmo quando estivermos por um fio, amor
Mesmo quando for para fazer ou morrer
Nós podemos fazer isso, amor, simples e claro
Porque esse amor é uma coisa certa
Sure Things | Miguel
[1]
Time de basquete fictício que pertence a autora e é recorrente na Trilogia Estilhaços
(também da autora).
[2]
Colégio fictício que pertence ao universo da autora.
[3]
Um gato preguiçoso, guloso (e tem preferência por lasanha), viciado em café, amante
de televisão e acima de tudo, sarcástico. Foi criado em 1978 por Jim Davis.
[4]
Colégio interno fictício citado na Trilogia Anti-Heróis. Em resumo, é um colégio
interno onde adolescentes rebeldes, filhos da elite são enviados — geralmente, para serem punidos
sem que a mídia saiba. É localizado em Nova Iorque.
[5]
“Minha vida” em italiano.
[6]
Cidade ficticia criada pela autora para melhor ambientação da história. Fica entre Nova
Iorque e New Haven.
[7]
Oi, Pequena, em italiano.
[8]
Parece que você é a luz da minha vida, Elisa. Em italiano.
[9]
American Sign Language é a Língua de sinais americana.
[10]
Trecho da música “If The World Was Ending” de JP Saxe e Julia Michaels.
[11]
Um bairro situado no sul de Boston, Massachusetts, EUA.
[12]
A bailarina continuará dançando nos corações de vocês, em francês.
[13]
Psicanalista húngaro que contribuiu para a teoria dos traumas.
[14]
Por favor, em italiano.
[15]
Psicóloga.
[16]
Ela se refere às sardas da mãe.
[17]
Protagonista do livro Intoxicado da autora Annie Belmont
[18]
Protagonista do livro Intoxicado da autora Annie Belmont
[19]
Entendeu. Em italiano.
[20]
Porra. Em italiano.
[21]
Ator, dançarino, produtor e modelo norte-americano que atuou em grandes filmes como
Ela Dança, Eu Danço e Ela é o Cara.
[22]
Como está? Fiquei tão preocupado com você. Em italiano.
[23]
Se sente melhor? Quer alguma coisa? Podemos fazer o que quiser, hum? Em italiano.
[24]
Estou melhor, meu papai cuidou muito bem de mim. Em italiano.
[25]
Apenas o meu papai pode me chamar desse jeito. Em italiano
[26]
Ele chegou agora. Em italiano.
[27]
Você quis me bater quando te chamei de bebê.
[28]
Ela pediu desculpas.
[29]
Princesa. Em italiano.
[30]
Em tradução livre; Programa Curto. Se caracteriza por avaliar apenas a precisão e
execução dos elementos aleatórios. Para melhor desenvolvimento da história, também acrescentei
que avalia a sincronia da dupla. Vale lembrar, mais uma vez, que fiz algumas adaptações nas cenas
que envolvem a patinação pelo mesmo motivo que acabei de citar.
[31]
Um grupo de serpentes grandes, não venenosas, que matam suas presas por constrição.
Elas se enrolam ao redor do corpo da vítima de modo a impedir o fluxo sanguíneo, causando parada
cardíaca.
[32]
Contabilizando, essa data seria dia vinte e seis de março, um dia antes do aniversário de
dois anos da Lis.
[33]
Uma das melhores amigas da Kimberly e protagonista do livro “Brincando Com o
Acaso”, disponível na Amazon e no Kindle Unlimited.