Quando Nos Colidimos - LJúpiter - Nodrm

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QUANDO NOS COLIDIMOS

COPYRIGHT © 2024 L. JÚPITER


Todos os direitos reservados
Esta obra foi revisada conforme o Novo Acordo Ortográfico.
Estão proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte desta
obra, através de quaisquer meios ― tangível ou intangível ― sem o devido
consentimento. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela
lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Esta obra literária é uma ficção. Qualquer nome, lugar, personagens e
situações são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com
pessoas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Capa: Larissa Chagas.
Diagramação: L. Júpiter.
Revisão: Karen Valentino.
Leitura Crítica: Pigmalateia.
Leitura Beta: Ana Laura Maniá, Camila Carneiro, Júlia Barcelos, Mare
Soares, Nayane Oliveira, Tan Wenjun, Tatiane Brandão e Yasmin Vitória.
Leitura Sensível: Isamara Gomes.
Ilustração: Blue Bble.
Quando Nos Colidimos
[Recurso Digital] /L. Júpiter — 1ª Edição; 2024
1. Romance Contemporâneo 2. Literatura Brasileira 3. New Adult 4. Ficção I. Título.
Oi, eu sou a Júpiter e gostaria de te dar as boas-vindas ao meu novo
livro.
Antes de mais nada, gostaria de agradecer por ter escolhido Quando
Nos Colidimos como sua leitura atual. Desejo que, assim como eu, se
apaixone por cada linha dessa história e consiga entender todas as nuances
que constroem essa pequena família que significa tanto para mim.
A primeira coisa que preciso te avisar sobre Quando Nos Colidimos é
que ele é um livro único. Muitos conhecem a história do Benjamin e o que
o fez parar onde parou através de Perdendo o Controle, livro do irmão dele.
Mas aviso de antemão que a leitura do outro livro não é obrigatória. Tudo o
que acontece com o Ben lá é explicado aqui e de uma forma ainda mais
descritiva. Apesar disso, temos citações e aparições de outros personagens
do meu universo, mas também não precisam se preocupar com isso, pois
todos são explicados – até mesmo aqueles que não têm livro.
Segundo, eu gostaria de dizer que, sei que vocês esperam que esse
seja um livro extremamente triste ou com plots que, com certeza, fariam a
nossa cabeça revirar, mas não. Desde quando Benjamin nasceu na minha
cabeça, ele só pedia por uma coisa: paz.
E a paz dele está nelas. Na forma com que os três se cuidam, se amam
e se respeitam.
Então gostaria de dizer que sim, haverão momentos tristes aqui. Mas
não espere que esse seja o livro mais deprimente desse universo, porque não
é. A partir do momento em que eles se encontram como família,
começamos uma reparação de danos.
Benjamin, Donnatella e Elisa sofreram muito antes dessa história
começar. Entre respostas nunca recebidas, dúvidas infindáveis e um desejo
que não sabia se poderia se concretizar, eles já viveram inferno o suficiente
para que eu colocasse mais desgraças aqui hahahaha.
Então, é isso. Peço que não esperem daqui nada mirabolante, nada
triste demais.
Essa história é sobre amor, mas também é sobre tempo. Sobre o
quanto ele pode ser bom e cruel na mesma medida, basta que nós
escolhamos em qual experiência decidir viver.
E eu espero que eles toquem vocês tanto quanto eu.
Com amor,
Júpiter.
Apesar de ser um romance sem muitas reviravoltas, é importante
lembrar que se tratam de personagens reais e adultos, com problemas
também reais e adultos.
Este livro contém: Pensamentos ansiosos e depressivos, negligência
infantil, relacionamento familiar conturbado, afastamento social e
homicídio.
Também há uso de palavrões, insinuação sexual e cenas de sexo
explícito.
clique aqui ou escaneie o QR Code abaixo para uma melhor experiência:
Não sinto tua falta
Não sinto, nem lembro de você
Nem da tua respiração ofegante
Não sinto falta, eu sinto ânsia
Distância
Do teu signo-preto
Do teu silêncio, o grito
Sinto ânsia
E a provoco
Enfio os meus dez dedos na garganta
Pra ver se vomito teu ser
Da minha alma
Barquinho de Papel | Anavitória
Para nós, as garotas meio medrosas, que sonham em viver grandes
aventuras,
não importa o quanto isso custe.
Para quem sabe que o tempo pode curar, mas que também é capaz
de ferir,
e mesmo assim é corajosa o suficiente para enfrentar os riscos.
E para todos os pedaços do meu coração,
os quais transformei em arte para não sangrar até a morte.
Hoje eu me lembrei de você.
E é irônico escrever isso quando não me lembro de um dia sequer em
que você nunca tenha perseguido meus sonhos ou a minha alma.
Eu nunca te esqueci, e essa é uma realidade que eu odeio ter que
conviver.
E também odeio você.
Odeio tanto quanto sou grata.
Você e o seu abraço que acalmava tudo, aquela sua mania irritante
de me fazer feliz a qualquer custo e a forma com que conseguia me ganhar
sem muito esforço.
Eu lembrei de você hoje. Mas não senti sua falta.
É isso que repito para mim mesma todos os dias, todas as horas,
todos os minutos e todos os segundos que lembro da sua existência e do que
ela causa ao meu coração.
O que significa que isso acontece a todo instante.
Não sei quem você se tornou durante todos esses anos.
Mas sei que te quero bem longe de mim.
Não sei se ainda curte Maneskin, não sei se continua patinando, se
ainda gosta de azeitonas ou se sequer sente minha falta.
Pego-me pensando se as coisas seriam diferentes se eu nunca tivesse
te conhecido.
Entretanto, acho que de todas as coisas das quais me arrependo
durante a minha vida, te amar não foi uma delas.
Eu te amei. No passado, que é onde você está. E é de onde não quero
que você volte.
Te amei por incontáveis dias.
Te amei não só nessa, como em outras vidas.
E sabe o que não te contei, Ben?
Todos os dias que te amei foram malditamente dolorosos.
Era como se eu estivesse bebendo um pouco de veneno todos os dias.
Um veneno do qual não há antídotos ou milagres que possam reverter. Eu
estava cega antes, mas não estou agora, quando estou vivendo as
consequências do que te amar me causou.
Você me abandonou, Benjamin.
Partiu quando mais precisei de você.
E eu não te quero agora. Não quero ter que conviver com você, seu
abraço-casa, a paz que traz ao meu peito e muito menos ao sentimento que
desperta em mim.
Não quero mais você.
Eu te esperei, sabia?
Por torturantes meses, incontáveis dias, horas que não passavam e
minutos agonizantes.
Te esperei quando tudo e todos à minha volta diziam para te esquecer.
Quando meus joelhos não tinham mais forças e foram ao chão.
Quando as dores do dia mais especial da minha vida me fizeram duvidar da
minha força.
Eu te esperei.
Esperei que cumprisse a promessa de que sempre seria meu. De que
sempre seguraria a minha mão.
Esperei que voltasse. Esperei que estivesse lá para ver meu sonho se
realizando.
Mas você não cumpriu a sua promessa.
Quando eu olhei para a arquibancada, seu lugar estava vazio e eu
entendi o recado.
Pelo visto, seu ego sempre foi maior do que o amor que você dizia
sentir por mim. Você não apareceu naquele dia e eu entendi que não
apareceria nunca mais. Eu sempre fui uma idiota quando o assunto era
você.
Mas foi só isso. Eu esperei, mas você não voltou para mim. Não
voltou por mim. Não me apoiou. Não me entendeu. Não quis me ouvir. Não
quis, ao menos, conhecê-la.
Tenho vivido há anos dentro de um carro, sem saber se devo seguir
caminho ou esperar.
E a dúvida me fez esperar.
Mas eu não quero mais.
Estou te libertando de mim porque não quero mais você.
E saber que você nunca me procurou, nunca quis saber de nós, como
estamos ou sequer olhou para ela, me dá a certeza disso.
Você não nos merece.
E eu já estou cansada de te amar em silêncio.
Por isso, peço que, se ler essa carta, não tente mais ser meu.
Porque eu não quero mais ser sua.
Não deveria nem mesmo te escrever isso. Você nem deve se lembrar
de mim. Mas ainda assim, hoje eu precisei escrever. Eu precisei colocar
para fora a dor que você me causou, que ainda causa e que acho que nunca
deixará de causar.
Eu a olho e te vejo.
E mesmo que seja difícil, me amaldiçoo todos os dias por comparar
os olhos dela aos seus. Me sinto péssima todas as vezes que sinto vontade
de chorar quando olho para os olhos dela. É doloroso ver que o sorriso
dela é idêntico ao seu.
E ela foi a única coisa boa que poderia vir de alguém como você.
Então, eu finalmente entendi que não precisamos de você. Não
precisamos de ninguém. E nós duas somos suficientes uma para a outra.
Ela faz cinco anos hoje. E desejou receber um pai de presente quando
assoprou a chama das velas. Estou cansada de dizer que precisa ser uma
boa garota para ganhar algo do bom velhinho, mas a verdade é que ela é.
Elisa é uma garota perfeita, a melhor que alguém como eu poderia merecer.
Ela é luz. É o sol no qual eu orbito em volta.
O meu mundo nasce e morre nos olhos dela. A minha felicidade
reside no brilho que emana dela. Embora uma parte minha sempre vá se
sentir culpada por dar a ela um pai como você.
Queria que ela tivesse pedido o mundo. Isso eu conseguiria dar a ela.
Mas um pai? Jamais poderei dar a ela algo que você nunca poderá
ser.
Você seria um péssimo pai. Para ela e para qualquer pessoa. Porque
você só pensa em si mesmo, Benjamin, e seria ridículo da minha parte
nutrir esperanças de que poderia amar um ser tão puro e delicado como
Elisa.
Minha filha não te merece.
E foi por isso que respondi que alguns pedidos não podem se realizar
e ela perguntou por quê.
Eu disse que você podia voltar um dia, mas que era provável que
você não voltasse nunca mais.
Foi cruel. Eu sei disso.
Lis é forte e segurou as lágrimas por algum tempo, antes de desabar
no choro mais sofrido que já ouvi vindo dela.
Mas ela está crescendo e mais cedo ou mais tarde irá entender como
tudo à nossa volta funciona. Não achei justo deixá-la esperando por
alguém que nunca iria voltar para nós, então lhe contei eu mesma a
verdade.
Elisa não precisa de mais confusão.
E, com certeza, não precisa de você.
Nenhuma de nós, aliás.
Na minha caixinha de memórias, você, de todas elas, é a lembrança
que mais dói.
Não sou mais sua,
Donnatella.
Cada minuto e cada hora
Eu sinto sua falta, eu sinto sua falta, eu sinto mais sua falta
Cada tropeço e cada disparo errado
Eu sinto sua falta, eu sinto sua falta, eu sinto mais sua falta
Good Grief | Bastille

Um ano antes, presídio


Cinco anos, nove meses, vinte e três dias e doze horas.
É a quantidade de tempo que a minha liberdade foi tomada das
minhas mãos.
Não sei qual a data de hoje. Apenas sei que é o dia 2031.
E que não aguento mais estar enclausurado nesse lugar.
É cruel, hostil. Sobretudo, sufocante.
E eu não me arrependo de nada.
Embora saiba que não sairei daqui tão cedo, não deixo de me
perguntar todos os dias qual será a sensação de estar livre outra vez.
Quero voar novamente, embora saiba que não estou em uma situação
favorável no momento.
Aceitei esse fato desde o primeiro dia que pisei neste lugar e entendi
que, se não atacasse de volta, seria um alvo fácil. O que resultou em
castigos sem fim e solitárias que mais parecem uma tentativa de me matar.
Sei que não deveria ser assim. Eu deveria manter a calma, a cabeça
erguida e não cair em qualquer provocação.
No entanto, minha raiva sempre foi a minha maior companhia. Não
me lembro de um dia sequer em que ela não tenha estado em mim como
uma maldição.
— Quantas vezes vou ter que pedir para você não aparecer mais aqui,
Asher?
Minha voz soa estranha até mesmo para mim.
Faz tempo que não me ouço. Faz tempo que sequer abro a boca para
fazer algo além de engolir a comida sem sabor que esse lugar nos fornece.
Meu irmão suspira ao ouvir minha reprimenda e me encara por alguns
segundos, que para mim, parecem horas. Tudo nesse inferno parece durar
uma eternidade.
Sei o que ele sente quando me olha.
Pena. Em sua forma mais pura.
Não é preciso muito para notar isso, mesmo que ele saiba esconder
muito bem.
Asher me olha nos olhos, e sei que está procurando por algum
resquício de vida ou esperança, mas ele não irá encontrar.
Não há espaço para vida dentro de mim. Sou todo feito de raiva e
ódio. Sou construído à base das minhas mágoas e moldado com o meu
rancor. Meu ego me acalenta nas noites frias e meu orgulho ferido faz com
que eu aja como se estar nesse inferno não fosse nada.
Não há mais vida em mim.
— Não vai adiantar — ele responde, tão sério quanto eu. — Só
deixaria de vir se estivesse morto.
Penso em dizer que isso já esteve bem perto de acontecer. Que eu já
tive vontade de fazer acontecer, mas me mantive aqui por ele. Porque, no
fundo, sei que ainda que esteja nesse inferno particular, sou a única coisa
que restou de uma família para Asher.
Eu sei o quanto ele sofreu com a morte de Elisa e com o desprezo
dado por Michael. E também sei do amor e da lealdade que sente por mim
porque é o mesmo que sinto por ele, e tirar a minha vida o colocaria em um
poço sem fundo.
E, definitivamente, fazer mal ao meu irmão é a última coisa da qual
tenho pretensões.
Ele é o meu fio de sobriedade. É o que me mantém são quando tudo à
minha volta me faz querer ficar louco.
Asher é a coisa mais preciosa da minha vida e, embora eu não tenha
feito das formas corretas, eu o criei.
Ensinei-lhe o certo e errado quando nossa mãe estava ocupada demais
amando um monstro, esperando que ele se transformasse em um mocinho
enquanto negligenciava os próprios filhos em prol de algo que nunca
aconteceria.
Mostrei para Asher o que era ser um homem quando o nosso genitor
usava da força para nos impor de qualquer coisa. Quando seu cinto acertava
minha boca e nenhum som saia dela. Quando ele, sem escrúpulos algum,
era capaz de fazer com que Elisa caísse em sua teia de mentiras.
Não precisei usar de violência, força ou quaisquer palavras hostis para
ensiná-lo a ser homem, respeitar o próximo e a si mesmo.
E me orgulho disso. Quando se trata da educação de Asher, eu não
sou modesto.
Fiz e faria tudo de novo para que ele tivesse a melhor vida possível,
independentemente da situação. É óbvio, eu gostaria de poder ter dado mais
para ele. Eu tentei dar mais para ele.
Mas, infelizmente, nem tudo corre segundo o planejado e é por isso
que vim parar aqui.
Matar meu pai não estava nos meus planos.
Eu nunca sujaria minhas mãos com o sangue daquele imundo, mas
também nunca seria capaz de viver com a consciência de que ele ainda
respirava depois de ter feito mal para minha mãe e irmão. Embora ela
também não fosse o melhor exemplo de moral e maternidade, Elisa ainda
era o amor da minha vida. Eu teria feito de tudo para trazê-la de volta à
vida.
— Ash… — digo baixinho, querendo que ele me entenda. — Não
gosto que venha aqui.
Não gosto que me veja assim.
Não quero que se lembre daquele dia.
Não quero que se martirize por algo que não pode mudar.
Não quero que se decepcione mais.
— Não vou deixar de vir — responde, sua voz soando com um quê de
tristeza, como em todas as vezes que peço que não venha. — Sabe disso.
Ele se recusa a me deixar.
A se afastar.
E, Deus, eu me amaldiçoo tanto por isso que chega a ser cansativo.
— Sei. — É apenas o que consigo pronunciar, perturbado demais para
discutir algo no qual estou cansado de falar, então resolvo mudar de
assunto. — E como está a faculdade?
— A mesma chatice de sempre — rebate, tão rápido que a única coisa
que consegue me arrancar é um olhar de repreensão, o qual ele se apressa
em defender: — Minhas notas continuam boas.
Essa é apenas mais uma das coisas que eu sempre exigi dele. Boas
notas, bom comportamento. Quando ele lutou pela sua bolsa em Yale
apenas para ficar mais perto de mim, eu compreendi que embora me sinta
solitário trancado atrás daquelas celas, eu nunca fui, verdadeiramente,
sozinho. Asher fez de tudo para conseguir estudar em uma das melhores
faculdades do país, para estar próximo a mim, ainda que não nos víssemos
com frequência.
E, porra, não choro com frequência, mas quando me contou que
estava em uma lista concorrida de selecionados, chorei de orgulho. Orgulho
do homem que ele estava se formando e da forma com que não precisou
passar por cima de ninguém para conseguir isso.
— E o time?
Ash atua como Ala-pivô dos Black Panthers[1], o time de basquete de
Yale. O esporte sempre esteve presente nas nossas vidas, principalmente
depois que encontrei uma cesta e a levei para o quarto que chamávamos de
casa, improvisando uma quadra.
Não tínhamos acesso a muita coisa naquela época. Na verdade, não
tínhamos acesso a nada. Estudávamos em uma escola particular porque
nossa mãe era professora de francês e balé. E esse era o único privilégio do
qual desfrutei enquanto estive lá fora.
Foi no Prescott Scholl[2], onde a conheci.
Foi onde me apaixonei e onde me perdi.
— Vou acabar indo para o banco — meu irmão responde, antes que
minha mente me leve para o caminho mais perigoso que sabe fazer. — Mas
sendo sincero é exatamente o que quero.
Estreito meus olhos em sua direção quando noto que ele parece
nervoso demais para alguém que está sempre insistindo em vir me ver. Os
olhos fogem dos meus a cada instante, ele morde os lábios com mais
frequência e pelo que consigo ver através do vidro que nos separa, suas
pernas balançam sem parar.
E pelo que bem conheço de Asher Dempsey, há um motivo por trás
disso.
— Existe algum motivo especial para ter vindo hoje? — pergunto e
num súbito de esperança, continuo: — Alguém te procurou?
Diga que sim.
Diga que ela me procurou.
Diga que recebeu minhas cartas.
Diga que ela, ao menos, disse que me odeia.
Meu irmão balança a cabeça em negação com rapidez, me impedindo
de ir muito longe com o pensamento.
A resposta me causa uma sensação estranha no peito.
Cinco anos, nove meses, vinte e três dias e doze horas.
É a quantidade de tempo em que não tenho notícias dela.
É a quantidade de tempo que apenas me lembro dela.
— O que foi, então? — questiono, querendo me livrar da tristeza
profunda que me acomete quando lembro que ela não está se importando
em como estou.
Todas as vezes que eu me senti minimamente bem enquanto estive
aqui dentro, além das memórias que carrego, é a forma como Asher sempre
consegue me fazer rir com coisas bobas.
— Beijei uma garota há alguns dias.
Vinte e três anos.
Tenho vinte e três anos, e estou sendo obrigado a ouvir do meu irmão,
dois anos mais novo que eu, que ele se apaixonou por causa de apenas um
beijo. E ele nem precisa me dizer isso. É visível pela forma como as suas
pupilas dilatam apenas ao mencionar a garota.
E essa, definitivamente, é uma coisa da qual não posso julgá-lo. Não
quando me apaixonei por muito menos que isso.
— Não entendi — alfineto. — Pelo que me lembro, está beijando
desde os treze anos.
— É diferente.
Um riso escapa de mim sem que eu possa me conter.
— Veio aqui só para me dizer que está apaixonado?
— Ela é filha do seu advogado — rebate, sem rodeios.
Meu riso some no mesmo instante.
Isso é arriscado, porra.
Aquele homem é um imbecil. Isso pode dar uma merda do caralho.
Para nós dois.
— E irmã do meu melhor amigo.
Suspiro quando noto a expressão dele. É a de alguém nitidamente
perturbado, que não sabe o que fazer quanto aos próprios sentimentos. Sei
como é se sentir assim, e é por isso que baixo a guarda, deixo de lado todos
os meus sermões e me lembro de que não sou o melhor exemplo de moral e
muito menos boa conduta.
— Você gosta dela.
Ele assente quando constato, sem nem mesmo se dar ao trabalho de
fazer rodeios.
— Esse é o problema — meu irmão admite, fechando os olhos. —
Estou me sentindo culpado por isso, mas, ao mesmo tempo, sinto que
deveria permitir que ela se aproxime.
— Ela te faz bem?
— Muito.
— Falou algo sobre mim?
Não quero que a consequência dos meus atos possa, de alguma forma,
atrapalhá-lo. Não seria justo. Eu não queria que ele sequer me visitasse. De
saber o que fiz.
— Não tenho vergonha de você — ele se apressa em responder
depois que nega, como se essa fosse a razão pela qual perguntei.
Engulo em seco enquanto tento não demonstrar o quão abalado a
ideia de saber que meu irmão realmente pensa que é assim que o vejo.
Como alguém que tem vergonha de mim.
— Fez o que fez para me proteger — reitera.
Encaro-o, com todo o amor que sinto por esse cara. O amor que me
fez cometer algo impensado, mas que não me arrependo. Jamais poderia
quando o ato impensado o libertou de um monstro.
— Eu faria tudo novamente.
— Eu sei — responde, convicto.
Ficamos em silêncio, ainda nos encarando até que eu decida quebrá-
lo, tentando dissipar a tensão que parece emanar dele.
— Por que não me conta como está pagando o advogado?
— Ele já te explicou tudo? — questiona, ao invés de responder minha
pergunta.
— Sim, esteve aqui uma semana depois da sua última visita — conto,
evitando o assunto de que o cara é um verdadeiro pau no cu e quem esteve
aqui foi, na verdade, um subordinado que me passou informações inúteis
das quais não valem de nada. — Não foge do assunto, Asher.
— Não precisa se preocupar.
— Eu sempre me preocupo com você. E sempre irei me preocupar
com você — respondo, olhando-o com uma desconfiança que eu não
gostaria de ter, não agora que não posso estar por perto para defendê-lo. —
Desembucha.
— Não precisa se preocupar, Ben, já disse.
— É algo ilegal? — questiono e pânico toma conta do meu corpo
quando ele se cala e entendo que seja o que for que esteja fazendo para
pagar o que se intitula melhor o advogado da cidade, não é algo que eu vá
aprovar. — Não é o que eu te ensinei, Asher.
— Não é nada demais — ele mente, na cara dura. — Além disso, ele
é pai do meu melhor amigo.
Eu suspiro fundo, sabendo que não importa o quanto eu insista, ele
não dirá nada e essa é a pior parte em sermos tão parecidos. Saber que os
defeitos dele são os meus também.
— Eu não gostei daquele homem.
— Você não gosta de ninguém — rebate, revirando os olhos e
sorrindo, tentando quebrar o clima esquisito.
— Não estou brincando — corto-o. — Tome cuidado com ele.
— Sempre tomo cuidado.
— Eu sei — respondo, porque embora queira protegê-lo a todo custo,
Asher já é um homem agora e aprendeu a fazer isso por si mesmo. Sozinho.
Sem mim. — E, Asher, cuide bem dessa garota, não cometa o mesmo erro
que eu.
É a última coisa que consigo dizer antes da sirene ensurdecedora
tocar, indicando que nosso tempo acabou.
Levanto-me antes que possa encarar seus olhos e fraquejar.
Essa sempre é a pior parte. Ver meu irmão e depois ter que voltar para
os corredores frios desse presídio.
Seguro o uniforme laranja e surrado na altura do peito com força,
onde tatuei seu nome e sei que ele não precisa ouvir minhas palavras para
entender o que quero dizer com o pequeno ato.
Eu e você para sempre.
Não encaro Ash enquanto os agentes me algemam e me levam de
volta para o inferno. Não seria capaz de fazer isso.
O metal gélido já não tem o mesmo poder de me fazer sentir como no
primeiro ano. Já estou acostumado com a sensação de familiaridade que ela
me traz, o sabor da prisão que traz à minha boca e a agulha de desesperança
que espeta meu coração cada dia mais fundo.
— Que data é hoje? — pergunto ao guarda que me leva até a cela.
— Vinte e sete de março — responde secamente, de uma forma que já
estou acostumado.
Estou acostumado com tudo o que envolve esse lugar. Com os
corredores frios, a comida ruim, as noites insones e o gosto de destruição.
Quando as grades da minha cela se fecham, deixando-me no silêncio
da minha dor, eu me sento na cama de concreto e coloco o rosto entre as
mãos. Minha respiração começa a vacilar. Minha garganta fecha. Meu peito
se aperta. Meus olhos umedecem.
E então, eu choro.
Deixo que as lágrimas escapem como em todos os anos nessa data.
Choro porque não queria deixar meu irmão sozinho. Choro porque
estou com saudade dela. E, sobretudo, choro por algum motivo que
desconheço, mas essa data sempre me faz sentir mais.
Vinte e sete de março.
Por que esse dia dói tanto?
Às vezes eu acordo ao lado da porta
Aquele coração que você pegou está esperando por você
Até mesmo agora, quando já terminamos
Não posso evitar ficar te procurando
Set To The Fire | Adele

Um ano antes
Sinto que estou sendo observada.
E tenho certeza disso quando uma respiração quente bate contra o
meu rosto.
Preciso respirar fundo para prender o riso que tenta escapar de mim
antes que eu abra apenas um olho, encarando a minha mini pestinha. Ela
está deitada no meu travesseiro, seu rosto praticamente grudado ao meu
enquanto seus olhos grandes me encaram. Os cabelos longos estão
bagunçados e ela sorri para mim com a sua primeira janelinha, quando
percebe que já estou acordada.
— Posso saber por que estou sendo observada tão cedo?
Seu riso preenche o quarto e, de alguma forma, é como se o som
retumbasse também em meu peito, me causando a mesma sensação de
sempre.
Pertencimento.
O que é estranho de se dizer levando em consideração que estou
acostumada com isso. No entanto, quando o assunto é Elisa, todas as coisas
sempre parecem a primeira vez, não importam quais.
Meu raio de sol continua sendo o motivo pelo qual eu acordo todos
os dias e tento, mesmo falha, ser a minha melhor versão. Por ela e apenas
por ela.
— É o dia mais especial do ano! — anuncia, jogando-se em cima
de mim.
— Será? — Finjo pensar, enquanto tento domar seus cabelos soltos
e desgrenhados com as mãos. — Não, não lembro de nada especial no dia
de hoje.
Elisa franze o narizinho, como sempre faz quando é contrariada.
Como ele sempre fazia.
E é ridículo da minha parte comparar seus trejeitos com o dele com
tanta frequência, ao passo que impossível não fazer isso porque ela herdou
de mim apenas os cabelos ondulados e escuros.
— Claro que sim! — insiste, ofendida. — É o meu aniversário,
mamãe!
— Ah, meu Deus! — Simulo estar chocada. — Ainda bem que
comprei o seu presente e que ele está dentro do meu armário! Imagina se eu
esqueço?
— Sério? — pergunta, animada, enquanto eu balanço a cabeça. —
E eu já posso ver o que é?
— Só depois da mamãe fazer isso… — Abraço-a com força, até
que Lis ria e reclame ao mesmo tempo, fazendo-me afrouxar o aperto e
começar a encher seu rosto de beijinhos.
— Mamãe — ela reclama de novo, rindo. — Eu não sou uma
boneca.
Eu rio da sua resposta e paro com o meu ataque, olhando-a com
todo o amor que há em mim. Com todo o amor que é destinado apenas a
ela.
Chega a ser engraçado olhar para o passado e lembrar o quão
desesperada fiquei com a ideia da sua chegada. Eu me perguntava
diariamente como daria conta de cuidar de uma criança com apenas
dezessete anos e conciliar isso a um futuro na patinação.
Foi assustador durante todos os nove meses em que a gerei.
Minha cabeça não descansava, embora eu tivesse meus irmãos
como rede de apoio, eu ainda continuaria sendo a responsável legal por um
bebê que mudaria toda a minha vida. Sem um pai presente.
Tudo em mim era dúvida. E eu não fazia — e nem faço — ideia de
onde Benjamin estava. Ele se foi e me deixou. Não posso mentir e dizer que
ele não me avisou que isso aconteceria, mas achei que, ao menos, me
contaria para onde estava indo, apenas para o caso de eu precisar ir também.
No fim, eu comprovei que verdades são difíceis de engolir.
E a verdade sobre nós dois era que, para Benjamin, eu fui apenas
uma aventura, um namoro adolescente bobo e sem significado.
Entretanto, esse acabou sendo o menor dos meus problemas,
porque o que me deixava acordada durante a noite, era o medo.
Medo de não ser uma boa mãe.
Medo de não conseguir dar uma vida estável para Lis — e isso ia
além do dinheiro.
E o pior de tudo: tive medo de não conseguir amá-la o suficiente.
A minha ficha nunca caiu enquanto estava grávida. Até o dia em
que minha bolsa rompeu antes da hora, tudo parecia uma brincadeira.
Ela chutava e eu ria.
Ela me fazia vomitar meu café, almoço e jantar e eu ficava mal-
humorada.
Ela mexia com o meu humor e eu sabia apenas chorar.
Até que ela nasceu.
E senti na pele aquela história que muitas mães contam sobre o
sentimento avassalador que nos toma a partir do momento em que o choro
histérico preenche o vazio, porque no instante em que senti Lis nos meus
braços, foi como renascer.
Existia uma vida antes e depois dela.
E quando a peguei nos braços pela primeira vez, eu apenas soube
que aquela garotinha mudaria todo o meu conceito de mundo.
Meu coração se encheu de tanto amor que era como se ele não
coubesse mais em meu peito. As lágrimas molharam meu rosto, seu pranto
cessou e nunca, nunca mais, a solidão fez morada em mim.
Lis fez do meu coração uma ode, onde tudo é colorido e bom.
Tudo é do jeito que ela pinta, e sempre é perfeito. Mesmo com os riscos
tortos e os borrões de tinta.
— Sabia que eu te amo do tamanho do mundo?
— E eu te amo do tamanho da galáxia inteira!
— Não vale — resmungo. — Eu não sabia que a galáxia estava
valendo.
Meu bebê respira fundo, como se eu estivesse tirando a sua
paciência, que, sendo sincera, é bem curta para alguém que acaba de
completar cinco anos.
— E o meu presente?
Reviro os olhos dramaticamente.
— A mamãe não ganha nenhum beijinho antes?
— Não seja boba, mamãe. — Ela ri, e acho que nunca a vi tão
animada na vida. — Depois do presente, posso te dar um beijinho.
— Dois — refuto, mostrando os dedos.
Lis semicerra os olhos, em sua pose de negociadora – na qual ela é
péssima, mas que adoro. Minha menina é uma figura.
Levanto-me da cama e seguro sua mão, levando-a em direção ao
closet.
— Vou te dar só três, então — diz, erguendo o dedo para mim.
Finjo pensar.
— Três beijinhos serão muito bem-vindos hoje.
Sei que deveria corrigi-la e dizer que três não é menor do que dois
ou um, mas acho fofo o fato de ela sempre achar que está certa nessa
matemática que só existe na cabeça dela. E, além do mais, é seu aniversário.
Quem sou eu para contrariá-la no único dia do ano em que não age como o
Garfield[3]?
Recosto-me na porta do closet, vendo-a caminhar em direção a
caixa grande e desfazer o laço. Lis tira a tampa com cuidado e solta um
gritinho entusiasmado quando vê o que há dentro.
Eu rio sozinha enquanto a vejo tirar com dificuldade o enorme gato
de pelúcia laranja, o qual ela é viciada, que também poderia ser considerado
sua alma gêmea. O Garfield. Ela o adora porque diz que ele parece o
Matteo, meu irmão mais velho, que está sempre com essa carinha de quem
chupou limão.
Palavras dela, não minhas. Nunca falei isso para ela, mas não
posso discordar.
— Mamãe, esse é o melhor presente do mundo! — anuncia, aos
berros. — Olha só, ele é maior do que eu. Preciso mostrar para todo mundo!
Ela tenta correr com ele em mãos, mas uma catástrofe acontece.
Lis vai ao chão mais rápido do que previ que aconteceria. Por
sorte, cai em cima do enorme animal de pelúcia. Penso em ajudá-la,
contudo, antes que me aproxime, seu corpo começa a balançar em cima
dele e ouço o som da sua risada abafada soar por todo o closet.
Preenchendo tudo.
— Acho que não dá para correr com ele, mamãe — diz, sorrindo
para mim.
— Eu tenho certeza. — Ajudo-a a levantar e a segurar a pelúcia de
uma forma em que não cause um acidente. — Bom, acho que agora você
precisa me pagar aqueles beijinhos que me deve e vamos escovar os dentes,
fiquei sabendo que os seus tios estão chegando com outros presentes.
— Posso fazer cara feia se o tio Matteo me der outro quebra-
cabeças?
— Não, Lis! — repreendo-a, querendo rir, porque apenas sendo
muito sem noção para dar um quebra cabeça de mil peças a uma criança de
quatro anos, como ele fez no ano passado. — Você agradece e apenas isso.
— Mas eu fiz isso ano passado e ele quis me ajudar a montar,
mamãe, e se ele perguntar sobre ele?
— Dizemos que você jogou na privada. Ele não vai ficar chateado
se você o abraçar.
Na verdade, nós doamos. Lis detesta tudo que envolva logística,
embora tenha um pouco de jeito com isso. Um quebra-cabeças pareceu
complexo demais e meu irmão é um pouco reticente em aceitar que apenas
ele gosta de coisas complexas na nossa família.
Lis gargalha.
— Somos a melhor família do mundo, não é, mamãe?
Meu peito bate com força.
— Sim, querida, somos a melhor família do mundo.

O som da porta de entrada abrindo faz Lis espiar por cima da


xícara de café com leite, que cobre seu rostinho.
Normalmente, eu proíbo cafeína para Elisa, porque ela já é agitada
por dez crianças, sem precisar de incentivo. Mas minha filha gosta e, em
datas especiais e finais de semana, permito apenas para vê-la feliz.
O problema é que desde que experimentou a bebida pela primeira
vez, ela decidiu que era a sua favorita. Não que eu possa julgá-la, já que
bebo café gelado na mesma frequência em que deveria beber água.
— Olha quem chegou!
O primeiro a entrar no apartamento é Alessandro, carregando uma
enorme embalagem da confeitaria preferida de Elisa.
— Bolo de sorvete! — minha bebê grita, saltando da cadeira com
pressa e agarrando as pernas dele com toda a sua força. — Você é o meu tio
favorito do mundo inteirinho.
Solto um gemido lamuriado ao ouvir as palavras da minha filha
porque no instante seguinte, Matteo passa pela porta, com balões, cada um
em um formato dos Ursinhos Carinhosos. De todas as cores.
E ele ouve o que minha amada filha diz. E não parece nada feliz.
— Eu falei que o bolo seria mais legal que balões. — Alessandro
pisca para ele, em deboche.
Elisa solta um sorriso fraco ao perceber que Matteo ouviu sua
declaração e logo se apressa em desgrudar das pernas de Alessandro,
caminhando até ele com as bochechas avermelhadas e as mãos atadas atrás
do corpinho.
— Oi, titio lindo do meu coração — cumprimenta, estendendo os
braços para ser carregada. — Eu te amo enorme.
— Tem sorte por eu te amar tanto, pestinha — ele resmunga,
segurando-a sem muita dificuldade. — Eu serei o tio favorito quando ver o
meu presente.
— Ele também não é mais legal que a bicicleta que comprei —
Alessandro sibila, sentando-se à minha frente, depois de pôr o bolo na
geladeira.
— Eu ganhei uma bicicleta?
— Acredite em mim, ela vai adorar mais a Mini-Lamborghini rosa
que está na garagem dela.
Alessandro nem mesmo tem tempo de fechar os olhos antes que eu
cuspa o meu café gelado em seu rosto. Porém, meu irmão não parece se
importar tanto assim com o líquido cuspido quando encara nosso mais
velho com a mesma indignação que eu.
— Você fez o quê? — gritamos ao mesmo tempo, mas é Alessandro
quem continua, levantando-se e apontando para a direção do idiota com
uma cara convencida enquanto recebe beijinhos no rosto. Ele recebeu mais
que eu. Que absurdo! — Você disse que iria comprar aquela loira ridícula.
— Não chame a Barbie de ridícula — minha filha reclama,
cruzando os braços.
— Ela é loira! — Alessandro rebate, como se isso fosse motivo o
suficiente. — Loiras são perigosas.
— Mas e aquela moça que sempre vai para o seu escritório e deixa
você com batom na bochecha?
— Alessandro! — Meu tom sobe um decibel quando processo as
palavras.
— Paguei cem dólares para você não falar sobre isso nunca mais,
sua pestinha!
— Está subornando a minha sobrinha? — Matteo entra na
discussão, sorrindo de lado.
— Você disse que a sua secretária deveria ir para aquele lugar que
começa com P e tem Q e P de novo — Lis entrega. — Não pode falar assim
com o tio Ale, ele estava triste e a loira chata o ajudou.
— Ela é insuportável, na verdade — Alessandro concorda.
Fico apenas parada, olhando de uma criança para outra, atônita,
porque não há outra forma de descrever os dois idiotas que estão discutindo
por besteiras, enquanto a minha filha se diverte e joga ainda mais motivos
para que eles continuem.
Recolho meu copo e a xícara de Lis da mesa, decidida a gritar com
os dois outra hora, uma em que a Miss Confusão não esteja por perto e nem
ouvindo atrás da porta. Lavo a louça ao som dos três e quando penso um
pouco, estou sorrindo.
Eles a fazem feliz.
Temos as nossas diferenças — e elas são muitas —, mas ainda
assim eles continuam aqui por nós. Eu, definitivamente, não poderia dar
tios melhores para a minha garotinha.
Seria egoísta da minha parte que Lis trouxesse apenas a minha
melhor versão, porque a verdade é que é ela quem faz com que nós três
continuemos juntos.
Alessandro, por exemplo, não a chama de Vida à toa. É exatamente
isso que ela representa para nós. Vida, esperança.
Lis faz com que nós acreditemos em coisas boas mesmo que seja
uma pestinha.
Matteo consegue se livrar da sua angústia quando está perto dela.
Alessandro volta a ser o irmão brincalhão e sorridente que era
quando éramos crianças demais para entender a dinâmica da nossa família.
E eu sinto como se voltasse a ter quatro anos e dormia entre os dois
para me refugiar de alguma tempestade. Então, tudo ruiu. Alessandro foi
enviado para Saint Clairy Preparatory[4] e logo depois acabou sendo preso,
Matteo se revoltou e eu fui para Boston, morar com a minha genitora. E
depois, veio Benjamin. E Lis. E finalmente, o momento em que vivemos
agora. Um em que nós mesmos podemos ditar as regras.
Eles estão sempre presentes para nós, a buscam na escola quando
não posso, dormem no meu sofá quando ela fica doente e até cozinham para
agradá-la. Vez ou outra também são convidados para maratonar Garfield.
Porém, a maior façanha que essa pestinha consegue fazer com os
dois, é transformá-los em dois brigões com os piores argumentos possíveis.
Como agora, em que os dois estão tentando jogar todas as informações
possíveis sobre o desenho favorito dela para mostrar quem sabe mais.
Encosto o ombro no batente da cozinha e meus olhos encontram da
pestinha, que tenta prender o riso quando me vê. Ergo a sobrancelha para
ela, mesmo sorrindo e ela entende o recado, começando a tossir bem alto
para interrompê-los.
— Eu adorei o carro, tio Matteo, e também adorei a bicicleta, tio
Ale. Vou aprender a usar os dois e usar um em cada dia, não se preocupem.
— A que ponto vocês chegaram — resmungo, suspirando com um
falso pesar. — Sendo repreendidos por uma criança.
Eles abrem a boca para responder, mas são interrompidos pela
pequena palestra que minha filha decide dar:
— E fique sabendo, Alessandro, que a Barbie não é uma loira
ridícula. Ela é a melhor boneca do mundo todo porque ensina que as
meninas como eu pode ser o que quiser e gostar de mil coisas ao mesmo
tempo. — Meu suspiro de orgulho pode ser ouvido do outro lado da rua. —
E é muito feio contar mentiras para os outros, Matteo, e só porque você
mentiu para o meu titio, vou aprender a andar de bicicleta antes de aprender
a dirigir o carro rosa, que com certeza é lindo, mas que foi um mentiroso
que me deu.
Quando ela termina, os dois estão encarando-a em silêncio e
levemente assustados.
— Estou certa, mamãe?
— Sempre está, querida. — Sorrio em sua direção, abrindo a
geladeira novamente e fechando-a em seguida quando pego o que quero. —
Vamos comer bolo?
— Quando você se tornou uma palestrante, sua peste? —
Alessandro a cutuca.
— Você me deve duzentos dólares por me chamar assim no meu
aniversário! — ela aponta, mas não está brava, muito pelo contrário.
Era exatamente o que ela queria, assim consegue encher o cofrinho
mais rápido. O que é bem absurdo levando em consideração que estamos
em vinte e sete de março e já está na metade, sendo que ele é enorme. Acho
que preciso ficar mais tempo de olho nesses três.
Alessandro abre a boca para retrucar, mas ela é mais rápida em
interrompê-lo.
— Não me obrigue a cobrar cem, tio!
Ele gargalha quando ouve a resposta e finalmente a tira dos braços
do nosso irmão e beija sua bochecha enquanto a aperta.
— Você realmente é a pestinha mais legal do mundo.
Coloco meu celular de pé em frente a um copo de vidro na bancada
e dou play no vídeo, para deixar esse momento registrado junto aos outros
milhares que tenho.
Ela já comemorou ontem na escola com os amiguinhos e disse que
queria uma festinha apenas com nós quatro para ser mais especial.
Desconfio que isso foi apenas uma história para fazer com que os tios
façam ainda mais a sua vontade, mas eu jamais admitiria isso em voz alta.
— Faz o seu pedido — Matteo diz, segurando o bolo em frente ao
rosto de Lis. — E tem que ser um pedido muito especial.
— Eu já sei o que vou pedir! — Ela sorri, entusiasmada. — E é o
presente que eu mais desejo no mundo todinho.
— É mesmo, vita mia[5]? — Alessandro questiona. — E o titio
pode saber qual é?
Elisa balança a cabeça em negação com veemência.
— Se eu contar, ele não vai se realizar — explica, sorrindo. — E
eu preciso que se realize.
— Tudo o que a nossa princesinha quiser, será dela — Matteo
garante, fazendo os olhinhos de Lis brilhar em entusiasmo.
— Sério?
— É a palavra dos seus titios favoritos do mundo, vita mia —
Alessandro complementa. — Nós iremos saber o que é e traremos até você.
— Promete?
— De dedinho.
E ela sopra as velinhas, e quando me olha com os olhos brilhantes
e esperançosos me deixa com a sensação de que, seja lá qual for o pedido,
nosso dinheiro nunca poderá comprar.

Mais tarde, depois de toda a festa que é o dia da Elisa — que


consiste em fazer tudo o que ela quiser —, estou na difícil tarefa de colocá-
la para dormir quando minha filha me encara, os olhos curiosos e os lábios
espremidos, um sinal de que ela está ansiosa.
— Mamãe? — ela chama, depois que se esgueira até meu
travesseiro. — Eu sei que o pedido é segredo, mas nós duas não guardamos
segredos uma da outra, certo?
Um sorriso toma conta do meu rosto quando entendo exatamente
onde ela quer chegar. Elisa não é bem conhecida por saber manter segredos
por muito tempo.
— Você quer me contar qual foi o seu pedido, não é, pestinha? —
pergunto, cutucando sua barriga de leve pelo simples prazer em ouvi-la rir.
— Quero — admite, ainda rindo e ofegante. — Mas estou com
medo de te contar e não acontecer.
— Querida, você pode contar tudo para mim.
— E se a senhora ficar chateada?
Percebo, então, que seja lá o que for, não é algo convencional.
— Não irei, meu amor.
— Eu pedi para o papai voltar — anuncia, escondendo o rosto no
meu pescoço como se estivesse envergonhada do pedido.
Eu paraliso.
Sem saber o que dizer ou fazer.
Devo contar a verdade ou alimentar suas esperanças?
Benjamin não irá voltar. Disso, tenho certeza.
Se em cinco anos nunca deu um sinal de importância, não será
agora que irá acontecer.
Cinco anos, nove meses, vinte e três dias e algumas horas, para ser
precisa.
É por isso que decido partir o coração da minha filha e lhe dizer a
verdade. Assim, ela poderá deixar esse assunto de lado e entender que está
tudo bem sermos apenas nós duas.
— Desculpa, mamãe, não queria te deixar chateada — resmunga, e
consigo notar a falha em seu tom.
— Minha vida, a mamãe não está chateada — digo. Então, ergo o
meu corpo na cama, sentando-me e a trazendo junto comigo, que me encara
com os olhinhos cheios de água. — Mas vou te contar algo que talvez deixe
você chateada.
— O quê, mamãe?
Suspiro.
É nessas horas que o peso da maternidade bate na porta e eu me
lembro que estou sozinha quando se trata disso.
Lembro que, há quase seis anos, neste mesmo horário, estava
vendo minha maior rival subir no pódio de primeiro lugar que seria meu.
Mas que não foi porque meu parceiro nunca apareceu para se apresentar
comigo.
Há quase seis anos, estava parada, em meio ao júri, olhando o meu
maior sonho escapar das minhas mãos como se fosse areia molhada.
Eu vi o meu mundo desmoronar algumas semanas depois, quando
olhei o teste positivo em minhas mãos.
Quis morrer quando o procurei em todos os cantos que pude para,
ao menos, contar o que estava acontecendo, mesmo que ele tivesse me
humilhado.
Mas ele não estava lá. Não estava em lugar algum.
E sobrou apenas eu. Eu, a consequência dos nossos atos
irresponsáveis e a dor do meu coração partido.
Então, sim, tenho certeza de que Benjamin não irá voltar. Nem por
mim, nem por ela.
O seu silêncio já me confessou isso.
— Alguns pedidos não podem ser realizados — explico
calmamente, do jeito que o nó em minha garganta permite.
— Por quê? — pergunta, as sobrancelhas se unindo.
— Porque o seu pai está em algum lugar do mundo onde a mamãe
não sabe.
— Mas ele pode nos encontrar, mãe — o defende, segurando o
meu rosto com as mãos pequenas. — Você me disse que algumas coisas
precisam de fé. Talvez o papai também precise.
— Meu amor — chamo-a, colocando uma mecha do seu cabelo
com o mesmo tom dos meus. Suas mãos caem do meu corpo quando
entende que esse assunto não é questão de fé. — Ele pode voltar um dia,
mas pode não voltar nunca mais, entende? A mamãe não quer que você crie
expectativas em algo que não sei responder.
Vejo quando o seu bico trêmula, prestes a chorar. Mas Lis fica
apenas me encarando, como se esperasse que a qualquer momento eu
dissesse que é uma brincadeira.
E eu queria que fosse.
Queria que ele não tivesse me deixado e ignorado.
Queria que ele a conhecesse e visse o quão incrível a minha
menina é.
Benjamin está perdendo a chance rara de conhecer a garotinha
mais perfeita do mundo e eu consigo sentir apenas pena dele.
Ele nunca esteve em uma festinha de Dia dos Pais.
Nunca irá ver o quanto ela é boa no balé.
Ele nunca irá rir do jeito catastrófico em que ela patina no gelo,
mas insiste em ir comigo ao rinque todas as vezes que pode.
Lis nunca irá apresentá-lo aos seus ursinhos.
— Você quer chorar? — pergunto, acariciando sua bochecha.
— Está doendo, mamãe.
— Lembra do que a mamãe conversou com você outro dia? —
questiono, lutando contra o bolo em minha garganta. — Que está tudo bem
chorar quando quiser?
Ela assente.
— Mas ele não quis a gente porque fui uma má garota?
— Meu amor… você é a garotinha mais especial do mundo inteiro.
— Por que ele não me quer, então?
Eu não sei, filha.
Eu não sei.
— Porque ele é um bobo. — Faço uma careta e vejo quando um
sorriso minúsculo aparece em seus lábios. — Você está bem?
— Ainda está doendo.
Eu suspiro.
— Você pode chorar, se quiser, meu amor.
E ela o faz.
Por minutos incessantes que mais parecem horas enquanto encaixa
o rostinho em meu pescoço e suas lágrimas mancham meu pijama.
Ela chora com tanta força e dor que me faz repensar na ideia de ter
contado. Talvez, não tenha sido certo. Mas, ela precisava saber. Precisava
parar de nutrir esperanças. Minha menina não merece esperar por alguém
que não irá voltar. Alguém que não quer saber de nós.
E eu também não.
É por isso que, depois que ela pega no sono, eu a arrumo em minha
cama e beijo sua testa. Caminho até a sala e pego seu caderno de desenho
em cima da mesa de centro e um dos seus lápis.
Sento-me na cadeira e antes de colocar o lápis no papel, eu deixo
que as minhas lágrimas finalmente saiam.
As lágrimas que guardo há quase seis anos.
Deixo que elas me lavem, que limpem todos os vestígios dele de
mim.
Faço com que o silêncio da minha casa ecoe a minha dor.
A dor do abandono, da falta de despedida.
A dor de não ter sido correspondida e pior, a dor de machucar a
melhor coisa que já aconteceu na minha vida, apenas porque ele não foi
homem o suficiente para olhar em meus olhos antes de partir.
Então, eu enxugo as lágrimas e fungo.
A raiva substitui as lágrimas e a ira toma conta do meu peito.
E eu escrevo.
Cada palavra, cada frase, saem de mim com a intenção de
machucá-lo. De feri-lo. De cravar uma faca bem funda em seu peito.
Consigo respirar aliviada quando assino.
Então, apenas caminho até o escritório quase nunca usado por
mim. Eu abro a minha caixinha de memórias e coloco aquela carta no
fundo.
Proibindo-me de dar a Benjamin o poder de me destruir ainda
mais, mesmo que seja apenas com as lembranças que mantenho dele.
Você será a parte mais triste de mim
Uma parte de mim que nunca será minha
Esta noite vai ser a mais solitária
Você ainda é o oxigênio que eu respiro
Eu vejo seu rosto quando fecho meus olhos
The Loneliest | Maneskin

Atualmente
Eu abro os olhos.
Tomo um banho frio.
Me olho no espelho.
Sinto pena de mim mesmo.
Trabalho.
Passo um tempo com meu irmão.
Deito-me novamente.
Fecho os olhos.
Ela me invade.
Eu abro os olhos.
E então, tudo se repete.
Donnatella, contudo, não abandona minha mente nem por um
segundo sequer.
Li muitos livros para passar o tempo enquanto estive aqui. Um
deles dizia que após um tempo, nosso cérebro tende a se esquecer de como
é o som da voz das pessoas. E talvez, esse fosse o meu maior medo
enquanto estive dentro daquelas grades; esquecer o som da voz e
principalmente da risada de Donna.
Em meus sonhos, consigo vê-la com clareza de detalhes, enquanto
fico me perguntando como deve estar agora. Se continua escondendo as
sardinhas das quais eu amava beijar, se os olhos continuam tão expressivos
quanto antes, se seus cabelos ainda têm a textura da qual me lembro bem.
Penso se ela encontrou alguém melhor que eu.
Se tem a paz e o conforto que nunca consegui proporcionar para
ela.
E então, entro num ciclo vicioso em que minha cabeça lembra,
constantemente, que Donna nunca quis se meter em problemas. E que, de
certa forma, enquanto eu estou longe, ela tem a sua vida calma que um cara
problemático nunca poderia garantir para ela.
O que mais me incomoda é o pensamento de que nunca sequer se
importou o suficiente para ter me procurado e dizer que o que havia entre
nós havia acabado. Alguma parte de mim, a mais tola e inocente, prefere
acreditar que ela não sabia de nada. Que não sabia que eu estava preso, ou o
motivo pelo qual isso aconteceu. Às vezes, esse pensamento até me
conforta. Isso me faz pensar que, talvez, ela ainda me ame, ou ao menos,
acredita que embora problemático, não sou alguém ruim.
Há também outro lado. Aquele em que não consegue pensar em
coisas boas, tem certeza de que Donna percebeu que não sou o suficiente
para ela e seguiu em frente. Talvez, ao longo desses anos, tenha encontrado
alguém que tenha conseguido deixá-la tranquila em todos os instantes ao
invés de um garoto que respirava problema. Pensar nessa última opção me
faz sentir orgulho dela por ter esse senso de autopreservação. Eu também
não confiaria em alguém que fez o que eu fiz. Não saberia dormir tranquilo
ao lado de alguém que teve coragem o suficiente para atirar e tirar a vida do
próprio pai.
O quê, sinceramente? Eu faria de novo. Passaria pelo mesmo
inferno de novo para proteger meu irmão. Para defender a minha bailarina.
Para eliminar do mundo um verme tão brutal quanto Michael.
Eu o odiava. E tive tempo para pensar antes de puxar o gatilho. Eu
sabia que não deveria. Que era um crime, e até um pecado. Mas nunca
dormiria tranquilo sabendo que se não o matasse, poderia estar chorando
pela morte do meu irmão até hoje. Assim como faço pela minha mãe, minha
doce bailarina.
A única coisa que eu gostaria de ter tido tempo de fazer era de ter
olhado nos olhos de Donna e ter dito que fiz o que fiz para proteger a minha
família. E gostaria que ela me olhasse nos olhos e dissesse o que eu já sei
que sou.
Um monstro e que nunca mais gostaria de me ver.
O problema é que não sei onde ela está e, mesmo assim, ela tem
me perseguido.
Dia e noite.
A cada instante.
Ela perturba os meus sonhos.
Deturpa meus pensamentos.
Me faz duvidar se fomos reais.
Invade meus sentidos.
Me persegue. Me domina. Me tem.
E eu não faço ideia de onde ela está.
Fiz algo que jurei nunca fazer depois que entrei no presídio.
Fui a Boston.
Dirigi por três horas até lá.
Eu voltei ao lugar que tanto me machucou, ao lugar que me
transformou em alguém tão ruim quanto aquele que me criou. Voltei ao
lugar da minha vergonha.
A procurei em todos os cantos.
Na sua antiga casa, no seu lugar favorito, nas faculdades.
E ela não estava em lugar nenhum.
Até ontem.
Quando a vi na TV.
Algo sobre seu parceiro ter se lesionado enquanto patinavam e,
com isso, ela estar praticamente fora da competição nacional que poderia
dar a vaga para o mundial.
Não sei.
Eu não consegui prestar atenção em quase nada do que diziam. A
única coisa da qual eu conseguia focar era da forma com que ela deslizava
no gelo.
Com outro alguém.
E machucou pra caralho.
Acho que, em menos de dois minutos – tempo do qual seu vídeo
foi reproduzido –, eu me senti mais angustiado do que quando estive preso.
Ela seguiu a vida.
E me deixou vivendo na realidade onde ela me abandonou. A vida
em que ela me pertencia e em que eu era dela. Que éramos inalcançáveis.
Poder apreciar pequenas coisas e momentos depois de anos
vivendo enclausurado dentro de uma cela, deveria me deixar eufórico por
tudo o que posso viver do lado de fora. Deveria me encher de vontade de
viver tudo o que não pude antes daquele dia.
Mas não.
Até ontem, tudo o que sentia em estar “livre” era que eu nunca me
senti tão preso.
Existe algo completamente estranho em estar fora daquelas grades
e longe da familiaridade que me trouxeram com o tempo.
Elas me deixaram perdido.
E esse é o sentimento que mais tem me acometido.
Tudo o que eu senti quando coloquei os pés para fora do presídio
foi que eu não tinha mais para onde ir. Não tinha mais o que eu chamava de
lar. Quem eu chamava de lar.
Foram os anos mais difíceis da minha vida.
Os horrores que vi lá dentro. As coisas que precisei fazer para
sobreviver. Os dias em que estive à beira da morte. As cartas que escrevi,
implorando para que ela me respondesse, nem que fosse para dizer que me
odiava.
Tem uma coisa que se aprende quando se passa muito tempo
dentro de um presídio: você nunca mais recupera a sua essência.
Para um detento, existe uma vida antes e uma depois da prisão.
Quando a noite caía, eu tocava minhas costelas e não sentia nada
além dos meus ossos. Eu conseguia senti-los se unir à pele. Minha barriga
roncava dia e noite. Eu odiava a comida daquele lugar. Doía respirar, falar e
até mesmo abrir os olhos.
O homem – que nunca tive a oportunidade de me tornar de verdade
fora dali – estava em algum lugar dentro da minha mente, encarando-me
com pena.
A verdade era essa.
Eu sentia pena de mim, da forma com que a minha mente
conseguia me levar a lugares perigosos em questão de segundos e do jeito
com o qual a liberdade parecia tão distante.
Meu estômago roncava e minha cabeça já não era mais a mesma.
Era cruel e, ao mesmo tempo, parecia justo.
Vivia numa ambiguidade terrível sobre aceitar que aquele era o
meu fim ou ansiar por um futuro onde os muros daquela prisão não fossem
a minha casa.
Não só da prisão literal, mas também daquela em que a minha
mente foi deixada.
Porque é isso que sinto agora, quase um ano depois do dia em que
fui solto.
Estou livre, respiro ar puro e minhas costelas já não são tão
aparentes.
Minha cabeça, entretanto, ainda está aprisionada.
A única coisa que parecia fazer sentido naquele lugar era o tempo
em que passava escrevendo para ela. Pensando nela. Sonhando acordado
com o dia em que anunciariam que ela estava ali para me visitar, ou que
chegasse uma carta dela.
Quantas vezes não perguntei ao meu irmão se ela havia me
procurado e a resposta foi um olhar de pena?
Tantas que até perdi as contas.
Sobrevivi naquele lugar com esperança de que a encontraria
novamente. Mesmo que de longe. Só para saber se seguiu seu sonho, se está
bem, ou simplesmente ouvir de sua boca que não somos mais nada.
Tudo o que eu precisava era vê-la apenas uma vez.
Agora, eu tenho a chance.
Irei até Lake Thorne[6]. Irei até ela.
Só para saber o que aconteceu.
Só para saber se ela ainda se lembra de mim. De nós.
— Tem certeza disso? — Ouço a voz do meu irmão no mesmo
instante em que o som do zíper da mala se fechando irrompe o quarto onde
fiquei no último ano. — Sabe que eu não me importo de que more comigo.
— Eu sei — respondo.
Não é a primeira vez que ele diz isso e não é a primeira vez que
respondo a mesma coisa.
Embora queira ficar perto do meu irmão, nos últimos onze meses
trabalhando para Loren Ballard e podendo acompanhá-lo de perto, eu
percebi que Asher cresceu. Ele já não é mais o garotinho no qual eu
roubava comida para alimentar, dividia a cama e ensinava a se virar.
Ele é um homem agora.
Meu irmão conseguiu um agente e finalmente irá deixar as lutas
clandestinas. O futuro está esperando-o para novas oportunidades e eu não
poderia estar mais orgulhoso. Ele conheceu uma boa garota, eles se amam e
isso é incrível.
E isso me acendeu uma fagulha de esperança. Uma que me faz
perceber que preciso, ao menos, vê-la. Nem que de longe. Nem que seja
uma última vez.
— New Haven não é o meu lugar, Ash. — Suspiro, sentando-me
na cama e o encarando. — Sua vida é aqui. A minha não.
— Minha vida é com a minha família — ele rebate. — E você e a
Kim são a minha família. Gostaria que pudéssemos ficar todos juntos.
— Um dia — eu prometo a ele. — Um dia, quando voltar a ser eu
mesmo, prometo que vamos ser vizinhos e eu vou estragar seus filhos.
— Ben…
— Estou orgulhoso em saber que você é um homem agora, Ash, e
que se tornou alguém completamente diferente de mim e de Michael. — Ele
abre a boca para rebater e eu continuo: — Eu te amo, irmão, e entendo que
é complicado entender o que está acontecendo. Mas eu já te atrasei o
suficiente por continuar aqui, fazendo algo do qual não vai me dar a
liberdade que quero.
Sou grato ao meu irmão por ter lutado por mim. Sou grato por ter
tido a oportunidade de trabalhar com Loren, sua sogra. Mas… não é isso
que quero. Não é isso que foi planejado para mim, quando eu ainda sonhava
com o futuro.
Meu irmão se senta ao meu lado na cama, fazendo o colchão
afundar.
— Eu só me tornei quem sou por sua causa, Ben, porque sabia que
o que te colocou naquele lugar foi para nos livrar de algo pior. Só que… eu
queria poder te compensar por tudo isso, eu queria que você…
— Não — o interrompo, com o coração doendo em pedir o que irei
pedir. — Você é a pessoa que eu mais amo no mundo, Asher, e eu faria tudo
de novo para te proteger. Faria tudo de novo e ainda pior se pudesse trazer a
nossa bailarina de volta. Eu faria muitas coisas por amor a você, Ash, mas
não ficar aqui. Eu não posso ficar aqui enquanto não a encontrar. Então, por
favor, não me peça para ficar. Porque essa é a única coisa que não posso
fazer por você.
Ele suspira e seu rosto desvia para a parede, fugindo do meu olhar
quando uma lágrima escorre. Asher nem sempre foi o garoto fechado e
resistente que é hoje. Na infância e parte da adolescência – quando pude
conviver com ele – meu irmão era tímido e tinha medo da própria sombra.
Ter que morar com um tio que mal conhecíamos e ter o irmão preso,
fizeram-no criar uma espécie de proteção entre ele e o mundo que o
transformaram no homem que é hoje.
— Eu sei que é egoísta da minha parte — diz.
— Não é — rebato. — Mas eu irei resolver, ok? Prometo que
assim que tudo se ajeitar, estaremos juntos novamente.
Ash não diz nada e quando menos espero, ele me dá um abraço
apertado, deixando suas lágrimas molharem a minha camiseta.
Um abraço de despedida, do qual não pudemos dar da última vez.
— Vou sentir sua falta.
— Eu também, Ash. — Aperto-o de volta. — Eu te amo.
— Eu e você para sempre.

Adentro no primeiro estabelecimento que encontro quando


estaciono no centro de Lake Thorne. Consegui alugar um carro no
aeroporto, pelas próximas vinte e quatro horas, mas perdi o sinal no celular
e não faço ideia de como chegar no meu destino sozinho.
Entro em uma cafeteria, que parece simples e pouco movimentada.
O lugar é bem iluminado e o cheiro forte e gostoso de café poderia ser
sentido a quilômetros de distância quando me aproximo do balcão de
atendimento, ainda encarando o ambiente em volta.
— Novo na cidade?
Saio do estado de transe que o lugar me deixa e finalmente encaro
a senhora à minha frente, de pé do outro lado do balcão enquanto me olha
sorridente. Ela deve ter algo perto dos setenta anos, tem uma estatura baixa
e seu rosto reflete bastante os traços do tempo. O que chama atenção,
contudo, são os cabelos grisalhos com apenas uma mecha preta quase
brilhante.
— Tão óbvio assim?
Ela dá de ombros.
— Conheço todos os rostos dessa cidade, meu jovem.
— Acabei de chegar, na verdade.
— Já tem onde se hospedar?
— Sim — confirmo. — Uma amiga cedeu sua casa até que eu
consiga me estabilizar e era justamente isso que queria saber quando entrei
aqui. Não conheço a cidade e estou sem sinal no celular. Não sei chegar na
minha nova rua.
Loren foi generosa em me oferecer um de seus imóveis quando
pedi demissão e contei que estava vindo para cá. Normalmente, eu negaria,
mas, no momento, não é algo no qual posso fazer. Toda ajuda é bem-vinda.
Durante o último ano, trabalhei diretamente com ela, um bico
como motorista, que eu recebia bem mais do que deveria ganhar. Era meio
óbvio que ela fazia isso por Kimberly, sua filha, namorada do meu irmão,
mas, novamente, não é o tipo de ajuda que eu posso me dar ao luxo de
negar.
O trabalho foi o suficiente para juntar uma quantia para me manter
por um bom tempo na cidade, pelo menos, até conseguir voltar a patinar. Se
conseguir. Não sei até onde o meu histórico com a justiça pode me
atrapalhar.
— Lake Thorne é mais fácil do que parece. As únicas coisas que
conseguem ser completamente indecifráveis são os segredos que carrega.
Franzo o cenho com suas palavras, não entendendo sobre o que
está falando. Ou por que está falando.
Decido ignorar.
— Qual seria a rua?
— Garden May.
— Oh, sim, o jardim das almas solitárias. — Suspira, pensativa. —
Vire à direita e quando encontrar um lago, vire à direita novamente e
encontrará seu destino.
— Obrigada, senhora…
— Me chame de Zaya.
— Obrigada, Zaya. — Sorrio em sua direção.
— O destino se encarrega de unir as almas que nasceram para se
amar, jovem.
E então, como se não acabasse de me deixar ainda mais confuso,
ela se vira e caminha para dentro do que parece ser a cozinha do
estabelecimento.
Ainda fico parado por um tempo próximo ao balcão, encarando o
corredor por onde sumiu das minhas vistas, enquanto suas palavras flutuam
em minha cabeça. O que isso deveria significar?
Por fim, chego à conclusão de que isso é a porra de uma alucinação
e giro os calcanhares, seguindo na direção que me indicou enquanto encaro
todos os lugares possíveis.
Donna falava bastante sobre Lake Thorne e o quanto era linda.
Contudo, devo confessar que embora a imaginasse como me dizia, estar
aqui e ver a cidade com meus próprios olhos não chega nem aos pés do que
me contava.
Estamos na primavera, o que significa que o dia está ensolarado e
chega a fazer um pouco de calor. Pelo que entendi nas minhas pesquisas no
voo até aqui, Garden May é um bairro residencial e calmo, onde a maior
parte dos moradores são idosos e pessoas que querem fugir do lado mais
agitado da cidade.
As casas seguem um modelo mais antigo e pelo que dá para notar,
eles confiam bastante na segurança daqui. Os muros são baixos, os portões
parecem facilmente abertos e em alguns nem mesmo há algo dividindo o
quintal das casas. É tudo muito verde, há roseiras e árvores em praticamente
todas as residências.
Isso, de alguma forma, me dá uma sensação de familiaridade e
conforto.
Quando paro em frente à casa bonita, grande e moderna, suspiro ao
me dar conta que agora esse pode vir a se tornar o meu novo lar por tempo
indeterminável.
O meu recomeço, minha nova chance. Ao menos, por enquanto.
Não sei se deveria, mas isso me assusta um pouco.
O silêncio que me acompanha enquanto caminho e abro as portas,
conhecendo todos os cantos, não é nada acolhedor.
Depois de um tempo observando a decoração neutra e chique,
sento no sofá, encarando a parede. A falta de barulho é a minha companhia
faz um tempo, e nunca chegou a ser tão incômoda quanto hoje.
Vinte e sete de março.
As coisas parecem estar tomando um rumo onde tudo aparenta
estar se ajeitando, mas de alguma forma, essa data sempre consegue me
deixar introspectivo. Ela sempre consegue me causar uma intensa angústia,
que parece fazer meu peito bater de uma forma tão descontrolada que chego
a sentir dor física.
Essa data sempre parece estar tirando um pedaço do meu coração.
— ESSE-É-O-MELHOR-PRESENTE-DO-MUNDO!
Levanto a cabeça no instante em que ouço a voz infantil e eufórica
ressoar.
Meu corpo está de pé antes que eu processe a informação e,
quando percebo, estou como um louco andando pela casa procurando de
onde vem o som. Chego aos fundos e…
Paraliso.
Há uma menina.
Uma menina no pula-pula.
E enquanto olho para a sua direção, algo esquisito acontece.
Meu coração dispara, fazendo-me respirar fundo para conter a
emoção que toma conta de mim quando vejo os cabelos castanho-escuros
voarem no ar conforme ela pula com toda a sua força.
Seu riso soa como um eco tão alto na minha cabeça.
E quando menos percebo, meu peito para de doer.
Você é meu raio de Sol, meu único raio de Sol
Você me faz feliz quando o céu está nublado
Você nunca saberá, querida, o quanto eu te amo
You Are My Sunshine | Johnny Cash

PASSADO | AOS DEZESSETE


Era o meu primeiro ano do colegial.
Eu estava em uma cidade diferente, sendo castigada por um erro
que não cometi.
Um dos meus irmãos cometeu um erro. E isso foi o motivo perfeito
para que nosso pai nos castigasse de uma forma que o fizesse se arrepender.
Ele nos separou.
Alessandro está preso.
Matteo está na Itália.
Não conhecia ninguém, não sabia como me virar morando com a
mulher que me colocou no mundo.
Era o meu primeiro ano do ensino médio.
E decidi me matricular em mais uma aula de balé para aperfeiçoar
minha performance e leveza na patinação, o único e maior sonho da minha
vida. A coisa que eu nasci para fazer.
Por coincidência, eu me torno amiga da minha tutora.
Por coincidência, o filho dela também é seu aluno.
Por coincidência, eu me apaixono por ele.
Agora, estou aqui na maca de um hospital, dois anos depois de
conhecê-lo, sentindo fortes dores.
E a pior parte é que não o vejo em lugar nenhum.
Não tenho notícias dele há quase nove meses. Nem dele, nem da
sua mãe.
Não faço ideia de onde eles estão.
Não estou mais no primeiro ano do ensino médio. Mas continuo
sozinha.
E eu ainda estou em Boston. Com a minha mãe, a mesma que abriu
mão da minha guarda por alguns milhares de dólares.
Esse foi o quanto vali para ela, quando ainda era criança e meu pai
pediu para que eu fosse morar com ele em Lake Thorne. Matteo não valeu
nada. Ela já o havia mandado para lá antes mesmo que ele desmamasse e
Alessandro não é dela. Logo, também não teve um preço.
Eu vali cento e cinquenta mil.
Já o preço que paguei para que ela mantivesse a boca calada e não
dissesse nada sobre a minha filha foi um pouco maior. Eu não quis arriscar
que contasse para Francesco, então lhe dei boa parte do que tinha em conta
– aquela em que ele não tinha acesso –, aluguei um apartamento e contei
somente a Matteo.
Não foi fácil burlar os seguranças que meu genitor colocou em
cima de mim. As roupas largas serviram para esconder a barriga que não
chegou a ser tão grande, as desculpas para ir ao médico iam desde gripe a
cólicas muito fortes. E mais um pouco de dinheiro era destinado aos
médicos para manter tudo em sigilo.
Minha mesada era generosa, mas eu não gastava com nada além de
equipamentos para patinação, e o restante eu reservava em uma outra conta,
em um banco que Francesco não tinha acesso, graças a Matteo, que deu um
jeito de criptografar tudo.
Se Francesco descobrisse sobre meu bebê, eu não chegaria ao dia
de hoje.
Eu não estaria aqui agora, saindo do táxi depois de mandar uma
mensagem desesperada para meu irmão e com tanta dor que não faço ideia
de como ainda consigo me manter de pé.
— Por favor, eu preciso de ajuda.
— Olá. — Uma enfermeira sorri ao me ver, parece simpática, mas
ouso dizer que minhas faculdades mentais não estão funcionando muito
bem nesse momento. — Algum responsável está te acompanhando?
Não evito a careta quando uma dor ainda mais forte do que as
outras me atinge.
— Eu preciso de ajuda, por favor — choramingo, de dor e de
medo. Abro o moletom, mostrando para ela a proeminência em minha
barriga. — Meu bebê vai nascer. Eu preciso de ajuda.
Ao notar meu desespero, ela dá a volta no balcão, parando à minha
frente e vendo minha calça jeans molhada com o líquido da bolsa rompida e
um pouco de sangue.
— Uma maca, agora! — ela grita, acenando com a mão no ar que
não compreendo bem para onde seja.
E então tudo acontece muito rápido. Sou colocada em uma maca e
a dor excruciante me pega ainda mais forte e eu grito. Não consigo ouvir
muita coisa ao meu redor, consigo apenas tirar meus documentos do bolso e
chorar.
Eu estou sozinha.
Planejei todos os dias dessa gestação desde quando entendi que ela
era real, exceto por esse momento. Não planejei ter esse bebê sozinha.
Minutos se passam. A dor ameniza, mas não se vai completamente.
Consigo estar lúcida quando me examinam e fazem algumas perguntas, mas
logo a dor volta com tudo.
— Tem certeza que não tem ninguém que possamos ligar, Srta.
Lombardi?
É a segunda vez que a enfermeira me questiona isso.
Balanço a cabeça negativamente, enquanto trinco os dentes e
agarro o apoio da maca onde eu estou.
— Seu bebê está pronto para vir ao mundo, Donnatella — a
obstetra, que parece ser gentil, anuncia. — Quando a contração vier, preciso
que faça…
Ela não termina de dizer porque meu grito irrompe a sala. A
contração dessa vez parece ser mais dolorosa que as outras e as lágrimas
escorrem do meu rosto quando faço força.
Não tem ninguém segurando a minha mão e, dentro de mim, eu
ainda tenho esperanças de que apareça.
Onde você está, Benjamin?
Sinto mexerem em mim, mas não é como se eu estivesse ali.
O beep do monitor controlado os meus sinais vitais e os da bebê
são a única coisa que ecoam em minha cabeça.
Beep.
Beep.
Beep.
— Mais um pouco, Donnatella, estou vendo a cabeça.
Minha respiração ofegante é uma das poucas coisas que consigo
ouvir antes de balançar a cabeça, fazendo com que mais lágrimas desçam
do meu rosto.
— Não… consigo — choramingo em meio a soluços. — Não
tenho forças.
— Vamos, Donna, você consegue, tente mais uma vez.
Quando a contração chega, dou tudo de mim para fazer força. É
uma dor inexplicável, como se todo o meu corpo estivesse se desfazendo
em pedaços.
Mas eu lembro.
Lembro que não estou fazendo isso por mim.
Estou fazendo por ela.
Estou fazendo por essa bebê que ainda não sei o nome.
Estou fazendo pela única coisa que me restou quando o homem
que amei e que me arruinou foi embora.
Estou fazendo por ela.
Meu corpo cede ao cansaço quando a dor cessa e, embora eu
queira, com todas as minhas forças, dormir até que tudo pareça normal
novamente, continuo acordada.
Continuo acordada quando seu choro estridente preenche toda a
sala ao passo em que minhas lágrimas molham o meu rosto.
Meu peito sobe e desce em soluços enquanto acompanho o sorriso
das enfermeiras crescerem ao cortar o cordão umbilical, colocando o
pequeno pacote em meu peito.
E Deus, quando seu corpinho toca o meu é como se tudo mudasse.
É como se tudo tivesse um novo sentido, novas cores e
significados.
É a sensação mais sublime e explosiva que já senti na vida.
É como se os meus caquinhos estivessem sendo colados
novamente.
E parece ainda mais surreal quando seu choro cessa, como se ela
soubesse que meu colo é um lugar seguro para ela.
Ela é minúscula e bochechuda. Seu rosto é meio enrugado, está
vermelho e ela realmente parece um joelho. Mas é o meu joelho. Minha
menina linda. Apenas minha. E é a coisa mais linda do mundo mesmo
quando seus pulmões completamente saudáveis tentam me deixar surda.
— Oi, meu amor — cumprimento-a, ainda me sentindo muito fraca
e cansada, mas feliz e ansiosa na mesma medida. — Você sabe quem eu
sou?
A boquinha abre e fecha, em um espasmo involuntário, mas que
me causa um riso porque parece que está tentando se comunicar.
É quando algumas coisas começam a fazer sentido.
Todos esses meses, gerando-a, pensando em como a minha vida
seria de agora em diante, o medo, a insegurança, as dúvidas, a dor de tê-la e
de estar sozinha… tudo isso some num piscar de olhos.
No piscar de olhos dela ao abri-los pela primeira vez.
E a forma com que eles me encaram, é quase como se entendesse o
que digo e sinto.
Suas amêndoas focam em meu rosto antes de voltarem a se fechar
poucos segundos depois, apertando o meu dedo e tomando todo o espaço
em meu coração.
Toda a minha existência ganha um novo sentido. Eu nasci para
patinar e precisei renascer junto com o nascimento dela para me tornar sua
mãe.
— Eu sou a sua mamãe. E ainda não sei como, mas vou te fazer a
garotinha mais feliz do mundo e isso é uma promessa, ouviu?
Digo isso mais para mim do que para ela. E, de alguma forma,
externar isso em voz alta faz com que a ficha caia tão rápido quanto as
novas lágrimas que escorrem de mim. É um misto de gratidão e desespero
porque embora eu já a ame, não sei o que faremos quando eu sair pelas
portas deste hospital.
— E qual o nome da princesa, mamãe?
Não preciso pensar muito.
— Elisa. — Minha voz falha ao lembrar da mulher que me
mostrou o quanto sou forte. — Elisa Lombardi.
Eu sempre fui uma colecionadora de memórias.
Gosto de imprimir fotos, escrever cartas e até mesmo daqueles
quadros do qual não sabemos como interpretar. Tenho muitas boas
memórias desse tipo guardadas em minhas caixas.
E quando peço para uma das enfermeiras tirar uma foto de nós
duas, enquanto encaro o pequeno ser que agora faz parte de mim, eu tenho
absoluta certeza que não importa quantas lembranças existam nas minhas
caixas, nenhuma delas será tão feliz quanto esse momento.
O momento em que renasço para ser mãe da menina mais especial
do mundo.

Ela dorme como um anjinho.


E eu não consigo tirar meus olhos dela quando a colocam no
bercinho ao lado da minha cama.
Elisa está um pouco menos vermelha agora, mas ainda parece um
joelho.
O pensamento me faz rir um pouco, porque lembro que era
Benjamin quem dizia que todos os bebês pareciam com joelhos. No entanto,
a mesma coisa que me faz rir consegue me deixar triste em poucos
segundos.
Eu não deveria, mas queria que ele estivesse aqui.
Ele me magoou quando não me deu satisfação alguma e
simplesmente sumiu, ele me humilhou perante os jurados, me fez perder a
chance de ir para as nacionais e, consequentemente, para o campeonato
internacional de patinação.
Não atendeu as minhas ligações.
Não retornou as minhas mensagens.
E eu sequer pude procurá-lo porque não sei qual o seu endereço.
Ben nunca me levou em sua casa, e embora sua mãe soubesse sobre nosso
envolvimento, nunca nos apresentou formalmente. Ele dizia que não queria
me levar àquele lugar porque não parecia digno para alguém como eu. Eu
sempre questionei sobre isso e nunca adiantou, ele não me levou mesmo
assim.
Mas sei que também não está por lá. Questionei a diretoria da
escola sobre a professora e disseram que ela não deu notícias antes de
sumir. Se recusaram a dar o endereço e eu fiquei de mãos atadas. Ele nunca
gostou de redes sociais, então as chances de encontrá-lo através delas eram
nulas. Seu celular funcionava apenas para ligação e só dava caixa postal.
A única pessoa que poderia me ajudar, seria o meu irmão,
Alessandro. Ele conhece muita gente que faria esse tipo de serviço e o
encontraria em qualquer lugar. Mas há alguns motivos para eu não querer
recorrer a isso;
1) Ele não quer falar comigo desde que descobriu que estou
grávida de alguém que não sei onde está.
2) Alessandro provavelmente o mataria antes que eu tivesse a
chance de conversar com ele.
3) Meu irmão está preso.
Paro de olhar para Elisa quando ouço o barulho da porta e a figura
alta toma conta da minha visão. Cabelos castanhos, olhos de mesmo tom,
barba por fazer e um pequeno sorriso encorajador depois de quase um ano
sem nos vermos pessoalmente.
— Matteo? — pergunto, confusa e feliz por vê-lo aqui. — O que
está fazendo aqui?
— Vim te levar para casa.
Ele veio. Veio por mim. Veio por Elisa.
— Está louco? Francesco…
— Nosso genitor não será mais um empecilho para nossa família
— responde, sua voz soando fria de uma forma que me faz estranhar. Ele
não é assim.
— Como? — questiono confusa. — Não estou entendendo,
Matteo.
— Alessandro deu um jeito. — Simples assim.
— Alessandro está preso…
— Na verdade, ele está livre. E nós também, Coração — me
interrompe e vejo em seus olhos o quanto essa promessa é real, o quão
longe ele iria para me manter segura. Para manter Elisa segura. Mesmo que
ela tenha acabado de nascer. Mesmo que seja um pacotinho minúsculo,
posso ver que ele destruiria o mundo por ela. — O que importa é que agora
você e a minha sobrinha podem voltar para casa conosco. Nós dois iremos
cuidar de vocês duas.
— Você pode pegá-la, se quiser — ofereço, mesmo insegura.
Não é como se meu irmão não me apoiasse. Pelo contrário, ele foi
o único que me acompanhou durante toda a gravidez, mesmo que de longe,
mas de alguma forma, Matteo sempre evitava falar sobre o futuro, quando o
bebê — a forma como ele sempre se referiu a ela —, nascesse. E
Alessandro, bem, teve a pior das reações. Como estava preso, a única forma
que podíamos nos comunicar era por telefone e, no dia em que o contei
sobre a gravidez e o sumiço de Ben, ele ficou em silêncio por um longo
tempo ouvindo os meus soluços antes de perguntar se eu estava falando
sério. Meu irmão desligou na minha cara assim que eu confirmei.
— Não sei — Matteo responde, finalmente encarando Elisa. — Ela
parece muito pequena e delicada.
Eu sorrio. E logo depois, o instruo a pegá-la da mesma forma que a
enfermeira me ensinou.
— Ciao, piccolino[7] — cumprimenta quando a carrega, tocando
sua mãozinha. Lis agarra seu dedo e Matteo arregala os olhos, encarando-
me rapidamente. — Ela pegou o meu dedo.
Uma gargalhada baixinha me escapa.
— Parece que ela gostou de você.
Meu sorriso morre aos poucos quando noto uma sombra na porta,
encarando-me.
Ele parece mais abatido. Está mais magro, sua barba está
crescendo — coisa que ele nunca gostou —, e ele me olha como se quisesse
falar algo. É um olhar de quem vai pedir desculpas.
Alessandro está aqui.
Mas há algo sobre os irmãos Lombardi que aprendi desde muito
nova. Nós nunca pedimos desculpas através de palavras.
— O voo atrasou — ele diz. — Queríamos ter chegado antes para
segurar sua mão.
Engulo em seco.
Simples assim, sei que estamos bem. Mesmo sabendo que esse
assunto não morrerá aqui e que em breve iremos resolver do melhor jeito
possível.
— Quer pegá-la também? — pergunto a ele, que desvia o olhar do
meu antes de focá-los em Elisa, que segue ressonando quietinha nos braços
de Matteo. — Ela não morde ainda.
Alessandro revira os olhos e sei que está se controlando para não
me mostrar o dedo do meio.
— Qual o nome dela? — Matteo pergunta, passando-a com
cuidado para o outro.
— Elisa.
Minha filha abre os olhos ao ouvir seu nome. Percebo quando
Alessandro parece se emocionar e tenho certeza disso quando o ouço falar
com ela em italiano, algo que ele deixou de fazer há muito tempo.
— Ciao — ele sussurra. — Sembra che tu sia la luce della mia
vita, Elisa[8].
Naquele instante, entendi que além de ter me dado a honra de ser
sua mãe, Elisa também me devolveu a minha família.
Papai, você está aí?
Papai, por que você fugiu?
Papai, você está bem?
Olha pai, nós temos o mesmo cabelo
E papai, hoje é meu aniversário
Daddy | Coldplay

Eu adoro sextas-feiras porque é o dia em que trabalho.


Meu tio Matteo me contratou no ano passado, no meu aniversário
de cinco anos e eu recebo cem dólares por hora. Eu só preciso anotar tudo o
que acontece e posso beber café sem ouvir a mamãe reclamar e tenho até
um crachá.
Ele é bem bonito e azul, da minha cor favorita. Pedi para o titio
colocar Elisa Lombardi da Lombardi Security, para ninguém me confundir
com outra funcionária.
— Está atrasada de novo, Isabella — reclamo quando as portas do
elevador abrem e anoto seu nome no quadradinho que fiz na minha
prancheta que está escrito “atrasos”.
Meu tio Matteo cuida das minhas listas durante a semana e o nome
da Isabella está escrito cinco vezes contando com hoje. O que significa que
ela se atrasou todos os dias essa semana.
— Vou ter que te dar uma multa se continuar assim.
Ela é secretária do meu tio Alessandro e eu a achava legal, mas
meu tio Matteo sempre fica muito bravo com ela quando a vê e ele nunca
fica bravo com ninguém, então eu sei que ela fez algo de errado para deixar
ele assim.
E eu não gosto que se atrasem. Isabella parece sempre estar com o
relógio errado.
— Desculpe, chefinha, tive que vir andando até aqui — ela
responde.
— Hum — murmuro, semicerrando os olhos. — Da próxima, é só
correr ao invés de andar.
Viro em direção à sala do meu tio Matteo. Ele me trouxe para cá
hoje, mas me deixou alguns prédios antes e vim caminhando enquanto ele
me observava do carro. A mamãe brigaria muito com ele, se descobrisse,
mas o meu segurança me segue todos os dias e se ela brigar, vai ser um
problema dele.
Eu realmente sou a funcionária do mês todos os meses, segundo os
meus titios.
Enfim, o que eu ia dizer é que preciso ir até a sala do meu titio
porque hoje é meu aniversário e viemos aqui apenas para ele fazer algo
importante no seu escritório e eu aproveitei para fazer hora extra enquanto o
esperava terminar… alguma coisa que eu já esqueci o nome.
Paro no caminho quando vejo que a porta da minha funcionária
favorita está aberta.
— Oi, Lis. — Sabrina sinaliza para mim, devagar. — Não te vi
chegar.
Ela trabalha com a parte das câmeras de segurança dos nossos
clientes, já que a nossa empresa é uma empresa de segurança particular.
— Oi, Sabrina — falo devagar, enquanto tento sinalizar certinho.
— Como está o bebê?
Sabrina é surda. Eu descobri isso no meu primeiro dia de trabalho
porque perguntei qual era o nome dela, ela me respondeu com as mãos e eu
fiquei sem entender nada. Tio Matteo disse que ela não escuta e, para se
comunicar com ela, era preciso saber a língua de sinais, mas que ela
conseguiria entender se eu falasse devagar.
Ainda bem que na minha escola tem aulas de ASL[9]. Eu ainda me
confundo com alguns, mas estou aprendendo e Sabrina diz que eu sinalizo
muito bem para alguém que começou há pouco tempo, e também me ajuda
bastante quando não sei alguma coisa.
O problema é que ela sinaliza muito rápido e, às vezes, preciso que
escreva para mim o que quer dizer.
— Ele está chutando muito — responde e alisa a sua barriga que
mais parece uma melancia.
Será que eu fiquei desse tamanho quando estava na barriga da
minha mãe?
— Você precisa de alguma coisa?
Ela e o Odie são os únicos funcionários que eu não pego no pé.
Não sou brava com a Sabrina porque ela me ensina muitas coisas legais e
também porque ela tem um bebê na barriga. Uma vez, mamãe me disse que
algumas mulheres grávidas ficam muito sensíveis e choram por qualquer
coisa. Não quero fazer Sabrina chorar, mas não pensaria o mesmo se ela
fosse a Isabella.
E o Odie não merece ser mais maltratado. Meu tio Matteo não sabe
que ele é funcionário da empresa também. Eu o contratei para morder a
canela do tio Alessandro quando não me deixa pegar seus livros
emprestados.
Odie é um cachorro muito bonzinho e eu dei esse nome porque ele
parece muito com o cachorro do Garfield. Achei ele dentro da lata de lixo e
fiquei muito triste em saber que fazem isso com os animais. Eles sempre
são bonzinhos.
Minha mamãe é alérgica a cachorros, então achei melhor não levar
ele para casa para ela não ficar espirrando. Por isso, um dos seguranças da
garagem dos funcionários fica de olho no Odie quando estou em casa.
Também gosto do senhor John. Ele já é velhinho e acho que não vai
demorar para parar de trabalhar, então preciso encontrar logo alguém que
cuide do Odie para mim.
— Não, querida, o que está fazendo hoje?
— Dei uma bronca na secretária. — Sinalizo e falo. Sabrina
corrige a palavra “bronca” e eu repito o gesto, vendo-a sorrir quando acerto.
— Ela chegou atrasada de novo, acredita? Quando eu for dona da empresa,
vou demiti-la.
— A Isabella é legal, Lis — ela comenta. — Por que não gosta
dela?
— O senhor Matteo disse que ela é muito chata.
Sabrina ri, igual faz todas as vezes que chamo meu tio assim. Mas
é que ele é meu chefe aqui dentro, então chamo ele como todo mundo
chama.
— O senhor Matteo acha todo mundo chato.
Fecho a minha expressão.
— Não é verdade. Ele gosta de mim.
— Bom, vocês dois são bem parecidos.
Mostro a língua para ela de brincadeirinha.
— Sabia que é o meu aniversário?
— Jura? — ela pergunta. — E por que está aqui hoje?
— É muito difícil ser uma trabalhadora, Sabrina, a gente não pode
fazer nossos horários.
— Concordo, você está certa.
— Vou deixar você trabalhar. — Sorrio para ela. — Preciso ficar
de olho na secretária.
— Pegue leve com ela.
— Não prometo nada.
Volto a fazer meu caminho até a sala do meu tio Matteo, mas ele
para à minha frente no meio do corredor.
— Oi, senhor Matteo — cumprimento-o, vendo-o sorrir. — Estava
indo para a sua sala fazer reclamações sobre a sua funcionária.
— Que tal deixarmos o trabalho para semana que vem, senhorita
Elisa? Tenho uma surpresa — diz. — E está lá na sua casa.
— O que é? — pergunto animada.
É o meu pai?
Diga que é.
Diga que ele voltou para mim.
Eu sei que não deveria mais esperá-lo. Mamãe disse que nós não
somos a prioridade dele e eu acredito. Mas eu acho que queria vê-lo mesmo
assim. Só pra saber se ele pensa em mim.
Mesmo acreditando na minha mãe, queria que isso fosse mentira.
Queria ser o suficiente para o papai ficar.
Eu amo mamãe e amo meus tios. Eles são a minha família e somos
perfeitos juntos.
Agradeço muito ao Papai do Céu por eles antes de dormir, mas
também peço que se Ele estiver me ouvindo e que se achar que eu mereço,
mesmo que só um pouquinho, me deixe ver o meu papai.
Pode ser só uma vez.
Vai ser o melhor presente de todos.
— É uma surpresa.
— A minha mãe já chegou?
Ela achou que eu ficaria triste por ela viajar na semana do meu
aniversário e chegar em casa só no dia, mas eu não fiquei, porque foi a
trabalho. E adultos precisam trabalhar até quando seus filhos sentem
saudade.
Talvez o meu pai esteja trabalhando também.
Mamãe é uma patinadora muito boa, eu a vejo até na TV quando
ela viaja. Dessa vez, ela foi fazer algum teste com outros moços para
poderem patinar juntos, já que Jared, o cara que patinava com ela, se
machucou e não vai poder competir com a mamãe a tempo do campeonato
nacional.
Às vezes, ela precisa viajar para se apresentar ou ir a essas reuniões
e, como eu não gosto muito das babás, acabo ficando aqui em Lake Thorne
com os meus tios, assim não preciso ficar com a matéria da escola atrasada
e nem tomar remédio para não vomitar no avião.
— Ela disse que vai chegar à noite — ele responde, me carregando
com apenas um braço. Meu tio é fortão. — Mas sabe o que significa? Que
dará tempo de você aproveitar o presente antes que ela chegue.
— É alguma coisa que vai deixar ela chateada?
— Se for, você vai defender seus titios favoritos?
— Não gosto de ser advogada de vocês — resmungo. Eles
precisam desse serviço o tempo todo porque estão sempre irritando a
mamãe. — Mas vai custar vinte dólares.

— ESSE-É-O-MELHOR-PRESENTE-DO-MUNDO! — grito com


toda força enquanto pulo e rio ao mesmo tempo.
Tio Alessandro faz um high-five com tio Matteo quando me vê
feliz no pula-pula que montaram no fundo da minha casa. Ele é gigante, e
acho que se minhas pernas fossem um pouquinho maiores eu pularia tão
alto que pegaria uma estrela.
Não acho que eles vão ficar tão felizes quando a minha mãe chegar
e ver isso, mas qualquer coisa, estou pronta para fingir que não sabia de
nada e que não fiquei o ano todo pedindo isso para eles. O titio disse que
me pagaria os vinte dólares se eu defendesse os dois, mas se eu fizer isso, a
mamãe pode querer se livrar do pula-pula e nesse caso, eu prefiro me livrar
dos meus tios.
Um pula-pula não precisa de advogada e nem que eu esconda
segredos.
É por isso que quando a mamãe pergunta alguma coisa, eu sempre
coloco a culpa nos meus tios. Porque dá muito trabalho cuidar deles.
— Mas o que é isso aqui? — Ouço a voz da minha mãe. — Filha,
cuidado!
— Mamãe! — chamo, ofegante e sem parar de pular. — Eu-acho-
que-esse-é-o-meu-novo-lugar-favorito!
— Neném, vai mais devagar!
Eu rio quando ela grita isso e paro de pular, caindo na cama
elástica e fazendo meu corpo quicar nela.
— Já estamos de saída — tio Matteo anuncia, parecendo estar com
medo da mamãe, mas mesmo assim, a abraça apertado e beija sua testa. —
Sua filha está a salvo e inteira, lembre-se disso caso ela tente nos incriminar
de algo, Coração. Me conta depois sobre seu parceiro novo.
— Tchau, vita mia! — tio Ale se despede, me mandando beijinhos.
— Amanhã venho te buscar para irmos lá no clube com o titio.
— Tá bom. — Levanto o meu polegar na direção dele porque as
minhas pernas estão fracas demais para levantar agora. — Até amanhã,
tiooo.
Minha mãe ainda tenta reclamar com eles, mas eles a ignoram e
vão embora enquanto inventam alguma desculpa para não ouvirem o que
ela diz. Meus tios deixam a minha mãe maluca, coitadinha. Mas é bom
porque assim ela não tem tempo de ficar brava comigo.
— Mamãe, você não vem deitar aqui um pouquinho comigo?
Estou muito cansada do dia de hoje. Depois que saímos da
empresa, encontramos meu tio Alessandro e fomos a um parque de
diversões bem legal que tem na cidade vizinha. Depois, eles me trouxeram
para cá e me mostraram o pula-pula enorme que montaram só para mim. Já
está anoitecendo e as estrelas já estão brilhando no céu. Eu gosto de olhar
para elas, me deixam mais feliz do que estou.
— É claro, minha princesa — ela responde, já entrando na cama
elástica e se jogando quase em cima de mim. — Esqueceu que ainda não te
enchi de beijinhos?
Grito quando ela me ataca com seus beijinhos que servem para
tudo. Eles curam as feridas do meu joelho quando caio e até quando meu
coração dói de tristeza. Estou suada e cansada e, mesmo assim, ela me
beija.
Eu acho que a minha mamãe tem um superpoder que é o de me
fazer feliz. E é por isso que eu a amo do tamanho de tooooooda a galáxia.
— Chega, mamãe, eu vou fazer xixi!
Ela me dá um último beijo, amassando a minha bochecha e se deita
ao meu lado e olhando para as estrelas em cima das nossas cabeças.
— Parece que temos vizinhos novos.
— Tomara que seja alguém legal.
— E você? — pergunta, agora ela está me encarando. — Está
feliz?
— Sim, mamãe, é muito divertido brincar — respondo. — Você
ficou chateada porque ganhei um pula-pula?
— Não, neném, mas vou conversar com seus tios depois. Eles
precisavam me avisar sobre isso.
— Tudo bem, mas eu não sei de nada. Nem estava esperando por
esse presente.
Ela fecha os olhos pela metade, como se estivesse desconfiada de
mim. De mim, que sou tão quietinha.
— E como foram esses dois dias com os seus tios?
— Também foi divertido, comemos pizza do tio Matteo e o tio
Alessandro me ensinou mais um golpe de boxe novo para eu usar em
qualquer menino que chegar perto de você.
— Que bom, neném — ela responde, beijando minha bochecha de
novo. — A mamãe fica feliz por você, mas não pode bater em qualquer
pessoa que o seu tio mandar.
— Não pode bater em meninos? — pergunto confusa.
— Não pode bater em ninguém — ela explica. — Só pode bater
em alguém se ele fizer algo ruim com você e essa for a única forma de se
defender, me ouviu, Lis?
— Ouvi, mamãe — respondo. — Mamãe… eu queria perguntar
uma coisa.
— Sim, pequena.
— Pode me falar como conheceu o meu papai?
— Lis…
— Pode ser só um pouquinho.
— Não, amor, a mamãe conta se isso te deixar feliz.
— Eu quero saber como ele era — digo, me sentando na cama
elástica e a encarando.
Mamãe continua deitada e coloca os braços atrás da cabeça,
olhando para o céu estrelado. Parece até aquelas moças de filme quando
pensam em alguém que gosta, porque os olhos dela brilham e ela nem
parece lembrar que eu estou aqui. É engraçado.
— Já te contei a história de como a mamãe foi morar com a vovó
em outra cidade, não é? — concordo. — Seu papai era o garoto mais bonito
da cidade que fui. Eu tinha muita vergonha de dançar na frente dos outros e
a mamãe dele era minha professora. Um dia, ela pediu para dançarmos em
dupla e nós dois nos tornamos amigos.
— E depois eu nasci?
— Depois, a gente namorou e fomos patinar juntos. Um tempinho
depois, descobri que estava grávida de você.
— E o que ele disse?
Mamãe suspira, ficando triste de repente.
— Ele sumiu antes que eu pudesse contar.
— E você não o procurou?
— Procurei, neném, do jeito que consegui, mas não o encontrei e
ele nunca retornou minhas tentativas.
O que aconteceu com você, papai?
Você está em perigo?
Você não me quis?
Você não sabe que eu nasci?
Você não me ama?
— Posso fazer mais uma pergunta?
— Sim.
— Você acha mesmo que ele não vai mais voltar? — Tento mais
uma vez.
Mamãe fica quieta de novo enquanto me olha como se eu fosse
chorar com a resposta. E suspira.
— É, pequena, eu acho que não — responde, sendo sincera, porque
ela nunca mente. — E agora que você sabe disso, como está se sentindo?
— Bem, mamãe, eu só queria saber como vocês se conheceram —
respondo. Ela me ensinou que eu sempre devo contar para ela como estou
me sentindo para nós conseguirmos resolver juntas. — Estou um pouco
triste por saber que talvez ele não volte nunca mais, mas tudo bem, não é?
— A gente sempre fica bem — afirma e, na mesma hora, ouço seu
telefone tocar.
— Vou jogar fora o papel da balinha que comi de tarde, mamãe —
conto uma pequena mentirinha.
Preciso jogar fora a minha lista de desejos. Ela não vale mais.
— Vou atender o celular e te esperar aqui para entrarmos e
assistirmos o seu desenho.
Assinto, vendo-a atender a ligação.
Saio do pula-pula e caminho para a lixeira do lado da casa, um
pouco longe de onde mamãe está. Mas tudo bem, porque aqui não é
perigoso e a mamãe sabe onde estou.
— Você não deveria estar em casa a essa hora?
Me assusto com a voz à minha frente.
É um homem. Ele é grande e forte, não parece nadinha com o Jon,
o dono do Garfield. Seus olhos são escuros e seu rosto está cansado e
chateado, como o do tio Matteo, quando ele acha que não tem ninguém
olhando.
O grandão está limpando seu quintal, que é dividido com o da
minha casa. Acho que é por isso que está aqui fora a essa hora. Mamãe
disse que temos vizinhos novos, mas não deve ser por muito tempo, porque
essa casa está sempre cheia de problemas. Deve ser até mal assombrada.
— Você é o meu novo vizinho? — pergunto.
Eu não deveria falar com ele. Mamãe me ensinou que não posso
falar com estranhos, porque é errado. Mas eu quero saber quem é esse moço
e se ele é mesmo o meu novo vizinho.
— Você mora aí? — ele pergunta de volta, apontando para a minha
casa e eu assinto. — Então acho que sou, sim. Cheguei hoje à tarde, então
não conheço muito da cidade.
— Meu nome é Lis — me apresento, esticando a mão.
— O meu é Benjamin — ele responde, apertando minha mão, que
dentro da dele fica parecendo um grão de arroz. — O que está fazendo aqui
fora?
— Vim libertar alguém.
— É mesmo? — Benjamin questiona, erguendo as sobrancelhas
quando olha para trás de mim, procurando alguma coisa. — Quem?
— O meu papai.
— E onde ele está?
— Até hoje à tarde ele estava preso no meu coração.
Seu rosto se torna uma coisa estranha de surpresa e tristeza.
— E por que não está mais?
— Porque ele não vai voltar, Benjamin, e eu não posso mais ficar
esperando ele.
— Talvez ele possa estar em algum lugar do mundo te esperando,
não acha?
— Não sou mais boba, grandão. O meu papai já teve tempo e
desperdiçou. Mamãe disse que alguns desejos não podem ser reais —
respondo, um pouco triste. — E é por isso que eu não posso mais esperar
pelo meu papai e vou deixar ele em paz. Ele não quis a minha mamãe, então
eu não quero ele.
Às vezes, fico me perguntando como será seu rosto, se eu me
pareço com ele.
Mas ele machucou o coração da minha mamãe, e isso é o mesmo
que partir o meu, então não posso mais deixar ele morar aqui.
Estou crescendo e, uma hora ou outra, vou precisar deixá-lo ir
embora.
É melhor que eu faça isso hoje, quando me despeço dos meus
cinco anos.
E antes que a minha mamãe se sinta mal por isso.
— Sinto muito, pequena — ele diz.
— É — resmungo. — Eu também sinto.
Deixo a lista cair dentro da lixeira.
— Tchau, grandão, qualquer dia desses te mostro a cidade.
— Tchau, pequena, vou adorar te ter como guia.
Você não queria ficar para sempre e está tudo bem
Eu sei, você sabe, nós sabemos
Que não fomos feitos um para o outro e está tudo bem
If The World Was Ending | JP Saxe feat. Julia Michaels

Não consegui dormir durante a noite.


A cama é confortável, a rua é tranquila e a cidade realmente parece
de outro mundo. É o clima perfeito entre frio e calor que traz um conforto
estranho ao peito e uma quietude que há muito não sinto.
O que me fez perder o sono, entretanto, foram os olhos daquela
garotinha e a forma com que eles pareciam tão tristes, conforme falava
sobre um pai que não a conhecia.
Foi como me destruir em milhares de pedacinhos.
Todos os segundos em que eu fechava os olhos, os dela, tão
inocentes e tristes, surgiam e faziam meu coração ficar tão pequeno que, eu
juro, que ele poderia caber na minha mão.
E a sensação foi tão assustadora que sempre que o sono tentava
chegar, era como se minha mente se lembrasse daquele momento. E, em
algum lugar dentro de mim, me senti culpado por ela estar triste, mesmo
que eu a tenha visto ontem e apenas por um breve momento.
O que também foi algo estranho pra caralho.
Eu nunca a vi na vida. Nunca sequer estive nesse lugar, mas ela me
pareceu tão familiar que eu posso jurar que meu coração já a conhecia.
Apenas não sei de onde, não consigo me lembrar.
Isso me atormentou durante um tempo, até que alcancei a sua lista
amassada na minha mesa de cabeceira. Eu a peguei do lixo no instante em
que ela se despediu e se virou para ir embora, sumindo pelos arbustos até
que entrasse em sua casa, mas não tive coragem de descobrir o que estava
escrito, naquela hora.
Nunca fui de chorar, mas no último ano – que foi quando saí do
presídio –, tenho feito isso com frequência.
Choro quando passo tempo demais pensando em Donna e em todo
o tempo que já perdemos.
Choro quando lembro dela e que eu poderia ter acabado com todo
aquele inferno antes e ter salvado a minha bailarina.
E que mesmo que Loren seja uma ótima advogada, a minha ficha
sempre será marcada não por um, mas por dois assassinatos. O que me
deixa triste é que eu não a matei. Jamais poderia. Não quando amava Elisa
da forma que eu a amava.
Choro quando percebo que Asher não é mais um menino e que
passou metade da sua adolescência me vendo através de vidros, passando
por humilhações que nem mesmo gosto de pensar, apenas para ter um
momento comigo.
E ontem, chorei por aquela lista.
Era um monte de rabiscos feitos com uma caligrafia bonita, mas
infantil. A folha parece ter sido arrancada de um bloquinho que
aparentemente era do Garfield, e apenas isso me arrancou um pequeno
sorriso. Era o meu desenho favorito na infância. Acho que não o assisto há,
pelo menos, dez anos, quando Michael foi imbecil o bastante para quebrar a
única TV que tínhamos.
O sorriso morreu bem rápido. Tanto pela lembrança quanto pela
lista.
Se não fosse trágico, seria cômico. Nunca tive muito contato com
crianças, exceto por Asher. E, considerando que temos apenas dois anos de
diferença, não é como se eu o considerasse muito mais criança que eu.
Olhar para aquela lista pareceu estranho. Não fazia ideia das coisas
profundas que uma criança poderia desejar, e aqueles rabiscos me fizeram
pensar no Benjamin de sete anos. Aquele que acreditava que um dia sua
mãe deixaria de amar seu pai, perceberia que eles eram infelizes e fugiram
para qualquer outro lugar do mundo, onde ele e seu irmão pudessem fazê-la
a bailarina mais feliz do mundo.
Lembrei do Benjamin de catorze, que conheceu uma garota e se
apaixonou antes mesmo que ela lhe desse atenção. Aquele que a admirou
por meses a fio, enquanto desejava que ela apenas o encarasse de volta.
Lembrei do Benjamin de vinte, atrás das grades, que passava a
maior parte de seu tempo desejando que Donna estivesse feliz, mesmo que
isso acontecesse com outra pessoa.
Meus sonhos nunca foram sobre mim.
“Lista de desejos da Lis:
● Ver a mamãe na TV.
● Deixar a ração do Odie separada para o fim de semana.
● Implicar com a secretária do tio Mat.
● Ganhar um pula-pula (e sorrir se não for isso)
● Não deixar a mamãe me ver chorar pelo papai.
● Conhecer o papai.”
Nos primeiros, eu sorri. Ela parecia um doce de criança, mesmo
triste, mas acho que essa é a primeira coisa que aprendo sobre crianças; elas
são um pouco mais travessas do que parecem; me assusta muito o fato de
ela desejar implicar com uma secretária.
Porém, me deixa triste o fato de ela ter chorado pelo pai, sem que
tenha o conhecido. Ela parecia amá-lo mesmo sem o conhecer, mesmo sem
saber se ele é ou não um homem bom. Para depois, parecer estar se
quebrando ao dizer que até a tarde de ontem ele estava preso no coração
dela, mas que agora, não está mais.
Aquilo doeu. Era como se ela estivesse atirando facas em minha
direção e me acertando em cheio, nos pontos mais doloridos de mim.
Eu desejei, no fundo, que ela o encontrasse. E que ele a amasse de
volta. Que ele reconhecesse o quão boa aquela garotinha parecia ser e que
ela merecia ter tudo o que deseja.
Mas também sei que talvez seja melhor assim. Que ela não o
conhecesse, mesmo que fosse doloroso. Ele pode ser um homem ruim. Pode
não amá-la. Pode ter feito mal para sua mãe. Acho que no futuro, entre
conhecer alguém que poderia ser ruim para ela e sua mãe ou conviver com
a dúvida sobre seu pai ser ou não um bom homem, ela escolheria a dúvida.
Eu escolheria isso sem pensar duas vezes.
Minha bailarina ainda estaria aqui se nós não tivéssemos o meu.
O pensamento me tira de Lis e me faz ficar ainda mais triste.
Às vezes, sonho com Elisa.
Em todos eles, está sozinha.
Sem aquele monstro.
Sem Asher.
Sem mim.
Feliz.
Sozinha.

— Uma das nossas patinadoras perdeu a sua dupla e estamos em


busca de um parceiro para ela. Mas, devo te pedir para não criar muitas
expectativas, Benjamin, não é o primeiro que tenta, e não tenho certeza se
será o último.
Asher é uma pedra no meu sapato.
Eu disse que iria procurar um clube ou algo do tipo para tentar
voltar a patinação e participar de alguns campeonatos até que tudo se
estabilizasse porém, ainda ontem, pouco depois que cheguei a cidade,
recebi sua mensagem com um endereço e um horário.
E aqui estou. Em frente a um centro de treinamento olímpico.
Não entendi porra nenhuma do que meu irmão disse e ele não quis
se explicar mais. No entanto, resolvi arriscar e procurar por quem ele disse.
Não custa nada tentar ganhar uma chance.
Mas repenso isso enquanto ouço a empresária – chata para caralho
– de uma das patinadoras da cidade, que ela perdeu seu parceiro, e
provavelmente vai participar apenas do campeonato solo. Ao menos, foi o
que consegui absorver do que Dinara falou.
Já ouvi falar sobre ela. Dinara Conway. Empresária de alguns dos
grandes nomes da atualidade no esporte e na moda.
Ela não é exatamente um exemplo de paciência e calma. Em dez
minutos de conversa, já retirou todas as minhas esperanças e ainda duvidou
que eu realmente fosse um patinador. Tudo isso para logo em seguida, dizer
que precisava me ver no gelo antes de decidir se sou ou não capaz de
cumprir o que prometi.
Me senti patético.
Ela seria mais simpática se me desse um tapa na cara.
— Espere — ela diz, quando estamos a caminho do rinque. Dinara
olha seu celular e franze o cenho ao ler seja lá o que for. — Preciso atender
uma ligação. Mas você pode ir para o rinque, Donnatella está te esperando.
Conversem e…
Suas próximas palavras parecem flutuar a minha frente.
Donnatella está te esperando.
E então, relembro das outras coisas.
Lembro da notícia de que Donna perdeu o parceiro.
Dinara dizendo que a sua cliente perdeu o parceiro.
E minha cabeça parece rodar.
Quais as chances de ter sido tão fácil encontrá-la vindo para cá?
Quando olho para o lado, Dinara não está mais. Provavelmente ela
foi atender a tal ligação e não faço a menor ideia do que veio depois do
nome Donna.
Eu espero muito que seja a minha Donna.
Mas também tenho medo que seja a minha Donna. Que eu não
esteja alucinando. Que ela seja real. Depois de tanto tempo.
Sigo o caminho até o rinque com o coração acelerado para caralho,
como se fosse escapulir do meu corpo a qualquer momento. Dói. Tudo em
mim é ansiedade, mas também é esperança.
É um sentimento ambíguo e confuso.
Porque quero que seja ela. Mas não quero.
Quero vê-la. Mas acho que não quero que me veja.
E então, quando chego ao rinque vazio, eu a vejo.
E não me restam dúvidas.
Essa, com certeza, é a minha Donna.
É a minha garota.
A menina que tirou os meus medos.
A mulher que sondou meus pensamentos por todos esses anos.
Que nunca fugiu das minhas memórias.
É ela.
Ela de verdade.
Os cabelos longos, castanhos e ondulados se movem juntamente a
ela conforme seu corpo desliza pelo gelo. Está incontestavelmente mais
bonita. Não é mais a menina da qual me lembro, mas ainda parece a mesma
garota que invadia propriedades alheias para ficar comigo.
Minhas mãos tremem.
Meu coração bate tão rápido que dói.
Minha mente ainda tenta processar que a visão à minha frente não
é apenas outra alucinação, das noites em que eu lutava pela minha vida e as
lembranças dela eram o que me mantinham vivo.
É ela mesmo.
Meu Deus.
Eu consegui.
Eu a encontrei.
Donna veste um collant de costas abertas na cor rosa e a saia
parece fazer parte da roupa.
Ela não me vê. Nem mesmo parece estar se importando com o
mundo à sua volta.
Os olhos estão fechados, a música alta e suas pernas deslizam com
a destreza e segurança que apenas ela consegue ter enquanto patina.
“Mas se o mundo estivesse acabando, você viria, certo?
Você viria e passaria a noite
Você me amaria por isso?
Todos os nossos medos seriam irrelevantes”[10]
Em um ato impulsivo, meus patins estão deslizando no instante
seguinte.
Meu corpo vai em sua direção sem nem mesmo precisar pensar.
Como se estivéssemos ligados.
Como se fosse um ímã que nos atrai.
Me puxando de volta.
Me levando até ela.
Não é difícil acompanhá-la. Não quando ela está performando a
última dança que nós dois ensaiamos antes de tudo desmoronar. A
performance que faríamos naquele campeonato.
Aquele em que eu nunca apareci.
Seu cheiro me inebria mesmo que um pouco distante, como se
invadisse todos os meus sentidos.
Sinto vontade de fechar os olhos quando todas as nossas
recordações tomam conta de mim ao mesmo tempo, mas me recuso. Eu
jamais poderia fechar os olhos quando está tão perto de mim depois de tanto
tempo.
Eu não a toco, tenho medo de assustá-la. Tenho medo da sua
reação.
Apenas acompanho a sua performance, o mais de perto que
consigo. Acompanho como se o tivesse ensaiado ontem, mas a verdade é
que repassei essa coreografia na minha cabeça durante os quase sete anos
em que estive longe dela.
Pensei nela a cada dia, a cada minuto, a cada segundo.
Porque era a única coisa que fazia com que me sentisse vivo.
Era a única coisa que não me deixava esquecer que eu ainda era
humano.
Porque Donnatella sempre teve esse poder de me fazer sentir
qualquer coisa.
Nesse momento, estou sentindo ela.
Eu a sinto em todos os átomos do meu corpo, como se nós dois
fossemos apenas um.
Não preciso tocá-la para isso.
Não preciso ver seus olhos.
Não preciso sequer que saiba que estou aqui.
Nesse momento, é o suficiente apenas estar perto, deslizando pelo
gelo, acompanhando seus movimentos e a sentindo.
Então, acontece.
A última parte da performance.
A parte em que ela se vira.
“O céu estaria caindo enquanto eu te abraçaria forte
E não haveria nem sequer um motivo
Pelo qual tivéssemos que dizer adeus.”
É quando seus braços encontram a minha cintura.
É quando os meus alcançam seus braços.
O momento em que toco a sua testa com a minha.
Que eu sinto o tempo parar para nos assistir.
Somos apenas eu e ela.
E um abismo de perguntas sem respostas.
E seu nome escapa da minha boca ao mesmo tempo que uma
lágrima escorre.
— Donna…
Ela abre os olhos rapidamente, como se apenas agora se desse
conta de que não está sozinha no rinque. Nesse momento. Nesse instante.
A música para.
O tempo também.
Seus olhos encaram os meus com assombro.
Como se estivesse vendo um fantasma.
E, de repente, estou vazio.
Suas mãos me abandonam, mesmo quando tento segurá-las, em
vão. Donna dá um passo para trás.
— Saia da minha cabeça — ordena, ainda olhando nos meus olhos,
mas parecendo perturbada demais para entender que eu realmente estou
bem à sua frente. — Saia! Saia da minha cabeça!
Seus olhos se fecham e sua expressão se torna dolorosa.
— Donna, eu estou aqui — digo, meio incerto. — Sou real. Aqui.
Agora.
As palavras não parecem fazer sentido para mim, mesmo assim, as
digo.
Parece um pesadelo.
Mas eu queria que fosse um sonho.
Nada do que imaginei para esse momento parece fazer sentido
agora.
Não é como se eu esperasse que ela estivesse me esperando por
todos esses anos.
Eu sabia que não seria assim. Donna não é assim.
Eu imaginei muitas coisas em relação ao momento que nos
veríamos novamente.
Em nenhum deles, ela parecia tão perturbada.
Em nenhum deles, minha presença causava dor. Ódio, talvez sim.
Nunca dor.
Em nenhum deles, Donna me pedia para sair da sua cabeça.
E definitivamente não me acertaria com um tapa no rosto.
Como ela faz exatamente agora.
Meu rosto pende para o lado e eu arregalo os olhos, surpreso com a
sua reação. Demoro um tempo até voltar a encará-la, ainda tentando
processar a situação enquanto sinto meu rosto queimar.
Vejo-a encarando a própria mão, provavelmente sentindo-a
formigar. Uma lágrima escorre do seu rosto terminando de me quebrar
quando entendo.
Donna realmente pensou que eu não era real.
E agora parece assustadoramente perturbada com a ideia de eu
estar à sua frente.
Como eu fosse a projeção do seu maior pesadelo.
Tento chamar seu nome. Tento fazer com que fique. Mas as
palavras ficam presas em minha boca.
Ela simplesmente se vira, patinando com uma velocidade
impressionante para fora do rinque, e então… sai correndo.
Eu queria que você ficasse nas minhas memórias
Mas você apareceu hoje só para estragar as coisas
Eu quero te deixar no passado
Porque estou traumatizado
Mas você não está me deixando fazer isso
Memories | Conan Gray

Depois de deixar Lis na escola, meus pés tomam rumo diretamente


para a rua ao lado da minha.
Preciso de algum momento de sanidade ou irei enlouquecer sem ter
a chance de reverter essa situação.
Estou louca.
Essa é a única certeza que tenho tido nos últimos dias, depois que
saí correndo para longe do rinque, deixando tudo para trás como o Diabo
foge da cruz.
Desde então, não tive coragem de voltar à arena.
Nem de atender Dinara.
Tudo o que tenho feito é repassar o dia de anteontem em looping.
Não notei sua chegada ou que sequer patinava comigo, porque faço
isso com frequência.
Imagino que estou patinando com ele.
Parece fácil. Parece certo.
Deveria ter continuado assim. Na minha imaginação.
— Acho que estou louca. — É a primeira coisa que escapa por
entre meus lábios quando Matteo abre a porta.
— Mandou um código de vida ou morte por causa disso? —
Alessandro questiona, subitamente, menos apreensivo quando me ouve,
jogando-se no sofá do nosso irmão, que o olha enviesado.
Desde quando Lis nasceu, Matteo estabeleceu táticas para lidarmos
com emergências. Principalmente quando ela ainda era um bebê e nós duas
voltamos para Lake Thorne para morarmos sozinhas. Entre eles, o código
7777, criado especialmente para situações onde não sabemos o que fazer ou
onde tudo dá errado.
Enquanto Alessandro resolve todos os problemas na base da
porrada e de acordo com o que as vozes da cabeça dele dizem, Matteo é
metódico, cuida da logística e, definitivamente, é a nossa razão. Ele cria
códigos para absolutamente todas as nossas necessidades, e é o primeiro a
chegar em casos de emergência.
O código de vida ou morte, por exemplo, foi acionado quatro vezes
desde que foi criado; quando Lis teve febre alta no meio da madrugada e
meu carro estava quebrado, quando Matteo ficou noivo sem uma aliança e
quando Alessandro surtou e quase destruiu New Haven por causa de uma
loira.
E hoje. É claro.
Depois de dois dias inteiros surtando sozinha por conta de
Benjamin, com Lis e suas perguntas infindáveis, eu preciso de algo racional
para me apegar. E não há nada de mais racional na minha vida do que esses
dois.
— Benjamin está na cidade. Eu acho. Acho que ele está na cidade.
Eu o vi. E dei um tapa na cara dele. Depois, saí correndo. E… e… —
suspiro, confusa demais — e agora, ele está aqui. Mas não pode ser real,
certo? Ele sumiu. Desapareceu. Evaporou. Quais as chances de ele estar
aqui? Nenhuma. Eu nem sei onde ele estava por esse tempo todo. Não tem
nenhuma chance dele voltar. E nem querer tirar a Lis de mim. Certo? Então,
ok. É só uma loucura. Eu estava cansada demais e alucinei.
Quando tomo fôlego depois de disparar as palavras, noto que meus
irmãos continuam me encarando da mesma forma que antes.
— Você é louca para caralho — Alessandro confirma. — Mas…
Paraliso com a hesitação que há em sua voz ao trocar um olhar
muito suspeito com Matteo. Eu suspiro e espremo os olhos, amaldiçoando
os homens dos quais sou obrigada a dividir o mesmo sangue.
— Vocês sabem de algo que eu não sei, não é?
— Na verdade — Matteo começa, em seu tom de repreensão,
como se eu tivesse alguma parcela de culpa em seja lá o que sabem. —
Você também saberia se visse as minhas mensagens. Ou se atendesse a sua
empresária maluca.
— O quê? — pergunto sem entender nada.
Meu irmão mais velho suspira e senta-se ao meu lado,
desbloqueando o celular e procurando por algo em uma de suas redes
sociais. Alessandro se apruma, sentado na mesinha de centro, como se isso
não fosse um motivo para Matteo e sua obsessão em ter tudo em ordem,
tentar matá-lo assim que perceber.
Meu corpo inteiro gela quando ele me entrega o aparelho.
— Isso está acontecendo. — Aponta, rolando a tela algumas vezes.
— Você é o assunto do momento.
Minha respiração fica suspensa por alguns segundos, tentando
entender se o que estou vendo é mesmo real.
São vídeos.
Milhares deles, noto, enquanto rolo a tela por conta própria.
São vídeos de quando Benjamin e eu éramos parceiros, ainda no
colegial.
Vídeos que eu sequer sabia que existiam.
Eles me trazem um aperto no peito. Eram bons tempos, em que
éramos imbatíveis no gelo. Eles não podem retornar, devem ficar
exatamente lá, no fundo das minhas memórias.
No entanto, ainda assim, me pego vendo os vídeos com atenção,
relembrando cada momento. Cada segundo. Cada palavra que me dizia
antes das apresentações. Como me segurava para me manter segura. Como
nunca me deixava cair. Como fazia de tudo para reforçar a ideia de que
éramos perfeitos, não importa em qual lugar do pódio ficássemos.
É como se meu peito estivesse sendo esmagado em sua caixa
torácica.
É como se minha boca amargasse.
É como se eu quisesse chorar copiosamente por alguém que não
pode ser mais meu.
Não é justo.
Não é justo que ele apareça logo agora, que tudo está se acertando.
Agora que eu estava começando a lidar com uma vida sem ele, que Lis
estava começando a aceitar que sempre seríamos nós duas.
Alguns dos vídeos prendem a minha atenção, dispersando-me da
presença dos meus irmãos. Assisto melancólica. Observo a figura de Ben e
eu mais jovens, patinando como se o mundo dependesse daquilo, sem nunca
desviar os olhos um do outro.
Era a nossa marca.
A forma com que nos conectamos dentro e fora do rinque. Ao
menos, era isso que ele sempre repetia; os olhos são a janela da alma. A
minha alma estava sempre nua para ele, da forma mais clara e cristalina
possível. Assim como achei que a dele estaria por mim.
Eu realmente acreditava nisso porque todas as vezes que
patinávamos, sentia como se estivesse sentada na janela de sua alma,
admirando a vista e presa em um mundo apenas nosso. Onde nossos
corações batiam um pelo outro e nada além disso.
Estava presa em um mundo de ilusões, mas que eu acreditava
plenamente que tudo era real. Que felizes para sempre existiam.
Dizem que quanto maior o sonho, maior a queda. A minha, não
poderia ter sido mais fatal. A colisão das nossas almas, arruinou com tudo o
que havia em mim, me quebrou e esmagou cada maldito pedacinho que o
pertencia.
E acho que o odeio por isso.
Por ter me estragado para todo o restante do mundo.
A pior parte é que agora, de repente, todos sabem disso.
É o que percebo quando assisto um vídeo em que um edit meu e de
Benjamin mais novos e, logo em seguida, a transição da música muda para
uma mais sombria, onde eu apareço com Gavin, meu último parceiro. É
uma edição que mostra a diferença entre patinar com um e outro. Até
mesmo eu consigo perceber a leveza e cumplicidade que há entre mim e
Ben, tão diferente da forma como eu parecia cautelosa e insegura ao lado de
Gavin.
Noto que esse vídeo em específico é criado por uma página que
tem uma foto de nós dois, uma captura de um dos momentos do vídeo em
que nossos olhos estão conectados. É tipo um fanclube. E eu sinto vontade
de rir e chorar por isso ao mesmo tempo.
É uma merda.
Durante todos esses seis anos, nunca consegui chegar às finais da
competição nacional. Algo sempre me barrava, embora eu sempre fosse a
favorita como ganhadora. Pelo menos, pelo público.
As pessoas achavam que eu precisava me soltar mais com meus
parceiros, me arriscar mais. O problema é que eu não conseguia. Não havia
como. Não quando não confiava em nenhum deles para tirar meus pés do
chão.
Nenhum deles era meu.
Nenhum deles era Benjamin.
E isso era frustrante.
Eu não conseguia fazer uma simples pirueta com meus parceiros,
mas, com Benjamin, patinava de olhos fechados, confiando a minha
segurança e meu futuro em suas mãos enquanto ele também fechava os
seus.
Talvez, esse tenha sido o nosso problema.
Fechamos os olhos e nos trancamos em algum canto escuro da
nossa mente. Nos blindamos de tudo o que podia nos impedir de ficar
juntos. Até que ele se cansou e abriu os olhos.
E eu continuei com os meus fechados. Esperando pacientemente
que fechasse os seus novamente.
Não aconteceu.
Porque enquanto os meus estavam fechados, ele fugiu.
Minha respiração é suspensa quando um vídeo diferente aparece.
É a performance de dois dias atrás. O dia que achei que estava
alucinando.
Não era um pesadelo.
Era real.
Benjamin estava comigo.
Sinto quando uma lágrima rola do meu rosto e não me preocupo
em limpá-la, assistindo seus pés seguirem os meus para, ao finalizar, suas
mãos tocarem meus braços com tamanha delicadeza que faz meu ódio
vacilar.
Porque parecia que estávamos parados. E o tempo estava passando
por nós.
— Alguém filmou e publicou. Está viralizando em todas as redes
sociais e encontraram vídeos de vocês mais jovens — Alessandro diz, seu
tom de voz um pouco mais comedido que o habitual. — Acham que ele é o
seu novo parceiro.
— Não pode ser — nego. — Ele não… meu Deus, isso só pode ser
um pesadelo.
— Donna — Alessandro chama, seu tom mudando conforme me
encara seriamente. — Posso dar um jeito nisso.
— Alessandro — Matteo o repreende, e os dois trocam um olhar
que não entendo e depois, ele se volta para mim. — Vocês dois já
conversaram?
— Não, eu… eu ainda não consigo acreditar que ele realmente está
aqui.
— Mas está — Ale fala o óbvio —, e precisamos pensar no que
fazer para proteger você e Lis.
— Acha que ele pode querer tirar a Lis de mim?
A possibilidade me toma em um desespero.
— Ele pode tentar — Matteo diz, seu olhar se tornando sombrio
em um piscar. — Mas escute, Donna, Elisa está segura e é nossa. Nada e
nem ninguém será capaz de tirá-la de nós.
— Mas é um direito dele.
— Um direito que ele esqueceu que tinha por seis anos.
— Alessandro, cale a porra da boca — Matteo esbraveja,
interrompendo o outro, parecendo a um passo de esganá-lo. — Donna, se
ele te procurar, nos avise. Devemos estar a par de toda a situação antes de
agirmos, de nada adianta fazer algo agora, no calor do momento.
Assinto, mas continuo aérea.
— Pode pegar a Lis na escola para mim mais tarde? — pergunto a
Ale. — Vou passar a noite aqui. Ainda estou um pouco atordoada.
— Claro — ele concorda, sem pensar duas vezes. — Também
ficarei caso ela precise de mim.
Ficarei para cuidar de vocês, é o que Alessandro quer dizer. Ele
não fala com essas exatas palavras, mas é o que significa. Meu irmão do
meio é protetor e desconfiado ao extremo e tenho quase certeza que, depois
de hoje, toda a nossa segurança será reforçada.
Sei que Ben não representa um mal para mim. Porém… há Lis. Ele
pode tentar tirá-la de mim, afinal, não sei quais são os seus planos ao
retornar agora.
Benjamin está de volta a minha vida.
Não é um sonho.
É como se estivessem fantasmas me assombrando.
Assustador para cacete.
Tenho a sensação de que tudo o que sempre acreditei durante esses
anos fora uma mentira, e não sei como explicar isso sem soar ainda mais
louca. A forma com que ele me olhava naquele rinque soou como uma
mentira.
Ele não parecia irritado. Não parecia me odiar.
E é disso que tenho medo. De que ele não saiba de nada e que, de
repente, queira tomar de mim tudo o que não teve por esses anos.
Sinto vontade de virar a cidade abaixo, procurá-lo, olhar nos olhos
dele e perguntar onde ele esteve durante todo esse tempo e porque decidiu
voltar justo agora.
Sobretudo, seria capaz de fazer isso agora antes que a ansiedade
consuma todo o meu peito. Porque, se ele estiver aqui por Elisa, eu seria
capaz de tudo.
Ele não pode fazer isso.
Não posso perder Elisa.
Também não quero que ele a machuque mais do que já o fez.
Lis não merece isso.
Eu lutei muito para conseguir criá-la do melhor jeito, em meio à
nossa família briguenta.
Eu acalentei seu choro todas às vezes que implorava pelo pai, e não
sabia o que dizer.
Eu tentei mostrar para ela que existem vários tipos de família, que
a nossa poderia ser maluquinha e bem brigona, mas que nós a amamos
incondicionalmente e a protegeríamos de tudo.
Lutei por ela todas às vezes em que meu coração se partia ao
entender que apenas eu nunca seria suficiente para minha filha.
E isso só pode ser a porra de um pesadelo.
Sinto como se tivéssemos as mesmas feridas
Mas a minha ainda está roxa e machucada
E a sua está perfeitamente bem agora
Sinto como se tivéssemos enterrado vivo
Algo que nunca morreu
E Deus, dói quando eu descubro
The Exit | Conan Gray

Toda ação tem uma reação.


Aprendi isso no colegial.
Uma professora usou disso para ensinar para nós o quanto somos
efêmeros em relação ao tempo, pois nada pode ser controlado.
Lembro das suas palavras enquanto lecionava sobre a teoria do
caos, um campo de estudo que tenta explicar sobre a forma com que um
simples bater de asa de uma borboleta pode causar um furacão do outro
lado do mundo.
Era um dos exemplos que ela usava para explicar que pequenos
atos, por mais inofensivos que sejam ou pareçam, podem causar grandes
consequências.
Quando ouvi isso, fiquei assustado.
Para mim, parecia loucura, não fazia sentido algum.
No entanto, quando cresci, entendi o que aquilo queria dizer.
Pequenos atos podem precaver ou causar grandes eventos, algumas
maiores do que podemos processar ou suportar.
Tudo pode mudar em um piscar de olhos, isso é assustador para
caralho.
É apenas nisso que tenho pensado desde que vi Donnatella.
Depois de seis longos anos.
Não sou idiota. Sabia que a encontraria aqui de algum jeito, afinal,
foi por isso que vim para esta cidade. Soube que ela tinha voltado para cá e
não perdi tempo; um dia depois, estava a caminho.
O problema é que não planejei. Não pensei nas palavras que diria.
Sequer cogitei se ela estaria disposta a conversar.
Donna é um assunto mal-resolvido. E talvez, esse seja o meu
problema. Eu quero resolver. Me importo com o que pensa e de forma
alguma quero que isso signifique algo negativo. Quero que entenda que não
sou um monstro. Que fiz o que fiz para proteger meu irmão.
Contudo, ver o horror em seus olhos, a forma com que pareceu ser
tomada por asco enquanto me encarava e o modo como reagiu ao se dar
conta de que eu não era fruto da sua imaginação, estão me perturbando.
Seis anos.
Passei seis anos sonhando com o dia em que a veria novamente.
Sonhando com o dia em que seus olhos voltassem para os meus e as coisas
à minha volta voltassem a ter vida. Eu achei que vê-la me faria sentir um
pouco melhor.
Soa egoísta dizer isso, mas eu queria. Queria me sentir bem.
Mas a minha mente não me deixa dormir.
As nossas lembranças juntos não me deixam dormir.
Eu fecho os olhos, e os dela me invadem.
Porém, dessa vez, não foi como me olhavam no passado e nem da
forma que idealizei para esse presente. Seus olhos me encaram cheios de
repulsa. E então, eu abro os meus. Porque simplesmente não suporto a ideia
de simbolizar algo tão doloroso para ela.
A Donna que vive em minha cabeça tem sido a minha âncora em
um mar revolto.
E acho que me iludi com a ideia de que ela seria isso agora.
Mas não.
Eu parecia ser seu pior pesadelo.
E jamais serei capaz de colocar em palavras tamanha a dor que ter
consciência disso me causa.
— Ei, Benjamin! — A voz infantil tira-me dos meus pensamentos,
fazendo com que minha atenção se foque na garotinha a poucos passos de
mim, de pé ao lado dos arbustos que separam nossas casas.
Um sorriso involuntário cresce em meu rosto e me pego com
pressa para ir encontrá-la. Essa garotinha foi um dos motivos que fez eu me
sentir melhor quando as lembranças ruins me tomam e o meu peito parece
querer sair da minha caixa torácica, mesmo que só tivéssemos interagido
uma vez.
Como se ela fosse um sopro de paz em meio ao caos que minha
vida é desde quando me lembro.
— Oi, pequena — me aproximo, vendo quando uma das borboletas
que estão ao redor das poucas rosas cultivadas por perto, se aproxima dela,
pousando em seu nariz. Lis faz uma careta engraçada quando isso acontece,
tentando encarar a borboleta com os dois olhos âmbar ao mesmo tempo, me
arrancando o riso. — O que está fazendo aqui?
— Desculpe invadir seu jardim — começa, mas não parece nem
um pouco envergonhada por isso. — Gosto de visitar as suas borboletas.
Franzo o cenho com a resposta.
— Minhas borboletas?
Ela assente.
— Sim. — Balança a cabeça com veemência e percebo que é
importante para ela, por isso, lhe dou total atenção. — Você tem rosas muito
bonitas, mamãe adora ficar admirando elas e sempre há muitas borboletas
aqui. — Ela aponta para cima e quando ergo meu rosto, noto que há pelo
menos dez borboletas voando acima de nós.
Uma estranha sensação de calmaria me preenche.
Eu adorava caçar borboletas com a minha mãe quando era criança,
antes de Asher nascer. É uma das raras lembranças que tenho com ela,
sozinho.
— Essa borboleta parece te conhecer há muito tempo — brinco,
notando que mesmo com a menina se mexendo, o inseto não voa para longe
dela.
— Ela é minha amiga. Ela está aqui desde sempre.
— Isso é muito interessante, Lis, não sabia que borboletinhas
tinham amigas.
— Essa tem, mas nunca dei um nome para ela. — me conta. — E
também queria te contar uma coisa.
— É mesmo?
— Lis é só meu apelido. Meu nome de verdade é Elisa.
A informação me causa um bolo na garganta e paraliso por alguns
segundos, tentando me manter o mais impassível possível. Porra.
— Por que você parece estranho? — pergunta, e percebo que
talvez não tenha disfarçado tão bem.
— Minha mãe também se chamava Elisa.
Ela abre a boca, sorridente, em uma reação de choque que acho
fofo.
— Que legal! — Anima-se, ignorando a frase contada no passado.
— E como ela é?
A pergunta me deixa triste. Ela era muitas coisas.
— Ela era a bailarina mais bonita que conheci.
— Eu também sou bailarina!
— Jura?
— Sim. E onde ela está? — questiona de novo, olhando por trás de
mim, como se procurasse por ela dentro da minha casa. — Sua mamãe.
Suspiro e desvio o olhar dela por alguns segundos.
Não sei o que responder sobre isso a uma criança.
— Ela virou uma estrelinha.
O semblante de Elisa se torna triste, mas logo muda de expressão
como se uma lâmpada se acendesse em sua cabeça.
— É por isso que as borboletas te visitam, Ben!
— O quê? — Meu cenho se franze com a mudança brusca de
assunto.
— Nunca te contaram, grandão? — Ela sorri, estendendo o dedo
indicador em frente ao rosto onde a borboleta pousa. — Quando alguém
vira uma estrelinha, volta em forma de borboleta.
Fico sem palavras e preciso respirar fundo quando suas palavras
são processadas.
Como uma garotinha desse tamanho consegue me fazer sentir tão
bem?
E por que ela sempre parece estar presente nos meus momentos
mais tristes?
Se eu acreditasse em destino, diria que ela é algum tipo de resposta
para mim.
Eu queria que ela fosse algum tipo de resposta.
Elisa é adorável.
— Quer pegá-la?
Ergo uma das sobrancelhas, indeciso se gostei da ideia.
— Tenho medo de assustá-la.
Lis ri.
— Não precisa ficar com medo. — Estende a mão para mim e eu
faço o mesmo, tocando a ponta do meu indicador no dela, sentindo que as
borboletas estão, na verdade, no meu estômago, porque tudo começa a se
revirar numa ansiedade boa quando nos tocamos. Vejo a borboleta-azul e
preta voar para meu dedo, como se fosse rotineiro. — Viu? Ela não faz
nada.
— Ela é linda — elogio, encantado ao admirar todas os pequenos
detalhes do inseto de perto. — Acho que você estava certa sobre as visitas
das borboletas. A minha mamãe era muito linda, como essa borboletinha.
— Ela te amava?
— Muito. Ela fazia de tudo para me ver sorrir, sabia?
Exceto por nunca ter deixado de amar o monstro que nos
aprisionava.
— A minha mamãe também é muito legal. Ela diz que sou uma
princesa.
— Você parece mesmo uma — concordo, dividindo a atenção entre
a borboleta e ela.
— Jura? — pergunta, sorridente. — Você acha que princesas
gostam do Garfield?
— Se elas parecerem com você, elas podem tudo.
— Liiiiiiiiiiiis! — A voz feminina e arrastada soa do outro lado e
Elisa automaticamente faz uma carinha de descontentamento. — Vamos ver
a sua mamãe!
— Quem é? — pergunto, movido pela curiosidade da reação dela.
— É a secretária de um dos meus tios. Ele não pode me buscar no
colégio hoje e mandou ela. Viemos buscar os patins da sorte da minha
mamãe, ela está trabalhando.
— Você não gosta dela? Da secretária do seu tio?
— Ela é chata. Ela acha os Ursinhos Carinhosos mais legais que o
Garfield. — Revira os olhinhos. — Eu preciso ir, Ben! Volto depois.
— Até mais, pequena — me despeço, acenando com a mão livre.
— E diga para ela que o Garfield é muito mais legal.
Lis sorri antes de ir.
Ainda fico algum tempo encarando o caminho que ela faz até
sumir da minha vista.
Admirando.
Pensando.
Engolindo a minha tristeza.
Essa garotinha me traz uma sensação familiar que me assusta, ao
passo que me conforta. E eu odeio o fato de não conseguir explicar o quanto
ela parece ser importante para mim mesmo que eu a conheça há três dias.
O barulho de notificações chegando desvia a minha atenção dela e
desbloqueio meu celular, percebendo que há uma mensagem de Dinara
Conway, empresária de Donna. Não faço ideia de como conseguiu meu
número, mas faz dois dias que tem conversado comigo e que além de ter
conseguido me convencer a fazer um novo teste – o que não foi tão
trabalhoso assim –, tem interesse em se transformar na minha empresária
mesmo que não consiga ser a dupla de Donna.
itsdinaraconway: ela está se preparando para
entrar no rinque.
deveriam conversar para resolver seja lá o que está
impedindo vocês antes que seja contratado como sua dupla.
itsbenjamindempsey: e se ela não me quiser como parceiro?
itsdinaraconway: não é uma opção para os patrocinadores.
será você ou ela estará fora.
A mensagem me desanima ainda mais.
Tão rápido como um bater de asas de uma borboleta, entendo
porque simbolizaria um pesadelo para ela.
Donna não me quer por perto, mas será obrigada a isso.
E ela detesta ser obrigada a qualquer coisa.
Ela está do lado de fora do rinque colocando os patins quando me
aproximo.
É meio que impossível não parar por alguns segundos apenas para
admirar a forma com que tudo ainda parece tão ela.
Os cabelos longos e castanhos estão formando uma cascata
ondulada ao redor do seu rosto, impedindo-me de ver seus olhos, a forma
esquisita que amarra os cadarços, mas que sempre dá certo no fim e o
perfume inconfundível que parece pertencer apenas a ela.
Tudo é sobre Donnatella.
Sempre foi.
Demora até que perceba a minha presença.
Donna não me encara de primeira, fica apenas parada, como se
estivesse se decidindo se é ou não uma boa ideia fazer isso, até que suspira
e se vira vagarosamente.
É como se meu peito explodisse.
Ela parece nervosa quando olha para algum ponto atrás de mim.
— Podemos conversar? — Quebro o silêncio, minha voz saindo
insegura, totalmente o oposto do que planejei dizer enquanto estava no
banho.
— Não tenho nada para falar com você — responde de imediato, e
posso ter certeza de que essa também é uma resposta ensaiada.
Um riso nasalado me escapa.
— Temos seis anos de conversa para colocar em dia.
— Sim, seis anos em que você desapareceu.
— Seis anos que não foram uma escolha minha.
— Isso não importa. Não mais.
— Claro que importa, Donna. — A irritação é quase palpável em
minha voz ao pronunciar as palavras. — Fomos embora um da vida do
outro e nem sequer conversamos sobre isso.
— Você foi embora. Eu fique aqui, Benjamin — acusa, finalmente
ficando de pé, ereta enquanto me encara enfurecida. — E quer saber? Fico
feliz que tenha ido. Todo mundo sempre soube que a única pessoa capaz de
curar a loucura que eu sentia por você, era você mesmo.
As palavras me atingem.
Dilacera.
Não era assim que imaginei nossa primeira conversa depois de seis
anos.
Eu planejei de outra forma.
Contudo, jogo qualquer coisa que tenha imaginado para o ar assim
que ouço-a dizer isso.
— Você age como se não tivesse me ignorado por todos esses anos.
Donna ergue as sobrancelhas, bem como o canto de seus lábios ao
me ouvir.
— Sério? — questiona. — De todas as coisas que você quer
conversar sobre esses seis anos — dá ênfase em minhas palavras. —, o fato
de eu te ignorar está sendo colocado em pauta?
— O que mais… — Minha voz morre quando noto um par de
olhos curiosos em nós. — Lis? O que está fazendo aqui?
Noto quando o corpo de Donna tensiona e sua respiração fica
presa.
Minhas sobrancelhas se unem pela reação dela, desviando os olhos
de mim quando volto a encarar a pequena.
Lis sorri e dá pequenos passos em nossa direção antes de segurar a
mão de Donna.
É a minha vez de prender a respiração quando lembro do que ela
disse que iria fazer antes que nos despedirmos no quintal, porque, de
repente, minha mente associa isso rápido demais.
Não.
Não.
Não.
Não pode ser o que eu estou pensando.
— Vim trazer os patins da sorte da minha mamãe.
Elisa.
Seus olhos familiares.
A forma como acalmou a tempestade em meu peito.
Elisa.
Meu papai tem outras prioridades.
Acho que, por fim, a teoria do caos estava certa. Algo tão pequeno
pode, sim, causar uma grande consequência.
Oh, olhe o que nos tornamos
Todas as coisas que eu fiz
Só para eu poder te chamar de meu
Todas as coisas que você fez
Bem, espero que eu tenha sido seu crime favorito
Favorite Crime | Olivia Rodrigo

Minhas próprias palavras parecem ecoar em minha cabeça.


Toda ação tem uma reação.
A minha reação, no momento, é ficar estático, encarando uma Elisa
que parece tão confusa quanto eu por estar sendo o alvo da minha atenção.
Não sei o que pensar.
Não sei o que dizer.
Não sei o que sentir.
Na verdade, sei o que sento, sim.
Uma vontade de chorar.
Pior, de gritar até que meus pulmões esvaziem.
Pai.
Eu sou pai.
E, em momento nenhum, durante todos esses anos, essa ideia
passou pela minha cabeça. Agora, isso parece me apavorar mais do que
acredito ser possível se estivéssemos em outra situação.
Não era para ser assim.
Não. Era. Para. Ser. Assim.
A única coisa que consegue rondar meus pensamentos nesse
momento são as dúvidas.
Por quê?
Por que ela não me contou que estava grávida?
Por que não me deixou saber que temos uma filha?
O que aconteceu para que eu não soubesse?
E por que, ainda assim, ela a batizou com o nome da minha mãe?
Mas então, me lembro que Donna não teve muita escolha a não ser
se manter longe.
Eu estava preso, afinal. Atrás das grades. Vendo o sol nascer
xadrez. Com algemas nos pulsos. Um uniforme laranja. E uma mente
fodida. Depois de ter sido acusado de matar os meus pais.
Eu a entendo.
Pensando agora, eu também não queria que Elisa tivesse me visto
daquela forma. E apesar de fantasiar muito com isso, no fundo do meu
âmago, também tenho consciência de que foi melhor que Donna também
não tenha me presenciado naquela versão.
E talvez, todas essas questões estejam certas.
Talvez, eu devesse entender que esses motivos são mais que
suficientes para que eu nunca soubesse sobre Lis.
Talvez, eu não deva questioná-la os motivos por nunca ter me
contado.
No entanto, há algo aqui, no fundo, que implora por respostas. Que
dói só de pensar que merecia, ao menos, saber que seria pai antes de nunca
mais vê-la.
Porque eu queria.
Eu queria saber antes.
Ter lutado mais para sair daquele lugar e poder estar com elas.
Eu queria.
Eu sonhei com uma família nossa.
Sonhei com o nosso casamento.
Com o nascimento dos nossos filhos.
E pelo visto, tudo isso aconteceu.
E eu não estava aqui.
Ainda estou paralisado quando ouço a voz de Donna se referir a
Lis.
— Meu amor, pode esperar com a tia Dinara um pouco, por favor?
Meus olhos percorrem de uma a outra, notando as semelhanças que
estavam ali o tempo todo. Eu não a achei familiar apenas porque ela era
adorável. A achei familiar porque ela é um pedaço meu.
Nosso.
Elisa tem os cabelos de Donna, mas os olhos e o nariz são meus. A
forma com que ergue as sobrancelhas e gesticula lembra Asher quando
tinha essa idade. E a forma doce e gentil… Ela é como a minha bailarina.
— É uma conversa de adultos? — Ela tenta sussurrar para a mãe,
mas acaba não funcionando muito bem. Em outro momento, eu riria da sua
tentativa, mas estou dividido entre um estado de perturbação e medo que
estão me consumindo. — Você conhece o Benjamin?
— Sim para as duas perguntas — Donna responde, e tenta sorrir
para ela, que parece perceber que não é um bom momento para fazer mais
perguntas. — Agora, pode procurar a tia Dinara?
Lis assente e me olha uma última vez. Ela dá um sorrisinho sem
mostrar os dentes, antes de correr em direção à porta de saída, onde Dinara
já nos observa.
Não consigo parar de encará-la enquanto se afasta.
Seis anos.
Eu perdi seis anos da vida de Lis.
Seis anos que nunca irei recuperar.
Seis anos do qual nunca poderei suprir.
— O que quer aqui, Benjamin?
Minhas sobrancelhas se erguem, incrédulas com o que ouço.
Sua expressão corporal defensiva, o cenho franzido e os olhos
determinados como quem parece estar me acusando de algo. A forma com
que profere as palavras… como se nós nunca tivéssemos nos conhecido.
Como se ela não me conhecesse.
— Perdão? — Deixo um riso nasalado escapar, cruzando os braços
e tentando me manter o mais controlado possível. — Do que estamos
falando exatamente?
— Por que está em Lake Thorne? — repete, parecendo irritada
com esse fato. — Por que justo agora?
— Vim por você — admito, embora agora, já não tenha mais tanta
convicção disso e que as palavras pareçam boba depois dessa descoberta.
— Por que está agindo como se eu tivesse escolhido me afastar?
— Sinto em informar, mas chegou tarde. — Ela sequer parece me
ouvir. — E estou agindo como se você tivesse escolhido isso, porque você
escolheu. Não vamos começar a ser hipócritas agora.
— Quer falar sobre hipocrisia? — Minhas sobrancelhas se erguem
mais do que achei que fosse possível. — Você ao menos iria me contar que
eu tenho uma filha?
Minhas palavras parecem atingi-la.
Como se ela não estivesse esperando pela minha resposta.
— De que adiantaria? Você me abandonaria de qualquer forma.
No passado, as palavras de Donna pareciam labaredas, capazes de
acender todo o meu corpo. No presente, descubro que elas soam como
facas, cortando-me de um extremo a outro sem hesitação.
Dói para caralho.
— Não entendo… — As palavras me escapam. Assumo a minha
posição de derrota, deixando os braços caírem ao lado do corpo, sabendo
que mesmo que eu esteja com raiva, não há maior culpado nessa situação
do que eu. — Sei que não merecia nenhum tipo de misericórdia depois do
que fiz. Mas, por que ao menos não me contou sobre Lis? Por que você fez
isso?
Donna parece enfurecida quando ouve o que digo, deixando um
pequeno sorriso irônico se abrir em seus lábios carnudos.
— E como eu te contaria, Benjamin? — esbraveja, e não me passa
despercebido a forma com que meu nome sai dos seus lábios pela primeira
vez em anos. — Me diga como eu te contaria se você não retornava as
minhas ligações e simplesmente evaporou do mapa?
Minhas sobrancelhas se unem em confusão ao ouvi-la, porque isso
não parece fazer sentido algum.
Eu liguei para ela.
Enviei centenas de cartas.
Não evaporei do mapa, pelo contrário.
Estive no mesmo lugar durante seis malditos anos.
— Não pode chegar aqui e me acusar de ter escondido a minha
filha quando não teve a capacidade de terminar tudo entre nós. Você sumiu,
Benjamin. Sumiu quando mais precisei de você. Estragou o que deveria ter
sido a chance da minha carreira quando não apareceu naquela apresentação.
Você me humilhou. Acabou com todas as minhas chances e me deixou
sozinha, à deriva, cuidando de uma criança quando eu ainda estava tentando
deixar de ser uma!
Suas palavras…
Elas me atingem com tanta força.
Força o suficiente para nascerem lágrimas em meus olhos.
Porque seja lá onde Donna acha que fiquei esse tempo todo, está
enganada.
Quando ela fala assim, dessa forma, com tanta mágoa e ódio que
eu a abandonei, não me resta nenhuma dúvida e não preciso pensar muito
para chegar a uma conclusão que sequer passou pela minha cabeça.
Ela não sabe de nada.
— Donna…
— Não, Benjamin! — me interrompe, gesticulando rapidamente e
com raiva à medida que seu tom de voz sobe. — Quer conversar sobre os
seis últimos anos? Vamos começar pela parte em que estive sem o pai da
minha filha em absolutamente todos os momentos da vida dela. Vamos falar
sobre o quão complicado e difícil está sendo me dividir entre ela e a minha
carreira. Vamos falar sobre a possibilidade de eu precisar abrir mão do meu
sonho porque você estragou todas as minhas chances. Ou vamos falar
sobre…
— Donna — repito, mais alto e firme dessa vez, a calando. Ela
limpa as lágrimas com as costas da mão e me encara, esperando. Eu consigo
sentir o ódio emanando de cada nuance em seu olhar. — Eu não te
abandonei porque quis. Eu não fui embora. Nunca te deixei.
— E como exatamente pretende me fazer acreditar nisso? —
pergunta, um riso de escárnio escapando por entre seus lábios.
— Eu estava preso, Donna — revelo. — Matei meu pai naquela
noite.
Desculpa, não há outra saída a não ser cair
Ligue para meus amigos e diga-lhes que os amo
E vou sentir falta deles
Mas não estou arrependida
Listen Before I Go | Billie Eilish

PASSADO
— Benjamin. — A voz dele ecoou mais alta do que normalmente
era assim que atravesso a porta de casa. Asher estremece ao meu lado e
consigo sentir o medo emanar do meu irmão, mesmo que Michael esteja se
dirigindo a mim. — Venha cá.
Meu irmão tentou limpar os ferimentos dos meus punhos antes de
chegarmos em casa, mas não adiantou muito. Ainda sangra, e desconfio que
os arranhões não sairão tão cedo. Ele ficou apavorado. Por isso, resolvi
levá-lo para uma das sorveterias que fica a alguns quilômetros da nossa
casa e comprei sorvete para nós com o pouco dinheiro que consegui guardar
da última competição de patinação que participei. Iria me fazer falta nas
economias que guardo dentro do colchão que nós dois dividimos, mas eu
precisava fazer com que Ash se distraísse.
O problema é que demoramos demais na rua e mamãe ainda tinha
algumas aulas antes de chegar em casa. Além de que a apresentação que eu
faria com Donna seria apenas à noite, ainda restavam boas horas antes
disso. O que significa que somos só nós três por enquanto. E o problema
não é apenas esse, e sim o tom que ele usou para se referir a mim. Porque
sabia o que me aguardava.
Briguei com um merdinha na saída do colégio. Por sorte, mamãe
não viu ou soube do ocorrido, mas Renè, o idiota que provocou Donna, é
filho do delegado e chefe de Michael, e com certeza já contou para ele.
Ou seja, eu já sabia o que me aguardava enquanto passava pela
soleira da porta.
— Não vá, Ben — meu irmão pediu, baixinho, ainda longe do
nosso genitor. — Podemos sair para a casa de Zoe e ficar lá até a mamãe
chegar.
Zoe era a nossa vizinha de frente. Apesar de ter uma situação tão
humilde quanto a nossa, ela, seu irmão e sua mãe nos tratavam muito bem e
nos ajudavam como podiam, até mesmo com um prato de comida.
Mamãe não gostava de incomodá-los e eu e Ash também não, mas
às vezes, a casa deles acabava se tornando nosso único escape. E ficávamos
lá por horas seguidas, jogando basquete na cesta improvisada que Hayden e
eu fizemos ou só deitados no gramado esquisito olhando para o céu e
tentando ver o formato das nuvens.
Com exceção do pai tóxico, tínhamos muitas coisas em comum. O
principal era o desejo de sairmos daquele bairro e termos uma vida
minimamente digna.
Normalmente, eu ouvia o pedido de Asher. Sempre o ouvia quando
chegávamos e víamos Michael bêbado no sofá ou desmaiado devido às
drogas. Mas aquela era uma situação diferente. Michael estava com raiva. E
se não descontasse em mim, iria sobrar para Asher. Então, não era difícil
decidir o que fazer.
Eu entrei em casa e olhei para meu irmão.
— Vai ficar tudo bem, Ash, não tem com o que se preocupar.
Exceto que tinha.
O caminho em direção a Michael era curto, afinal, o cubículo em
que moramos era minúsculo. Morávamos em uma casa pequena em
Dorchester[11]. Não era grande. Só tinha um quarto, um banheiro e uma sala
que também servia como cozinha. Asher e eu dormimos em um colchão que
achei no lixão aqui em frente nesta mesma sala e Michael sequer fazia algo
para mudar isso.
Antes mesmo que eu chegasse, o cinto me acertou em cheio na
lateral do corpo, derrubando-me sentado na cadeira da cozinha, que rangeu
devido à velhice, por pouco não se partindo ao meio. Ouvi Asher
choramingar e o olhar de Michael correr para ele, mas meu irmão era
esperto.
Ele já havia entendido que quanto mais chorava, mais Michael
batia.
Quando mais ele pedia para parar, mais Michael me levava ao
limite.
Então, Asher aprendeu a me ver apanhar em silêncio. Assim como
fazia com ele. Embora tudo dentro de mim corroesse, não havia nada que eu
pudesse fazer para mudar aquela situação. Não enquanto Elisa não
concordasse em fugir conosco.
Era durante a noite que nos consolávamos. Que eu deixava que ele
me abraçasse e chorasse, pedindo desculpas por não poder fazer nada para
impedir que ele fosse um monstro.
O cinto me atingiu mais uma vez, dessa vez, na costela que ele
mesmo havia fraturado pouco tempo antes e que não foi totalmente
cicatrizada. A dor alucinante me faz chiar em protesto, contudo, não dou a
ele o que quer.
Não mostrava vulnerabilidade.
Nunca para ele.
— Eu sei o que você fez, seu merdinha.
Eu estava apenas me defendendo, é a resposta que qualquer um
daria no meu lugar.
Mas não eu.
Eu já sabia, já esperava.
Ele era covarde. Agia quando sabia que não tinha como me
defender. Não quando tinha o dobro do meu tamanho e meios para acabar
comigo em um piscar de olhos, ou pior, para acabar com Asher e mamãe.
— O que estava pensando ao tentar desfigurar o rosto do filho do
meu superior, seu moleque ridículo?
Não respondi. Apenas o encarei, do jeito que sabia que ele odiava;
como se eu não o temesse.
Mesmo com as mãos vazias, a antecipação pela surra fazendo-me
suar e a dor que corroía meu sangue depois, eu o olhava como se ele não
significasse nada. Porque era isso que simbolizava para mim. Nada.
— Vai ficar caladinho?
Soltei um riso nasalado, em deboche, o que só o enfurece mais.
— Vai aprender a se comportar como homem na porrada.
Quando o cinto de couro bateu contra minha boca com força, eu
não chorei.
Quando espremi as mãos para evitar o grito, meu corpo entrou em
chamas.
Quando fechei os olhos para não ver o choro do meu irmão, eu fiz
uma promessa.
Michael já era um homem morto.
Eu estava farto.
Aquele era o meu limite e Michael havia acabado de ultrapassá-lo.
Não deixaria mais que a minha família fosse submetida às
maldades de alguém como ele.
Era raiva que corria em meu sangue.
Ódio.
Ódio de Elisa por amar um monstro.
Ódio de quem quer que tenha achado uma boa ideia permitir que
um homem tão cruel como ele tivesse filhos.
Ódio dele, sobretudo.
Eu ardia com tanta ira dele que eu podia perceber em seu olhar que
ele sabia.
Meu genitor sabia que se um dia eu resolvesse agir, eu não
revidaria da mesma forma, porque não o deixaria vivo.
E foi isso que fiz.
Cada vez que ele me acertava, meu corpo se enchia da mais
profunda raiva.
Meu peito se debatia em cólera.
E meu sangue corria enfurecido.
Tudo.
Tudo doía, mas eu não o deixava ver o quanto me machucava.
Ele batia e eu o encarava.
Meus olhos ardiam.
A vista embaçava.
Ele me batia e esperava pela minha rachadura.
Mas ela não vinha.
Não havia mais nada que ele pudesse quebrar.
Nada que eu mesmo já não tivesse quebrado antes.
E ele ficava puto com isso. Com o fato de eu não temê-lo.
Para Michael, eu era uma decepção. Para mim, ele não era
ninguém.
Foi por isso que me arrastou para o seu quarto enquanto Asher
chorava silenciosamente por me ver naquela situação.
Foi por isso que me prendeu dentro dele.
Por horas.
Horas se passaram enquanto estive lá.
E eu planejei.
Eu planejei como o mataria.
Eu quis matá-lo.
Desejei por isso em todos os instantes daquela tarde e início da
noite.
Quando Elisa chegou, eu ouvi apenas o barulho da porta do quarto
tentando ser aberta em vão. Eu sabia que ele havia escondido as chaves,
mesmo assim, ela tentava abrir a fechadura.
— Já procurei em todos os lugares e não encontrei — Asher
contou, sua voz soando do outro lado da porta. — Ele levou as chaves,
mamãe.
— Benjamin? — Ela tentou novamente, mesmo sabendo que não
abriria. — Você está bem?
— Sim, mãe — respondi, tentando não transparecer na voz a
fadiga que sentia todas as vezes que respirava. — Não se preocupe.
— Não é verdade. — A voz do meu irmão soou estremecida,
nunca escondendo nada de Elisa. — Ele bateu no Ben com o cinto e deu
muitos chutes na costela dele. Acho que quebrou.
Conseguia ouvir o suspiro de Elisa. Assim como sabia que ela
estava se culpando por isso.
— Vá para a mesa, Ash, trouxe seu macarrão favorito — ela falou
para meu irmão, mas ele, sempre tão preocupado, não a obedeceu de
imediato, pois tudo ficou em silêncio por alguns segundos. — Vai, filho,
vou conversar com o seu irmão.
— Ele não fez nada, mamãe. Estava apenas defendendo a Donna.
— Foi a última coisa que ouvi ele dizer antes de seus passos se afastarem.
— Está quebrada, meu bem? — perguntou baixinho e preocupada
assim que ele pareceu um pouco longe.
— Acho que sim — disse, sendo sincero daquela vez. — Dói
bastante quando respiro.
— Desculpe, filho.
Ela não precisava de mais palavras para que eu entendesse o que
queria dizer.
Desculpe por amar um monstro.
Desculpe por não conseguir deixá-lo.
Desculpe por te manter aqui.
Era ruim estar aqui, nessa casa, onde as paredes eram construídas
de dor e o alicerce é formado por medo. Nessa casa, não habitava o amor,
perdão ou qualquer tipo de benevolência. Tudo sobre a família Dempsey
tinha a ver com violência.
E aquilo só ficou mais claro cinco minutos depois, quando a porta
de entrada se abriu novamente.
— Quem você pensa que é para tratar meu filho desse jeito? —
mamãe questionou, enfurecida.
Dava para ouvir tudo do quarto onde estava porque não havia
corredores ou muitas paredes. Era apenas um banheiro, um quarto e uma
sala que era dividida com a cozinha.
— E quem você pensa que é para falar comigo nesse tom?
— Michael, eu confiei meus filhos a você por um dia e olhe o que
faz!
— Fale baixo comigo — exigiu, e apenas pelo tom sei que ele se
aproximou dela, o que me deixava aflito.
— Eu falo da forma que eu quiser!
— Você precisa aprender a me obedecer!
A voz dele reverberou por toda a casa. Michael queria que
fizéssemos tudo do jeito dele. Principalmente, ela.
Quer que ela vista as roupas que ele dita. Que fale baixo. Que
apanhe calada. Que deixe seus filhos serem espancados. Que ela finja que o
ama incondicionalmente; apesar das traições, das drogas, da bebida, do
modo como ele fala, age, demonstra.
E a pior parte era saber que Elisa ainda acreditava que ele poderia
se tornar um bom homem. Ela pareceu acreditar em um amor que,
sinceramente, aos meus olhos, nunca existiu.
Acho que no fundo, ela vivia em um mundo de ilusões que criou
quando fugiu de casa para viver uma vida com ele. Quando abandonou sua
família, seus pais amorosos e seus luxos achando que ele seria a sua
salvação. A sua resposta para noites insones.
A realidade não foi tão suave com ela.
Elisa sempre me contou sua história. Ela nasceu em uma família
rica, que apesar da abundância de dinheiro, nunca deu para ela a atenção
que queria. Nunca pôde amá-la como uma garota boa e gentil que ela é.
Mas ele apareceu.
Michael apareceu e a manipulou com toda essa carga que ele fez
com que parecesse amor.
Não demorou até que ela deixasse tudo para trás e engravidasse
dele.
Não demorou até que ela entendesse que nada mudou quando
ultrapassou os portões da casa de seus pais. Elisa achou que havia ganhado
liberdade para voar, mas, na verdade, ela perdeu as asas que tinha.
Ele as cortou.
E se engana quem pensa que ele fez isso de uma vez, da forma que
transformaria a dor mais tolerável e a superação mais rápida.
Meu genitor cortou as asas da minha bailarina aos pouquinhos, em
pequenos pedaços que ela mal sentia sendo retirados, até que um dia, ela
não as tinha mais. Queria voar, mas não tinha como. Ela estava presa a ele.
— Eu não sou sua filha e meus meninos não são seus escravos! —
Elisa gritou de volta, fazendo o pânico voltar a tomar conta de mim.
Não tinha um bom pressentimento.
Elisa era corajosa. Eu gostava disso nela. E não era como se eu
quisesse que ela ficasse em silêncio enquanto ele enchia a boca para insultá-
la. Eu queria que Elisa ficasse em silêncio para preservar sua integridade.
Coisa que ela não fez naquela noite e em dia nenhum desde que o
conheceu.
Minha bailarina era sábia sobre muitas coisas. Menos quando o
assunto era ele. Ela se transformava em uma mulher boba, com sonhos
irreais e desejos inconcebíveis. Eu queria que ela pudesse me ouvir alguma
vez.
Queria que confiasse em mim quando dizia que se fugíssemos, eu
daria um jeito para nos manter. Daríamos um jeito de ficar bem. Só eu, ela e
Asher.
Eu sabia o que sempre vinha depois de desafiá-lo daquela forma. E
o simples pensamento me apavorava porque Elisa era quase como um anjo.
Não queria que nada de ruim acontecesse.
— O meu filho, não é um delinquente! — me defendeu. — Não
vou deixar você prendê-lo por causa de uma besteira.
— Benjamin precisa aprender que não sou nenhum dos amigos
dele e que se levantar a voz para mim, será castigado.
Não foi o único motivo por ter me batido.
Nunca era. Na verdade, ele sequer precisava de um. Bastava estar a
fim e ele o fazia.
— Ele estava apenas defendendo uma amiga, Michael, não pode
culpá-lo por isso.
— Ele deixou o rosto do menino desfigurado.
— E você vai e faz o mesmo com ele? — mamãe gritou de novo,
ainda mais alto que ele. Nunca a tinha visto tão enfurecida. Ela sempre me
defendia e isso sempre a deixava em maus lençóis, naquela noite, porém,
ela parecia cansada, no seu limite. — Que belo exemplo! É exatamente
assim que ele vai aprender a se comportar.
— Eu deveria prendê-lo! — Michael disse, num tom de ameaça. —
Quem sabe assim, aquele moleque não aprende de uma vez a ser gente! Ou
melhor deveria dar um fim nos dois! Asher parece uma menininha, com
medo de tudo e todos, já o outro inútil só me dá desgosto e vergonha! Seria
muito mais fácil se você parasse com essa idiotice de dar aulas de dança, e
eles tivessem a mãe em casa para educá-los.
Ele falava de nós como se fossemos um objeto. Era nojento a
forma natural que as palavras saíam de sua boca quando se referia a “dar
um fim em nós”. Era ridículo que aos olhos da sociedade, figuras como ele,
um policial visto como bonzinho, sempre eram aplaudidos.
— É mesmo, Michael? E como vamos alimentar as crianças?
Como vamos conseguir pagar as contas?
— O meu trabalho não conta?
— Por Deus, você gasta todo o seu dinheiro em bebidas e drogas
— mamãe disse, erguendo a voz novamente. — Sou eu que mantenho essa
casa de pé.
Precisava fazer algo antes que as coisas saíssem de controle. Antes
que ele se descontrolasse.
— Asher! — gritei, ainda preso no quarto e batendo na porta com
o máximo de força que conseguia apesar das dores. Eu aproveitaria a
discussão dos dois para tentar livrar minha mãe de qualquer maldade que
ele pudesse tentar contra ela. — Asher, vem abrir a porta.
O problema era que meu irmão não lidava bem com o medo ou
qualquer outro sentimento negativo. Asher paralisava. Literalmente. Suas
pernas travavam e o seu semblante se transformava em algo tão
aterrorizante que conseguia me atormentar por dias. Era por isso que eu
fazia de tudo para protegê-lo. Porque jamais conseguiria lidar com a ideia
de viver num mundo onde meu irmão não pudesse ter paz.
No entanto, sabia que assim como eu, Ash amava a nossa mãe
acima de qualquer coisa. Acima de qualquer medo. Eu sabia que ele viria.
Sabia que conseguiria destrancar a porta. Por ela. Por mim. Por nós três e a
família que nunca pudemos ser.
Ao passo que essa ideia pareceu irreal segundos depois.
Ouvi a cadeira se arrastar no assoalho, indicando que ele havia se
levantado. No entanto, foi um erro meu imaginar que Michael estaria
distraído demais com a discussão para notar algo porque consegui ouvir,
com exatidão de detalhes, quando a respiração da minha mãe e do meu
irmão ficaram suspensas e um clique que eu conhecia muito bem ecoou por
todo o lugar.
Ele era policial e, em seus dias bons, aqueles em que não cheirava
o pó que roubava das apreensões da delegacia, ele levava Asher e eu para lá
e atirava em qualquer coisa que achasse interessante. Sem se importar que
meu irmão e eu podíamos nos machucar por estar em um lugar com tantas
armas.
Tudo se fez silêncio. Eu mesmo duvidei de que estava respirando
naquele momento.
O desespero não dito podia ser palpável em qualquer canto da casa.
Para as pessoas do outro lado da porta, aqui dentro morava apenas uma
família confusa e briguenta, com um pai alcoólatra e uma mãe que
trabalhava mais do que suportava para poder dar dignidade aos filhos.
Mas nós sabíamos que aquilo era uma idiotice.
Acima disso, eu senti que aquela noite nos marcaria para sempre.
Eu era conhecido na vizinhança, no bairro e na escola por atrair
problemas maiores do que era capaz de lidar.
Aos olhos de todos, eu não tinha medo.
A realidade, porém, era outra.
Eu suportaria tudo. Enfrentaria a todos, abdicaria de tudo o que era
importante para que pudéssemos ter harmonia e paz.
Sem a presença de Michael.
E naquele momento, esse desejo só era reforçado em minha mente.
Por poucos segundos, minha mente viajou, lembrando-me de onde eu
deveria estar naquela hora da noite.
Com Donna. Conquistando nossos sonhos. Agarrando a única
oportunidade que eu tinha de tirar minha família daquela vida miserável e
manter a minha garota.
Minha mãe aprovava nosso relacionamento. Mas acho que, no
fundo, ela tinha medo que eu fosse como ele. Eu percebia isso todas as
vezes que a pegava encarando Donna com atenção, como se procurasse
qualquer sinal de que eu não era bom o suficiente.
E, de alguma forma, isso parecia me torturar. Não pela ideia de
minha mãe me achar um monstro. Mas a ideia de saber que ela sabia que
Michael não era bom para ela e ainda assim sempre o escolhia.
Mamãe nunca encontraria em Donna um motivo para se
decepcionar comigo. Não da forma como ela esperava.
As duas podiam vir de famílias semelhantes quanto à dinâmica
disfuncional, e eu poderia ser um homem pobre que queria arrancar Donna
da sua família, mas não para machucá-la. Nunca.
Eu queria formar uma família com Donna. Uma família de
verdade, mesmo que fossemos só nós dois para sempre. Desde que
mantivéssemos o respeito um pelo outro e que entendêssemos as
necessidades que tínhamos, tudo seria perfeito.
Nunca cortaria suas asas.
Nunca a aprisionaria em uma gaiola.
Nunca sequer a pediria para parar de voar.
Acho que talvez aquele fosse o meu problema em relação a Donna.
Ela poderia partir a hora que quisesse. E eu não a impediria.
Crescer vendo a minha mãe anular todas as suas vontades em prol
de um homem que sequer respeitava suas opiniões me fez entender que nem
tudo na vida se resolve com amor e palavras bonitas.
Amor não mata a fome.
Amor não cura.
Amor não satisfaz.
É o respeito que faz isso. É o respeito que cativa, que conquista e
faz ficar. Não o amor. Amor não é suficiente. Em nenhuma situação.
Se, em algum universo paralelo, Michael respeitasse Elisa, ele
nunca apontaria uma arma para o filho.
— Pai — ouvi Asher implorar, o medo era perceptível em sua voz
trêmula. As palavras saiam com dificuldade, como se doesse respirar com a
mínima possibilidade dele apertar o gatilho. E doía. — Papai, para com
isso. A mamãe… a mamãe só está nervosa.
Enquanto isso, meu coração esmurrava minha caixa torácica. E eu
sentia que essa dor era real. Porque as costelas doíam a cada respirada,
mesmo que curta — mais tarde, eu descobri que realmente as havia
quebrado e elas estavam comprimindo tudo dentro de mim, tornando tudo
mais insuportável.
— Asher, vem abrir a porta! Mano, abre a porta! — Minhas
palavras saíam em desespero ao passo que minhas mãos sangravam de
tamanha força que depositava para bater na porta de madeira maciça. A
cada soco, era como se estivesse quebrando meus dedos, todas as vezes que
a pele escorregava, eu sentia as farpas entrarem, entranharem em minha
carne como um espinho. — Grita, Asher. Grita!
Meu desespero não me fazia pensar. Eu não tinha opções.
As paredes do quarto eram grossas e eram coladas com os fundos
de um estabelecimento. Não havia janelas. Não havia como sair. O celular
velho e que mal ligava devido as vezes que Michael o arrancava de mim e
jogava longe não estava por perto. Não tinha como ligar para Donna e pedir
ajuda. Ou, ao menos, de dizer para ela que não a estava deixando. Que
aquela nossa briga de mais cedo era apenas um mal-entendido e que eu só
queria protegê-la.
Eu não podia chamar a polícia. Michael era um deles. E mesmo
que não fosse, não havia como fazer aquilo sem um meio de comunicação.
Não havia como ganhar tempo para que ele se acalmasse ou
qualquer coisa do tipo. Ele tinha uma arma. Estava apontando para eles.
— Papai, por favor. — A voz de meu irmão terminou de me
quebrar.
Eu senti.
Senti que era como ele. Meu pai.
Tão covarde. Tão inútil. Tão filho dele. Sangue do seu sangue.
Não havia saídas.
Nunca havia orado antes, sequer entendia quem era Deus ou o que
ele simbolizava, mas quando ouvir meu irmão implorar por misericórdia a
um homem que nunca nos respeitou, eu fiz uma prece.
Fiz uma prece usando o pouco de fé que tinha em qualquer coisa.
— Pare de implorar, Asher. Você precisa aprender a ser homem de
verdade. Ainda se lembra o que eu te disse sobre eles?
Homem de verdade.
Parecia uma piada a forma com que ele usava as palavras para
tentar nos dar um pingo de educação. Ele não era ninguém para ensinar
alguém a ser um homem, pois ele mesmo não era um. Michael não podia
nem mesmo ser considerado humano.
As coisas que ele dizia… aquilo deveria ser o suficiente para ser
exterminado da face da Terra. Era ridículo, hipócrita.
— Homens de verdade não choram. — Asher fez o que ele
mandou.
Pensei comigo naquele momento que era por isso que Michael
castigava Asher com mais brutalidade. Meu irmão tinha medo. Para ele,
Asher era como um fantoche, um boneco no qual ele podia controlar sem
muito sacrifício se usasse como ameaça a nossa bailarina ou a mim.
E doía pensar que meu irmão não se adaptaria àquilo. Seu medo
não era uma vergonha, nunca seria, embora ele sentisse vergonha disso. O
medo era uma proteção, uma que eu já não tinha a tempos.
Michael gostava de ver o medo e a dor nos olhos de Asher
enquanto o torturava. Fosse com palavras, fosse com força física.
Ele não sentia o mesmo prazer em me bater, embora também o
fizesse com mais frequência. Eu sentia medo. Mas bem no fundo. E não era
por mim. Era por eles. Por Asher. Pela minha bailarina. Mas nunca, sob
nenhuma hipótese, permitiria que Michael percebesse isso. Ele poderia me
bater até a morte e nunca encontraria em meus olhos um resquício sequer
do homem covarde que ele sempre foi e que tentou me tornar.
Esse trabalho, eu deixava para o espelho.
— E o que mais?
— Mulheres são uma fraqueza.
Asco. Nojo. Repulsa.
Acho que esses eram e sempre seriam os sentimentos que me
vinham à mente e que cruzavam o meu corpo quando se tratava do meu pai.
— Asher, grite!
Implorei. Com todas as minhas forças.
Alguém precisava intervir. Talvez não fosse tarde demais.
Exceto que era.
Foi tarde demais.
— O que acontece quando elas nos desafiam?
Elas são castigadas. Era isso que ele tentava ensiná-lo.
Para mim, não era isso que qualquer mulher representava. Muito
menos Elisa.
Ela era a mulher mais linda que já vi.
O amor da minha vida.
Elisa era a personificação do amor.
Ela reluzia em meio ao caos e a dor.
Tudo sobre ela, significava força.
Mamãe exalava vida.
Era um anjo.
Um anjo que se apaixonou por um monstro.
— Responda, Asher.
Eu sentia que não havia mais chances daquilo não acabar em
tragédia.
Foi por isso que pela primeira vez, em muito tempo, fiz o que
sempre jurei não fazer.
Chorei de medo.
As lágrimas banhavam meu rosto e fazia meu peito doer de tal
forma, que a dor física era a última coisa que eu conseguia sentir. Todos os
meus sentidos pareciam aguçados pelo medo de perder qualquer um dos
dois.
— Asher! Abra a porta! Por favor, venha abrir a porta. O que está
acontecendo?
As batidas na porta do quarto só aumentavam.
A porta já estava começando a tomar um tom de vermelho
escarlate onde eu batia.
— O que acontece, Asher? — pressionou, sua voz ainda mais
firme, como se ele precisasse que meu irmão fizesse aquilo para terminar de
fazer o que ele queria.
Destruir nossas vidas.
— Por favor, papai — meu irmão implorou. Mais uma vez. — Ela
não.
— Se não ela, quem? — Minha mão parou no caminho até bater na
porta quando o tom de ameaça soou. — Quem deveria ser castigado no
lugar dela?
— Não, não, não, não, Asher! — Foi a minha vez de implorar, mas
acho que sequer estava sendo ouvido. — Não diga isso, Asher, não dê a ele
permissão para isso.
— Eu, papai. Me machuque, mas não faça nada com a minha
bailarina.
Mas ele deu permissão. E a voz do meu garoto dizendo aquelas
palavras, pedindo para ser castigado, implorando para manter nossa
bailarina viva, foi o que me atormentou durante incontáveis noites.
Nem sempre é um bom momento para demonstrar coragem, foi o
que eu disse a ele certa vez, quando o ensinei a dar um soco da forma
correta, sem se machucar.
Aquele não era um bom momento para demonstrar coragem.
Não era o momento de ser corajoso.
Era o momento de usar a força dos seus pulmões para gritar por
piedade a quem quer que estivesse do outro lado da porta. Para pedir
misericórdia a Deus. Para implorar pela vida.
Não era a hora de quase implorar para ser morto.
Não quando Elisa estava ali.
Porque ela nunca lutou por ela mesma. Mas lutou por Asher. Por
mim. Por nós.
Por nós.
Nós dois, que nunca tivemos boas notas ou um bom
comportamento.
Nós dois, que sempre interrompíamos sua privacidade para ganhar
um abraço.
Nós dois, que a seguíamos como cachorrinhos.
Nós dois, que fomos um dos motivos para que ela não conseguisse
seguir o sonho.
Nós dois, que sempre a metemos em problemas maiores do que
nós mesmos.
Michael sabia que aquilo aconteceria. Sabia que Elisa lutaria por
nós sob qualquer tipo de ameaça.
— Mãe! — Ouvi o grito do meu irmão e em seguida, o baque.
E aquele som era… Deus, o som do corpo de Elisa caindo no chão,
ecoava em minha cabeça como uma sinfonia perturbadora, que eu sabia que
iria me acompanhar até o fim dos meus dias.
Eu não respondi mais por mim.
No instante seguinte, me senti como uma besta enjaulada que usou
de toda a sua força para sair de seu cativeiro e vingar quem o prendeu.
Asher reagiu. Sabia que sim porque ouvia o gemido dos dois no
que parecia ser uma briga corporal. Mas meu irmão não ganharia tão fácil,
não sozinho.
Não podia deixar nada daquilo acontecer com Asher.
— Isso que eu estou sentindo molhar as minhas pernas, é mijo? —
sua voz asquerosa soprou com dificuldade.
Tomei distância da porta e tentei uma, duas, três vezes seguidas.
Aquela madeira parecia ser a única coisa que tinha força naquela casa.
Parecia indestrutível.
E eu a derrubei mesmo assim.
A derrubei a tempo de vez Elisa se debulhar em sangue,
engasgando com ele enquanto tentava chamar por Asher, tentava pará-lo.
Tentava salvá-lo.
— Corra. — Foi a única palavra coerente que consegui ouvir e,
ainda assim, ela parecia um canto suave.
Elisa, que para mim sempre foi um sinônimo de vida, estava tendo
a sua esvaída do seu próprio corpo. Aquilo me trouxe a pior dor que já senti
na minha vida. Saber que eu tinha um pouco de culpa em como o rumo de
sua vida foi traçado.
— Se está me enfrentando, pelo menos tenha coragem de me
encarar, seu moleque filho da puta! — Michael estapeou o rosto de Asher
com tanta força que eu podia jurar que o som foi mais alto que o tiro. —
Seja homem, ao menos dessa vez, aproveite que estou sendo benevolente ao
te dar alguns minutos de vantagem.
Tomei distância da porta mais uma vez.
A arma parou sob meus pés quando Asher a empurrou para longe,
lutando para sair do aperto dele, que o prendia no chão.
Meus olhos desviaram para Elisa rapidamente. Seus olhos me
encaravam como se implorasse para que eu acabasse com aquele pesadelo
de uma vez por todas. Ela sabia que não sobreviveria. Mas queria que Asher
e eu o fizéssemos por ela.
— Seu filho de uma puta — xingou meu irmão quando conseguiu
ficar por cima dele, colocando as mãos em seu pescoço como se estivesse
prestes a sufocá-lo.
Eu tive tempo para pensar no que fazer.
Eu podia sair dali e pedir por ajuda.
Mas não fiz.
Nunca faria.
Nunca, sob nenhuma hipótese, deixaria Michael viver mais uma
noite. Nem que, para isso, eu tivesse que ir junto com ele. Nem que para
isso, eu precisasse matá-lo com as minhas próprias mãos, sem precisar usar
uma arma ou seja lá o que estivesse ao alcance das minhas mãos.
Os dois barulhos soaram ao mesmo tempo.
As sirenes e o tiro.
Meu corpo nem mesmo sentiu o impacto que a trinta e oito deu
quando acertei a bala em sua cabeça.
E então meu choro explodiu na sala.
Empurrei seu corpo sem vida de cima do meu irmão antes de ir em
direção a ela, que antes tão cheia de vida, agora tinha seu rosto estampado
pela morte.
— Mãe, abre os olhos! — gritei, nervoso, batendo no rosto pálido
dela, mesmo sabendo que aquilo não adiantaria. — Bailarina, por favor.
Ergui seu corpo, deitando-a em meu peito com cuidado, como se
ela fosse a coisa mais preciosa que eu tinha na vida. E era.
Elisa era o meu grande amor.
Aquela mulher era a minha força quando eu não sabia o que isso
significava.
— Mes amours — sua voz doce sussurrou. A mão esquerda
segurou meu braço e a direita se apoiou entre os cabelos de Asher, que
assim como eu, implorava para que a vida retornasse a ela. — La ballerine
continuera à danser dans vos coeurs[12].
Mamãe fechou os olhos.
Sua mão perdeu a pouca força.
Asher e eu gritamos, nos agarramos cada vez mais no corpo gelado
e sem vida da mulher que nos deu à vida, mas que agora estava sendo tirada
de nós.
Os olhos da mulher mais linda do mundo estavam opacos. Mortos.
E tudo o que eu conseguia pensar era que deveria ter pego aquela
arma antes. Muito antes daquela noite. Eu deveria ter matado Michael
antes. Poderia ter acabado com o nosso sofrimento. Poderia conviver com a
ideia de Elisa me achar um monstro por matá-lo se isso a libertasse da
gaiola.
Eu poderia ter apreciado a dança da minha bailarina favorita por
mais tempo.
Quando a polícia arrombou a porta, não questionaram nada. Não
perguntaram como aquele sangue todo foi parar ali, nem como dois
adolescentes estavam segurando um corpo sem vida no meio da sala.
Alguém gritou sobre eu ser a desgraça daquela família e eles só
precisaram daquilo para me segurarem com toda a força e me arrancar dali,
fazendo com que o corpo de Elisa batesse contra o chão e Asher se
desesperar ainda mais.
Ele era só um garoto.
Eu perdi a minha bailarina, mas naquele momento eu só conseguia
pensar que Asher também havia perdido tudo. Por minha causa. Porque eu
não agi antes. Porque não lutei por nós antes. Eu iria para a cadeia e ele
ficaria sozinho.
Ele era só um garoto.
E se jogou sobre mim, agarrando minhas pernas com força e sendo
arrastado junto comigo enquanto me levavam para longe, implorando em
meio ao choro para que me soltassem.
Aquilo terminou de quebrar o restante do meu coração. Piorou
quando vi chutarem seu queixo, desmaiando-o na mesma hora e o fazendo
me soltar.
Semanas depois, quando consegui notícias de que ele não estava
desabrigado, consegui respirar fundo pela primeira vez. Mas não estava
aliviado.
Asher sempre me visitava. Mas eu nunca deixava que chegássemos
ao assunto daquela noite. Não queria ter que revivê-la, embora sempre o
fizesse. Não queria que ele se culpasse. Não quando sabia que nossas dores
em relação àquela noite podiam ser diferentes mas doíam na mesma
intensidade.
Deixei Donna sozinha, na competição que deveria ser a que
mudaria nossas vidas.
E nunca mais ouvi falar dela.
Minha bailarina parou de dançar.
Mas no meu coração, sua dança nunca teria fim.
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
O Quereres | Caetano Veloso

Todas as coisas da minha vida foram moldadas com o quase.


Eu tinha tudo para ser perfeita.
E quase consegui.
Quase fui a filha perfeita.
Quase fui uma boa irmã.
Quase consegui alcançar meu sonho.
Quase fui uma patinadora incrível.
Quase fui o suficiente para minha filha.
Fui criada para ser perfeita. Então, quase ser faz eu me sentir
impotente.
Pequena.
Fracassada.
Inútil.
Não me sinto assim apenas em uma coisa.
Me sinto assim em absolutamente tudo.
Então quando digo que quase fui perfeita, quero dizer que cheguei
mesmo muito perto de ter tudo o que sempre foi desejado por mim.
E o gosto amargo que toma minha boca todas as vezes que me dou
conta disso é ruim para caralho. Me traz questionamentos e lembranças das
quais gostaria de esquecer.
Há seis anos, em dez de junho, eu quase consegui.
Se Benjamin e eu tivéssemos nos apresentado, teríamos ganhado.
Eu tenho certeza disso, como sei que o céu é azul.
Se tivéssemos ganhado, algum tempo depois, descobriríamos a
gravidez.
Teríamos decidido o que fazer juntos.
Nove meses depois, eu não estaria sozinha em um hospital.
Eu teria alguém segurando a minha mão.
Ele teria cortado o cordão umbilical.
Seria ele a tirar nossa foto.
Veríamos Elisa crescer. Juntos.
A criaríamos de uma forma totalmente diferente da qual fomos
criados.
E estaríamos felizes. Juntos. Nós três.
Era assim que tudo deveria ter acontecido.
Quase aconteceu.
Ao invés de tudo isso, assisti todas as outras apresentações do
banco. Com a cadeira ao lado vazia.
Chorei quando chamaram nossos nomes para nos apresentarmos e
ele não surgiu de lugar algum. Tudo ruiu quando ouvi, em alto e bom som,
que estávamos desclassificados.
Piorou quando saí de lá, o procurei em todos os cantos, e não o
encontrei. Por anos.
Eu ainda estava sozinha em Boston.
Matteo e Alessandro ainda estavam em seus respectivos castigos e
minha mãe nem mesmo se importava a que horas eu chegava em casa. Não
preciso dizer que a única preocupação do meu pai era me manter longe dos
meus irmãos.
Estive sozinha na sala de parto.
Não havia ninguém segurando a minha mão.
Uma enfermeira tirou a nossa foto.
Criei Elisa com a rede de apoio que consegui. No entanto, de uma
forma ou de outra, sozinha. Porque achei que, em algum lugar, ainda tinha
Ben, Elisa e Asher para chamar de família.
Mas, de um instante para o outro, todos sumiram.
Em How I Met Your Monther, há um episódio em que Ted diz que
há alguns minutos que duram segundos e há alguns segundos que podem
durar uma eternidade.
Todos os segundos daquela noite foram perpétuos.
Todos os segundos daquela noite queimam em mim até hoje.
E agora, parecem reacender ainda mais.
“Fui preso naquela noite.”
“Matei meu pai.”
As palavras são ditas sem um resquício de culpa ou emoção. Como
se essa situação fosse a coisa mais normal do mundo e mesmo sabendo que
há um motivo por trás disso, não deixa de me assustar.
Eu sabia que as cicatrizes que Benjamin carregava e os
machucados arroxeados que vez ou outra apareciam em seu corpo não eram
provocadas por quedas, e que aquilo com certeza era algo que acontecia
dentro de casa. Mas nunca conversamos sobre, porque assim como eu não
falava do meu, Ben fazia o mesmo em relação ao seu genitor.
Era quase como um acordo silencioso.
Elisa, Asher, Matteo e Alessandro eram os únicos nomes que
tocamos quando o assunto era família.
Nunca Michael. Nunca Francesco.
— Donna… — ele diz, meu nome escapando da sua boca com
cautela, fazendo-me engolir em seco. — Posso te explicar tudo.
Pisco devagar, tentando sair do torpor em que minha mente me
colocou e volto à minha atenção sobre ele, apenas então o vendo de
verdade.
Benjamin está mais alto agora, também está mais forte do que era e
do que imaginei que estaria quando pensava nele. Os cabelos continuam tão
pretos quanto a noite e os olhos… parecem tão mais tristes.
Tudo nele parece exalar tristeza.
E acho que hoje, eu também me sinto assim.
Triste.
E cansada. Também estou muito cansada. Como se precisasse me
esforçar até mesmo para respirar e piscar.
Minhas costas estão pesadas e eu preciso esconder as mãos atrás do
corpo para que não perceba o quão trêmulas estão.
Tudo à minha volta parece girar em câmera lenta.
Nada parece fazer sentido.
— Eu… — Preciso engolir em seco antes de prosseguir, o nó em
minha garganta parecendo grande demais para que eu consiga dizer frases
complexas sem chorar como uma garotinha. — Desculpe, não sei o que
dizer. Você… preso… o que… o que seu pai fez? Eu… não entendo.
As palavras saem da minha boca nitidamente confusas e espaçadas.
Elas soam estranhas até mesmo para os meus ouvidos.
— Donna, você está bem? — Ele se preocupa.
Minha respiração desregula um pouco mais quando assinto e o
vejo dar um passo para a frente e eu faço o mesmo, só que para trás.
E juro que consigo ver Benjamin se quebrar diante de mim quando
me afasto.
— Preciso de café.
E parar de alucinar.
E voltar à vida que tinha uma semana atrás, sem você confundindo
a minha cabeça e fazendo-me ter medo de perder a minha filha, mesmo que
isso não tenha a menor chance de acontecer.
E pensar direito.
Giro meus calcanhares em direção à saída, sabendo que ele me
acompanha de longe e, por isso, preciso fazer um esforço astronômico para
não deixar nenhum passo falhar enquanto caminho até a cafeteria da Arena.
O lugar está quase vazio quando chegamos. Há poucas mesas
ocupadas e eu caminho até a mesa mais afastada, sabendo que irei precisar
disso.
Espaço.
Envio uma mensagem a Dinara, pedindo para que ela avise a
Isabella que irei precisar dela por mais algumas horas. A resposta vem de
imediato, junto à pergunta se eu já tomei a minha decisão.
Resolvo ignorá-la por ora.
Benjamin se senta à minha frente com um suspiro, ao passo que a
atendente se aproxima, com um bloquinho de notas em direção a Ben.
Lauren me deseja bom dia, mas nem mesmo pergunta o que quero, sabendo
que é sempre a mesma coisa.
— Um café com leite, por favor — ele pede, sorrindo com
gentileza para ela.
E isso me deixa um pouco mais irritada do que já estou.
Lauren se afasta e eu finalmente tomo coragem de encará-lo,
percebendo que ele já o fazia comigo.
É a minha vez de suspirar.
— Preso? — pergunto, querendo ter certeza. Benjamin assente. —
Por quê?
Seus olhos deslizam para a janela ao lado.
E o silêncio volta a tomar conta.
— Benjamin? — chamo, lembrando de uma pergunta ainda mais
importante, que pode ter tudo a ver com essa história. — Onde está a sua
mãe?
Um minuto se passa.
Dois, talvez. E tudo o que ouço é a respiração desregulada dele.
— Ele a matou.
Meu estômago revira.
E então entendo o motivo do seu silêncio quando perguntei.
Ele não consegue dizer em voz alta.
— E então você fez o mesmo com ele.
— E levei a culpa pelas duas mortes.
Engulo em seco.
Porra.
Elisa era a vida de Benjamin. O mundo dele orbitava em torno
dela. Era um amor lindo de se ver e, no fundo, eu tinha um pouco de inveja.
Queria amar e ser amada pela minha mãe da forma como eles se amavam.
Era nítido nos olhares, nos carinhos e na forma de falar o quanto
eles eram unidos.
Eu nunca acreditei em outras vidas, mas se acreditasse, diria que
Benjamin e sua mãe reencarnaram juntos em todas elas.
— Sinto muito — é a única coisa que consigo dizer. — Por que
nunca me contou?
Ben finalmente me encara.
— É sério, Donna? — pergunta, sendo irônico. — É claro que eu te
procurei, e fui ignorado todas as vezes. E você é a última que poderia
perguntar isso, já que além de não ter feito o mesmo, escondeu uma
gravidez. Uma filha.
Preciso respirar fundo antes de abrir a boca, evitando falar muito
alto já que Lauren se aproxima, colocando nosso pedido na mesa. Ela sai
em um piscar, percebendo que o clima não é o melhor de todos.
— Eu procurei, Benjamin. Te liguei inúmeras vezes, revirei Boston
de um canto ao outro, mesmo sabendo que podia ter faltado àquela
competição apenas por birra.
Ele parece processar minhas palavras. Como se apenas agora se
desse conta de que eu também o procurei. Mas também parece entender
uma das coisas que passou pela minha cabeça, ao menos na época.
— Nunca te deixaria sozinha por uma besteira.
— Deu uma surra tão forte em Renè que o mandou para o hospital
— refuto sua resposta na mesma hora. — Ele precisou de meses em
habilitação para voltar a patinar.
— Por que fala dele como se ele fosse um coitadinho, porra?! —
Seu tom é comedido, embora eu possa sentir a raiva no tom. — Ele te
assediou, caso tenha esquecido. O que esperava que eu tivesse feito?
— Um soco bastava.
— Uma surra não foi o suficiente.
— E você queria fazer o quê? O mesmo que fez com o seu pai?
Benjamin fecha os olhos, espremendo-os, como se desejasse não
ter ouvido isso.
Eu me arrependo das palavras assim que elas saem da minha boca,
sabendo que não são situações comparáveis, contudo, não retiro minhas
palavras.
Acho que, no fundo, mesmo que eu entenda o que ele fez — e eu
entendo mais do que gostaria —, é como se eu sentisse a necessidade de
machucá-lo, mesmo que inconscientemente. É errado, mas não consigo
evitar.
— Renè teve sorte de não ter quebrado nada além da perna. Foda-
se que ficou em reabilitação por meses, e foda-se ele. — Tudo é dito em um
tom sistemático, cauteloso. — Eu faria tudo novamente e esse não foi e
nunca seria o motivo pelo qual te deixaria em um momento importante para
nós dois.
Problemático.
Era assim que todos o conheciam.
O garoto problemático, filho da professora de balé e francês.
Benjamin não fugia de uma briga ou discussão sequer.
Bastava ter alguém que tinha o mínimo de afeto envolvido e ele
assumia qualquer problema para si.
Dez de junho foi um dia atípico.
Renè já havia feito aquilo algumas vezes, contudo, nunca havia me
tocado. Eram sempre palavras e frases que me deixavam constrangida
demais para contar a alguém e sempre em momentos que eu estava sozinha.
Mas naquele dia, Renè estava disposto a uma briga, e quando
passou próximo a nós com seu grupo de amigos e me chamou de gostosa
antes de estapear minha bunda como se aquilo fosse uma rotina, ele
conseguiu uma.
Benjamin não pensou duas vezes antes de partir para cima dele.
Renè nunca teve chances, embora pensasse que sim.
Nós dois discutimos no caminho da minha casa. Dissemos coisas
ruins. Ben achou que eu estava tentando proteger Renè e eu estava tentando
fazê-lo entender que aquilo não era sobre o garoto idiota. Aquela briga
poderia tomar outras proporções e ele poderia não se apresentar à noite.
Eu entrei em casa chateada.
Não me despedi dele.
E aquela era a última memória que eu tinha de nós dois durante os
últimos seis anos até essa semana.
— O pai dele era superior ao meu. Michael ficou sabendo assim
que cheguei em casa e, antes de me trancar no quarto, me deu uma surra
que chegou a quebrar as minhas costelas. Ele esperou Elisa chegar porque
sabia que ela iria confrontá-lo e fez isso na frente de Asher. Ele atirou
quando Elisa tentou protegê-lo e teria feito o mesmo com o meu irmão se
eu não tivesse arrombado a porta e puxado o gatilho.
Ele respira fundo depois de soltar as palavras sem sequer respirar
direito, e seus braços se movem debaixo da mesa, como se estivesse
esfregando as mãos na calça jeans.
— Não era como se eu tivesse a melhor reputação do mundo e
Michael era conhecido como um bom policial, então não perguntaram nada
antes de me levarem. Asher acabou sendo desmaiado na hora e foi mandado
para nosso tio Marlon no dia seguinte. Ele tentou te procurar algum tempo
depois, quando conseguiu algum dinheiro e ir de novo a Boston, mas além
de ser difícil para ele pisar naquela cidade, você não estava em casa e sua
mãe se recusou a dar qualquer informação.
É claro.
Briana nunca apoiou meu relacionamento com Benjamin, embora
não interferisse diretamente ou contasse para meu pai sobre, eu sabia que
ela tinha a consciência pesada, não por ter me vendido, mas por eu saber
disso. E eu usava disso — e de mais dinheiro — para mantê-la calada em
relação ao meu genitor.
Ash deve ter me procurado provavelmente depois do meu parto, e
minha mãe apenas tomou liberdade de fazer com que a informação não
chegasse até mim. E isso não me surpreende em nada.
— Eu te liguei todas as vezes que tive direito a uma ligação e te
enviei, pelo menos, duzentas cartas — diz, sério. — Não entendo como
pode dizer que nunca te procurei quando tudo o que tentei, durante os
últimos seis anos, era me explicar para você.
— Eu não recebi nada — digo, me sentindo estranhamente
desconfortável por isso. — Matteo e Alessandro tentaram te procurar, mas
não tiveram sucesso. Sempre que pareciam chegar perto de algo, parecia em
vão. E então… desistimos.
Desisti de você, é o que quase falo.
Porque é verdade.
Em algum momento, minha frustração me venceu e eu não tinha
mais forças para procurar por respostas. Parecia que ele havia me
abandonado, então, eu apenas acreditei nisso e tentei seguir minha vida.
Agora, no entanto, me sinto um pouco mal por isso. Segui a vida
sem ele, enquanto ele ainda assim, tentou me contatar.
— E sobre Lis…
Não deixo que ele conclua sua frase, interrompendo-o.
— Não precisa se preocupar quanto a isso, nós duas nos viramos
bem sozinhas e temos meus irmãos conosco. Não quero que se sinta
obrigado a nada, ela é minha e eu vou entender se…
— Ela é nossa, Donnatella. — Suas palavras são carregadas de
firmeza. — Não vai me jogar fora desse barco agora.
Pisco devagar, tentando entender suas palavras. Ela é nossa. O que
isso deve significar? Que ele a quer ou…
— Quando iremos contar para ela? — ele interrompe meus
pensamentos, fazendo-me erguer as sobrancelhas o máximo que consigo.
— Contar o quê, exatamente? — pergunto, confusa. De repente,
todo o assunto parece ter sido mudado.
— Que eu sou o pai dela?!
Ergo as sobrancelhas, vendo-o dar uma golada em seu café
enquanto o meu continua intocável.
— Acabou de descobrir e já quer contar?
— Você quer esperar mais? Seis anos não foram o suficiente?
Engulo em seco e assumo uma postura um pouco mais
apaziguadora, lembrando sobre a conversa que a minha pequena e eu
tivemos na semana passada.
— Olha, sobre isso… talvez devêssemos ir com calma.
— Por quê?
— Porque ela tem procurado respostas sobre você desde sempre e,
no último aniversário, tivemos uma conversa que… — mordo o lábio,
olhando para qualquer lugar que não seja ele — meio que acabou a fazendo
desistir de te esperar.
Silêncio.
— Vinte e sete de março?
— O quê?
— O aniversário dela — explica. — Essa é a data?
Assinto.
— Por quê?
— Em todos os anos, eu ficava… estranho nessa data, quando
estava preso — diz, parecendo confuso enquanto associa minhas palavras.
— Era como se algo estivesse acontecendo e… foi nesse dia que cheguei à
cidade. À noite, eu encontrei Lis no quintal da minha casa.
— Sua casa?
— Acho que somos vizinhos.
— Meu Deus, isso não pode estar acontecendo. — São as únicas
palavras que consigo dizer, incapaz de sequer entender o que está
acontecendo.
— Eu perguntei o motivo de ela estar sozinha tão tarde no quintal e
ela me disse que estava libertando alguém — continua, ignorando meu
estado quase catatônico, encarando a mesa como se estivesse montando as
peças de um quebra-cabeças. — Eu. Ela estava me libertando?
Suspiro fundo, tentando pensar no que fazer de agora em diante.
Pelo visto, nós três estamos muito ferrados para tentar desvendar isso.
— Ela vai entender quando contarmos — respondo, embora sua
pergunta seja retórica. — Lis é uma boa garota, ela vai entender que isso
tudo foi um mal-entendido.
— Quando?
Dou de ombros, com medo de abrir a boca para dizer algo e acabar
quebrando ainda mais em sua frente.
— Eu preciso ir — é apenas o que respondo. — Preciso cuidar da
Lis.
Benjamin anui e já estou de pé, então ele pergunta:
— Vamos conversar mais sobre isso, certo? — Consigo sentir a
insegurança em sua voz. — Sobre os últimos anos e sobre Lis?
Assinto, embora não saiba como isso pode acontecer.
— Depois de amanhã, temos nosso primeiro ensaio. Se chegar
antes, podemos conversar na cafeteria da Arena, ou depois.
— Primeiro ensaio? — Ben questiona, visivelmente surpreso. —
Significa que…
Não que seja o momento para isso.
Não que ele seja algum tipo de vilão.
Não que eu queira tratá-lo mal.
Mas a vida que lutei e estou lutando para conquistar está
começando a desmoronar bem diante dos meus olhos de novo, e ter
Benjamin por perto só vai piorar tudo, afinal, é a sua presença que está
causando isso.
É por isso que antes de me levantar e ir embora, as palavras que
pronuncio são:
— Significa que eu não tenho outra opção.
Crescer precocemente
Às vezes significa não crescer de jeito nenhum
(...)
Só Deus sabe as palavras que nunca ouvimos
But Daddy I Love Him | Taylor Swift

Sandor Ferenczi[13] tem uma metáfora reflexiva sobre a fruta


bichada.
Quando uma fruta que ainda está no pé é picada por um
passarinho, ela não apodrece. Ela amadurece antes do tempo.
Às vezes, sinto que sou uma fruta bichada.
Por fora, sou uma patinadora em ascensão com toda atenção da
mídia e o favoritismo pelo prêmio maior.
Por dentro, sou uma adolescente chorona, com uma barriga de
nove meses de gestação e sozinha.
Há um momento na maternidade, em que não importa quem esteja
do seu lado, quando as luzes se apagam e tudo o que te resta é uma mente
fértil e um bebê no quarto ao lado, a solidão parece ser a única companhia e
os pensamentos intrusivos te abraçam como ninguém.
Tive uma rede de apoio crucial. Mas isso aconteceu apenas depois
que Lis veio ao mundo.
Voltei para Lake Thorne e meus irmãos foram e são essenciais em
cada momento. Me ajudaram desde trocar fraldas, a dormir mais de três
horas por noite.
Eles a ninavam, contavam histórias – ainda que ela não entendesse
–, a faziam rir e não a deixavam sozinha em nenhum instante.
Matteo era meu apoio quando Lis precisava mamar e eu estava
cansada demais para sequer erguer meu tronco. Meu irmão se sentava atrás
de mim e segurava Lis até que ela estivesse satisfeita. Depois, a colocava
para dormir e voltava para o meu quarto, para me ajudar a dormir.
Alessandro cuidava da limpeza da casa, me ajudava com as dores e
até mesmo trazia pessoas para me fazer massagens. Ele me dava comida na
boca quando eu me recusava a fazer por mim mesma.
Eles me abraçavam bem forte quando eu ficava com medo do dia
seguinte e sentia que não daria conta de cuidar dela.
Eu não teria conseguido sem eles. Reconheço e sou grata por isso.
Ainda continuo tendo essa rede. E é justamente por eles que
procuro quando peço para Isabella ficar com a minha filha pelo resto do dia
porque preciso ficar com os meus irmãos e processar as últimas
informações. Além de ser secretária do meu irmão Alessandro, os dois
também são melhores amigos desde muito antes de Lis nascer, o que a torna
uma das poucas pessoas que confiamos para cuidar dela. Apesar de que
minha filha tem um pé atrás com ela. Mas isso é tudo culpa de Matteo, que
começou uma briga boba com ela e levou Lis a tratar Isabella com
desconfiança.
— O que aconteceu? — Ale dispara assim que entro. — Bella
disse que você não parecia nada bem.
As lágrimas escorrem do meu rosto com força. E tenho certeza de
que estou encarando eles da mesma forma que Lis faz quando machuca o
joelho.
— Ele estava preso — é o que digo, minha voz saindo em um fio
trêmulo.
Quando ouço o que eu mesma digo, é como se a verdade me
atingisse.
Ele não me abandonou.
Ele não rejeitou nossa filha.
Ele estava preso.
E, durante todo esse tempo, nem ele e nem Ash nunca conseguiram
se comunicar comigo.
Enquanto eu estava aqui, achando-o egoísta e julgando seu caráter,
ele estava preso. Passando por situações que poderiam ter sido desumanas.
Preso.
— Nós… — Alessandro começa, me guiando até o sofá, mas em
seguida pigarreia ao olhar para Matteo, que balança a cabeça em negação.
— Eu sabia.
Encaro meu irmão, sem entender suas palavras. É como se elas
fossem um amontoado de coisas voando à minha frente, mas sem um nexo.
Como pedaços de uma fotografia que foi rasgada em milhares de
pedacinhos e eu não soubesse por onde começar a colar.
Então, a minha única reação é rir histericamente, torcendo para
que, a qualquer momento, eu acorde da porra desse pesadelo e tudo volte ao
normal. Ao que estou acostumada e sei lidar.
— Não seja bobo — rebato, séria. — Sabe que não gosto disso.
Estamos falando de um assunto sério e que está me deixando louca. Então
será que pode parar de gracinhas e apenas me ouvir?
Alessandro suspira e seus olhos fogem de mim.
Essa é a fraqueza dele.
Olhar nos olhos quando sabe que está errado.
Alessandro tem a tendência de tentar nos proteger de, literalmente,
tudo o que ele considera perigoso. Desde uma formiga à uma bomba. Só
que desta vez, parece que quem fez a bomba explodir no meu rosto é
exatamente ele.
— Você sabia disso? — Viro-me para Matteo.
Ele assente, mesmo pesaroso.
Minha boca amarga, de repente.
Sinto o gosto da traição e da revolta tomando todo o meu paladar e
subindo por cada via sanguínea em meu corpo.
— Por que esconderam isso de mim? — pergunto. Essa é a única
coisa que consigo dizer. — Eu sou adulta, sei lidar com os meus problemas.
— Engravidou aos dezessete — Matteo rebate, rapidamente. —
Foi irresponsável.
As palavras me paralisam por um segundo.
Eu ouvi mesmo isso?
Elisa é o mundo para esses dois. Eles a amam e é recíproco. Mas,
quando o assunto é ter engravidado dela, nas circunstâncias em que
aconteceu, nossa conversa evolui para uma discussão.
— Engravidei aos dezessete. Fui irresponsável, mas arquei com as
consequências dos meus atos até o fim — respondo-o, meu tom já alterado.
— E espero que diga isso sabendo que nenhum dos dois têm culhões de
falar sobre responsabilidade, quando vocês sempre fazem o oposto disso.
— Ei, ei — Alessandro se intromete. — Um assunto não tem a ver
com o outro.
— Não? — questiono, voltando minha atenção para ele. — Matteo
agiu com responsabilidade quando quase pôs tudo a perder quando cedeu
para Francesco e se deixou ser levado para a Itália? — começo a falar,
calando-os, porque sabem que estão errados. — E você? Agiu com
responsabilidade quando quebrou o coração de * por puro ego?
— Não fale sobre coisas que não sabe, Donnatella — meu irmão
diz, seus olhos se tornando sombrios.
Sei que ela é um assunto em que nunca tocamos. Assim como a
relação entre Matteo e Francesco. Assim como tudo o que envolve a
paternidade de Lis.
São os nossos pontos fracos. Nunca tocamos nesses assuntos. Mas
essa é uma linha que sinto a necessidade de cruzar hoje. Preciso fazer isso
depois de descobrir que cruzaram a minha linha seis anos atrás.
— Ou o quê? — explodo. — Vai dar um jeito de me mandar para
longe como fez com Francesco?
Nesse momento, já estou jogando para a puta que pariu todos os
nossos pontos fracos. Estou ligando o foda-se para o problema deles. Eles
sabiam que Benjamin não havia me abandonado e me deixaram pensar isso
por todos esses seis anos.
— Olha as merdas que você está falando — responde, balançando
a cabeça como se eu estivesse louca. — Você é minha irmã, nunca te faria
mal.
— É exatamente o que vocês estão fazendo comigo há seis anos!
— Não é bem assim — Matteo intervém. — Acho melhor você
respirar fundo, porque essa discussão não vai nos levar a lugar algum.
— É claro que não vai nos levar a lugar algum, porra! — grito,
querendo expulsar de mim a sensação de traição que parece estar me
corroendo. — Olha a merda que vocês fizeram!
— Estávamos te protegendo! — Alessandro se levanta, tentando
chegar até mim, mas eu estendo a minha mão, detendo-o. — Estávamos
protegendo Elisa, Donna! Entenda, per favore[14].
Eu quero acreditar que eles fizeram isso por acharem que é a
melhor opção. Realmente quero.
Mas, no momento, o que queima em meu peito é a sensação de
traição.
Me recuso a pensar que eles realmente acreditaram que essa era a
única opção. Que era uma boa opção. Eles sequer pensaram em mim antes
de decidir algo que não diz respeito a eles, a dor ou a vida deles.
— Me mantendo longe do amor da minha vida? Fazendo-me
pensar que fui abandonada enquanto estava grávida? Deixando-me viver os
últimos seis anos odiando alguém que nem mesmo sabia o que havia
acontecido comigo? Deixando minha filha pensar que foi rejeitada pelo pai?
Me fazendo chorar por vê-la chorar por um pai que estava impedido de vê-
la e não sabíamos?
— Eu conheço a prisão, Donna! — Alessandro se altera. — Sei
muito bem o que esses lugares podem fazer com a nossa cabeça. Acredite
em mim, eu…
— Pare! — peço, já chorando. Não consigo me controlar. Não
consigo sequer raciocinar o que estou pensando. — Precisa entender que
nem tudo é da forma que você enxerga. Benjamin não é um monstro.
— Está querendo dizer que eu sou?
Suspiro, deixando mais lágrimas rolarem pelo meu rosto.
São lágrimas de dor. Elas têm gosto de traição.
Meu irmão não é um monstro. E sei que escolhi as palavras erradas
para descrever Ben, porque foi exatamente assim que Francesco tratou Ale
por tantos anos. Como um monstro. Um filho indesejado. O fruto de uma
traição com uma empregada que deu à luz e simplesmente sumiu no mundo.
Embora esteja machucada, e queira que eles ao menos entendam o
motivo, não posso usar essas palavras. Ultrapassa nossos limites. E não é
verdade. Alessandro é um homem bom.
— Sabe que não. — Meu tom volta a ser cauteloso. — Você é meu
irmão, foi para a cadeia por culpa de alguém ruim. Diz que sabe o que
aquele lugar pode fazer na cabeça das pessoas, mas não parou para pensar
no que acontece com as pessoas que ficam de fora.
— É diferente.
— Eu vi quando te desmaiaram — respondo, vendo os dois
ficarem subitamente tensos. — Eu vi o que ele fez com você. Sei o motivo
da sua tatuagem. Francesco me fez assistir tudo. Inclusive quando te
levaram. Fiquei anos sem saber como você estava e isso me dilacerou,
Alessandro. Porque tive medo de te perder.
— Donna… — Matteo pede, tentando me tocar, mas me esquivo
dele. — Por favor, não vamos falar sobre isso agora.
— Eu quero. Preciso falar sobre isso — digo, encarando-o
enviesada. Sei que está fazendo isso para que Alessandro não se sinta mal,
mas esse não é o problema aqui. Ele precisa entender o porque me esconder
isso foi errado. — Benjamin me salvou, Alessandro. Quando fui para uma
cidade distante de vocês e sem contato com tudo o que conhecia a minha
vida toda, Benjamin me encontrou e me salvou. Foi irresponsável da minha
parte ter engravidado naquela idade, mas nunca me arrependeria disso. A
única coisa em que estou arrependida no momento é de ter confiado em
alguém que sabia onde o pai da minha filha estava, esse tempo todo, e
preferiu me ver definhando e sofrendo por isso, ao invés de ter feito alguma
coisa.
— Donna, tente enxergar as coisas de outra perspectiva… —
Matteo tenta, mais uma vez.
— Por que vocês não fazem o contrário? Por que não enxergam da
minha perspectiva? Eu estive sozinha.
— Você tem a nós — garante.
— Agora, quer dizer que agora, tenho vocês. Mas não tive vocês
quando meu sonho desmoronou à minha frente. Não tive vocês quando
revirei aquela cidade atrás dele. Não tive vocês quando descobri a gravidez.
Não tive vocês para segurar a minha mão na sala de parto. Você — aponto
para Matteo — estava do outro lado do mundo, sendo treinado para ser o
patriarca da nossa família. E você — aponto para o outro. — desligou na
minha cara quando disse que estava grávida e me ignorou por meses.
— Não tive escolhas — Matteo se defende.
Exceto que tinha. E nós sabemos disso. Sabemos que ele poderia
ter usado as ações que eram nossas por direito para tirar Francesco da
presidência, o que consequentemente tiraria Alessandro da prisão e nos
uniria novamente.
— Eu era tolo, Donna. — Alessandro tenta.
— E pelo visto continua sendo! Foda-se que era irresponsabilidade
minha — repito as palavras de Matteo. — Foda-se se eu não sabia onde
estava o pai — reforço as de Alessandro. — Foda-se se Francesco pudesse
me obrigar a abortar se eu não tivesse feito o que fiz para esconder dele.
Vocês são meus irmãos. Deveriam me apoiar mesmo que me achassem uma
idiota. Quando descobriram tudo isso?
Um minuto de silêncio se passa, até que Alessandro olhe em meus
olhos e responda:
— Descobri no dia do nascimento da Lis.
Minhas sobrancelhas se erguem em incredulidade. Minhas mãos
tremem e eu sinto o ardor chegar aos meus olhos.
— Sabe disso desde muito antes que eu pedisse para procurá-lo?
— questiono, em um fio de voz e alterno o olhar entre os dois. — O que
pensaram que estavam fazendo? Qual o objetivo de vocês com isso?
A dor da traição ainda queima em mim.
Sinto vontade de dizer tantas coisas, de chorar tanto, mas, ainda
assim, me contenho. Não posso fazer isso. Preciso ser forte. Preciso lembrar
que não é a adolescente chorona e com uma barriga de nove meses aqui,
embora ela esteja muito mais machucada que eu em toda essa situação.
A questão é que eles são os meus irmãos. Os homens que foram as
figuras paternas da minha filha durante todo esse tempo. Os homens que
reviraram o mundo por mim. Ou, ao menos, achei que fossem.
E isso dói tanto.
— Vamos conversar com calma — Alessandro pede, mas não há
firmeza em suas palavras.
— Eu não quero conversar — digo, minha voz saindo ainda mais
trêmula. — Eu quero ficar sozinha por um bom tempo.
— Não é assim que vamos resolver as coisas. — O outro também
tenta.
Volto a me estressar.
— E como vamos resolver? Vamos voltar seis anos no tempo e me
dirão que Benjamin foi preso por legítima defesa e nem mesmo sabia sobre
Elisa?
Ambos se mantêm calados.
Caminho a passos rápidos em direção à porta da saída.
— Foi o que eu pensei.
Ela me encara de lado a cada passo que dá até a cozinha e faz essa
volta entre os cômodos, no mínimo, cinco vezes.
— Tudo bem, filha? — pergunto, quando ela para, sentando-se na
mesinha de centro, bem em frente ao filme em que eu estava tentando
assistir. — Por que está me olhando assim?
Sei a resposta.
E se eu tivesse algum resquício de humor no corpo, até riria da
forma em que ela lida ao perceber que há algo de errado comigo.
Lis anda de um lado para outro, me observando a cada instante,
como se estivesse tentando fazer isso para que eu não perceba que está
fazendo.
— Você está estranha, mamãe — ela diz, encarando-me com
cautela. — Eu fiz algo que te chateou?
Suspiro quando ouço a pergunta, amaldiçoando-me por fazê-la se
sentir culpada por isso. Recosto-me no sofá e dou duas batidinhas na minha
perna, chamando-a para o meu colo. Quando Elisa o faz, eu a abraço com
força e beijo o topo de sua cabeça, sabendo que em pouco tempo tudo
mudou – e ainda irá mudar – drasticamente.
Mas momentos como esse, em que a seguro nos braços e a sinto
próxima a mim, é como se tudo fosse calma em meu peito. Por isso,
aproveito alguns instantes desse momento apenas sentindo seu cheiro e
tentando voltar a me conectar comigo mesma.
— Você não fez nada, meu amor.
— Então por que está tão esquisita?
Consigo sorrir com a sua sinceridade.
— Porque a mamãe se chateou com o tio Mat e o tio Ale. — Sou
sincera. — Mas logo tudo se resolve.
— Posso ajudar se quiser, mamãe, não gosto quando vocês brigam.
O que acontece com uma certa frequência.
Nós três sempre tentamos deixar Lis de fora dessas confusões. Os
dois são parte importante da vida dela e vice-versa. Contudo, não estamos
falando de uma discordância ou um pequeno desentendimento.
Estamos falando de seis anos de silêncio.
Seis anos lidando com uma criança curiosa e uma falta de palavras.
Então, dessa vez, não sei como irei perdoá-los. Porque
eventualmente, irei. Sei disso. Amo meus irmãos com todas as minhas
forças, embora tenha que detê-los vez ou outra por tentarem se meter
demais na forma com que criei Lis.
E eu decidi criá-la de uma forma em que ela entendesse desde já
que o mundo não é cor-de-rosa como eles fazem parecer para ela.
Obviamente, a encorajo a acreditar em algumas coisas irreais, como Papai
Noel e Fadas do Dente. Eu a incentivo a ser criança.
Mas, por outro lado, também converso bastante com a minha filha.
Eu conto para ela que a realidade em que ela vive não é a mesma que outras
crianças. Algumas não são bem estabilizadas financeiramente, outras têm
tudo o que o dinheiro oferece, mas não têm amor; outras não têm nada, e
algumas poucas têm tudo.
Ela se enxerga no meio-termo, e isso fica nítido sempre.
Lis é privilegiada financeiramente. Não poupo dinheiro quando o
assunto é qualquer coisa da vida dela. Ela é cercada de amor; o meu, o dos
tios e de qualquer outra pessoa que se permite conhecê-la melhor.
Mas Lis não se sente completa sem um pai.
E embora isso me frustre, e seja egoísta dizer que gostaria que ela
me visse como o suficiente para uma família completa, eu a entendo.
Toda a minha infância foi regada a esse desejo. Que meu pai me
visse como mais do que um troféu e que a minha mãe não tivesse aceitado
algo em troca de estar longe de mim.
Que o meu irmão mais velho não demonstrasse tanta frieza quando
estivesse em frente a todos e que Alessandro deixasse de ser visto como o
filho de uma traição, um bastardo.
Lis quer ter uma mãe e um pai.
E até há pouco, isso estava distante dela. Mas, em breve, ela
finalmente terá isso. E acho que quem não está preparada para viver esse
momento sou eu.
— Quero perguntar uma coisa — digo, achando que talvez esse
seja um bom momento para introduzir o assunto.
— Pode perguntar, mamãe.
— Se o seu papai voltasse — começo, vendo-a se animar logo a
frase sai da minha boca. — E quisesse te conhecer e fazer parte da sua vida.
O que você acharia?
— Eu acharia incrível, mamãe! — responde, de imediato, com um
sorriso enorme. — Nós somos boas juntinhas, mas também seria legal ter
outra pessoa para me amar como você faz.
A resposta me faz ter certeza.
Embora não estivesse nos meus planos, ou sequer na minha
imaginação, Elisa ficará muito feliz ao saber sobre Ben.
E eu só consigo desejar que ele seja bom para ela também.
Não sei como as coisas serão daqui para a frente.
Afinal, não o conheço como o conhecia há seis anos. Não sei quais
são seus novos ideais, suas metas ou planos.
Ser pai nunca foi algo que ele desejou, assim como eu nunca
desejei ser mãe.
Mas agora, ele está de volta, e pelo que deu a entender, quer ser
participativo na vida dela e isso me deixa um pouco intrigada e insegura.
Isso não é sobre mim, e sim sobre eles dois e a forma com que esse
relacionamento pode ou não se desenvolver, contudo, embora saiba disso e
do meu lugar nessa equação toda, não consigo parar de me perguntar como
tudo será daqui para a frente.
Benjamin perdeu seis anos da vida de Lis.
Lis nunca soube nada sobre o pai em seis anos.
Como vou contar para ela?
Como vamos fazer para lidar com isso?
Como ela irá reagir?
Em que tudo isso afeta a minha relação com a minha filha? Ou a
minha relação com os meus irmãos?
E então, o egoísmo.
Vou precisar dividi-la?
Fazê-la se dividir em duas casas diferentes aos finais de semana,
ou a cada quinzena, ou a cada semana?
O que acontece agora? Nesse momento em que ela deixa de ser
minha, e passa a ser nossa?
São muitas dúvidas.
Acho que Ben está certo. Temos seis anos de conversa para colocar
em dia. E com o acréscimo do futuro, seja ele amanhã, ou daqui a anos.
Precisamos planejar tudo agora, todos os mínimos detalhes.
E isso está me assustando mais do que assustou quando descobri
sobre a gravidez. E eu tinha dezessete anos naquela época.
De alguma forma, me sinto mais perdida agora. Como se soubesse
o que tenho que fazer, mas sem coragem disso.
— Eu acho que talvez isso aconteça em breve, amor.
É o que digo, decidida a começar a prepará-la para quando chegar
o momento crucial de contar. Não é fácil. As palavras saem com
dificuldade.
Mas é o certo. Por ela.
Tudo sempre estará certo se diz respeito à felicidade dela.
— É verdade, mamãe? — questiona, surpresa.
— Sim, minha vida — confirmo, acariciando seus cabelos. — Sei
que no seu aniversário a mamãe disse outra coisa, e isso pode ser confuso
para a sua cabecinha, mas, às vezes, o destino pode mudar tudo.
— Igual às borboletas batem as asas?
Sorrio com a sua comparação.
— Sim, como as borboletas batem as asas.
— Será que ele vai gostar de mim? — Sua voz soa insegura dessa
vez, como nunca aconteceu quando ela falava sobre esse assunto. — E se
ele ver as minhas notas em matemática?
As perguntas me fazem suspirar.
Acho que, no fundo, Lis sempre viu ter um pai como um sonho e
não como algo iminente, que poderia se realizar. E isso a torna uma garota
ainda mais especial para mim.
Porque percebo que, embora tenha dado tudo de mim para criá-la
da melhor forma, Lis também é uma fruta bichada, que precisou
amadurecer antes do tempo.
Como eu, mesmo que em situações diferentes.
Eu fiz uma promessa quando ela nasceu. Eu cuidaria e a amaria
com todas as minhas forças. E quando a fiz, quis dizer que não me
importava com o quanto me machucaria. Desde que minha filha estivesse
feliz, tudo valeria.
Tudo seria válido.
Mesmo que isso signifique me manter por perto do homem que
sempre deteve meu coração.
O homem que sempre povoou meus sonhos e pensamentos.
O homem que me machucou profundamente, mas que mesmo
assim, nunca deixei de amar.
— Eu acho — começo, colocando uma mecha do seu cabelo para
trás da orelha — que ele já gosta muito de você.
E não vou permitir que ele quebre o seu coração como fez com o
meu.
— Posso fazer um pedido? — Ela muda completamente o assunto,
sorrindo aquele sorriso de quem está aprontando. — Acho que estou
merecendo um, tirei quatro na prova de matemática.
— Uma prova que valia dez — pontuo, querendo rir, mas sabendo
que é errado.
Me orgulho de ter ensinado tudo a Lis. Menos matemática. Nisso,
sou pior do que ela.
— Não precisa esfregar na minha cara, né, mamãe? — Ela fica um
pouco emburrada, mas sem desistir de fazer seu pedido. — Da última vez
eu tirei um e meio. E agora tirei mais de um e meio.
— E o que seria esse pedido?
— A senhora nunca brincou comigo no pula-pula.
Suspiro.
— Acho que posso fazer esse sacrifício por você.
— Podemos brincar amanhã?
Olho para ela e estreito os olhos, fazendo um drama enquanto ela
espera por uma resposta.
— E se formos agora?
— De noite, mamãe?
— Ou podemos esperar amanhã. — Suspendo os ombros. — Você
que sabe.
— Vamos pular!
Tudo o que tínhamos já passou agora
Diga a eles que eu estava feliz
E meu coração está quebrado
Todas as minhas cicatrizes estão abertas
Diga-lhes o que eu esperava ser
Impossible | I Am King

Eu sou pai.
Três palavras.
Oito letras.
Seis anos sem ter a mínima ideia disso.
Pai.
Eu sou pai, cacete.
Tenho uma filha.
E ela é a garotinha mais linda do mundo inteiro.
Minha garotinha.
Elisa Lombardi. O mesmo nome da minha bailarina.
Um dia, Elisa Lombardi-Dempsey.
Meu Deus.
Eu sou mesmo pai.
Quando me imaginei sendo pai?
Tenho uma filha.
Alguém para continuar a minha descendência fodida.
Para carregar meu sobrenome.
Para continuar a minha história.
E por que agora não consigo me lembrar de um dia em que não
sonhei em ser pai de Lis?
Elisa.
O nome da minha mãe.
O nome mais lindo que Donnatella poderia ter dado a nossa filha.
Meu Deus.
Eu realmente tenho uma filha.
Acho que eu deveria estar me sentindo em choque. Ou atordoado.
Ou perturbado. Ou desconfiado. Ou pelo menos, questionando o que será
do futuro.
Mas não.
Eu estou feliz.
Poderia dizer que essa é a melhor coisa que me aconteceu em anos,
mas estaria mentindo. Essa é a melhor coisa que já aconteceu na minha vida
toda.
Porém, a única coisa da qual tenho medo agora é de não ser um
bom pai para ela. O medo de não conseguir ser o que ela merece.
Porque eu quero.
Quero recuperar o tempo que perdi sem saber da sua existência.
E quero proporcionar a ela o que ela sempre quis.
Um pai.
O problema é que isso não me deixa dormir.
Não tenho nenhuma referência paterna. Sei apenas o que não devo
fazer, baseado na minha experiência.
Não tenho nenhuma lembrança de Michael como pai. Na verdade,
nem mesmo gosto de me referir a ele assim, porque mesmo que não saiba o
que é ter um, sei que nada do que ele fez por mim era certo.
Ele usava de força física para me imobilizar, das minhas emoções
para me manipular e de palavras para me machucar. Além disso, presenciei
diariamente ele fazer o mesmo com minha mãe e Asher, o que tornava a
experiência de dividir o mesmo tipo sanguíneo com ele ainda pior.
Inquieto demais para conseguir dormir, tiro o cobertor de cima de
mim e jogo longe. Finalmente abro a sacola com o carregador novo que
precisei comprar mais cedo. O meu simplesmente parou de funcionar há
alguns dias e apenas hoje consegui encontrar um compatível.
Coloco o aparelho para carregar, pensando em, talvez, mandar uma
mensagem para Asher, tentar contar para ele sobre a minha descoberta, ou
talvez, pedir algum conselho, mesmo sabendo que ele estaria tão ou mais
perdido que eu em uma situação como essas.
O celular liga poucos segundos depois que o conecto a tomada, no
entanto, assim que tento desbloqueá-lo, uma centena de notificações
começa a aparecer na tela, me impedindo de fazer qualquer coisa.
Está completamente travado.
Não há nada que eu consiga fazer para que ele destrave, sequer
consigo desligá-lo antes que uma nova notificação chegue e me impeça.
São marcações, mensagens e ligações de números desconhecidos.
Muitas notificações das quais não faço ideia do que sejam.
Chego até mesmo a retirar a capinha e virar o aparelho inteiro para
conferir se é mesmo o meu celular e não consigo pensar em qualquer
possibilidade que me coloque em uma situação como essa.
Até antes do meu carregador antigo pifar, eu tinha, tipo, três
contatos e um perfil privado em uma rede social qualquer que Asher
instalou e eu nem gostava de usar.
— Puta que pariu! — Largo o aparelho na mesinha de canto e
volto a me sentar na cama, com os cotovelos nos joelhos e a cabeça entre as
mãos.
Minha atenção, no entanto, é puxada para o lado de fora quando
ouço risos escandalosos e o som de movimentos bruscos. Levanto-me,
atento e sigo até a minha janela, vendo quando Donna e Elisa começam a
saltar – ou tentar fazer isso –, na cama elástica.
Lis grita, rindo quando cai e sua mãe continua pulando, bem forte,
impedindo-a de levantar de onde caiu. Sua gargalhada fica cada vez mais
forte, mas, em algum momento, Donna se cansa e se joga ao lado da
menina, que começa a tentar fazer o mesmo, sem sucesso.
Minhas bochechas chegam a doer de tanto que estou sorrindo.
— Estou… cansada demais… mamãe.
— Eu também, neném — Donna responde ofegante quando Lis cai
ao seu lado.
— Quando ele chegar, a gente vai poder brincar mais, né?
Minhas sobrancelhas se unem em confusão.
— Quando quem chegar? — ela pergunta, parecendo tão confusa
quanto eu.
— O papai. Você disse que ele pode voltar logo, lembra? —
explica e não consigo decifrar a confusão de pensamentos que me tomam
quando ela diz isso. — Acha que ele vai gostar de brincar com a gente?
Ela não parece estar falando apenas sobre brincar. Parece ter mais
por trás das suas palavras, e não me passa despercebido a insegurança que
há em sua voz quando questiona isso.
Donna suspira, e como se soubesse que estou às observando, olha
diretamente para a minha casa, para cima. Ela provavelmente nota a minha
sombra na janela quando responde:
— Tenho certeza de que ele será o melhor que você pode ter,
pequena.
Exceto que eu não tenho.
Minha cabeça tem se dividido em pensar se serei mesmo um bom
pai para Elisa e a insegurança de não ser o que ela espera.
Não sei o que é ser pai.
Isso está consumindo todos os segundos do meu dia, e está me
deixando completamente apavorado.
E me pergunto se é certo querer fazer parte da vida dela agora, se
eu não seria mais um problema do qual Lis ou Donna não merecem lidar.

Quando chego em frente à minha casa, meu cenho se franze ao ver


três carros e vários homens uniformizados com capacetes saindo e entrando
de lá. Procuro por algo que possa identificá-los e arregalo os olhos quando
entendo que é uma empresa de encanação.
Puta que pariu!
Eu fui apenas ao supermercado por meia hora e quando volto há
uma empresa invadindo a minha casa.
Que porra é essa?
Qual o problema dessa cidade?
Algumas quadras até o supermercado e me senti mais vigiado que
quando estava preso. As pessoas não fazem a menor questão de esconder os
cochichos e olhares quando me viam passar, e desconfio que isso se dê ao
fato de ser um lugar pequeno e eu seja novo por aqui. Ou ao menos, espero
que seja isso.
Além disso, a moça que trabalha no caixa, fez questão de me
perguntar se eu era o novo parceiro de Donna. O que me fez lembrar
Donna, alguns anos mais nova, me dizendo o quanto isso era irritante em
morar numa cidade pequena. As fofocas correm rápido e, quando menos
você percebe, as pessoas já estão sabendo.
Algumas até questionando isso sem a menor noção de senso.
Isso, inclusive, me fez refletir se os olhares e a pergunta sobre
Donna não teriam a ver com o fato de não conseguir desbloquear meu
celular devido às notificações.
Caminho mais depressa, indo até um dos homens que está com
uma prancheta na mão, observando o meu quintal e fazendo anotações.
— Olá? — chamo a sua atenção e ele se vira para mim. — Eu
moro aqui. O que está acontecendo?
— Ah, você deve ser o Benjamin que a Sra. Ballard falou ao
telefone, certo? — Ele coloca a prancheta debaixo do braço e estende a mão
para me cumprimentar e volta a falar sem que eu nem mesmo confirme. —
Tenho más notícias.
— O que houve? — Ouço uma voz infantil soar atrás de mim,
vendo que Lis para bem ao meu lado, colocando as mãos na cintura como
se estivesse analisando a situação como uma verdadeira profissional, e isso
me arranca um sorriso. Mas logo me encara, acusatória: — O que fez, Ben?
Ergo as sobrancelhas, sem entender o motivo.
— Eu não fiz nada!
— Bom, aparentemente, sim — o homem responde por mim. Para
Lis. — Ele deixou a torneira aberta e alagou a casa.
Lis coloca os dois dedos em pinça em cima do nariz, como se eu
fosse uma decepção, enquanto eu volto a encarar a casa à minha frente, sem
saber o que devo fazer a partir de agora, quando noto que a trilha de pedra
do quintal, que dá até a entrada da casa, está molhada.
Meus olhos vão até a porta da frente e vejo que lá dentro tudo
parece alagado.
Eu fiquei fora por meia hora.
— Os vizinhos ligaram para a Sra. Ballard quando ouviram uma
pequena explosão. Foi o encanamento do andar de cima. Todo ele estava
comprometido por uma infiltração e acabou cedendo.
— Puta que pariu — murmuro.
— E o Ben vai morar na rua agora? — Elisa pergunta, parecendo
bastante empolgada para a resposta.
Me pergunto o porquê.
— Todo o andar de cima está alagado, e todo o sistema de
encanação da casa precisará de uma reforma — informa. — Preciso que o
senhor Benjamin retire seus itens pessoais o mais rápido possível.
Caramba, caramba, como é linda
Oh, minha linda mãe
Ela me disse: Filho, você irá longe na vida
Se fizer isso certo, vai amar qualquer lugar que for
Apenas saiba, onde quer que você vá
Você pode sempre voltar para casa
93 Million Miles | Jason Mraz

Eu gosto muito de listas.


A doutora de sentimentos[15] que me ensinou a usar elas para não
ficar nervosa demais.
Eu tenho uma lista de cantores e bandas favoritas – e é claro que o
Maneskin está no topo.
Uma para os meus episódios favoritos do Garfield. E quase todos
eu já assisti mais de dez vezes.
Uma para nomes de cachorrinhos que nunca vou poder adotar,
porque a mamãe diz que não tem tempo para eles e que é alérgica.
Uma para os filhos dos meus tios que não querem ser papais. Mas
que fiz mesmo assim, porque talvez eles possam mudar de ideia.
Uma com nomes de pessoas que não gosto. Isabella é a primeira.
Eu tinha uma de desejos, mas essa eu joguei fora porque todas as
coisas possíveis já estavam preenchidas.
E também tenho uma com todos os meus segredos para conseguir
convencer a mamãe de fazer algo que ela provavelmente não faria se eu só
pedisse:
● Sorrir e acenar (igual aos pinguins de Madagascar porque a
mamãe acha fofinho)
● Fingir que estou resfriada (uso para não ir à escola quando tem
prova de matemática).
● Imitar os olhos do Gato de Botas (só que um pouco mais maior
para a mamãe ficar com pena)
● Tentar chorar (quase nunca dá certo porque dói a cabeça, mas
eu tento)
● Oferecer três beijinhos ao invés de dois, ou às vezes mais do
que isso (mamãe gosta muito dos meus beijos, então quase
sempre dá certo).
Mas quando o moço que cuidou da água da casa do Benjamin
confirma que ele vai morar na rua agora, eu sei que nenhuma dessas coisas
vai funcionar com a mamãe.
Ele é meu amigo, e eu gosto muito dele. No dia que visitei a
mamãe no trabalho, ela disse que já o conhecia, então deve ser amigo dela
também, né? Não quis perguntar nada porque mamãe parece chateada e
quietinha esses dias, igual a mim quando fico brava.
Eu não deveria pedir algo assim com ela chateada, mas Ben é meu
amigo.
Eu preciso ajudar ele.
Seguro sua mão, vendo que ele parece um pouco perdido, mas,
mesmo assim, caminho até a linha dos arbustos que separa a minha casa e a
casa dele e me viro em sua direção.
— Me espere aqui, Ben — mando, erguendo o dedo. — Eu tenho a
solução.
Ele une as sobrancelhas e não faz perguntas.
Entro em casa pela porta da cozinha, encontrando a minha mãe
comendo o meu cereal colorido e parecendo um pouco triste. Nem percebe
que cheguei.
Mamãe está vestindo uma camiseta do meu tio Alessandro e o
cabelo está preso em um coque. Eu gosto dos cabelos dela soltos, são iguais
aos meus, e são muito macios e cheirosos. Tudo na minha mamãe é macio e
cheiroso.
Uma vez, a minha professora perguntou o que eu e os meus
colegas mais amávamos no mundo todo.
Melissa, minha melhor amiga, respondeu que amava seu quarto,
porque ele era tipo um refúgio mágico para ela.
O Victor, meu outro amigo, respondeu que amava sua coleção de
carrinhos e todas as pistas que ele tinha para fazê-los correr.
Eu respondi que o que eu mais amava no mundo inteiro era a
minha mamãe. Porque ela é minha heroína. Ela faz tudo por mim e eu sinto
que meu coração ama tanto ela que às vezes ele parece que vai explodir.
Mamãe e eu brigamos às vezes, porque ela diz que eu sou muito
teimosa. Tio Matteo diz que ela não deveria dizer isso porque é ainda mais
teimosa que eu.
E esse também é o motivo que eu amo a mamãe, a gente é muito
parecida nos sentimentos. É como se ela fosse eu, só que adulta. E como se
eu fosse ela, só que criança. E isso é tão maluco.
— Mamãe… — chamo, e ela ergue o rosto para mim, ainda
mastigando. — Eu queria te pedir uma coisinha.
É aí que ela começa a me olhar com os olhos pequenininhos,
daquele jeito que faz quando acha que eu estou aprontando alguma coisa.
Mas eu não fiz nada.
Eu juro que não fui eu quem pulou a janela da casa do Ben e ligou
a torneira porque sabia que a casa tem problemas no encanamento, a culpa
deve ter sido dele por deixar a janela aberta. Não é porque ele é amigo da
mamãe e porque ela pareceu diferente quando viu ele, que eu aprontaria
algo assim.
E lá não tem câmeras para provar isso. Deve ter sido outra
garotinha.
Talvez, alguém faça uma montagem com o meu rostinho. Mas é
para isso que serve o meu potinho de palavrão: para pagar advogados.
— O que você aprontou?
— Eu não fiz nada — me apresso em me defender. — Mas você
precisa vir comigo, é algo urgente.
— Lis…
Suspiro, tentando ficar triste.
— Mamãe, meu melhor amigo precisa da nossa ajuda.
Ela parece ficar preocupada, porque nem se importa em vestir algo
melhor quando se levanta para me seguir até onde Ben continua paradinho
me esperando.
— O Benjamin está sem casa, mamãe.
Ela ergue as sobrancelhas e responde:
— Não entendi.
— Lis, o que… — Ben começa a falar, mas eu o encaro
atravessado, fazendo-o calar a boca. — Ok.
— Elisa — mamãe me chama, puxando a camiseta um pouco mais
para baixo, escondendo o short. — Vamos para casa, o Benjamin precisa…
— O Ben precisa ficar com a gente, mamãe — interrompo.
— O quê? — os dois repetem juntos.
— Lis, não precisa se preocupar com isso, pequena — Benjamin
diz.
E eu sinto vontade de chorar.
Acho que fiz algo de errado.
Não era para ele dizer isso.
Ele deveria concordar comigo.
Ele deveria querer ficar com a gente.
— Você vai embora. Não quero que vá embora, quero que fique.
— Filha... — minha mãe chama mais uma vez. — Podemos
conversar?
Assinto, começando a ficar mais triste.
Mamãe começa a caminhar para o nosso lado do quintal e eu vou
atrás dela, mas ainda olho para trás, fazendo um sinal para Benjamin
esperar.
Mamãe se abaixa na minha frente, ficando da minha altura e me
encarando do mesmo jeito que faz quando quero assistir mais um episódio
de Garfield e está ficando tarde, mas preciso acordar cedo.
— Lis, não podemos ficar com o Ben.
— Por que não?
— Porque ele tem outras coisas para fazer, há outros lugares para
ele ficar na cidade.
— Mas eu não quero que ele vá embora como o papai.
Dessa vez, nem preciso fingir. Só de pensar que posso nunca mais
ver o Benjamin, meus olhos enchem de lágrimas e meu coração fica
pequenininho de tão apertado.
Minha mãe entende o que quero dizer quando suspira.
— Lembra que a mamãe precisava de alguém para patinar? —
Assinto. — Ben vai ser a minha nova dupla e você sempre irá poder vê-lo
na Arena.
Eu lembro da minha lista.
Tento pensar rápido qual deles irá funcionar nesse momento.
E nenhum parece bom o suficiente para convencê-la.
Então decido ser sincera.
— Mamãe, quando eu nasci, eu amei você bem rapidinho, porque
você é a minha mamãe e é a pessoa mais importante da minha vida. Foi
assim com os meus tios também, eu amo eles bem grande. — Seguro o
rosto dela, amassando suas bochechas cheias de estrelas. — Vou te contar
um segredo, mamãe, eu acho que também amo o Ben desde que nasci, só
que eu só conheço ele há pouco tempo. Mas eu sinto que se ele for para
longe, mamãe, o meu coração vai ficar tão pequenininho que vai quebrar.
Os olhos dela ficam cheios de água e eu não entendo o porquê.
Será que disse algo errado?
Essa era a minha única chance de convencê-la. Mas então, lembro
de mais uma.
— E eu tenho você, mamãe, mas o Ben está sozinho — digo, com
pena do meu grandão. — Podemos ficar com ele? Por favor?
Ela olha para trás, na direção de Ben, que nos encara como se
estivesse no mundo da lua. Acho que esses dois estão um pouco
maluquinhos hoje e eu espero que isso me ajude a fazer o que eu quero.
— Você disse que ama o Ben — ela diz. — Como sabe disso se
conversaram poucas vezes?
Balanço os ombros.
— Eu senti, mamãe. Foi estranho, mas eu conheço ele de algum
lugar.
Ela pensa por um tempo e depois suspira.
Já estou quase perdendo as esperanças, quando ela diz:
— Anda, vai contar para ele que pode dormir no nosso sofá. Por
alguns dias.
Fico feliz na mesma hora.
Eu sabia. Sabia que a minha mãe não deixaria o pobrezinho do Ben
morar na rua.
— Jura?! — grito, animada e me jogo nos braços dela, beijando as
suas estrelinhas[16] algumas vezes enquanto ouço ela rir. — Obrigada,
mamãe, você é a melhor.
— Isso vai te custar muitos beijos mais tarde, mocinha.
— Vou te dar quantos beijos quiser!
Corro até onde Ben está e rio quando ele me segura antes que eu
caia com a cara na grama molhada e me carrega, me fazendo ficar da altura
dele.
Não menti para a mamãe. Eu amo mesmo o grandão.
— Você vai ficar com a gente!
Ele fica confuso de novo.
— O quê?
— Convenci a mamãe a deixar você ficar com a gente.
— No nosso sofá — mamãe diz, deixando claro.
— Mas ele é bem confortável, Ben, você vai adorar.
— E teremos regras — mamãe repete.
— Mas a gente deixa isso pra outra hora — digo.
— E você já perguntou ao Ben se essa é a vontade dele?
Olho para Ben, que me encara de volta com uma expressão
engraçada. Uso a estratégia dos olhos do Gato desta vez.
— Você quer ficar com a gente, Ben? — pergunto, abrindo os
olhos o maior que consigo. — Temos café quentinho todas as manhãs, a
mamãe não cozinha e eu posso te emprestar a minha mantinha para dormir
mais confortável no sofá.
Ben olha para minha mãe. Ele parece querer rir.
Os dois se encaram por um longo tempo até que a minha mãe
balança a cabeça que sim.
— Qual a cor da sua mantinha?
— Ela é tipo, muito colorida.
— Então eu topo!
Mamãe suspira.
E eu lembro de um ponto importante.
Preciso aproveitar que ela está boazinha hoje para fazer outra
coisa.
— Só temos um probleminha — digo, sorrindo quando volto a
olhar para minha mãe. — A mamãe vai precisar comprar alguns remédios.
— O quê? Por quê? — dispara. — Você está com dor?
— Não, mamãe, você precisa comprar aquele remédio que o tio
Matteo disse, para pessoas que ficam vermelhas com pelos.
— Por qual motivo, Elisa? — mamãe pergunta, séria.
Até parece que sabe que eu estou aprontando.
Mas bem, agora quando ela ficar brava posso jogar a culpa no Ben
também, e é exatamente o que faço agora.
— O Ben tem um cachorro.
— Como é? — ela pergunta.
— Tenho? — Ben fica confuso, mas eu dou outro olhar
atravessado para ele.
Ele é tão grande, mas parece tão bobinho.
Será que não percebe que estou tentando ajudar mais um
necessitado?
— Sim, o Oddie, lembra? Seu cachorrinho que gosta de ração de
carne e cenoura crua.
— Ah… — ele diz, fingindo se lembrar. — O Oddie, é verdade. —
Ben encara minha mãe, me carregando apenas com um braço para colocar a
outra mão em frente ao rosto e fingir tossir. — É verdade, Donna, o Oddie
gosta muito de ração de…
— Carne — lembro baixinho e Ben tosse de novo.
— Ele gosta bastante de ração de carne e cenoura crua.
— Mas o Ben vai pagar pela ração dele — completo, para a
mamãe entender que o Oddie não vai atrapalhar. — E ele é muito
comportado.
— Sim, ele é um anjo — Ben concorda e fico com mais pena dele.
— E qual o tamanho desse cachorro?
Ben me olha, esperando eu responder.
— Bem pequenininho, mamãe, você nem vai perceber quando ele
chegar.
— E onde ele está? — Faz mais perguntas. — Nunca ouvi nenhum
latido.
— Ah… ele… — Ben e eu dizemos, ao mesmo tempo, e rimos
depois, mas mamãe não parece achar graça, então paramos e tentamos ficar
sérios.
— Ele é muito quieto — Ben diz. — E agora ele está no petshop
tomando banho.
— Desculpa, mãe, esqueci de falar do Oddie, só estava muito
preocupada com o Ben. Coitadinho, ele…
— Sim, sim, Elisa — ela me interrompe. — Pobrezinho do
Benjamin, sem teto e com um cachorro.
— Como adivinhou o que eu ia falar? — pergunto para ela, com a
boca aberta. — Ainda bem que ele tem a gente, não é? — Olho para ele,
sorrindo.
— Sim, princesa. — Ben sorri, e é tão bonito. Acho que ele é o
cara mais legal do mundo. — Ainda bem que eu tenho vocês.
Mamãe fica quieta olhando para mim e depois para Ben. Ela faz
isso várias vezes antes de dizer:
— Tudo bem. O cachorro pode ficar, mas ele dorme na varanda.
Eu sou alérgica.
E aí ela dá as costas para nós dois e começa a caminhar para a
nossa casa.
— Quem é Oddie?
— O seu cachorro.
— Eu não tenho um cachorro.
— Agora tem, eu te dei um.
— Não quero um cachorro.
Olho para ele brava.
— Você quer dormir na rua?
— Não.
— Então agora você tem um cachorro.
Diga que você foi feita pra ser minha
Nada poderia nos manter separados
Você será aquela que eu deveria encontrar
Você que decide, e eu que decido
Ninguém pode dizer o que nós podemos ser
Rewrite The stars | James Arthur

Fico tentada a mandar mensagem no grupo com meus irmãos


quando me dou conta do que acabou de acontecer, mas me contenho.
Não gosto de quando brigamos, porém estou magoada e acho que
ainda ficarei assim por um bom tempo. Sei que não deveria jogar a culpa
totalmente neles, contudo confiei em meus irmãos anos atrás, quando me
disseram que apesar de usarem todos os nossos recursos – que vão além do
dinheiro –, não o encontraram em nenhum canto do mundo.
Eles mentiram para mim.
Esconderam algo que me custou seis anos de dúvida.
E foda-se que eles acham que estão certos.
É do pai da minha filha que estamos falando.
Sei que sempre pensam que estão fazendo o melhor por mim,
porém, isso deixa de ser coerente quando tira de mim o direito de escolher o
que fazer.
E é claro que eu teria procurado o Ben, mesmo que ele não
quisesse estar ao meu lado na gestação, por mais que estivesse preso.
Mas, agora, quando o vejo discutir com Lis quando pensam que
não estou ouvindo do topo da escada, sei que ele não me deixaria sozinha.
Sei que apesar de estar preso, Ben escolheria a mim. Escolheria Elisa.
— Você me disse que ele era pequenininho — ele acusa, parecendo
desesperado.
— Eu disse que era um cachorrinho — ela corrige ele. — Porque
ele é um filhote.
— Lis, você já viu o tamanho desse cachorro? Sua mãe vai matar a
gente.
— Se ela matar alguém vai ser você, o cachorro é seu e ela me ama
muito. A mamãe ia chorar demais se eu não desse os beijinhos para ela
dormir bem.
Ela é boa.
Criei direitinho.
E era óbvio que eu sabia que o Ben nunca teve um cachorro.
— Agora esse pulguento é meu?
— Não chame ele de pulguento! — repreende. — Ele é apenas um
neném.
— Por que ele se chama Oddie? — pergunta, mudando
bruscamente de assunto, mas parecendo verdadeiramente curioso. — Não
tem nada a ver com o Garfield.
— Eu queria um da raça do Oddie, mas a mamãe é alérgica e
quando eu encontrei ele na rua não tinha como mudar a raça, né, grandão?
— Podia dar outro nome.
— Ele era muito fininho, os ossinhos dele ficavam de fora e ele
parecia muito o Oddie. Você acredita que chutaram ele para fora do carro?
Coitadinho, Ben, ele é igual a você.
Suspiro fundo, indecisa entre rir e achar a sua inocência fofa.
— Igual a mim?
— Sim, te chutaram da sua casa e agora eu e a minha mamãe
temos que adotar vocês.
— Foi você que insistiu e ainda inventou essa mentira.
— Não dava para o Oddie morar na empresa para sempre, uma
hora meu tio Alessandro ia mandar ele embora de lá.
— E eu? Me adotou só para trazer o Oddie?
— Sim — assume, sem rodeios. — Mas também porque não ia
deixar você na rua, né?
— Você é muito boazinha, neném.
Reviro os olhos quando ouço a voz dele, de quem acreditou no
papinho furado dela.
Pelo visto, terei que ensiná-lo algumas coisas também.
— Só tem um problema — ela anuncia, quando ele menos espera.
Assim como fez comigo mais cedo.
— Mais um?
— Quando a sua casa tiver boa, o que vou fazer com o Oddie?
— Você não disse que ele é meu?
— Sim, mas foi uma mentirinha do bem para convencer a mamãe.
Você nem quer ele.
— Ele parece ser muito bonzinho, se não morder o meu pé, posso
ficar com ele. Aí podemos convencer sua mãe a você visitar ele. Mas vamos
contar a verdade para ela.
— Faria isso por mim?
— Vou fazer de tudo por você, princesa.
— Obrigada, Ben. Você é o melhor amigo do mundo.
Decido sair do meu esconderijo e começo a descer as escadas,
fazendo questão de fazer barulho para que eles percebam que estou
chegando. Eles claramente percebem, pois começam a falar ao mesmo
tempo, coisas que não fazem o menor sentido.
O que só serve para provar que, de mim, Lis herdou apenas os
cabelos e o fato de sermos péssimas em matemática.
Do Ben, herdou até os neurônios.
Pigarreio, chamando a atenção dos dois quando chego à cozinha.
— Demorou, mamãe.
— Decidi tomar um banho — respondo uma meia-verdade, não
querendo contar que estava ouvindo a conversa dos dois escondida. — E
onde está o cachorro pequenininho e quieto que me disseram?
Os dois se encaram ao mesmo tempo, cúmplices, como se
discutissem em silêncio qual dos dois irá falar. E acho que é a primeira vez
que vejo Lis perder, pois é ela quem começa a dizer:
— Você já tomou seu remedinho? — ela pergunta, com um
sorrisinho falso. — Não quero que fique doente por causa do Oddie.
Me sinto mal por mentir, principalmente quando Ben me encara
com a sobrancelha erguida, sabendo que é mentira. Não sou alérgica a
cachorros ou nenhum outro animal. É errado da minha parte, eu sei. Não
deveria mentir para ela, mas não sabia como seria capaz de lidar com uma
criança, um cachorro, um trabalho que consome metade do meu dia e ter
tempo para me cuidar.
— Não tem problema, neném, pode me mostrar ele.
Ela não consegue nem mesmo começar a falar antes que um
barulho de algo caindo na cozinha a interrompa. Volto a encarar os dois,
respirando fundo. Muito fundo mesmo.
— Calma, mamãe, já está ficando vermelha.
— Você disse que ele era super quietinho.
— O Ben disse isso.
— Eu não disse nada.
— Meu Deus.
— Calma, mamãe, ele deve estar só brincando, não é, Benjamin?
— Ah, hum… acho que sim? Sim! — quase grita quando ela pisa
em seu pé.
— Vou dar uma olhada nesse cachorro pequenininho e bem
quietinho — friso as palavras deles, indo em direção à cozinha e sendo
seguida.
Sinto vontade de gritar quando vejo o estado da minha cozinha.
Tem um saco enorme de ração derramado no chão e um rabo
minúsculo balançando dentro do saco. O cachorro está tentando explodir?
Porque parece que já engoliu metade do saco.
— Oddie! — Lis chama e ele automaticamente ergue a cabeça,
balançando o rabo ainda mais, se é que é possível. — Tenha educação, a
mamãe quer te conhecer!
O cachorrinho desiste de voltar a comer e se vira em nossa direção.
Ele é pequeno, acredito que ainda seja um filhote em crescimento. Não
consigo identificar sua raça, mas parece muito um labrador. Ele é
inteiramente preto e tem olhos brilhantes, o que me choca, entretanto, é o
tamanho da barriga do cachorrinho.
Lis o carrega, um pouco desajeitada.
— Oddie, essa é a mamãe Donnatella — diz, muito séria. —
Mamãe, esse é o Oddie Dempsey.
— Por que ele tem meu sobrenome? — Ben pergunta.
Elisa parece prestes a perder a paciência com ele, que não parece
entender o que ela está aprontando.
— Porque ele é seu, lembra?
Seguro o cachorro à minha frente, enquanto os dois discutem.
— Como você sabe o meu sobrenome? Não lembro de ter te
contado.
— Talvez eu tenha mexido na sua carteira.
— Quando pegou a minha carteira?
— Quando você disse palavras feias que eu não vou repetir, se não
a mamãe me coloca de castigo e te manda direto para a rua. Da onde eu
lutei muito para te tirar.
Suspendo um pouco mais o cachorro, procurando algum resquício
de pulga ou carrapato, mal processando as palavras discutidas pelos dois. O
cachorro me encara parecendo animado, mas fica quietinho, com a língua
de fora e puxando o ar com dificuldade.
Aproximo meu rosto dele e ganho uma lambida no nariz que quase
me arranca um sorriso. Sou bem rápida em escondê-lo.
Não posso demonstrar que gostei do bichinho tão rápido.
Preciso continuar na minha pose de malvada, se não, jamais terei
credibilidade com esses dois.
— O que está fazendo com ele? — Lis pergunta, voltando a
atenção a mim.
— Procurando algum bicho.
— Não se preocupe, mamãe, ele estava no petshop, lembra? Está
bem cheirosinho e limpo, não é, Ben?
— Ele sempre está cheirosinho — o idiota concorda, tentando soar
convincente.
Encaro-o querendo apertar seu pescoço.
— Chegue mais perto, Benjamin — mando e ele o faz, mesmo
desconfiado. Afasto o cachorro um pouco mais de mim, o aproximando de
seu rosto, que assume uma expressão enojada. — Ele parece cheirosinho
para você?
— Podem ter nos enganado, mamãe! — Lis sai em defesa, mas não
sei explicar de qual dos cachorros ela está falando. Ela logo esclarece: — E
colocado um xampu fedido.
Suspiro.
— Por que não vai se arrumar para irmos comprar um xampu de
verdade e levar esse cara a um veterinário?
— Eu sabia que você iria amar ele!
— Só não quero a minha casa fedida.
Ela estreita os olhos, tomando Oddie de mim. Lis continua me
encarando de olhos cerrados enquanto caminha de costas até a escada.
— Quando vamos contar? — Mal me viro, quando ele já dispara.
— Podemos conversar sobre outros assuntos antes? — Ergo as
sobrancelhas.
— O que seria mais importante que isso? — pergunta, confuso.
— O fato de você ter forjado uma inundação para Lis me
convencer a te ter aqui?
— Por que eu faria isso?
— Qualquer pessoa que alugue essa casa sabe que é só deixar a
torneira ligada por cinco minutos e ela cai em pedaços. É sempre assim.
Todos são avisados. Por Deus, a cidade inteira sabe disso.
— Eu não sabia.
— Por favor!
— Estou falando sério. Loren me emprestou a casa e não disse
nada sobre isso. E eu estava na Arena. Com você.
Loren?
Quem é essa?
— O que causou aquela inundação, então?
Nós dois encaramos a escada.
Solto um gemido lamuriado.
Lis, por que você gosta de meter sua mãe em problemas maiores
do que ela consegue lidar?
— A gente pergunta, ou… — Ele deixa no ar.
Suspiro.
Não tem mais como voltar atrás.
— Temos regras para a sua estadia — digo, simplesmente
aceitando o fato de que talvez seja bom ter ele mais perto antes de contar
para Lis toda a verdade.
E subitamente me sinto estranha por pensar assim.
— Isso não parece nada agradável.
— Vamos conversar com a Lis sobre o que ela fez na sua casa em
breve.
— Ela não fez nada.
— Se eu procurar as imagens da câmera de segurança, você irá
continuar dizendo isso?
— Pode ser uma montagem. — ele defende a pestinha, como se
realmente tivesse certeza do que diz.
— Benjamin, não seja bobo, estamos falando da Elisa, ela é capaz
de tudo — deixo claro. — Vamos conversar com ela sobre isso e deixar
claro o perigo que isso poderia gerar se você fosse um desconhecido.
— Claro — ele concorda, se dando por vencido.
— Você dorme no sofá — demando.
— De acordo.
— Nada de fazer todas as vontades da Lis.
— Não prometo.
— É sério, Ben, se ela perceber que faz tudo o que ela quer, não sei
onde pode chegar.
— Lis é inofensiva.
— Ela me convenceu a abrigar um homem e um cachorro.
— Você faz todas as vontades dela — me acusa. — Logo, tenho o
direito também.
Meus ombros caem.
— Justo — concordo, mas aponto em sua direção. — Mas sempre
conversaremos sobre tudo relacionado a isso.
— Venha logo, Oddie — a voz da pestinha soa da escada,
apressando o pobre animal e interrompendo nossa conversa.
— E vamos conversar sobre contar quando ela for dormir — digo
baixinho, para que ela não ouça.
— Vai me julgar se eu disser que estou com medo da reação dela?
Por um segundo, paraliso e tento me colocar em seu lugar.
Ele descobriu há apenas alguns dias que é pai de uma garotinha
que já tem seis anos. E com isso, também descobriu que sempre quis ser pai
dela, mesmo que não a conhecesse.
É horrível.
Toda essa situação parece ser um limbo infinito de coisas das quais
ninguém sabe o que fazer. Nenhum de nós dois imaginaria estar nesse
cenário há quase sete anos, quando éramos apenas dois adolescentes
achando que sabiam o que era a vida. Que sabiam o que era o amor.
— Vai dar tudo certo, Ben — garanto, mesmo que esteja com o
mesmo receio. — É uma situação delicada, mas Lis vai entender
eventualmente.
— Não seja preguiçoso, Oddie, a mamãe gostou de você, mas
ainda precisamos convencer a ela a te deixar dormir aqui dentro.
Encaro Ben, tentando, a todo custo, respirar fundo ao vê-lo enfiar o
rosto entre as mãos, claramente sorrindo da situação e me pego desejando
que ele não esconda isso de mim.
Isso faz com que eu me repreenda mentalmente.
Não posso deixar que meu coração colida com o dele novamente.
Eu serei o fogo e o frio
Um abrigo de inverno
Eu serei o que você respira
(...)
E em troca não peço nada
Somente um sorriso
Coraline | Maneskin

A dor chega de todas as formas possíveis.


Até mesmo daquelas que achamos não serem possíveis.
Ela sempre chega de formas inesperadas; um aperto no peito, um
cansaço inexplicável, uma confusão mental, a fadiga sem explicações, a
pontada aguda no peito.
E nós podemos lidar com ela de diferentes formas. Algumas,
conseguimos até mesmo ignorar.
Mas, para cada pessoa, existe uma dor que não se pode ignorar.
É a dor que cria uma barreira entre o resto do mundo e você. Que
te faz repensar sobre toda a sua vida e te traz questionamentos que te
inquietam.
A minha dor se chama tempo.
Mais especificamente, tempo perdido.
É apenas nisso que consigo focar enquanto observo os corredores
da casa de Donna, no andar de cima.
Grande parte do que perdi está aqui. Nessas paredes.
Logo ao fim da escada, estão marcadas de diferentes cores, linhas
quase retas, e ao lado, estão a marcação em centímetros do crescimento de
Lis e as datas. A primeira parece ter sido feita no seu primeiro ano, segundo
a anotação.
Na casa em que cresci, as paredes eram feitas de angústia e medo.
Nesta casa, ao lado de Donna e Lis, as paredes são feitas do mais
puro amor.
Mesmo agora, no silêncio da noite, é possível ouvir risos, corridas
e ela… consigo ver Elisa em todos os cantinhos desse lugar. Essa casa é
uma caixa de memórias. É exatamente o que Donna sempre sonhou em ter;
uma casa grande e bonita, com muito espaço ao redor e felicidade.
Ela conseguiu isso.
Mas há uma parte egoísta e insensata de mim, que desejava estar
aqui em todos esses momentos. Em ter feito a marcação da altura de Lis,
em ter visto quando ela fez esses desenhos esquisitos na parede e em todos
os outros momentos dos quais não faço ideia de que aconteceram.
— Você vai mesmo deixar o Ben e o Oddie ficarem, não é,
mamãe? — Ouço sua voz sonolenta por trás da porta e meu coração se
aquece, por um momento me distraindo da dor.
Ela é muito preciosa. E estou apaixonado por essa menina. Ela é
linda, inteligente, comunicativa e a forma como me olha faz com que me
sinta especial.
Lis sempre parece despertar o melhor de mim.
E eu quero e espero um dia conseguir ser para ela esse porto seguro
também. Quero dizer para ela que nunca foi a minha intenção deixá-la,
deixar sua mãe. Se eu soubesse da sua existência, eu teria feito de tudo para
estar aqui, e preencher esse espaço vazio em seu coraçãozinho.
Porque simplesmente não consigo lidar com a ideia de que Lis
esperou por um pai durante todos esses anos, desejou ser amada por ele e
estar perto, quando eu nem mesmo sabia que havia um pedacinho de mim
vagando pelo mundo.
— Alguma vez a mamãe descumpriu uma promessa que fez para
você? — rebate, e não ouço a resposta, mas acredito que a pequena tenha
negado, porque ela prossegue: — Não será essa que irei quebrar.
— Obrigada, mãe. Isso é muito importante para mim.
— Por causa do Ben ou do gorducho que acabou com toda a ração
em um dia? — Donna brinca, me deixando com um sorriso no rosto.
— Por causa dos dois — responde. — Eles são os meus melhores
amigos. Não queria que eles ficassem na rua.
— E você precisa me contar algo sobre isso? — Donna sonda,
sabendo que Lis fez algo errado, mas dando a ela a chance de contar.
— Sim, mamãe. Mas posso te contar depois? Não quero te deixar
chateada, você está feliz hoje.
— Todos os dias que passo com você, eu fico feliz.
— Menos quando eu apronto alguma coisa.
— E você fez isso?
— Sim — admite, um pouco mais baixo. — Mas eu vou te contar
outra hora.
Preciso colocar a mão em frente à boca para não ser notado.
Já falei que sou apaixonado por essa garotinha?
Porque eu sou.
E sinto que a amo desde muito antes de conhecê-la. Sinto que ela é
minha muito antes de ser.
É tão esquisito se sentir assim, estar numa situação dessas. Ao
passo que também é certo.
Parece muito natural estar aqui, tentar não perder Lis ou Oddie
pelos corredores do petshop, ouvir suas palestras infinitas sobre qualquer
assunto aleatório que ela goste, ouvi-la discutir com a mãe sobre o melhor
episódio de Garfield e tentar não rir quando ela faz contas malucas, porque
é péssima em matemática.
— Então agora é o momento em que a senhorita dorme, ok? E
conversaremos amanhã sobre regras e umas coisinhas mais.
— Umas coisinhas mais — a pestinha repete. — É sobre as minhas
notas?
— Ainda não. — É possível ouvir o suspiro de alívio da outra.
— Você pode entregar a minha mantinha para o Ben? — pergunta.
— Já estou com muito sono, mas diz para ele que estou feliz que ele esteja
aqui.
— Levo, neném.
— Posso te contar um segredo, mãe? — ela cochicha, sonolenta.
— Acho que não quero mais que o papai volte. Eu amo muito o Ben, quero
que ele fique com a gente para sempre.
Prendo a respiração por alguns instantes, processando suas
palavras.
Donna não responde mais nada e acredito que Lis tenha pegado no
sono. Então, engulo o nó na minha garganta com dificuldade antes de girar
os calcanhares e descer as escadas em silêncio.

Sinto sua presença ao meu lado alguns minutos depois. Donna se


senta na grama, seus ombros esbarrando nos meus levemente e fazendo
aquela corrente esquisita percorrer o meu corpo, me deixando um pouco
melhor.
— Ela dormiu — anuncia, sua voz carregando um pouco de
cautela. — Você está bem?
Deixo com que um longo suspiro escape, finalmente abrindo os
olhos e encarando o jardim dos fundos à minha frente. Há uma cama
elástica a alguns metros, do outro lado, há uma cadeira de balanço grande
pendurada na área coberta dos fundos.
— Seis anos — é o que digo, minha voz soando cansada. — Eu
perdi seis anos da vida da minha filha. Acho que isso nunca irá me deixar
dormir em paz.
— Também estou pensando nisso — admite, chamando minha
atenção para ela. — Eu… passei os últimos anos te colocando no lugar de
um vilão, achando que havia nos rejeitado, quando eu quem estava nesse
papel durante todo esse tempo.
— Você não sabia que eu estava preso. — Tento consolá-la,
sabendo que palavras não são o suficiente. Nunca serão. Isso irá nos
perseguir para sempre; o sentimento de que perdemos algo no caminho e
que nós dois temos um pedaço de culpa. — Não haveria como ter pensado
diferente estando no seu lugar.
Donna respira fundo e, nesse movimento, parece haver uma carga
muito maior do que realmente é. Isso faz com que meus olhos se voltem
para ela, admirando seu perfil e suas sardinhas, que consigo ver mesmo
com a pouca iluminação que há aqui.
— Descobri que estava grávida algumas semanas depois do fim da
competição.
— E como foi?
— Desesperador. — Ela ri, meio nervosa. — Quando vi aquelas
linhas vermelhas num palito, minha primeira reação foi paralisar. Acho que
encarei aquele teste por horas, enquanto me perguntava o que eu faria dali
em diante. Mas, depois, levantei e dei um jeito. — Donna suspira antes de
contar a próxima parte: — Precisei subornar minha mãe para que não
contasse nada a Francesco, me mudei de casa e fiquei lá até o último dia da
gestação.
Respiro fundo, em partes me sentindo culpado por não ter estado
aqui. Eu gostaria de ter dividido tudo isso com ela. Gostaria de ter estado ao
seu lado e feito de tudo por nós. Pela nossa família.
— Com que dinheiro?
— Da conta que usaria para comprar essa casa.
Fecho os olhos, me amaldiçoando ainda mais.
Desde quando a conheci, Donna tinha uma conta secreta que seu
irmão conseguiu fazer sem que seu pai pudesse controlar e ela a usava para
guardar boa parte da mesada que ganhava dele, para a sua casa dos sonhos;
grande, com um quintal espaçoso o suficiente para as crianças e todos os
cachorros que queria adotar pudessem brincar. A caixa de memórias, como
ela gostava de chamar.
Quando nossos mundos se colidiram, descobri que esse também
era o meu sonho.
Filhos e muitos cachorros brincando juntos em um quintal. O
corredor repleto de rabiscos e medidas que nunca apagaríamos, mesmo que
aquilo ficasse horrível.
Tudo.
Tudo isso também era o meu sonho.
— Até o dia em que senti as dores, tudo parecia um pouco irreal.
Me sinto um pouco mal por não ter montado um quartinho perfeito ou
cuidado das quinas da casa antes daquele dia, mas acabou não sendo
necessário. Liguei para você antes de sair de casa. Foi a minha última
tentativa — conta, devagar. Sinto que ela está procurando por palavras que
não me façam sentir tão culpado por não estar por perto. Não digo, mas ela
sabe que isso não é possível. Não seria possível mudar nosso futuro. —
Depois, liguei para Matteo e disse que estava com medo, mas que minha
bolsa havia rompido e eu estava indo para o hospital mais próximo. Eu fiz
todos os exames em uma clínica de confiança minha que, com um pouco de
dinheiro a mais, não colocaram as informações sobre a gravidez no sistema
até depois do nascimento.
— Por que todo esse cuidado?
— Grávida aos dezessete de alguém que Francesco não escolheu a
dedo e que eu nem sabia onde estava? Eu seria obrigada a fazer um aborto
com toda certeza — responde, deixando um riso de escárnio escapar. — Ele
deixou de ser um problema no dia em que Lis nasceu.
— O que aconteceu?
Donna dá de ombros.
— Meus irmãos nunca me contaram. — Ela volta a assumir uma
expressão mais triste. — Eles não me contaram muitas coisas.
— Quer me contar o que aconteceu? Lis disse que você estava
chateada com eles.
— Descobri que eles sabiam durante todo esse tempo que você
estava preso, e mentiram para mim dizendo que mesmo usando todos os
nossos recursos da empresa, não te encontraram. E eu acreditei como uma
idiota.
Porra.
— Você não é idiota.
— É claro que sou, Ben. — Finalmente me encara, me dando a
visão do seu rosto magoado. — Somos a maior empresa de segurança do
país. Temos o poder de encontrar qualquer pessoa em qualquer lugar do
mundo. E quando eles disseram que não te acharam, eu… — suspira, como
se estivesse se amaldiçoando por dentro — acreditei. E passei os últimos
seis anos assim.
— Por isso brigou com eles?
— Sim. E isso tem me deixado com uma sensação ruim. Brigamos
muito, mas nunca mentimos um para o outro. De repente, descubro que eles
esconderam por todo esse tempo algo que fez minha filha e eu sofrermos.
— Eles são seus irmãos — digo, porque em partes bem pequenas,
os entendo. — Queriam apenas te proteger.
— Ben — me interrompe —, sabe quantas noites passei em claro
ouvindo a minha filha chorar porque eu não sabia dizer onde o pai dela
estava? Sabe quantas vezes precisei ouvir da boca dela se você foi embora
porque ela não foi uma boa garota? Ela pede por você em todos os
aniversários, em todos os Natais, em qualquer oportunidade. E eles sabiam
disso. Sabiam que Lis sente sua falta sem te conhecer, sabiam que eu
dormia chorando quase todas as noites porque pareço não ser o suficiente
para a minha filha. E sabiam disso porque eu ia chorar no colo deles.
Entende isso? Eles poderiam apenas ter me contado. Eu só queria ter
respostas para dar à minha filha.
E ela continua falando.
Ela conta como foi criar Lis nos primeiros meses, com a ajuda
deles. Me conta como era difícil dormir por menos de quatro horas por
noite, do quanto doía amamentar no início e de como foi quando decidiu
cuidar de Lis sem os irmãos, alguns meses depois, embora mesmo assim,
eles estivessem sempre presente.
Donna conta como foi complicado voltar a patinar e encontrar uma
empresária até que Dinara aparecesse, há dois anos. E o quão complicado
foi começar a fazer isso do zero, tentando não ligar à Donna do passado,
aquela que patinava comigo.
Ela também conta que no último ano recebeu uma proposta de
patinar em dupla com o favorito a ganhar o campeonato nacional, o Gavin
— automaticamente, o odeio. E o quão estressante foi jogar os últimos
meses no lixo porque não conseguia confiar o suficiente nele para
patinarem como deveria.
— Que merda do caralho — é tudo o que consigo dizer. — Sinto
muito, Donna. Queria que as coisas tivessem sido diferentes.
— Eu também — concorda, mas logo ela suspira, como se
estivesse deixando o assunto de lado. — Vamos contar para ela amanhã.
— Já? — Ergo as sobrancelhas, com a mudança brusca de assunto.
— Eu estou…
— Com medo? — me interrompe. — Eu sei. Também estou, mas
acredite em mim, aquela garotinha precisa saber o quanto antes.
Assinto.
— Como acha que ela vai reagir?
— Não tenho certeza se será tão bem. Lis pode ser um pouco
volátil de vez em quando. Ela pode achar o máximo, mas…
— Pode me odiar — completo.
— São palavras fortes, mas, talvez, ela fique chateada por um
tempo.
Eu suspiro e viro a cabeça em direção a Donna, que faz o mesmo.
— Escuta, sei que seis anos preso é muito tempo. Não faço ideia
do que isso pode ter causado na sua cabeça, mas quero que saiba que eu
estou aqui se quiser desabafar ou fazer algo assim. Sei que é tudo diferente
agora, talvez seja bom se dar a chance de recomeçar. Fazer algo que nunca
fez antes de ir preso ou que não pode fazer por causa disso. Não pode
esquecer que está livre agora. E que a Lis vai precisar de você bem.
Ela passa algum tempo me observando em silêncio enquanto eu
faço o mesmo, admirando seu rosto iluminado com a claridade da lua cheia
e suas sardinhas, as quais sinto tanta, mas tanta, saudade de beijar.
Parecemos os mesmos de seis anos atrás, ao passo que parecemos
dois estranhos.
E isso é esquisito pra caramba.
Donna me tira dos meus pensamentos quando suspira alto e se
levanta, batendo as mãos no short para tirar as gramas que ficaram
grudadas.
— Bom — começa —, sei o que fazer para acalmá-la antes de
contar tudo. Vamos preparar o café preferido dela, levá-la à escola juntos e
deixar o Oddie fazer o que quiser durante o dia. Depois do nosso treino, a
buscaremos na escola e a trazemos para cá. Pensei em contar em algum
outro lugar, mas como eu disse, ela pode ser um pouco volátil, então é
melhor fazermos isso aqui e… ver no que vai dar.
Deixo um pequeno riso nasalado escapar depois que ela para de
ditar as ordens.
— Mandona como sempre.
Donna ergue as sobrancelhas, brincalhona.
— Boa noite, Benjamin. Espero que o sofá seja bastante
confortável.
— Não esqueceu da minha nova mantinha, certo?
— Jamais poderia. — Revira os olhos. — Engraçado, porque eu
nunca tive aquela mantinha sendo oferecida a mim.
— Ciúmes?
— Jamais — brinca, me arrancando um sorriso. — Estou indo.
Temos um dia cheio amanhã.
Ela gira os calcanhares, pronta para voltar para dentro de casa
quando chamo seu nome, fazendo-a paralisar, esperando que eu continue.
— Por que não adotou nenhum cachorro antes? — pergunto,
olhando para as suas costas. — Eu lembro de quando dizia que queria
adotar pelo menos cinco.
Um minuto de silêncio se passa. Talvez mais.
Donna parece estar dividida entre me contar o motivo ou não.
— Não parecia certo sem você.
E assim ela se vai.
Me deixando com a sensação de que, talvez, não seja tão tarde para
nós dois.
Esquecer é o que dói
E eu só sou o que lembro
Tenho em mim tantos sóis
E um pequeno argumento
Minha Voz | Versos Que Compomos Na Estrada

Estou sendo observado.


Essa é a primeira sensação que tenho quando percebo que
amanheceu.
A ansiedade não me deixou dormir direito durante a noite.
O sofá não chega a ser desconfortável. Pelo menos para mim, que
passei seis anos dormindo em um bloco de concreto e um cobertor que mal
me protegia do frio, dormir aqui, parece até um deleite.
E Lis estava certa sobre a sua mantinha. Ela foi a única coisa que
me trouxe um pouco de tranquilidade. E tudo isso porque tem o cheirinho
dela.
Acho que aquela garotinha nunca vai fazer a menor ideia do quanto
me salvou.
Mas, bem, a questão é que devo ter dormido por uma, talvez meia
hora, e agora sinto que estou sendo observado.
E bem de perto.
Perto a ponto de sentir um dedinho intruso em frente ao meu nariz,
como se estivesse conferindo se estou vivo. E isso me arranca uma risada
nasalada, fazendo Lis recolher o dedo rapidamente, como se nada houvesse
acontecido.
— Bom dia, Ben! — ela saúda, assim que abro os olhos, dando de
cara com o seu rostinho amassado e os cabelos para o alto como se não os
penteasse há dias, mas seu sorriso continua ali.
— Bom dia, princesa — respondo, ainda focado em seu sorriso. —
Por que está acordada tão cedo?
— Tenho aula daqui a pouco.
Desbloqueio meu celular rapidamente, vendo que, apesar de já
estar claro do lado de fora, ainda faltam dez minutos para as seis da manhã.
— Mas ainda está muito cedo, não acha?
Suas bochechinhas ficam vermelhas.
— Eu vim ver se você dormiu bem.
É a minha vez de sorrir.
Meu Deus. Como é possível amar tanto alguém que conheço tão
pouco?
— A sua mantinha me ajudou muito — conto uma meia-verdade.
— Acho que vou precisar dela por mais algum tempo.
— Ela pode ser um presente para você! — diz, arregalando os
olhinhos como se acabasse de ter uma ideia brilhante. — Ou…
— Ou…? — incentivo, curioso para saber o que irá dizer.
Sento-me no sofá e Lis se levanta da mesinha de centro, sentando-
se ao meu lado. Cubro suas pernas com a mantinha, dividindo o cobertor
com ela enquanto me encara com uma carinha de culpada.
— Um pedido de desculpas.
— Por qual motivo exatamente?
— Você me disse que era feio contar mentiras quando disse para a
mamãe que o Oddie era seu. E eu fiquei pensando nisso e não dormi, Ben,
porque menti para você também.
Me tornei um bobo.
Ela abre a boca e eu suspiro.
Acho que nunca amei tanto alguém na minha vida. Nunca senti que
meu coração poderia saltar pela boca a qualquer momento apenas pelo fato
de amar tanto uma pessoa minúscula, que apronta mais do que deveria e
está sempre se metendo em problemas maiores que ela.
— Você quer me contar qual foi a mentira? — pergunto,
incentivando-a.
Pelo que percebi quando as duas conversavam, é que Donna nunca
força Lis a nada. Ela sempre parece fazer perguntas que a incentivem a
contar ao invés de fazer a pergunta de fato. Gosto disso. E parece deixar Lis
mais confortável também, ela parece se sentir mais à vontade dessa forma.
— Eu sabia que a sua casa teria problemas se ligasse a torneira do
andar debaixo porque um amigo meu já morou lá e todo mundo da cidade
fala sobre isso. Então, quando cheguei da escola fiquei escondida atrás do
arbusto e esperei você sair para ligar a torneira e fazer você ir morar na rua,
Ben — ela conta, devagar e baixinho.
Pela sua expressão, parece que está contando sobre um crime
imperdoável ou, pelo menos, finge isso muito bem.
Eu quero rir, mas me contenho.
Não estava esperando por isso.
E acho que não tenho muita maturidade para ser pai. Não de Lis.
Eu sinto que nunca vou conseguir dar uma bronca nela sem me sentir o pior
ser humano do mundo porque ela é simplesmente adorável.
— Mas, Ben, eu não fiz por mal.
Eu respiro fundo, engulo a risada com muita dificuldade, tentando
manter a minha expressão impassível e pergunto:
— E por que você fez isso?
— Estou com vergonha de te contar — confessa, franzindo os
lábios. — Não quero que você me ache boba.
— Você não é boba, neném — respondo de imediato, virando-me
em sua direção para ficarmos frente a frente. Passo uma das mãos pelo seu
cabelo, tentando fazer com que eles fiquem um pouco mais apresentáveis e
também como forma de carinho. — E fiquei sabendo que sou seu novo
melhor amigo, o que significa que você pode me contar o que quiser e eu
vou te escutar.
Ela assente e segura a minha mão quando estou prestes a afastá-la
do seu cabelo. Lis traça pequenos círculos na minha palma com calma, mas
parece nervosa quando responde:
— Quando eu nasci, eu já amava a minha mamãe. E depois amei
os meus tios, mas quando eu te vi aquele dia, Ben, eu senti que também
amava você desde quando eu saí da barriga da minha mamãe.
Silêncio.
As únicas coisas que meus ouvidos conseguem captar nesse
momento são as batidas do meu coração e os pássaros do lado de fora da
casa. A única coisa que consigo sentir é a alegria que toma o meu corpo e
seu dedinho traçando minha palma.
Eu senti que também amava você desde quando eu saí da barriga
da minha mamãe.
Eu fico em silêncio por um tempo. Por muito tempo. Não sei o que
dizer para ela. Acho que se eu abrir a boca vou falar que sou o pai dela e
vou estragar tudo. Não quero errar com Lis. Quero ser o mais perfeito
possível para ela.
— Desculpa, Ben, eu achei que seria legal te trazer para morar aqui
porque a minha mãe já te conhecia e você é o meu melhor amigo. Eu vi que
você não tem família e nem amigos, e isso é muito triste. Eu só tenho dois
amiguinhos, minha mamãe e os meus tios. E eles sempre me ensinaram que
é certo dividir tudo, então achei que deveria dividir tudo com você. Para
você não se sentir sozinho e ir embora daqui.
Ela fala rápido. Como nunca a vi fazer antes. Seus movimentos na
minha mão param e eu percebo que ela respira com dificuldade, ansiosa.
E eu sinto sinceridade em cada uma das suas palavras. É por isso
que não consigo segurar a lágrima que insiste em cair, desejando, com todas
as minhas forças, poder voltar no tempo.
Hoje. Agora. Nesse exato momento. Essa é a primeira vez que me
arrependo da noite de dez de junho. É a primeira vez que me arrependo de
ter feito o que fiz.
Porque também é quando me dou conta de que perdi todas as
primeiras vezes de Lis.
Não a vi crescer na barriga de Donna. Não a vi se mexer. Não fui o
primeiro a segurá-la quando veio ao mundo. Não passei noites em claro
acalentando seu choro. Não troquei suas fraldas. Não sei qual foi a sua
primeira palavra. Não vi seu primeiro passo. Não fiz nenhum dos rabiscos
na parede que indicam a sua altura.
Eu perdi tudo.
Ainda não descobri sua cor favorita. Não sei o que gosta de comer
além de lasanha, ou de beber além de café. Não sei se prefere short ou
vestidos. Se é intolerante a algum tipo de alimento, ou se é alérgica.
Quão miserável e egoísta sou quando insisto em dizer que não me
arrependo daquela noite? Quando não insisti mais em procurar Donna
mesmo preso?
Deus!
Estou diante da garotinha mais linda, mais perfeita, mais adorável
do mundo e tudo o que quero fazer é me ajoelhar perante ela e lhe pedir
perdão.
Quero lhe pedir perdão por todas as vezes em que não estive aqui
para dar um docinho escondido da sua mãe. Por todas as vezes que não
participei de alguma apresentação da escola. Por todos os primeiros
momentos em que ela viveu. E que eu não estive aqui.
Mas não posso voltar no tempo.
E eu quero tanto fazer isso agora.
— Você ficou triste? — ela pergunta, seu semblante ficando cada
vez mais apreensivo. — Desculpa, Ben, só estou falando a verdade, não era
para ficar triste. Olha, meu amigo diz que eu falo muita besteira, e eu acho
que falei uma agora, né? Mas eu posso desfalar, eu posso…
— Princesa — interrompo-a. — Não se sinta mal por isso, eu não
estou triste.
— Não?
— Não. Estou feliz. Quer saber por quê? — Ela assente. — Tinha
muitos anos que o meu coração estava desse tamanhinho aqui. — Junto o
polegar e o indicador, mostrando para ela.
— Uau, isso é bem pequeno.
— Sim — concordo. — Mas a melhor parte é que no dia que
cheguei aqui em Lake Thorne e uma garotinha muito bonita e simpática
falou comigo, ele ficou desse tamanho.
Abro os braços o máximo que posso, vendo um sorriso começar a
nascer em seu rosto.
— E a garota sou eu?
— Claro! Quem mais seria? Não conheço mais nenhuma garota
legal que gosta de Garfield e café.
— Eu conheço outras — diz, desconfiada, parecendo muito com a
mãe quando ficava enciumada.
— Mas eu conheço apenas você — refuto, vendo o seu sorriso
ficar maior.
Um pigarro chama a nossa atenção, nos fazendo encarar a escada,
onde uma Donna, também com cara amassada e cabelo despenteado, nos
encara com desconfiança.
— Eu posso saber por que acordaram tão cedo?
Lis me encara, jogando a bomba para mim.
— Ela tem aula daqui a pouco — respondo a primeira coisa que
me vem à cabeça.
— E preciso lembrar o Ben de alimentar o Oddie.
— Ela precisa me lembrar de… — paro no meio da frase,
encarando Lis com os olhos arregalados.
— Oddie! — falamos ao mesmo tempo, nos levantando
apressados.
Depois que desci as escadas à noite, não o vi mais. Estava tão
chateado e triste que mal me lembrei do pobrezinho. E, pelo visto, Lis
também não.
O que significa que Donna irá nos matar antes do esperado. E
chutar o rabo dele pra fora daqui antes que eu ou a pequena possamos fazer
algo.
— Estão falando do cachorro quietinho e pequenininho que não me
deixou dormir porque ocupou metade da minha cama?
— Ele dormiu com você? — Lis pergunta, um pouco chocada, um
pouco indignada. Assim como eu. — Eu queria dormir com você, mamãe.
Eu também.
Não pronuncio as palavras, mas acho que fica claro em meu
semblante, já que Donna me encara em repreensão e eu apenas retribuo com
um sorriso, sem vergonha alguma que ela saiba disso. Suas bochechas
coram e ela volta a falar com Lis.
— A mamãe já disse que, agora, você precisa se acostumar a
dormir sozinha.
— Eu sei, mamãe, mas é que é muito gostoso dormir abraçadinha
com você — Lis diz e logo se vira para mim. — A mamãe abraça bem forte
quando tenho pesadelo, Ben, e debaixo da minha cama não tem nenhuma
barata porque ela coloca veneno toda semana.
— Uau, princesa. — Finjo estar espantado. — Parece que a sua
mamãe cuida muito bem de você.
— Sim — ela concorda. — Ela não me deixa tomar café todos os
dias e nem me deixa usar as maquiagens dela. Às vezes, ela fica bravinha
porque esqueço a toalha na cama e não lembro de desligar a torneira
enquanto escovo os dentes, também tem algumas vezes que…
— Lis… — Donna chama, arrastada, quase em um gemido de
lamurio. — Eu ainda estou aqui, filha, pode deixar para falar mal de mim
depois?
— Não estou falando mal, mamãe, estou falando para o Ben que
nem todo mundo é perfeito, eu, por exemplo, tenho o nariz torto que deve
ter sido do meu pai.
Minhas sobrancelhas se unem instantaneamente, ao mesmo passo
que coloco a mão no meu nariz, como se quisesse checar o fato.
Donna, por vez, cai em uma gargalhada alta e histérica, que faz até
mesmo com que dobre seu corpo, como se esse fosse o ponto alto do seu
dia.
São seis e duas da manhã.
— Ser sua mãe é uma bênção, Lis.
— Eu sei, mamãe, sou um anjinho — ela refuta, sendo modesta. —
Você não acha, Ben?
— Sim, princesa, um anjinho muito caridoso — concordo, porque
embora seja muito convencida, eu tenho o novo papel de concordar com
tudo o que ela diz.
— Bom, já que todos acordaram, é melhor nos aprontarmos logo
— Donna diz, já caminhando em direção à cozinha e parando do outro lado
da ilha, ligando a máquina de café. — Temos um longo dia de treinos e
aulas.
Dou o primeiro passo para a cozinha, mas paro quando ouço o
barulho de algo pesado caindo e me viro, preocupado. No entanto, noto que
é apenas Lis, que se jogou de costas no sofá e agora está começando a
gemer como se estivesse com dor.
— Estou tão cansada! — ela choraminga. — Se eu tivesse um
amigo grandão e forte que pudesse me carregar até a cozinha, iria me deixar
muito descansada, já que hoje eu tenho que ir para a escola, e lá eu me
canso bastante, porque…
Forço um revirar de olhos e seguro-a como se pesasse uma pena,
carregando-a. Lis para de falar e começa a sorrir assim que consegue o que
quer. Seguro-a como se fosse o bem mais precioso que já toquei – e ela é –,
enquanto a pequena abraça meus ombros, toda sorridente.
— Elisa, é melhor que você se lembre de que o Ben é uma visita e
não está aqui para fazer as suas vontades — a mãe dela reclama.
— Eu não pedi nada, mamãe — se defende, ainda em meus braços.
— Ele que se ofereceu, não foi, Ben?
— Sim, princesa.
Donna ergue uma das sobrancelhas.
— O que foi?
— Vai mesmo concordar com tudo o que essa pestinha diz?
— Sim? — respondo, ou pergunto, não sei. — Eu tenho outra
opção?
— Potinho do palavrão, mamãe. — Lis aponta.
— Não falei nenhum palavrão.
Ela faz um biquinho chateado e coloca a mão em frente ao peito
direito.
— Mas o meu coração ficou ofendido, mamãe. Você não deveria
me chamar de pestinha.
Toco sua mão, arrastando-a para o lado certo do coração e Donna
bufa, mas Lis sorri, como se essa fosse a rotina das duas. Uma viver
irritando a outra.
— Vou colocar apenas um dólar.
— Meu tio Alessandro colocaria duzentos.
— Você está vendo o seu tio por aqui?
— Não.
— Então vai ganhar um dólar.
— Você não acha ela muito mão de vaca, Ben?
— Si… — começo, mas interrompo a palavra ao receber um olhar
ameaçador que chega a ser sinistro. — Não sei responder, princesa.
Donna levanta na ponta dos pés e retira de cima da geladeira uma
nota de um dólar, caminhando até o outro lado da cozinha para colocá-lo no
que parece ser um cofrinho.
Aproveito que Donna se vira de costas para derramar um pouco do
meu café em seu leite. Ponho meu indicador em frente à boca, quase
implorando para que finja que isso não aconteceu e ela me mostra seu
polegar, bastante animada.
Tenho para mim que Donna sabe o que aconteceu quando se vira e
nota o sorriso de orelha a orelha que está estampado no rosto de Lis. Mas
ela apenas me encara e deixa os ombros caírem, balançando a cabeça em
negação antes de se sentar à nossa frente para comer seu sanduíche.
— Eu mereço.
— Tenho uma proposta — Dinara dispara assim que nos sentamos
à sua frente. — Um contrato de namoro falso.
— Não.
— Sim — a empresária rebate.
— Não — Donna repete e olha diretamente para Dinara quando
responde: — Não sou a sua sobrinha. Não vou cair nesse golpe.
— Primeiro: não é um golpe se você já tem uma filha com ele.
Segundo; essa história vende. Veja Aurora[17]; reatou um namoro antigo,
voltou a mídia e, além disso, Blake[18] também estava preso e não sabia da
filha. Imagine o quão rápido o nome de vocês subiria para os favoritos logo
após o anúncio?
— Quem são esses? — pergunto, mas sou ignorado pelas duas.
— Primeiro, é um golpe. Lembre-se de que tenho uma filha e que
não quero confundir ela. Nunca mentiria para Lis, e também nunca contaria
que estou mentindo para a mídia, isso vai totalmente contra tudo o que
ensino a ela. Segundo; foda-se que história vende. Se patinar com Benjamin
não é o suficiente, sinto muito, talvez seja melhor voltar à competição solo.
E terceiro…
Dinara ergue as sobrancelhas quando o silêncio perdura por tempo
demais, como se esperasse por uma resposta que não vem, provavelmente
porque Donnatella não tem argumentos para a terceira sugestão.
— E já que tocamos nesse assunto, ninguém nunca desconfiou
sobre o namoro falso da minha sobrinha e você também não desconfiaria se
eu não te contasse.
Suspiro, tentando relaxar contra a cadeira. Embora o assunto me
envolva, não sei se estou a fim de me intrometer. Estou mais preocupado
com o que irá acontecer essa noite do que com a possibilidade de fingir um
namoro com Donna.
O que é óbvio que ela negaria. Eu não seria contra – se minha
opinião fosse pedida –, mas é complicado. Isso confundiria Lis demais. Já
basta a enxurrada de informações que ela irá receber hoje e quanto tempo
levará para processar.
Minha mãe era fã de livros de romance. Principalmente os que
envolviam namoros e casamentos falsos. Vez ou outra, ela me contava sobre
essas histórias e o quanto era necessário para os personagens se sujeitarem a
essa situação.
Logo, o que Dinara diz, faz sentido; construir uma narrativa de que
somos um casal, quando todos estão se perguntando quando Donna irá
anunciar um novo parceiro, chamaria ainda mais atenção. E se o público
dela percebeu o quanto ela ficava travada com o seu antigo parceiro, devem
esperar que o novo seja, no mínimo, bom no que faz.
— Não vamos fingir um relacionamento. — Donna decide, antes
de se virar para mim: — Algo a acrescentar?
Ergo uma das sobrancelhas.
— Você não acabou de responder por nós?
Donna sorri, orgulhosa e volta para Dinara.
— Ficamos acordados assim, então.
A empresária se dá por vencida ao revirar os olhos e arrasta um
segundo papel em minha direção.
— Bom, já que a opção mais viável parece impossível — diz,
como se repreendesse Donna, que não se abala. — Assine aqui e
automaticamente serei sua empresária, e neste aqui, vocês se tornam uma
dupla.
Estendo a mão para pegar a caneta, mas antes, Donna arrebata o
papel de minhas mãos, folheando com rapidez antes de voltar à primeira
página e focar na leitura.
— Você viu o que ela sugeriu? Quem sabe o que pode estar escrito
nas letras miúdas?
— Sua estima por mim é tocante, Donnatella — a empresária
responde, levantando-se, mas não parece ofendida quando sorri em minha
direção, carregando sua bolsa como se fosse uma pena. — Mas ela está
certa, Benjamin. Leiam tudo antes de assinarem. Estou a uma ligação de
distância caso tenham algo a acrescentar.
Assinto.
— E sobre minha história com a cadeia? — pergunto, um pouco
preocupado.
Não que eu me importe com o que as pessoas pensarão de mim,
mas me preocupo com a forma com que Lis me verá quando souber disso
pelas perspectivas dos outros.
— Acho que já estão cientes de que, em algum momento, haverá
uma entrevista ou ao menos um pronunciamento sobre Lis e o passado de
vocês, principalmente sobre a cadeia — Dinara diz, me olhando. — Farei o
possível para que ao menos o motivo pelo qual foi preso seja abafado, mas
é meio impossível fazer com que as pessoas não descubram. Então, mesmo
que não queiram confundir Elisa, estamos falando de mídias sociais aqui,
quando for anunciado oficialmente que são uma dupla, o assédio em cima
de vocês pode ser maçante, principalmente agora que já sabem que vocês
foram um casal e patinaram juntos. É bom que preparem a filha de vocês, e
contem a ela o quanto antes, porque o anúncio sairá logo que assinarem e a
entrevista acontecerá assim que a poeira abaixar.
— Quando acha que isso pode acontecer? — é a vez de Donna
perguntar.
— Semanas, talvez um mês — a empresária responde. — Como
disse, o anúncio sai logo que assinarem, o que espero que seja hoje — dá
ênfase na última parte. — Estarei em Lake Thorne para tentar controlar ao
máximo os haters e possíveis julgamentos quando a entrevista acontecer.
— Eu peço para entregarem no seu escritório ainda hoje — Donna
informa, mas está focada demais lendo. — Vou ver o que Alessandro pode
fazer a respeito da ficha do Ben.
— Você quem manda — Dinara responde sarcástica, indo em
direção à porta de saída do escritório da Arena.
Bufo, já cansado de toda essa burocracia. Era tudo mais fácil
quando precisávamos apenas patinar.
Volto a me acomodar e seguro o braço da cadeira em que Donna
está sentada, arrastando-a até que esteja mais próxima para que eu também
possa ler. O gesto brusco acaba arrancando um gritinho dela.
— Porra! — repreende, me olhando de lado e fazendo com que eu
sinta sua respiração em meu rosto. — O que deu em você?
Penso em responder algo. Ou melhor, deveria pensar em algo para
responder.
Mas simplesmente não consigo.
Não consigo porque, de repente, meu corpo está muito consciente
da sua presença. E, de repente, me lembro que já faz seis anos desde a
última vez em que estivemos tão perto.
Seis anos que não a toco.
Fico indeciso entre tomar uma atitude ou me afastar. Neste
momento, não sei o que seria sensato ou não. E Donna parece estar com a
mesma dúvida, pois também não faz nada para se afastar, mas desvia o
olhar para minha boca, fazendo-me perder completamente a sanidade
quando morde seu lábio inferior.
— Está nervosa?
— Por que estaria?
Um riso nasalado me escapa, fazendo sua atenção retornar aos
meus olhos.
— Às vezes, você esquece que eu te conheço muito bem,
Donnatella.
— Odeio quando diz o meu nome.
— Por quê?
— Porque me tira do sério.
Deixo que um sorriso cresça em meus lábios.
— Donna?
— Sim.
— Me beija? — pergunto, em um ímpeto de coragem, olhando
diretamente para os seus olhos, querendo que perceba nos meus que o que
quero dela, nesse momento, vai além de desejo. É mais. Sempre é. — Me
beija como se eu ainda fosse seu?
Não preciso repetir.
Não quando as mãos de Donna se infiltraram em meus cabelos e os
papéis vão parar no chão.
Não quando nossas bocas se colidem.
Não quando a calmaria me invade, à medida que ela me beija com
ânsia.
Sua boca toma a minha com urgência, como se estivesse tão ou
mais necessitada que eu. Posso sentir sua respiração de alívio quando
nossas línguas se entrelaçam, de início, afoitas, procurando uma pela outra
como dois alucinados. Depois, devagar. Como se nossos corpos entrassem
em um consenso.
Temos todo o tempo do mundo agora.
Quando menos percebo, Donna está de pé à minha frente, sem
desgrudar sua boca da minha, fazendo nossas alturas fiquem semelhantes.
Eu abraço sua cintura com força, querendo mantê-la o mais próximo que eu
consigo.
Suas mãos continuam a explorar meu cabelo, enquanto sua língua
faz o mesmo com a minha boca até que nos falte ar. Mas Donna não me
solta de imediato. Ainda estou de olhos fechados quando sinto sua boca
beijar minha testa, e então cada uma das minhas pálpebras fechadas.
Minhas bochechas são o seu próximo alvo antes de morder meu queixo de
leve e me dar um selinho.
E a cada toque, a cada sensação, a cada batida a mais que provoca
em meu peito, é como se tudo se encaixasse.
Como se estivesse se conectando.
Se encontrando.
Suas carícias me trazem uma sensação gostosa.
E a certeza de que, não importa quanto tempo se passe, eu sempre
irei pertencer a ela.
— O que fazemos agora? — pergunto, nossas testas grudadas e
olhos fechados, nenhum de nós querendo fugir desse momento.
Nada importa.
Aqui, agora, dentro desse escritório, quando volto a ouvir o som da
vida que estava adormecida em mim soar ainda mais alta em meus ouvidos,
nada importa.
Agora, não existe nosso passado ou nosso futuro.
Não há tudo o que perdemos.
Nada disso importa.
Apenas o turbilhão de sentimentos que nos tomou desde o
momento em que nos colidimos.
— Agora, é hora de contar para Lis.
Agora, é hora de definir o futuro.
Eu, das cinzas, como uma fênix
Estou renascido e aprendi também a voar
L’altra Dimensione | Maneskin

Benjamin está nervoso.


Isso fica muito claro quando passa o caminho inteiro quieto,
batucando em suas próprias coxas conforme dirijo até o Lake Throne
College.
Parece ficar ainda pior quando estaciono e consigo ouvir sua
respiração alta e ritmada ao passo em que as crianças vão saindo
acompanhadas por seus responsáveis.
Suspiro antes de tocar sua mão levemente, sentindo tudo em mim
formigar apenas por isso – como acontece todas as vezes –, para chamar sua
atenção para mim.
— Ela vai entender — garanto, mesmo sem certeza.
— E se não for assim?
— Ben…
— Ela disse que eu era melhor amigo dela. Ela não me quer como
pai.
— Ela te conhece há uma semana, Benjamin. Elisa precisa de uma
conversa sincera e de tempo.
— Vamos contar sobre a cadeia — ele reitera, como se isso fosse
motivo o suficiente. — Ela nunca vai me querer como pai dela quando
contar a verdade.
— Benjamin — chamo, mais firme. — Elisa precisa de conversa e
tempo. — Respiro, sentindo que não importa quantas vezes eu diga isso, ele
ainda parece se prender em sua própria cabeça. — Ela tem seis anos e
merece saber a verdade. Talvez ela demore a processar a informação, e
talvez isso seja um pouco difícil no início, mas temos que nos preocupar
com isso quando vermos a forma com que ela lidará com as informações.
Sei que está inseguro, mas confie em mim quando digo que Lis irá entender.
Ele suspira, e por alguns segundos, aperta minha mão, fechando os
olhos como se o simples ato o acalmasse.
— Estou nervoso — se justifica, ainda de olhos fechados. — E
com medo. Não quero cometer os mesmos erros…
— Não termine de falar — interrompo-o. — Não somos nossos
pais. Você não é um homem ruim. E eu estou aqui para ajudar no que
precisar. Pense no que está fazendo agora, por exemplo, está preocupado
com o que ela irá pensar ou como irá agir. Isso já é um bom sinal. Você se
preocupa com ela e ela te ama. Vai dar certo, Ben.
Ele assente.
— Eu também a amo — sopra, como se estivesse guardando essas
palavras por tempo demais. — E é esquisito porque sinto que a amo há
muito tempo, mesmo que a conheça a pouco.
Sorrio em sua direção, sabendo que apesar dos pesares, não
poderia haver outra pessoa melhor para ser pai de Elisa. Mesmo que ele não
acredite nisso agora.
— Bem-vindo à paternidade, Ben. Ela te dá muitas dores de
cabeça, mas você irá adorar. — Aperto sua mão mais uma vez antes de
tomar a atitude de desfazer nosso toque.
Abro a porta do carro, vendo Lis caminhar para fora toda
emburradinha de mãos dadas com a professora.
— Achei que tinha me esquecido, mamãe — ela reclama, me
fazendo sorrir. Sua expressão chateada se desfaz no instante em que a outra
porta do carro é aberta. — Ben!
Lis se desfaz do aperto da professora, que acena para mim em
cumprimento enquanto corre em direção ao pai, se atirando em seus braços
como se não se vissem há anos, sendo que tomaram café juntos. Essa
manhã, inclusive.
— Princesa, que saudade!
— Eu também estava com muita saudade, Ben — ela tagarela. —
Acredita que hoje tive uma conversa com a doutora de sentimentos e falei
de você?
Ben franze as sobrancelhas, fazendo-me sentir vontade de rir.
— E o que você disse?
— Não posso dizer, foram perguntas muito pessoais.
— Mas você falou bem ou mal de mim?
Elisa revira os olhos antes que eu dê as costas para os dois, abrindo
a porta do carro.
— Bem — responde. — Mas não vou te contar o que é.
— Nem se eu te der um pouco de café?
— Nada de café — me pronuncio, virando na direção dos dois. —
Aposto que o café que deu a ela hoje de manhã ainda nem começou a fazer
efeito.
— Foi apenas um pouco.
— Sim, mamãe, bem pouquinho, eu nem senti o gosto — ela diz.
— Eu me comportei bem na escola e amanhã é sábado…
— Nada de café à noite — corto, apavorada com a ideia.
Da última vez que deixei Elisa tomar café à noite, minhas olheiras
ficaram tão grandes que precisei usar mais maquiagem que o normal para
escondê-las. Não consegui dormir com toda a cantoria do karaokê
improvisado que ela montou na nossa sala.
E ela cantou a noite toda.
Meus tímpanos nunca mais foram os mesmos depois daquele dia.
E também depois daquele dia, nunca mais deixei que ela me
convencesse. Não importa o quanto consiga ser fofa e convincente, café
durante o dia já é perigoso porque parece que há um efeito duplo nela. À
noite, parece que estou lidando com sete crianças dentro de uma. E eu
definitivamente não tenho suporte para isso.
Já passei por muitas situações traumatizantes desde que me tornei
mãe, a começar pelo parto. E dar café para Lis à noite, com certeza, está no
top dez de coisas mais aterrorizantes da minha vida.
— Donna, e se for só um pouquinho?
— Isso não tem negociação.
— Mamãe… — Ela está pronta para fingir o choro que tem
naquela lista que pensa que não sei que tem. — O Ben vai cuidar de mim.
— Princesa, a mamãe já conversou sobre isso, não foi? —
pergunto e ela assente, deitando no ombro de Ben ao se dar por vencida. —
Amanhã de manhã, prometo que deixo você tomar uma xícara bem cheinha.
— Sério, mamãe? — Ela levanta rápido.
— E o Ben vai cuidar de você depois.
— Eu falei pra você que ela nunca resiste ao choro — ela tenta
sussurrar para ele, quando pensa que estou distraída ajustando a cadeirinha
e conferindo se continua segura.
Normalmente, quem busca Lis na escola são os meus irmãos ou
Isabela, mas pedi para que ela avisasse aos dois que não precisava dessa
vez. Hoje, ela teve aula integral, o que facilita um pouco, já que o horário
em que ela sai bate com o meu na arena.
— Mandou bem, princesa — ele responde e consigo ouvir quando
os dois batem na palma um do outro.
Reviro os olhos, dando espaço para que ele a coloque na
cadeirinha. Benjamin coloca o cinto em Lis e confere duas vezes antes de
fechar a porta do carro e suspirar.
— Vai dar tudo certo — ele diz.
— Vai dar tudo certo — repito, vendo-o dar a volta no carro e
sentar no banco do passageiro. Suspiro antes de entrar no veículo e assumir
meu lugar no banco do motorista.
Dou partida no carro.
— Como foi o seu dia? — pergunto a ela, olhando-a através do
retrovisor. — Se divertiu?
Ela faz um sinal com a mão.
— Mais ou menos — responde. — Tivemos uma conversa com a
doutora do sentimento e eu chorei um pouquinho, mas depois falamos de
coisas boas. Não tive aula de matemática hoje e briguei com o Victor.
— Por quê? — Minha curiosidade a atropela, sem deixar que ela
conclua. — Vocês são amigos.
— Amigos também brigam, mamãe — Elisa responde, e posso ver
de relance quando revira os olhos, como se estivesse cansada de me dizer
isso. — Ele disse que Maneskin era uma banda ruim, acredita? E falou para
me irritar.
Benjamin finalmente parece menos nervoso quando ouve ela dizer
isso. E eu sei o porquê. É a banda favorita dele também.
— Você gosta de Maneskin, princesa?
— É a minha banda favorita do mundo inteiro!
— A minha também!
Percebo, então, que nunca poderei deixar Ben e Elisa tomarem café
à noite, ou nunca mais poderei dormir em paz.
Porque além de dividirem o mesmo neurônio, o mesmo rostinho,
trejeitos, banda favorita e o sangue, Benjamin e Elisa também têm mais
uma semelhança: são péssimos cantores.

O jantar é feito em silêncio depois que digo que iremos conversar


quando terminarmos.
Benjamin mal toca na comida, eu igualmente. Lis, por sua vez,
parece não comer nada há dias, porque come em uma rapidez
impressionante.
Enquanto nós parecemos dois idiotas, rodando o garfo em nossos
pratos e a observando terminar de comer macarronada, sabendo que, após
essa conversa, há um milhão de possibilidades do que pode acontecer e que
não podemos prever qual delas.
— Acabei — Elisa anuncia, ainda engolindo a última garfada. —
Eu não fiz nada de errado. Bati no Victor porque ele me chamou de chata
quando defendi o Damiano e ainda não estudei para a prova de geografia
porque não tive tempo, o Oddie pediu carinho e tava tristinho. E o Ben
também não fez nada, mamãe, lembra que ele está sozinho, não pode botar
ele para fora agora, é falta de educação.
Ela dispara em falar, o que me faz soltar um risinho e segurar sua
mão por cima da mesa.
— Lis, respire — comando, vendo-a fazer isso, ainda me olhando
com atenção. — Não é nada disso, ok?
— O que é então? — pergunta, e seu olhar corre para o outro lado
da mesa. — E por que o Ben precisa participar?
Sei que é uma pergunta inocente. Ela o faz porque sempre que as
nossas conversas sérias acontecem, meus irmãos só estão presentes quando
estão envolvidos no assunto, logo, Ben estar na mesa com a gente parece
estranho para ela.
— Porque, dessa vez, é uma conversa mais complicada e o Ben faz
parte disso.
Elisa olha novamente para Ben, como se procurasse em seu
semblante algo que a ajude a entender, mas tudo o que encontra lá é uma
mistura de medo e nervosismo.
— Eu acho que estou nervosa, mamãe, não estou entendendo.
Suspiro.
— Nós vamos te contar uma história.
— Só isso?
— Vai entender quando terminarmos, princesa — Ben diz,
finalmente.
E isso parece ajudá-la a respirar melhor.
— Lembra daquela história que a mamãe contou sobre o tio Ale ter
feito algo errado e o seu avô ter nos separado? — pergunto e ela assente. —
A mamãe foi morar em outra cidade, em Boston. E lá eu tive que estudar
em outra escola, fazer novos amigos e construir uma nova vida.
— Eu sei, mamãe, foi lá que nasci — ela completa, percebendo
que eu também estou nervosa.
— Sim, meu amor. Também foi lá que conheci o seu papai.
— Você também já me contou isso — ela diz, e olha rapidamente
para Benjamin, mas dirige a pergunta a mim: — O Ben conhece ele?
Engulo em seco e ele pigarreia, ambos sem saber como prosseguir.
— Lembra que quando conversamos no jardim aquele dia você me
disse que levaria os patins da sorte da sua mamãe? — pergunta, tentando
transparecer calma. — E que quando nos encontramos lá na arena, você
perguntou se éramos amigos?
— Sim, Ben — ela o responde. — A mamãe disse que vocês eram
amigos.
— Fomos um pouquinho mais que isso — ele diz e a única reação
de Lis é continuar encarando-o. — Nós dois fomos namorados.
É quando tudo muda. As sobrancelhas de Lis se franzem e seus
lábios tremem levemente.
— Você mentiu para mim, mamãe?
Suspiro.
— Não, neném — respondo rapidamente. — Primeiro, fomos
amigos, depois, nos tornamos namorados. E nós queríamos que você
soubesse de algumas coisas sobre isso.
— Mas, mamãe, se você namorou o Ben, ele conhece o meu papai.
Eu respiro fundo.
E é quando encaro Benjamin.
— Princesa… — ele chama a sua atenção, fazendo-me prender o
ar. — Eu sou o seu papai.
Por um segundo, minha atenção se detém nele, que fixa os olhos
avermelhados em nossa filha. A vontade de chorar em mim se torna
esmagadora quando um minuto se passa.
Em silêncio.
— Você não pode ser o meu papai, Ben. — Ela aperta os lábios,
rebatendo com rapidez. — Meu papai deixou a minha mãe sozinha. Ele me
abandonou. E você nunca faria isso comigo, não é? Você não me
abandonaria como o meu papai fez. Você é bom e gentil, o meu papai não.
Ele não tem tempo para mim. Ele não pode ser você.
— Lis — interrompo, percebendo sua confusão, e também a forma
com que as palavras parecem atingir Benjamin. — É por isso que queremos
conversar. Precisamos te contar porque o Ben foi embora, filha. E não é
mentira, ele é o seu papai.
— Mas… — Lis começa, sua voz se quebrando ao meio sem que
possa completar a frase e eu encaro ela, que olha para a mesa como se
estivesse perdida. — Eu falei que estava libertando o meu papai aquele dia
e você não disse nada. Você não me queria? Foi por isso que deixou eu e a
mamãe sozinhas?
— Filha, o Ben não sabia que eu estava grávida de você quando
precisou ir. E também não sabia que era seu pai quando se conheceram.
— Eu disse para você que amava o Ben e mesmo assim você não
me contou. Você e ele mentiram pra mim.
— Não, neném — Benjamin tenta dizer, suas lágrimas
escorregando. — Não é isso, eu não…
— Você disse que era feio mentir e mesmo assim mentiu para mim,
Ben — Elisa acusa, os lábios trêmulos e as lágrimas escorrendo do seu
rostinho, fazendo tudo em mim se apertar. — Você mentiu! Eu achei que
também fosse a sua melhor amiga. Por que você fez isso? Eu não te amo
mais. Eu não quero você. Não quero que seja meu pai.
Ela se levanta com tanta raiva e rapidez que sua cadeira chega a
cair, antes que dispare a correr pela casa, subindo as escadas sem que
qualquer um de nós possa impedi-la, batendo com força a porta do seu
quarto segundos depois, quase o suficiente para estremecer as paredes.
— Lis… — Ben tenta chamá-la, levantando-se, mas eu faço o
mesmo para impedi-lo de ir atrás dela. — Donna, ela…
— Eu sei — interrompo-o, segurando seus braços. — Olhe para
mim — peço. Ele demora, mas o faz, parecendo não ter pretensão alguma
de esconder as lágrimas de mim. — Ela só precisa pensar, lembra? É uma
novidade. Ela não estava esperando por isso.
— Ela não me quer.
— Ben, ela acabou de descobrir que o pai dela voltou. Lis esperou
por você literalmente a vida toda, e justamente quando achou que não viria,
você apareceu. Eu sei que foi horrível ouvir aquilo, mas lembre que ela é
uma criança, e pelo que a conheço, é assim que lida com tudo. Explode e
depois resolve. Ela é sua filha.
Dou ênfase na última parte, para que se lembre de que essa parte
ela não herdou de mim. É algo que veio inteiramente dele. Ele explode,
deixa a raiva aflorar e depois resolve o que tem de resolver.
— Eu sei, só que… — Ele senta na cadeira novamente. — Eu
esperava algo diferente, acho.
Esperava que ela aceitasse rápido. Acho que é o que quer dizer.
Mas não é assim que Elisa lida com o mundo e acho que Ben começará a
compreender isso a partir de hoje.
— Do que precisa agora? — pergunto, me colocando à sua frente e
segurando seu rosto, limpando suas lágrimas.
— De um abraço seu.
A resposta me leva anos atrás, quando pedia o mesmo quase
sempre que estávamos sozinhos e ele estava triste demais para conseguir
expressar isso através de palavras.
E eu não penso duas vezes antes de fazer o que pede. Assim como
não pensei mais cedo, quando me pediu para beijá-lo.
Eu tentei. Tentei não deixar que esse tipo de coisa acontecesse e
estava certa de que, entre nós, tudo o que haveria de agora em diante seria
uma parceria por conta de Elisa.
Mas a verdade é que meu coração é bobo quando se trata dele.
Abraço-o pela Donna de antes, que enfrentaria o mundo para ver
um sorriso em seu rosto. Abraço-o pela Donna de agora, que entende a
situação dos últimos seis anos e que hoje, particularmente, talvez seja o dia
mais difícil desde que descobriu que é pai.
Fico de pé entre suas pernas, enlaçando seus ombros com os braços
e apoiando sua cabeça em minha barriga. Benjamin me abraça de volta com
força e posso sentir quando suas lágrimas começam a molhar minha
camiseta novamente.
É um choro dolorido.
E genuinamente entendo, de uma vez por todas, que Benjamin
nunca teria rejeitado a mim ou a Elisa se eu tivesse conseguido lhe contar
sobre a gravidez na época em que descobri.
Ele faria totalmente diferente dos exemplos que tínhamos em casa.
E, agora, sei que fará.
A aproximação faz parecer como se retornássemos no tempo. Um
tempo onde éramos o refúgio um do outro e quando nos abraçávamos, era o
momento em que sabíamos que poderia acontecer o que fosse, nada
importava.
Exceto que hoje importa.
Tomo uma profunda respiração antes de enfiar as mãos em seus
cabelos, amaciando-os enquanto o deixo me usar de consolo e dou um
pouco mais de tempo a Lis para processar o que ouviu.
Não esperava que ela falasse aquelas coisas. Esperava que ela
ficasse chateada, mas não que sentisse raiva ou que explodisse dessa forma.
Isso também me tira do eixo, me deixa sem saber o que fazer.
Não sei quanto tempo se passa enquanto afago seus cabelos e Ben
abraça minha cintura, mas ouço meu celular tocar e olho para trás, vendo-o
em cima da mesa, próximo de onde eu estava sentada. Afasto-me um
pouco, mas continuo entre suas pernas, me inclinando para trás, sentindo
quando a mão de Ben segura minha cintura quando quase me desequilibro e
agarro o aparelho.
Itsalessandrolombardim: o que está acontecendo?
Itsmatteolombardi: donna???
está tudo bem???
Itsalessandrolombardim: ela ligou chorando, disse algo sobre
você mentir
e pediu para que Matteo a buscasse.
Itsmatteolombardi: eu devo ir?
Suspiro, sem saber o que fazer.
Não gosto de deixar Elisa com acesso a telas enquanto está longe
de um adulto. Não que faça ou procure por algo errado, mas não é o tipo de
estímulo que gostaria de dar a ela no dia a dia. Mas ela tem um tablet que
usa quando tem permissão, as poucas coisas que faz é assistir Garfield e
ligar para mim, ou meus irmãos. O quê, pelo visto, ela fez.
— Vamos — chamo-o, depois de mostrar as mensagens. —
Precisamos tentar conversar com ela.
Itsdonnatellalombardi: não.
contei para ela sobre Benjamin e ela não lidou bem.
mas irei conversar com ela, não se preocupem.
Eles respondem algo, mas eu acabo não dando tanta atenção,
preocupada em como vamos lidar com essa situação. Ben se levanta e eu
tomo a frente em direção ao andar de cima.
O corredor está em completo silêncio. O que me causa uma
sensação de angústia inexplicável. Ele está sempre cheio de vida com suas
gargalhadas, e agora parece tão triste que me dá um aperto no peito, mesmo
que ainda seja o mesmo corredor de sempre.
— Elisa — Ben chama, batendo na porta. — Vamos conversar?
Ouço seu fungar do outro lado.
— Não.
— Lis, não quer ouvir o resto da história? — É a minha vez de
tentar.
— Não quero falar com vocês.
Nós dois nos encaramos.
De nada irá adiantar forçá-la a algo nesse momento,
principalmente se esse algo for falar conosco. Então, conhecendo-a bem, sei
que o certo é deixá-la processar tudo em seu tempo e conversarmos quando
ela estiver mais calma.
— Nós vamos te deixar quietinha, ok? — digo, não obtendo uma
resposta e isso faz tanto a mim quanto a Benjamin murchar os ombros. —
Acha que podemos conversar amanhã?
Demora um pouco até que ela responda.
— Sim. — Sua voz soa um pouco mais calma. — Eu ainda vou
poder tomar café mesmo que tenha ficado muito brava?
Sorrio.
— Sim, amor.
E quantas noites eu juro que te amo
Ou que estou com você
Mas eu acordo sozinha a perigo
O que é que eu posso fazer?
E não adianta tentar
Me iludir
Não quero mais você
Não Faz Mal | Stefany Vaz

Eu viro na cama, mas não consigo dormir.


Faz frio à noite.
A mamãe colocou a mantinha que dei para o Ben no meu quarto
ontem, para não estragar a decoração da sala, então preciso levar lá para o
sofá para que ele possa se cobrir.
Ainda estou chateada, mas não posso deixar ele sem a mantinha.
Ele pode morrer de frio.
É por isso que abro a porta do quarto devagar, sem fazer barulho,
segurando a manta com a outra mão. Mas não preciso nem andar para
cobrir Ben com a mantinha, porque ele está dormindo de braços cruzados e
sentado no corredor bem em frente ao meu quarto.
Não entendo por que ele mentiu para mim. E nem por que demorou
tantos anos para vir aqui ser o meu pai. E isso me deixa chateada. Eu queria
que ele tivesse chegado antes.
Sei que disse coisas feias. Disse até que não queria que ele fosse meu
pai, mas eu quero.
Não menti para a mamãe quando disse que amo o Ben antes de
conhecer ele. Agora eu sei que é porque o meu coração sempre soube que
ele era meu pai.
Eu que fui muito boba para não perceber. E eles foram muito ruins
comigo em mentir.
Mesmo chateada e cheia de perguntas para fazer, abro o cobertor de
várias cores que comprei quando o pote do palavrão encheu pela primeira
vez. Ele estava comigo quando acertei seis de dez questões de matemática
do dever de casa uma vez, então ele se tornou o meu cobertor da sorte. Às
vezes ele erra, mas a mamãe sempre diz que não tem nada perfeito no
mundo e eu acredito nela. Mesmo que ela tenha mentido para mim.
Quando coloco a coberta em cima de Ben, ele abre os olhos rápido,
como se estivesse assustado, mas logo volta ao normal quando percebe que
sou eu. Dou um passo para trás quando termino de cobri-lo.
— Oi, neném — ele diz, baixinho. — Ainda está brava comigo?
Balanço a cabeça em afirmação.
— Muito brava?
Mostro meu polegar e indicador juntos, querendo dizer para ele que
estou só um pouquinho brava.
— Não quer falar comigo?
— Estou com vergonha.
— Por quê?
— Porque gritei e falei coisas feias — explico, olhando para baixo. —
A doutora do sentimento diz que quando estamos com raiva, fazemos essas
coisas, mas é importante nos desculparmos depois. E ainda não sei
nenhuma forma de fazer isso.
— Tudo bem, eu também grito e falo coisas feias de vez em quando
— ele responde. — E você estava chateada, não tem problema ficar assim
às vezes.
Volto a olhar para ele, decidindo o que fazer.
Giro em direção ao meu quarto e pego meu maior travesseiro,
carregando-o até o corredor onde ele está. Coloco ele ao seu lado e me
sento, mas acaba sendo inútil porque não consigo ficar na altura dele
mesmo que ele também esteja sentado. Ele é muito grandão.
— Você é mesmo meu pai?
Ele balança a cabeça que sim.
— E por que não me contou?
— Porque eu não sabia sobre você — explica.
— Mas eu tenho seis anos. — Ergo seis dedos, voltando a ficar
chateada. — Como você não sabe que tem uma filha de seis anos?
Ben respira fundo e para de me olhar pela primeira vez desde que
acordou. Ele olha para o meu quarto, que está com a porta meio aberta e
morde a boca, do mesmo jeito que a mamãe faz quando está nervosa, antes
de olhar para mim. Ele estende uma ponta do cobertor para mim, cobrindo
nós dois antes de dizer:
— Eu fiz uma coisa feia. Uma coisa que depois que descobri que me
fez ficar longe de você, me arrependi muito de ter feito.
— O que aconteceu?
— Eu fui preso, neném — Ben diz e eu arregalo os olhos. Não estou
gostando disso. Eu assisti um filme que se passava na cadeia uma vez e não
era muito legal. As pessoas brigavam muito lá dentro e eu não gosto de
brigas. E também não gosto de pensar que o Ben estava lá. — E a sua
mamãe não ficou sabendo. Então, ela descobriu que estava grávida de você
e nunca pôde me contar porque não sabia onde me achar. E eu não
conseguia falar com ela, porque meu irmão não a encontrou.
— Você tem um irmão?
— Sim, o nome dele é Asher.
— Eu vou poder conhecer ele? — pergunto.
Meus tios não vão gostar de saber que tenho mais um tio, mas eu vou
ficar muito feliz com isso. Principalmente porque terei mais alguém para
brincar e fazer perguntas. Se ele for igual ao Ben, deve gostar de Garfield e
de café.
— Se quiser, sim — responde, com um sorriso pequeno. — Ele ainda
não sabe que é titio.
— Você não contou para ele?
— Ele está um pouquinho ocupado essa semana, vou esperar ele estar
mais livre para pedir que ele venha te conhecer. Mas só se você quiser.
— Eu quero. — Assinto e começo a ter mais dúvidas. — Como você
achou a gente se não sabia que era meu papai?
— Eu vi um vídeo na TV sobre a sua mãe e que ela morava aqui. Vim
pra cá correndo, e no mesmo dia, conheci você.
— Era meu aniversário — conto, mesmo que ele já saiba disso.
Lembro que contei quando nos falamos.
— Eu sei, ouvi você no pula-pula e quando cantaram parabéns.
— Sabia que eu pedi para o meu papai voltar quando assoprei as
velinhas?
— Então acho que foi isso que fez eu voltar para cá bem naquele dia,
pequena — responde, sorrindo. — Quando eu te vi pela primeira vez,
descobri que sempre quis ser o seu papai.
— Então você sempre quis ser o meu papai e só não sabia que eu
existia? — eu pergunto baixinho, tentando entender. — Tipo quando eu
descobri que o tio Alessandro é o Papai Noel e o tio Matteo é o Coelho da
Páscoa?
Ben ri, mas não parece estar me achando boba.
— Algo assim, neném.
— Um pai de verdade?
— Se você quiser, sim.
— Um papai que vai me dar café todos os dias de manhã?
Ben ri.
— Isso não, neném — nega e eu faço um biquinho. — Sua mãe me
explicou que ser seu papai significa que eu e ela temos que conversar sobre
tudo o que envolve você. E ela já me disse que você só pode tomar aos
sábados porque te deixa mais agitada que o normal.
— Mas se vão conversar sobre mim, pode pedir pra ela deixar eu
tomar no sábado e na segunda?
— Por que na segunda? — pergunta, com as sobrancelhas juntas.
— Porque eu fico com muita preguiça na segunda.
Ele assente, concordando comigo. Todo mundo sabe que segunda é
dia da preguiça.
— Hum, certo, vou conversar com ela sobre café na segunda.
— Ela vai dizer que não, mas eu tenho uma lista de coisas que você
pode fazer para convencer ela.
— Tipo o quê?
— Tipo imitar o Gato de Botas, conhece ele?
Ben ri alto quando termino de falar e eu arregalo os olhos, colocando
a minha mão em frente à sua boca.
— A mamãe não gosta de ser acordada — explico baixinho. — Ela
pode querer jogar você e o Oddie para fora de casa se você a acordar. E
agora que você é o meu papai, pode querer me mandar junto, e nós não
podemos ficar sem o abraço quentinho da mamãe, ele é muito importante. E
muito quentinho.
— Eu sei, neném, vou fazer silêncio — ele diz baixo, concordando
comigo. — O abraço da sua mãe é o meu segundo abraço favorito do
mundo todo.
— E qual o primeiro?
— O seu — Ben responde e sinto meu rosto ficar quente.
Ele gosta de mim.
E é o meu papai.
Mesmo que eu tenha dito coisas feias para ele, ele ainda gosta de mim
e meu abraço é o favorito dele.
— Te amo — eu digo, abraçando seus braços fortes e me
aconchegando nele. — Acho que não tem nenhuma outra pessoa no mundo
inteiro que poderia ser meu papai. Só você. Desculpa por ter dito aquelas
coisas. Eu quero muito que você seja o meu papai.
Ben funga.
— Eu também te amo, neném, tanto que nem sei descrever o
tamanho. E não há nada no mundo que me deixe mais feliz em saber que
tenho você.
Fico feliz em saber disso.
Eu gosto de ser amada por ele.
— Eu tenho uma pergunta.
— Posso responder quantas quiser, princesa.
— Você disse que tem um irmão — começo, lembrando das coisas
que me contou. — E que a sua mamãe estava no céu, mas e o seu papai?
Ben engole devagar.
— Eu nunca tive um papai. O homem que me criou era muito mal.
Ele fazia coisas ruins para mim, meu irmão e a minha mãe.
— Ele fez isso com você? — Toco o cantinho da sua boca, onde tem
uma marca parecida com a que tenho no joelho, de quando cai da bicicleta.
— Sim, neném. Ele me deu muitas cicatrizes no corpo e no coração.
— Eu também tinha muitas cicatrizes no coração, sabia?
— É mesmo? — pergunta, parecendo curioso e preocupado. — E não
tem mais?
— Não, Ben, todas as cicatrizes do meu coração sumiram quando
você apareceu.
A boca dele treme, parecendo que ele vai chorar.
Desse tamanho e chora toda hora.
— Foi por isso que fiquei chateada no jantar — conto. — Porque
você me faz muito feliz, junto com a mamãe, o Oddie e os meus tios. Achei
que você tinha mentido para mim, que tinha abandonado eu e a mamãe.
— Se eu soubesse que era seu pai, nunca teria deixado você longe de
mim.
— Mesmo?
— Mesmo. Sabia que até o dia que eu te conheci, meu coração nunca
tinha batido tão forte?
— Como se estivesse perto de sair do peito? — pergunto e ele
assente, abro a boca. — Eu também!
— Jura? — Assinto. — Sabia que você tem o mesmo nome da minha
mamãe?
— Sério? — Faço a pergunta, feliz. A mamãe do Ben parece ter sido
muito legal. — Você acha que eu pareço com ela? Acha que ela ia gostar de
mim?
— Claro que sim, princesa! — ele afirma. — Minha mamãe e você
eram muito parecidas. Meu irmão tem algumas fotos dela, vou te mostrar
quando se conhecerem. Ela iria adorar você. Minha bailarina era professora
de francês e de balé, foi ela que apresentou sua mãe a mim.
— Ela era bailarina? — pergunto, empolgada.
— A melhor que eu já vi — ele diz. — E eu já vi muitas.
— Você também sabe dançar balé?
— Sim, precisei aprender para patinar melhor e isso também me
ajudou a conquistar sua mãe.
Quando ele diz isso, uma lâmpada acende na minha cabecinha e acho
que ele consegue ver, porque fica me encarando estranho.
— Sobre isso que você disse — começo. — Você e a minha mãe
estão juntos? Tipo namorado igual os pais da Layla?
— Hum… — Ele pensa muito antes de me responder. — Não,
pequena.
— Por quê?
— Por quê? — me pergunta de volta.
— É, me conta por que vocês não estão juntos.
— Não sei responder essa pergunta — ele diz, parecendo tão confuso
quanto eu.
— Mas você gosta dela?
— Se eu gosto da Donna? — ele pergunta, e seus olhos escuros
começam a brilhar mais. Parece até que vai iluminar o corredor. — Eu amo
a sua mãe.
— Mesmo que não tenham se visto durante taaaaanto tempo?
— Vou te contar uma coisa, pequena, que talvez você entenda apenas
quando for grande; quando nosso coração encontra o seu par, não importa
quanto tempo se passe, ele sempre amará esse outro coração.
Meu nariz se enruga.
— Não entendi mesmo.
Ben ri baixinho, sabendo do nosso acordo de fazer silêncio para a
mamãe não acordar.
— Quis dizer que nem se eu tentasse, conseguiria parar de amar a sua
mãe.
— Mas isso não explica o porquê de não estarem juntos.
— Acho que a sua mamãe não sente o mesmo que eu, neném.
Espremo os olhos na direção dele, tentando pensar em algo que possa
ajudá-lo. Ele com certeza ama a minha mamãe.
— Mas nós dois podemos resolver isso.
— É mesmo? — pergunta, parecendo curioso. — E como seria isso?
— Quer mesmo ouvir? É muita coisa e está tarde. Li que adultos
precisam dormir por oito horas.
— Claro que quero ouvir, posso te ouvir a noite inteira, neném.
— Então eu falo, mas antes preciso que me prometa uma coisa.
— Qualquer coisa.
— Preciso que prometa que nunca mais vai embora — peço,
querendo chorar só de pensar em ficar longe dele por mais seis anos. — E
que nunca vai deixar eu ou a mamãe sozinhas.
Benjamin não ri e nem leva na brincadeira o que digo. Ele levanta o
mindinho e o estende na minha direção.
— Eu prometo isso com a minha vida.
Coloco meu dedo no dele, selando a promessa.
— Então agora tudo o que precisamos é de um plano para você
conquistar a mamãe.
Sorrimos juntos.
A mamãe não está pronta para a melhor coisa que pode acontecer na
vida dela.
Você me explica sua teoria
De que a gente se repete
Vidas e vidas aqui no mundo
E eu acredito em tudo
universo de coisas que eu desconheço | Anavitória feat. Lagum

Esse cachorro, definitivamente, é o meu carma por ter inventado uma


alergia inexistente.
Ele simplesmente não desgruda de mim.
Não sei mais o que fazer para que entenda que preciso de um pouco
de espaço.
Eu não faço ideia de como ele consegue subir na cama sendo tão
pequeno e com uma barriga maior do que a cabeça dele. E nem como
consegue roubar o meu lugar sendo dez vezes menor do que eu.
Se vou ao banheiro, ele levanta e vem atrás. Oddie fica sentado, me
encarando pacientemente.
Se suspiro, ele faz o mesmo. Um pouco mais alto.
Se reclamo que ele toma meu espaço na cama, o pestinha ocupa ainda
mais.
É quase como se eu estivesse lidando com a Elisa de dois anos. A que
imitava todos os meus movimentos e conseguia me fazer questionar minhas
decisões na maior parte do tempo.
Até nisso, ele me acompanha. Já está amanhecendo do lado de fora,
mas Oddie e eu não fechamos os olhos. Dessa vez, ele até mesmo se deitou
quietinho contra o meu corpo, sem se mexer tanto ou tentar roubar meu
travesseiro.
Em algum momento, comecei a fazer carinho nele enquanto me
perdia em pensamentos e me questionava o que mudaria a partir dessa
noite.
Minha cabeça estava tão barulhenta que nem mesmo me dou conta do
tempo passando até que olhasse para a tela do celular acendendo com uma
notificação e notasse que o despertador tocaria dali a meia hora.
Pego o aparelho, notando que se trata do grupo que tenho com os
meus irmãos e que ele contém centenas de mensagens. Não costumamos
nos falar em particular, porque não há nada que escondemos um do outro no
dia a dia.
Pelo menos, era o que eu pensava.
Achei que estavam sendo sinceros comigo como fui desde o início.
É chato estar nessa situação com eles, principalmente porque sempre
foram meus melhores — e únicos — amigos.
Eu os perdoei por não estarem comigo durante a gravidez. Afinal, era
consequência dos meus atos. Eu tinha que lidar com aquilo e, naquele
momento, eles também estavam lidando com os seus próprios problemas.
Matteo estava tentando pegar o que era nosso — a empresa — de
volta das garras do nosso pai, e Alessandro estava preso por algo que
sempre se recusou a nos contar.
Meu irmão mais velho sempre foi o cérebro. Metódico e
extremamente racional. Alessandro era a emoção. Volátil e temperamental.
E eu… sempre fui o meio-termo. Talvez porque boa parte da minha infância
tenha sido eles que verdadeiramente me criaram.
Vestiam-me para ir para a escola quando eu tinha seis, levavam-me ao
cinema quando eu tinha dez, assistiram High School Music comigo na
minha primeira menstruação, aos treze.
E eu sei, no fundo da minha alma, que vão cuidar de Elisa com o
mesmo zelo e carinho, não importa o que aconteça entre nós. Elisa é o
nosso elo. Nossa esperança de algo diferente.
Mas é muito recente.
Ainda sinto o gosto amargo da traição em minha boca e, por isso,
preciso de um tempo. Talvez um pouco mais do que penso.
Itsaleessandrolombardi: ainda cedo para perguntar como mia vitta
está?
Itsmatteolombardi: sim, Donna acabou de responder, não percebeu?
Itsalessandrolombardi: percebi, Matteo, do contrário, não veriam as
merdas que você digita.
Itsmatteolombardi: por que não vai se foder?
Itsalessandrolombardi: por que você não vai foder?
assim, aproveita para deixar o celibato e
para me deixar em paz um pouco.
você me estressa.
Itsmatteolombardi: se eu seguisse seus conselhos,
provavelmente estaria na boca
daquela fofoqueira mais vezes do que
você esteve.
Itsalessandrolombardi: não faça piadas de duplo sentido.
e não fale daquela fofoqueira,
ela é assunto proibido.
Para todos nós, capito[19]?
Itsmatteolombardi: você me colocou em muitas
merdas ultimamente.
e se quer saber
Itsalessandrolombardi: é melhor não terminar de digitar.
Itsmatteolombardi: não foram de duplo sentido.
gosto de loiras.

Itsalessandrolombardi: eu disse para não terminar, cazzo[20]!


e você, definitivamente, não gosta daquela loira.
Itmatteolombardi: quer pagar para ver?
Itsalessandrolombardi: toda sua.
Itsmatteolombardi: ficou putinho?
Itsalessandrolombardi: não.
Itsmatteolombardi: beleza, vou pedir para Isabella
ligar para ela amanhã.
Itsalessandrolombardi: ela não vai fazer isso.
uma pena para você.
podemos voltar ao assunto?
Itsmatteolombardi: vou mostrar esses palavrões a Lis.
Itsalessandrolombardi: não quero falar com você.
Donna, pode dizer como Lis está?
Itsmatteolombardi: eu sabia que estava putinho.
Itsalessandrolomardi: Donna?
Itsmatteolombardi: não adianta me ignorar,
moro a três casas de distância.
Itsalessandrolombardi: quem disse que estou em casa?
Itsmatteolombardi: sou CEO de uma empresa de segurança.
estou te rastreando agora mesmo.
Itsalessandrolombardi: DONNATELLA!!!! APARECE!
vou cortar meu sinal dessa porra.
Itsmatteolombardi: casa da Isabella?
Itsalessandrolombardi: que nojo, pare de
pensar besteiras.
seu celibato está te levando longe.
Itsmatteolombardi: só porque não sabe com
quem transo não significa que estou em celibato.
Itsalessandrolombardi: DONNATELLA, ME LIVRA DESSE MAL!!!
Itsmatteolombardi: não é como se você merecesse
qualquer tipo de misericórdia da nossa irmã.
Itsalessandrolombardi: ah, sim, e você é inocente.
Itsmatteolombardi: graças a você, devo informar.
Itsalessandrolombardi: DONNATELLA!!!
Você perdeu 92 ligações de Itsalessandrolombardi.
Itsmatteolombardi: PARA COM ESSA PORRA!
ela vai responder em breve,
deve estar com a Lis.
ou com o Benjamin.
Itsalessandrolombardi: nojento!!!
Itsmatteolombardi: sabia que a Lis não foi feita com o dedo?
Itsalessandrolombardi: não tire a minha inocência.
ela é minha irmãzinha.
pare de colocar essas coisas na minha cabeça.
Você perdeu 112 ligações de Itsalessandrolombardi.
Itsmatteolombardi: puta que me pariu.
Itsalessandrolombardi: ela era uma puta mesmo.
Itsmatteolombardi: concordo.
a sua não fica para trás.
Itsalessandrolombardi: vou te ignorar antes que te mate.
DONNATELLA!
Há um sorriso em meu rosto quando termino de ler as mensagens.
Babacas.
Eu estou irritada, não deveria sorrir com as idiotices dos dois.
Itsdonnatellalombardi: Lis está bem.
um pouco chateada, mas bem.
ela achou que estávamos mentindo
sobre o Ben.
vamos conversar mais quando ela acordar,
não se preocupem.
Itsalessandrolombardi: manda ela me ligar.
Itsmatteolombardi: ela precisa ME ligar.
Itsalessandrolombardi: Donna, passei a noite sem dormir.
Itsmatteolombardi: eu também!
por que você sempre tenta ser o favorito?
Itsalessandrolombardi: não seja idiota!
eu sou o favorito.
e por isso a Lis vai me ligar.
Itsdonnatellalombardi: isso parece ser um problema de vocês.
agora, bom dia, irei cuidar da minha filha.
Itsmatteolombardi: você sabe a resposta?
diga para ele que eu sou o favorito!
Sei. Mas é um segredo que Lis confidenciou a mim e pediu para que
eu nunca contasse. A pestinha me fez jurar pelo amor que sinto por ela.
Eu achei um golpe baixo. Mas devo dizer que ela foi bem esperta.
Levanto-me da cama, depois de jogar o celular entre os travesseiros,
não querendo me chatear ainda mais com as mensagens e já começar o dia
dessa maneira.
Oddie me acompanha enquanto faço minha rotina de higiene matinal
e skincare, não sabendo o limite da intimidade. Porém, assim que saio do
quarto, volto um passo ao ver a cena no corredor.
Benjamin está dormindo sentado, coberto com a manta colorida de
Elisa e, no seu colo, está a dita cuja, encolhidinha, protegida nos braços do
pai, que a abraça como se ela fosse a coisa mais preciosa de toda a sua
existência.
E eu sei que é.
Recosto-me na parede, observando os dois.
Como o destino pode ter sido tão cruel a ponto de separá-los? Meus
irmãos realmente pensaram que era uma boa ideia esconder algo de mim? O
que eu teria feito de diferente? O que faria se soubesse que ele estava
preso?
Porque, honestamente, não sei o que teria feito.
Oddie late, impaciente.
Ben abre os olhos instantaneamente, em alerta. E Lis permanece
imperturbável.
Ele olha diretamente para mim quando percebe que não há perigo e se
esquiva um pouco do cachorro quando ele tenta lamber sua boca, me
arrancando uma risada baixa.
— Noite produtiva? — pergunto, dando alguns passos até eles.
Ben deixa de me olhar para voltar sua atenção a Lis, retirando os fios
teimosos de sua testa e a acomodando melhor em seu colo. Dessa vez, ela
resmunga um pouco e balbucia.
— Parece que sim — diz, sem tirar os olhos dela. — Ela pediu
desculpas, disse que me amava e conversamos sobre outras coisas.
— Outras coisas? — Ergo as sobrancelhas, curiosa e ele ergue o rosto
em minha direção. — Que tipo de coisas?
— Sobre… — ele começa a falar, mas, de repente, uma mão cobre
sua boca, impedindo-o de prosseguir. Sua risada é abafada por ela, até que
ele murmura algo que não entendo e ela o libera. — Algumas besteiras.
Espremo os olhos na direção dos dois e Lis me lança um sorriso sem
graça.
— Bom dia, mamãe — cumprimenta, bocejando e me encarando logo
em seguida, parecendo receosa.
— Bom dia, minha vida. — Dou-lhe um pequeno sorriso querendo
mostrar para ela que está tudo bem.
— Podemos conversar depois do meu xixi?
— Claro, filha — respondo-a, e ela tenta se levantar, mas Benjamin
continua segurando-a como se sua vida dependesse disso, me arrancando
outra risada e fazendo Lis resmungar.
— Precisa me soltar, grandão — reclama.
Ele finalmente percebe o que está fazendo e a solta.
Depressa, minha filha se levanta e dá um abraço rápido em minhas
pernas, em seguida corre para o seu banheiro.
— Não sinto os meus braços — Benjamin geme, levantando-se e
movimentando os ombros alguns segundos depois e bocejando um pouco.
— Estão dormentes demais.
Deixo um riso nasalado escapar, tirando a manta dos seus braços e a
dobrando.
— Tem toalhas limpas no meu armário.
Benjamin suspira dramaticamente, colocando a mão no peito.
— Parece que finalmente irei conhecer seu quarto.
— Para de ser idiota. — Dou uma cotovelada nele, rindo da piadinha
besta. — Vou preparar o café.

— Vamos pedir desculpas para a mamãe também? — Eu escuto Ben


incentivá-la baixinho, sentados à mesa.
De costas para ele, seguro um sorriso ao sentir o carinho em sua voz.
Um dia, quando ainda vivíamos em nossa bolha e sonhávamos com a
família que teríamos no futuro, Benjamin me prometeu que, como pai, além
de priorizar nossos filhos, ele sempre os ensinaria a me respeitar também,
como mãe.
Eu sei que ele falava aquilo porque entendia que o respeito sempre
seria a base de um lar. O lado ruim é entender que ele dizia isso não porque
sabia como ser um bom pai, mas porque ele sabia como não ser um.
Agora, vejo que sempre esteve disposto a cumprir a promessa que fez
para mim e, por isso, sei que ele teria sido perfeito desde o início se
soubesse da existência da Lis.
Viro-me para eles quando escuto uma das cadeiras arrastar e vejo
minha menina caminhar até onde estou preparando os ovos do nosso café
da manhã e parar na minha frente.
— Desculpe por falar aquelas coisas, mama, eu estava brava — Lis
diz baixinho, com as mãozinhas atrás do corpo e o olhar caído. — Vou ficar
de castigo?
Suspiro, colocando seu café na caneca do Garfield em 3D no balcão
antes de me abaixar a sua altura. Seguro sua cintura com delicadeza, a
encarando nos olhos para que entenda que não lhe darei um sermão, e sim
para que saiba que está tudo bem explodir as vezes, desde que conserte a
bagunça depois.
— Você e o Ben já se acertaram?
Ela balança a cabeça rapidamente.
— Sim, eu entendi que ele não sabia sobre mim antes e que você
também não conseguiu falar para ele. — Ela franze as sobrancelhas. — Não
faz sentido, mas vocês são adultos e adultos vivem em um mundo que não
faz sentido.
Solto uma gargalhada e Benjamin me acompanha, mesmo que
estivesse fingindo não ouvir a conversa.
Sinceramente? Ela não poderia estar mais certa. O mundo dos adultos
realmente é algo que não faz o menor sentido. O mundo que as crianças
gostam de viver e falar é muito mais interessante e divertido.
— Está tudo bem, querida, não precisa se preocupar em um castigo,
ok? A mamãe entende que você ficou com raiva e que ficou chateada. —
Beijo o topo de sua cabeça e arrasto a xícara em sua direção. — Fico feliz
por vocês terem se acertado.
— Eu também, mamãe. — Ela sorri. — Agora nós poderemos ser
uma família.
Meu sorriso cresce quando diz isso, porque, no fundo, é exatamente
isso que desejo. Que sejamos uma família, que o passado fique para trás e
que tudo se transforme em uma nova rotina.
— E sabe o que uma família faz? — Eu aperto o seu nariz. —
Arrumam a mesa para o café da manhã juntos.
Elisa imediatamente se anima, correndo até a geladeira, recrutando o
seu pai para pegar os itens das prateleiras que ela não alcança. Benjamin,
como sempre, se levanta prontamente e a ergue no colo, permitindo que ela
mesma pegue e vá colocando na mesa.
Quando percebo, meus olhos marejam ao entender esse momento.
Um momento que sonhei em ter por tantos anos e agora é surreal vivê-lo.
Termino os ovos e as torradas, enquanto Benjamin coloca Elisa
novamente sentada à mesa e a serve, com todas as comidas preferidas que
ele já decorou que ela gosta pela manhã. Para a minha surpresa, ele também
passa minha geleia favorita em uma torrada e me entrega. Aceito com um
sorriso e logo Lis começa com as suas tagarelices, bem diferente do modo
como agiu ontem à noite:
— O Victor me contou que o novo filme do Garfield vai passar no
cinema hoje. — Seu rostinho se ilumina. — Podemos ir assistir?
— Claro que sim, filha — Benjamin responde prontamente, também
parecendo animado com a ideia.
— Hmmm — resmungo, sem disposição para uma ida ao cinema.
— O que foi, mamãe? — Elisa murcha, percebendo que não estou
nada animada com a ideia. — Eu quero ir hoje. Se eu for outro dia, tenho
certeza que vou pegar spoilers.
— A mamãe quer descansar hoje, meu amor. — Tento explicar a ela,
mas sua expressão triste me quebra.
— Mas podemos ir nós dois — Ben intervém, tentando trazer o clima
alegre de volta. — Que tal, princesa? Passamos o dia fora para darmos uma
folga para a mamãe e ainda por cima, iremos ver o filme do Garfield!
— Vamos comprar pipoca? — ela pergunta, semicerrando os olhos e
pronta para negociar.
— Com bastante manteiga? — Benjamin pergunta, tão ou mais
empolgado que ela.
Não vai demorar nada para Lis perceber que não precisa fazer
nenhuma negociação com o pai porque ele sempre irá fazer as suas
vontades.
— Isso! — ela comemora, batendo a palma na dele quando ele ergue
a sua, me fazendo revirar os olhos. — Não fique assim, mamãe, prometo
que te conto tudo quando chegarmos!
Depois de terminarmos o café, eu suspiro quando Elisa sobe, animada
para passar o dia com o pai e tagarelando sobre o filme que assistirão mais
tarde. Acho que Lis nunca vai superar essa obsessão pelo gato laranja que
parece tanto com ela.
Benjamin me encara com os olhos semicerrados, como se estivesse
estranhando algo em meu semblante.
— Está chateada? — Nego, balançando a cabeça. — Por que parece
tão estranha depois que disse que iríamos assistir ao filme e não quis vir
conosco?
Eu suspiro, deixando toda a minha exaustão sair junto.
— Quer ouvir a verdade, Ben?
— Sempre.
— Vocês precisam de primeiras lembranças juntos. E… estou muito
cansada. — Dizer as palavras em voz alta parece fazer com que esse peso
cresça ainda mais. — Estou tentando ser forte por ela, mas está tudo ruindo
ao mesmo tempo e já não sei mais fingir que está tudo bem.
— Olha, Donna, se quiser, posso explicar para a Lis que não preciso
ficar aqui. Descobri que tem uma pousada a menos de cinco minutos daqui,
posso vir passar um tempo com ela todos os dias e levá-la também se isso te
ajudar a descansar, eu não quero…
— Ben — interrompo-o, colocando a mão em seu braço para chamar
sua atenção e fazer com que pare de falar. — Não preciso que vá embora.
Estaria mentindo se dissesse que você não é parte de todo esse cansaço, mas
fico melhor sabendo que está aqui, que cuida bem de Lis e se importa com
ela.
Ele respira aliviado ao ouvir minha resposta, e seus olhos brilham à
medida que pronuncia:
— Eu a amo.
— E tenho certeza de que é recíproco — reitero, sorrindo para ele,
que parece radiante. — Mas saber que Lis está bem cuidada, que você irá
me ajudar em relação a ela, não ameniza a dor que estou sentindo por outros
motivos.
— São os seus irmãos? — Assinto. — Por que não conversa com
eles, linda?
Ele pergunta, colocando uma mecha do meu cabelo para trás da
orelha e acho que nem mesmo percebe o apelido que escapa de sua boca e
que faz minha pele formigar.
— Não é tão simples assim — respondo. — Eles mentiram para mim,
entende? Eles sabiam onde você estava e não me contaram nada. Pior que
isso, na verdade, disseram que usaram todos os recursos e não te
encontraram. Eles viram Lis desejar, ano após ano, pelo pai e mesmo assim
ficaram quietos.
— Eu entendo o que eles quiseram fazer, Donna, quiseram te
proteger.
— Ben, por favor, não! — repreendo. — Não os defenda. Eles me
traíram. Viram o quanto doeu ter me sentido uma péssima mãe por todo
esse tempo, por não me sentir suficiente para ela e ter sentido a sua falta.
Mesmo assim, mentiram. Eles são meus irmãos. Eu merecia a verdade,
mesmo que doesse. Essa proteção deles não me faz voltar seis anos no
tempo e tentar de tudo para te tirar da cadeia, ou te contar sobre Lis. Não
fez você ouvir a primeira palavra dela, ou estar aqui quando seus dentinhos
começaram a nascer. Lis sofreu com a sua ausência, muito mais do que
eu…
Benjamin suspira. Ele parece compreender o que digo e sentir tanta
raiva quanto eu, vejo em seus olhos. Mas é o Benjamin aqui. E sei que ele
está se colocando no lugar dos meus irmãos e pensando que faria o mesmo
por Asher.
— Estou pronta! — O grito estridente antes do barulho das escadas
faz com que nos afastemos no automático. — Oddie, desça mais rápido!
Nem havia percebido que estávamos tão próximos.
— Uau! — exclamo, fingindo estar surpresa. — Minha neném está
tão linda.
— Gostou, mamãe? — Ela dá uma voltinha, fazendo o vestido azul e
branco com a saia godê girar junto com ela. — Escolhi o meu vestido
favorito.
— Eu adorei.
— E você? — Ela olha para Ben, suas bochechinhas de repente
ficando avermelhadas. — O que achou do meu vestido?
Acho fofa a forma com que ela parece tão tímida agora que sabe a
verdade, como se esperasse a aprovação dele em cada mínima coisinha.
— Ele ficou incrível, se eu te visse na rua assim, perguntaria qual
princesa você é.
— Não quero ser uma princesa. — Ela enruga o nariz.
— O que quer ser, então?
Ela enruga mais o nariz.
— Ah, não sei, tem muitas opções.
— E muito tempo também — ele completa.
— Verdade — concorda, pensativa, e depois os dois fazem a mesma
expressão. Eu poderia jurar que foi combinado se não soubesse, desde
quando era um bebê que Lis é a cópia exata do grandalhão à sua frente. —
Tem certeza de que não quer vir com a gente, mamãe? Você também adora
o Garfield. E o filme será super legal.
— A mamãe está muito cansada, amor — respondo, me jogando no
sofá com um pouco de drama, vendo Ben rir baixinho. — E mesmo que eu
goste do Garfield, quero assistir outra coisa hoje.
Lis faz uma carinha de nojo e se vira em direção a Benjamin.
— Ela está falando daqueles filmes chatos sobre namorados — ela
explica para o pai, como se ele houvesse perguntado. Então, os dois voltam
a atenção um para o outro. — Vamos logo, Ben, temos que conversar sobre
aquela coisinha no caminho. Acabei de ter uma ideia muito brilhante.
Levanto o tronco rapidamente.
— Que coisinha?
— Nada, mamãe.
— Me conta, não soube de nada.
— Não é nada, Donna, é só uma bobeira que estávamos conversando.
— Ben dispensa com um movimento de mãos.
— Por que não podem me contar, então? — pergunto, com um
beicinho.
Os dois se encaram, como se estivessem tentando bolar uma desculpa.
— Precisamos ir — dizem juntos.
Eu suspiro e ajudo Oddie a subir no sofá. Ele dá algumas voltas em
torno do próprio rabo antes de se deitar ao meu lado e eu abraço a bolinha
de pelos que boceja antes de enfiar o focinho no meu pescoço.
— Parece que nós dois estamos excluídos do assunto de família,
Oddie.
Os dois riem, cúmplices, e eu bufo. Em parte por drama, em parte
porque fiquei realmente curiosa.
Olho para eles e noto o sorriso sutil no rosto de Benjamin. Acho que
pelo simples fato de, pela primeira vez, eu tenha me referido a nós como
uma família.
Lis se aproxima e beija a minha bochecha.
— Você vai gostar quando descobrir, mama.
Benjamin se aproxima quando ela se afasta, saltitante, dizendo que
precisa beber água antes de sair. Ele se agacha na minha frente, quase
igualando nossa altura e coloca uma mecha do meu cabelo para trás da
orelha com carinho, da mesma forma que me olha.
— Ela pode tentar te convencer a beber mais café, mas precisa me
prometer que não importa o quão fofa fique fazendo aquele biquinho, não
vai dar nenhuma gota — digo, arrancando uma risadinha dele.
— Todas as outras coisas estão liberadas?
— Desde que os dois voltem inteiros para casa, sim.
— Eu vou cuidar bem dela, okay?
— Confio em você para isso.
— Descanse, Donna, mas se ainda se sentir sobrecarregada depois
disso, saiba que pode contar comigo para qualquer coisa. Independente do
que seja.
Eu assinto, e então, ele beija a minha bochecha, fazendo meu coração
perder uma batida. Ele se levanta e se afasta, pegando as chaves do meu
carro no aparador e chamando por Lis, como se esse fosse um momento
rotineiro em nosso dia a dia.
E, Deus, meu coração não parece achar isso nenhum pouco
desconfortável.
Muito pelo contrário. Ele parece ansiar por isso.
Pela família que podemos construir juntos.
Enquanto tentava esconder o que sentia através do silêncio, eu fingia
Meus olhos estão se enchendo de lágrimas por trás das minhas pálpebras
Enquanto estou me apegando à raiva
Cry | Benson Boone

CATORZE ANOS
Algumas informações sobre mim:
Amo minha mãe.
Protegeria meu irmão com a minha vida.
Gosto de Maneskin.
E sou viciado em Garfield.
Me considero alguém básico. Comum até demais para alguém tão
fodido.
Poucas coisas conseguem me tirar da realidade que vivo, uma delas, é
a patinação.
Estar no gelo, sentir minha pele esfriar até que não sinta mais as
pontas dos meus dedos, poder sentir a liberdade que os patins me dão a cada
deslize…
É libertador.
Quando era criança, as pessoas diziam que, talvez, fosse melhor que a
minha mãe me incentivasse a jogar hóquei por conta da minha “fama”.
Problemático.
É assim que eles me veem.
Um garoto brigão, irresponsável e mal comportado, que não se
importa em desafiar o próprio pai.
O que eles não entendem é que não conhecem o monstro com o qual
divido o espaço. Não sabem do que ele é capaz de fazer.
Felizmente, minha mãe sempre respeitou as minhas vontades, e
percebeu que meu amor pelo gelo não tinha absolutamente nada a ver com
o esporte.
Também foi bom quando ela notou que mesmo que meu sonho fosse
patinar, eu não era o melhor no que fazia e me ajudou nisso, apesar de
nunca ter colocado um patins nos pés. Mamãe se recusa a fazer isso, pois
tem medo do gelo. O que é, no mínimo, contraditório, já que fica na ponta
dos pés usando um sapato nada confortável.
Elisa deu um jeito de me colocar em um dos horários em que ela dava
aula de balé e isso tem me ajudado muito a me desenvolver na patinação
solo. No entanto, tudo ainda parece tão… solitário.
E isso piora quando as coisas em casa parecem ruir gradativamente,
como se fosse algo perpétuo.
— Parece um pouco disperso hoje, querido — a voz dela soa quando
ultrapassamos os portões para dentro do colégio. — Algo te incomodando?
Estou incomodado com a mancha roxa que vi no seu pulso quando
estava preparando nosso café hoje de manhã.
Estou triste porque sei o que ele fez com você noite passada.
Estou com raiva porque você o ama, e não importa o quanto eu tente,
você não quer sair de lá.
— Estou nervoso para a seletiva da competição regional — conto
uma meia-verdade.
— Você vai conseguir, Ben — meu irmão se intromete, de mãos
dadas com Elisa. — Todos sabem que você é o melhor patinador da cidade.
Reviro os olhos, mesmo que deixe um sorriso escapar.
Ele, com certeza, é meu fã número um e sei que nunca irei patinar
sem plateia na vida, porque Asher sempre estará lá.
Meu irmão é calmaria. Totalmente o meu oposto. E isso o torna frágil
aos olhos de Michael, o que faz minha raiva por ele crescer ainda mais.
— Obrigado, mano, mas estou em terceiro lugar.
— Terceiro é melhor do que último, não acha? — Minha mãe tenta
me animar, parando na entrada do colégio. — Precisa parar de se cobrar
tanto, Benjamin, é apenas um menino. Ainda há muito a viver.
Suspiro, sabendo que tem razão, mesmo querendo muito ganhar as
regionais.
— Vou tentar — resmungo. — É que é bem mais difícil competir nas
apresentações solo. Não há muita visibilidade, sabe?
Elisa me lança um sorriso enigmático.
— Isso será resolvido logo, querido, eu prometo.

— Formem duplas, crianças — minha mãe comanda, fazendo com


que a movimentação comece na sala e eu a encaro em desespero enquanto
ela anota algo em sua prancheta.
Mamãe veste um collant preto e meia-calça da mesma cor. Mais cedo,
seu cabelo estava solto, escorrendo por suas costas, agora, os fios castanhos
estão presos em um coque apertado.
Ela tem um sorrisinho no rosto enquanto finge fazer suas anotações, e
sei o porquê. Ela está aprontando. Suas palavras voltam à minha cabeça no
mesmo instante.
Isso será resolvido logo, querido.
— Não sei o que está aprontando, mas não irá funcionar — aviso,
chegando perto dela em passos rápidos e isso serve apenas para alargar o
seu sorriso. — Mamãe…
Não tenho amizades nesse colégio. Falo com algumas pessoas, mas
nenhuma delas está aqui. E a minha querida mãe sabe disso, porque me
encara sorrindo e faz sinal com a mão para que eu me aproxime mais.
— Por que não vai se oferecer para ser dupla da menina nova? —
pergunta, tocando meu ombro. — Você conhece os últimos movimentos que
estamos estudando e pode ajudá-la a se adaptar melhor, hum? O nome dela
é Donnatella.
Donnatella.
Seu nome ecoa na minha cabeça como uma ode assim que a ouço pela
primeira vez.
— Onde ela está? — pergunto, olhando ao redor.
— Ali. — Aponta para um dos cantos, mas antes que possa girar
meus tornozelos e procurar pela garota. Ela olha em meus olhos com
seriedade: — E Ben? Seja um cavalheiro. Como eu te ensinei.
Seja cavalheiro, diferente do seu pai.
Encaro para o ponto onde sua caneta aponta, vendo uma garota
encarar as pessoas ao redor com o mesmo desespero que eu estava há
alguns minutos. Ela parece perdida, não só em meio às pessoas, mas
também em sua cabeça. Isso dura até…
Até que seus olhos colidam com os meus e um sentimento de
reconhecimento me atinja.
É uma sensação nova e completamente esquisita, mas que de alguma
forma mantém minha atenção presa a ela.
Donatella é mais baixa do que eu, mas não muito. Seus cabelos estão
presos a um coque bem apertado, assim como todas as meninas da sala,
porém os fios parecem ser longos e macios. Ela veste a mesma roupa que
todos na sala, porém, de alguma maneira, parece diferente nela.
— Oi — é a única coisa que consigo dizer quando me aproximo.
— Oi — responde de volta, suas bochechas tomando uma coloração
vermelha que parece ir além do normal, mas que a deixa muito mais linda.
— Quem é você?
Encaro ao redor, apenas para conferir se não há ninguém se
aproximando para tentar fazer dupla com ela, mas estão todos com seus
respectivos pares, conversando e transformando a sala em um lugar
barulhento que eu não gosto.
— Eu sou Benjamin, sua nova dupla.
Um pequeno sorriso começa a crescer em seu rosto bonito e cheio de
sardinhas, mas ela esconde rapidamente quando estende a mão para mim.
— Eu sou Donnatella — diz.
— Eu sei.
— Achei que só tivessem garotas na turma. — Ela aponta, porém não
parece um comentário maldoso. — É o meu primeiro dia.
Há apenas três garotos aqui. Sanders, Miles e eu. E nós três estamos
aqui pelo mesmo motivo:
— Abriram uma exceção no ano passado para os patinadores.
Quando as palavras saem da minha boca, os olhos de Donna se
arregalam um pouco e brilham muito, como se ela mal acreditasse no que
ouvia.
— Você é patinador? — questiona e eu assinto com um sorriso
orgulhoso, contemplando o quanto ela parece gostar disso. — Eu também!
— Jura?
Ela assente, com veemência.
— Se alonguem! — a voz dura de Elisa soa, fazendo todos se
movimentarem.
Donnatella e eu procuramos algum espaço vago, caminhando
automaticamente para um dos cantos, para fazer o que foi pedido. Por sorte,
ficamos perto da barra e a utilizamos para começar. No início, é tudo em
silêncio, como se nenhum de nós soubesse o que falar ou fazer, até que ela o
quebra, me fazendo encará-la diretamente:
— Você… está em alguma competição atualmente?
— Estou nas finais das regionais — digo, sorrindo um pouco. — Mas
é um pouco…
— Sem graça? — chuta, seu nariz se enruga de leve enquanto sorri.
— Isso — confirmo. — Eu amo patinar, mas fazer isso sozinho não é
exatamente o que estou procurando.
— E o que você está procurando?
Sua pergunta me paralisa um pouco e, por isso, me mantenho na
mesma posição, encarando-a como se procurasse por respostas nas estrelas
do seu rosto.
Ninguém nunca me perguntou isso.
Então, respondo a verdade:
— Algo que preencha o vazio.
Donnatella me encara de volta, virando a cabeça um pouco para o
lado, como se analisasse a minha resposta.
— Certo, crianças, em posição! — Qualquer assunto que possamos
começar é cortado quando minha mãe comanda, fazendo o silêncio reinar
na sala.
Coloco-me à sua frente e respiro fundo antes de estender a mão em
sua direção e notar a sua hesitação em aceitá-la, enquanto encara a turma a
nosso redor.
— Vou te ajudar com os passos que estamos ensaiando, tudo bem? —
pergunto, querendo que se sinta um pouco mais à vontade comigo.
E então, acontece.
Nos colidimos.
Quando nossas mãos se unem.
Quando nossos olhares se fixam um no outro, como se houvesse um
magnetismo entre eles.
Quando ela segue os meus movimentos, como se essa não fosse a
primeira vez em que dançamos juntos.
Quando nos distanciamos e voltamos para perto um do outro em
seguida, minhas mãos parando em sua cintura.
Quando ela fecha os olhos e se segura em meus ombros para que eu a
erga.
Quando ela os abre, me encarando de cima como se eu fosse a sua
nova coisa favorita.
Eu sinto.
Eu a reconheço de algum lugar que não sei qual, mas que quero voltar
e não ir embora nunca mais.
É como se as nossas almas estivessem entrelaçadas.
E foda-se que isso soa clichê de ser dito.
Porque ao fim do dia, descubro mais uma coisa sobre mim.
Me apaixonei perdidamente por uma garota.
E ela foi e sempre será a única que habitará em meu coração.
O tempo todo, a única verdade
É que tudo me lembra você
This Town | Niall Horan

Acordo em um colo quentinho em movimento.


Suspiro, me agarrando um pouco mais ao pescoço cheiroso e acho
que até solto um gemido – bastante vergonhoso, aliás – antes de despertar e
entender a situação.
Estou sendo carregada pelas escadas como se tivesse o peso de uma
pena.
Carregada por Benjamin.
— Ben? — chamo, mesmo que saiba que é ele. — Que horas são?
— Quase meia-noite.
Nossa. Não faço ideia de que horas caí no sono. Sei que em algum
momento entre maratonar todos os filmes do Channing Tatum[21], e pensar
em como os dois estariam se divertindo no cinema, eu caí no sono.
E o sono estava muito gostoso. Só não é mais gostoso do que estar
sendo carregada.
Não sei se deveria pedir para me colocar no chão, mas se deveria, não
o faço. Ao invés disso, enfio meu nariz um pouco mais em seu pescoço,
inspirando profundamente e sentindo seu perfume, o que faz Ben rir.
— Isso foi bem esquisito — ele diz, parando para abrir a porta do
meu quarto.
— Estou dormindo.
— Certo. Acredito em você — debocha, colocando-me na cama com
cuidado.
Sento-me, cruzando as pernas quando sinto o colchão debaixo de
mim. Uma parte de mim quer voltar a dormir, a outra quer continuar assim,
encarando-o de pertinho em um momento só nosso. Benjamin parece
entender isso quando aproveita da posição agachada para ficar com o rosto
à minha altura.
— Como foi no cinema? — pergunto. — Ela te deu muito trabalho?
Acho que vou dar uma passadinha no quarto dela para ver como está.
Benjamin sorri quando segura minhas pernas, impedindo-me de
levantar.
— Ela dormiu no carro, no meio do caminho de casa — conta, não
querendo que eu me preocupe. — E respondendo a sua pergunta, foi
divertido. Ela me fez prometer que conversaria com você sobre o café, e
fizemos alguns combinados.
Semicerro os olhos.
— Que tipo de combinado?
— Melhor eu não te contar.
— Benjamin… — Ameaço me levantar e sua mão me para, ele está
sorrindo. — Hoje de manhã, disse sobre coisas, e agora vocês têm
combinados?
— Não se preocupe, ok? Não é nada demais.
Mantenho minha expressão preocupada no rosto, sem saber o que
devo esperar desses dois aprontando juntos.
— E você? — pergunta, estendendo a palma grande, que cobre toda a
minha bochecha enquanto seu polegar sobe e desce pela linha do meu nariz.
— Como foi ficar sozinha?
Solto um gemido, deixando um biquinho tomar minha boca e
prendendo a atenção de Benjamin ali.
— Entediante — respondo, sendo sincera. — É chato ficar sem ela.
Embora tenha sido divertido ficar um pouco sozinha – nem tanto, já
que Oddie continuou sendo minha sombra –, senti falta da minha tagarela,
andando a um passo atrás de mim a todo momento. Quando estamos juntas
em casa, Lis e eu só fazemos isso… Ficamos juntas. É a nossa programação
preferida.
— Poderia ter ido conosco, como sugeri.
— Não, Ben — nego. — Vocês precisam de memórias juntos e eu
quis ficar.
— Temos tempo agora, Donna.
Todo o tempo do mundo.
— Ben?
— Sim.
— Quero fazer uma pergunta muito… pessoal.
— Faça.
Mordo o lábio inferior, encarando-o.
— Depois de mim, quantas mulheres você…
— Nenhuma — ele me interrompe, com a expressão impassível no
rosto. — Por quê?
Paraliso com a resposta. Minhas sobrancelhas se erguem e minha
boca se mantém aberta, a última palavra presa em minha garganta. Como
assim nenhuma?
— Nada? — pergunto, vendo-o negar. — Jura?
— Por que parece tão impressionada?
— Está me dizendo que o que aconteceu ontem, foi o seu primeiro
beijo em seis anos? — Benjamin assente devagar, seu polegar se arrastando
do meu nariz até minha boca quando solto uma lufada de ar. — Que droga,
Benjamin.
— O que foi?
— Fica difícil te superar assim.
— Você quer?
— Acho que não mais.
— É bom saber disso. — Um sorriso bonito cresce em seus lábios
antes de sua expressão se fechar. — E você?
— Alguns…
— Quantos?
— Dois? — indago, desviando o olhar dele. — Dois.
Benjamin desvia o olhar do meu imediatamente.
Vejo quando ele engole seco e então, sua expressão fica sutilmente
tensa. Não perceberia se não o conhecesse tão bem. E quando ele volta a
olhar para mim, está claramente tentando disfarçar.
— Por que parece incomodado?
— Não estou.
— Isso — começo, tocando a ruga entre as suas sobrancelhas — te
entrega.
— Não gosto de te imaginar com outros — admite, suspirando e seu
carinho parando, mas seu toque não se afasta. — Satisfeita?
Mordo um sorriso quando ele revira os olhos e me ajusto na cama,
colocando as pernas para baixo e fazendo com que ele fique agachado entre
elas. Seguro seu rosto emburradinho entre as mãos e me aproximo.
— Você acredita nas coisas que digo muito fácil.
Benjamin revira os olhos ao me ouvir e bufa.
— Filha da puta — me xinga, os olhos estreitados enquanto preciso
me controlar para não rir alto. — Não acredito que iria me fazer acreditar
nessa porra.
— Espero que não tenha dito essas coisas perto da nossa filha.
O sorriso que Benjamin abre ao ouvir o que digo me pega de
surpresa.
É um sorriso genuíno.
É lindo.
— O que foi? — Sorrio também, contagiada pela emoção que vejo
em seu rosto.
— Quando você diz isso faz tudo parecer real.
E então eu entendo.
Elisa é real para Benjamin agora.
Nós somos reais agora.
— Agora é.
Seus lábios se aproximam lentamente dos meus e sua respiração
quente faz carinho em minha pele. Meus olhos se fecham e meus
batimentos cardíacos aumentam em antecipação, no entanto, antes que me
beije, ouço uma batida na porta, seguida de um choramingo:
— Mamãe, minha barriga dói.
Isso me faz levantar em um piscar de olhos e, antes que eu possa
chegar à porta, ouço o som dos seus pés correndo de volta até seu quarto e
me apresso, percebendo quando Ben também se levanta, andando com
rapidez ao meu lado, até o quarto de Lis.
A luz está acesa, assim como a do banheiro, que é onde ela está,
vomitando e chorando.
Ajoelho-me ao seu lado quando Ben se posiciona atrás dela,
segurando seus cabelos com cuidado para que não se suje mais. Aliso suas
costas com carinho, sentindo meu coração se apertar ao vê-la assim.
— Dói muito — ela reclama, limpando a boca com o bracinho.
Coloco as costas da minha mão em sua testa, notando o quanto parece
quente.
Droga.
Febre.
Mau sinal.
— Desde quando está sentindo dor, filha?
— Desde quando acordei — confessa, me olhando de lado.
— Merda — Ben resmunga. — Ela não quis comer quase nada
quando estávamos fora. Por que não me contou, neném?
— Eu queria ir ao cinema com você.
Suspiro, sabendo que dar um sermão nela agora só vai servir para
deixá-la mais sentida. Estendo a mão até o armário debaixo da pia,
procurando pelo termômetro enquanto Benjamin se senta no chão,
colocando-a em seu colo.
Lis se encolhe em seus braços quando ele a abraça, sem se importar
em se sujar do vômito que há em partes da sua roupa e do cabelo.
Quando coloco o aparelho debaixo de seu braço, Lis resmunga ainda
mais, choramingando.
— Você está muito quente, princesa — digo o óbvio, vendo que
Benjamin me encara tentando não transparecer o nervosismo que
visivelmente há nele, ao passo que a aperta em seus braços, confortando. —
Vamos precisar te dar um banho, está bem?
Ela assente, visivelmente abatida.
Benjamin levanta com ela ainda em seu colo e eu tiro o pijama de
Elisa, sentindo seu corpinho mole e quente.
Ela permanece quietinha durante todo o processo, com a cabecinha
caída contra o peito do pai e quando Ben dá um passo para frente, debaixo
do chuveiro morno, o choro de Lis preenche o banheiro.
É um choro que me quebra por dentro, e que não importa quantas
vezes eu já tenha lidado com ele, sempre me causa o mesmo grau de
impotência. Seus braços apertam o pescoço de Ben com força que, por sua
vez, parece a um passo de chorar como ela.
Ele está se controlando ao máximo para parecer calmo e fazer com
que Lis não piore, mas fica nítido em seus olhos o quanto parece
preocupado.
Enquanto eles permanecem debaixo do chuveiro, me adianto a
procurar uma roupa quente para ela e busco um antitérmico. Volto ao
banheiro ao mesmo tempo em que ele fecha o registro e o choro dela
diminui.
— A temperatura baixou um pouco — ele diz, se virando para me
permitir enrolá-la na toalha e a levar de volta para o quarto, fechando a
porta para que ele tenha privacidade de se trocar.
— Se sente melhor, minha vida?
— Um pouquinho, mamãe — responde, enquanto coloco seu pijama
rosa com botões preto. Coloco as costas da mão em seu corpo para conferir
se a temperatura continua baixando. — Posso dormir com o papai hoje?
Vou me sentir ainda mais melhor.
O pedido manhoso me arranca um sorriso e de canto de olho noto Ben
se aproximar.
— Você quer dormir com quem? — ele pergunta, como se quisesse
ouvir melhor. — Acho que não ouvi direito.
Lis o encara com um sorrisinho no rosto e as bochechas vermelhas,
um pouco pela vergonha, um pouco pela febre.
— Com o papai — repete, correndo os olhos até mim. — Não pode?
— Pode, meu amor. — Mordo o lábio, sorrindo. — Tudo para você
ficar bem, certo?
Os olhos de Elisa se tornam duas estrelas brilhantes.
— É claro que está tudo bem, agora eu sou o papai!
De repente, o quarto se transforma em festa. Ben carrega Elisa,
distribuindo beijinhos em seu rosto e fazendo-a rir, mal parecendo que
estava mal há momentos antes.
— Isso faz cócegas, pai! — ela reclama, rindo.
— Eu nunca vou me cansar de ouvir isso! — comemora, fazendo com
que um sorriso cresça em meus lábios quando ele se deita no meio da cama,
aconchegando Lis entre seu braço esquerdo e as enormes almofadas que ela
adora ter em sua cama.
— Mamãe, tem espaço para você também — diz, aconchegando-se ao
peito de Ben e o abraçando como se isso fosse o suficiente para fazê-la se
sentir melhor. — Você vem?
Encaro Benjamin, que arqueia a sobrancelha para mim como se me
desafiasse a negar o pedido, o que não faço. Ao invés disso, suspendo a
coberta e me ajoelho na cama antes de me deitar ao lado dele, que faz
questão de me colocar no meio de seus braços também, nos aproximando
ainda mais.
— Como você se sente agora, princesa? — ele pergunta para Lis.
— Bem melhor, papai. — Sorri, encarando nós dois, mas voltando a
sua atenção para ele. — E você? Como se sente?
Ele sorri e beija o topo da sua cabeça antes de me encarar e dizer:
— Me sinto livre, neném. Finalmente.
Você não está indefeso
Eu serei seu abrigo
Eu serei sua armadura
Rescue | Lauren Daigle

Tive poucos parceiros de cela durante os seis anos em que estive


preso.
Um deles, Jessie, tinha o dobro da minha idade e era quieto. Exceto,
em dia de visitas. Enquanto eu evitava receber Asher todas as semanas,
Jessie recebia a sua família em todas elas e, quando voltava, chorava de
arrependimento por seja lá o que tenha feito.
Ele tinha quatro filhos, e os quatro o visitavam regularmente.
Ontem à noite, quando Lis bateu na porta do quarto e disse que não se
sentia bem, o desespero tomou conta de mim. Mesmo que não fosse nada
demais, aquilo me gerou um pânico indescritível. Vê-la passar mal,
principalmente, me fez desejar que aquele mal-estar fosse meu e não dela.
No entanto, quando a ouvi me chamar de papai, meu coração se
aqueceu de forma tão inexplicável e feliz, que eu jamais poderia me
esquecer.
As palavras que Jessie me disse uma vez voltaram à minha cabeça
com força quando percebi que era assim que eu me sentia; pai dela.
Você não se torna pai quando quer, se torna pai quando precisa.
Acho que finalmente entendi o que aquilo queria dizer.
Quando soube que Lis era minha filha, desejei voltar no tempo e ter
me tornado seu pai desde o primeiro momento em que Donna soube que
estava grávida. Mas isso era o que eu queria. Não o que Lis e eu
precisávamos.
Mesmo que seja difícil de aceitar e lidar com isso, não somos nós
quem escolhemos como o destino acontece, mas podemos fazer o possível
para lidar da melhor maneira com isso e construir um futuro.
Tudo ainda é muito recente. Ainda estamos nos adaptando aos poucos
à nossa nova realidade. Mas a promessa que fiz a mim mesmo é real.
Desde que soube sobre Elisa, ela nunca mais poderá dizer que não
tem pai. Eu serei tudo o que ela precisar que eu seja.
Apesar de Lis ainda estar quente, essa talvez tenha sido a melhor
noite dos últimos anos. Uma noite que um dia foi apenas um sonho que
parecia impossível.
Com Donnatella dormindo com a cabeça de um lado do meu peito e
Elisa praticamente jogada em cima do restante do espaço que conseguiu do
meu tronco, eu não me permiti fazer movimentos muito bruscos a noite
inteira para não correr o risco de acordá-las.
No entanto, isso é interrompido quando a campainha soa, três vezes
seguidas, como se a pessoa do outro lado estivesse com pressa demais para
esperar um minuto.
Penso em ignorar, mas a campainha é apertada mais uma vez, fazendo
com que Donna resmungue e se mexa ao meu lado e Lis abrace meu braço
com mais força.
— Eu odeio eles.
— O quê? — pergunto, meio perdido na sua reclamação.
— São os meus irmãos — diz, enfiando o rosto no meu pescoço e
inspirando meu cheiro.
O barulho soa de novo, e é a vez de Lis resmungar.
— Desliga isso, pai.
Meu sorriso fica tão grande, que minhas bochechas chegam a doer.
— Fica mais bonito sorrindo, mas está começando a irritar — Donna
resmunga, mesmo que não esteja olhando para mim. — Você é o pai dela e
já sabe disso, não precisa ficar assim toda vez que ela te chamar de pai.
— Não seja chata apenas porque sou o novo favorito dela.
— Você não é o favorito dela.
A campainha toca mais uma vez.
— Papaaaaaaai — a pequena choraminga, ainda mais manhosa.
Beijo o topo de sua cabeça antes de me desfazer do seu agarre e faço
o mesmo com Donna, que apenas se vira e volta a dormir.
Fecho a porta com cuidado e começo a descer as escadas
rapidamente. Quando abro a porta de entrada, vejo dois homens do meu
tamanho, discutindo em italiano enquanto um mantém o dedo na
campainha, prestes a apertá-la novamente.
— Não — reclamo, antes que o faça. Se Donna aparecer aqui, irá
matar um deles. — Elas estão dormindo.
— Mia vitta está bem? — um deles pergunta.
— Não viríamos tão cedo assim, mas ficamos preocupados — o outro
se justifica e apenas então foco minha atenção nele.
Ergo uma sobrancelha em sua direção.
— Alessandro? — pergunto, estranhando. — O que faz aqui?
O reconheço imediatamente. Antes de Asher encontrar um agente, ele
lutava em New Haven, em um lugar chamado “Templo da Serpente”, onde
Alessandro era o dono. Associar que ele é o irmão de Donna faz um
sentimento estranho tomar conta do meu peito. Ele sabia que eu estava livre
e não fez nada para que Donna também soubesse.
— Vocês se conhecem? — o outro questiona, com as sobrancelhas
unidas, deduzo que seja Matteo.
— Eu… — ele começa. — O irmão do Benjamin luta na minha
academia.
— Puta que te pariu, Alessandro! — Matteo reclama. — Desse jeito a
Donnatella vai ficar de cara virada para nós pelo resto das nossas vidas, seu
idiota!
— Não me culpe, eu não iria imaginar que eram irmãos quando
contratei o moleque.
— Não vem com essa — Matteo o interrompe. — Você não é idiota.
Sei bem que deve ter aceitado o garoto depois que descobriu sobre o
Benjamin.
— Não estou te obrigando a fazer nada.
— Claro, vou deixar você se foder sozinho nas mãos da sádica que
chamamos de irmã.
Limpo a garganta, chamando a atenção dos dois, que param de
discutir na mesma hora, me encarando. Dou passagem para eles entrarem,
que o fazem sem esperar muito, seguindo diretamente para a cozinha.
— Querem café? — ofereço, por educação.
— É claro que sim — Alessandro responde, um pouco mais grosso
depois da bronca que seu irmão deu, que por sua vez, dá uma cotovelada
nele.
— Seja educado, cazzo — manda. — Não foi assim que te ensinei e
certamente também não será assim que vamos ter Donna de volta.
O outro suspira, parecendo ainda mais contrariado.
— Irei aceitar o café, sim — ele repete, mais educado. — Mas então,
Benjamin, disse que elas estão dormindo. Como sabe?
Ergo uma das sobrancelhas em sua direção enquanto espero a
máquina de café ligar.
— Não que seja da sua conta, mas Lis pediu para que dormíssemos
com ela depois que a febre começou a baixar — respondo, a contragosto. —
E como souberam que ela estava doente, aliás?
— Donna mandou mensagem à noite. Disse que Lis comeu algo que a
fez ter febre e vomitar.
Assinto, girando os calcanhares para pegar algumas xícaras e enchê-
las, colocando-as em cima do balcão.
Acho engraçado a forma com que Donna parece estar lidando com
eles. Ela não parece nem perto de perdoá-los pelo que fizeram, porém,
mesmo assim, não deixa com que eles fiquem de fora de nenhum assunto
que envolva Elisa.
Sento-me do lado oposto do balcão de frente para eles.
Duvido muito que Donna desça logo, mesmo sabendo que seus
irmãos estão aqui, por isso, me preparo para os questionamentos e ameaças
que sei que virão, mesmo que eles não estejam em uma situação muito
favorável comigo.
Bom, como irmão, eu entendo o que quiseram fazer. Eu,
honestamente, teria feito o mesmo. Como alguém envolvido nessa história,
fico chateado. Nenhum dos dois tem o direito de decidir por Donnatella e
isso me enfurece. No entanto, também não tenho o poder de mudar coisa
alguma.
— E então — Matteo começa, mexendo a xícara de um jeito
esquisito. — Como estão as coisas com Elisa?
— Melhor do que Donna e eu imaginávamos. Foi complicado no
início, mas está tudo bem agora — admito, manso. Falar sobre a minha
neném sempre me deixa dessa forma. — Ela é muito preciosa.
— Ela é — Alessandro concorda, mais sério que o outro. — Por isso,
não gostamos de vê-la sofrer.
— Sei bem disso. — Não me abalo com a insinuação velada. — Sou
o pai dela.
— Não foi por muito tempo.
— E eu espero que lembrem que isso aconteceu apenas por culpa de
vocês — respondo-o, calmamente.
Não quero, de forma nenhuma, procurar algum motivo para brigar
com eles – mesmo que o que eu já tenha seja suficiente –, no entanto,
insinuar qualquer coisa sobre a minha paternidade, não irei relevar.
Se eles quisessem usar esse discurso contra mim, que usassem em
outra situação.
— Sei que durante todo esses anos, vocês foram a figura paterna de
Lis e, embora entenda parcialmente o motivo de vocês terem me afastado
das duas, não significa que um dos dois tenha o direito de me insultar dessa
forma. Estou cuidando das duas com a minha vida e é assim que vai ser até
o fim dos meus dias.
Os dois me encaram com cautela quando termino de falar e Matteo
está prestes a abrir a boca quando ouvimos a voz de Lis soar nas escadas.
— Pai, por que está demorando? Eu quero dormir mais — a voz de
Lis soa do topo da escada, chamando a atenção dos dois à minha frente. —
Quem está aí?
— São os seus tios, filha.
— Jura?
Seus pezinhos batendo com força nos degraus me fazem acompanhar
atento, com medo que caia. Mas a pestinha parece que tem prática em
correr na escada, já que chega em poucos segundos na sala com um sorriso
gigante rasgando suas bochechas fofas.
Ela parece muito melhor agora e isso me alivia.
— Vitta mia — Alessandro a chama, parecendo quase desesperado de
saudades, a carregando assim que ela chega perto. — Come stai? Ero così
preoccupato per te[22].
Matteo se aproxima, beijando seus cabelos e acariciando suas costas.
Os dois assumem uma postura totalmente diferente dos caras que estavam
me ameaçando há poucos minutos.
— Ti senti meglio? Volere qualcosa? Possiamo fare quello che vuoi,
eh?[23]
— Sto meglio, mio padre si è preso cura di me[24].
Os três continuam conversando em italiano, como se eu não estivesse
entendendo o que falam, enquanto eu me preocupo em procurar a xícara em
3D do Garfield que Lis adora, e em preparar seu café, um pouco mais fraco
do que o que fiz para mim e seus tios.
— Quer um pouco de café, neném? — ofereço, mesmo sabendo a sua
resposta.
— Quero, pai.
— Neném? — Alessandro e Matteo questionam ao mesmo tempo.
Olho para Lis, que os encara ameaçadoramente.
— Solo mio padre può chiamarmi così[25] — ela os responde de volta,
apontando o dedo para os dois, que reviram os olhos em sincronia.
— È arrivato adesso[26] — Matteo argumenta, ultrajado. — Volevi
colpirmi quando ti ho chiamato, tesoro[27].
Lis coloca o dedo em frente ao nariz e boca, chiando e pedindo para
que ele faça silêncio.
— Lei si è scusata[28] — Alessandro justifica.
— Pediu desculpas pelo quê, Lis? — Donna aparece,
silenciosamente, assustando até mesmo a mim por não ter ouvido seus
passos.
— Por uma besteirinha, mamãe, mas já passou — conta, com um
sorriso pequeno no rosto. — Bom dia. Para onde está indo?
Donna encara cada um de nós de maneira desconfiada e eu apenas
dou de ombro, não querendo entrar em um debate.
— Papai fez café! — ela anuncia. — Não quer beber um pouco?
Sua mãe a olha desconfiada, mas mesmo assim, dá a volta no balcão e
encara os irmãos.
— Por que tão cedo? — ela pergunta.
— Ficamos preocupados — justifica Matteo.
— Da próxima, esperem ao menos que eu acorde, antes de apertar a
campainha da minha casa como se fossem outra coisa — ela insinua para
os dois, de uma forma que faz Lis franzir as sobrancelhas como se se
perguntasse ao que sua mãe se refere. Mas ela apenas sorri para a filha e
diz: — Bom dia, meu amor, mamãe vai para a academia. Vai ficar bem com
esses três?
— Sim, mamãe, não se preocupe.
Donna se inclina um pouco à minha frente para beijar o topo da
cabeça de Lis antes de ir até o outro lado da cozinha, para preparar seu café
gelado. Deixo os três tomando suas respectivas bebidas e conversando
como se eu não estivesse aqui e vou atrás dela.
— Não me contou que seu irmão tinha outro sobrenome.
Ela se sobressalta quando percebe minha presença atrás dela, virando-
se e notando a pouca distância que há entre nós. Donna me encara
alarmada. Está claro em sua expressão que ela não esperava que eu
soubesse dessa informação.
— Como sabe disso?
Semicerro os olhos pela sua reação.
— Asher lutava na academia dele — respondo, vendo-a suspirar
aliviada. — Ele se apresentou como Alessandro Matiello.
Donna torce a boca, não parecendo satisfeita com a informação.
— Não sabia que Asher lutava lá. Nunca o vi nas poucas vezes que
visitei o Templo — diz, mas muda de assunto rapidamente: — Vou sair com
a Isabella e a Dinara hoje à noite, tudo bem ficar com a Lis sozinho?
— Pode ir tranquila — garanto, sem me preocupar. — Depois de
ontem estou blindado para qualquer coisa.
Ela ri.
— Por favor, não ria do meu processo — peço, embora queira rir
junto apenas de lembrar a sensação do medo inigualável que senti e que ela
com certeza percebeu.
— Não precisa se sentir assim, é normal. Também fiquei nervosa na
primeira vez, mas com o tempo, você consegue se acostumar. O importante
é que temos um ao outro para nos ajudarmos nesse momento, certo? —
pergunta, séria, e eu assinto. — De qualquer forma, me ligue se precisar de
ajuda.
Assinto.
— E quanto aos seus irmãos? Vai me deixar aqui sozinho com eles?
Ela olha para trás, na direção deles, suspira e dá dois tapinhas em meu
braço.
— Você conseguiu enfrentar uma garotinha doente, dá conta deles
dois também.
— Donna…
— Preciso ir treinar — ela se justifica, colocando sua bebida em uma
garrafa térmica antes de me lançar mais um sorriso. — Boa sorte.
Pare e espere um segundo
Quando você olha para mim assim
Minha querida, o que você esperava?
Eu provavelmente ainda te adoraria
Com suas mãos em volta do meu pescoço
505 | Arctic Monkeys

— Está me dizendo que morando sob o mesmo teto durante essa


semana inteira, não pensou em nenhum segundo, ir até ele e tirar uma
casquinha daquele monumento? — a voz de Isabella ecoa em meus
ouvidos, fazendo-me dar mais uma golada na minha taça de vinho antes de
assentir.
Eu tento sair de casa para esquecer um pouco sobre as confusões que
têm acontecido na minha cabeça em relação ao Ben, mas não ajuda quando
suas amigas te conhecem tão bem.
— Eu sugeri um namoro falso e ela negou com tanta força que
cheguei a sentir pena do coitadinho — Dinara complementa.
Ergo a sobrancelha em direção à morena que traja um vestido Dior
preto e saltos altos. Minha empresária não é conhecida por ser exatamente o
tipo de pessoa solícita e companheira. Ela é exatamente o contrário;
calculista e consegue transformar tudo em negócios. É quase como um
superpoder.
— Você não sente pena de ninguém — me intrometo no assunto das
duas.
— Quando ninguém tem bíceps daquele tamanho e uma carinha de
quem te come com força e te dá colo depois, eu sinto muita pena.
— Dinara! — repreendo, com os olhos arregalados e tentando não rir
da forma como diz isso, enquanto Isabella tosse ao gargalhar. — Você está
impossível, não acredito que disse isso.
— Você aceitou, certo? — Isabella questiona, interessada no assunto.
— Isso traria todos os holofotes para vocês e te levaria ainda mais ao topo.
Encaro-a boquiaberta. Hoje minha amiga optou por um vestido
branco de costas nuas que destaca ainda mais a sua pele retinta. Nos
conhecemos ainda na infância, ela foi criada pela mãe de Alessandro, que
era governanta da nossa casa.
Ninguém que vê seu sorriso grande e sua alegria radiante, diria que
tem uma história tão… complicada. Ela foi a única pessoa que esteve ao
meu lado enquanto estive grávida, no entanto, mesmo assim, Matteo
conseguiu converter Lis para o seu lado em uma briga idiota que rola entre
os dois e minha filha implica muito com ela.
Às vezes, é engraçado, mas na maioria dos dias, desejo esganar meu
irmão por incentivar esse tipo de coisa.
— É claro que não! — nego, com pressa. — Tenho uma filha, caso
não se lembrem. Não quero confundi-la.
Estamos em um bar mais afastado, quase fora de Lake Thorne, onde o
movimento é mais escasso e é exatamente o que eu precisava hoje. De um
tempo longe de toda a confusão que minha vida deu nas últimas semanas.
Primeiro, o contrato quebrado com Gavin e toda a exposição e
especulações que isso trouxe. Depois, a incerteza sobre patinar em dupla ou
voltar a fazer isso sozinha, como foi nos últimos seis anos. E então, uma
sequência de Benjamin, Elisa descobrindo sobre ele ser seu pai, Oddie e
todo o caos que a minha vida tem sido nas duas últimas semanas.
— Você é a maior inimiga do marketing dos fake datings.
Reviro os olhos para a melhor amiga de Alessandro.
— Concordo — Dinara diz. — Além disso, eu sou a melhor no que
faço, Donna. E esse assunto teria estado em todos os lugares da mídia.
Sinto vontade de me enfiar em um buraco.
— Já sou assunto na mídia o suficiente depois que desenterraram
aqueles vídeos — choramingo.
— E daí? — Isabela bufa. — Pense o quanto isso traria ainda mais
publicidade para vocês.
— De novo: eu tenho uma filha — repito.
— Uma filha com o seu novo parceiro e ex-namorado que estava
preso e ainda continua incontestavelmente apaixonado por você. — Isabella
cantarola, virando seu martini na boca.
Isabella sempre foi aficionada por livros, desde que a conheço. Para
ela, tudo pode se transformar em um enredo, desde que não esteja envolvida
no romance. Assim como Dinara consegue colocar qualquer assunto na
mídia, desde que não a envolva.
— Ele não é apaixonado por mim — contesto.
— Ele está há seis anos usando a própria mão para se aliviar — Isa
diz, um pouco alto demais e encarando-me como se eu fosse louca por não
perceber isso. — Fiel à mulher que ele nem sabia se estava solteira ou
comprometida.
— É apenas uma coincidência. Ele estava preso e depois precisou
resolver muitas burocracias, apenas isso.
— Não tente se enganar tanto, Donna — Dinara fala, revirando os
olhos e assumindo a sua postura de quem já não me aguenta mais. — Eu vi
a forma como ele te olha quando pensa que não há ninguém notando. É o
olhar de alguém que idolatra outra pessoa com tudo de si.
— Podemos falar de outra coisa que não seja ele?
— Podemos falar sobre o seu ex-namorado gostoso — Isabella dá de
ombros.
— Ou do ex-presidiário perfeito que será seu novo parceiro.
Solto um gemido lamuriado, jogando a cabeça para trás.
— Vocês são péssimas — digo, alcançando meu celular e procurando
pelo contato de Benjamin.
itsdonnalombardi: como ela está?
itsbenjamindempsey: dormindo como um anjinho.
e você, se divertindo?
itsdonnalombardi: sim.
elas são insuportáveis,
mas são boas distrações.
itsbenjamindempsey: hahaha
vá se divertir
beijos.
Acabo sorrindo com a mensagem carinhosa.
No entanto, tem álcool demais no meu sangue para devolver com a
mesma mensagem ou simplesmente ignorar, então, em um impulso de
coragem, pergunto:
itsdonnalombardi: posso saber onde seriam esses beijos?
Ele não demora a responder.
itsbenjamindemsey: é sempre na boca.
Sorrio com sua resposta, sentindo a minha pele ficar avermelhada em
excitação.
Talvez as meninas estejam certas e eu deva dar uma chance a ele para
entrar novamente em meu coração. Ao menos, sinto que é o certo a se fazer,
mesmo que esteja insegura em relação a isso. Não quero confundir Lis ou
me quebrar novamente.
Desligo o celular, guardando-o em minha bolsa antes de pedir mais
uma taça de vinho, percebendo que estou sendo observada.
— Parece mais feliz — Dinara insinua, mas não caio em sua
provocação.
— Eu estou.
— Recebeu uma mensagem de alguém importante? — Isabella
pergunta, com um sorriso malicioso no rosto.
— Vocês não vão me deixar em paz, não é?
As duas gargalham.
— Não conte com isso.
E eu realmente não conto.

Passa das três da manhã quando abro a porta de casa e noto que o sofá
está vazio.
Meus olhos se arregalam e um leve desespero toma conta de mim.
Subo as escadas devagar, imaginando que ele possa estar com Lis,
mas não está.
Minha menina ressona quietinha, com a sua luminária de aurora
boreal iluminando o quarto. Ela está vestindo um dos seus pijamas de cetim
favoritos e Oddie dorme ao pé de sua cama, cercado de almofadas que Lis
deve tê-lo obrigado a ficar – não que ele reclame de ser mimado dessa
forma.
Beijo seu rostinho com cuidado para que não acorde e acaricio os
pelos macios de Oddie, que suspira alto e se abre inteiro em busca de mais,
fazendo-me controlar o riso antes de fechar a porta devagar para não
acordá-los.
Sigo o caminho até meu quarto, e não me surpreendo ao ver Benjamin
deitado de bruços, ocupando metade da minha cama, bastante confortável
e… vestindo apenas uma cueca branca.
Fecho a porta atrás de mim, mas acabo deixando que ela bata com um
pouco mais de força do que planejei, fazendo com que Ben levante a cabeça
na mesma hora, atento. Já percebi que ele tem um sono leve, provavelmente
algo que adquiriu na cadeia. E só consigo pensar no quanto deve ter sido
cruel viver lá.
— Desculpe — peço, retirando os saltos com cuidado. — Não queria
te acordar.
— Oi, linda — resmunga com a voz sonolenta. — Achei que era Lis.
— Ela e Oddie estão dormindo como pedra — respondo-o, e Ben ri,
me encarando com o rosto no colchão. — Vou tomar um banho quente e
dormir.
— Vou voltar para o sofá — diz, mas não move um músculo para
fazer isso. — Só preciso de um minuto.
Eu rio.
— Não precisa, Ben — asseguro-o, surpreendendo até mesmo a mim.
— Se chegar um pouco para o lado, terá espaço para nós dois.
É a sua vez de deixar um pequeno riso escapar, se arrastando na cama
até o lado direito e fechando os olhos, parecendo voltar a dormir na mesma
hora.
Giro os calcanhares em direção ao armário, pegando um pijama e
seguindo para o banheiro. Tiro minhas roupas, tentando me livrar do cheiro
de álcool e aproveito para fazer minha rotina de skincare noturna, retirando
a maquiagem pesada.
Demoro um pouco mais do que planejei debaixo do chuveiro quente,
pensando em tudo que as garotas e eu conversamos e, principalmente, no
homem que está dormindo apenas de cueca na minha cama.
Ele continua na mesma posição quando me deito do lado oposto ao
seu.
Quando menos percebo, deixo com que meus pensamentos intrusivos
vençam e aperto sua bunda.
— Apalpou minha bunda? — ele pergunta, me assustando.
Coloco a mão em frente à boca e Benjamin sorri, abrindo os olhos
devagar.
— Não — nego, envergonhada demais.
— Não acredito que fez isso, Donna. — Continua rindo, causando-me
a mesma sensação. — Mas se te deixa melhor, pode me apalpar quando
quiser.
— Benjamin!
— Estou sendo sincero, linda.
— Você parece cansado, precisa dormir — constato, notando os olhos
avermelhados e a piscada lenta.
— E você está mudando de assunto.
Reviro os olhos e finjo bufar, cobrindo-me até os ombros e me
virando de costas para ele.
— Ben? — chamo baixo, algum tempo depois, achando que ele já
adormeceu.
— Sim, linda — responde, dissipando a minha ideia.
— Posso te contar algo?
— Sim.
— Eu tinha esquecido do seu cheiro.
O silêncio recai sobre nós e quando penso que não fará nada em
relação ao que falei, sua mão toca a minha cintura, deslizando o polegar
para cima e para baixo com carinho, me trazendo um pouco de conforto e
calmaria.
— Estou aqui agora, amor.
Não tento lutar contra o sono quando ele chega, sabendo que não
importa o que aconteça ou quanto tempo se passe, daremos um jeito.
Independentemente do medo ou da insegurança que o futuro tem a oferecer.
Em algum momento da noite, nossos corpos simplesmente se
procuram e se unem em uma conchinha e Benjamin enfia o rosto em meus
cabelos, inspirando contra eles e enrolando seus braços em volta da minha
cintura, apertando-me contra si.
Enquanto eu relaxo em seus braços, também sentindo que,
finalmente, encontrei o caminho para casa.
Nossos melhores dias ainda são desconhecidos
Que este momento é nosso para possuir
Porque estamos parados à beira do incrível
Edge Of Great | Julie And The Phantoms

Estava tudo bem até a professora me olhar daquele jeito e me entregar


a prova de matemática.
Papai e mamãe estão muito felizes. E eu e Oddie somos os filhos mais
comportados que eles poderiam ter – mesmo que mamãe não goste quando
digo que ele é filho dela. Ela até mesmo deixou que eu passasse um dia
inteiro com os meus tios quando saísse do trabalho.
— Lis? — Ouço Isabella me chamar. — Você está bem?
Respiro fundo.
Não gosto dela, mas até que é legal da parte dela ficar preocupada.
— Estou.
— Não parece.
— Vou ficar — me corrijo. — Eu acho.
— Quer me contar o que aconteceu? — pergunta, se abaixando e
ficando da minha altura. — Você nem foi me recepcionar e dizer que eu
estava atrasada.
— Você se atrasou hoje? — pergunto, um pouco chateada porque
esqueci de observar isso. — Esqueci de marcar na minha prancheta! Senhor
Matteo vai querer me mandar embora!
Isabella sorri.
— Não se preocupe, querida, eu não me atrasei hoje.
— Ainda bem, né? Assim não preciso te demitir.
— E quer me contar por que está tão tristinha?
Olho para os lados, para ver se tem alguém chegando e seguro sua
mão, arrastando-a até sua sala e fechando a porta. Isa veste uma camisa
branca e uma saia preta muito chique, faz ela parecer uma mulher muito
importante.
— Tem que prometer que não vai contar para ninguém.
Isa me mostra os dedos cruzados e os beija, me mostrando que vai
guardar o meu segredo e eu acredito nela. Mesmo que não goste dela por
causa do meu tio, sei que ela é amiga da minha mamãe. E se a minha mãe
confia nela, eu também posso.
— Tirei zero em matemática — conto, sentindo meus olhos encherem
de água. Não gosto de chorar. — Poxa, mamãe e eu estudamos tanto. Eu
achei que estava finalmente começando a entender a matéria. Queria ter
tirado pelo menos metade de dez para não parecer tão boba. A professora
disse que eu preciso melhorar muito se quiser passar de ano.
— É só uma nota. Não precisa ficar tão preocupada, pode recuperar
na próxima — ela afirma, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da
orelha.
Suspiro fundo. Eu sei que ainda dá tempo de recuperar a nota, foi
apenas a primeira prova do ano, posso melhorar nas próximas, mas…
— E se o meu pai não me quiser mais porque sou ruim em
matemática?
Quando digo em voz alta, dói mais. E é por isso que eu começo a
chorar.
— Querida — Isabella segura meu rosto para que eu a encare dessa
vez, e faz um carinho gostoso na minha bochecha. Eu quase gosto dela por
isso —, olhe para mim, sim? Eu não conheço o seu pai, mas a sua mãe me
falou sobre ele e vejo a forma como conta a todos o quanto ele é bom para
você e para ela.
— Ele é perfeito — respondo, fungando. — Papai cuida muito bem
da gente e do Oddie.
— Então, minha linda — diz, limpando as lágrimas —, ele não vai te
deixar apenas por uma nota ruim. É apenas isso o que ela é, uma nota ruim.
— Não é só uma. São todas. Eu nunca tirei mais de seis em
matemática.
— Isso não significa nada, Lis.
— Como tem certeza?
— Porque uma ou várias notas ruins não definem quem você é. E
você é uma garotinha incrível, mesmo que não goste de mim.
— Eu gosto de você às vezes — confesso, vendo-a sorrir. — Mas o
meu tio não gosta e você deve deixar ele bem chateado por isso.
— Seu tio e eu temos alguns problemas, e esses são diferentes dos
seus. Mas me dou bem com a sua mãe e sou a melhor amiga do seu tio
Alessandro. Não quer dizer que sou uma má pessoa apenas porque seu
outro tio não gosta de mim.
— Faz sentido — concordo. — Mas mesmo assim, estou com medo.
— Que tal você contar para ele mais tarde e descobrir o que acontece?
Tenho certeza de que ele vai entender a sua dificuldade.
— Jura?
— Juro de dedinho. — Ela pisca para mim, enlaçando nossos
mindinhos. — E olha, se quer saber, sou boa em matemática, posso te
ajudar, se qui…
— Elisa! — a voz do meu tio Matteo ressoa no corredor e eu bufo,
indo até a porta e a abrindo, deixando Isabella falando sozinha. — Estou te
procurando há um tempão. Por que está em terreno inimigo?
— Estava trabalhando — deixo claro, puxando-o para longe antes que
ele comece a implicar com a Isa.
Ela foi legal comigo hoje, então vou deixar meu tio longe dela por um
tempo.

● Dar a ele o seu abraço favorito.


● Dizer que
● Fazer um
● Fingir que
Suspiro chateada quando percebo que nada da lista vai adiantar.
A minha nota continuará sendo ruim.
E eu também irei continuar sendo a pior aluna em matemática da sala.
Victor e Melissa não ficaram zombando de mim por isso, mas Faith,
uma menina da minha turma que eu não gosto, riu da minha nota, fazendo
com que todo mundo me olhasse estranho e me mostrou sua nota dez bem
grande, junto com o “parabéns” bem grande também que a professora
escreveu ao lado.
Ela acertou todas e a única coisa que eu soube fazer direito, foi
escrever o meu nome completo. E a professora me olhou estranho quando
coloquei “Dempsey”, mas não me importei. É o sobrenome do meu pai, e
agora é meu também.
— Sobre o que é a lista de hoje? — tio Matteo pergunta, passando por
mim e tirando a gravata do terno que usa para trabalhar. — Os motivos do
porquê sou o seu titio favorito?
Meu tio beija a minha cabeça, arregaçando as mangas e indo em
direção ao armário para pegar os ingredientes e preparar a minha lasanha
favorita. A nossa receita de todas as sextas.
— Estou fazendo uma lista para o meu pai.
— Sério, vitta mia? — meu tio Alessandro questiona, se sentando na
banqueta ao lado, como sempre, para observarmos o tio Matteo cozinhar
para nós. Ele me encara estranho quando coloco a mão em frente ao
bloquinho do Garfield para que não veja. — Titio não pode ver?
— Esse não, desculpa.
— Tudo bem — ele responde, mas sei que está com ciúmes porque
agora tenho mais alguém para poder brincar. — E como foi a escola hoje?
Se divertiu?
Minhas bochechas esquentam.
— Recebi o resultado das minhas provas.
— E? — me incentiva, quando meu tio Matteo coloca tudo na
bancada à nossa frente, começando a separar tudo do jeito estranho que
sempre faz. Meu tio diz que ele é muito metódico, mas não entendi o que
essa palavra significa mesmo quando ele tenta me explicar. — Por que está
tão estranha, hein, vitta mia?
— Tirei nove e meio em inglês — digo, ganhando um beijo na
bochecha e um abraço bem forte do tio Matteo, mesmo com o balcão entre
nós.
— Essa é a minha garota!
— Você é a melhor, vitta mia — Alessandro elogia, fazendo o
mesmo.
Mas nem isso me deixa mais feliz.
Tenho seis anos, mas estou no segundo ano do ensino fundamental.
Comecei a estudar na escola um ano antes, por isso sou a mais nova da
minha turma. E mesmo que eu seja uma aluna comportada e tire notas boas
nas outras matérias, não gosto de números.
Na verdade, eles são estranhos para mim. Eu nem sei descrever
direito porque eles me incomodam, mas sempre que me deparo com eles, as
coisas parecem voar no papel. É por isso que faço minhas listas com
quadradinhos e não com números.
— Tirei zero em matemática — confesso, mais triste toda vez que
digo em voz alta. — E não sei como dizer para o meu pai.
Meus tios se encaram.
— Lis, o seu pai é um homem bom — tio Matteo diz, segurando a
minha mão. — Uma nota ruim, não quer dizer que você seja ruim.
— Quer, sim — refuto.
— Não quer, não — tio Alessandro me interrompe, segurando meu
rosto. — Olhe para mim, eu era péssimo em geografia.
— E eu nunca fui o melhor em literatura — Matteo completa.
— Você quer ficar longe de nós por isso?
— Claro que não!
— Então o seu pai também não irá querer — tio Alessandro responde.
— Você é o neném dele e ele te ama.
— E sempre terá nós dois também.
Suspiro.
— Vou falar para ele — respondo, mas acabo me lembrando de outra
coisa. — Por que a mamãe está chateada com vocês?
Os dois se encaram novamente, dessa vez parecem mais tensos que
antes quando respiram fundo.
— Às vezes, adultos fazem escolhas difíceis por quem amamos.
Junto as sobrancelhas, confusa com o que diz.
— Acho que não deveria ser difícil escolher quem amamos.
— E você está certa, não deveria ser difícil — Alessandro concorda.
— Mas não é exatamente o que o Teo quis dizer.
— O que eu quis dizer, minha vida, é que nós dois achamos que
estávamos protegendo a sua mãe ao fazer uma coisa, mas a verdade é que
isso afastou o seu papai de vocês. É por isso que ela está chateada.
— Meu papai não me conheceu por culpa de vocês? — pergunto, um
pouco confusa com o que dizem.
— Infelizmente, sim — tio Ale confirma.
— Você também está chateada conosco? — o outro pergunta.
Encaro os dois enquanto penso. Eles parecem arrependidos. Eles
sabem que estão errados, então significa que merecem perdão, não é?
— Um pouquinho — respondo, sendo sincera, porque entendo que
eles são adultos e fazem coisas que não são legais, mas estou um pouco
chateada porque queria que meu papai me conhecesse desde sempre.
— E o que podemos fazer para ajudar?
— Podem pedir desculpas para os dois. A minha mãe está muito
chateada ainda, mas o papai irá entender.
— Ele também vai entender sobre a sua nota ruim.
— Faremos isso em breve — meu tio Mat garante. — Apenas isso?
— Pode continuar fazendo a minha lasanha também — respondo,
fazendo meu tio Ale rir e meu tio Mat voltar a cozinhar.
— Tudo que a nossa principessa[29] quiser, vá bene?

— Olá, neném — meu pai me cumprimenta, me carregando assim


que passo correndo pela porta da casa do meu tio. — Senti muito a sua
falta.
— Eu também senti — minha mãe resmunga, com biquinho quando
me vê beijar a bochecha dele e eu rio, me inclinando no colo do meu pai
para beijar seu rosto. — Agora sim! Já se despediu dos seus tios?
— Já, mamãe — confirmo, e meu pai acena para os dois de longe
enquanto a minha mãe apenas balança a cabeça, antes de começarmos a
caminhar para perto do carro. — Tenho que contar uma coisa.
— O que quiser — mamãe diz.
— Mas estou com vergonha do que vão pensar de mim — digo,
olhando para os dois e depois focando a atenção no meu papai. — Você
ainda vai me amar se eu não for boa em tudo?
Ele para de andar comigo em seu colo e espreme os olhos, como se
estivesse tentando entender.
— Claro que vou te amar, neném, por que está dizendo isso?
— Porque tirei zero em matemática.
— Ah, querida — mamãe chama, acariciando minhas costas de um
jeito que faz com que eu me sinta melhor. — Não há problemas em ter
dificuldades em uma matéria. Já conversamos sobre isso.
— Mas tirei nove e meio em inglês — justifico. — E você estudou
muito matemática comigo, mamãe, eu queria tirar metade de dez para
ninguém ficar chateado.
Meu pai caminha até o banco no jardim do meu tio, próximo ao nosso
carro, se sentando e me deixando em seu colo. Ele coloca os fios do meu
cabelo para trás e minha mãe se senta ao seu lado.
— Vou te contar um segredo, ok? — ele pergunta. — Mas não pode
contar para mais ninguém.
Coloco os dois dedos na boca, como se fosse um zíper fechando.
— A sua mãe é péssima em matemática — sussurra.
Volto a colocar a mão na boca, dessa vez, para conter o riso quando
ela dá um soquinho de leve no meu pai, que nem se mexe.
— Benjamin!
— Maaaaas — ele estica a palavra, fazendo suspense — para a sua
grande sorte, eu era o melhor aluno de matemática da escola.
— Não seja prepotente.
— Não estou sendo — ele justifica, olhando para ela. — Estou
dizendo à nossa filha, que mesmo sendo muito bom em matemática, eu era
péssimo em inglês.
— E eu era muito boa — mamãe diz para mim, como se quisessem
competir.
Rio dos dois.
— Viu que legal, mamãe? Agora nós duas temos mais coisas em
comum além do cabelo, já que sou a cara do meu pai.
Mamãe espreme os olhos em minha direção e sei que, em sua mente,
está me chamando de pestinha.
— Lis, o que o papai quer dizer, é que ninguém é perfeito em tudo.
Às vezes somos bons em algo e péssimos em outras coisas. E está tudo
bem.
— Você não me ama menos por isso?
Papai revira os olhos, de brincadeirinha.
— Não tem como te amar menos, neném, é uma missão impossível.
Beijo sua bochecha quando ele me abraça bem forte.
— Mas eu vou te ajudar de agora em diante, ok? — ele pergunta,
contra meus cabelos. — Quem sabe assim, você consegue recuperar a sua
nota, hum? Ainda temos tempo.
— Obrigada, pai. Você é o melhor!
— Ei! — minha mãe reclama. — Por que estou sendo deixada de lado
agora?
Papai e eu rimos.
— Acho que a sua mãe precisa de um abraço muito apertado, neném.
— E de uma xícara de café — completo, animada e meu pai sorri.
— Nada de café — ela repreende, cortando a nossa alegria. — Mas
vou aceitar o abraço. E talvez um ou dois beijinhos.
— Tudo bem. — Suspiro, fingindo estar cansada. — Eu posso fazer
esse sacrifício por você.
Algo no modo como você se mexe
Me faz sentir como se não pudesse viver sem você
Isso me leva do começo ao fim
Eu quero que você fique
Stay | Rihanna ft. Mikky Ekko

Seremos os últimos a nos apresentar.


Isso, por si só, já é motivo grande o suficiente para me fazer travar e
abrir uma brecha para a insegurança bater.
— A atenção inteira está sobre vocês — minha empresária diz,
vendo-me ajustar a saia do collant preto pela milionésima vez. — Então,
sugiro que…
— Dinara, estou nervosa demais para ouvir sobre a mídia e toda a
atenção que vamos receber.
— Querida, você chamaria atenção até se estivesse sozinha — fala,
revirando os olhos como se eu fosse uma tola. — Estou aqui apenas como
sua amiga.
— Seja minha amiga e não fale sobre a mídia.
Ela ergue as mãos.
— Vou apenas desejar boa sorte e avisar que são os próximos.
Deixo um grande suspiro escapar, tentando fazer com que o
nervosismo evapore junto. Benjamin me encara, há alguns metros de
distância, com os olhos semicerrados, parecendo notar que há algo de
errado comigo.
E isso apenas contribui para me deixar mais nervosa.
Nós treinamos muito nos últimos dois meses, desde quando
assinamos o contrato como dupla.
Serão duas apresentações, no total. Hoje, deveria ser a mais simples,
mas não significa que me deixa mais segura. O Short Program[30], avalia a
precisão e a execução dos movimentos obrigatórios, no entanto, também é
ele quem pode definir o resultado final, já que além disso, os jurados
também analisam a sincronia da dupla.
Não estou insegura em relação à nossa coreografia. Nós dois a
conhecemos de cor. No entanto, faz quase um ano que fiz a minha última
apresentação em dupla. E foi um fiasco. Eu travei, Gavin se irritou e
acabamos desclassificados por não conseguir cumprir as exigências.
Confio na nossa coreografia, confio em Ben, mas não confio em mim.
Não quero passar a mesma humilhação, não quero sujeitá-lo a algo desse
tipo. Não agora, que todos conhecem uma parte de seu passado. Não agora,
que ainda há pessoas o julgando pelos seus atos. Não quero que ele se
transforme em motivo de chacota ou humilhação.
É a sua primeira vez patinando em público depois de seis anos. Ele
merece ser aplaudido de pé, depois de tanto treino, tantos dias acordando
antes que o sol nascesse. Ben deu tudo de si para essa competição. Não é
justo que eu a estrague.
— Já disse que está linda hoje? — pergunta, quando me aproximo
dele. — Porque você é simplesmente a mulher mais linda deste lugar.
Reviro os olhos, fingindo estar entediada e coloco as mãos em seus
ombros, sendo segurada pela cintura.
— Sim, você já disse isso. E também já disse que sou a mais linda
deste lugar.
— Não pedirei desculpas por isso — graceja, acariciando minha
cintura. — Ainda repetirei muito essas palavras.
Nem percebo que estou sorrindo até sentir minhas bochechas doerem.
Esse é o poder que ele tem sobre mim. O de me fazer esquecer as
coisas ao meu redor, o caos da minha cabeça e o medo em meu peito.
— Donnatella Lombardi e Benjamin Dempsey.
Quando nossos nomes são chamados, Ben nos conduz rapidamente
até a entrada da pista de gelo. No entanto, quando estamos prestes a entrar
no rinque – a literalmente um passo de entrarmos – eu paraliso.
Encaro a multidão que me encara de volta, a maioria delas me olha
com expectativa, esperando por nós, mas eu apenas fico parada.
E Ben não me apressa.
— Está bem?
Não sei.
Acho que não consigo mais fazer isso.
Não quero te decepcionar.
— Estou com medo — confesso. — Faz tempo que não patino com
tanta gente ao redor e em dupla. É a sua primeira vez de volta ao gelo. Não
quero que nada dê errado, mas… não me sinto segura.
Vejo um pequeno sorriso crescendo em seus lábios e não entendo o
porquê nem mesmo quando retira do bolso duas faixas pretas, com poucos
detalhes em lantejoulas, como se fosse uma extensão da nossa roupa,
igualmente preta.
— Tem muita gente — eu repito, não entendendo o que Ben está
fazendo.
— Eu sei — responde, abrindo as faixas. — Feche os olhos.
— O quê? — franzo o cenho. — Por quê?
— Estou dando um jeito, Donna, apenas feche os olhos.
Faço o que ele pede, sobressaltando quando sinto seus dedos
alinharem a lateral do meu penteado e passar a faixa em frente aos meus
olhos, fazendo um nó bem feito atrás da minha cabeça, debaixo do rabo de
cavalo para que não fique visível.
O tecido macio faz com que tudo escureça.
— Ben… — chamo, procurando por qualquer parte do seu corpo para
que eu tenha um norte.
— Também estou vendado.
Tento controlar a minha respiração após ele dizer isso.
— E como vamos patinar assim?
— Nossos corpos já se conhecem, Donna — responde simplesmente,
apertando a minha cintura e me dando um pouco mais de conforto. — Não
vou te deixar cair e você não irá me deixar tropeçar.
— Tem muito tempo… — Procuro justificativas, mas elas parecem
infundadas.
— Somos bons juntos, Donna, acredite em mim quando digo, nós
vamos conseguir. — E eu acredito. Acredito porque o conheço e sei que
está fazendo isso da forma que acha melhor. — Você confia em mim?
— Sim.
— Ainda se lembra de como é ser top um, certo?
Deixo um sorriso de deboche escapar.
— Como poderia esquecer?
— Está pronta? — me pergunta.
— Sim. — Respondo, mais confiante. — Vamos fazer acontecer.
E então, estamos deslizando no gelo.
Não sei como está a iluminação ou onde Lis e meus irmãos estão na
arquibancada. Mas sei que estão e isso basta. Também sei que Asher está
nos assistindo de algum lugar, pois fez questão disso e essa parte também
serve para me acalmar. Sinto falta dele.
Estamos no centro da pista de gelo, aguardando o início da música,
sei disso porque conheço esse rinque como a palma da minha mão.
Também sinto meu coração bater rápido, mas a forma com que me
sinto muito mais tranquila não por estar vendada, mas por estar com Ben, é
muito mais eufórica. Sei que estamos prontos. O ar gélido da pista, não
parece nos atingir em nada.
Estamos aqui.
Somos nós dois.
E isso é o suficiente para que nada além do agora importe.
A música começa suave e melodiosa. Dou os primeiros passos,
deslizando suavemente pelo gelo, sentindo a resistência e a resposta da
lâmina. Sei que Benjamin está fazendo o mesmo que eu, mesmo que não
estejamos nos tocando.
Stay, de Rihanna, foi a nossa música escolhida. Talvez seja porque
parece mais com a nossa história do que gostaríamos de admitir.
O tempo todo isso foi uma febre.
Deslizo no gelo para longe de Benjamin, girando sobre meu próprio
eixo enquanto faço o contrário, voltando para ele, que me segura no mesmo
instante.
O início da coreografia é calma e delicada, nos seguramos e soltamos
por diversas vezes enquanto executamos os movimentos obrigatórios.
Uma pessoa crédula, nervosa e impulsiva.
Sua mão encontra a minha novamente, fazendo com que nossos
corpos se colidam e nossas respirações duelem por alguns segundos.
Eu joguei minhas mãos para o alto e disse: Mostre-me alguma coisa.
Não consigo vê-lo, mas o sinto. Sei que ele também sente o mesmo
que eu, como se nossos corpos se reconhecessem, se conectassem. Na
verdade, é como se eles nunca tivessem se separado.
Ele disse: Se você se atreve, chegue mais perto.
Nos movemos para a sequência de passos, nossos pés deslizando em
perfeita sincronia. Cada movimento soa como uma conversa silenciosa, um
acordo entre dois corpos que nunca se esqueceram um do outro.
Dando voltas e mais voltas e mais voltas e mais voltas nós vamos.
Benjamin segura minha mão para o alto, fazendo-me girar sobre meu
próprio eixo algumas vezes antes de colidir contra ele novamente. O
momento não dura muito, já que, em sequência, nos distanciamos e
fazemos o salto lado a lado. Sei que conseguimos, pois sinto os seus
movimentos, tão perto de mim que por um segundo me questiono se
patinarmos vendados foi mesmo uma boa ideia.
A sensação de voar, ao lado dele, parece ainda mais libertadora.
Oh, agora me diga, agora me diga, agora me diga que você sabe
É como se estivéssemos contando a nossa história sem precisar de
palavras, apenas com movimentos.
Não tenho muita certeza de como me sentir quanto a isso
Em um segundo, estamos indo devagar, juntos.
Algo no modo como você se mexe
No próximo, nossos movimentos são mais rápidos, longe um do
outro.
Me faz sentir como se não pudesse viver sem você
E novamente, juntos.
Isso me leva do começo ao fim
Mesmo sem enxergar qualquer coisa, não sinto medo. Não há
inseguranças. Apenas a certeza de que não importa o sentido, a altura, o
tempo ou seja lá o que for, ele está certo. Nossos corpos sempre se
encontram.
Eu quero que você fique
Eu o encontro mais uma vez. As mãos de Benjamin param
diretamente em minha cintura.
Não é uma vida e tanto a que você está vivendo
E acontece. A acrobacia que fez com que Gavin e eu nos
separássemos.
Benjamin segura a minha cintura e lança o meu corpo para cima.
Isso não é apenas algo que você pega, isso é dado.
Eu não procuro por algo para segurar ou sequer hesito. Continuo os
movimentos ensaiados.
Dando voltas e mais voltas e mais voltas e mais voltas nós vamos
Movo-me no ar como se estivesse voando. Pela primeira vez em
muito tempo, me sinto livre novamente, fazendo o que amo. Com o homem
que amo.
Oh, agora me diga, agora me diga, agora me diga que você sabe
E não importa como, eu apenas sei que isso se dá ao fato de que estou
patinando com ele. O pai da minha filha. Minha dupla. Minha metade.
Minha bússola. Meu rumo. Meu amor. Meu. Sempre meu. Em todos os
universos existentes. Em todas as vidas que houver.
A música se encerra e meus ouvidos finalmente captam qualquer
coisa que não sejam as nossas respirações e os sons das lembranças de nós
dois juntos. Nós três juntos.
Os aplausos são quase ensurdecedores, a gritaria igualmente. Eu juro
que consigo ouvir Lis gritando por nós e isso faz um sorriso crescer em
meus lábios quando tiro a venda e o pego já me encarando.
Como se estivessemos presos no tempo, lembro-me de uma história
da qual nunca soube o final.
— E agora? O que está procurando?
Quando nos conhecemos, foi essa pergunta que fiz.
O que está procurando?
E sua resposta ecoou na minha cabeça por horas naquele dia.
Algo que preencha o vazio.
E depois disso, permaneceu em minha mente por mais tempo.
— Não há mais vazio. Apenas vocês.
— Ben?
— Sim.
— Naquele dia, no escritório, pediu que eu te beijasse como se nunca
tivesse deixado de ser meu.
— Donna…
— Sou eu quem está pedindo agora — sopro, em um súbito ato de
coragem. Nossos narizes se tocam, e nossas respirações se misturam. — Eu
nunca deixei de ser sua.
E então, ele me beija.
Há algum Ás na sua manga?
Você não faz ideia de que é minha obsessão?
Sonhei com você quase todas as noites essa semana
Do I Wanna Know | Artic Monkeys

Nunca tive grandes sonhos.


Talvez, por ter crescido em uma casa onde uma família servia apenas
para posar para fotos de revistas e serem exibidos como troféus, nunca
desejei nada que fosse o contrário daquilo.
Em vinte e quatro anos de existência, minha vida se resume a dois
sonhos: ser patinadora e ter uma família feliz.
E, bem, agora, quando abro a porta de casa devagarzinho para não ser
notada e ouço a conversa mais maluca da minha vida, dou-me conta de que,
talvez, eu já tenha isso.
— E se ela descobrir, papai?
— Ela só vai descobrir se você contar.
— Não guardo segredos da minha mamãe.
Ben suspira.
— Nem eu, neném — responde.
— E o que a gente faz agora?
— Acho que vamos ter que dar muito carinho para ela esquecer disso.
— Acho que vamos precisar do Oddie.
— Mas, neném, ele não é o culpado, lembra?
— Mas ele é fofinho, papai, a mamãe ama coisas fofas.
— Tem razão. — Benjamin se abaixa atrás do balcão, carregando o
gorducho e ainda de costas para mim. — Talvez ela não fique tão brava
com a gente, não é?
Bato a porta atrás de mim, chamando a atenção dos dois, que apesar
de se assustarem, fingem normalidade quando me encaram.
— Por que eu ficaria brava?
E então as bochechinhas do meu neném – que não gosta que eu a
chame assim – ficam vermelhas.
— Nossa, mamãe, como você está linda! — Ela coloca a cabeça entre
as mãos. — Não é, pai?
Benjamin sorri. Não um sorriso forçado ou envergonhado por seja lá
o que aprontaram, mas um sorriso genuíno. Em minha direção.
Ele deixa Oddie no chão, que corre em minha direção e abana o
rabinho, sem fazer muito esforço para que eu o carregue, apenas me
encarando com seus olhinhos pidões e preguiçosos.
— Sim, neném, sua mãe é a mulher mais linda do mundo todo.
— Não tentem me enganar, sei que aprontaram.
Carrego Oddie, beijando o peludinho como se nunca o tivesse
rejeitado. Ele é tão fofo e carinhoso. Pena que tem mais preguiça que força
de vontade.
— Ninguém está te enganando — a minha pestinha os defende.
— É verdade — ele concorda, como sempre, enquanto deixo Oddie
no chão, estranhando quando ele corre para a direção em que Lis está, atrás
do balcão, seu rosto demonstrando tensão ao espremer os lábios. — Nós
dois achamos você a mulher mais bonita do mundo.
Respiro fundo e, finalmente, foco a minha atenção no balcão a poucos
metros de mim. Há duas canecas fumegando e um copo cheio de gelo.
Café.
Eles estão tomando café a essa hora.
— Vocês estão bebendo café às seis da tarde? — pergunto, com um
sorriso no rosto. Um sorriso de desespero enquanto encaro o adulto na
cozinha. — Deu café para nossa filha às seis da tarde de uma sexta-feira,
Benjamin?
— Aproveitamos que estávamos estudando matemática para ela ficar
mais atenta aos exercícios. Acredita que ela acertou sete de dez questões
depois disso?
Esqueço do fato de que provavelmente passaremos a noite inteira
acordados com ela, para sorrir de orgulho da minha menina. Ela realmente
tem muita dificuldade nessa matéria e vê-la feliz por uma nota tão boa me
deixa muito contente.
— Foi a maior nota que já tirei em matemática, mamãe, e eu só
precisei tomar três xícaras de café.
E então a minha felicidade se esvai. Ben fecha os olhos e pragueja
baixinho. Acho que ela se esqueceu de não me contar.
Pois, agora, não sei que horas irei dormir.
— Está me dizendo que essa xícara à sua frente é a quarta que bebe
hoje?
— Na verdade, é o número da xícara que vem depois da quarta — ela
corrige. — O papai me deu uma de manhã antes de me levar para a escola.
— Desculpa, amor, não consegui me conter.
Fico um pouco paralisada pela escolha de palavras dele.
Não que eu esteja chateada por ele ter dado café ou nada do tipo. Lis
pode beber café, desde que saibamos lidar com o seu pico de hiperatividade
e, de vez em quando, com a agitação que sente por conta da cafeína.
Além disso, sinto que Ben precisa viver esses momentos. Ele precisa
ter primeiras vezes com Lis já que não as teve antes. Por isso finjo estar
brava e ela sorri porque sabe que não vou implicar. Porque sabia que ele iria
ceder. E também porque ela havia me pedido permissão para fazer isso de
manhã.
— Olha o que fizemos para você, mamãe — ela diz, apontando para o
copo de vidro ao lado das canecas fumegantes.
Benjamin está com uma caneca do Garfield escrito que odeia
segundas-feiras – hoje é sexta –, enquanto Lis está com a sua caneca
também do Garfield, mas que obrigou Matteo a encomendar personalizada
para ter o exato formato da sua versão favorita do desenho.
Diferente do deles, que exala o cheiro forte de café e a fumaça, o meu
é gelado. Um cappuccino de caramelo com cubos de café. Geralmente, eu
coloco um pouco de chantilly em cima, mas logo percebo o motivo pelo
qual não há.
E que talvez esse seja o motivo pelo qual estavam discutindo antes
que eu chegasse.
Detrás da ilha onde Lis está sentada, há um amontoado de chantilly,
que parece ter sido lambido. E eu não preciso perguntar quem colocou a
boca ali, porque Lis sussurra como se eu não estivesse ouvindo:
— Abana o rabinho como ela gosta, Oddie, lembra que não pode
voltar pra rua.
E eu simplesmente caio na gargalhada quando o cachorrinho faz o
que ela manda, colocando a língua para fora e me encarando.
— Vem cá, meu amor, a mamãe não vai te mandar pra rua — digo
para o pequeno, carregando-o e ganhando uma lambida pegajosa de
chantilly.
Mesmo de lado, consigo ver os olhinhos de Lis se arregalaram.
— Verdade, mamãe? Não vai mais chutar a bunda do Oddie e nem a
do papai?
Encaro Benjamin, sem saber o que responder. Não chegamos nesse
assunto. Na verdade, depois do beijo na nossa primeira apresentação, não
chegamos a assunto nenhum, porque sempre que estamos sozinhos,
gastamos todo o tempo nos beijando – e apenas isso.
Também não conversamos com Lis sobre o ocorrido e, por incrível
que pareça, ela também não tocou no assunto. Não sei exatamente o que
responderemos a ela.
Por sorte, Ben percebe o meu desespero diante da sua pergunta e
espreme os lábios rapidamente antes de respondê-la por mim:
— Conversaremos sobre isso em breve, neném.
Beijo Oddie mais uma vez antes de pegar o copo com o meu precioso
café gelado.
— Vocês querem me contar o por que nossa cozinha parece uma zona
de guerra?
— Queriamos fazer uma surpresa, amor.
— É, mamãe. Íamos preparar o seu bolo favorito, mas o papai não
sabe cozinhar muito bem, a moça do vídeo não explica direito e o Oddie
comeu o chantilly quando caiu no chão. Eu ia pegar de volta, mas o papai
disse…
— Iria deixar eu comer chantilly do chão, filha?
Ben abafa uma risada.
— Estava limpinho, você nem ia saber.
— Por Deus, Lis — é a única coisa que consigo dizer, abismada pela
sua sinceridade, mas rindo pela inocência. Bebo um pouco do café, mais
aguado do que gostoso, mas ignoro esse fato antes de devolver Oddie ao
chão e me levantar. — Vamos fazer bolo.
— Eba! — ela comemora. — Posso quebrar os ovos?
— Claro, princesa — concordo. — Por que não vai ao banheiro lavar
as mãos?
Assim que ela sai correndo, animada para poder ajudar, Benjamin se
aproxima.
— Tem certeza de que sabe fazer bolo? — pergunta, tão próximo que
consigo sentir o calor do seu corpo no meu. — Pareceu muito difícil no
tutorial que assistimos.
— Sei a receita de cabeça. É a única que consigo.
Ele ri, fazendo o ar arrepiar os pelinhos do meu pescoço.
Fazia muito tempo que eu não sentia isso. Muito tempo mesmo.
Tinha esquecido como era gostoso sentir esse friozinho na barriga e a
sensação de ser só uma adolescente boba de novo, tendo o garoto mais gato
da escola a seguindo por todo o lado.
Só que a diferença agora é que não tenho mais dezessete anos, tenho
vinte e quatro, uma carreira em ascensão e uma filha de seis anos. Além do
mais, o garoto mais gato da escola agora é pai da minha filha. E o amor da
minha vida.
Amor esse que foi obrigado a ficar seis anos apagado.
Mas agora podemos ter a chance de reacendê-lo.
— Você está muito perto — falo o óbvio, ainda de costas para ele.
Benjamin agarra o meu quadril, me arrancando um sorriso surpreso,
do tipo que gosta de ter suas mãos grandes em mim.
— Eu adoro o cheiro do seu cabelo. — Sua respiração quente bate no
meu pescoço.
— Estou percebendo. — Tento descontrair, mas Benjamin decide
pressionar o seu quadril contra o meu, fazendo a graça morrer em minha
garganta. — Você tem me deixado maluco nos últimos dias, Donna, tem
sido difícil não fazer as coisas que se passam na minha cabeça quando você
está por perto…
— Ben… — murmuro, sendo levada pelo momento. — Lis pode
voltar a qualquer momento…
— Eu sei. — Ele se afasta devagar, mas ainda mantém uma das mãos
em minha cintura. — É difícil demais para mim, sabe? Manter as mãos
longe de você e ter que me controlar.
Dessa vez, deixo o riso sair, virando o rosto para encará-lo.
— Já ficou claro que está tentando se aproveitar da situação.
— Eu? — Benjamin graceja, em um drama tão exagerado que quase
me convence. — Nunca seria capaz de fazer isso.
Num piscar de olhos, a pestinha aparece. E como desde o primeiro dia
que o conheceu, defendendo o pai sem nem mesmo saber do que se trata.
— É verdade, mamãe, o meu grandão nunca faria isso. Eu dou a
minha palavra.
Levo os dedos em pinça até a ponte do meu nariz, indignada. Não é
possível que eu a tenha carregado por nove meses, sentido todas as dores
que achava incapaz de suportar, além de ter nascido uma cópia perfeita
dele, ainda é sua advogada fiel.
— Por que você tinha que ser tão igual a ele?
— Ué, mamãe, ele é o meu pai.
Revirando os olhos, sorrio ao ter uma ideia.
Sem que percebam, enfio a mão no pacote de farinha e então, quando
os dois estão distraídos em uma conversa sobre se Oddie pode ou não
comer bolo, jogo o punhado de farinha nos dois.
Ela e o pai viram a cabeça para mim na mesma hora, com a mesma
expressão de indignação e as bocas abertas.
— Donnatella… — Ben começa.
— Lombardi! — Lis termina.
Ergo as mãos em frente ao corpo, encolhendo os ombros e tentando
segurar a risada ao ver os cabelos e rostos de ambos sujos de farinha.
— Foi mais forte que eu — tento me defender.
— Sabe o que também é mais forte que você, mamãe? — Elisa coloca
as mãozinhas no quadril. — O meu papai! Segura ela, grandão!
Arregalo os olhos quando Benjamin agarra minha cintura, me
segurando por trás e a pestinha fica na pontinha dos pés, conseguindo
alcançar o saco de farinha e enfiar os dedinhos lá dentro, agarrando um
punhado, e jogando a mão para trás, como se quisesse pegar impulso.
Não acredito que essa pestinha vai me trair assim.
— Filha, não! — peço, mas ela obviamente não leva a sério porque
estou rindo.
— Sem misericórdia para a mamãe, filha! — Ben grita, do mesmo
modo que eu.
Então, há farinha no meu rosto, cabelo e roupa. E antes que eu possa
me recuperar, sinto ainda mais dela sendo jogada em mim, dessa vez, é
como uma chuva que vem do alto e só quando consigo olhar para cima é
que entendo que, dessa vez, o culpado é Benjamin que está despejando todo
o saco sobre nós dois.
— Eu também quero! — Lis começa a pular para cima e para baixo e
suas pupilas chegam a dilatar de animação.
Sem me soltar, Benjamin se inclina um pouco para frente, obrigando-
me a fazer o mesmo e então vejo os cachinhos de Elisa aos poucos ficarem
brancos, conforme a farinha vai caindo sobre ela, que dança e desliza sobre
a sujeira no chão.
Suas risadas aquecem meu coração.
É como se esse momento no tempo existisse unicamente para nós
três.
Eu me sinto amada.
Protegida.
Me sinto em casa.
Eles são o meu lar.
— Oddie também tem que participar! — Lis grita, olhando para os
lados, procurando o pobrezinho.
Porém, quando o encontra debaixo da mesa e corre para pegá-lo, o
malandrinho é mais esperto e foge da tirana que sai atrás dele, sujando tudo
onde passa e causando uma crise de riso em Benjamin.
— Volte aqui, Oddie!
— Sabe que ela não irá nos deixar em paz durante a noite, certo? —
digo baixinho em direção a ele, que me lança uma piscada, coberto de
farinha.
— Ela vai dormir como um anjinho, acredite em mim.
Semicerro os olhos em sua direção.
— Não me procure quando não conseguir dormir.

O bolo ficou péssimo e Lis dormiu como um anjinho minutos depois


da meia-noite, após uma minimaratona de Garfield em que ela e Ben não
paravam de falar em uma velocidade que nem mesmo consegui
acompanhar.
Benjamin a carregou e a levou para o seu quarto enquanto eu limpava
a bagunça de farinha que deixamos no chão e na bancada. E esses nem
foram os únicos lugares por onde a guerra se alastrou.
Para dar banho em Elisa, foi outra folia, porque nem mesmo Oddie
escapou de ser quase afogado na banheira, enquanto eu e seu pai, do lado de
fora, tentávamos limpar os dois.
Pego-me sorrindo ao saber que estes novos momentos não são só
frutos da imaginação.
São reais.
Perdida em pensamentos, não percebo quando seus braços fortes
agarram minha cintura com força, enfiando o rosto entre a curva do meu
pescoço para beijar a minha pele.
Gemo com a sensação, deixando meu peso cair em sua direção e
relaxando.
— Devo confessar que não fui o mais sincero com você mais cedo.
— É mesmo? Do que estamos falando?
— Sobre a parte de você ser a mulher mais linda do mundo.
— Ah é? — pergunto, manhosa, enquanto sinto seus lábios
percorrerem a minha pele. — E o que você queria dizer, então?
— Que também é a mulher mais admirável na qual coloquei os olhos,
a mais sensível que já conheci e também a mais forte que eu poderia
encontrar. — Suas mãos acariciam minha cintura com leveza. — Você é a
melhor mãe que a Lis poderia ter e eu me sinto tão contente em saber que
agora posso te ver sendo foda com ela e criando uma garotinha incrivel.
— Ah, Ben, não precisa dizer isso.
— Preciso — ele afirma, fazendo-me girar para ficar de frente para
ele. — Preciso sim. Porque, às vezes, você parece se esquecer disso. Mas eu
estou aqui para te lembrar que você é foda pra caralho. E que não há
ninguém melhor para cuidar, amar e educar a nossa garotinha que você.
— Nós — corrijo-o. — Nós somos os melhores para cuidar dela.
— Posso falar outra coisa também? — pergunta, chegando ainda mais
perto e roçando seu nariz no meu.
— Sim.
— Também é a mulher mais gostosa que já conheci.
Meu sorriso cresce à medida que suas mãos passeiam da minha
cintura até a minha bunda, apertando-a com uma força que me faz ficar na
ponta dos pés e gemer.
— Fofo e safado na mesma proporção, você é tipo um sonho de
princesa.
— Não te tratarei como princesa essa noite — anuncia, com um
sorriso maldoso e cheio de promessas.
— É mesmo? E como pretende me tratar hoje?
— Como a vadia que você era quando estávamos a sós.
— Acho uma proposta tentadora — respondo, aproximando as nossas
bocas apenas para mordiscar seu lábio inferior e soltar logo em seguida.
— Tenho um novo acordo — revela, quando tento beijá-lo
novamente.
— Sim — respondo, apressada.
Nesse momento, aceitaria qualquer coisa para tê-lo dentro de mim. É
quase como se eu precisasse disso para respirar. Com a correria dos últimos
dias, tudo o que tem rolado entre nós são beijos e carícias inocentes. O
problema é que eu preciso de mais.
— Não aguento mais o sofá.
Espremo os lábios para evitar uma risada.
— O que eu ganho se te der um pedaço da minha cama? — pergunto,
mesmo que não precise de motivo algum para fazer isso.
Seu sorriso aumenta ainda mais, se é que é possível.
— Te prometo muitos orgasmos.
Jogo a cabeça para trás, suspirando quando sua boca chupa meu
pescoço.
— Tentador.
— É irrecusável, precisa admitir.
— Não tenho tanta certeza. — Suspiro falsamente. — Fiquei sabendo
que não brinca em nenhum parquinho há um tempo.
— Mas ainda te conheço como ninguém. Conheço seu corpo
perfeitamente.
— Também não tenho certeza disso.
Quero Ben tanto quanto preciso de ar. Sinto que preciso disso. Dele. E
essa necessidade vai além de contato físico, ou qualquer coisa que ele
consiga me fazer sentir quando chega perto de mim.
É uma necessidade que surge do ínfimo do meu ser e parece me
consumir a cada instante.
Ele me encara sério, consigo ver a excitação em seu olhar e senti-la
no meio das minhas pernas.
Provando mesmo que me conhece como ninguém, Benjamin desce as
mãos para as minhas coxas desnudas e as agarra com vontade, erguendo o
meu corpo e me colocando sentada sobre o balcão. Antes que eu possa abrir
a boca para contestar, ele puxa meu quadril para frente, me fazendo
encontrar o seu e me dando aquilo que desejei em silêncio.
Senti-lo entre as minhas pernas.
— Preciso te foder. — Sua voz soa rouca enquanto sua boca toca meu
colo desnudo, causando-me arrepios que me fazem precisar controlar o
gemido alto.
— Não é tão simples assim. — Me faço de difícil, embora minhas
mãos busquem pelos seus cabelos.
— Quer que eu implore?
Seus olhos se levantam em minha direção e, porra, a visão que isso
me dá é tentadora demais para negar qualquer coisa que ele queira.
Engulo em seco.
O mundo parece desacelerar.
Somos eu e ele apenas.
Como sempre deveria ter sido.
— Sim.
Os nós dos seus dedos passeiam pela parte interna da minha coxa de
baixo para cima até estar próximo demais da bainha do meu vestido, onde
ele mantém uma carícia leve e com claras intenções enquanto me encara.
Perco todos os meus sentidos quando ele sopra contra minha boca:
— Por favor, Donna, me deixa te comer?
A gente nem sabe se acaba amanhã
Mas nós dois juntos se acaba até de manhã
Call 911 | Trunks feat. Cjota

Donna não espera sequer um segundo antes de colidir sua boca na


minha.
É um beijo urgente, quase desesperado.
Dessa vez, não é como os outros.
Não há um passado entre nós.
Palavras não ditas ou incertezas.
Somos apenas nós e a ânsia de recuperarmos tudo o que perdemos.
Enrolo minha mão em sua nuca, ouvindo-a suspirar enquanto sua
língua se choca com a minha e toma todo o nosso fôlego. Donna puxa os
fios do meu cabelo com a mesma urgência que sinto, como se o mero
pensamento de pararmos agora fosse nos destruir.
Seus dedos descem gradualmente até chegar na minha camisa,
amassando o tecido e me puxando para mais perto. Pressiono sua cintura e
procuro pela barra do seu vestido, enrolando-o até seu quadril antes de
puxá-lo para cima.
Afasto-me um pouco contemplando a visão perfeita de seus seios
fartos com a lingerie preta. Merda. A cor cai tão bem em Donna que
contrasta com a sua pele macia. Projeto a minha língua para fora, lambendo
meus lábios antes de apertar suas coxas e me inclinar beijando a extensão
do seu pescoço.
Vejo seus olhos brilharem de ansiedade quando nivela nossos rostos.
— Você tem noção de quanto tempo imaginei isso? — pergunto
retoricamente. — Quanto tempo imaginei meu pau outra vez dentro dessa
boceta? — Abaixo-me marcando sua pele, mordendo e beijando-a perto dos
seios. — Quantas noites eu sonhei com seus gemidos enquanto eu te comia?
— Imagino que tantas vezes quanto eu — ela responde, entre
gemidos.
Deus, essa mulher...
Ela é perfeita.
Desço minha mão por entre nossos corpos e afasto sua calcinha para o
lado, umedecendo os meus lábios em antecipação, pronto para me abaixar e
deslizar a minha boca pela sua boceta encharcada. Meu dedo médio se
arrasta pela sua abertura ouvindo-a arfar enquanto fito sua expressão.
Olhos fechados, boca entreaberta e cabeça tombada para trás.
A minha mulher é completamente deslumbrante.
Mordisco entre seus seios, enquanto afasto suas pernas com meu
joelho. Toco seu clitóris inchado com o indicador e ela arfa outra vez,
arqueando-se contra mim. Deslizo meu dedo até a sua entrada, começando
um movimento de vai e vem. Escuto seus gemidos aumentarem até que é
obrigada a morder meu ombro, impedindo que o som ecoe pela cozinha, e
segure meus ombros com força.
— Benjamin… — Seu gemido lamuriado me arrepia, enquanto
dedilho meus dedos por sua pele até chegar no fecho do seu sutiã e solto-o,
observando os seios perfeitos entrarem no meu campo de visão. Não penso
duas vezes antes de me abaixar e tomar um deles em minha boca, chupando
e mordendo o mamilo eriçado ao mesmo tempo que aumento as estocadas.
— Assim…
Suas mãos agarram meu cabelo com força quando acrescento um
dedo, e a ajudo a se deitar na pedra da ilha, apoiando as suas pernas bem
abertas na beirada do balcão, me dando a visão completa da sua boceta
molhada.
Inclino-me sobre seu corpo, mordendo sua barriga e arrastando a
minha língua até chegar no meio de sua coxa, onde deixo mordidas que
ficarão roxas pela manhã.
— Ben — choraminga e arrasto meu nariz por sua pele, desejando
prová-la em minha língua. — Por favor, amor. Me chupa, por favor...
É tudo o que preciso para deslizar a calcinha pelas suas pernas,
mordendo a pele acima do quadril antes de levar meus dedos para abrir os
grandes lábios e me inclinar para lambê-la. Suas mãos agarram meu cabelo
com força e seu quadril é impulsionado para cima, me dando mais acesso
para fodê-la.
Minha língua desliza pela sua fenda e, por Deus, Donna tem gosto de
paraíso.
Do meu paraíso.
— Porra, Donnatella. — Arfo, arrastando a minha língua de novo. —
Você é gostosa. Malditamente gostosa.
Ela se esfrega descaradamente em mim e sorrio, tentando me conter,
mesmo sabendo que isso é quase impossível. Seis anos sem tocar essa
mulher pareceram uma eternidade e, agora, esse momento se tornou tão real
quanto parecia nos meus sonhos.
Minhas mãos sobem até seu seio, apertando-o com força e circulo seu
clitóris com a língua, comendo-a como se fosse a minha refeição favorita. E
é.
Donna leva sua mão até onde aperto seu mamilo para substituir pelas
suas próprias. Abro meus olhos, observando-a apertar os seios e trago
minha mão até a sua entrada, penetrando dois dedos de uma vez, vendo
como minha mulher continua se dando prazer e tombando a cabeça para
trás enquanto monta em meus dedos como se esse fosse o ápice do seu dia.
Solto o cinto da minha calça e abaixo-a junto à cueca, liberando meu
pau duro ao mesmo tempo que começo a estocar nela, sentindo-a se apertar
ao meu redor enquanto pulsa em minha língua. Donna rebola na minha
cara, perdendo o controle e fecho minha mão em meu membro, acariciando-
o ao mesmo tempo que a chupo.
— Assim, Ben — choraminga, arqueando-se. — Merda, bem assim.
Ela fecha os olhos, entregue totalmente a esse momento, enquanto
solto meu pau, sabendo que gozarei apenas dentro dela. Apenas quando
sentir sua boceta me apertando.
Meus olhos se fixam na forma como sua boca abre a cada novo
gemido e continuo fodendo-a com os dedos, tirando dela tudo aquilo que
nos foi negado por anos.
Donna solta um grito abafado, apertando suas coxas para prender a
minha cabeça quando aumento o movimento e a intensidade das lambidas.
Seus gemidos ficam mais altos, me indicando que está prestes a gozar.
Mesmo assim, não paro, apenas acrescento um terceiro dedo, estimulando-a
com a minha língua.
— Merda — chio, quando ela cavalga em meu rosto.
— Mais rápido, Ben — pede, perdendo o controle e abrindo mais as
pernas.
Sua boceta espreme meus dedos e sorrio maliciosamente quando ela
morde seu pulso, silenciando o gemido alto que estava prestes a saltar de
seus lábios. Suas pernas tremem e, mesmo sabendo que está em seu limite,
eu não paro. Retiro meus dedos, substituindo-os pela minha língua e tomo
tudo dela, cada gota do seu orgasmo.
Lambo a sua entrada, saboreando seu gozo e me deliciando com o seu
gosto. O sabor que tanto senti falta. Que imaginei que nunca mais provaria.
Que é completamente meu. Faço isso enquanto Donna choraminga de
prazer e sorri satisfeita.
— Eu poderia fazer isso a noite inteira — sussurro contra a sua
barriga. — Eu poderia fazer você gozar assim durante a maldita noite toda e
apreciar a forma como você geme o meu nome, amor. — Mordo o bico do
seu peito para então arrastar a minha língua sobre ele.
— Faça o que quiser comigo.
Ergo seu tronco, colocando-a sentada, e Donna não perde tempo, ela
segura a barra a minha camisa e a puxa para cima, jogando-a em algum
lugar cozinha, antes de fechar as pernas em minha cintura e me beijar,
provando seu gosto em minha língua e fechar as mãos ao redor do meu pau,
bombeando com força e obrigando-me a gemer em sua boca.
Puxo-a para a borda do balcão e arrasto meu pau pela sua boceta
molhada do orgasmo de poucos minutos atrás e observo como seus olhos
brilham em antecipação. Minha mão livre sobe até seus cabelos e os enrolo
em punho com um pouco de força, forçando-a a olhar para mim.
Seus olhos são a minha perdição.
Sua boca é o meu maior desejo.
— Você é minha, Donnatella — afirmo, apertando seu cabelo. —
Com meu pau dentro de você ou não. Ao meu lado ou do outro do oceano.
Cada lugar, cada instante, você é minha. Nunca se esqueça disso. — Mordo
seu lábio inferior. — Você. É. Completamente. Minha. Donnatella.
Lombardi.
— E você é meu, Benjamin Dempsey — diz, sorrindo e arranhando a
minha nuca.
— Para sempre.
Sem esperar por uma resposta, eu selo nossos lábios.
É brutal.
Quente.
O meu beijo favorito.
Nós travamos uma batalha para ver quem perde o controle primeiro.
Sua língua se enrola na minha com fervor. Há fome, luxúria e todos os
nossos outros sentimentos reprimidos. Donna arranha a minha nuca,
puxando-me mais para perto e meu pau se arrasta pela sua entrada. Percebo
que ela se esfrega descaradamente nele e o alinho em sua entrada, sentindo
como ela está pronta para mim.
Donnatella tenta rebolar contra mim e sorri sabendo que a única coisa
que consegue é se torturar ainda mais. Pincelo sua boceta com calma,
observando como ela perde a paciência e geme meu nome com antecipação.
— Você quer que eu te coma como uma vadia, não é? — Mordo seu
queixo. — Você quer que eu te foda até a exaustão e sentir meu esperma
descer pelas suas pernas. Você quer me sentir fundo dentro de você, amor?
— Porra, sim — responde em um sussurro. — Por favor, Ben.
Beijo seus lábios e finalmente a penetro por completo.
Donatella geme contra a minha boca e solto uma série de palavrões
enquanto começo um movimento de vai e vem lento, sentindo-a se agarrar
enquanto enlaça a minha cintura com força e joga a cabeça para trás.
Ela abraça o meu pescoço e afundo o meu rosto no seu ao mesmo
tempo em que aumento os movimentos. Sua boceta aperta meu pau até que
não aguento mais e as arremetidas começam a ficar desenfreadas.
Mordo seu pescoço enquanto as mãos dela agora arranham as minhas
costas e um sorriso ansioso se estende, escutando seus gemidos
acompanhados de pequenos gritos quando empurro dentro dela,
estimulando-a mais.
— Ben, porra. — Minha mulher se arqueia, esfregando em mim com
força. — Mais forte, por favor. Por favor, amor.
Sorrio em meio à euforia.
— Quem está implorando agora?
Donna morde meu lábio inferior com força, encarando-me com
deboche.
— Apenas faça o que eu mando.
Eu acato sua ordem, socando meu pau com força, apertando-a ainda
mais contra mim. Donna joga a cabeça para trás e seus seios saltam para
cima e para baixo, me fazendo abaixar e tomar um deles em minha boca,
mordendo-o com força e escutando seu grito ecoar.
— Silêncio, querida — peço, socando mais fundo. — Lembre-se de
que não estamos sozinhos.
Nossa respiração se torna descompassada. O som dos nossos corpos
se chocando me faz sorrir contra a sua pele. Guio nosso sexo com estocadas
fortes e sinto como se os segundos parassem.
Somos apenas nós dois.
Nada mais importa.
Donna e Ben.
Aqui e agora.
— Eu senti falta disso — confesso, deixando um beijo em seus lábios.
— Porra, eu senti a sua falta todos os dias.
Donna se afasta, olhando nos meus olhos e continuo a penetrando.
Meus impulsos se tornam desenfreados e, de repente, me livro da
minha calça, ainda investindo contra ela, segurando em sua bunda enquanto
ela se firma em meus ombros e caminho até a parede mais próxima.
Pressiono seu corpo antes de começar a empurrar dentro dela e ouvir seus
gritos junto ao barulho das suas costas batendo contra a parede.
Meu olhar se fixa no dela e ela sorri.
— Eu também, amor. Todos os malditos dias. — finalmente responde
tão baixo que quase não ouço.
Eu sei.
Ela sabe.
Não preciso de mais nada.
Nossos gemidos inundam a cozinha.
O nome dela salta dos meus lábios e ela morde meu ombro para
conter seu grito.
Mesmo assim não paro, continuo estocando nela até que ela me aperta
pra caralho e me abaixo para morder o seu ombro enquanto ela se agarra em
mim e começa a cavalgar com destreza.
Donna não se importa com mais nada nesse momento.
Somos apenas nós dois matando a saudade que nos consumia.
Destruindo as barreiras que erguemos.
Matando a ânsia entre nossos corpos.
Então, lembro da saudade que senti durante esses malditos anos.
Saudades de quando nossos corpos se uniam, como parecíamos tão certos
como peças de quebra-cabeças. Senti saudade de gozar dentro dela, mas
também de observar como seus lábios se entreabriam e sua pele ficava
corada.
Senti saudades de como ela não é tímida em meus braços.
De como sussurra meu nome e como me faz gritar o seu.
Eu senti tanta falta dela.
Cada segundo desses anos.
Estoco mais algumas vezes, sentindo seu corpo contrair e então
seguro suas coxas, abrindo-as mais e começo a entrar e sair em um ritmo
descontrolado enquanto meu dedo se arrasta pela sua bunda, sentindo-a
perder o controle das suas ações.
— Eu vou gozar — ela diz alto o suficiente para me fazer morder seu
ombro. — Porra...
— Isso, amor — digo, aumento as investidas. — Goze para mim.
Donna solta um novo gemido, contraindo ainda mais a sua boceta e o
seu orgasmo toma conta do seu corpo em espasmos que me fazem sorrir ao
mesmo tempo que o meu vem em uma explosão, tomando conta de cada
célula, e parece que o tempo desacelera e jorro tudo dentro dela, apreciando
cada instante.
Minha testa repousa na sua, nossas respirações se misturam e um
sorriso cruza meus lábios.
— Ben? — chama, a voz ofegante e bufando.
— Sim?
— Amo você — sopra, fazendo meus olhos se abrirem em surpresa.
— Nunca deixei de te amar.
Suas palavras inflam meu peito, fazendo meu sorriso se ampliar.
— Eu te amo — digo de volta. — Apesar de todos os obstáculos em
nosso caminho.
— Até quando te deixei sozinho com uma criança, uma xícara de café
e um milhão de números? — pergunta, mordendo o lábio para controlar o
riso.
— Principalmente por isso.
— Ótimo, porque isso ainda vai acontecer muitas vezes — decreta,
sorridente, ao beijar meu queixo e se agarrar um pouco mais ao meu corpo
para se equilibrar. — Mas agora acho que preciso de um banho.
Ela mexe as sobrancelhas algumas vezes quando diz isso, me
causando um riso sincero.
— Isso soou como um convite.
— Talvez seja. — Dá de ombros.
— Se é assim — exalo, como se esse fosse um grande sacrifício —,
farei tudo o que a minha mulher quiser.
Levantai-vos, partamos;
Eis que se aproxima o que me trai.

Até algumas semanas atrás, a maior certeza da minha vida era que
meus irmãos sempre seriam meu porto seguro, pessoas nas quais poderia
contar em qualquer circunstância, não importa o que acontecesse.
Pode parecer besteira estar com tanto ressentimento dos dois por algo
que não posso mudar.
Mas eles não tinham o direito de ter feito isso.
Seis anos.
Seis anos me acolhendo quando tudo que eu queria desabar.
Seis anos em que a maternidade mudou a minha vida.
Seis anos nos quais me questionei incontáveis vezes se estava
tomando as melhores decisões por Lis.
Eu quase desisti da minha carreira.
Eu nunca mais deixei ninguém se aproximar do meu coração.
Eu esqueci de viver.
Passei seis anos amaldiçoando alguém que sequer sabia onde eu
estava.
Alguém que achou que eu o havia abandonado, alguém que achei que
havia rejeitado a mim e nossa filha.
Não é uma simples mentira.
É algo que mudou todo o rumo das nossas vidas.
Lis desejou o pai por seis anos.
E eles sabiam.
Eles ouviam.
A ouviam chorar, me ouviam chorar.
Eles presenciaram meu desespero.
Minha dor.
Minha insegurança.
A forma com que tudo relacionado à paternidade de Lis me levava à
exaustão em um piscar de olhos e mesmo assim eu continuava firme por
ela.
Matteo literalmente me segurou quando desmaiei de tanto chorar em
seu colo.
Alessandro cuidou de mim quando Lis gritou que me odiava pela
primeira e única vez, quando eu disse que não sabia onde seu pai estava.
Eles estavam lá. Sempre.
Me esconder algo como saber que Benjamin estava preso, foi cruel.
O que eles fizeram comigo foi cruel.
Não sei como Benjamin consegue entendê-los, porque para mim, não
faz sentido o que fizeram.
Eu faria de tudo pelos meus irmãos, sim.
Daria a minha vida por eles. Por lealdade. Por amor. Por eles.
Porque os amo apesar da minha vida.
Mas jamais esconderia algo desse nível, não importa o quanto doeria.
Eu estaria ao lado deles para os acalentar.
Não é como se, caso eles tivessem me contado antes que sabiam sobre
Benjamin, eu fosse correndo para a cadeia atrás dele. Na verdade, tenho
passado os últimos meses me perguntando o que eu faria se soubesse que
Benjamin estava preso.
Penso se eu iria até ele. Se o ajudaria a sair de lá. Se entenderia seus
motivos. Se permitiria que Lis o visitasse. Se ele iria querer nos ver.
Se.
Se.
Se.
São tantas dúvidas e possibilidades, que chego a ficar confusa. Mas
são coisas das quais eu gostaria de ter tido o poder de escolha.
Por que o que esconderam diz respeito a mim e à minha filha, não aos
meus irmãos, embora eu prezasse muito pela opinião deles.
— Não consigo entender — é a primeira coisa que digo, após os
minutos de silêncio ensurdecedor que sucederam a minha chegada à casa de
Matteo. — Não entendo como puderam me esconder algo dessa magnitude
e por tanto tempo.
Eles me deram um tempo quando descobri tudo, mesmo que não
quisessem. Mas pela manhã, recebi uma mensagem de Alessandro
perguntando se podíamos nos encontrar aqui para conversarmos.
Não os ignorei. Apenas precisei de um pouco de espaço para
processar o que havia descoberto e pensar no que isso afetaria no meu
relacionamento com eles.
E acho que cheguei à conclusão de que mesmo que eu tente os
perdoar ou entender seus motivos, nada mudará a sensação de ser traída.
— Eu fiz pensando no seu bem — Alessandro refuta.
— Nós pensamos no que era melhor para vocês, Donna — reitera o
outro.
— No melhor? Melhor em quê, exatamente? — pergunto, recebendo
o silêncio dos dois como resposta. É quando eu começo a me enfurecer. —
Quem são vocês para ditarem o que ou quem, deve ou não fazer parte da
minha vida?
— Somos seus irmãos — Matteo justifica. — Queríamos o melhor
para você.
— Acha que o melhor pra mim foi me sentir a pior mãe do mundo?
— Donna, não…
— Não tentem se justificar. Vocês não entendem? Livre ou preso,
Benjamin tinha o direito de saber sobre Lis, assim como eu tinha direito de
saber onde o pai da minha filha estava.
— Você já visitou uma prisão? — Matteo pergunta, na defensiva. —
Já ouviu falar do quão cruel é o processo apenas de entrar para uma visita?
É quando eu toco em sua ferida.
— Você já se sentiu um péssimo pai? — Ele se cala ao me ouvir, eu
vejo a dor em seus olhos. Eu sei o quanto isso o machuca e não me importo
em usar isso nesse momento. Quero que eles sintam o quanto foi difícil,
mesmo que seja errado fazê-los lembrar de seus respectivos passados. Viro-
me para Alessandro. — Você consegue dormir com a consciência limpa
sabendo que a sua vida nunca desejou algo que você poderia ter dado a ela
muito antes?
— Não entendo por que precisa tocar nesse assunto — Matteo me
responde, inflado de raiva.
— Não é óbvio? — pergunto, abrindo os braços. — Vocês ficam
repetindo para que eu entenda a porra do lado de vocês, mas não entendem
o meu. É como se vocês esquecessem a quantidade de vezes que chorei no
colo de vocês, querendo desistir de tudo. Eu quase perdi a minha carreira.
Eu passei uma gestação inteira sozinha. Dentro de uma casa onde eu podia
fazer o que quisesse contra a minha vida e a vida da minha filha.
“Eu estava sozinha quando descobri que estava grávida, quando
descobri que era uma menina, quando contei para vocês e fui ignorada,
rejeitada. Matteo falava do meu bebê como se ela fosse uma aberração,
Alessandro se recusou a falar comigo por nove meses. E eu aguentei tudo
sozinha. Você diz que viu o quanto foi difícil crescer com o Francesco para
mim, mas nunca experimentou ouvir sua própria mãe desejar que o bebê
que gerava em seu ventre fosse o mal encarnado para que você pagasse por
todos os pecados que seu pai cometeu. O inferno que passei com Francesco
não chega aos pés do inferno em que passei com uma mente ansiosa, um
bebê na barriga e a minha solidão.
“E anos depois, quando tudo parece estar voltando aos eixos,
descubro que vocês não apenas sabiam onde o pai da minha filha estava,
como esconderam de mim que ele me procurou. Mentiram para mim
quando disseram que não o acharam. Se aproveitaram do amor que sinto
por vocês quando olharam nos meus olhos e disseram que sentiam muito,
mas que não havia mais nada que pudessem fazer!
“Então é claro que não entendo vocês, porra! Vieram do mesmo pai
que eu. Da mesma crueldade, sentiram a dor de ser um Lombardi.
Prometemos lealdade um ao outro. Acima das nossas diferenças.
Prometemos nunca mentir. E foi o que fizeram. Não foi só eu que perdi seis
anos, mas Lis também. Vocês foram egoístas, mesquinhos e imbecis.
Pensaram em vocês mesmos, no que faziam para vocês e se esqueceram de
mim! É horrível dizer em voz alta e é horrível pensar que vocês fizeram
exatamente a mesma coisa que ele faria. E isso, eu não esperava de nenhum
dos dois. Vocês me traíram. Me apunhalaram pelas costas e depois agiram
como se nada tivesse acontecido. É cruel. Até mesmo para quem nasceu
com o sangue Lombardi.”
Preciso respirar fundo quando me calo, notando que me exaltei um
pouco. Encaro-os ainda cheia de raiva, com lágrimas nos olhos e
percebendo que Matteo não me encara enquanto o outro, espreme os lábios,
com tantas lágrimas presas quanto eu.
— Entendemos nossos erros agora, Donna… — Matteo diz, a voz
soando estrangulada como ouvi poucas vezes em minha vida. — Sabemos
que não há como reparar nada disso.
Lombardis não choram. Francesco nos ensinou assim e desse jeito
vivemos a vida.
— Sentimos muito — Alessandro afirma, e sei que está sendo
sincero. — Realmente não foi a nossa intenção.
— Sentir muito não adianta de nada.
— Francesco dizia que eu era um monstro — ele continua, desviando
os olhos dos meus dessa vez. — Na cadeia, eu me vi como um. Pensei em
fazer absurdos. Quis fazer absurdos. Aquele lugar moldou em mim alguém
sem controle, Donna. Ele tirou de mim a humanidade e qualquer coisa boa
que houvesse em mim.
Eu sei o que ele quer dizer.
Não é como se Alessandro fosse um garoto animador antes da cadeia.
Ele era fechado e quieto, muito mais do que Matteo. Era difícil que alguém
além de nós ganhasse a confiança dele e o fizesse sentir algo que não fosse
apatia.
Mas aconteceu um ano antes da cadeia.
Uma garota. Giulia Thorne. Ela foi a responsável por transformar
Alessandro em alguém feliz e, no segundo seguinte, a pessoa mais frígida
que já conheci.
A herdeira da cidade destruiu meu irmão. Fez um estrago muito maior
do que Francesco ou qualquer um poderia tentar.
— Você não é um monstro — eu digo, engolindo o nó em minha
garganta. — Você é humano.
— Não é assim que eu me sinto — diz, erguendo os ombros.
— Alessandro…
— Não estou pedindo que me entenda — me corta, erguendo os olhos
e me permitindo ver um pouco de vulnerabilidade ali. — Estou pedindo que
pense só um pouco em como me senti quando descobri onde Benjamin
estava. Eu falhei com você durante a gravidez, te abandonei e você nunca
fez o mesmo comigo ou com Isabella, nem quando todos ao nosso redor me
tratavam como o bastardo que eu sou.
— Também não estamos te pedindo perdão porque agora entendemos
o que fizemos e o quanto isso prejudicou você e a nossa família — Matteo
completa.
— Eu vi a forma que ele te olhou — meu irmão diz, parecendo preso
a algum momento. — Vi a forma com que Lis falou com ele. E aquela
garotinha é a minha vida, Donna. Minha vida começou quando os olhos
dela se abriram, quando percebi o quão importante ele havia se tornado para
ela em tão pouco tempo, eu entendi a merda que fiz.
“Não espero que me perdoe. Eu mesmo não farei isso. Sei que não é
justo te pedir para me entender porque, sinceramente, minha cabeça é toda
fodida. Mas eu lembro de como foi para você ser a única garota entre dois
meninos. Eu vi o quanto ele odiava os seus sonhos, o quanto te
menosprezava e eu sabia bem o que ele faria com Lis se eu não tivesse…”
Ele se cala, engolindo em seco.
— Se você não tivesse…? — Tento fazer com que ele me conte.
— Donna… de todas as coisas do mundo, nunca me peça para dizer
isso em voz alta.
Meu olhar se desvia para a tatuagem da cobra engolindo a si mesma
em volta do pescoço. Automaticamente, os flashes de quando Francesco
deu o comando para a sua Píton[31] de estimação se enrolasse na garganta de
Alessandro. Tão apertado que o animal parecia estar engolindo a si mesma
enquanto ele encarava nosso pai com ódio flamejando em seus olhos antes
de perder todos os sentidos.
É a pior memória da minha existência. Ter visto meu irmão ali,
naquela cadeira, amarrado como um animal selvagem e sendo sufocado até
não conseguir mais se manter acordado enquanto um dos homens de
confiança do nosso pai tampava minha boca para que eu não gritasse.
Eu tinha apenas quinze anos.
Teria matado Francesco aquela noite se não estivessem me segurando.
— Eu pedi para que viesse porque guardei tudo e acho que o mínimo
que posso fazer por você é te entregar a caixa.
— O quê? — pergunto, confusa.
— As cartas que ele te enviava. Sua mãe me enviou todas.
Suspiro, jogando-me na poltrona atrás de mim e deixando que o peso
do mundo venha junto comigo quando enfio o rosto entre as mãos, sentindo
que a minha cabeça pode explodir a qualquer momento. Parece que, a cada
segundo, descubro algo que me decepciona mais.
Minha genitora não é exatamente o tipo de pessoa que alguém goste
de conviver. Ela passou vinte anos casada com meu pai, até que um dia ele
se cansou e a mandou ir embora para New Haven, onde fui morar alguns
anos depois. Ela sempre foi conivente com todas as atitudes e falas de
Francesco. Tão culpada quanto ele.
Então, não foi surpresa para mim ou Matteo quando não fez questão
que nenhum de nós dois a acompanhássemos.
Quanto irei ganhar deixando eles com você?
Na verdade, isso foi a primeira coisa que ela perguntou quando ele
disse em alto e bom som, na mesa de jantar, que ela deveria arrumar as suas
malas pois o jatinho estaria esperando ela na primeira hora da manhã.
Ela sabia que, para ele, valia muito ter a imagem de bom pai que
demonstrava ser para o público, na época. Isso mudou um tempo depois.
Um ano depois, engravidei e, com o fundo que juntei da mesada, fui
morar sozinha. Apenas eu e uma barriga enorme. Giane e eu nos vimos
raramente e depois que meus irmãos me buscaram na maternidade não a vi
nunca mais. Nem tive notícias.
Não a odeio, apesar de tudo.
Mas também não gosto nada de saber que um dos meus irmãos teve
contato com ela pelas minhas costas quando fez tão mal para nós.
— Acho que não preciso repetir o quanto estou me sentindo traída por
isso — digo, limpando as lágrimas e encarando a caixa de madeira que
agora repousa na mesa de centro.
— Não — Matteo concorda. — Não precisa.
— Vou viajar depois da sua apresentação — anuncia Alessandro, de
repente. — Não sei quando volto. Mas preciso cuidar do Templo por um
tempo. Acha que… posso passar alguns dias com Lis antes disso?
Exalo com força, encarando-o.
— Não se preocupem com Lis. — Deixo claro. — Eu não perdoei
vocês, e sinceramente, não sei se um dia isso irá acontecer, mas vocês
continuam sendo meus irmãos e parte mais que importante na vida dela. Eu
quero apenas que entendam que, de agora em diante, Elisa tem um pai. Um
pai que a ama desde antes de conhecê-la. Mas isso nunca vai ser o
suficiente para tirar daqui — pressiono meu indicador na cabeça e em
seguida no meu peito — ou daqui, todas as vezes em que ela assoprou as
velinhas pedindo pelo pai. Lis continua sendo sobrinha de vocês, eu
continuo sendo sua irmã. Mas acho que nunca mais confiarei em uma
palavra sequer que saia da boca de vocês, sem ter plena convicção de que
não estão fazendo isso porque acharam que era o melhor para nós.
E então, me levanto, evitando olhar para eles e ver suas expressões.
Não quero quebrar na frente deles. Não hoje, quando eles são os
causadores disso.
Pego a caixa, sentindo-a um pouco pesada para um compartimento
que há apenas papel. Por alguns segundos, pego-me presa ao que há em
minhas mãos.
Eu quero abri-las?
Eu quero saber o que ele estava tentando me dizer durante todos
esses anos?
Puxo o ar com calma, ajustando minha bolsa em meu ombro antes de
dar as costas aos dois e passar pela porta de entrada, sem encará-los.
Alguns passos depois, abro meu carro, coloco a caixa no carona e
sento-me no banco do motorista, encostando a cabeça no volante por um
tempo – que não faço ideia de quanto –, sentindo o alívio de ter dito em voz
alta tudo o que tem permeado minha cabeça nos últimos tempos.
Encaro a caixa pesada no banco ao lado.
Isso vai doer pra caralho.
Contando os dias, contando os dias
Desde que meu amor se perdeu em mim
Bruises | Lewis Capaldi

DIA 10
“Hoje é vinte de junho. Só sei disso porque faz dez dias que estou
preso aqui. Me sinto um merda.
Sei o que fiz. Sei que essa é a consequência do meu ato, mas não
consigo parar de pensar na minha bailarina.
Estou com tanta saudade dela.
Eles vão me acusar de duplo homicídio doloso. Mas eu não a matei,
Donna. Não a matei. Todos sabem disso. Eu nunca faria mal nenhum à
minha mãe.
Tentei ligar para sua casa, queria explicar para você o que
aconteceu, mas a sua mãe atendeu e me disse coisas… coisas que não
quero ter que te contar.
Preciso que me entenda, Donna. Eu não quis perder nossa
apresentação. Não quis te deixar sozinha. Mas ele ia matá-la. Eu não podia
deixar que isso acontecesse.
Desculpe. Desculpe por ter acabado com as nossas chances de
ganhar. Desculpe.
Eu espero que receba as cartas. E espero que me entenda nem que
seja um pouco.
E por favor, cuide do Ash para mim.
Não sei onde ele está. Não sei como procurá-lo.
Por favor, me perdoe. E por favor, não me odeie.
Sempre seu, Ben.”
DIA 31
“Esse lugar é horrível.
Não consigo dormir.
Não confio nas pessoas daqui.
Não sou um cara bonzinho. Sempre soube que não era o mais
comportado e nem o menos briguento. Mas aqui é diferente.
As brigas terminam na enfermaria e alguns deles não voltam para
suas celas.
É cruel.
Não sei se irei suportar mais tempo aqui.
Sinto saudades da minha mãe. Sinto saudades do Asher. E sinto
saudade de você.
Não quero que me visite. Não quero que me veja dessa forma. Mas
peço que, por favor, me responda.
Preciso apenas saber se me acha um monstro, como todos os outros.
Preciso saber se me odeia.
Se tem vontade de gritar comigo ou me socar.
Sinceramente, prefiro que grite, porque o seu soco dói para caramba.
As coisas parecem se repetir na minha cabeça, como se eu estivesse
louco.
Vivo o mesmo dia todos os dias.
Sinto a mesma saudade todos os dias.
E meu egoísmo espera que você também sinta.
Sempre seu, Ben.”
DIA 44
“Entre estas paredes frias desse inferno, encontro conforto nas
lembranças de você. A única coisa que consegue me ajudar a suportar a
realidade deste lugar é lembrar de nós. Escrever para você é minha forma
de sentir sua presença, mesmo à distância.
Todos os dias, acordo pensando em seu sorriso, em seus olhos que
sempre me deram a sensação de casa.
No entanto, minha mente também faz questão de me lembrar de todas
as coisas que não vivemos e que provavelmente não viveremos.
Queria ter te levado a um primeiro encontro, ter te dado flores e
poder te oferecer tudo o que você merece.
Mas acho que não sairei mais desse lugar.
O sistema já disponibilizou três advogados para mim. E todos
desistiram da minha causa.
Sinto muito, amor, por não ser o homem que você merecia.
Sinto muito por te envergonhar estando em um lugar como esse.
Sinto muito em te decepcionar.
Quero que saiba apenas isso. Que sinto muito por ser alguém que
você não merece.
Espero que você esteja bem e segura.
Eu te amo infinito. E um pouquinho além dele.
Mas se por acaso você não me amar mais de volta. Não tem
problemas, eu o farei por nós dois.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 75
“Só queria dizer mais uma vez que te amo infinito e um pouco além
dele.
Estou com saudades do seu cheiro.
Sempre seu,
Ben”
DIA 101
“Sinto sua falta a cada instante do meu dia.
Espero que sinta a minha também.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 273
“É dia vinte e sete de março.
Sei que vai soar estranho e contraditório o que direi agora, mas há
um sentimento bom em meu peito que não saberia colocar nessas palavras.
Donna, parece que meu coração vai sair pela boca a qualquer
instante.
Nunca experimentei uma sensação tão estarrecedora e complexa
quanto essa.
É como se o lugar onde eu estou fosse o céu.
É assim que me sinto.
No céu. Como se algo divino estivesse acontecendo dentro de mim.
E é bom.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 407
“Estou desistindo, Donna.
Me desculpe.
Acho que nunca irei sair daqui. Faz mais de um ano que estou aqui e
nada muda. Todos os dias são os mesmos, todos os meus pensamentos são
iguais.
Asher me visitou essa semana, ele está morando com o nosso tio e
finalmente conseguiu a liberação para visitar, mesmo que eu não queira
isso. Não quero receber visitas.
Mas, ainda assim, perguntei a ele sobre você e ele me disse que não
te encontrou, que te procurou, mas que não te encontrou nem mesmo
quando foi à sua casa.
Por onde você anda?
Está recebendo as minhas cartas?
Me perdoe.
Não queria que nada disso acontecesse.
Sinto sua falta.
Não tenho notícias suas desde aquele dia.
A saudade parece querer explodir o meu peito.
Pode apenas responder dizendo que não me quer mais?
Prometo que paro de te enviar essas cartas que agora parecem
inúteis.
Mas enquanto eu não souber que você não me quer de volta,
continuarei mandando. Continuarei na esperança de que lê todas as minhas
palavras e apenas não responde.
Por favor, apenas responda. Nem que seja para dizer que me odeia,
que sou um monstro e que não me quer mais em sua vida.
Por favor, me dê notícias.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 599
“Te amo infinito e um pouco além dele.
Sempre seu,
Ben”
DIA 603
“Eu tento te deixar em paz, mas as memórias de você não me deixam.
Desculpe.
Mas não consigo parar de te escrever.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 638
“É vinte e sete de março.
Me sinto diferente, mas não estou triste.”
DIA 756
“Lembra de quando quase fomos pegos na sala do reitor?
Pensei nisso esses dias e me dei conta do quão era bom passar por
essas coisas estúpidas com você.
Sinto falta de ser eu. Em quem me transformo quando estou com
você. Mas acho que nunca mais serei eu mesmo, porque acho que você já
não me quer mais.
Sempre seu,
mesmo que não me queira,
Ben.”
DIA 847
“Sinto falta da minha bailarina.
Não sei onde ela foi enterrada. Se foi enterrada.
Não queria que aquilo tivesse acontecido.
Eu teria dado um fim em Michael independente da situação.
Mas ela não deveria estar lá.
Ela não deveria tê-lo amado tanto.
Ela deveria ter aceitado fugir comigo e Asher.
Deveríamos ter ido embora daquela casa sem que ele notasse.
Não era pra ter sido desse jeito, Donna.
Agora, eu perdi a minha bailarina.
Perdi você.
Estou perdendo a adolescência do Asher.
E não me lembro mais da sensação de correr ou patinar.
Sinto falta de estar do lado de fora desses muros.
Mas, acima de tudo, a falta de você consegue ser a mais esmagadora.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 900
“Te amo infinito e um pouco além dele.
Sempre seu,
Ben”
DIA 991
“Esses dias percebi que nunca fui livre. Sempre estive preso em
minha própria mente.
Me aprisionei de tal forma que até mesmo me surpreendi quando me
dei conta de que nunca irei me livrar desse peso.
Os únicos momentos dos quais me sentia livre eram quando estava
com você.
E estou preso novamente agora. Em um lugar diferente e na minha
própria cabeça.
Acho que nunca serei o suficiente para o mundo do lado de fora.
É melhor que eu fique aqui para sempre.
Assim não machuco mais ninguém, já que perdi todos que eu amava.
Sempre seu,
Ben.”

DIA 1002[32]
“Estou morrendo.
Consigo sentir a dor nas minhas costelas a cada vez que respiro.
Pedi ao enfermeiro para que me ajudasse a pegar o material
necessário para te escrever uma carta.
A última, eu acredito.
Passarei a noite na enfermaria. E acho que essa será a minha última.
Tudo dói.
Eu não tenho mais forças para lutar contra isso.
Eu quero desistir. Quero a morte.
Eu não aguento mais.
Então, se um dia receber isto, quero que saiba o quanto você
significou para mim. Você foi mais do que apenas um amor; você foi a
minha melhor amiga. E eu sou muito grato por isso.
Sou grato por nunca ter esquecido das estrelas do seu rosto. E por
elas sempre me trazerem ao eixo quando penso no mundo aí fora.
Sou grato por ter me escolhido.
E sou grato por ter preenchido o vazio.
Sou grato por muitas coisas, amor, mas não tenho mais forças para
escrever tanto.
Então, espero apenas que você seja feliz.
Que encontre alguém que lhe dê toda a estabilidade que eu não pude.
E que você tenha dias mais felizes do que tristes.
Que realize seus sonhos e que seja campeã. Em todas as competições
que participar.
Você merece o topo. E eu te amo porque você sabe disso.
Te amo infinito, além e um pouco mais.
Adeus, meu amor.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 1018
“Eu sonhei com uma menininha linda.
Ela disse que eu tinha borboletas ao meu redor. Que elas eram a
minha mãe. Pessoas que nós amamos sempre retornam dessa forma.
Ela era muito inteligente e esperta. Gostava do Asher como se ele
fosse seu humano favorito e os dois estavam sempre juntos.
Ela me acordou, Donna.
Eu estava morrendo.
Meu coração havia parado.
Haviam desistido de me reanimar.
Então vi olhos enormes olhando para mim e respirando no meu rosto.
Ela disse: “Você não pode ir agora, eu ainda não te conheço”.
E eu despertei.
Fiquei oito dias em recuperação.
Mais oito tentando me manter de pé.
E fiquei o tempo todo pensando: quem era aquela garotinha?
Porque a voz dela me acalmou tanto?
Não acreditava em Deus. Até aquele dia.
Naquele dia eu conheci um anjo.
E era o anjo mais lindo do mundo.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 1356
“Hoje foi um dia ruim.
Tem ficado difícil conseguir papel e caneta para escrever para você.
O guarda que consegue isso para mim quase foi pego e me avisou
que, a partir de agora, a frequência que receberei minhas encomendas
serão mais escassas.
Como se isso não fosse o suficiente, no meu horário livre no pátio,
um idiota me confundiu com outro idiota e eu acabei ganhando um olho
roxo de graça.
E isso nem foi a pior coisa que já me aconteceu aqui. Na verdade, foi
uma das mais leves.
Porém, não quero e não vou me aprofundar nesse assunto com você.
Não consigo, Donna.
Imaginar que possa sofrer enquanto lê o que relato, me dói.
Isso sim pode ser uma das piores coisas que podem me acontecer.
E eu já estou sofrendo demais, amor.
Então, se eu puder pedir algo, peço que viva uma vida tranquila.
Você é a minha vida.
E se você está bem, eu também estou.
Não importa o lugar que eu esteja.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 1368
“Vinte e sete de março.
Consigo respirar aliviado.
Meu peito não dói.
Por que nessa data sempre me sinto assim?”
DIA 1601
“Você está recebendo as minhas cartas?
Eu sinto sua falta. E já estou chegando no meu quinto ano neste
lugar…
Eu quero pedir desculpas, mesmo que já tenha passado tanto tempo e
que talvez você se lembre de mim apenas como um idiota que estragou um
dia tão importante para você. E acho que um pedaço de papel não será o
suficiente para isso. Então… será que pode, por favor, me visitar?
Não queria que fizesse isso durante todos esses anos, mas sinto que
apenas assim seria capaz de te explicar tudo.
E também porque sou egoísta e quero ter algum motivo para me
sentir bem.
Preciso te explicar o que aconteceu. Você precisa me ouvir. Por favor.
Se está me deixando, ao menos me deixe te explicar o que houve.
Eu te imploro.
Escreva uma carta para mim quando sentir saudade. Ou até mesmo
se não sentir.
Vou ficar esperando uma resposta, pensando que você sentiu e não
me contou. E se isso for real, irei passar a te admirar ainda mais por ter
essas duas habilidades. A de não sentir saudades e a de não pensar em
mim.
Porque eu sinto. Eu penso.
Todo dia, Donna.
Sinto sua falta todo dia.
Sempre seu,
Benjamin.”
DIA 1733
“É vinte e sete de março.
Eu daria tudo para entender por que essa data sempre me deixa
bem.”
DIA 1943
“Te amo infinito e um pouco além dele.
Sempre seu,
Ben”
DIA 2004
“Hoje eu demorei a lembrar o som da sua voz.
Doeu pra caralho.
Sempre seu,
Ben.”
DIA 2017
“Saio daqui em dois dias.
Asher não sabe ainda.
E eu não tenho mais ninguém a quem contar que não seja você.
E eu queria que você fosse a primeira a saber.
Fico imaginando como você deve estar agora.
Se deixou o cabelo crescer, se ainda faz aquelas tranças que eu
adorava ou se as ondas do seu cabelo continuam macias como me lembro.
Fico apenas… te imaginando.
E isso é que tem me dado força para aguentar esses últimos dias.
Só mais dois dias.
E eu vou atrás de você onde quer que esteja.
Te vejo em breve, linda.
Sempre seu,
Ben.”
Porque eles dizem que lar é onde
Seu coração está gravado em pedra
É onde você vai quando está sozinho
É onde você vai para descansar
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Itsdonnalombardi: vou demorar um pouco mais do que o esperado.


A ansiedade está me consumindo.
Explicar para Asher que realmente tenho uma filha por telefone foi
definitivamente a pior decisão que eu poderia tomar.
Estou ignorando-o há dois meses. Desde o dia em que descobri sobre
Lis, na verdade. Eu com certeza contaria para ele antes mesmo que me
cumprimentasse e, por isso, me segurei.
Não parecia certo introduzir mais alguém na vida da minha filha
sendo que ela nem mesmo sabia sobre mim. E, mesmo quando soube,
precisou de um tempo para se adaptar, entender todas as coisas novas, então
definitivamente não era uma boa ideia.
Além do mais, depois de tudo o que estamos passando no processo de
adaptação de Elisa comigo em sua vida, também precisamos lidar com a
grande mídia começando a especular sobre Donna e eu, a minha prisão e
nosso passado. As teorias não pararam até que envolvessem Lis e
deduzissem por si próprias que ela é minha filha.
Não demorou muito para que as tentativas de contato de Ash ficassem
ainda mais intensas.
Saber que ele soube através de matérias sensacionalistas me deixou
algumas noites sem dormir, admito. E quando os boatos ficaram ainda mais
fortes ao sermos flagrados deixando-a na escola, resolvi finalmente atender
suas infinitas ligações.
Ele perguntou se era verdade, eu respondi que sim e, de repente,
arrumei uma confusão.
Meu irmão surtou.
Foi pior do que eu imaginava.
Primeiro, ele achou que eu não estava falando sério, que era apenas
mais um rumor falso; segundos depois, me perguntou porque caralhos eu
não o havia contado antes sobre isso – com essas exatas palavras.
Segundo, ele não me deu chances para responder ou sequer respirar
enquanto fazia um monólogo. Disse o quanto era absurdo ele não saber
disso, o quanto era cruel eu não saber disso e que porra Donna tinha na
cabeça para esconder Lis desse jeito.
Juro por Deus que nunca vi meu irmão falar tanto na vida.
Meu irmão sempre foi quieto e de falar apenas quando necessário.
Ash nunca gostou de falar sobre sentimentos e nem sobre si. Ele ouvia Elisa
como ninguém. Acho que essa era a coisa que ela mais amava nele.
Não consegui intervir no seu monólogo, mas em algum momento,
ouvi Kimberly gritar um belo “cala a boca, pelo amor de Deus” e foi só
então que consegui explicar algumas coisas para ele.
Asher não ficou nem um pouco satisfeito.
A ligação aconteceu ontem e, agora, estou esperando-o em frente à
nossa casa porque Lis não consegue se conter.
Donna precisou visitar seus irmãos. Acho que, seja lá o que precisam
conversar, irá demorar e Lis está ansiosa demais para esperar dentro de
casa.
— Não acha que ele está demorando, pai? — pergunta, se inclinando
para a frente, tentando ver melhor a rua. — Estou nervosa.
— Ele está vindo, neném — digo, tentando aplacar sua ansiedade,
mas igualmente nervoso. — Deve ter se perdido.
— Será que ele está naquele carro maluco? — questiona, apontando
para um veículo de vidros escuros que acaba de cruzar a rua.
Controlo uma risada, porque com certeza Asher está vindo naquele
carro. Posso apostar que está se segurando nos bancos enquanto Kimberly
dirige, do seu jeitinho… peculiar.
— É ele, sim, filha.
Sua mão se aperta um pouco mais na minha, fazendo-me senti-la um
pouco suada. Me abaixo à sua frente, e seguro seu rostinho para que me
encare.
— Não precisa ficar tão nervosa, amor — digo com cautela. — Asher
vai gostar de você. Não se preocupe, ok? O papai está aqui com você.
— Ok — responde, ao mesmo tempo que o veículo se aproxima cada
vez mais e a porta do carona é aberta com rapidez antes que meu irmão saia
dele, sem ao menos esperar que sua namorada estacione direito.
Vejo que ele caminha em nossa direção, mas paralisa a poucos passos,
encarando fixamente para Elisa.
Ele fica em silêncio até que eu o quebre.
— Asher, essa é a minha filha.
— Oi — ela cumprimenta, as bochechas vermelhinhas de vergonha.
— Meu nome é Elisa.
E então, acontece algo inesperado.
Eu vejo o Asher de sete anos. Aquele que não tinha vergonha de
deixar seus sentimentos do lado de fora.
Eu vejo o garotinho que deixei para trás na noite da minha prisão.
Seus joelhos vão ao chão, assustando um pouco Elisa quando ficam
da mesma altura, mas ela não recua. Seus olhos focalizam nos dele, e é no
mínimo estranho o que estou vendo.
Sinceramente nunca imaginei vê-lo desta forma depois que se enfiou
no casulo seguro que criou após a morte dos nossos pais e da minha prisão.
Mas, vendo agora, eu não poderia esperar menos.
Afinal, Elisa consegue arrancar de qualquer um a parte que mais dói e
tratar como a parte mais bonita.
— Você sabe quem eu sou?
— Sim — Lis responde. — É mais alguém para a minha lista de
pessoas favoritas do mundo inteiro.
E isso faz um sorriso genuíno crescer no rosto do meu irmão.
É lindo. Um sorriso que eu não via há anos.
— Você tem o mesmo nome da minha mãe.
Sei o que ele pensa quando diz isso.
Lis é a cópia perfeita da nossa bailarina.
Mas mamãe não está mais aqui.
Ela não irá me ver envelhecer ou conhecer minha filha.
Ela não irá me acompanhar até o altar.
Elisa Dempsey me criou.
Ela segurou a minha mão quando dei meu primeiro suspiro e estava
em meus braços quando fechou seus olhos para sempre.
Ela se foi.
Mas nunca parou de dançar nos nossos corações.
— Por que você parece triste? — minha filha pergunta, soltando a
minha mão e parecendo um pouco menos nervosa.
— Porque sinto falta dela — confessa, baixinho.
— Não deveria — diz, tocando o nariz avermelhado do meu irmão,
que segura o choro. — Veja, ela me visita todos os dias.
— Como?
Como se fosse algo combinado, a borboleta azul pousa em seu dedo e
Lis sorri para Ash antes de dizer:
— Alguém me contou que, quando alguém que amamos vai para o
céu, volta em forma de borboletas para nos visitar.
Os olhos de Asher lacrimejam.
— Azul era a cor favorita dela.
— Eu sei, o papai me contou.
Os dois embarcam em uma conversa sobre borboletas e cores
enquanto minha atenção é puxada para minha cunhada, que sai do carro um
pouco eufórica, fechando a porta com força, ao passo que os dois se afastam
de mim, indo em direção ao jardim dos fundos, sem nem mesmo se
importarem conosco.
— Que história é essa de que tem uma filha? — é a primeira coisa
que me pergunta, antes de me abraçar apertado. — Mamãe não pareceu
surpresa quando contei.
— Não me surpreenderia se ela soubesse disso antes de mim —
respondo-a, rolando os olhos. — Sabia que a casa que ela me emprestou
tem problemas na encanação e ignorou todas as minhas chamadas quando
descobri?
— É a cara da minha mãe fazer isso — Kim concorda, dando de
ombros. — E como estão as coisas por aqui? Assisti à sua apresentação, e
devo dizer que foi impactante.
— Estão melhores que no início — respondo, guiando-a até onde os
dois foram. — Aconteceram algumas coisas entre Donna e os irmãos e isso
tem deixado as coisas um pouco tensas.
— E a sua filha?
Sorrio tanto que minhas bochechas chegam a doer.
— É a garotinha mais adorável do mundo.
— Imaginei que… — O sorriso de Kim vacila quando seus olhos
alcançam Lis, que está entretida rindo para Asher como se ele fosse a
pessoa mais engraçada do mundo.
Mas então, seus olhos se erguem em nossa direção. E Lis parece
entrar em transe, fazendo com que Asher vire o rosto para nós.
— O quê… — Minhas palavras morrem na boca quando Elisa vem
em nossa direção, encarando Kimberly com um fascínio de quem a conhece
de algum lugar.
— Oi, princesa — ela cumprimenta Kimberly, seus olhos parecem
encantados. Como se ela reconhecesse minha cunhada de outras vidas. —
Você se lembra de mim?
Uma lágrima escapa dos olhos de Kim.
— Como eu poderia esquecer, pequena? — sussurra.
— Olha — Lis aponta para mim, animada. — Eu encontrei o meu
papai. Ele estava perdido, mas me encontrou.
— Vocês se conhecem? — pergunto, ainda mais confuso, mas sou
ignorado pelas duas quando Kimberly pergunta a Lis sobre como ela está.
Encaro meu irmão, que diferente de mim, parece entender o que acontece.
Asher logo é substituído pela namorada, que é levada pela tagarelice
de Elisa para ver seu pula-pula. Meu irmão se aproxima de mim e seus
olhos vermelhos deletam sua vontade de chorar.
— Lembra de quando te contei que vi uma mulher no topo de um
prédio?
— A que caiu?
— Ela não caiu — diz, me fazendo erguer as sobrancelhas. Essa
conversa não parece fazer o menor sentido. — Eu quem fechei os olhos
antes que saísse dali.
— Não estou entendendo, Asher. Por que está me contando isso
agora?
— Lis tirou Kimberly daquele parapeito, Benjamin. Ela estava perto o
tempo inteiro.
— Como sabe disso? — pergunto, franzindo as sobrancelhas.
— Mostrei as fotos que me enviou. Ela reconheceu na hora. Disse que
a pequena estava perdida no prédio em frente à minha fraternidade, em uma
apresentação de balé — meu irmão explica. — Lis disse que havia se
perdido da mãe, mas que também estava procurando o pai.
— Porra, isso é tão… — Suspiro, não conseguindo terminar de falar,
fazendo a minha garganta apertar e eu encaro seus olhos. — É difícil aceitar
que perdi tanto tempo.
Asher suspira.
— Não consigo nem imaginar como se sente — fala, encarando as
duas atrás de nós. — Ela é tão… especial. Eu a vi de longe e apenas isso foi
o suficiente para me fazer sentir instantaneamente mais feliz.
— Eu sei — concordo. — É assim que me sinto todos os dias que
acordo e a vejo.
— Vou dizer algo muito brega nesse momento e que precisa jurar que
não vai rir de mim — começa, encarando-me.
— Não prometo nada.
Meu irmão revira os olhos, mas diz mesmo assim:
— Fico feliz que Lis tenha o pai que nós não tivemos. — O nó se
forma em minha garganta antes que ele prossiga: — Ela fala de você com
tanto amor que, por um minuto, senti inveja dela.
Abraço-o apertado, ignorando seu murmúrio de reprovação. Desde
que se tornou um adolescente, Ash também se tornou alguém antiafeto, no
entanto, para mim, ele sempre será o meu garotinho, não importa o que
diga.
— Ben — ele chama, tão emocionado quanto eu, mas tentando se
fingir de durão. — Benjamin, algumas pessoas precisam de ar para respirar,
sabe?
— Pare de fingir que não gosta disso e me abrace de volta.
— Minha sobrinha vai pensar que sou bobo por chorar enquanto
abraço o pai dela.
— Ela nem está ligando para nós dois no momento.
Asher bufa, sendo convencido ao me abraçar de volta, pousando a
cabeça no meu ombro e fazendo-me voltar ao passado, quando fazia isso
em busca de carinho ou querendo dormir.
— Estou orgulhoso do homem que se tornou — digo para ele. — Fico
feliz em saber que finalmente podemos ser livres.
— Eu também, mano — concorda. — Agora, pode me soltar. Eu
realmente preciso respirar.
Rolo os olhos para o seu drama e o solto, vendo-o procurar algo em
seus bolsos.
— Visitei o tio Robert no mês passado e encontrei isso nas minhas
coisas — diz, me mostrando meu antigo celular. — Eu o carreguei e,
surpreendentemente, percebi que ainda funcionava. Tem… ligações na
caixa de entrada e algumas mensagens que talvez deva ver.
Seguro o aparelho em minhas mãos, ligando-o e percebendo que ele
parece bem mais pesado do que realmente é. Inspiro fundo ao ver uma foto
de Donna, Asher e eu como plano de fundo. Foi uma das poucas vezes que
consegui levá-los para sair juntos e tivemos um momento realmente bom.
Então, lembro-me que Donna disse que me ligou antes de ir à
maternidade e que aquela foi a sua última tentativa de entrar em contato
comigo dessa forma.
— Pode… — Engulo em seco. — Pode cuidar da Elisa essa tarde?
— É claro. — Assente, voltando a atenção para as duas. — Vou levá-
la para algum lugar, mas acho que ela gostou mais da Kimberly.
— Não seja ciumento.
— Não estou sendo — esclarece. — Mas agora acho que deveria ter
vindo sozinho.
— Asher! — reclamo, vendo-o me encarar com tédio, parecendo
realmente chateado pela namorada ter conquistado Lis tão rápido. — É uma
criança.
— Do que ela gosta?
— Pergunte você mesmo — incentivo, mas antes que ele dê um passo
para a frente, seguro o seu braço e lhe dou um olhar de aviso. O mesmo que
recebi quando a conheci. — Não importa o quão convincente ela pareça,
não dê café para ela.
Meu irmão murcha os ombros.
— Não vou dizer “não” para ela — se justifica. — Vou deixar esse
problema para você.
— Asher…
— Vou cuidar bem dela, me avise se precisar de algo — ele anuncia,
indo em direção às duas. — Princesa, o que acha de nos mostrar um
pouquinho da cidade?
Lis me encara em silêncio, como se estivesse esperando por minha
permissão. Assinto para ela, que sorri animada.
— Vou te mostrar os meus lugares favoritos!
Como você pode sentir falta de alguém que nunca conheceu?
Porque eu preciso de você agora, mas ainda não te conheço
Mas você pode me encontrar logo porque estou preso na minha
cabeça?
IDK You Yet | Alexander 23

Sento-me no sofá de casa, encarando o aparelho antigo em minhas


mãos.
Não sei como me sentir em relação a ele. Não sei o que fazer.
É por isso que continuo encarando a tela de bloqueio pelo que parece
ser horas a fio até finalmente tomar coragem de digitar a data de aniversário
de Asher e desbloqueá-lo. Demora um pouco para que processe isso, o que
não me surpreende, porque além de ter se passado muito tempo desde que
foi usado pela última vez, não deve receber uma atualização há anos.
Abro o aplicativo de mensagens, vendo que a última notificação é,
justamente, em vinte e sete de março. Pouco mais de seis anos atrás.
Clico em seu nome, subindo as mensagens até o dia em que fui preso.
Há centenas de ligações perdidas.
10 de jun.
Donnatella: Onde você está, Benjamin?
Vamos nos atrasar.
Benjamin?
Preciso saber se está bem.
Pode me responder apenas isso?
Você perdeu 53 ligações de Donnatella.
Donnatella: Fomos desclassificados.
Priya e Jason ganharam o primeiro lugar.
Pode me retornar?
Você perdeu 31 ligações de Donnatella.
11 de jun.
Donnatella: Não sei o que aconteceu com você
e porque diabos não responde as minhas mensagens,
mas é bom que apareça logo, Benjamin, ou juro que vou te matar.
Há um vácuo de dois dias entre as mensagens.
13 de jun.
Donnatella: Você e sua mãe sumiram
Tentei procurar por vocês, mas não consegui
que me passassem o endereço da sua casa.
Não faço ideia de como te encontrar.
Pode apenas me responder?
Há mais uma série de mensagens e ligações perdidas, até uma foto de
um teste de gravidez, seguido de um “precisamos conversar”. Fico preso
na imagem por alguns minutos, encarando o positivo que hoje se tornou a
pessoa que mais amo no mundo e penso no Benjamin de dezessete anos.
Como ele reagiria a essa notícia? O que ele diria?
Com certeza desespero seria a primeira coisa que sentiria. E depois,
ele iria querer esconder Donnatella da maldade que nos cercava naquela
época.
É, com certeza ele faria isso.
Noto que, entre as próximas duas mensagens, não há mais nenhuma
ligação perdida. O que significa que, nesse meio tempo, ela desistiu de
tentar contato. E não sei bem o que sentir em relação a isso.
19 de set.
Donnatella: Só queria te contar que é uma menina.
Descobri ontem e não contei para ninguém.
Meu corpo está mudando e eu também.
Me sinto uma bomba ambulante porque
tudo consegue me irritar ao extremo.
Ainda não decidi o nome dela ou qualquer
coisa que envolva a sua chegada, mas ouvi o
coração dela pela primeira vez ontem, e acho que foi quando
a minha ficha caiu.
Eu sou mãe agora, Benjamin. E você nos deixou.
Acho que desisto de te encontrar.
Já entendi que não importa o quanto tente, não
irá voltar.
25 de jan.
Donnatella: Acho que uma parte de mim ainda acredita
que você irá voltar a qualquer minuto e isso está me matando.
Não quero viver apenas para te esperar.
Você não vai voltar.
Não importa o quanto eu implore.
Então vou apenas te deixar ir.
Adeus.
Tiro coragem de onde não tenho para abrir a última mensagem da
caixa de voz, mandada no dia do nascimento de Lis. A primeira coisa que
ouço é a respiração ofegante e o fungar dela.
— Benjamin… acho que ela vai nascer. Eu não estou pronta para
isso, eu nem montei um quarto. Ela não tem um nome, nem um lugar seguro
para ficar. O que eu faço? Deveríamos ter nos cuidado melhor. E se ter
essa criança for um erro? E se seguir em frente com essa gravidez tiver
sido egoísmo meu? Não sei o que fazer, eu serei uma péssima mãe e… —
Seu grito de dor e agonia me faz espremer os olhos, permitindo que mais
lágrimas caiam em meu rosto. — Ah, Deus! A bolsa estourou, ela… vai
nascer… — Há um vácuo após ela dizer isso, apenas ouço sua respiração
ofegante e o seu choro aumentar, fazendo meu coração se diminuir. — E
você não vai voltar — finaliza, seu tom soando baixinho, como se falar em
voz alta doesse mais. E dói. Eu sinto o peso de suas palavras, o quanto
parece custar dizer isso. — Adeus.
Quando ouço a última palavra, deixo meu corpo escorregar para
baixo, enfiando meu rosto entre as mãos.
Eu preferiria ter tomado um tiro.
Caído de uma escada.
Quebrado a perna.
A dor agora… é algo que nunca senti antes.
Nada se compara a ela.
A dor que senti na cadeia quando estava morrendo?
Não.
Nem chega perto.
Eu perdi o amor da minha vida por seis anos, porque ela pensava que
eu havia lhe deixado.
Perdi os seis primeiros anos da vida da minha filha, porque alguém
achou que assim seria melhor.
Dói. Porra, como dói.
Dói respirar.
Dói saber que Donna esteve sozinha quando precisava de mim.
E eu não estava aqui para protegê-la.
Eu não tinha ideia do que acontecia.
Então, meu novo aparelho vibra por diversas vezes e quando o pego,
noto que são vários vídeos e fotos chegando. E quem os enviou foi o irmão
dela.
Itsmatteolombardi: ela guardou isso durante anos.
talvez você deva ir ao quarto no fim do corredor também.
vai te ajudar.
Quando abro o primeiro vídeo, meu rosto já está completamente
molhado ao observar a barriga enorme de Donna. Não dá para ver muito
além disso, apenas o topo do seu umbigo, o que parece… estranho. Eu
queria ter tido a oportunidade de tocar a sua barriga enquanto gerava a
nossa filha.
Porra, queria tanto.
“— Neném? — a voz de Donna soa carinhosa. — Mostra para o seu
tio o quanto você chuta forte.
Donnatella cutuca a própria barriga algumas vezes, até que dê para
ver a região se deformando e eu ouça seu gemido de desconforto, seguido
por uma risada. A câmera vira em direção ao rosto dela, que parece um
pouco inchado quando ela ajusta sua postura.
— Ela não chutou quase nada essa noite. — conta, preocupada. —
Fiquei com medo de que algo de errado estivesse acontecendo.”
Passo pelas próximas imagens, me deparando com fotos e mais fotos
dela exibindo a barriga. Olho cada uma delas com calma, contemplando o
quão radiante parecia. Paraliso em uma foto de Donna deitada em uma
maca, com um pacotinho enrolado em um tecido branco.
É a primeira foto da minha filha.
É o dia do seu nascimento.
Há lágrimas nos olhos de Donna ao encarar nosso neném em seus
braços, como se ela não conseguisse tirar os olhos dela.
Leva um tempo até que eu consiga passar para as próximas imagens.
Acabo rindo ao me deparar com uma série de fotos do rosto de Lis de todos
os ângulos e com todas as expressões.
Há fotos de Lis dormindo e chorando, uma grande quantidade de
imagens dela ainda bebê com os tios. Dá para perceber quando começa a
crescer, como se estivessem registrando cada centímetro a mais que ela
parece ter.
Em uma delas, Elisa está com uma cara de nojo enquanto seu rosto
está inteiramente sujo de mamão, como se a fruta fosse algo que odiasse
profundamente. A próxima me faz rir, porque nada seria mais Lis que uma
foto no colo de Alessandro, enquanto segura a caneca do tio com as duas
mãos. Sua camiseta branca suja de marrom e o líquido escorrendo por seu
queixo entregam que sua paixão por café se deu desde a primeira vez que
provou.
E então dou play em mais um vídeo.
“— Aaabapama — Lis aparece na filmagem sendo segurada de pé
pela mãe, que sorri em sua direção. — Alamama.
— Ela disse mamãe! — Donna comemora, olhando para a câmera.
— Não — Matteo discorda. — Ela disse Alabama.
— Ela disse Alessandro — a voz do outro soa, um pouco mais longe.
Donna olha feio para ele.
— Não seja bobo! — o repreende. — Ela disse “mama”, não foi,
princesa? Diz, “mama”!
Lis se agita em seus braços, como se estivesse tentando pular e grita
com força:
— Papa!
— O QUÊ? — os três entoam juntos, incrédulos.
Eu rio, admirando o quanto minha garotinha parece feliz ao descobrir
sua primeira palavra.
Ela me chamou primeiro mesmo sem me conhecer.
— Você carregou essa pestinha por nove meses — Alessandro refuta,
parecendo mais indignado que os outros. — E ela nem se parece conosco.
— Deve ter algo de errado — Matteo concorda. — Fala outra coisa,
neném.
— Papa! — Lis repete, feliz. — Papa! Papa! Papa! Papa! Papa!”
No próximo, ela parece um pouco maior que no vídeo anterior e
percebo também que seus dentinhos já estão crescidos.
“— Vem, Lis, vem para a mamãe.
— Mamã…”
Ela joga o bumbum para cima, ainda apoiando as mãos no chão
quando levanta a cabeça em direção à câmera e sorri. Devagar, as mãos
gordinhas se erguem e ela fica de pé sozinha, sem nenhum apoio.
É possível ouvir a comemoração de Donna pelo vídeo e sorrio com
isso em meio às lágrimas.
Lis bate palmas para a bagunça e ri.
É quando acontece.
Ela dá seus pequenos passinhos em direção à mãe, sorrindo por cada
segundo em que consegue se manter de pé.
É lindo.
E em nenhum desses momentos, eu estava presente.
É exatamente por isso que me pego indo na direção do quarto em que
Matteo me aconselhou a ir.
Preciso de mais.
Mais memórias de Elisa e Donnatella, durante o tempo que não pude
estar com elas.
Quando abro a porta do cômodo, me deparo com um lugar
extremamente organizado. Há quadros na parede, alguns são fotos de Lis ou
das duas juntas, outros parecem ser desenhos da nossa filha. Donna os
emoldurou como se fossem as artes mais preciosas e raras do mundo, coisa
que elas realmente parecem ser.
Nunca havia entrado aqui, apesar de ter ficado curioso. Donna disse
que era um lugar pessoal e que eu saberia o momento certo de conhecê-lo, e
eu respeitei. Mas, agora, é como se eu sentisse que é o momento certo.
Admiro algumas delas, tocando as bordas como se fossem itens
preciosos.
Meus olhos captam algo em cima da mesa, e lá onde minha atenção
se foca.
Há uma caixa de madeira com borboletas perfeitamente entalhadas.
Toco nela, respirando fundo antes de abrir, e ver que dentro, há mais
fotografias de Lis. Eu sorrio em todas elas. São momentos comuns do
cotidiano. Ela dormindo, comendo, mostrando a língua e, principalmente,
tomando café.
No entanto, o que me faz prender a respiração são as duas folhas
dobradas que vejo.
Cartas.
Porra.
Não sei se tenho coração para isso, mas nunca poderei dormir em paz
sem saber o conteúdo destes papéis.
Por isso, como se fossem bombas-relógios, eu os desdobro com
extremo cuidado, temendo o que vou encontrar ao ler.
“Hoje eu me lembrei de você.
E é irônico escrever isso quando não me lembro de um dia sequer em
que você nunca tenha perseguido meus sonhos ou a minha alma.
Eu nunca te esqueci e essa é uma realidade que eu odeio ter que
conviver.
E também odeio você.
Odeio tanto quanto sou grata.
Você e o seu abraço que acalmava tudo, aquela sua mania irritante
de me fazer feliz a qualquer custo e a forma com que conseguia me ganhar
sem muito esforço.
Eu lembrei de você hoje. Mas não senti sua falta.
É isso que repito para mim mesma todos os dias, todas as horas,
todos os minutos e todos os segundos que lembro da sua existência e do que
ela causa ao meu coração.
O que significa que isso acontece a todo instante.
Não sei quem você se tornou durante todos esses anos.
Mas sei que te quero bem longe de mim.
Não sei se ainda curte Maneskin, não sei se continua patinando, se
ainda gosta de azeitonas ou se sequer sente minha falta.
Pego-me pensando se as coisas seriam diferentes se eu nunca tivesse
te conhecido.
Entretanto, acho que de todas as coisas das quais me arrependo
durante a minha vida, te amar não foi uma delas.
Eu te amei. No passado, que é onde você está. E é de onde não quero
que você volte.
Te amei por incontáveis dias.
Te amei não só nessa, como em outras vidas.
E sabe o que não te contei, Ben?
Todos os dias que te amei foram malditamente dolorosos.
Era como se eu estivesse bebendo um pouco de veneno todos os dias.
Um veneno do qual não há antídotos ou milagres que possam reverter. Eu
conseguia entender antes, mas não consigo agora, quando estou vivendo as
consequências do que te amar me causou.
Você me abandonou, Benjamin.
Partiu quando mais precisei de você.
E eu não te quero agora. Não quero ter que conviver com você, seu
abraço-casa, a paz que traz ao meu peito e muito menos ao sentimento que
desperta em mim.
Não quero mais você.
Eu te esperei, sabia?
Por torturantes meses, incontáveis dias, horas que não passavam e
minutos agonizantes.
Te esperei quando tudo e todos à minha volta diziam para te esquecer.
Quando meus joelhos não tinham mais forças e foram ao chão.
Quando as dores do dia mais especial da minha vida me fizeram duvidar da
minha força.
Eu te esperei.
Esperei que cumprisse a promessa de que sempre seria meu. De que
sempre seguraria a minha mão.
Esperei que voltasse. Esperei que estivesse lá para ver meu sonho se
realizando.
Mas você não cumpriu a sua promessa.
Quando eu olhei para a arquibancada, seu lugar estava vazio e eu
entendi o recado.
Pelo visto, seu ego sempre foi maior do que o amor que você dizia
sentir por mim. Você não apareceu naquele dia e eu entendi que não
apareceria nunca mais. Eu sempre fui uma idiota quando o assunto era
você.
Mas foi só isso. Eu esperei, mas você não voltou para mim. Não
voltou por mim. Não me apoiou. Não me entendeu. Não quis me ouvir. Não
quis, ao menos, conhecê-la.
Tenho vivido há anos dentro de uma dúvida, sem saber se devo seguir
caminho ou esperar.
E a dúvida me fez esperar.
Mas eu não quero mais.
Estou te libertando de mim porque não quero mais você.
E saber que você nunca me procurou, nunca quis saber de nós, como
estamos ou sequer olhou para ela, me dá a certeza disso.
Você não nos merece.
E eu já estou cansada de te amar em silêncio.
Por isso, peço que, se ler essa carta, não tente mais ser meu.
Porque eu não quero mais ser sua.
Não deveria nem mesmo te escrever isso. Você nem deve se lembrar
de mim. Mas ainda assim, hoje eu precisei escrever. Eu precisei colocar
para fora a dor que você me causou, que ainda causa e que acho que nunca
deixará de causar.
Eu a olho e te vejo.
E mesmo que seja difícil, me amaldiçoo todos os dias por comparar
os olhos dela aos seus. Me sinto péssima todas as vezes que sinto vontade
de chorar quando olho para os olhos dela. É doloroso ver que o sorriso
dela é idêntico ao seu.
E ela foi a única coisa boa que poderia vir de alguém como você.
Então, eu finalmente entendi que não precisamos de você. Não
precisamos de ninguém. E nós duas somos suficientes uma para a outra.
Ela faz cinco anos hoje. E desejou receber um pai de presente quando
assoprou a chama das velas. Estou cansada de dizer que precisa ser uma
boa garota para ganhar algo do bom velhinho, mas a verdade é que ela é.
Elisa é uma garota perfeita, a melhor que alguém como eu poderia merecer.
Ela é luz. É o sol no qual eu orbito em volta.
O meu mundo nasce e morre nos olhos dela. A minha felicidade
reside no brilho que emana dela. Embora uma parte minha sempre vá se
sentir culpada por dar a ela um pai como você.
Queria que ela tivesse pedido o mundo. Isso eu conseguiria dar a ela.
Mas um pai? Jamais poderei dar a ela algo que você nunca poderá
ser.
Você seria um péssimo pai. Para ela e para qualquer pessoa. Porque
você só pensa em si mesmo, Benjamin, e seria ridículo da minha parte
nutrir esperanças de que poderia amar um ser tão puro e delicado como
Elisa.
Minha filha não te merece.
E foi por isso que respondi que alguns pedidos não podem se realizar
e ela perguntou por quê.
Eu disse que você podia voltar um dia, mas que era provável que
você não voltasse nunca mais.
Foi cruel. Eu sei disso.
Lis é forte e segurou as lágrimas por algum tempo, antes de desabar
no choro mais sofrido que já ouvi vindo dela.
Mas ela está crescendo e mais cedo ou mais tarde irá entender como
tudo à nossa volta funciona. Não achei justo deixá-la esperando por
alguém que nunca iria voltar para nós, então lhe contei eu mesma a
verdade.
Elisa não precisa de mais confusão.
E com certeza, não precisa de você.
Nenhuma de nós, aliás.
Na minha caixinha de memórias, você, de todas elas, é a lembrança
que mais dói.
Não sou mais sua,
Donnatella.”
Cada frase. Cada palavra. Todo o sentimento envolto através das
linhas, faz minhas lágrimas escorrerem mais e mais.
É horrível.
Cruel.
Doloroso.
É desolador saber que o destino, o que for que isso seja, trabalhou
tanto para que esses seis anos tenham nos afetado dessa forma.
E quanto mais penso nisso, mais sinto meu coração doer.
Eu escrevi incontáveis cartas.
Comecei a escrever ainda mais quando percebi que não respondia,
justamente para que me notasse. Na minha cabeça, tola e ingênua, achei que
quanto mais cartas mandasse para Donna, em algum momento ela
responderia. Em algum momento, retornaria e diria que estava bem, mas
que não queria saber de mim.
Em quase todas elas, deixei que meu lado egoísta tomasse conta.
Queria apenas que ela retornasse com algo. Qualquer coisa. Apenas para
que eu me sentisse minimamente bem ao saber dela.
Quando saí do presídio, achei que a encontraria. E me frustrei quando
não aconteceu.
No entanto, o que eu poderia esperar?
Por isso, me acomodei perto de Asher e esperei quase um ano até ter
notícias suas.
Eu disse que a procuraria, mas fui tolo ao dar voz ao meu egoísmo e
achar que tudo se resolveria sozinho.
Enquanto isso, ela estava aqui. Registrando todos os momentos da
Lis, mesmo que minúsculos, todos os avanços, todas as primeiras
palavrinhas, os primeiros passos, o primeiro sorriso com dois dentinhos.
E uma carta.
Ela escreveu uma carta quando acreditou que eu não a amava, não a
queria.
E essa é a última coisa que há em sua caixa de memórias. Então, há
um vácuo entre o dia em que escreveu a carta — coincidentemente alguns
dias antes de eu ganhar a liberdade — e o dia em que cheguei a Lake
Thorne.
Ela esperou por mim por todos esses anos.
Mesmo achando que eu a havia abandonado.
Mesmo achando que eu a havia rejeitado.
Ela esperou por mim.
E isso é tão doloroso quanto achar que seguiu em frente.
É doloroso porque ambos deixamos de viver, com suposições
fundadas no desaparecimento um do outro.
E, Deus, todas as linhas, sem exceções, parecem como lâminas
afiadas descendo em minha garganta, dilacerando tudo o que há dentro de
mim.
Me parece cruel demais para um pecado que cometi enquanto
defendia quem amava.
Parece cruel demais que para manter viva a família que convivi
durante toda a vida, precisei perder quase toda a infância da minha filha.
Consegui perder todo o amadurecimento de Donna.
Eu perdi tudo no instante em que apertei aquele gatilho.
Eu perdi tudo na mesma hora em que o fiz e não me arrependi.
Eu perdi tudo quando não lutei mais pela minha liberdade.
Eu perdi tudo quando não as procurei.
Se eu tivesse feito isso, se eu me achasse merecedor da liberdade, eu
teria insistido mais, eu teria tentado provar que foi legítima defesa.
Talvez assim, eu não teria perdido tanto.
Talvez assim, Donna ainda seria minha.
Talvez assim, Lis sempre tivesse encontrado um lar no meu abraço.
E então, em meio a tantos desenhos de família com três pessoas e dois
cachorros, eu encontro a pior parte dessa caixa.
Mais uma carta.
Uma que não foi escrita por Donna, mas por Lis.
É uma caligrafia visivelmente infantil. A caneta que foi usada é roxa e
o papel é diferente do de Donna. É uma folha do seu bloquinho azul do
Garfield.
“Oi.
Eu não sei para quem estou escrevendo, porque não acredito mais em
papai noel e nem em fada do dente, mas eu preciso fazer um pedido.
Traz o meu papai de volta?
Eu prometo fazer de tudo para nunca mais deixar ele escapar.
Ele precisa saber que eu o perdoo por me deixar.
Ele precisa saber que eu preciso dele.
Ele precisa saber que eu sou uma boa garota.
Traz ele de volta e eu prometo não deixá-lo chateado.
Com amor e um pouco triste,
Elisa.”
É quando termino de ler esta carta que desisto de lutar contra as
lágrimas e a dor.
E então, eu grito.
O som gutural que escapa da minha garganta dói até mesmo em meus
ouvidos.
Minha filha.
Minha pequena.
Meu amor.
Minha vida.
Minha pequena bailarina.
Me diga agora, por favor
Que eu vou correndo te abraçar
Te quero tanto, é quase dor
É com você que eu quero estar
Lisboa | Anavitória feat. Lenine

Escuto seus passos apreensivos na escada. Lentos, como se tivesse


medo do que pode encontrar. Não saio do meu lugar no chão, esperando o
momento que a porta se abra e, alguns segundos depois, acontece.
Quando meus olhos encontram os de Donnatella, entendo que
estamos do mesmo jeito.
Ambos miseráveis.
— Amor…
— Eu sinto muito, Ben. — Ela cai de joelhos no chão à minha frente
e eu não hesito antes de puxá-la para sentar sobre minhas pernas e esconder
seu rosto em meu pescoço. — Eu sinto tanto. Não é justo…
— Não, não é. — Beijo o topo da sua cabeça, apertando-a em meus
braços.
— As suas cartas… — chora, puxando minha camiseta entre seus
dedos. — Eu não sabia. Ben, eu juro que se eu soubesse… — Donna não
consegue terminar devido ao seu choro dolorido, que termina de esmagar os
pedacinhos do meu coração. — Eu teria feito algo por você.
— E mesmo não sabendo, você gravou todos os momentos dela… —
digo baixinho, sentindo minhas lágrimas molharem seu cabelo. — Para
mim?
— Sim. — Donnatella não hesita. — Acho que no fundo do meu
coração, algo me dizia que você não tinha nos deixado porque queria…
— Eu jamais faria isso, eu…
— Sei disso. — Ela ergue o rosto, pegando o meu entre as suas mãos.
— Agora eu sei. Você tentou de tudo para estar conosco. Você estava
morrendo, Benjamin, e ainda sim, só pensava em nós. Agora, eu entendo a
dor que eu vejo nos seus olhos quando te pego olhando para Elisa distraída.
Donna usa seus polegares para limpar minhas bochechas quando mais
lágrimas rolam.
— Eu ficava imaginando como ela era quando bebê, tudo o que eu
perdi, mas, amor… — Inclino meu rosto contra o seu. — Donna, você me
deu tudo isso. Você me deu tudo o que eu perdi.
— Eu deveria ter feito mais, lutado mais por você — Donna balança a
cabeça, soluçando. — Se eu soubesse que estava preso, teria ido te visitar
e…
— Não, Donna — a interrompo, sentindo o nó apertar minha
garganta. — Hoje, agora, eu vejo que tudo o que aconteceu, tinha que
acontecer. Dentro daquele presídio, eu não me reconhecia. Eu não era
alguém bom. Não alguém que você merecia conhecer. Esse foi o melhor
para nós.
— Como pode dizer isso, Ben? — pergunta, sem controlar suas
palavras. — Perdemos seis anos da vida um do outro. Todos esses
momentos deveriam ter sido aproveitados juntos, entende?
— Eu sei — concordo, trazendo-a um pouco mais perto e a abraçando
o mais forte que posso. — Sei que parece ruim colocar assim. Mas não
podemos voltar no tempo, Donna. Não podemos mudar as nossas ações.
Pensei nisso um milhão de vezes nas últimas horas e acredite em mim,
ficarmos remoendo isso vai servir apenas para nos sentirmos pior.
— Você tem razão — Donna concorda, tentando controlar o choro. —
E é isso que parece tornar tudo pior.
— Precisamos apenas nos lembrar do que mais importa...
— Elisa — completa, tirando a palavra da minha boca. — Eu soube
que esse era o seu nome quando vi os olhos dela pela primeira vez. Sabia
que se escolhêssemos juntos, essa seria a primeira opção.
— Obrigado. — É a única coisa que consigo dizer, tentando controlar
a minha respiração para não desabar mais uma vez. — Os últimos seis anos
foram dolorosos, mas estamos aqui agora, não é? Estamos juntos e podemos
finalmente realizar os desejos dela.
— Uma família — Donna diz, aconchegando seu rosto em meu
pescoço. — É o que ela sempre quis.
— E é o que daremos a ela.
— PAPAI! — Assusto-me quando ouço seu grito. — ONDE VOCÊ
ESTÁ?
— Coitado do seu irmão. — Donna ri em meu colo, secando o rosto.
— Lis deve tê-lo perturbado o dia inteiro.
— Ele adorou, pode ter certeza — respondo, antes de gritar de volta:
— AQUI EM CIMA, NENÉM!
Não demora nem três segundos até que escutemos seus passos rápidos
subindo as escadas, seguido por uma confusão de vozes de Asher e Kim
pedindo para que ela suba mais devagar. A resposta dela é apenas rir.
Elisa continua correndo até o final do corredor, onde encontra a porta
semiaberta. Minha filha ergue as sobrancelhas, confusa, quando nos
encontra sentados no chão, com os rostos inchados de choro.
— O que estão fazendo aqui? — pergunta, dando pequenos passos
para dentro.
— Encontramos algumas lembranças — Donna responde, e antes que
Lis possa fazer mais perguntas, sua mãe ergue o tronco e a encara
seriamente, fazendo as bochechinhas ficarem avermelhadas. — Elisa,
convenceu seu tio a te dar café?
— Eu avisei para ele que não deveria — choramingo. — Neném…
— Foi só um pouquinho — ela justifica, mas seus olhos focam no que
há em minha mão livre. — E que coisa estranha é essa?
— É você — respondo, erguendo a ultrassonografia.
Lis se aproxima mais, e aproveita o espaço vago para fazer o mesmo
que sua mãe e se sentar em meu colo, fazendo um pouco da agonia se
acalmar quando sinto seu doce cheirinho.
— Essa sou eu? — pergunta, com o nariz enrugado enquanto encara a
imagem com atenção.
— É sim, amor — Donna confirma, admirando a imagem.
— Tem certeza? — pergunta novamente, parecendo incrédula. — Eu
sou mais bonita que isso aqui.
Donna ri.
— Um dia, você foi assim, princesa — explica, beijando sua testa. —
Era a minha sementinha.
— E do papai — Elisa complementa.
Donna e eu nos entreolhamos, ambos compartilhando o pesar que as
palavras de Lis carregam.
— Sim, neném, do papai também — confirmo, acariciando seus
cabelos.
— Tio Asher disse que o papai e eu somos parecidos — ela começa a
tagarelar, alheia ao misto de emoções que nos envolve. — Você também já
foi assim, pai?
Rio.
— Já, amor, o papai também já foi assim. — Sorrio para ela, que
parece menos frustrada em saber disso. — E eu preciso de um abraço bem
apertado agora, você pode me dar um?
Elisa arregala os olhos suavemente.
— Claro que sim! — ela grita, agarrando o meu pescoço
imediatamente. — Meus abraços apertados são seus e da mamãe.
— Então por que estou de fora? — Donna resmunga, fazendo Lis rir.
— Não seja ciumenta, mamãe — provoca, soltando-me para dar
espaço para ela.
Respiro aliviado pela primeira vez desde que Asher me entregou o
meu aparelho antigo e encontrei a caixa com as fotografias e todas as outras
memórias. Seus braços são pequenos, mas é capaz de fazer um reparo
imenso no meu peito.
É sempre ela e seus pequenos gestos que me fazem agradecer todos
os dias por não ter morrido naquele lugar. Que me fazem respirar aliviado.
Que me fazem sorrir.
Quem me faz feliz.
— Agora eu entendi o que a doutora dos sentimentos disse... — ela
fala baixinho, sem soltar sua mãe e eu.
— O que ela disse, filha? — Donna questiona.
— Que eu sou uma lagarta e você e o papai são o meu casulo
quentinho — Elisa confidencia, falando como se fosse um segredo. — E
que, um dia, vou ser uma linda borboleta azul.
Fecho os olhos, inalando seu cheiro.
— Minha linda borboleta azul.
Nessa estrada, não nos cabe
Conhecer ou ver o que virá
O fim dela, ninguém sabe
Bem ao certo onde vai dar
Aquarela | Toquinho

Todo mundo está estranho nos últimos dias.


Não gosto disso.
Também não gosto que estejam escondendo de mim.
E quero saber o que está acontecendo.
Acho que minha mãe brigou com os meus tios novamente.
Papai também está triste, eu vejo nos seus olhos.
Mas ele me disse que precisamos cuidar da mamãe e que, logo, tudo
vai passar.
E a mamãe disse a mesma coisa; que precisamos cuidar do papai e
sempre dizer que o amamos.
Por que os adultos precisam ser tão complicados?
Fico pensativa que nem percebo quando Oddie rouba meu biscoito.
— Oddie! — eu o repreendo. — Era o meu último biscoito.
Ele coloca a língua para fora, balançando o rabo pequeno.
— Se a mamãe souber, vai querer chutar a sua bunda, e você está de
dieta, lembra? Precisa ficar saudável e comer a sua ração.
O peludo late duas vezes. E eu sei o que ele quer dizer, não quer que
eu fale para a mamãe.
— Não seja bobo, não vou contar para ela, mas você precisa parar de
comer besteira. A mamãe já explicou que você pode ficar muito dodói e não
quero que isso aconteça.
Acaricio suas orelhas. Ele não responde nada, mas sei que está me
entendendo.
— Você não acha que está tudo estranho nos últimos dias?
Papai está cozinhando, ou tentando, não tenho certeza. Ele não parece
ser o melhor cozinheiro de todos, mas o cheirinho não está tão ruim.
Mamãe foi fazer uma visita à doutora dos sentimentos, como ela faz
toda semana. Mas é estranho, porque essa semana já é a segunda vez que
vai. Acho que ela está sentindo muitas coisas.
A minha doutora disse que às vezes sentimos muito e às vezes
sentimos nada, e quando acontece precisamos saber equilibrar, como
fazemos quando brincamos de corda bamba. Talvez seja por isso que
mamãe está indo conversar com a sua doutora.
Acho que mamãe está quase caindo da corda.
— Filha, seu tio veio te ver. — Escuto papai me chamar.
Oddie sai correndo na frente e eu vou logo atrás, rindo quando o
pestinha tropeça na própria patinha e acaba dando uma cambalhota ao
chegar perto do meu pai, que se agacha na frente dele, conferindo se está
bem.
— Mia dolcezza!
Tio Alessandro sorri assim que me vê, mas faz cara feia quando
Oddie late para ele.
— O que veio fazer aqui? — pergunto, abraçando seu pescoço e o
encarando de pertinho. — Aquele negócio que a gente tinha combinado?
— É — resmunga, fazendo cara feia para mim antes de se virar na
direção do meu papai e dizer: — Eu vim conversar com você, na verdade.
Viajo após a última apresentação de vocês, mas creio que até lá, com Lis e
os treinos não terão muito tempo para conversar.
Meu pai assente e abre um pouco mais a porta, convidando ele a
entrar.
— Que porra é essa? — meu tio pergunta, fazendo uma careta
estranha que faz meu papai praticamente correr para a cozinha e desligar o
fogão, fazendo a fumaça e o cheiro ruim de coisa queimada surgir. — Que
caralhos está tentando fazer?
— O potinho do palavrão continua no mesmo lugar — digo, torcendo
o nariz para o cheiro ruim. — Nossa, papai, o que era isso?
— Era para ser o molho da lasanha, droga — papai resmunga
baixinho, mas deixo passar, porque ele parece mesmo chateado.
— Não vai mandar ele encher o cofrinho? — meu tio pergunta, mas
eu ignoro.
— Tudo bem, papai, podemos fazer a janta do Garfield amanhã.
Faço um beicinho.
Eu queria tanto comer lasanha.
Pelo cantinho do olho, vejo o tio Alessandro revirar os olhos, antes de
me colocar sentada na bancada da cozinha e puxar as mangas da sua camisa
para cima.
— Saia daí, Dempsey — ele manda, pegando uma panela nova. —
Como você pôde deixar ele cozinhar, vitta mia? Sabia que ninguém queima
molho de lasanha?
— Falar mal do meu papai a partir de agora vai custar duzentos
dólares!
— Por quê? Você deixa o Matteo falar de mim!
— Meu tio Matteo é um santo! — justifico, vendo sua sobrancelha se
erguer. — Está duvidando?
— Duvidar de você, vitta mia? Jamais faria isso.
— Então por que ainda não colocou os cem dólares?
— Trezentos — papai sussurra ao meu lado, me corrigindo.
— Trezentos dólares — repito, lembrando que faz sentido. —
Duzentos por falar mal do meu papai e cem por falar as palavras com P e
M.
Meu pai ergue a palma, orgulhoso e eu sorrio antes de bater nela com
a minha.
— Muito bem, filha.
Tio Alessandro me olha atravessado enquanto abre a carteira e coloca
o dinheiro no potinho. Ele fica quieto enquanto pega os ingredientes para
começar a fazer uma nova lasanha.
Forço uma tosse para chamar a atenção dele.
— Você não tinha uma coisa para falar ao meu papai? — pergunto,
encarando ele com os olhos quase fechados. — Uma coisa muito
importante.
Ele ainda está com um bico no rosto quando se vira em direção a nós.
— Eu queria me desculpar com você. — meu tio diz, dessa vez
parecendo arrependido de verdade. — Eu percebi que fiz a coisa errada
quando os visitei da última vez e notei o quão bem você faz para elas.
Papai sorri.
— Quem poderia prever que um dia o intocável Alessandro Lombardi
estaria pedindo desculpas ao pai da sua sobrinha?
Tio Alessandro resmunga um palavrão.
— Potinho do palavrão… — eu canto.
— Filha, o seu tio e eu precisamos ter uma conversa de adultos, você
pode assistir televisão enquanto isso. — Papai se inclina e beija a minha
cabeça.
Faço um beicinho quando percebo que ele está falando sério como a
mamãe.
Adultos são tão chatos.
Sento no sofá da sala com os braços cruzados e Oddie vem para o
meu colo, enquanto Garfield está passando na TV.
— Eu compreendo que tenha feito o que fez pensando no bem delas,
mas eu juro, Alessandro, nada mais no mundo vai me manter longe da
minha família. — Ouço papai dizer. — Nem a porra de uma cela e nem
você.
— Eu entendi. Entendi isso no dia que percebi o quanto você voltou a
ser o porto seguro de Donna e o colo que a Lis agora procura quando
precisa. — Titio suspira. — Por mais que talvez não acredite, sinto muito
pelo o que fiz.
— Como eu disse a Donna — meu pai também suspira —, aconteceu
como tinha que acontecer.
Não entendo algumas coisas do que eles dizem. Acho que é porque
eles não querem que eu saiba de algo e por isso parecem falar em códigos,
mas não me importo com isso.
Me importo que, agora, todos da minha família estão bem.
Só o Oddie que precisa se cuidar mais um pouquinho, mas isso vai
mudar quando a mamãe souber que ele roubou o meu biscoito. Eu sei que
prometi para ele que não contaria, mas ver o meu tio falar daquele jeito para
o meu pai me fez pensar nisso.
Mentiras pequenas podem causar machucados grandes nas pessoas
que amamos.

— Que cheiro bom! — A voz da minha mamãe invade a casa. — O


que vocês aprontaram?
— O jantar! — comemoro, sorrindo enquanto meu papai termina de
pôr a mesa. — Papai queimou o molho da lasanha.
— Obrigado por não deixar essa informação passar, neném — ele
responde.
Sorrio em sua direção.
— Por nada — respondo, mas volto a falar com a minha mãe: — Tio
Alessandro apareceu e fez a lasanha de novo.
— Alessandro fez lasanha?
— Sim.
— Alessandro que não cozinha?
— Esse mesmo, mamãe.
Minha mãe me encara atravessado, antes de se abaixar para pegar o
peludo que não para de latir. Ela até deixa Oddie lamber o seu rosto!
— Você o chantageou?
Meu pai ri quando percebe minha expressão fechada.
— Ela não fez nada — me defende. — Seu irmão se ofereceu quando
viu que eu tinha queimado o molho.
— E o que ele veio fazer aqui?
— Conversar com o papai — explico. — Tiveram uma conversa de
adultos.
Mamãe e papai trocam um olhar esquisito.
— Está tudo bem? — ela pergunta, parecendo preocupada.
Papai sorri.
— Tudo bem. — Ele balança a cabeça. — Tudo nos lugares certos.
Mamãe sorri também e solta Oddie no chão, abraçando o meu pai em
seguida, que beija o rosto dela.
— Eu amo vocês assim — digo, abrindo os braços o máximo que
posso. — Bem grandão.
— E eu amo vocês assim. — Papai faz o mesmo, com os braços bem
maiores.
— Você é maior que eu, papai, não vale.
— Claro que vale.
— Não vale.
— Vale.
— Eu te amo do tamanho da barriga do Oddie.
— Eu te amo do mesmo jeito que você ama café.
— Eu amo vocês da mesma quantidade de estrelas de todos os céus
do universo.
— E eu amo vocês da mesma quantidade de areia de todas as praias
do mundo.
— Eu amo vocês até a lua — digo, e antes que meu pai fale algo, ergo
o meu dedo. — Ida e volta.
Papai bufa, impressionado.
— Nossa, neném, isso é muito longe.
Eu sorrio satisfeita e me viro para minha mãe.
— O quanto você ama a gente, mamãe?
Ela abre um sorriso largo, se aconchegando entre nós dois, e me
coloca em seu colo com um dos braços enquanto enlaça os dedos com os do
meu pai.
É uma sensação muito gostosa.
A minha mamãe sabe fazer eu me sentir a garotinha mais amada de
toda a galáxia.
— Eu amo vocês o infinito e muito além dele.
O tempo parou como se fosse uma fotografia
Você me fez sentir como se isso fosse durar pra sempre
Olhando nos seus olhos
Eu vejo toda minha vida
Stargazing | Myles Smith

— Vamos, Oddie, não seja molenga, cara, precisamos pegar elas.


— Não vão nos pegar! — grito, correndo pelo quintal. — Vem, Lis!
— Minhas pernas são muito pequenas, mamãe! — ela grita de volta,
rindo mas correndo atrás de mim. — Ele vai me alcançar, mãe!
A risada ofegante da pestinha ecoa pelo nosso quintal.
Benjamin e eu expressamos a mesma satisfação em ouvi-la, porque é
o nosso som favorito no mundo. A felicidade da nossa pequena é a nossa
coisa favorita.
E quando o pai a agarra por trás, jogando-a para cima, o som fica
ainda mais alto, fazendo Oddie latir e pular com a bagunça e eu me
aproximar dos dois, ofegante e suada.
Os olhos de Elisa são duas bolinhas brilhantes de empolgação e
energia.
— Papai te pegou, neném. — Ben a enche de beijos, enquanto ela
tenta escapar dele.
— Tá fazendo cosquinha, pai!
— Nossa, que papai malvado — eu debocho, vendo Elisa se contorcer
de alegria nos braços dele.
Depois de alguns dias de nuvens cinzas, é bom ter um céu azul para
nos lembrar o verdadeiro sentido de tudo isso e o centro da nossa vida como
pais: a felicidade da pestinha.
— Quero subir! — ela grita, de repente, parecendo ligada na tomada.
Elisa escala os ombros de Benjamin, que segura suas pernas
prontamente, permitindo que ela se sente em seus ombros, esticando os
braços e sorrindo para mim.
— Eu estou no topo do mundo, mamãe! — Elisa diz, enquanto se
estica o máximo possível, em pé nos ombros do pai que a segura com
firmeza.
— Tudo bem, princesa — concordo, com as mãos nos joelhos,
ofegante. — Mas agora é hora do banho.
— Parece que a mamãe desistiu de brincar, neném — ele provoca,
colocando Lis de volta ao chão.
Oddie late algumas vezes, tentando subir em mim, mas eu apenas o
acaricio, sem força alguma para carregá-lo depois de correr pelo quintal
como se a minha vida dependesse disso.
— Corri por duas horas em uma esteira hoje de manhã — me
justifico.
— Grande coisa — ele debocha, erguendo uma das sobrancelhas. —
Corri pelo mesmo tempo. E em uma velocidade maior que você.
— Vai se… — O palavrão morre na minha boca quando espremo os
lábios com toda a força, vendo que os dois esperam ansiosos por um deslize
meu. — Banho. Os dois.
— Calma, mamãe — a pestinha diz. — Precisa que o papai te
carregue?
— Elisa Lombardi-Dempsey!
— Eu não disse nada. — Ela ri, disparando a correr para dentro de
casa, sabendo que não conseguirei alcançá-la.
— Tem certeza que não quer ser carregada?
— Vai se foder — xingo, e aponto para ele quando vejo um sorriso
malicioso crescer em seu rosto. — Você tem vinte e quatro anos, está velho
demais para fazer piadinhas de quinta série.
— Eu não falei nada — dramatiza, colocando a mão no peito. —
Mas…
— Benjamin!
Ele ergue as mãos em rendição, antes de praticamente me arrastar
para dentro de casa.
— Podemos conversar? — Ben pergunta, seu dedo passeando
levemente em minha cintura, sem ao menos perceber quando chegamos ao
andar de cima e eu assinto, antes de colocar a cabeça para dentro do
banheiro.
— Lis, estamos no quarto — aviso, vendo-a entrar debaixo do
chuveiro de cabeça. — Não combinamos de lavar o cabelo, filha.
— Desculpe, mamãe, estava coçando — se justifica com um
sorrisinho que sabe que derrete o meu coração. — Não vou demorar. Fico
esperando você voltar quando acabar o banho.
— Está bem, espertinha.
Ouvindo-a começar a cantarolar uma das suas músicas favoritas de
algum dos filmes da Barbie, Ben e eu entramos no nosso quarto e ele deixa
a porta aberta para ficar atento caso Elisa chame.
Uma coisa que percebi é que ele pode estar do outro lado da casa, se a
pestinha disser um “ai”, ele sabe exatamente onde encontrá-la. É
impressionante.
— Loren me mandou uma mensagem essa manhã — anuncia, se
sentando na cama e me trazendo para o meio de suas pernas. — Ela
consertou o problema na encanação da casa ao lado.
Estreito os olhos, tentando entender o que ele quer dizer.
— E você quer voltar para lá? — pergunto, um pouco incomodada
com a possibilidade.
Gosto da dinâmica em que construímos nas últimas semanas. Gosto
de saber que Lis tem mais alguém para cuidar dela. Alguém que cuida dela
exatamente como eu cuido. Alguém que não tenho um pingo de
insegurança ao confiar a pessoa mais preciosa da minha vida, porque ela
também é a pessoa mais preciosa da vida dele.
Mas, acima de tudo, gosto de saber que ele cuida de mim.
— Não — Benjamin diz. — Apenas se for da sua vontade. Você quer
que eu vá?
— Quero que fique — respondo, sem ao menos pensar. — Pelo
tempo que quiser.
— É uma resposta perigosa. — Ele sorri ao dizer. — Posso querer
ficar para sempre.
— Não seria um problema.
Ben aperta minha cintura antes de me beijar em meio ao sorriso.
— Estou entrando — a pestinha anuncia, antes de entrar no quarto
enrolada na toalha e quase tropeçando nela mesma, o cabelo pingando por
todo o caminho que ela anda. — Lavei direitinho, mas não consegui
amarrar a outra toalha.
— Vem se trocar, filha — chamo, indo para o seu closet.

— Estou bonita, papai? — Lis pergunta, girando em seu próprio eixo


e fazendo o cabelo molhado respingar pelos ares. — Estou igual a vocês.
Se me perguntassem, um tempo atrás, o que acharia de sair
combinando dessa forma, como se estivéssemos vestidos com uniforme
escolar, eu acharia a coisa mais brega do mundo.
Agora, no entanto, enquanto encaro os dois com blusa branca e calça
preta — iguais a mim —, eu só consigo pensar que essa é uma das coisas
mais fofas que eu já vi na minha vida.
— Está linda, meu amor — responde, rindo quando os respingos
chegam até ele. — Por que não vem secar o cabelo enquanto sua mãe
termina de se arrumar?
Lis vai em sua direção, tagarelando como sempre enquanto ele tenta
dar um jeito em seu cabelo.
— Você acha que todo mundo já viu o amor, mãe? — pergunta de
repente.
— Você já viu, neném? — questiono de volta, passando o blush em
meu rosto enquanto ela abraça o pescoço do pai, os dois me esperando.
— Eu vi, sim, mamãe, eu vejo o amor todo dia.
— E como ele é?
— É bem bonito.
— Mesmo?
— Sim, não é, papai?
— É verdade, neném.
— O amor tem olhos castanhos, mamãe. Ela me dá beijinhos para
dormir e está se maquiando.
Sorrio quando ela diz isso, sentindo as lágrimas encherem meus
olhos.
— O amor tem bafo quando acorda e gosta de dormir com as minhas
camisetas — Ben continua e eu reviro os olhos, mas então, como não tenho
conseguido aguentar nos últimos dias, me aproximo e beijo a sua boca
rapidamente, fazendo o mesmo na testa de Lis, que nos encara com os olhos
semicerrados.
— Vocês são namorados agora?
— Sim — Benjamin responde antes mesmo que eu possa pensar em
algo.
— Mas eu fui pedida?
— Você não pediu, pai?
— Homens — resmungo, bufando.
— Certo. — Benjamin se levanta, coçando a garganta de forma
dramática antes de se ajoelhar e segurar a minha mão. — Donnatella
Lombardi, você aceita ser a minha namorada?
— A única — Lis corrige. — E para sempre.
— Você aceita ser a minha única namorada para sempre?
Finjo pensar na ideia.
— O que acha, Lis? — pergunto, vendo ela rir quando o pai reclama
do joelho no chão. — Eu respondo agora ou quando voltarmos do parque?
— Acho que pode responder quando voltarmos do parque.
Benjamin resmunga mais uma vez.
— Não seja malvada — o pai a repreende. — Não está vendo o
quanto estou triste?
Elisa suspira, dando dois tapinhas no ombro dele.
— Coitadinho, mamãe, responde que sim logo. Olha como ele parece
triste.
Oddie late, como se concordasse com a pestinha.
— Parece que sou voto vencido. — Forço uma expressão de derrota.
— A resposta é sim.
Ben se ergue, me dando um selinho e me abraçando apertado antes de
carregar Lis e Oddie ao mesmo tempo, fazendo-a rir quando peludo se
contorce para lamber meu nariz.
— Viu, papai? — pergunta para ele, segurando seu pescoço. — Eu
disse que você ia ter uma família.
— E estava certa, neném — ele concorda, beijando a bochecha dela.
— E é a melhor família que eu poderia ter.

— Papai, não vai acreditar no que eu vi. — Lis volta alguns passos,
gritando alto o suficiente para chamar a atenção de algumas pessoas, e não
dá a chance de Benjamin responder antes de voltar a tagarelar eufórica: —
Um Garfield de pelúcia, pai! Pode pegar para mim? Por favor, por favor,
preciso de um Garfield de pelúcia e eu nunca te pedi nada, papai, por favor,
por favorzinho…
— Calma, neném — Ben pede, rindo e soltando minha mão para
carregá-la. — Mostra para o papai onde tem, e eu vou pegar para você.
— Você tem que acertar uma bolinha, pai, mas tudo bem se não
conseguir, a gente pode comprar depois.
— É claro que eu vou conseguir acertar, filha.
— Você nunca levou a sério aquela conversa sobre não mimá-la, não
é? — pergunto, seguindo os dois.
— Desculpa, amor — ele diz, mas não há culpa alguma em seu
sorriso. — Esse é um pedido muito difícil de cumprir.
Ao chegarmos no brinquedo, Ben entrega o bilhete a um senhor gentil
que explica como funciona a dinâmica simples. Não posso evitar de rir com
o entusiasmo de Elisa ao dizer palavras de incentivo para o pai, que se
concentra para acertar o alvo.
— Papai, você é o melhor! — ela diz com um sorrisão. — E os
melhores sempre conseguem qualquer coisa!
Ben ri, com os olhos semifechados, encarando o alvo com
determinação, mas sem tirá-la do seu braço.
Balanço a cabeça em negação, vendo os dois se concentrarem para o
arremesso.
E quando Benjamin acerta o alvo, fazendo o sininho da barraca soar, a
alegria é garantida. Elisa começa a pular descontroladamente e quase
arranca o enorme urso de pelúcia das mãos do funcionário do parque, que
estende para ela.
— Obrigada, obrigada, obrigada, papai! — ela mal consegue abraçar
o pescoço de Ben, já que o brinquedo praticamente ocupa todo o seu
esforço. — Me põe no chão! Vou mostrar meu neném para todo mundo!
Parece um enorme sacrifício para ele fazer o que ela pede e eu rio
quando nossa pequena se afasta alguns passos, saltitando com a sua nova
coisa favorita nos braços.
— Você a faz feliz — constato, enlaçando seu braço e acompanhando
Lis.
— Não faço nada mais do que a minha obrigação.
— Eu sei disso. — Soo convencida e ele pensa o mesmo ao erguer a
sobrancelha em minha direção. — Quis dizer que você nos completa.
— E…? — Ele dá ênfase, querendo que eu continue.
— O que quer ouvir?
— A verdade.
— Nunca deixei de te amar — admito, enquanto caminhamos. —
Acho que no fundo, algo em mim sempre soube que você voltaria.
— Eu amo vocês. Mais do que sou capaz de expressar em palavras ou
com qualquer atitude. Antes de vocês, tudo o que eu sabia sobre o amor
machucava.
— E agora não mais.
— Nunca mais.
Eu não ligo pro que os outros falam
Me arrependo só do que não fiz
Nesses casos de amor, o coração é quem diz
Quando a Gente Ama | Xamã

— Não via a hora desse jantar acabar — reclamo. — É pedir demais


pela minha cama?
Amanhã será o dia da final do campeonato nacional e estou tão
ansiosa para isso que nem mesmo gostaria de ter saído de casa. Mas Asher
queria ficar mais tempo com Lis e praticamente implorou para cuidar dela
quando Ben disse que precisaríamos comparecer a um jantar de negócios
com Dinara e alguns patrocinadores.
— Quem vê assim… — Benjamin provoca, segurando a minha
cintura. — Nem poderia imaginar que estava cheia de sorrisinhos para
aquele imbecil.
Reviro os olhos.
— Aquele imbecil é o nosso novo patrocinador.
— Podia ser porra do presidente — diz entredentes, visivelmente com
raiva. — Quem ele pensa que é para te chamar de linda na minha frente?
Rio em sua direção, virando-me para ficar de frente para ele quando
chegamos perto do nosso carro.
— Não é como se você não tivesse dito isso antes de me bagunçar
inteira.
— Você está muito engraçadinha, hoje — resmunga, segurando a
minha cintura antes de prensar minhas costas contra a lataria do nosso
carro. — Entra no carro.
— E se eu não quiser? — Arqueio uma sobrancelha.
— Me dê um bom motivo — ele refuta parando na minha frente. Bem
próximo.
Decido me divertir um pouco.
— Talvez eu tenha outro compromisso agora, com outra pessoa —
brinco com a gola da sua camisa branca.
— Outra pessoa? — Ele desce o rosto, roçando a barba por fazer na
minha mandíbula e eu inclino a cabeça para o lado, dando total acesso ao
meu pescoço. — E quem seria o sortudo?
— Hummm — ronrono quando seus lábios encontram a minha
pulsação. — Um cara.
Um gemido surpreso escapa da minha boca quando Ben pressiona o
seu quadril contra o meu rudemente, me fazendo ficar entre ele e o carro.
— Entra. No. Carro. Donna. — Sua voz de comando faz todo o meu
corpo se arrepiar.
Deus.
Eu conheço esse tom.
E eu adoro quando ele está no seu modo mandão.
— E se eu não fizer o que está mandando? — Subo minhas mãos
vagarosamente sobre seu peitoral, sentindo o tecido da sua camisa de
botões.
— Não me provoque, Donatella. — Benjamin assente, mordendo
minha pele de leve.
— E quem disse que eu estou te provocando?
Pegando-me de surpresa, Ben agarra firmemente a parte de trás das
minhas coxas, apertando a carne entre seus dedos, os subindo por debaixo
do meu vestido e então, agarrando minha bunda com força.
Antes que eu consiga dizer qualquer coisa, seus lábios estão nos
meus, colidindo com força. Sua língua invade a minha boca com urgência.
Me agarro nele, arranhando sua nuca e Benjamin grunhe, me fazendo
engolir o som enquanto me aperta ainda mais contra o carro.
— Diga que não é minha.
— Não posso — gemo, com um sorriso provocativo. — Sou sua
desde que tinha quinze anos.
— Só minha. — Ele morde meu queixo e então seus olhos encontram
os meus. — Minha mulher.
— Sua — murmuro contra sua boca, sabendo que isso o deixa
maluco. — Só sua. — Mordo seu lábio inferior, vendo seus olhos
acenderem de luxúria.
Ouço o clique da maçaneta do carro ao ser puxada e então, a porta
abre atrás de mim.
— Entra na porra desse carro e tira esse vestido, agora.
Assim que entramos, Benjamin trava todas as portas e ativa o modo
privacidade. Meu vestido voa para a parte da frente um segundo depois e o
olhar dele brilha ao ver meu conjunto de lingerie de renda.
— Gostosa — diz, agarrando minha cintura. — Vem aqui.
Faço que disse, montando-o e sorrio ao sentir a sua dureza sob sua
calça social.
Meus dedos começam a trabalhar com agilidade nos botões da sua
camisa, enquanto Benjamin trata de abrir meu sutiã, jogando-o para os
bancos da frente.
Seu olhar queima enquanto arrasta o olhar por toda a minha pele até
meus seios. Ele toma ambos em suas mãos calejadas e roça os polegares em
meus mamilos eriçados, fazendo-me estremecer e me atrapalhar com os
últimos botões.
— Ben… — Jogo a cabeça para trás, gemendo alto, quando ele
inclina o rosto e toma meu seio em sua boca, chupando-o com força. —
Porra.
Agarro seus ombros, afastando minhas pernas o máximo que consigo
quando sinto uma de suas mãos descer em direção à minha boceta. Arrasto
minhas unhas contra sua pele ao sentir a ponta do seu indicador massagear
o meu clitóris sob a renda da calcinha e tombo minha cabeça para trás,
fechando os olhos e mordendo o lábio inferior enquanto começo a me
esfregar descaradamente contra a sua mão.
— Assim, Donna — ele aprova, empurrando o tecido para o lado,
enquanto sua outra mão não deixa de apalpar meu seio. — Quero você
encharcada para mim.
— Merda, Ben. — Ofego.
— Você gosta disso, linda? — Ele olha para fora do carro, atento. Seu
rosto se vira e então seu olhar carregado está em mim novamente. — Você
gosta de saber que vou te comer nesse estacionamento onde qualquer um
pode passar e ver o que estamos fazendo?
— Sim — admito, sorrindo e ajudo-o a tirar sua camisa enquanto ele
desafivela o cinto. — Agora cale a boca e me beije, amor.
Benjamin solta uma risada nasalada, agarra minhas coxas desnudas e
arqueia o corpo quando minha mão adentra sua boxer, encontrando seu pau
quente e duro. Sua boca se choca com a minha e nada é gentil. Seu beijo
tem gosto de paraíso e pecado. Desarma tudo dentro de mim e luxúria
encharca cada célula do meu corpo.
Bombeando lentamente, sinto a gota de pré-sêmen escorrer em minha
mão, ouvindo seu grunhido, que mais parece um rosnado. Um sorriso
perverso toma conta dos meus lábios e aumento o ritmo enquanto ele solta
uma série de palavrões.
— Aproveitando como queria, amor? — Chupo seu pescoço exposto,
sem parar de mover minha mão em um vaivém, nitidamente torturante para
ele.
A próxima coisa que reverbera pelo interior do carro é um grito,
seguido de um gemido meu, quando Ben acerta um tapa ardido em minha
bunda. Sua língua projeta para fora e se arrasta pela extensão da minha pele,
fazendo-me ver estrelas.
— Me diga você. — Ele volta a avançar contra minha boca, cobrindo
minha mão com a sua, intensificando a punheta. — Puta que pariu,
Donnatella.
Deus, a sua voz.
A forma como ele me toca.
Tudo.
Benjamin me faz conhecer o paraíso.
Me faz sentir como se estivesse no topo do mundo.
— Preciso de você dentro de mim — murmuro, rebolando em seu
colo, ansiando o seu pau. — Agora.
Benjamin sorri.
É um sorriso sujo.
É um sorriso que eu amo.
— Seu desejo é uma ordem, Donna. — Sua voz rouca faz a minha
boceta contrair.
Erguendo-me sobre meus joelhos, ele abaixa sua calça junto com a
cueca e, então, afasta minha calcinha para o lado o máximo que consegue,
beliscando o meu clitóris e espalhando minha lubrificação. Ele leva um
dedo até a minha entrada e começa um movimento de vai e vem que me
deixa maluca, desejando por mais, por ele.
— Tão bom… — gemo baixinho, enquanto seus dedos rodeiam meu
ponto sensível.
— Nem chegamos na melhor parte ainda. — Ele morde meu ombro
ao segurar seu pau com firmeza, me guiando para baixo.
Nós dois gememos alto quando me encaixo nele, levando-o para
dentro centímetro por centímetro.
Seu pau pulsa dentro de mim e minha boceta contrai ao redor dele.
— Puta merda. — Benjamin força o meu quadril contra o seu. —
Perfeita.
Testo um movimento ousado, rebolando, sentindo cada músculo do
meu corpo tensionar. Ben acerta outro tapa na minha bunda, sabendo o
quanto gosto disso. E aumenta as estocadas fazendo com que precise
segurar seus ombros com força enquanto meus seios saltam e ele inclina a
cabeça, tomando um deles em sua boca.
Meu grito preenche o carro quando ele morde o meu mamilo ao
mesmo tempo que sua mão se abaixa novamente em minha nádega,
marcando-a. Meus olhos se fecham e começo a me esfregar nele ao mesmo
tempo que seu membro pulsa dentro de mim.
— Ben — ofego, aumentando meu ritmo. — Mais forte, por favor.
Ele esmaga as laterais das minhas nádegas em seus dedos quando
começo a subir e descer, criando um ritmo gostoso que vai aumentando com
o passar dos minutos. Quando Benjamin passa a me encontrar a cada
estocada, espalmo minha mão no vidro da janela, sentindo-o escorregadio
por conta das nossas respirações ofegantes.
— Porra, tão apertada. Tão perfeita. Tão minha — Ben rosna contra
meu pescoço.
Seu polegar começa a esfregar meu clitóris, me fazendo apertar as
coxas nas dele e grito sem nenhum pudor, jogando a cabeça para trás e abra
mais um pouco as pernas, fazendo com que o ângulo facilite a sua entrada e
deslize mais fundo em minha boceta.
— Ben, não pare… — sussurro. — Por favor, não pare…
— Nunca mais. — Ele beija um dos meus seios e depois o outro, me
ajudando com os movimentos. — Ninguém nunca mais vai conseguir me
deixar longe da sua boceta, Donnatella.
— Eu estou tão perto, amor — começo, sem saber exatamente o que
pensar. — Preciso gozar, amor.
— Eu vou te dar tudo o que precisa. — Ele lambe o vale entre meus
seios, os movimentos do seu polegar sobre o meu clitóris se tornando mais
intensos. — Se segure.
Esticando as mãos para trás, me seguro no encosto do banco da
frente, com os joelhos flexionados e Ben começa a meter mais fundo, me
fazendo revirar os olhos de prazer. Seus grunhidos soam como música nos
meus ouvidos e aos poucos vou me perdendo na minha nuvem de luxúria,
contraindo minhas paredes internas em volta do seu membro.
Sinto-o expandir dentro de mim e então ele começa a pulsar ao
mesmo tempo que os primeiros espasmos me atingem. Um gemido alto
escapa da minha boca, reverberando pelo carro.
— Benjamin! — Sento com força uma última vez, gozando.
Eu o sinto jorrar com força dentro de mim, chamando o meu nome.
— Donna, caralho! — Ele me abraça, estocando, mas aos poucos, vai
diminuindo o ritmo, mesmo que eu possa sentir o quão descompassada
estejam as batidas do seu coração. — Porra.
Tento recuperar o ritmo da minha respiração enfiando o meu nariz em
seu pescoço e sendo abraçada com toda a força.
— Tem certeza que estava em celibato há seis anos? — pergunto,
erguendo a cabeça e sentindo meu corpo completamente relaxado.
— Estar sem transar há seis anos, não significa que parei de ansiar
por você durante todo esse tempo.
— Você é um sem vergonha.
— Você adora — rebate, mordiscando a pele do meu pescoço. —
Agora vamos, ainda não terminei com você.
— Temos que relaxar para amanhã. É a final, lembra?
Ele me mostra um sorriso safado.
— Não se preocupe, amor, cuidarei muito bem do relaxamento da
minha mulher.
Você me traz sorte
É o meu talismã
Talismã | IZA

— Tem alguém querendo falar com você — ele diz, abraçando-me


por trás. — Parece importante.
Sorrio quando ergue o celular à minha frente, mostrando uma Lis
muito animada enquanto segura o Garfield de pelúcia e sorri com o dente
faltando que arrancou há alguns dias.
Pela tela, conseguimos ver que há muitas pessoas ao seu redor.
Elisa está em pé em uma das cadeiras das arquibancadas, enquanto é
segurada por Asher com um braço – porque ele sabe que Ben socaria sua
cara se ele a deixasse cair – e, com o outro, ele segura o celular para ela.
— MAMÃE! — grita, mostrando mais uma vez o quanto seus pulmões
são saudáveis. — ESTOU COM O TIO ASHER!
— E COMIGO TAMBÉM! — Kim grita, aparecendo atrás dela.
— TIO MATTEO E TIO ALESSANDRO FORAM BUSCAR LANCHE
PARA NÓS, MAS JÁ ESTÃO VOLTANDO — explica. — ESTOU VESTIDA
IGUAL A VOCÊ, OLHA! A AMIGA DA TIA KIM FEZ PARA MIM!
Asher afasta a câmera dela, o pouco que pode devido à multidão ao
redor deles e mostra Lis vestida com um collant igual ao meu, mas com
alguns detalhes em preto, assim como o traje do pai, que sorri como um
bobo quando vê.
— ESTÁ LINDA, MEU AMOR! — grito de volta, tão alto quanto
ela, mas fazendo Ben espremer os olhos pelo susto por estar tão próximo a
mim. — NÃO ESQUEÇA DE COLOCAR UM CASACO, OK?
— NÃO ESTOU ENTENDENDO NADA! — Kim cochicha algo no
ouvido dela, apontando para a frente e Lis assente. — VAI TERMINAR A
APRESENTAÇÃO DAQUELE CHATO DO GAVIN, VAMOS DESLIGAR.
MAS A NOSSA FAMÍLIA ESTÁ AQUI TORCENDO POR VOCÊS!
— TCHAU, FILHA! A MAMÃE TE… — Eu não termino de falar,
porque a última coisa que vemos é a imagem do rosto borrado da nossa
filha. — Ama. Ela desligou na minha cara?
Ben morde o lábio inferior para controlar o riso diante da minha
incredulidade.
Ela desligou mesmo na minha cara?
— Parece que sim — ele concorda, apertando-me um pouco mais
contra seus braços. — Mas agora vamos, a penúltima dupla deve estar
acabando e você ouviu a nossa filha.
— Nossa família está torcendo por nós. — Viro-me em seus braços,
beijando seu queixo e o abraçando apertado.

Não prestamos atenção nas notas de ninguém durante a apresentação


de hoje. Achamos que seria melhor para nós não ficarmos tão ansiosos. No
Programa Curto, ficamos em segundo lugar, perdendo apenas para o
imbecil do seu último parceiro.
Há muitas chances de estarmos no pódio hoje. Mas escolhemos não
nos pressionarmos tanto. Sabemos do nosso potencial e do quanto somos
capazes, mas com ou sem pódio, já somos campeões e é isso que importa.
— Pronta? — pergunto, apertando sua mão.
— Com você? — questiona de volta, abrindo o sorriso mais lindo do
mundo. — Sempre.
Me abaixo para tirar os meus protetores das lâminas e os de Donna,
que se apoia em meus ombros enquanto esperamos autorização para
finalmente começarmos.
Deslizamos pela pista até o centro com as mãos unidas e paramos de
frente para o outro antes que Photograph de Ed Sheeran comece a tocar,
fazendo nossas testas se unirem e nossos olhares se encontrarem.
Amar pode machucar, amar pode machucar às vezes
Mas isso é a única coisa que eu sei, quando fica difícil
A partir do momento em que nossos olhares se cruzam, não existe
mais nada além do gelo sob nossos pés e do que viemos mostrar aqui.
Benjamin segura a minha cintura, guiando nossos passos calmamente.
Você sabe, isso pode ficar difícil às vezes
É a única coisa que nos faz sentir vivos
Afasto-me um pouco, apenas para tomar o impulso e ser segurada
pela cintura por Ben, que me ergue graciosamente.
Nós guardamos esse amor em uma fotografia
Fizemos estas memórias para nós mesmos, onde nossos olhos nunca
estão se fechando
Mais uma vez, é como se estivéssemos contando a nossa história
através da coreografia. Como se o tempo, o destino, ou qualquer outro
impedimento estivesse passando por nós sem que percebêssemos.
Nossos corações nunca foram quebrados
E o tempo está congelado para sempre
Benjamin me encaixa em seu quadril, fazendo com que eu abrace sua
cintura com as pernas antes de encostar sua testa contra a minha.
Então, você pode me guardar dentro do bolso do seu jeans rasgado
Me segurando por perto até nossos olhos se encontrem
Em um movimento arriscado, volto para o ar, sentindo o mundo girar
diante de mim antes que meus patins encostem novamente no gelo e sendo
segurada por ele no mesmo instante. Não há hesitação em nossos
movimentos, ou uma falha sequer.
E você jamais estará sozinha, espere por mim para voltar para casa
Amar pode curar
Amar pode consertar a sua alma
Minha mão encontra a sua e executamos juntos um giro rápido que,
com qualquer outro parceiro, eu sentiria medo, mas não é o que sinto ao
patinar com Ben. Com ele, tudo o que consigo sentir, independente de quão
arriscado seja, é a liberdade que sempre senti.
E é a única coisa que eu sei, sei
Eu juro que vai ficar mais fácil
Benjamin me lança no ar pela última vez, segurando meu braço e
perna esquerda ao mesmo tempo antes que eu alcance o chão, fazendo com
que eu sinta o gelo contra a minha pele quando estico o braço, finalizando a
apresentação.
Lembre-se disso com cada pedaço seu
E é a única coisa que levamos quando morremos
Abraço seu pescoço quando a música se encerra e nossos rostos
colidem novamente, fazendo com que nossos narizes se toquem. Abro os
olhos, encontrando os dele já me encarando e sorrindo, fazendo com que
meus lábios se ergam em um sorriso igualmente grande.
— Eu te amo — ele sussurra e, mesmo com os aplausos e murmúrios
ao nosso redor, consigo entendê-lo.
— O infinito e um pouco além dele — completo, antes que beije
minha testa enquanto a plateia nos joga flores e ursinhos de pelúcia.

Quando os jurados divulgam que estão prestes a anunciar os


ganhadores do pódio, Benjamin dispara a correr até a arquibancada, me
deixando com uma ruga entre as sobrancelhas, que dura apenas até vê-lo
voltar com Lis a tiracolo, que carrega a pelúcia do Garfield e mantém um
sorriso imenso no rosto.
— Mamãe, foi lindo!
— Você gostou, meu amor?
— Sim! — concorda, se inclinando no colo do pai para abraçar meu
pescoço. — A tia Kim até chorou.
Sorrio para ela, me mantendo abraçada aos dois e o silêncio toma
conta do ringue quando um dos jurados se levanta, para iniciar o anúncio do
pódio.
— Em terceiro lugar… — começa, fazendo meu coração se acelerar a
cada palavra pronunciada. — Gavin e Beatrice!
Solto o ar em meus pulmões. Não sei se de alívio ou desespero.
— Em segundo lugar… Samuel e Leonor!
— Vocês ganharam em primeiro então, que legal!
— Ainda não sabemos, filha — digo, controlando o choro.
— Em primeiro lugar…
O tempo parece passar mais devagar depois que ele diz isso, porque o
resultado nunca parece vir. Espremo ainda mais a mão que Benjamin
mantém entrelaçada à minha.
É a nossa única chance de ir às Olimpíadas de Inverno.
É a nossa única chance de ganhar.
Precisamos disso.
Pelo nosso passado.
Pelo nosso presente.
Pelo nosso futuro.
Por Lis.
Por Oddie.
Por todos os cachorrinhos que ainda iremos ter.
Pela nossa família.
— Benjamin e Donnatella!
Meus olhos se abrem em instantâneo, estática, me perguntando se
ouvi mesmo o que ouvi.
— Ah meu Deus! — digo ou grito, não sei, é tudo tão eufórico e
confuso. — Ah, meu Deus, somos nós?
— Somos nós, amor! — Benjamin confirma, beijando minha têmpora
enquanto ele e Lis riem da minha reação. — Somos os melhores.
— Vocês são campeões! — Lis grita mais alto que os aplausos
quando recebemos nossas respectivas medalhas. — Vocês conseguiram!
— Nós conseguimos, querida — comemoro, deixando as lágrimas
escorrerem. — Você é a nossa maior força.
— Somos campeões! — ela comemora, mais alto. E mostra a sua
pelúcia de Garfield para o pai, quase enfiando-o no rosto dele. — Eu trouxe
ele para dar sorte, pai! Mas acho que ganhamos porque vocês são os
melhores. Os melhores do mundo!
— Não seríamos campeões se não tivéssemos você — ele diz,
beijando a sua têmpora enquanto nos dividimos para carregá-la. — Somos
campeões porque somos a melhor família. A melhor família do mundo.
— Sabia que foi isso que eu sempre desejei?
— Jura, neném? — pergunto, incapaz de soltá-la.
— Sim, mas isso aqui é muito maior — ela responde, animada.
— Você é o meu melhor presente. — Ben diz, sorrindo com os olhos
cheios de água. — Vocês duas são.
Dou um selinho nele, ainda emocionada demais para ter outro
pensamento senão o quão sortuda sou por ter esses dois.
Lis foi o resultado da colisão mais bonita que já nos aconteceu. E eu
não poderia ser mais grata por ter a oportunidade de ser a mãe de uma
garota tão especial e ter a honra de fazer isso ao lado do amor da minha
vida. O melhor pai que ela poderia ter.
— Papai?
— Sim, filha.
— Você acredita em outras vidas? — pergunta, de repente.
— Não sei, pequena, você acredita?
— Claro. Nós três estamos juntos há muitas delas, papai. É uma sorte
que ninguém tem.

FIM.
Mesmo quando estivermos por um fio, amor
Mesmo quando for para fazer ou morrer
Nós podemos fazer isso, amor, simples e claro
Porque esse amor é uma coisa certa
Sure Things | Miguel

ALGUNS ANOS DEPOIS


— Conseguiu colocar direitinho, amor?
Elisa caminha na minha direção com um beicinho e olhar cheio de
água.
Com treze anos, ela fica cada dia mais parecida com Benjamin. Seja
fisicamente, ou no dramalhão que consegue fazer com as mínimas coisas.
Como um absorvente, por exemplo.
É o segundo mês em que ela menstrua, e o segundo mês em que ela se
torna um amontoado de sentimentos em apenas uma garota e que Benjamin
e eu temos que dar o melhor de nós para não surtarmos junto a ela.
— Sim, mas é desconfortável — murmura baixinho, chateada.
Evito rir da sua expressão exagerada de tristeza, porque isso só
desencadearia mais uma crise choro. Já tivemos três hoje e são apenas dez
da manhã.
— Seu pai foi preparar sua bolsa de água quente. — Eu a acolho
quando senta ao meu lado no sofá, abraçando-a e beijando seus cabelos. —
Vai ajudar a diminuir a cólica.
— Nermal — Lis chama, manhosa e o cachorro levanta a cabeça do
seu lugar no tapete. — Vem.
Eu fui contra a esse nome quando o adotamos.
Em minha opinião, ninguém chama um cachorro de Nermal.
No entanto, fui voto vencido pelos dois maiores fãs de Garfield que
moram comigo e o pobrezinho acabou ficando com esse nome.
O Golden Retriever levanta, preguiçoso, e não tendo a mínima noção
do tamanho que tem, se espreguiça para frente, porém, acaba batendo o
focinho na mesa de centro e nos olha, como se dissesse: vocês não viram
nada.
E como de costume, Jon, assim que vê seu irmão – três vezes maior
que ele – ocupar o espaço vago ao lado de Lis, também se levanta do tapete,
latindo e pedindo ajuda para subir no sofá.
— Ciumento — resmungo, pegando-o e apesar de me olhar sem o
menor bom humor, o Pug se deita sobre minhas pernas.
— Amor, o que está aprontando? — falo um pouco mais alto, para
que Ben ouça de onde está, atrás do balcão da cozinha. — Achei que
estivesse providenciando a bolsa de água.
— Pipoca doce! — Ben grita de volta. — Com chocolate ou
caramelo?
— Chocolate! — respondo de imediato.
— Mas eu queria com caramelo — Elisa choraminga, me encarando.
— Caramelo também! — grito novamente.
— Refrigerante ou limonada?
Olho para Lis que encolhe os ombros, incapaz de decidir.
Reviro os olhos.
— Os dois!
— Brownie ou torta de limão? — Ele aparece no arco da cozinha,
usando meu avental rosa.
— Você está preparando um banquete para um batalhão, Sr.
Dempsey? — Arqueio uma sobrancelha.
— Quero os dois, papai — Elisa pede, manhosa mais uma vez.
— Quero mimar a minha princesa, Sra. Dempsey, me permite? — ele
resmunga antes de voltar para a cozinha.
Sorrio.
É tudo muito novo para nós e um pouco difícil de se adaptar. E acho
que Ben está mais sensível que ela. Vendo como ele está lidando com isso,
só me faz ter mais certeza que Lis não poderia ter um pai melhor.
Eu não tive esse acolhimento de Francesco quando passei por essa
fase da vida, quem estava ao meu lado eram os meus irmãos, minhas
verdadeiras figuras paternas. Mas saber que a minha filha nunca irá passar
pelo sofrimento de não ser amada e cuidada pelo pai… traz acalento ao meu
coração de mãe, e consequentemente para o pai dela também.
— Pai, vai demorar? — a rabugenta pergunta, dois minutos depois
que ele volta para a cozinha.
— Chegando — Ben cantarola, se aproximando com a enorme
bandeja recheada de vários tipos de guloseimas e a bolsa de água quente.
Oddie como sempre, vem seguindo-o.
Ele não é mais o filhote preguiçoso, como quando o adotamos.
Se tornou um labrador grande e bruto, que não sabe medir a força que
tem quando vem nos cumprimentar, ao chegarmos em casa todos os dias.
Eu ajudo Lis a se ajeitar com a bolsa, encontrando uma posição
confortável no sofá e Benjamin senta no tapete do chão, com Oddie.
— O que vamos assistir?
— Diário de Uma Paixão. — Eu dou play no filme.
— Poderia ter me avisado antes — Ben resmunga. — Assim eu teria
providenciado os lencinhos para o neném.
— Veremos quem vai precisar de lencinhos — provoco, conhecendo
bem o marido que tenho.
Durante o filme, Kim me manda uma mensagem, confirmando nosso
jantar de amanhã. É aniversário de Asher e como Ben, desde que saiu da
prisão, tem cumprido sua promessa de não perder mais nenhum minuto da
vida do irmão, oferecemos nossa casa para uma pequena comemoração. Os
amigos do meu cunhado também virão e sei que Lis está animada, porque
adora a Mia[33] e suas criações, além de ter uma queda platônica pelo irmão
da Kim e não perde um jogo dele na NBA, o que deixa Ash um pouco
enciumado.
— Ele já começou a chorar — minha pequena cochicha para mim,
durante a cena em que Noah, o protagonista, começa a construir a casa que
ele e Allie sonharam.
Sorrio sabendo que eu estava certa.
Benjamin até tenta disfarçar as lágrimas, mas quando cutuco o seu
ombro e ele olha para mim, seus olhos vermelhos o entregam.
— Precisa que eu pegue lencinhos para você, amor? — alfineto e ele
me encara de esguelha, como se estivesse tentando ficar irritado, o que faz
Elisa rir.
Pela primeira vez no dia, ela ri de verdade. E embora esse seja um
som que ouvimos todos os dias, sempre soa como uma música para os
nossos ouvidos
Assim como sei que para Ben também é, já que ele esboça um leve
sorriso ao ouvi-la.
Quando o riso cessa, ela permanece nos encarando de um para o
outro, com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos.
— A coisa que mais amo em vocês é como me amam do mesmo jeito
que eu os amo.
— A coisa que mais amo em você é ter o privilégio de ser sua mãe.
— Beijo a sua cabeça.
— A coisa que mais amo em vocês é terem me salvado sem ao menos
saber disso.
Os cachorros se agitam, como se quisessem dizer o mesmo que nós.
Sorrio, sabendo que não importa como as coisas aconteçam, o tempo
sempre determina o que há de melhor para nós.
Lembro-me da teoria do caos, a qual Ben e Lis são fissurados.
Isso não poderia fazer mais sentido para nós.
É incrível saber que em um simples bater de asas de uma borboleta,
tudo mudou.
Nossa família cresceu.
Somos mais unidos que nunca.
E nada, jamais, será forte o suficiente para conseguir abalar nosso
amor.
Disputar ego pra quê?
Que você vença
Hotel Caro | Baco Exu do Blues feat. Luisa Sonza

Eu sempre tive três regras que guiavam a minha vida.


1. Não cobiçar a mulher alheia.
2. Jamais tentar ter outro bebê.
3. Nunca, sob nenhuma hipótese, casar por conveniência.
Eu não estaria tão desesperado se tivesse descumprido apenas um
item dessa lista.
Mas para o meu azar, descumpri as três.
Não só cobicei uma mulher proibida, como estou prestes a subir no
altar com ela por causa de um bebê que foi abandonado.
E essa não é a pior parte.
A pior parte é que, a mulher em questão, se trata de Isabella Matiello.
Minha maior inimiga.
Esse, definitivamente, é um péssimo negócio.
Sangrei todos os dias enquanto escrevia esse livro.
Não teve um dia sequer em que algo de ruim não tenha acontecido ou
que eu não tenha me questionado sobre ser uma escritora.
Eu tive bloqueios intermináveis, dores de cabeças mais insuportáveis
do que eu conseguia demonstrar e a minha vida pessoal virou de ponta
cabeça mais rápido do que achei ser possível.
Era como se todo o caos que estava guardado há tempo, resolvesse
sair de apenas uma vez, obstinado a me fazer desistir.
Mas sabe o que foi mais legal em escrever sobre o amor desses três?
Eles são refúgio.
Chamá-los de casa seria pouco para o tanto que os amo e o tanto que
significaram para mim em um momento em que achei que não iria
conseguir.
Ben, Donna e principalmente Lis, me ensinaram muito. Muito mais
do que imaginei que poderia, há um ano, quando ele era apenas um
secundário que tinha duas falas e todo mundo implorou por livro.
Eu achei que seria difícil.
Achei que ele não iria querer me contar nada, que sequer sentia
remorso por aquela noite.
Mas não.
Ben me contou que aquela noite foi um erro. Mas que, apesar das
consequências, ele faria tudo de novo. E quando o arrependimento ousasse
bater, ele voltaria a si e entenderia que tudo acontece do jeito que tem que
acontecer.
Isso aconteceu comigo enquanto eu escrevia.
Comecei Quando Nos Colidimos depois de doze lançamentos, com
um espaço curtíssimo entre eles que me levaram ao cansaço extremo.
Prometi a mim mesma que, se chegasse a sentir um terço do esgotamento
que senti nos dois últimos lançamentos, desistiria dele e faria o melhor pela
minha saúde mental.
Comecei sem expectativas.
Não criei um roteiro mirabolante e nem tentei forçar eles a fazer algo
para agradar ninguém que não a mim.
E foi o que fiz.
Todas as vezes em que abria o arquivo deles, mesmo em dias de
bloqueio onde não saia uma palavra, eu sentia uma paz inexplicável, algo
que nunca senti em nenhum outro livro.
O mundo estava se acabando do lado de fora, mas enquanto eles
foram meus, tudo se silenciou.
Tudo virou de ponta cabeça, mas, desde que eu colocasse em palavras
o que as vozes na minha cabeça diziam, tudo ficaria bem ao fim do dia.
Foi quando tive certeza.
É isso. Escrever me deixa feliz. Escrever me torna humana.
Mas, mais que isso, escrever me cura.
Escrever a Donna, em algum momento, pareceu ser sobre mim. Não
era para ser. Nenhum personagem desse livro deveria ter nada meu. Eles
eram para ser perfeitos.
Em alguns, escrevia as palavras sem pensar, quando menos percebia
havia algo ali que eu nem mesmo percebi.
Escrevi como se isso fosse a minha vida.
E é.
Escrever é a minha vida. Já não sei mais quem sou sem um bloco de
papel, meu computador e as ideias mirabolantes que a minha mente me dá.
Durante toda a minha vida, eu sempre soube que as expectativas de
todos estavam sobre mim, apesar de eu fracassar em tudo o que me
propunha a fazer.
Não aprendi a cantar ou dançar.
Eu choro toda vez que tentam me obrigar a subir numa escada rolante.
Moro em uma ilha e sequer me dignei a aprender a nadar – e sim, isso
é vergonhoso, eu sei.
Nunca soube lavar toalhas, principalmente as brancas.
Me afundei em um luto por onze anos, enquanto todos ao meu redor
seguiram a vida e eu apenas estagnei no tempo. Quando achei que havia
superado, embarquei em outro, que me consome até hoje.
Não aprendi a fazer nada do que minha avó ou minha mãe tentaram
me ensinar.
Parei de escrever e desenhar quando meu avô morreu.
Nunca soube o porquê não conseguia encontrar uma profissão que me
encaixasse.
E então, sobrava a escola.
De alguma forma, ao perceber que fracassei em tudo, minha família
percebeu que talvez eu tivesse um futuro promissor por causa das minhas
notas. Eles achavam que eu seria a primeira a ir à faculdade. Eles
esperaram. E esperaram. E continuam esperando.
Não quis ir à faculdade. E o motivo é o mais bobo possível. Como
todos os meus outros medos.
Alguns deles, consegui superar enquanto escrevia esse livro. Outros,
ainda há uma longa jornada pela frente.
Meu avô me chamava de olhos de cobra. Ele dizia que meus sonhos
eram grandes demais para caber em um lugar como esse.
Eu prometi que iria para longe. Para um lugar seguro, onde meus
sonhos pudessem ser livres.
E estou conseguindo graças a Deus, a ele e suas histórias e planos, às
pessoas que apoiam meus sonhos e a mim.
Estou conseguindo.
E perceber isso enquanto escrevia esse livro foi mágico.
Foi a colisão mais bonita que já me aconteceu.
Escrever esse livro foi uma delícia. Apesar de todos os percalços no
caminho, de todas as coisas que eu mesma tentei colocar para não finalizá-
lo, ele é real. Está completo e eu não poderia estar mais feliz e realizada.
Por isso, ninguém poderia estar em primeiro lugar nesses
agradecimentos que o meu Deus, aquele que me deu forças a cada segundo
e segurou a minha mão quando me questionei se esse era mesmo o caminho
ao qual eu deveria seguir. Por ter ouvido os meus choros e lamentos a noite
quando durante o dia, eu abria o meu melhor sorriso.
À minha mãe, que independente do caos que eu sou, entende meu
trabalho, embora não o entenda. Obrigada por ser quem é, e por não desistir
de quem sou. Obrigada pelas orações, e por todas as vezes que entra no meu
quarto no meio da noite achando que estou dormindo para conferir se estou
bem.
Ao meu pai, que foi a única pessoa que se sentou ao meu lado, ouviu
o meu medo e me acolheu da forma mais esquisita possível. Ele foi a última
pessoa que pensei que pudesse me ajudar em uma fase como essa, mas que
surpreendentemente me entendeu como ninguém, e não precisou me dar um
abraço ou dizer coisas bonitas para me fazer sentir acolhida.
À Annie Belmont, por incentivar todas as maluquices da minha cabeça
e nunca julgar a forma com que faço isso. Obrigada por entender meus
surtos, por ser minha metade e nunca, nunca mesmo, me deixar sozinha,
nem mesmo quando eu quero. Sou grata demais por poder não apenas
contar com você para tudo, mas também por saber que não importa o
quanto as coisas estão turbulentas, sempre terei alguém para me entender e
apoiar.
À Pigmalateia, por doar seu tempo e esforço mais uma vez. Nunca
terei palavras suficientes para agradecer tudo o que fez e faz pelos meus
livros. Sou grata por todo o seu apoio e me sinto honrada em poder contar
com você desde o meu primeiro lançamento. Obrigada por toda a ajuda que
me deu aqui, desde a primeira palavra – literalmente – até a construção do
enredo. QNC não nasceria se não fosse por sua ajuda e dedicação.
À minha assessora incrível, Camille Gomes, que esteve comigo em
cada processo dessa obra, mesmo quando precisava me cobrar por uma
resposta que eu não dava há dias. Obrigada por entender meu processo
maluco, por não julgar minhas escolhas (que muitas vezes são mais loucas
que o meu processo) e por me ajudar a pensar em cada detalhe para esse
lançamento acontecer.
À minha equipe, que foi essencial em cada processo dessa criação;
Ana Laura Maniá e Duda Domínio, que cuidaram perfeitamente bem do
meu grupo de leitores durante o meu sumiço, à Julia Rayssa que foi perfeita
demais ao me ajudar em toda a divulgação deles e Ariadne Pinheiro, que foi
a responsável por toda a identidade visual deles que foi mais que perfeita.
Obrigada por todo apoio e paciência, meninas, vocês são incríveis.
À Isamara Gomes, que cuidou deles com todo o cuidado do mundo e
me ajudou quando eu estava a um passo do surto em alta madrugada.
Obrigada por ter embarcado nessa loucura comigo, amiga, eu nunca irei me
esquecer disso.
À Karen Valentino, minha revisora perfeita, que também aceitou
embarcar nessa loucura que é o meu processo, sem saber o quão caótico
seria. Obrigada, amiga.
Ao meu time de betas maravilhoso:
Ana Laura Maniá, que está sempre me ajudando nos cálculos e em
todos os pequenos furos que nem mesmo eu consigo identificar (ela
reivindicou o Matteo um pouco cedo demais, por isso o Brandon ficou
triste).
À Camila Carneiro, que é sempre a primeira a betar quando mando
mensagem de madrugada avisando sobre novos capítulos e surta como se
estivesse ganhando o hexa (você é uma máquina, mulher).
À Julia Barcelos, que implorou para que eu soltasse o nosso querido
da minha cabeça e esperou pacientemente por ele quando eu disse que ainda
havia outros em sua frente (nosso momento de brilhar chegou, amiga).
À Mare Soares, que me ajudou com maestria em cada linha dessa
obra, é minha parceira no Redbull de melancia e não se cansa de mim nem
quando dou vácuos intermináveis (eu te amo, amiga, eu juro).
À Nayane Oliveira, que, mais uma vez, me ajudou demais quando eu
achei que estava exausta demais para prosseguir e não me deixou abalar em
momento algum. Obrigada por me acalmar em meus bloqueios e por
sempre apoiar minhas decisões.
À Tan Wenjun, que suporta todas as coisas aleatórias que escrevo
enquanto estou com sono e faz questão de me ajudar em cada palavrinha
escrita. Amiga, saiba que você se tornou essencial no meu time e que sou
grata demais por ter você aqui desde a minha primeira história.
À Tatiane Brandão, que foi uma das (se não A) principais
responsáveis para que nosso bandidinho tivesse um livro, há um ano (se não
fosse por ela, provavelmente, o Ben entraria naquela listinha de secundários
que não contariam sua história).
À Yasmin Vitória, por todos os surtos que são capazes de alegrar meu
dia como ninguém. Obrigada por isso e por dar o seu melhor sempre.
Vocês não têm noção do quanto a ajuda e o apoio de vocês foi
importante para mim. Por isso, obrigada. Obrigada por se preocuparem
comigo, por cobrarem capítulos e por me ajudarem a torná-los melhores.
Vocês são incríveis. Ben, Donna e Elisa seriam completamente diferentes se
não fosse pelo apoio – e puxões de orelha – de vocês.
Não poderia deixar de fora o meu time perfeito de parceiras que,
apesar de quererem a minha cabeça a cada cinco minutos, estão dando tudo
de si para divulgar QNC e transformar esse livro em um sucesso. Meninas,
obrigada pela dedicação, vocês são incríveis demais e esse lançamento não
seria o mesmo sem vocês.
E por último e não menos importante, a você, leitor. Seja novo ou
antigo; obrigada. Obrigada por se interessar pelas minhas palavras e por
apoiar meu trabalho. PS.: seria pedir demais se você avaliasse o e-book?
Por favorzinho, não vai demorar nada, eu juro.
Em caso de duvidas, ou surtos, você pode me encontrar no instagram,
como @autorajupiter.
Com amor,
Júpiter.
NOTAS DA AUTORA
AVISOS DE GATILHO
PLAYLIST
00 | A CARTA NUNCA ENVIADA
01 | VINTE E SETE DE MARÇO
02 | VERDDES DIFÍCEIS DE ENGOLIR
03 | PRESO EM MINHA MENTE
04 | QUANDO RENASCI
05 | É MUITO DIFÍCIL SER TRABALHADORA
06 | SAIA DA MINHA CABEÇA
07 | FANTASMAS ME ASSOMBRANDO
08 | ASAS DE BORBOLETA
09 | RESPOSTAS E SURPRESAS
10 | A BAILARINA PAROU DE DANÇAR
11 | COMO TUDO DEVERIA TER SIDO
12 | O QUE SEPARA OS HOMENS DOS MENINOS
13 | PERDIDO
14 | SEM TETO E COM UM CACHORRO
15 | O MESMO NEURÔNIO
16 | MINHA DOR SE CHAMA TEMPO
17 | EU SEMPRE PERTENCEREI A ELA
18 | O PREÇO DO TEMPO
19 | ELE PODE MORRER DE FRIO
20 | EU ESTOU AQUI
21 | TE RECONHECENDO
22 | AGORA EU SOU O PAPAI
23 | SÓ ELE PODE ME CHAMAR ASSIM
24 | DE VOLTA PARA CASA
25 | ODEIO MATEMÁTICA
26 | TE RECONHECENDO NOVAMENTE
27 | QUER QUE EU IMPLORE?
28 | FOGO E GASOLINA
29 | MATEUS 26:46
30 | CAIXA DE MEMÓRIAS - PARTE I
31 | A BORBOLETA AZUL
32 | CAIXA DE MEMÓRIAS - PARTE II
33 | O MELHOR PARA NÓS
34 | O QUE PEQUENAS MENTIRAS CAUSAM
35 | FIQUE PARA SEMPRE
36 | DIGA QUE NÃO É MINHA
37 | UMA SORTE QUE NINGUÉM TEM
EPÍLOGO
BÔNUS | UM PÉSSIMO NEGÓCIO
NOTAS FINAIS
AGRADECIMENTOS

[1]
Time de basquete fictício que pertence a autora e é recorrente na Trilogia Estilhaços
(também da autora).
[2]
Colégio fictício que pertence ao universo da autora.
[3]
Um gato preguiçoso, guloso (e tem preferência por lasanha), viciado em café, amante
de televisão e acima de tudo, sarcástico. Foi criado em 1978 por Jim Davis.
[4]
Colégio interno fictício citado na Trilogia Anti-Heróis. Em resumo, é um colégio
interno onde adolescentes rebeldes, filhos da elite são enviados — geralmente, para serem punidos
sem que a mídia saiba. É localizado em Nova Iorque.
[5]
“Minha vida” em italiano.
[6]
Cidade ficticia criada pela autora para melhor ambientação da história. Fica entre Nova
Iorque e New Haven.
[7]
Oi, Pequena, em italiano.
[8]
Parece que você é a luz da minha vida, Elisa. Em italiano.
[9]
American Sign Language é a Língua de sinais americana.
[10]
Trecho da música “If The World Was Ending” de JP Saxe e Julia Michaels.
[11]
Um bairro situado no sul de Boston, Massachusetts, EUA.
[12]
A bailarina continuará dançando nos corações de vocês, em francês.
[13]
Psicanalista húngaro que contribuiu para a teoria dos traumas.
[14]
Por favor, em italiano.
[15]
Psicóloga.
[16]
Ela se refere às sardas da mãe.
[17]
Protagonista do livro Intoxicado da autora Annie Belmont
[18]
Protagonista do livro Intoxicado da autora Annie Belmont
[19]
Entendeu. Em italiano.
[20]
Porra. Em italiano.
[21]
Ator, dançarino, produtor e modelo norte-americano que atuou em grandes filmes como
Ela Dança, Eu Danço e Ela é o Cara.
[22]
Como está? Fiquei tão preocupado com você. Em italiano.
[23]
Se sente melhor? Quer alguma coisa? Podemos fazer o que quiser, hum? Em italiano.
[24]
Estou melhor, meu papai cuidou muito bem de mim. Em italiano.
[25]
Apenas o meu papai pode me chamar desse jeito. Em italiano
[26]
Ele chegou agora. Em italiano.
[27]
Você quis me bater quando te chamei de bebê.
[28]
Ela pediu desculpas.
[29]
Princesa. Em italiano.
[30]
Em tradução livre; Programa Curto. Se caracteriza por avaliar apenas a precisão e
execução dos elementos aleatórios. Para melhor desenvolvimento da história, também acrescentei
que avalia a sincronia da dupla. Vale lembrar, mais uma vez, que fiz algumas adaptações nas cenas
que envolvem a patinação pelo mesmo motivo que acabei de citar.
[31]
Um grupo de serpentes grandes, não venenosas, que matam suas presas por constrição.
Elas se enrolam ao redor do corpo da vítima de modo a impedir o fluxo sanguíneo, causando parada
cardíaca.
[32]
Contabilizando, essa data seria dia vinte e seis de março, um dia antes do aniversário de
dois anos da Lis.
[33]
Uma das melhores amigas da Kimberly e protagonista do livro “Brincando Com o
Acaso”, disponível na Amazon e no Kindle Unlimited.

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