Um Hobbit, Um Guarda-Roupa e Uma - Joseph Loconte
Um Hobbit, Um Guarda-Roupa e Uma - Joseph Loconte
Um Hobbit, Um Guarda-Roupa e Uma - Joseph Loconte
1ª edição 2020
ISBN: 978-65-990583-4-9
Impresso no Brasil
“Os mais corajosos certamente são os que enxergam com maior clareza o
que está adiante, tanto glória como perigo, e, ainda assim, vão direto ao
encontro de ambos.”
— Tucídides, História da Guerra do Peloponeso
Para minha mãe e meu pai,
que me ensinaram a ter coragem;
para meus avós, que enfrentaram a Grande Guerra,
e para os filhos de Ventotene
Sumário
Introdução
capítulo 1
O Funeral do Grande Mito
capítulo 2
A Última Batalha
capítulo 3
Numa Toca no Chão Vivia um Hobbit
capítulo 4
O Leão, a Feiticeira e a Guerra
capítulo 5
A Terra da Sombra
capítulo 6
Aquela Fortaleza Medonha
Conclusão
O Retorno do Rei
Agradecimentos
Uma Lembrança
Sobre o Autor
Notas
Índice Remissivo
INTRODUÇÃO
NO ABISMO
O espírito do Natal de dezembro de 1914 foi logo sugado
para o abismo de morte e desolação. Muito do vigor, da
confiança e da decência do Ocidente parece ter desaparecido
junto dele. Como nenhuma guerra antes dela, explica o
historiador John Keegan, a Primeira Guerra Mundial “causou
danos na civilização, a civilização racional e liberal do
Iluminismo europeu, que a piorou permanentemente, trazendo
também, por meio do dano causado, pioras semelhantes à
civilização mundial”.5 Paul Johnson descreveu o conflito como
a “tragédia fundamental da civilização do mundo moderno,
principal razão por que o século XX transformou-se em uma
época de tamanho desastre para a humanidade”.6 Winston
Churchill, que lutou na guerra, também refletiu, com
perspectivas sombrias, sobre suas consequências: “Danos
foram causados na estrutura da sociedade humana, danos que
um só século não será capaz apagar, danos que podem se
mostrar fatais à civilização atual”.7
O ano de 2014 marcou o centenário do início daquela
tragédia: a guerra que tornaria o mundo um lugar seguro para
a democracia, a guerra que acabaria com todas as guerras, a
guerra que inauguraria o reino dos céus. Ao invés disso, no
entanto, a Grande Guerra acabou com um continente e
destruiu a esperança e a vida de uma geração. Antes que
chegasse ao fim, quase todas as famílias da Europa choravam
a perda de um membro, ou consolavam outras famílias em
luto, ou cuidavam de um soldado ferido lutando para voltar à
vida civil. Era, nas palavras do autor Aldous Huxley, “um tipo
macabro de universo”.8
O sustento de centenas de milhões de pessoas, incluindo
membros de minha própria família, foi interrompido ou
arruinado pelo conflito. Meu avô paterno, Michele Loconte,
emigrante de uma pequena vila perto de Bari, no sul da Itália,
morava nos Estados Unidos quando as hostilidades
começaram. Recrutado para o Exército dos Estados Unidos, foi
enviado à França em 1918, ano em que as tropas americanas
começaram a chegar na Frente Ocidental. Ele sobreviveu à
guerra, mas raramente falava a respeito. Meu avô materno,
Giuseppe Aiello, deixou a ilha de Ventotene, onde nasceu, perto
da costa de Nápoles, uma região no sul da Itália
economicamente dizimada durante os anos de guerra. Chegou
em Nova Iorque em 1921, pouco antes de Mussolini e os
fascistas chegarem ao poder em Roma. Meus avôs estavam
determinados a recomeçar a vida nos Estados Unidos.
Os especialistas continuam debatendo as causas e os
resultados da guerra. No livro Forgotten Victory, Gary Sheffield
admite a terrível natureza do conflito, mas insiste que “não foi
nem fútil, nem sem sentido”.9 Uma Alemanha beligerante, ele
escreve, tinha planos de conquista e dominação tais que as
democracias da Europa simplesmente não podiam ignorar. No
entanto, nas memoráveis palavras de Barbara Tuchman, “os
canhões de agosto” apontavam para o início de um pacto
suicida europeu: milhões de jovens perecendo nas trincheiras e
sob arame farpado, a carnificina mecanizada de um conflito
que ninguém imaginava e que ninguém sabia como parar.
Como nenhuma outra força na História, a Primeira Guerra
Mundial alterou permanentemente o panorama político e
cultural da Europa, dos EUA e do Ocidente. No julgamento de
outro historiador, a guerra tornou-se “o eixo sobre o qual o
mundo moderno girava”.10 O crítico literário Roger Sale
chamou o conflito de “o principal evento responsável por
moldar a ideia moderna de que o heroísmo está morto”.11 Para
uma geração de homens e mulheres, tal conflito trouxe o fim da
inocência — e o fim da fé.
CONTRA A CORRENTEZA
Contudo, para dois autores e amigos extraordinários, J. R.
R. Tolkien e C. S. Lewis, a Grande Guerra serviu para
aprofundar ainda mais sua busca espiritual. Os dois serviram
como soldados na Frente Ocidental, sobreviveram à guerra de
trincheiras e usaram a experiência nesse conflito para moldar
sua própria imaginação cristã. Tolkien escreveu O Hobbit e,
depois, O Senhor dos Anéis, o segundo romance mais vendido
já escrito e obra que está entre as mais influentes do século
XX. Lewis, por sua vez, ganhou fama com As Crônicas de
Nárnia, uma série de sete livros infantis muito populares e que
figuram entre os clássicos da literatura. Pode-se dizer que
esses contos épicos — que contêm os pesares e os triunfos da
guerra — nunca teriam sido escritos se esses autores não
tivessem sido convocados ao combate na vida real.
A Primeira Guerra Mundial trouxe um enorme fardo de
perdas para aquela geração. “As batalhas são vencidas com
massacres e manobras”, observou Churchill certa vez. “Quanto
melhor o general, melhores são as manobras e estratégias
criadas, o que diminui o número de perdas humanas”.12 Os
generais dessa guerra, no entanto, sofreram muitas perdas. Até
a chegada do Armistício, mais de nove milhões de soldados
estavam mortos e cerca de 37 milhões feridos. Em média, mais
de seis mil homens eram mortos por dia durante o conflito, que
durou 1.566 dias. Na Grã-Bretanha, quase seis milhões de
homens — um quarto de sua população masculina adulta —
passaram pelas fileiras do exército. Cerca de um em cada oito
deles morreu na guerra.13
Tolkien e Lewis poderiam facilmente estar entre eles. Como
segundo-tenente da Força Expedicionária Britânica, Tolkien
passou muitos dias e noites na Frente Ocidental,
frequentemente debaixo de fogo dos ataques inimigos. Ele lutou
na Batalha do Somme, uma das batalhas consideradas mais
sangrentas da história das guerras. “É preciso, de fato, passar
pessoalmente pelos horrores da guerra para sentir
verdadeiramente toda a sua opressão”, escreveu Tolkien
décadas depois. “Mas, com o passar dos anos, parece que,
frequentemente, nos esquecemos de que ter sido convocado em
1914 não foi menos terrível do que estar envolvido em 1939 e
nos anos seguintes. Em 1918, ao final do conflito, todos, exceto
um de meus amigos mais próximos, estavam mortos”.14
Também servindo como segundo-tenente da Força
Expedicionária Britânica, Lewis foi imediatamente enviado para
o front de batalha. A experiência de seis meses na guerra de
trincheiras, um caos de sofrimento e morte, permaneceu com
ele pelo resto de sua vida. Como ele mesmo refletiu certa vez,
de maneira nada romântica: “As minhas lembranças da última
guerra assombraram os meus sonhos durante anos. O serviço
militar, para ser bem claro, é uma ameaça constante de todo
tipo de mal”.15 Lewis descreveu o sentimento de tristeza como
“o bombardeio incessante nas trincheiras da Primeira Guerra
Mundial, sem qualquer interrupção, por um minuto sequer”.16
Assim como Tolkien, ele perdeu a maior parte de seus amigos
mais próximos naquele conflito.
Após a guerra, os dois retornaram à Universidade de Oxford,
onde começaram a trabalhar como professores de literatura
inglesa. Eles se conheceram pela primeira vez em 1926 e
estabeleceram um vínculo de amizade que transformaria suas
vidas e carreiras. Tolkien teria um papel fundamental na
conversão de Lewis ao cristianismo, enquanto Lewis seria uma
voz decisiva para persuadir Tolkien a concluir O Hobbit e O
Senhor dos Anéis. Dada a influência imensa e duradoura de
suas obras, é muito difícil imaginar uma amizade mais
significante no século XX — amizade que surgiu da dor e do
sofrimento de uma guerra mundial.
Esses autores cristãos estavam nadando contra a correnteza
do seu tempo. Durante os anos do pós-guerra, muitos
veteranos produziram romances e poemas com um forte
discurso anti-guerra. Muitos outros se tornaram moralmente
céticos. No entanto, Tolkien e Lewis — profundamente cientes
da “beleza e mortalidade do mundo” — insistiram que a guerra
poderia inspirar sacrifícios nobres para propósitos humanos.17
Enquanto toda uma geração de jovens autores rejeitava a fé no
Deus da Bíblia, eles produziram histórias impregnadas com
temas como culpa e graça, tristeza e consolo.
O jornalista Walter Lipmann, ao refletir sobre as
consequências espirituais da Primeira Guerra Mundial,
lamentou o fato de que “ilusões vulgares” tenham tomado o
lugar da crença religiosa tradicional. “O que mais distingue a
geração que alcançou a maturidade desde o desastre do
idealismo no final da guerra, não é a sua rebelião contra a
religião e o código moral de seus pais”, escreveu ele, “mas sim a
sua desilusão com a sua própria rebelião”.18 Parte da grande
realização de Tolkien e Lewis foi reapresentar à imaginação
popular uma visão cristã de esperança em um mundo
torturado pela dúvida e pela desilusão.
DE VOLTA À REALIDADE
Ambos os autores, é claro, foram acusados de escapismo.
Sua escolha de gênero literário — o mito romântico — foi
considerado por algumas pessoas como “essencialmente, uma
tentativa de fugir da feiura e do impasse moral do mundo
moderno”.19 Contudo, nem Tolkien nem Lewis escolheram
escrever suas obras por influência de fantasias que exaltassem
o escapismo, ou que glorificassem a guerra. Tolkien foi atraído
a contos como Beowulf, com sua visão sombria da luta entre o
bem e o mal. “A sua luta característica entre homem e monstro
deve terminar, em última instância, na derrota do homem”,
escreveu Patricia Meyer Spacks. “No entanto, o homem
continua lutando; suas armas são as armas dos hobbits: a
simples vontade e coragem”.20 Por isso, em O Senhor dos
Anéis, encontramos grande sobriedade sobre as perspectivas
da vitória final nesta vida, como vemos nas palavras de
Galadriel: “Por todas as eras do mundo, lutamos contra a longa
derrota”.
Quando pediram que citasse os livros que mais contribuíram
para moldar a sua vida profissional, Lewis incluiu A Eneida, de
Virgílio, a história mítica e violenta do início de Roma. Esse não
é um conto de fadas para crianças. A submissão de Eneias ao
desejo de cumprir o seu dever e a sua disposição para aceitar o
seu difícil chamado o transformam em uma figura heroica.
Porém, como Lewis observou certa vez, as dificuldades que ele
precisa enfrentar transformam a obra em um “grande épico,
difícil e amargo”.21 Apesar de ter sido escrito para crianças, o
mesmo pode ser dito de As Crônicas de Nárnia, de Lewis. Há
um triunfo final da luz sobre as trevas na história, mas não
sem derramamento de sangue, perdas terríveis e medo da
morte. “Siga o meu conselho”, diz o Sr. Castor. “Sempre que
você encontrar algo que será humano, mas ainda não é, ou que
já foi humano, mas não mais é, ou, ainda, que deveria ser
humano mas não é, fique de olho nele e tome cuidado”.22
Tolkien e Lewis foram atraídos pelos gêneros de mito e
romance, não porque desejavam escapar do mundo, mas
porque, para eles, o mundo real possuía uma característica
mítica e heroica. O mundo é o cenário de grandes conflitos e
grandes buscas: ele cria cenas de violência, dor e sofrimento
implacáveis, bem como de profunda compaixão, coragem e
sacrifício altruísta. Em um tempo em que o cinismo e a ironia
eram exaltados, Tolkien e Lewis tentaram recuperar uma
tradição mais antiga do herói épico. Suas descrições das lutas
na Terra Média e em Nárnia não representam uma fuga da
realidade, mas sim um retorno a uma visão mais realista do
mundo como ele é de fato.
Na verdade, foi a experiência da guerra que ofereceu grande
parte da matéria-prima para os personagens e temas de suas
obras de fantasia. Em um sermão chamado “Aprendizado em
Tempo de Guerra”, Lewis explicou como a guerra expõe a
loucura que é depositarmos a nossa felicidade em esquemas
utópicos para a transformação da sociedade. “Se pensarmos
que estamos construindo um paraíso na terra, se buscarmos
por algo capaz de transformar esse lugar de peregrinação em
um lar permanente para a satisfação da alma humana, então
ficaremos completamente decepcionados — e rápido nos
decepcionaremos”.23 Como veremos, ao contrário da desilusão
que oprimiu grande parte de sua geração, Lewis usaria a sua
experiência na guerra — todo o seu horror, assim como toda a
sua nobreza — como um guia para a clareza moral.
O mesmo se deu com Tolkien, que saiu da guerra com um
profundo respeito pelo soldado comum. Por ser oficial do
Exército Britânico, ele não podia fazer amizade com muitos
soldados de seu batalhão, nem com os “batmen”, soldados
encarregados de cuidar dos equipamentos de um oficial e
atender às suas necessidades diárias. A guerra, no entanto,
acaba por suavizar as hierarquias militares. Ao lutar ao lado
desses soldados, Tolkien testemunhou inúmeras vezes a
impressionante determinação deles enquanto sofriam ataques.
Na verdade, como ele mesmo reconheceu mais tarde, uma das
grandes figuras heroicas de O Senhor dos Anéis foi baseada em
sua experiência mais imediata com os homens nas trincheiras
da Grande Guerra: “O meu ‘Sam Gamgi’ é, de fato, reflexo do
soldado inglês, dos soldados rasos e dos ‘batmen’ que conheci
na guerra de 1914 e considerava tão superiores a mim
mesmo”.24
UMA MENSAGEM PARA OS NOSSOS DIAS
O historiador militar Victor Davis Hanson observou certa vez
que a história do Ocidente é quase a história da guerra. “A
cidadania democrática”, escreveu ele, “requer conhecimento da
guerra”.25 Tolkien e Lewis nunca buscaram o profundo
conhecimento de combate que acabaram por adquirir em sua
juventude. Na verdade, não se pode enfatizar o suficiente que
nenhum dos dois recebeu de bom grado a chegada da guerra
ou jamais romantizou o seu significado. “Não sou nenhum
guerreiro”, diz Pippin em O Senhor dos Anéis, “e não gosto nem
sequer da ideia de batalha”.26 E como poderia ser diferente,
dado o que esses autores e a sua geração enfrentaram?
Contudo, a Grande Guerra ajudou a moldar a sensibilidade
deles, um fato que parece ser negligenciado por estudiosos e
admiradores de suas obras. No ano do centenário do início da
Primeira Guerra Mundial, o interesse das editoras pelo conflito
começou a despertar novamente. Os historiadores tendem a se
concentrar na eclosão da guerra, nas táticas dos generais, na
destruição causada pelo conflito, nos livros de memórias e
romances amargurados que surgiram desde então. A maior
parte da produção de material mais recente examina a guerra a
partir de quase todos os ângulos — militar, social, político e
econômico —, exceto do ponto de vista da fé. O mais
necessário, porém, é uma nova avaliação da calamidade
espiritual da guerra e da condição humana à luz dessa
experiência.
A história do impacto que a guerra exerceu sobre a visão
criativa de Tolkien e Lewis pode ajudar os historiadores a
entender melhor as suas consequências morais e espirituais
sobre uma geração inteira. Por outro lado, os admiradores de
suas obras de ficção podem se beneficiar imensamente de uma
avaliação mais profunda da experiência de guerra. Tanto
crentes quanto céticos podem se surpreender ao descobrir
como dois dos mais célebres escritores do século XX
responderam à Grande Guerra: como ambos empregaram a
sua consciência cristã para desafiar uma cultura
predominantemente triste, sombria e incrédula no período pós-
guerra.
Os feitos e a importância de ambos para os nossos dias não
podem ser subestimados. Alguns autores veem em suas obras
“desespero em relação à vida social e política moderna” e “um
grande pessimismo sobre a vida e a sociedade”.27 No entanto,
críticas como essas parecem ser empobrecidas por suas
próprias suposições sombrias. Tolkien e Lewis oferecem uma
compreensão da história humana que é, ao mesmo tempo,
trágica e esperançosa: eles sugerem que a guerra é um sintoma
da ruína e da destruição da vida humana, mas que aponta o
caminho para uma vida restaurada e transformada pela graça.
Nesse sentido, os dois autores apresentam um desafio
àqueles que veem a guerra como uma solução pronta para os
nossos problemas, assim como para aqueles que condenam
qualquer guerra como mal absoluto. Tolkien e Lewis não foram
vítimas das reações extremas à guerra, tão típicas de seu
tempo. “Nós sabemos, pela experiência dos últimos vinte anos”,
escreveu Lewis em 1944, “que o pacifismo aterrorizado e
raivoso é um dos caminhos que levam à guerra”.28 Tolkien
condenou o “desperdício total e estúpido da guerra”, porém
admitiu que “ela é necessária em um mundo maligno”.29 O
recurso utilizado por eles foi nos trazer de volta à tradição
heroica: uma forma de pensamento temperado pelas realidades
do combate e fortalecido pela fé em um Deus de justiça e
misericórdia.
Talvez o personagem de Faramir, o Capitão de Gondor em O
Senhor dos Anéis, expresse isso melhor.30 Ele possui
humildade, assim como grande coragem — é um guerreiro com
uma “grave ternura no olhar”, que não sente prazer na
perspectiva de batalha. Assim, ele transmite uma mensagem
que vale a pena ser repetida nos dias atuais, em um mundo
que conhece bem as tristezas e devastações da guerra: “A
guerra deve acontecer, enquanto estivermos defendendo nossas
vidas contra um destruidor que poderia devorar tudo”, explica
ele. “Mas não amo a espada brilhante por sua agudeza, nem a
flecha por sua rapidez, nem o guerreiro por sua glória. Só amo
aquilo que eles defendem”.31
capítulo
1
O DILEMA DO HOMEM
Aqui, de maneira escancarada, é a crise da fé que inicia o
século XX. Historiadores tendem a interpretar a influência de
Darwin como solvente essencial para destruir a crença em
Deus: as leis da seleção natural não requeriam um legislador.
Portanto, a evolução fez Deus redundante, a Bíblia irrelevante e
a salvação um estado da mente. A história do declínio da
essência da religião, no entanto, é muito mais complexa.
A ÚLTIMA BATALHA
A BESTA DE BERLIM
Se as nações da Europa e dos Estados Unidos estavam
decididamente engajadas em uma guerra santa, então seus
inimigos eram inimigos de Deus; lacaios do Maligno. E se as
Sagradas Escrituras fossem um guia, não haveria rendição,
nenhum compromisso com as forças do mal — apenas uma
guerra inteira para derrotá-los.
Como líder dos Impérios Centrais, o “Hun” alemão tornou-se
o principal objeto de vilipêndio entre as nações Aliadas. Em um
folheto popular da guerra, o escritor americano Elbert Hubbard
insistiu nessa questão: “Quem destampou a boca do
inferno?”.47 O pregador fundamentalista Billy Sunday, tão
incendiário quanto um coquetel molotov, falou para os clérigos
em ambos os lados do Atlântico: “Se colocar o inferno de
cabeça para baixo, você achará ‘fabricado na Alemanha’
estampado embaixo”.
Antes de examinar a contribuição das igrejas na
demonização da campanha, lembremo-nos de que a Alemanha
autorizou numerosos atos de agressão e uma vingança violenta
que indignou os Aliados democratas. Depois das tropas alemãs
invadirem a Bélgica, relatórios de atrocidades contra os civis
correram país afora: massacres, o uso de mulheres e crianças
como escudos humanos, estupros, maus tratos e execuções de
prisioneiros, entre outros crimes de guerra. C. S. Lewis
escreveu para o seu pai em outubro de 1914, mencionando um
amigo que “incumbido em seu acampamento no outro dia de
descarregar trens de soldados seriamente feridos no fronte: de
quem ele aprendeu que as histórias das atrocidades alemãs no
jornal (mutilação de enfermeiras, morte de feridos, etc.) não
eram nem um pouco exageradas”.48
Exagero ou não, para o clero inglês era “selvageria reduzida
a uma ciência”. A Grã-Bretanha estabeleceu a Comissão Bryce
para investigar as alegações. Ainda que sua análise sobre a
culpa alemã tenha sido severamente criticada após a guerra, a
comissão estava essencialmente correta na maioria de suas
conclusões. “Essas não eram meras ações de soldados fora do
controle de seus oficiais”, escreveu Dan Todman em The Great
War: Myth and Memory [A Grande Guerra: Mito e Memória].
“Atrocidades alemãs eram de importância política, não apenas
pânico”.49
Os alemães pioraram sua reputação posteriormente quando
cortaram caminho pelo norte da França. As tropas alemãs
atacaram a biblioteca histórica de Louvain e destruíram a
Catedral Gótica de Notre-Dame de Reims, conhecida como “o
Partenon da França”. Em fevereiro de 1915, submarinos
alemães atacaram embarcações comerciais, deixando claro que
a Alemanha não faria distinção entre alvos militares e civis.
A Alemanha também foi a primeira nação a usar armas
químicas no campo de batalha. Em 22 de abril, em Ypres, os
alemães lançaram 168 toneladas de gás de cloro ao longo de
seis quilômetros de fronte. Tropas francesas observaram
“impressionadas e pasmas” enquanto uma névoa verde
acinzentada caía sobre elas, enchendo os olhos, nariz e
garganta com um forte odor.50 Ao impedir os pulmões de
absorverem oxigênio, o cloro faz com que a vítima se afogue
lentamente em seus próprios fluidos. Levados ao pânico —
nenhum dos soldados franceses sabia o que era aquele gás —
homens fugiram por suas vidas. Os alemães que avançavam
ficaram espantados com a cena: cinco mil soldados inimigos
caídos, ofegantes ao respirar, sufocando em agonia e terror.51
Para os Aliados, tudo isso simbolizou um assalto alemão aos
valores da Civilização Ocidental. Em maio de 1915, quando o
relatório da Comissão Bryce foi traduzido para trinta idiomas, a
imagem do militarismo alemão, o barbarismo e a incontrolável
realpolitik, estava definida.
Mesmo assim, G. A. Studdert Kennedy, um dos capelães
mais conhecidos da Grã-Bretanha, encorajou soldados no
fronte a aplicar a Bíblia de uma maneira que ofende a
sensibilidade moderna: “Um amigo traidor traiu o Cristo… uma
nação traidora crucificou o mundo!”. Como Studdert Kennedy
observou, os alemães adulteraram a moral cristã e a
substituíram por valores de força bruta e paganismo: “O deus
que os líderes alemães adoram é um ídolo do mundo — um
monstro bruto e cruel que vive de sangue humano”.52
James Plowden-Wardlaw, vigário da Igreja de St. Clement
em Cambridge, acusou o Kaiser e seu exército de adorar o
diabo em forma de um deus tribal prussiano. “Os anjos devem
chorar”, ele disse, “ao verem a tragédia da queda, a queda
moral da Alemanha”.53 Muitos ministros insistiram que a
guerra provocaria “o fim completo” do sistema alemão: “O
mundo não poderá estar a salvo enquanto esse novo câncer
não for retirado do corpo da humanidade”.54 Conforme a
guerra continuava, referências em sermões e literatura religiosa
do fim dos tempos bíblicos se tornavam mais frequentes. H. C.
Beeching, decano de Norwich, ofereceu uma acusação típica
contra a Alemanha e seus Aliados: “Lutamos pelos outros
assim como por nós mesmos… por Cristo contra o Anticristo”,
escreveu. “E assim a batalha não é nossa, é de fato a batalha
final. O Dragão e o Falso Profeta estão unidos contra nós”.55
Uma vez que os Estados Unidos entraram na guerra contra
a Alemanha, os clérigos americanos tomaram zelo por seus
colegas britânicos. Para muitos, o chanceler alemão
representava uma encarnação do mal moral.
George Holley Gilbert, ministro congregacional, observou
“um cristianismo totalmente militarizado, como esse do Kaiser,
como a religião mais baixa e nociva já desenvolvida na terra.56
O bispo metodista Richard Cooke explicou que “a razão
verdadeira da guerra” era “reivindicar o Deus Todo-Poderoso
contra a filosofia violenta de homens condenados”.57 Mesmo
acadêmicos como James Day, chanceler na Universidade de
Syracuse, não conseguiam resistir ao uso da linguagem
religiosa para condenar o militarismo alemão. “Seria uma
bênção”, ele disse, “se pudéssemos entregar essa Besta de
Berlim a Deus e dizer: ‘Senhor, inflija a sua ira e o seu furor
contra tão bestial criatura’”.58
FÉ NAS TRINCHEIRAS
Dois jovens soldados, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis,
conseguiram sobreviver a esse delírio de alma intacta. Não é
fácil dizer como o espírito do tempo moldou suas atitudes após
a guerra; nenhuma pessoa escapa totalmente das suposições
de sua época. Porém, nenhum deles jamais expressou a
mentalidade das cruzadas, ainda menos as visões apocalípticas
do clero. Seus objetivos eram muito mais práticos e terrenos:
lutar com honra, sobreviver às trincheiras e retomar suas
carreiras acadêmicas onde a guerra os interrompeu. “Além
disso, antes de partir como soldado para a Primeira Guerra
Mundial, eu certamente esperava que minha vida nas
trincheiras fosse, em algum sentido misterioso, somente
voltada para a Guerra”, escreveu C. S. Lewis anos depois. “Na
realidade, percebi que quanto mais próximo da frente de
batalha, menos se falava e se pensava a respeito da causa dos
Aliados e do progresso da campanha”.68
Nisso, Tolkien e Lewis provavelmente compartilharam os
sentimentos da maioria de seus companheiros soldados.69
Muitos ficavam indignados com as atrocidades alemãs e irados
com a ideia de uma hegemonia alemã na Europa. Ainda assim,
há poucas evidências de que o soldado comum estaria animado
pelo intenso idealismo religioso. Por exemplo, na França
circulava uma história sobre um clérigo em uma carruagem de
homens a caminho da frente de batalha. Ele perguntava
alegremente: “Então, você está indo lutar na Guerra de Deus?”.
Ficando sem resposta, ele repetia a pergunta. “Você não
acredita na Guerra de Deus?”. Um soldado olha para ele com
cansaço e responde: “Senhor, não é melhor você deixar o seu
pobre amigo fora dessa confusão sanguinária?”.70
Infelizmente para a Igreja da Inglaterra, muitos capelães
estavam foram de vista e aparentemente fora de contato
durante a guerra. Ordenados a se manterem em segurança
atrás da frente de batalha, nos hospitais ou em ambulâncias,
eles pareciam muitas vezes incapazes de se relacionar com os
homens que lutavam para sobreviver.
“A chave para tudo isso”, escreveu Theodore Hardy, um
capelão que depois recebeu a condecoração de Cruz Vitória, era
que os ministros servissem na zona de combate: “Se ficar para
trás, você está gastando seu tempo. Os homens perdoarão
qualquer coisa, menos falta de coragem”. Muitos ministros
protestantes, no entanto, seguiram as ordens de evitar o fronte.
“Há apenas uma frente de batalha aqui e poucos capelães
chegam lá, não sendo durante as batalhas”, reclamou David
Railton. “É um erro da parte das autoridades que custará caro
à Igreja”.71
Talvez tenha custado. Muitos capelães anglicanos
trabalhavam corajosamente para servir os homens sobre os
seus cuidados. Dos dois mil do clero anglicano que se
alistaram ao Exército Britânico no tempo do Armistício, oitenta
e oito morreram em batalha, enquanto quatro foram premiados
com a Cruz Vitória.72 Mesmo assim, o poeta de guerra Robert
Graves — deixando de lado seu cinismo — parecia capturar a
percepção comum da covardia e hipocrisia clerical: “Se
tivessem mostrado um décimo da coragem, resistência e outras
qualidades humanas que os doutores manifestam,
concordaríamos que a Força Expedicionária Britânica poderia
muito bem ter iniciado um avivamento religioso”.73 Apesar das
grandes esperanças contrárias, nenhum avivamento
aconteceu.74
Para a maioria dos homens, parece que Deus ficou no plano
de fundo do conflito, mas não totalmente ausente. A crítica
muito citada de Graves — “dificilmente um soldado em cem era
inspirado pelo sentimento religioso, mesmo o mais simples
deles” — parece ser uma projeção autocentrada do seu próprio
ateísmo militante.75 Como o historiador Richard Schweitzer
argumenta em The Cross and the Trenches [“A Cruz e as
Trincheiras”], uma grande porcentagem dos soldados referiam-
se às suas crenças religiosas nas cartas e diários, indicando
uma piedade genuína.76 Talvez a observação do oficial escocês
estivesse mais próxima dessa linha: “A religião de noventa por
cento dos homens na frente de batalha não é distintamente
cristã,”, ele escreve, “mas a religião do patriotismo e do valor,
pintada de cavalheirismo e do melhor colorido com sentimento
e emoção emprestados do cristianismo”.77
NA LINHA DE FRENTE
A notícia da morte de Gilson demorou semanas até chegar a
Tolkien. Como oficial de sinalização do 11º Batalhão dos
Fuzileiros de Lancashire, o trabalho de Tolkien era manter a
comunicação entre os integrantes do exército que lideravam a
batalha e os oficiais que lutavam na linha de frente. Seus
equipamentos incluíam sinalizadores, pombos-correio, homens
mensageiros e telefones. O trabalho de Tolkien era fundamental
na cadeia de comando, uma vez que as informações coletadas
no campo de batalha eram utilizadas para direcionar o ataque
de artilharia e realocar — ou retirar — as tropas, conforme a
necessidade. Falhas na comunicação poderiam custar centenas
e até milhares de vidas.
Nos dias anteriores à Batalha do Somme, Tolkien e os
oitocentos homens da sua unidade de Fuzileiros foram retidos
como sistema de apoio de combate, a cerca de 20 quilômetros
da frente de batalha. Porém, no dia 3 de julho, o terceiro dia da
batalha, eles se dirigiram para Bouzincourt, uma aldeia que
ficava a pouco mais de um quilômetro atrás da linha de frente.
Assim que chegaram, os soldados ocuparam todas as casas,
celeiros, porões e quintais do local.41
Em guerras anteriores, os homens conseguiam ficar a uma
distância segura o bastante do campo de batalha para jogar
uma partida de críquete, mas não nesta guerra, com suas
novas tecnologias de destruição. A principal delas era a
artilharia, composta de uma ampla variedade de armas de
longo alcance: artilharia terrestre, que contava com projéteis de
oito quilos, obuseiros capazes de disparar pequenos fragmentos
e explosivos poderosos de um alcance de até 5 mil metros;
artilharia média, composta por morteiros de quase trinta
quilos, capazes de disparar projéteis explosivos a uma
distância de até dez mil metros; e morteiros de trincheira, que
podiam lançar granadas de dez centímetros de uma trincheira
a outra na terra de ninguém.42 A artilharia tinha a vantagem
não somente da distância como da velocidade: graças a
mecanismos hidráulicos e dispositivos de cronometragem, as
granadas podiam ser disparadas em direção ao inimigo com
mais rapidez, precisão e por períodos mais longos do que
jamais vistos em guerra. “Pela primeira vez na história, e desde
o início até o fim da guerra, a artilharia dominou os ataques”,
escreveu G. J. Meyer. “Ela foi responsável por mais mortes
entre 1914 e 1918 do que qualquer outra arma”.43
Enquanto Tolkien descansava em uma barraca,
provavelmente lendo cartas de sua mulher, um canhão alemão
bombardeou a vila em que estavam. Tolkien, que fazia parte da
Frente Ocidental, participando de um dos confrontos mais
sangrentos da guerra, foi atacado pela primeira vez em sua
vida.
O quanto aquele jovem soldado deve ter extraído daquele
acontecimento para descrever a enormidade da guerra em O
Senhor dos Anéis? “Esta não é mais uma disputa nos Vaus,
atacando desde Ithilien e de Anórien, fazendo emboscadas e
saqueando”, disse Beregond, soldado do exército de Gondor.
“Esta é uma grande guerra, planejada há muito tempo, e nós
somos apenas uma peça dentro dela, não importa o que nos
diga o nosso orgulho”.44 Será que o mesmo acontecimento
influenciou o autor quando escreveu sobre a angústia de Frodo
Bolseiro após deixar o Condado e enfrentar os Cavaleiros
Negros? “Naquele lugar solitário, Frodo se deu conta, pela
primeira vez, de que estava completamente ao relento e em
perigo”, escreveu Tolkien. “Ele desejou amargamente que o
destino o tivesse deixado em seu tranquilo e amado Condado.
Ele fitou a odiosa estrada que seguia para a direção oeste —
para o seu lar”.45
Ao refletir sobre as suas experiências anos mais tarde,
Tolkien admitiu que o seu gosto pela fantasia foi “trazido à vida
por causa de sua experiência na guerra” e que “a mitologia (e
as línguas associadas a ela) começaram a tomar forma durante
a guerra de 1914 a 1918”.46 Muito das “partes iniciais” de sua
obra épica, explicou ele, foram escritas “em cantinas sujas,
durante conversas em noites frias, em cabanas repletas de
homens proferindo blasfêmias e obscenidades, ou à luz de
velas dentro de tendas e até mesmo nos abrigos das trincheiras
sob o ataque de granadas”.47 Em outras palavras, Tolkien
havia começado a definir as bases para a sua trilogia de guerra.
Contudo, o desafio mais urgente era continuar vivo. “Tolkien
e seus sinalizadores estavam sempre vulneráveis”, explicou
Martin Gilbert. O vilarejo de Bouzincourt evitava grande parte
da barragem, mas homens feridos de outras áreas da linha de
frente, muitos deles terrivelmente mutilados, chegavam às
centenas. Portanto, membros do batalhão de Tolkien
começaram a cavar covas.
Tolkien estava especialmente preocupado com o destino de
seus amigos do TCBS. Ele sabia que Gilson estava no meio dos
confrontos no dia 1.º de julho, e nada mais. Ele também não
sabia o que acontecera com Geoffrey Smith, outro membro de
seu círculo íntimo. Surpreendentemente, Smith apareceu em
Bouzincourt no dia 6 de julho, vivo e ileso. Tolkien foi tomado
por uma grande alegria e os dois se encontravam sempre que
podiam em meio ao caos de toda aquela situação. Eles
caminharam juntos em um campo de papoulas, estranhamente
intocadas pelos ataques de morteiros, e conversaram sobre
poesia, sobre a guerra e sobre o futuro. No dia seguinte, a
divisão da qual Smith fazia parte, Salford Pals, partiu para as
trincheiras a fim de apoiar o ataque do Exército Britânico a
Ovillers, uma fortaleza alemã.48
Em Tolkien and the Great War [“Tolkien e a Grande Guerra”],
o biógrafo John Garth descreve a cena de quando chegou a vez
de Tolkien ir para a batalha, em 14 de julho, quando a sua
brigada foi enviada para reforçar a campanha de Ovillers.49
Projéteis e granadas riscavam o céu noturno. Pequenas cruzes
de madeira pontilhavam a paisagem. Pelo caminho, eles
encontraram muitos feridos retirados do campo de batalha.
“Foi, então, na chegada a Ovillers que Tolkien teve o seu
primeiro contato com os perdidos do Somme”, escreve Garth,
“anunciados pelo fedor que exalavam, escuros, curvados e
pendidos, ou pendurados no arame farpado, até que um feixe
de luz os revelou, os mortos inchados, já em estado de
putrefação”.50
A linha de frente britânica estava mergulhada em confusão e
frustração. As linhas telefônicas transmitidas para a sede eram
facilmente interceptadas e só podiam ser utilizadas como
último recurso. Bandeiras, sinalizadores e lâmpadas também
deviam ter seu uso limitado, uma vez que atraíam o fogo
inimigo. A maioria das mensagens precisava ser enviada por
mensageiros, que podiam ser atingidos por atiradores inimigos.
Portanto, os soldados estavam de fato lutando em uma “zona
de mistério”, sem qualquer noção dos movimentos do inimigo
ou de como obter alguma vantagem estratégica. Segundo
Garth, “o trabalho do oficial de sinalização era levar alguma
clareza para esse mistério, ajudando a montar um sistema de
comunicação no campo de batalha e usá-lo. Na prática, essa
era uma tarefa quase impossível”.51
O pior de tudo era o cenário dentro e ao redor das
trincheiras. Os corpos dos soldados mortos ficavam espalhados
por toda parte: desfigurados pelos ataques, com olhares
pavorosos ou rostos totalmente destruídos. Os feridos gemiam
ou choravam em desespero. Para além das trincheiras, na terra
de ninguém, se via uma paisagem de desolação total. As
árvores haviam sido reduzidas a gravetos enegrecidos. O ar era
denso com a fumaça e o cheiro forte de explosivos e cadáveres
a céu aberto. A grama e as plantações haviam sido engolidas
por camadas de lama.
Depois de uma chuva forte, era comum ver os corpos dos
soldados flutuando de bruços nas poças de lama; uma vez
feridos, o equipamento que carregavam e pesava cerca de trinta
quilos selava o seu destino. Um jovem oficial britânico relatou
ter encontrado corpos de soldados feridos no dia 1.º de julho
que haviam “rastejado para dentro dos buracos causados por
explosões de granadas, se enrolado em seus cobertores à prova
d’água e abraçado suas Bíblias para morrer”.52 Sir Philip
Gibbs, correspondente de guerra, presenciou mais cenas assim
do que a maioria. “Os cadáveres ficavam empilhados, alguns
eram enterrados, outros não”, escreveu ele. “Os soldados
cavavam onde os corpos estavam enterrados quando
precisavam abrir mais trincheiras. Eles sentavam-se sobre
cadáveres para observar o campo de batalha pelo periscópio.
Aqueles homens comiam e dormiam com o constante cheiro de
morte em suas narinas”.53
O ATEU NA TRINCHEIRA
Depois de viver três anos apenas com o conhecimento da
guerra, Lewis recebeu ordens para ir para a França. Ele foi
comissionado como segundo-tenente na Infantaria de Somerset
Light, um regimento de combate. Em 17 de novembro de 1917,
ele partiu de Southampton para Le Havre, na Normandia,
esperando passar por mais treinamento. Contudo, em vez
disso, doze dias depois, foi enviado à linha de frente, e chegou
lá no dia de seu aniversário de dezenove anos.
Ao escrever uma carta de um vilarejo próximo à cidade de
Arras, Lewis escondeu do pai o perigo iminente: “Acredito que
não temos motivos para reclamar: isso iria acontecer mais cedo
ou mais tarde. Não há necessidade de preocupação por um
bom tempo ainda. Tentarei escrever sempre que possível e
avisarei quando este dia chegar”.41 Meses depois, Lewis
continuava a poupar o pai da verdade sobre a vida nas
trincheiras: “Você vai gostar de saber sobre minhas primeiras
impressões das trincheiras”, escreveu. “Estou em uma área
muito tranquila da linha de frente, e os abrigos são bem mais
confortáveis do que se imagina aí”.42
Na verdade, a companhia de Lewis passou grande parte dos
meses de inverno rigoroso nas trincheiras perto de Monchy-Le-
Preux, cenário de luta e destruição intensas. Os alemães
haviam sido expulsos do vilarejo, mas recuperaram sua linha
de trincheira cerca de quinhentos metros ao leste, ao alcance
de um lançamento de pedra da linha britânica.43 No dia em
que Lewis chegou, 29 de novembro, havia “considerável
bombardeio inimigo”. No dia seguinte, o primeiro dia de Lewis
na linha de frente, o inimigo “bombardeou com força as
trincheiras praticamente o dia todo”. Um capitão de seu
regimento foi ferido.44
“Durante o inverno”, escreveu Lewis, “o cansaço e a água
eram os nossos maiores inimigos”.45 Lewis aprendeu a dormir
enquanto marchava. Ele conhecia a sensação da água gelada
entrando em sua bota quando pisava em arame farpado, e
encontrou os “mortos há muito tempo e os mortos recentes” no
campo de batalha.46 Suas experiências no Monchy-Le-Preux o
inspiraram a escrever alguns poemas sobre a guerra. Em
French Nocturne [“Noturno Francês”], Lewis ecoou o sentimento
de desumanização mencionado por muitos veteranos de guerra:
Longas léguas de trincheiras se espalham de cada lado
E tudo está tranquilo; agora, até esta raia cruel
Bebe dos gelados silêncios do céu
A lua pálida e esverdeada paira no alto
Que direito tenho eu de sonhar?
Sou um lobo. Em direção ao mundo novamente
Com meus companheiros bárbaros que um dia foram gente
Nossas gargantas só uivam: não podem mais cantar.47
O biógrafo Alister McGrath acredita que a matança
impiedosa da guerra colaborou para o aumento das dúvidas de
Lewis a respeito de Deus. “Suas experiências de guerra
fortaleceram o seu ateísmo”, escreveu McGrath. “Seus poemas
daquele período acusam os céus de estarem silenciosos e
indiferentes”.48 Embora não possamos saber com certeza, de
fato parece que o choque do combate mortal despertou em
Lewis uma nova repulsa pelas doutrinas religiosas de sua
juventude. Em “De Profundis”, Lewis despreza a noção de um
Deus amoroso que intervém nas questões humanas:
Venham, vamos, antes da morte, nosso Mestre amaldiçoar,
Pois todas as nossas esperanças estão arruinadas.
A bondade está morta. O Deus Todo-Poderoso vamos amaldiçoar.49
UM HOMEM DE CONSCIÊNCIA
No entanto, o ataque teve vítimas, incluindo o segundo-
tenente Laurence Johnson, atingido por tiros de metralhadora
e que morreu no dia seguinte. Ele tinha vinte anos. Johnson
havia se alistado ao Exército mais ou menos na mesma época
que Lewis. Os dois se conheceram durante o treinamento
militar em Oxford e descobriram que tinham muito em comum.
Pensando para depois da guerra, ambos planejavam começar
seus estudos e se dedicar aos clássicos que tanto amavam. Os
dois gostavam de debater as grandes questões sobre Deus,
filosofia e moralidade. Forçados ao campo de batalha juntos,
encontravam tempo para conversar durante os intervalos entre
os conflitos.
“Esperava reencontrá-lo algum dia em Oxford e retomar as
conversas intermináveis que tínhamos naquele lugar”, escreveu
Lewis logo após saber de sua morte. “Eu pensava tanto nele...
mal posso acreditar que está morto”.61 Ao refletir sobre aquele
tempo anos depois, Lewis declarou que Johnson “teria sido um
amigo para a vida toda se não tivesse sido morto na guerra”.
Ele até viu a chegada de Johnson a seu batalhão como um
desafio providencial ao seu ateísmo — “em meu próprio
batalhão eu também fui atacado” — e como parte essencial à
sua conversão ao cristianismo anos mais tarde.62 “Nele, eu
encontrava uma lucidez dialética que até então só conhecera
em Kirk (Kirkpatrick), mas associada à juventude, imaginação
e poesia. Ele estava inclinado ao teísmo, e tínhamos discussões
intermináveis sobre esse assunto e sobre qualquer outra coisa,
sempre que fora da linha de batalha”.63
No entanto, Johnson manifestava muitas outras qualidades
que impressionaram profundamente Lewis, e elas iam muito
além das suas habilidades de debate: ele tinha um caráter que
Lewis raramente encontrava em seus colegas acadêmicos.
Johnson demonstrava uma integridade incontestável — um
código moral coerente — que pegou Lewis completamente
desprevenido. “O mais importante é que ele era um homem de
convicções. Eu até então quase não havia conhecido tais
princípios em alguém de idade tão próxima à minha e
pertencente à mesma classe. O mais assustador era que, para
ele, isso parecia óbvio. Pela primeira vez desde a minha
renúncia à fé cristã, passou por minha cabeça que as virtudes
mais severas podem ter alguma relevância para as nossas
próprias vidas”.64
Não temos como saber exatamente como o compromisso de
Johnson com essas “virtudes mais severas” influenciou Lewis
em sua jornada à fé cristã. Sabemos, contudo, que ele foi
atraído por elas — “Aceitei os seus princípios imediatamente”
— e que ele se sentiu um tanto quanto envergonhado por “não
ter examinado” sua própria vida como o amigo. Lewis precisou
considerar os princípios com a severidade do universo moral
bíblico antes que sua conversão pudesse acontecer.65
Enquanto isso, o ataque em Riez du Vinage ainda estava em
andamento. Na manhã seguinte, no dia 15 de abril, os alemães
contra-atacaram bombardeando o vilarejo. Os britânicos
retribuíram. Um projétil, provavelmente disparado por trás da
linha britânica, disparou perto de Lewis, matando o sargento
Harry Ayres. Sua morte foi uma grande perda para Lewis: o
sargento o tratava com grande respeito e compaixão, havendo
se tornado para ele “quase como um pai”.66
Estilhaços do mesmo morteiro atingiram Lewis na mão,
perna e peito. Ele foi levado de maca até um hospital da Cruz
Vermelha britânica, perto de Étaples. Seu irmão, que também
estava servindo na França, pegou uma motocicleta e correu
para visitá-lo.
Sem ferimentos fatais, Lewis foi enviado para casa, na
Inglaterra, a fim de se recuperar completamente. “Graças a
Deus, Jack não correu risco de vida”, escreveu Warnie em seu
diário, “e agora minha mente está livre desse pesadelo”.67
Lewis descobriu que o fragmento que atingira seu peito estava
muito próximo ao seu coração e não poderia ser removido; ele
teria de viver com aquilo. “Os médicos terão de deixar o
fragmento em meu peito”, escreveu ele, “mas disseram que
posso viver com isso o resto da vida sem qualquer perigo”.68
Lewis não retornaria ao seu batalhão antes do fim da guerra;
os seus dias de soldado haviam chegado ao fim.
“A minha vida está se dividindo rapidamente em dois
períodos”, escreveu ele. “O primeiro, que abrange todo o tempo
antes de entrarmos na Batalha de Arras, e o segundo, que se
passou depois dela”.69 Em um leito de hospital em Bristol,
Lewis agora lutava para aceitar a realidade da guerra: os
membros despedaçados e o psicológico estilhaçado, os homens
que nunca voltaram e a imprevisibilidade da morte. Além de
Moore e Johnson, a maioria de seus amigos que sobraram
ainda morreria no último ano da guerra: Alexander Gordon
Sutton, morto em 2 de janeiro; Thomas Kerrison Davy, que
morreu em consequência de seus ferimentos em 29 de março; e
Martin Ashworth Somerville, morto na Palestina em 21 de
setembro. “Eu poderia ficar prostrado e chorar por causa de
tudo isso, mas é claro que nós dois temos muitos motivos para
agradecer”, escreveu ele ao pai. “Se eu não tivesse sido ferido
exatamente quando fui, teria enfrentado coisas terríveis. Quase
todos os meus amigos do Batalhão se foram”.70
UM VISLUMBRE DE NÁRNIA
O que Lewis, Tolkien e todos os homens que lutaram em sua
geração enfrentaram foi algo completamente inédito na história
da guerra: a ciência e tecnologia modernas implacavelmente
dedicadas à aniquilação do homem e da natureza. Poucos
homens públicos demonstraram abertamente a sua
preocupação com o entusiasmo exagerado pelo avanço material
e científico. Winston Churchill foi um deles. “Sem o
crescimento em igual medida da Misericórdia, da Piedade, da
Paz e do Amor, a própria Ciência pode destruir tudo aquilo que
torna a vida majestosa e tolerável”, escreveu ele. “Jamais houve
um tempo em que a virtude inerente aos seres humanos
exigisse uma expressão tão forte e confiante na vida diária”.71
Lewis e Tolkien ainda usariam seus dons literários para
contribuir poderosamente nesta tarefa: a “expressão confiante”
da dignidade humana na vida cultural. Ao mesmo tempo, o
abuso da ciência — sua capacidade de desumanizar seus
mestres assim como suas vítimas — também seria um tema
importante das suas obras. Em vez de libertar os seres
humanos de suas antigas fragilidades, a ciência os escravizou.
O mundo distópico criado por Lewis em Aquela Fortaleza
Medonha, por exemplo, é dominado por um instituto
aparentemente científico, o N.I.C.E, que é, na verdade, uma
fachada para a realização de seus propósitos sobrenaturais e
sinistros. “Havia, agora, finalmente, uma chance real para o
Homem caído se livrar daquela limitação de seus poderes,
imposta pela misericórdia como uma forma de proteção contra
os resultados completos de sua queda”, escreveu Lewis. “Se ele
tivesse sucesso nesta empreitada, o inferno seria, finalmente,
encarnado”.72
Assim como acontecera com Tolkien, a experiência da guerra
levou Lewis a duas direções. Ele jamais seria capaz de esquecer
completamente a assolação que ela causara: “os sustos, o frio,
o cheiro forte das armas químicas, as cenas de soldados
esmagados ainda com vida, movendo-se como insetos pisados,
os cadáveres sentados ou em pé, a paisagem árida e desolada,
sem qualquer sinal de vegetação, as botas utilizadas dia e noite
até parecerem fazer parte de seus pés...”.73 Contudo, ainda
assim, como veremos, as tristezas da guerra não conseguiram
obscurecer a vida criativa de Lewis. O mundo de Nárnia, uma
terra banhada por rios de alegria — “a terra que estive
procurando por toda a minha vida” —, nasceria a partir dos
destroços de uma Grande Guerra.
Quem sabe um lugar como Nárnia tenha se tornado visível
durante a viagem até um hospital em Londres, para onde Lewis
fora enviado para se recuperar de seus ferimentos. Parece
bastante provável que o simples prazer de uma viagem de trem
pelo interior da Inglaterra, colocada em contraste direto com a
desesperança e o horror da guerra, tenha proporcionado para
Lewis uma poderosa experiência de alegria: uma sensação tão
irresistível que foi capaz de sobrepujar sua visão materialista.
Como ele mesmo escreveu de seu leito no Hospital Endsleigh
Palace:
Você consegue imaginar como desfrutei da minha viagem a
Londres? Em primeiro lugar, a vista e o cheiro do mar, dos quais
senti tanta falta durante aqueles longos e extenuantes meses, e,
depois, os lindos campos verdes vistos do trem... Acho que jamais
apreciei tanto alguma coisa quanto aquela paisagem — o branco
das cercas e os campos repletos de flores amarelas que, à distância,
pareciam ouro reluzente.74
A TERRA DA SOMBRA
OS ANOS DE VERTIGEM
A carnificina sem precedentes da guerra produziu não
apenas um profundo sentimento de tristeza e desilusão. Ela
criou uma sensação de impotência e uma melancolia
psicológica entre os sobreviventes. Essa é uma perspectiva
apresentada de maneira precisa nas últimas páginas do livro
de memórias de Remarque. Nada de Novo no Front descreve
uma geração de soldados que retornam à vida civil “cansados,
traumatizados, esgotados, sem raízes e sem esperanças”.11
O estado de espírito desolado era comum entre escritores,
artistas e intelectuais públicos, mas também afetava os
europeus da classe média. “O desânimo era uma preocupação
dominante”, escreveu Richard Overy em The Twilight Years [“Os
Anos de Crepúsculo”]. “Para a geração que viveu após o fim da
Primeira Guerra Mundial, a perspectiva de uma crise iminente
e de uma nova Idade das Trevas tornou-se uma nova visão
normal de mundo”.12
Os títulos das obras publicadas na época contam bastante
sobre esse tempo: The End of the World – “O Fim do Mundo”]
(1920), de McCabe; Social Decay and Degeneration
[“Decadência e Regeneração Social”] (1921), de Freeman; The
Decay of Capitalist Civilization [“A Decadência da Civilização
Capitalista”] (1923), de Webb; The Twilight of the White Races
[“O Crepúsculo das Raças Brancas”] (1926), de Muret; The
Decline of the West [“O Declínio do Ocidente”] (1926–28), de
Spengler; Will Civilization Crash? [“A Civilização vai Quebrar?”]
(1927), de Kenworthy; Racial Decay [“Abismo Racial”] (1928), de
Bond; The Day After Tomorrow: What Is Going to Happen to the
World? [“O Dia Depois de Amanhã: O que Acontecerá com o
Mundo?”] (1928), de Gibbs; Sterilization of the Unfit
[“Esterilização dos Incapazes”] (1929), de Riddell; Modern
Civilization on Trial [“A civilização Moderna em Julgamento”]
(1931), de Burns; The Problem of Decadence [“O problema da
Decadência”] (1931), de Milner; The Dance of Death [“A Dança
da Morte”] (1933), de Auden; Christianity and the Crisis [“O
Cristianismo e a Crise”] (1933), de Dearmer.
O medo de que a civilização estivesse ameaçada era mais do
que uma metáfora literária. Os conceitos de declínio e colapso,
de doença e morte, contaminaram quase todos os
empreendimentos culturais: intelectual, artístico, literário,
científico, filosófico e religioso.13 Para esses pensadores, a
noção de progresso moral e espiritual da humanidade estava
na lata de lixo da história. “Não podemos fazer nada se nós
nascemos homens no início do inverno da civilização plena”,
escreveu Spengler, “em vez de no cume dourado de uma
cultura madura”.14
Embora a sua fé católica tenha permanecido intacta, J. R. R.
Tolkien confessou mais tarde que “lamentou o colapso de todo
o meu mundo”, que começou com o seu envio à Frente
Ocidental.15 Com essas palavras ele parecia se referir à
frustração de seus anseios criativos e intelectuais; a guerra o
forçou a praticamente abandonar a sua força criativa para que
pudesse se concentrar em simplesmente sobreviver. “Não eram
as coisas difíceis que incomodavam tanto”, escreveu ele mais
tarde. “Fui jogado no meio daquilo tudo bem quando estava
cheio de coisas para escrever e aprender; e nunca mais
consegui recuperá-las”.16
Tolkien deixou a Força Expedicionária Britânica no dia 16 de
julho de 1919, e voltou para Oxford com sua mulher, Edith, e
seu filho pequeno, John. Ele se juntou à equipe do The New
English Dictionary, associação de especialistas que se
dedicavam ao trabalho minucioso do dicionário da língua
inglesa. Tolkien se destacou no papel de filólogo. Suas energias
intelectuais — sua paixão pelas línguas anglo-saxãs e
germânicas — foram muito bem canalizadas. Como editor do
dicionário, Henry Bradley o descreveu na época: “Sem
hesitação, posso afirmar que jamais conheci um homem de sua
idade que pudesse se comparar a ele nesses aspectos”.17
Após trabalhar como professor de Língua Inglesa na
Universidade de Leeds, Tolkien ganhou o cargo de professor de
anglo-saxão em Oxford, em 1925. No entanto, nem mesmo o
seu sucesso acadêmico precoce conseguiu apagar o sofrimento
da guerra. A Universidade de Oxford perdeu quase um em cada
cinco soldados no conflito. Da Exeter College, onde Tolkien
estudou, 141 homens morreram na guerra e, por isso, ele
experimentou “um período de tristeza e sofrimento
psicológico”.18 A perda de tantos amigos para a guerra
produziu nele, nas palavras de seus filhos, “uma tristeza que
durou a vida toda”.19
Quando deixou o exército na véspera de Natal de 1918, C. S.
Lewis mal podia acreditar que os muitos meses de preocupação
— por saber que teria de voltar ao campo de batalha — haviam
chegado ao fim. “É quase inacreditável que a guerra tenha
acabado, não é mesmo?”, escreveu ele a Arthur Greeves. “Não
ter a preocupação constante de ‘ter de voltar’. Nesta hora do
ano passado eu estava nas trincheiras”.20 Lewis partiu
imediatamente para Belfast a fim de encontrar seu pai e seu
irmão.
“Era como se aquele sonho maligno, que durou quatro anos,
tivesse finalmente terminado e nós ainda estivéssemos no ano
de 1915”, escreveu Warnie em seu diário. “À noite, tomamos
espumante no jantar para comemorar o fim daquele
período”.21
Em janeiro de 1919, Lewis voltou a Oxford, assim como mais
de mil e oitocentos ex-militares, para retomar seus estudos dos
clássicos no University College. Quando chegou lá, o lugar já
estava fervilhando com palestras e debates, e logo Lewis
percebeu claramente a “grande diferença entre aquela
Universidade de Oxford e o fantasma dela de que me
lembrava”. No entanto, quando as atas de uma reunião de um
dos clubes de que Lewis participara em 1914 foram lidas em
voz alta, ele ficou assombrado. “Não me recordo de nada que
tenha me feito perceber de forma mais completa a interrupção
e o desperdício de nossas vidas durante aqueles anos”.22
Ele lamentou a perda de velhos amigos. Ao saber da morte
de seu antigo mentor, William Kirkpatrick, Lewis confessou
uma dificuldade interna. “Ele fica gravado na mente de quem o
conhece de forma tão permanente, sempre lembrado em cada
pensamento, que torna a aceitação de sua morte algo ainda
mais impensável”, escreveu ao pai em 1921. “Já vi a morte
muitas vezes, mas nunca consegui considerá-la nada além de
extraordinária e incrível. A pessoa real é tão verdadeiramente
real, tão obviamente viva e diferente do que resta dela quando
se vai, que é impossível acreditar que algo possa se transformar
em nada”.23
Embora sensível a questões religiosas, ainda não havia
comprometimento de sua parte acerca do assunto. Enquanto
ainda muito jovem, Lewis já havia experimentado profunda
tristeza e dificuldade, e isso o deixou com uma visão de mundo
severa e até mesmo sombria. “A perda precoce de minha mãe, a
grande infelicidade na escola e a sombra da última guerra...
deixaram-me com uma visão pessimista da existência”,
escreveu anos depois. “Essa era a base do meu ateísmo”.24
Ele, então, voltou o seu coração e a sua mente para a
literatura, deixando-se absorver pelo estudo acadêmico. “Lewis
leu mais clássicos do que qualquer outro menino que tenha
estudado comigo”, afirmou Kirkpatrick certa vez. “Ele é um
aluno que não tem qualquer outro interesse além de ler e
estudar”.25 Lewis expressou sua visão na época, dizendo que,
além das pessoas importantes para ele, “o trabalho é a única
coisa... com a qual vale a pena se importar”.26
No inverno de 1922, Lewis registrou em seu diário uma
conversa que teve com o Dr. John Askins, irmão da Sra. Moore,
conhecido como “o doutor”. Askins havia servido como capitão
no Corpo Médico do Exército Real e foi ferido em janeiro de
1917. Hospedado algumas semanas na casa da irmã, certa
noite, depois do jantar, Lewis e Askins saíram para dar um
passeio. “Caminhamos até o fim da vila de Iffley para observar
a igreja e as árvores à luz das estrelas”, escreveu ele. “Não me
lembro como, mas começamos a falar sobre a morte — em seu
aspecto materialista — e sobre todos os outros horrores que
pairam sobre nós. O doutor disse que, se parássemos para
pensar, não suportaríamos este mundo por uma hora sequer.
Eu o deixei ali e voltei para casa”.27
Muitos pensadores e autores do pós-guerra, na verdade, não
estavam dispostos a suportar o mundo em seu novo formato:
uma espécie de vertigem espiritual tomou conta da atmosfera,
uma busca frenética por soluções para a condição humana.
Psicologia freudiana, socialismo, espiritualismo, cientificismo
— essas e outras ideologias foram tentativas de resolver, ou
explicar, os horrores que pareciam pairar sobre a raça
humana. Embora possam ter se originado antes da guerra, na
década de 1920 essas ideias ganhavam terreno rapidamente na
Europa e nos Estados Unidos.
A CRISE DA FÉ
Assim, a crise de fé enfrentada na Europa pós-guerra foi
multifacetada. Havia um desgaste do que pode ser chamado de
confiança civilizacional, uma desilusão generalizada em relação
ao Ocidente e suas supostas conquistas culturais. A
democracia liberal, o constitucionalismo, o capitalismo, o
progressismo — tudo parecia estar prestes a entrar em colapso.
Gilbert Murray escreveu em The Ordeal of This Generation [“O
Ordálio desta Geração”] (1929): “O sistema que, antes da
guerra, era considerado essencial para a civilização, se a
civilização ainda prosseguisse, estaria, de qualquer forma, sob
perigo”.39 Visto que o cristianismo era considerado parte
integrante do sistema político e econômico europeu, o fracasso
desse sistema significava também um fracasso espiritual.
A desintegração da fé cristã ortodoxa entre todas as classes
de europeus durante a década de 1920, apesar de ter sido
exagerada por muitos, foi real o bastante: “um profundo
sentimento de crise espiritual foi a marca daquela década”,
escreveu Modris Eksteins. “Isso afetou trabalhadores rurais,
latifundiários, industriais, operários, comerciantes e
intelectuais”.40 As causas do enfraquecimento da fé cristã
foram muitas, mas entre as mais importantes está a influência
da psicologia freudiana, que ganhou um grande impulso nos
anos do pós-guerra.
A experiência da guerra de trincheiras produziu muitos
casos de transtornos mentais entre os soldados e veteranos de
guerra. Um deles ficou conhecido como a neurose de guerra —
conhecida entre os soldados como shell shock (por causa do
choque causado pela chuva de projéteis que caía sobre eles
durante as batalhas). Homens bem-educados de famílias de
classe alta ou de militares, que lutaram com excelência e
receberam condecorações por sua bravura, de repente,
sucumbiram psicologicamente. E não eram eles homens
covardes ou loucos.41
O irmão da Sra. Moore, o “doutor”, sofreu desse transtorno
como consequência de sua experiência na guerra. Durante
uma de suas visitas, ele teve vários ataques de tortura mental
extrema — aparentemente, acreditava que estava indo para o
inferno — e foi mandado para um hospital. Lewis passava
muitas horas com ele, tentando consolá-lo. “Nada parece
conseguir arrancar nem sequer um traço de sorriso de seu
rosto”, registrou Lewis em seu diário. “Em termos de
sofrimento, essa experiência supera tudo que já vi em minha
vida”.42 O doutor logo morreu de insuficiência cardíaca. “Não é
um mundo maldito?”, escreveu Lewis a um amigo. “E
pensávamos que poderíamos ser felizes com livros e
música!”.43
Freud parecia oferecer uma explicação honesta para aquela
condição. Os seus métodos de psicanálise pareciam mais
sensatos do que as alternativas brutais disponíveis para a cura
dos transtornos mentais: medicamentos fortes, agressões
verbais, terapia de eletrochoque. “Quando a corrente elétrica
era aumentada”, escreveu Paul Johnson, “alguns homens
morriam durante o tratamento, ou cometiam suicídio depois,
para que não precisassem enfrentar aquilo novamente —
pareciam vítimas da Inquisição”.44
Quando inaugurada em Berlim em 1920, a primeira clínica
psiquiátrica de Freud abriu caminho para as suas visões sobre
a natureza humana, a culpa e Deus. Freud era especialmente
atraente para uma geração que lutava por encontrar significado
para as consequências da guerra. A fé religiosa era vista como
uma tentativa de proteção contra o sofrimento, como “uma
reformulação delirante da realidade”.45 Com Deus
desacreditado, o sentido devia ser encontrado “na vida, no ato
de viver, na vitalidade do momento”.46 Dessa forma, a nova
psicologia legitimou um novo hedonismo. Em uma década, W.
R. Matthews, reitor de Exeter, queixou-se do “declínio da
religião institucional” por causa da “incoerência da mensagem
cristã e da sua aparente contradição ao conhecimento
moderno”.47
Tudo isso ajudou a produzir o fanático moderno e secular: o
revolucionário que deseja criar o paraíso na terra. Ciência,
psicologia, política, economia, educação — qualquer uma
dessas disciplinas era alistada à causa. Em universidades
como a de Oxford, onde Tolkien e Lewis estavam na década de
1920, um coquetel de experimentação e crises existenciais era
o que havia de mais comum.
O pacifismo estava na moda, enquanto o patriotismo havia
sido deixado de lado, substituído pelo desprezo por todas as
velhas virtudes. Para a comunidade intelectual, assim como
para o homem comum, a Grande Guerra havia difamado os
valores do Velho Mundo, e junto as doutrinas religiosas que
ajudaram a subscrevê-los. O avanço moral, e até mesmo a
própria ideia de moralidade, parecia uma ilusão.
O que Hemingway escreveu em Adeus às Armas capturou
bem a postura de muitos soldados e civis. Quando colocadas
ao lado dos nomes e regimentos que perderam a vida no
conflito, “palavras abstratas, como glória, honra, coragem,
reverência, pareciam obscenas”.48 Como relembrou Lewis
muitos anos depois, “o clima intelectual dos anos 1920”
influenciou uma geração inteira de estudantes e futuros
acadêmicos. “Ninguém pode dar a outro aquilo que não
possui”, escreveu ele. “Um homem cuja mente foi formada em
um período de cinismo e desilusão não pode ensinar sobre
esperança e força moral”.49 O veredicto havia sido dado: a
guerra para tornar o mundo seguro para a democracia e a
guerra santa para promover os princípios cristãos, eram uma
ilusão profana.
Dadas essas sensibilidades do pós-guerra, como Oxford se
tornou a incubadora da literatura épica que exaltava a bravura
e o sacrifício em combate?50 Como as obras de Tolkien e Lewis,
enraizadas na narrativa de redenção cristã conseguiram ver a
luz do dia?
A GRANDE COLABORAÇÃO
Lewis dedicaria grande parte do resto de sua vida
profissional à tentativa de explicar o cristianismo a um mundo
insensato. Tanto em sua ficção quanto em sua prosa, em obras
como Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, O Grande Abismo e
Cristianismo Puro e Simples, Lewis traçou os movimentos da
alma humana da incredulidade à fé. Segundo ele mesmo,
muitas amizades e autores desempenharam um papel
importante em sua jornada, em seu “Regresso do
Peregrino”.101 Sua conversa com Tolkien, no entanto, foi o elo
humano mais direto nesse processo. Ela tirou de Lewis
qualquer traço de racionalização ao qual poderia voltar a
recorrer. “Tudo em que eu havia tanto me empenhado para
expulsar de minha própria vida parecia irradiar da essência
dos meus melhores amigos”, escreveu ele. “Tudo e todos
haviam se juntado ao lado oposto em que eu estava”.102
A conversão de Lewis não foi apenas profunda e vital, ela foi
“o principal divisor de águas em sua vida”, escreveu o biógrafo
Walter Hooper. “Não sobrou um recanto ou parte de seu ser
que não tenha sido tocado e transformado pela sua
conversão”.103 Sua fé foi nutrida pelas amizades: Tolkien e ele
formaram o núcleo de um pequeno grupo de escritores —
quase todos cristãos sérios — que se reunia semanalmente nos
aposentos de Lewis, em Magdalen. Eles se encontravam para
ler e criticar o trabalho uns dos outros. “Teoricamente para
falar sobre literatura”, explicou Lewis, “mas, na verdade, na
maioria das vezes, para falar sobre algo melhor”.104 O nome
do grupo era “Inklings” [do inglês, “ink” — tinta], aqueles que
“mexem com tinta”.105
Foi nesse ambiente que Lewis fez sua primeira tentativa de
usar a ficção científica como veículo para a verdade cristã. Um
de seus alunos levou a sério o sonho da colonização
interplanetária, que Lewis via como uma tentativa científica de
evitar a morte — e como uma rival do cristianismo. O resultado
foi o livro Além do Planeta Silencioso (1938), o primeiro de uma
trilogia de ficção científica inundado em temas e imagens
religiosos. Lewis leu a obra em voz alta em uma das reuniões
dos Inklings, onde, segundo Tolkien, foi “amplamente
aprovada”.106 Esse livro ajudou a lançar a carreira de Lewis
como escritor popular. No entanto, não fosse pela carta de
aprovação enviada por Tolkien a um editor — grande parte da
obra foi descartada como “besteira” pela pessoa designada a ler
o seu manuscrito —, talvez essa história jamais tivesse visto a
luz do dia. “Li a história no manuscrito original e fiquei tão
fascinado que não conseguia fazer mais nada até terminar a
leitura”, contou Tolkien. “De qualquer maneira, eu teria
comprado essa história por quase qualquer preço se a tivesse
encontrado impressa”.107
As primeiras resenhas do livro foram em sua maioria
positivas, contudo Lewis ficou surpreso ao perceber que quase
ninguém identificou nela a doutrina bíblica da Queda, que
sustenta a história do início ao fim. “Se ao menos houvesse
alguém com mais talento e tempo livre, acredito que essa
grande ignorância poderia ajudar na evangelização da
Inglaterra”, escreveu ele a um amigo. “Se sob o disfarce de
romance, qualquer quantidade de teologia pode ser
apresentada agora às mentes das pessoas sem que elas
percebam”.108 Aqui está um insight que Lewis certamente
encontrou em suas muitas conversas com J. R. R. Tolkien.
Ao mesmo tempo, a influência de Lewis sobre seu amigo
também seria profunda. Tolkien há muito acreditava que os
“contos de fadas” eram, na verdade, um gênero para adultos e
“para o qual existia um público faminto”.109 Essa crença, no
entanto, permaneceu uma hipótese não testada até Tolkien
compartilhar seu trabalho inicial com Lewis, que o achou
cativante. “Se ninguém escreve o tipo de livro que desejamos
ler”, disse Lewis ao amigo, “então, nós mesmos teremos de
escrevê-los”.110
Com o passar do tempo, eles fizeram exatamente isso.
Tolkien começou a trabalhar em O Hobbit, uma história
ambientada “há muito tempo, na quietude do mundo, quando
havia menos barulho e mais verde”.111 Seu personagem
principal é Bilbo Bolseiro, uma criatura pequena, amigo dos
elfos, conhecida como hobbit. O personagem apresenta as
virtudes e defeitos de um inglês de classe média. Tem uma vida
confortável e não demonstra qualquer interesse em aventuras.
“Não consigo imaginar o que as pessoas veem neles”. Tolkien
explicou: “Os hobbits são apenas ingleses simples, reduzidos
em tamanho porque refletem a capacidade geralmente pequena
de sua imaginação — e não a capacidade pequena de sua
coragem ou de seu poder latente”.112
Quando O Hobbit foi concluído, Bilbo Bolseiro havia
enfrentado uma jornada perigosa pela Terra Média e se juntado
a um exército de elfos, homens e anãos para enfrentar goblins
e lobos selvagens em uma terrível batalha final. “A vitória agora
deixava de ser uma esperança. Tinham apenas detido a
primeira investida da maré negra”.113
Após a publicação do livro, em 1937, Lewis o elogiou
afirmando se tratar de “uma adaptação para crianças de parte
de uma enorme mitologia particular do tipo mais sério de
todos: a luta cósmica como um todo, segundo a visão do autor,
porém mediada por um mundo imaginário”.114 E esta foi
precisamente a tarefa que o próprio Lewis assumiu ao escrever
As Crônicas de Nárnia, uma série de histórias para crianças
sobre um mundo oculto envolvido em uma grande batalha
entre o Bem e o Mal.
A popularidade instantânea do conto de fadas de Tolkien o
levou a trabalhar em “uma nova história sobre hobbits”.
Contudo, Tolkien dificilmente teria conseguido terminar sua
obra-prima, O Senhor dos Anéis, sem o entusiasmo e o apoio de
seu amigo. Os dois passavam muitas horas no escritório de
Lewis em Magdalen College, com Tolkien lendo capítulos em
voz alta para um público cativo. “C. S. L. tinha verdadeira
paixão por ouvir coisas lidas em voz alta, a sua capacidade de
memória era muito maior ao receber as coisas dessa maneira”,
explicou Tolkien. “Ele também tinha grande facilidade em fazer
críticas espontaneamente”.115 Tolkien recordou-se, certa vez,
de um almoço em que Lewis o repreendeu e aconselhou a
retomar o trabalho, que estava parado por algum tempo.
“Aquele homem incansável leu para mim parte de uma nova
história!”, disse Tolkien. “Mas ele está me pressionando para
terminar a minha. Eu de fato precisava de um pouco de
pressão e, provavelmente, retomarei o meu trabalho”.116 A
escrita do livro de Tolkien se arrastou por anos, inacabada.
“Bebi até a última gota da rica taça e saciei uma antiga
sede”, escreveu Lewis a Tolkien, depois de ler o texto
datilografado de O Senhor dos Anéis. “Nenhum romance é
capaz de repelir a norma do ‘escapismo’ com tanta ousadia. Se
ele erra em algum momento, é precisamente na direção oposta:
o coração adoecido pela esperança que se adia e o acúmulo
impiedoso das probabilidades contra os heróis são quase
dolorosos demais”.117 Ao refletir tempos depois sobre o
envolvimento de Lewis em sua história, Tolkien manifestou sua
gratidão. “A dívida impagável” que ele tinha para com Lewis,
disse ele, era o seu “estímulo incessante” — durante muitos
anos — para que não parasse de escrever. “Ele foi, por muito
tempo, o meu único público”, continuou Tolkien. “Foi ele, e
somente ele, que me fez acreditar que ‘as coisas’ que eu
escrevia poderiam ser mais que simplesmente um hobby
pessoal. Se não fosse por seu interesse e sua perseverança
inflexível para que eu continuasse, O Senhor dos Anéis jamais
teria sido concluído”.118
A colaboração que nasceu entre eles, e o resultado literário
que cresceu a partir dela, não poderia ter surgido em um
momento de maior crise no Ocidente. A geração de Tolkien e
Lewis havia passado pelo conflito mais devastador da História
— e os resultados dele foram praticamente nulos. Quase todas
as nobres convicções e aspirações daquela sociedade pareciam
uma falsidade, uma tolice ou um conto infantil. O Iluminismo,
com sua idolatria da razão, chegara ao fim — “e foi direto para
o fundo do poço, para o qual cegos sempre guiaram outros
cegos ao longo de todos os tempos, e onde todos sucumbiram
miseravelmente”.119
Um mundo, que antes parecia tão sólido e seguro quanto o
granito, se transformara em uma terra de sombras. Philip
Gibbs, jornalista e romancista que servira como um dos
correspondentes oficiais da Grã-Bretanha durante a guerra,
testemunhou esse colapso de perto. “Eles foram ensinados a
acreditar que todo o objetivo da vida era tentar alcançar a
beleza e o amor, e que a humanidade, que progredia rumo à
perfeição, havia matado o instinto animal, a crueldade, a sede
de sangue e a lei primitiva e selvagem da sobrevivência com
unhas e dentes, bastão e machado”, escreveu ele. “Toda a
poesia, arte e religião pregaram esse evangelho e essa
promessa. Agora, aquele ideal estava quebrado como um vaso
de porcelana atirado ao chão”.120
A IMAGINAÇÃO MORAL
Um evangelho falsificado, mito falso, criou uma cacofonia de
desespero no Ocidente. Contudo, dois amigos e autores se
recusaram a sucumbir a essa tempestade de dúvidas e
desilusões. Fortalecidos pela sua fé, proclamaram para toda a
sua geração — e a nossa — um Mito Verdadeiro sobre a
dignidade da vida humana e sobre o seu relacionamento com
Deus. Contra todas as expectativas, suas obras seriam
responsáveis por cativar e inspirar inúmeros leitores de todas
as culturas e partes do mundo.
O que explica essa influência duradoura? Como criadores de
mitos, eles criam novos mundos. Eles inventam novas línguas.
Eles nos transportam para reinos de densa escuridão e beleza
inesquecível. Sua imaginação mítica, no entanto, explica essa
influência apenas parcialmente.
Como veremos, é a sua imaginação moral que exerce poder
inigualável: a afirmação de que cada pessoa se encontra em
uma batalha épica entre a Luz e as Trevas. Nos mundos de
Tolkien e Lewis, as escolhas dos fracos são tão importantes
quanto as dos fortes. Nestes mundos, não somos abandonados
como órfãos, pois há uma força da Bondade sempre pronta a
nos ajudar. Neles, encontramos Gandalf, o Cinzento, o melhor
e mais sábio dos magos, envolvido em uma luta extraordinária
contra a Sombra que ameaça a Terra Média; e Aslam, o temível
Leão, que pagará o preço que for para resgatar Nárnia da “força
do mal” que a invadiu.
A grande conquista de Tolkien e Lewis foi a criação de
figuras míticas e heroicas que, ao mesmo tempo, se adaptam a
nossas vidas concretas e comuns. Por meio delas, somos
desafiados a examinar nossos desejos mais profundos,
expulsar nossas dúvidas e a nos juntarmos na luta contra o
mal. Pois em sua voz está o aviso: o chamado para “fazer o que
está em suas mãos”, custe o que custar. Na presença dessas
personagens está a força: a graça para “deixar de lado o pesar e
o medo”, uma graça acima de qualquer esperança.121 São
esses os grandes temas que dominam as suas obras e
continuam a encantar gerações de leitores.
Em O Senhor dos Anéis, é Gandalf quem convoca os homens
à batalha, cuja presença exige uma resposta do coração. “‘E
agora’, disse o mago, virando as costas para Frodo, ‘a decisão
está em suas mãos. Mas eu sempre o ajudarei’. Ele colocou a
mão no ombro de Frodo. ‘Eu o ajudarei a carregar este fardo,
Frodo Bolseiro, enquanto couber a você carregá-lo. Mas
devemos fazer algo, logo. O Inimigo se aproxima’”.122
Em As Crônicas de Nárnia, é a voz de Aslam que deve ser
considerada como nenhuma outra, uma voz que enche todas as
almas de medo ou satisfação. “Aslam sacudiu a cabeça felpuda,
abriu a boca e proferiu uma única nota longa; não muito alta,
mas cheia de poder. O coração de Polly deu um salto; só podia
ser um chamado, e, fosse quem fosse que o ouvisse, desejaria
obedecer-lhe e (mais ainda) encontraria meios para atendê-lo,
não importando quantos mundos se interpusessem".123
capítulo
O REALISMO DA FANTASIA
Por mais importantes que sejam esses temas nas obras de
Tolkien e Lewis, não podemos esquecer o fato de que fazem
parte de uma narrativa de guerra física brutal. Nárnia e a Terra
Média são mundos completamente envolvidos em conflitos
violentos — assim como estava o mundo de seus autores
durante os anos de 1914 a 1918. Apesar de serem
considerados romances, não há nada de romântico nas cenas
de sofrimento descritas ao longo destes livros.
A quantidade de refugiados foi uma das características que
mais definiu a guerra. Paris sofreu um êxodo em massa de civis
após o primeiro bombardeio que atingiu a cidade em agosto de
1914. Em setembro, cerca de 700 mil pessoas haviam deixado
Paris, das quais 220 mil eram crianças com menos de 15
anos.65 Em outubro, depois que os alemães chegaram ao porto
de Ostende, na Bélgica, quase todo o país ficou sob ocupação
alemã. Dezenas de milhares de refugiados fugiram para a
Inglaterra. Thomas Hardy escreveu:
Então acordei; e eis que diante de mim estavam
Aqueles de quem ouvimos falar, mas pálidos e cheios de medo;
Eles vieram de Bruges, da Antuérpia e de Ostende...
Com telhados destruídos, ardendo em chamas.66
Os refugiados continuaram chegando das cidades, vilas e
aldeias da Europa até o fim da guerra; o Exército Britânico e o
Exército Americano encontraram milhares deles durante a
enorme ofensiva de primavera alemã, em 1918. Por isso,
Tolkien incluiu cenas de refugiados aflitos em suas obras. Eles
aparecem na fuga de Tuor e sua família, que escaparam da
cidade destruída, em “A Queda de Gondolin”. Eles são os
moradores forçados a abandonar a Cidade do Lago pela morte
de Smaug, em O Hobbit. Em O Senhor dos Anéis eles são o povo
de Westfold — “velhos e jovens, crianças e mulheres” — que se
escondem nas cavernas do Abismo de Helm.67 Eles também
foram representados pelos desesperados habitantes de Minas
Tirith, que escapam em caravanas para as colinas do sul antes
da Batalha dos Campos de Pelennor.68
Em O Retorno do Rei, lemos sobre a feroz luta existencial
entre as forças de Mordor e o exército de Gondor. Essa é a
grande batalha desta grande e cruel guerra e seus mortos
foram tantos que não puderam ser contados. Ela deixou os
vitoriosos tão “exaustos, que não conseguiam sentir alegria,
nem tristeza”.69 Em seu relato sobre a Batalha dos Campos de
Pelennor, Tolkien poderia estar descrevendo a terra de ninguém
no Somme:
Então, o sol enfim se pôs atrás do Mindolluin e encheu o céu com
um grande incêndio, de modo que as colinas e montanhas ficaram
como que tingidas de sangue; o fogo brilhava no rio e a grama de
Pelennor estava vermelha ao anoitecer. E, naquela hora, a grande
Batalha do campo de Gondor terminou; e não sobrou um inimigo
vivo na rota dos Rammas.70
A BUSCA HERÓICA
Os males da Grande Guerra criaram muitos céticos e
pacifistas nos anos que seguiram o encerramento do conflito.
Para essas pessoas, não poderia existir nada de heroico na
insanidade da guerra. No entanto, como veteranos desse
conflito, Tolkien e Lewis escolheram se lembrar não somente de
seus horrores e sofrimentos; eles escolheram se lembrar da
coragem, do sacrifício e das amizades que tornaram aquela
experiência suportável.
A recuperação do conceito medieval da busca heroica — e a
sua reinvenção para a mente moderna — é uma das conquistas
mais marcantes de sua obra. Seja em épicos como Beowulf,
seja em romances como Le Morte d’Arthur, de Thomas Malory,
Tolkien e Lewis encontraram na literatura medieval uma série
de temas e ideais dignos de relembrar.81 Mais do que isso, eles
acreditavam que esse gênero oferecia a tônica para o mal-estar
espiritual da era moderna. A opinião do biógrafo John Garth
sobre Tolkien também se aplica a Lewis: “Ele não só preservou
as tradições ameaçadas pela guerra, mas também as fortaleceu
para o seu próprio tempo”.82
Cada um dos episódios de As Crônicas de Nárnia está
inundado dessas tradições. Nárnia é um reino de reis e
rainhas, onde prevalece um código de honra, onde o título de
cavaleiro é conquistado ou perdido no campo de batalha. “Esta
é a maior vergonha e tristeza que poderia ter se abatido sobre
nós”, diz o príncipe em A Cadeira de Prata. “Enviamos uma
moça corajosa às mãos do inimigo enquanto ficamos para trás
em segurança”.83 Os heróis dessas histórias — tenham eles a
forma de príncipes, tenham a de ratos, tenham de Paulamas —
estão imbuídos dos ideais medievais de sacrifício e
cavalheirismo. “Senhor, minha vida está sempre ao seu dispor”,
promete Ripchip ao Príncipe Caspian, “mas a minha honra
pertence a mim”.84
Tolkien disse certa vez que sempre que lia uma obra
medieval, isso o estimulava a produzir uma obra moderna que
seguisse a mesma tradição. Foi exatamente isso que ele fez em
O Senhor dos Anéis.85 Como observou Verlyn Flieger, duas das
figuras heroicas centrais da história, Frodo e Aragorn,
carregam uma “rica herança medieval”.86 Entretanto, com
esses personagens, Tolkien nos apresenta dois tipos de heróis:
o homem extraordinário, o rei oculto determinado a lutar pelo
seu povo e recuperar seu trono; e o homem comum, o hobbit,
que, como muitos de nós, “não foi feito para demandas
perigosas” e prefere o conforto e a segurança do lar.
Em Aragorn, vemos as características básicas do cavaleiro
medieval: sua espada quebrada, lançada sobre a mesa do
Conselho de Elrond, seu amor secreto por Arwen e sua
liderança real do povo de Gondor. Contudo, é o caráter
cavalheiresco de Aragorn que tem maior apelo. Sua coragem e
ferocidade na batalha combinadas à sua misericórdia e
ternura, especialmente para com os fracos. Seu compromisso
com causas justas nunca se transforma em uma campanha
por glória pessoal. “Sou Aragorn, filho de Arathorn”, ele se
apresenta a Frodo e Sam. “Se por minha vida ou morte puder
protegê-lo, eu o farei”.87
À primeira vista, Frodo parece ter muito pouco em comum
com Aragorn. Ele é um órfão sem linhagem real. Por ser um
hobbit, tem baixa estatura e é discreto por natureza. Ele não é
um guerreiro. Ele vê o fardo do Anel com ressentimento e o
aceita quase por acidente. No entanto, Tolkien nos apresenta
um Frodo cujo caráter é aprofundado e desenvolvido pelas
provações que enfrenta. Ele vence seus medos e enfrenta a
morte contra os Cavaleiros Negros. Ele tem piedade do
desprezível Gollum. Ele luta contra a tentação constante do
Anel e reúne forças para prosseguir, surpreendendo até
Gandalf com a sua coragem. “Meu caro Frodo!”, ele exclama.
“Os hobbits realmente são criaturas fascinantes. Pode-se
aprender tudo sobre eles em um mês, mas, mesmo após cem
anos, ainda podem surpreendê-lo”.88
Após a Primeira Guerra Mundial, havia um profundo
ceticismo em relação ao “idealismo moralista” que
supostamente teria causado o massacre sofrido na Frente
Ocidental.89 O liberalismo moderno passou a considerar a
natureza combativa do homem como um mal e o cavalheirismo
como o “falso glamour” da guerra.90 Mesmo antes do
Iluminismo, é claro, muitos europeus (e americanos) já
desprezavam os valores associados ao mundo medieval. As
forças da democracia, do secularismo e do feminismo ajudaram
a desprezá-lo por completo.
Não é de admirar que alguns críticos acusem Tolkien e Lewis
de formarem a “retaguarda cultural da Idade Média”. Lee Rossi
escreveu: “Eles demonstram uma enorme nostalgia pela
estabilidade política e pela harmonia cultural da Idade
Média”.91 Na verdade, nenhum dos dois buscou um retorno
aos ideais políticos ou sociais da cristandade.92 No entanto,
eles viam sua tradição de valentia e cavalheirismo como prática
e fundamental. “Ela ensinava sobre humildade e paciência ao
grande guerreiro”, observou Lewis, “porque todos sabiam, por
experiência própria, o quanto ele precisava aprender aquela
lição”.93
Por isso, os personagens mais nobres em suas histórias
exibem gentileza, bem como força, qualidades incorporadas no
maior cavaleiro de Morte d’Arthur: “Foste o homem mais manso
que já jantou em um salão entre damas; e tu foste o cavaleiro
mais severo contra teu inimigo mortal, em quem lançaste tua
flecha”. Os heróis de Nárnia e da Terra Média não se esquivam
da terrível visão de membros amputados e crânios esmagados;
no entanto, também são homens e mulheres de grande
humildade e modéstia. O efeito pretendido pelos autores com
esses personagens era resgatar as virtudes medievais e torná-
las atraentes até mesmo para um público moderno.
Por que Tolkien e Lewis, ignorando as tendências mais
poderosas de sua cultura, embarcaram nesta tarefa? Parte da
resposta está nos campos de batalha da França. Foi lá, quando
eram jovens soldados, que encontraram essas virtudes — nos
oficiais, soldados e enfermeiros da Frente Ocidental. Foi lá, de
acordo com Tolkien, que surgiu a inspiração para o seu
personagem mítico mais querido. As façanhas dos hobbits
revelam como os “atos da vontade inesperados e imprevisíveis,
e os atos de virtude dos aparentemente pequenos, simples e
esquecidos nos lugares dos Sábios e Grandes” moldaram o
destino das nações.94
Rejeitando em igual medida os espíritos do militarismo e do
pacifismo, esses autores traçaram um meio-termo: um retorno
parcial ao ideal cavalheiresco. Somente uma sociedade que
defendesse esse ideal — em suas artes, literatura e instituições
— poderia ter esperanças de resistir às forças sombrias e
famintas que se opunham. A serena e pacífica Valfenda é,
talvez, uma visão do mundo como ele deveria ser, mas não
como de fato é. “Na verdade, há coisas com as quais o mundo
não consegue lidar”, disse Tolkien, “e das quais a sua
existência, entretanto, depende”.95 O ideal heroico presente em
suas histórias não é escapismo, conforme ambos os autores
explicaram, mas o único caminho realista disponível em um
mundo perigoso. Como explicou Lewis: “Esse ideal oferece a
única saída possível de um mundo dividido entre lobos que não
entendem e ovelhas que não são capazes de defender as coisas
que tornam a vida desejável”.96
O DOM DA AMIZADE
A busca heroica entendida por Tolkien e Lewis é diferente de
nossas noções modernas de heroísmo em, pelo menos, outro
aspecto: não é um esforço solitário. Os estudantes de guerra
compreendem essa verdade melhor do que a maioria. O
historiador Stephen Ambrose apresentou a milhões de leitores
a importância da amizade em tempos de guerra com o seu livro
Band of Brothers: Companhia de Heróis, base para a premiada
minissérie da HBO. É a história dos homens da Easy Company,
o 506.º Regimento de Infantaria Paraquedista, 101.ª Divisão
Aerotransportadora do Exército dos Estados Unidos, desde o
seu treinamento inicial, em 1942, até o fim da Segunda Guerra
Mundial. “Dentro da Easy Company, aqueles homens fizeram
os melhores amigos que já tiveram ou viriam a ter”, escreveu
Ambrose. “Eles estavam preparados para morrer uns pelos
outros; e, mais importante: estavam preparados para matar
uns pelos outros”.97
Esse fato sobre a experiência de combate foi tão relevante
para os soldados que lutaram em 1914 quanto para aqueles
que lutaram em 1939. A distância que separa a Primeira
Guerra do nosso tempo, a crueldade do conflito, a ambiguidade
dos seus objetivos, suas consequências desastrosas para a
civilização ocidental — todos esses fatores juntos nos impedem
de apreciar o profundo sentimento de amizade que moldou a
vida de milhões de jovens soldados.
Contudo, para Tolkien e Lewis, seu conhecimento pessoal da
comunhão dos homens que passam juntos pela experiência da
guerra é outra característica definidora de suas vidas literárias.
Como observou o biógrafo de Lewis, Alan Jacobs, a amizade é
um dos principais temas em As Crônicas de Nárnia.98 Em A
Cadeira de Prata, observamos não somente a crescente
amizade entre Eustáquio e Jill Pole, mas também a lealdade
teimosa de Brejeiro, conforme ele decide juntar-se aos perigos
da jornada: “Não desanime, Pole”, disse Brejeiro. “Estou
chegando, devagar e sempre... Agora, uma tarefa como esta —
uma jornada rumo ao norte logo no início do inverno, à procura
de um príncipe que provavelmente nem está lá, passando por
uma cidade destruída que ninguém jamais viu — será a coisa
certa. Se isso não for capaz de dar jeito em um sujeito, não sei
o que o fará”.99
Vemos os laços de amizade se desenvolvendo entre Aravis e
Shasta em O Cavalo e seu Menino, à medida que a guerra os
obriga a trabalhar juntos, substituindo lentamente seus
ressentimentos por uma admiração profunda e, finalmente, por
amor. “Sobre Aravis, Shasta estava, mais uma vez, errado”,
escreveu Lewis. “Ela era orgulhosa e podia ser muito dura, mas
era inquestionavelmente leal e jamais abandonaria um
companheiro, gostasse dele ou não”.100
Na verdade, pode-se dizer que a amizade substitui o
romance como a expressão predominante do amor nas
histórias de Lewis. Em As Crônicas de Nárnia, ela floresce entre
as crianças (os “filhos e filhas de Adão”); entre essas crianças e
os nobres narnianos (a miríade de animais falantes e criaturas
mitológicas); e, principalmente, entre Aslam, o grande Leão, e
todos os que o servem em amor e obediência.101 “Para os
Antigos, a Amizade parecia ser o mais feliz e humano de todos
os amores; a coroa da vida e a escola da virtude”, escreveu
Lewis. “Já o mundo moderno a ignora”.102 No mundo de
Nárnia — um reino devastado pela guerra —, seu papel
essencial para a felicidade humana é confirmado do começo ao
fim.
Lewis fez amizades assim pela primeira vez durante os anos
da guerra: com seu irmão, Warnie, a quem ele chamava de
“amigo mais querido e mais próximo” e em quem encontrou um
confidente que entendia os horrores do combate; com Laurence
Johnson, que lutou ao seu lado na Frente Ocidental e
compartilhava com ele o amor pela literatura e filosofia; e com
Edward “Paddy” Moore, que foi enviado para o Somme e com
quem fez um pacto de cuidar da família um do outro, caso um
deles fosse morto.103 Anos depois, ao refletir sobre a natureza
da amizade, Lewis lembrou-se da experiência da guerra para
explicar o que diferenciava o amor entre amigos de todos os
outros amores terrenos:
Cada passo da jornada nos testa para saber se nossos laços são
fortes e verdadeiros; e esses testes são testes que entendemos
perfeitamente porque nós mesmos estamos passando por eles.
Portanto, conforme se provam verdadeiros, vez após outra, nossa
confiança, nosso respeito e admiração crescem e se transformam
em um amor Apreciativo de um tipo singularmente sólido e
provado. Se, no início, tivéssemos prestado mais atenção a esses
laços do que à “natureza” de nossa Amizade, não teríamos nos
conhecido e amado tão bem. Não se encontra o guerreiro, o poeta, o
filósofo ou o cristão olhando-os nos olhos como se fossem uma
amante: é melhor lutar ao seu lado, ler, discutir e orar com ele.104
O RETORNO DO REI
Introdução
Uma Lembrança
1. The Story of the 91st Division (San Francisco: H.S. Crocker Co., Inc.,
1919), p. 19.
2. Ibid., p. 32.
ÍNDICE REMISSIVO