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Fragmentos de Uma Deusa

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FRAGMENTOS DE UMA

- DE USA -
A RepresentafCzO de Afrodite na Lirica de Safo

Giuliana Ragusa
PREFACIO

Je suis belle, 6 mortels, comme un reve de pierre.


BAUDELAIRE

Em abril de 1820, ao revirar as terras que ficavam pr6ximas de um


teatro antigo a procura de pedras para fazer um muro, Yorgos, um cam-
pones grego da ilha de Melos, descobriu uma magnffica escultura do
seculo II a.C. Comprada, roubada OU adquirida dos turcos pelos fran-
ceses por meio da diplomacia, conforme alegam os relatos contradit6-
rios, logo ap6s a sua exposi~a no acervo do Museu do Louvre, ela
tornou-se um fcone da arte ocidental, conhecida hoje como a Venus de
Milo (que e o nome da ilha em grego moderno).
A poesia lfrica grega do pedodo arcaico, como grande parte dos
sftios arqueol6gicos na Grecia, e um terreno arido, pouco atraente, e
quase nada revela - com a exc~ao dos raros tesouros, como por mi-
lagre, preservados em born estado - aos olhos distrafdos, desinfor-
mados ou sem treino. Assim, para formarmos uma parca ideia do que
pode ter sido a obra de Safo, a celebre poeta de Lesbos (c. 630 a.C.), e
necessario perscrutar detalhada e judiciosamente, como se faz neste
livro, al em dos fragmentos poeticos que possufmos, todos os possf veis
indfcios e testemunhos que a fortuna nos legou, lan~do mao nao
apenas das fontes literarias e dos recursos da filologia classica e teoria
liter:iria, mas valendo-nos tambem de estudos de diversas areas, tais
como os da arqueologia, hist6ria e religiao/mitofogia.
Este livro, portanto, e notavel por uma serie de razoes. Primeiro
porque Giuliana Ragusa, seduzida pela chamada "Ode a Afrodite", de

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PAULA DA CUNHA CORRtA
PREFACIO

Safo (Fr. 1 V), chegou a p6s-graduaqao em letras classicas vinda de outra


Infelizmente, a Afrodite de Safo nao teve sorte semelhante, porque
area de estudos literarios e, com enorme dedicaqao, entusiasmo e uma
a obra da poeta de Lesbos nos chegou em um estado muito mais frag-
incansavel busca da perfeiqao, em pouco tempo e de forma praticamente
mentario. Dos nave livros compilados pelos alexandrinos, sabemos que
autodidata, armou-se de todos os instrumentos necessarios para em-
apenas o primeiro continha 1.320 versos (o equivalente a 330 estrofes
preender a laboriosa tarefa de resgatar, dentre os fragmentos superstites
de Safo, a representaqao da deusa. saficas) dispostos em provavelmente 60 a 70 poemas. Embora OS outros
livros possam ter sido menores (o oitavo, por exemplo, contava com
Na primeira parte do livro, de forma clara e simples, mas sem
aproximadamente 130 versos), de tudo restou-nos um unico poema na
furtar o leitor de todas as dificuldades envolvidas, a autora desen-
fntegra, a celebre Ode a Afrodite (Fr. 1 V), preservada por Dionisio de
volve uma discussao sabre quest6es metodol6gicas e problemas da
Halicarnasso em seu tratado Sohre o arranjo das palavras, e uma duzia
definiqao do genera; examina as diversas abordagens e perspectivas
de leitura dos poemas, apresentando um quadro do contexto his- de textos mais substanciais dentre os 200 e poucos fragmentos menores.
t6rico e cultural dos versos de Safo, compostos num perfodo de im- Portanto, ao extrair de tais destroqos uma figuraqao da deusa, s6 pode
portantes relaq6es entre a Grecia e o Oriente. restar-nos·, coma diz a pr6pria autora, "uma imagem fragmentaria da
Depois, na segunda parte, com mao segura e criteriosa, Giuliana Afrodite ali representada".
recolhe, da analise dos 14 fragmentos de Safo em que Afrodite figura, Alem disso, sabre a Afrodite de Safo acumularam-se, com o passar
quatro aspectos: a sua geografia poetica e mftico-religiosa, o name e os dos seculos, espessas camadas de leituras. Nesse sentido, notavel tambem
epftetos da deusa, 0 cenario e, por fim, OS COntextos em que e invocada e o empenho de Giuliana em atentar o leitor, ao longo de seu estudo,
OU mencionada. Essas facetas de Afrodite nao sao contempladas abstra- para diversas interpretaqoes, antigas e modernas, que revestem os versos
tamente, mas, sempre iluminadas contra o pano de fundo da tradiqao de elementos alheios a sua poetica. E se a autora resiste ao impulso de
poetica em que Safo se insere e com a qual dialoga, elas sao comparadas restaurar-nos uma figura completa da Afrodite de Safo, nao e tanto pela
com representaq6es da deusa em outros autores e generos, particular- afeiqao que os amantes da poesia grega arcaica tern ou acabam adqui
mente com as da epica homerica, dos poemas hesi6dicos e dos tres Hinos rindo por fragmentos e imagens lacunares ou trincadas, cujas cicatrizes
homericos a ela dedicados. parecem conferir-lhes vida e realidade, mas, sobretudo, por um rigor
Ao se deparar com estilhaqos de marmore, papiros carcomidos e cientffico e o desejo de nao cercear a imaginaqao dos leitores, ap6s
rnanuscritos corruptos, e dificil resistir a tentaqao de pretender recompor prover-lhes com toda a informaqao que lhes possa ser util.
o todo original. Assim, desde a sua descoberta, a Afrodite de Melos sus- Por fim, niio se pode deixar de assinalar a relevancia da publicaqiio
citou inumeras hip6teses de reparos e interpretaq6es, principalmente dos deste trabalho, que, embora defendido coma dissertaqao de mestrado,
braqos perdidos, para os quais foram sugeridas diversas poses. Coube em virtude da rara maturidade e diligencia da pesquisadora, e mais pro
a Felix Ravaisson, o arque6logo responsavel pela restauraqao da estatua priamente uma tese de doutoramento, nos velhos e bans padroes de exce-
cm 1871, o trabalho de corrigir as intervenqoes sofridas, removendo as lencia academica. Este livro oferece ao leitor brasileiro, alem de uma
partcs adicionadas a estatua e, contra 0 costume de sua epoca, exibi-la s6lida base para a leitura dos poemas de Safo, visoes inovadoras e exce-
quase da forma coma foi encontrada na ilha de Melos. Os unicos acres- lcntes traduqoes de uma seleqao de fragmentos que, mesmo em rufnas,
cimos que Ravaisson admitiu, e que nela ainda hoje se conservam, sao compocm um dos mais belos monumentos da poesia ocidental.
.1 cxtrcmidade do nariz, o labia inferior, o dediio dope direito e detalhes
do drapcjado.
Paula da Cunha Correa
lNTRODU\:AO

lntitulado Fragmentos de uma deusa: a representar;ao de Afrodite


na lirica de Safo, este livro consiste no estudo da personagem divina
como a concebe a poeta de Lesbos. Para tanto, concentra-se em um
corpus definido a partir de um criteria: a presen<ra textual de Afrodite
nos poemas. Assim, com base na edi<rao de Eva-Maria Voigt, Sappho
et Alcaeus: fragmenta (1971), esse corpus se comp6e de 14 fragmentos
lfricos, a saber: 1V,2 V, 5 V, 15 V, 22 V, 33 V, 73a V, 86 V, 96 V, 102
V, 112 V, 133 V, 134 Ve 140 V.
A designa(faO "fragmentos" revela ja um dos muitos desafios que
ccrcam este trabalho: o serio comprometimento da integridade ma-
terial dos textos de Safo. Esse e um problema inerente a lfrica grega
a rcaica, que, devido a causas e circunstancias variadas, sofreu danos,
mutila<r6es, redu<f6es e corrup<f6es ao longo de sua conturbada trans-
missao. Diante disso, o titulo do trabalho explica-se claramente: se o
objeto no qua! a personagem divina Afrodite esta representada se
cncontra em fragmentos, a compreensao dessa representa(faO sera,
incvitavelmente, fragmentaria.
A ideia do fragmentario, do estilha<rado, do lacunoso perpassa, por-
l an to, todo este estudo, pois nao se limita apenas a poesia safica, mas
<Hinge igualmente outras areas que a cercam, gerando novas desafios
rclativos: 1) as dificu)dades de abordagem e de defini(faO da !irica grega
antiga; 2) ao precario conhecimento que se tern da Grecia arcaica e, nota-
d.1mcnte, da Lesbos de entao; 3) a pouca informa(faO sabre a sitUa(faO
d.1 mulhcr em ta! contexto s6cio-hist6rico e cultural; 4) aos dados desen-
contrados c historicamente nao comprovados da "biografia" de Safo;

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GIULIANA RAGUSA INTRODU<;:AO

5) aos estere6tipos e as lendas em torno da poeta e de suas carn;oes; 6) relac;oes interessantes nao apenas com outras imagens poeticas da divin-
as grossas e viciadas camadas de leitura que se sobrepoem aos poemas dade, mas tambem com elementos dos seus cultos e dos seus mitos, hem
tornados, assim, quase invisf veis; 7) as dificuldades de estabelecer um a como da percepc;ao que dela tinham os antigos; e a quarta, porque o
visao organica da literatura e da tradic;ao literaria gregas; 8) as obscuri- estudo do binomio Safo-Afrodite abre um panorama estimulante que
dades quanto a circulac;ao da Hrica que chamamos "literaria", masque nao pode ser ignorado e que pode ser sintetizado em outro binomio,
foi produzida em um mundo arcaico eminentemente oral; 9) a enorme Grecia arcaica-Oriente.
bibliografia crftica produzida no decorrer de seculos de estudos classicos. Ja esta sinalizado, portanto, o tipo de abordagem aqui adotada:
Eis uma sfntese da realidade enfrentada por aquele que se dedica a uma abordagem que se concentra nos fragmentos de Afrodite dispersos
Hrica grega arcaica. Para uns, decerto, o quadro e desolador. Afinal, na lfrica safica, mas que procura estar atenta a outras representac;oes
como e possfvel trabalhar com cacos de poemas? Para outros, dentre poeticas, miticas e cultuais da deusa, bem como a elementos extra-
OS quais me incluo, ele e, sim, desolador e potencialmente frustrante,
literarios pertinentes a analise interpretativa dos textos do corpus. Dessa
mas, ao mesmo tempo, e a promessa de uma empreitada desafiadora com maneira, o que se pretende e articular uma leitura tao vertical e ampla
da Afrodite de Safo quanta possf vel.
um sabor de aventura, pois mergulhar em tal quadro e percorrer um
Como se organiza este trabalho? Na intenc;ao de estruturi-lo se-
trajeto cheio de riscos, desvios, descaminhos, abismos e, eventualmente,
gundo a metodologia e as posic;oes que o norteiam, ele foi dividido da
pequenas conquistas e descobertas recompensadoras.
seguinte maneira: a parte I, intitulada "Presenc;a de Safo no cenario his-
Alem de todos os desafios que a lfrica grega arcaica oferece a quern
t6rico-cultural da Grecia arcaica", propoe-se a discutir os desafios an-
dela se aproxima, no contexto academico brasileiro ha mais um a ressal-
teriormente comentados, a fim de, ao expo-los, trac;ar um panorama crf-
tar: a escassa produc;ao crftica a seu respeito, ao contrario do que acon-
tico minimamente compreensfvel do cenario hist6rico-cultural que cerca
tece no exterior - sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. No caso
e permeia a poesia de Safo. Feito isso, a passagem para a analise da pre-
espedfico de Safo, ha algumas traduc;oes, mas apenas uma obra de es-
senc;a de Afrodite nos fragmentos saficos sera sustentada, espero, por
tudo publicada, que seri oportunamente referida. Assim, outro desafio
um entendimento necessario do objeto deste estudo: a poeta de Lesbos,
se anuncia: passar pela sempre crescente fortuna critica de Safo em
sua Hrica ea personagem divina Afrodite nela representada. Essa etapa
llngua estrangeira - para nao falar das edic;oes e traduc;oes de seus frag-
contem tres capitulos.
mentos - e buscar travar com ela um dialogo equilibrado de modo a
A parte II, "Presenc;a de Afrodite na lfrica de Safo", concentra-se
construir uma leitura independente, mas nao autocentrada.
no estudo da representac;ao de Afrodite em Safo. Na intenc;ao de com-
Dito isso, ca be indagar: por que estudar a representac;ao de Afrodite
preender e realc;ar a especificidade de tal representac;ao, os cinco capf-
na lfrica de Safo? Ha pelo menos quatro razoes: a primeira, porque
tulos dessa eta pa perseguem, a partir de uma abordagem interdisciplinar
diante da condic;ao preciria dos textos, o estudo tematico parece ser o
que privilegia a analise interpretativa dos fragmentos, quatro aspectos
caminho mais certo para uma visao minimamente integralizadora tan to
da presenc;a da deusa nos textos: primeiro, sua geografia insular mitico-
da poesia safica e da deusa ali representada quanto da tradic;ao literiria
rcligiosa e poetica; segundo, o nome e os epitetos atribuidos a Afrodite;
a qua! a poeta pertence; a segunda, porque Afrodite predomina no que
tcrceiro, os cenarios nos quais ela se insere; e quarto, se a deusa recebe
restou da poesia de Safo e, muito embora nela nao seja a unica deidade
lll11 apclo OU See mencionada peJa VOZ dos poemas.
rcfcrida, parcce ter sido privilegiada; a terceira, porque as caracterfsticas
Finalizadas essas partes, cujos capitulos se pretendem conclusivos
da rcprcscntnc;no da dcusa conccbida pcla pocta suscitam uma serie de
cm si mcsmos, passo ao cnccrramcnto, chamado "lmagem em fragmen-
GIULIANA RAGUSA

cos". Aqui, volto a ideia que percorre todo o estudo, a do fragmento,


para refletir criticamente sobre o percurso trilhado e menciono um
grupo de fragmentos nao inclufdos no corpus por nao trazerem, tex-
tualmente, uma clara indca~o da presn~a de Afrodite, que, todavia,
nao seria descabida.
Seguem-se a Bibliografia e tres anexos. 0 Anexo 1 traz um quadro PARTE I
da translie~o do grego para o portugues; o Anexo 2, o texto grego
ca tradu~o dos fragmentos do corpus; e o Anexo 3, o texto grego ea
tradu~o de outros fragmentos de Safo integralmente citados ao longo
dos capftulos.
Esclare~o que todas as tradu~oes para a lfngua portuguesa incor- PRESENC::A DE 5AFO NO CENARIO
poradas ao trabalho, salvo quando indicado, foram feitas por mim. HIST6RICO-CUL TURAL DA GRECIA AR CAI CA

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