02 Revista+Hydra
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AFRICANOS ESCRAVIZADOS, PORTUGUESES DEGREDADOS,
E A ESCRITA HISTÓRICA DE TARCÍSIO MEDEIROS
Clivya Nobre1
Abstract: The purpose of this article was to investigate how the potiguar
historian Tarcísio Medeiros analyzed historiographically the phenomena
of compulsory migration of enslaved Africans and exiled Portuguese to Rio
Grande/Rio Grande do Norte and the contribution of these groups to the
population and cultural formation of this captaincy /state. The articles “O negro
na etnia do Rio Grande do Norte” (1980) and “Como fomos colonizados (por
degredados)?” (1984), both published in the Revista do Instituto Histórico e
Geográfica do Rio Grande do Norte (IHGRN). The methodology of qualitative
analysis of Medeiros’ writing was operationalized. It was possible to note that
the choices of approaching the sources, the demands of the institutions to
which the author was a part and the ideas that circulated among the peers
that integrated them influenced the historical interpretation adopted by him
and the result of his investigations.
1
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Contato:
clivyanobre703@gmail.com.
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Introdução
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O IHGRN, os pares e o projeto de identidade nacional
2
O grupo se formou, a partir do século XIX, em torno dos núcleos urbanos da região litorânea
da então província do Rio Grande do Norte, estando atrelado à aristocracia rural patriarcal
ligada ao cultivo em grande escala da cana-de-açúcar, à burguesia associada ao capital
comercial e industrial e ao profissionalismo liberal do bacharelado em Direito e Medicina.
3
Pedro Velho de Albuquerque Maranhão tinha formação em Medicina, mas atuou como jor-
nalista e professor de História no Atheneu Norte Riograndense. Além disso, exerceu diversos car-
gos políticos, como o equivalente a governador do estado e senador. Assim como os demais
entes dessa elite local, ele atuava simultaneamente na política e no meio intelectual. Foi o
fundador do Partido Republicano Norte-rio-grandense, ainda no período imperial, e esta orga-
nização política agrupava familiares, compadres, agregados e aliados da sua família (BUENO,
2015, p. 48), e tinha o periódico A República como o porta-voz da oligarquia na imprensa.
4
O próprio Pedro Velho esteve entre seus fundadores, assim como seu irmão Alberto Maranhão,
seu genro Augusto Tavares de Lyra, entre outros aliados, como Vicente de Lemos, avô de
Tarcísio Medeiros (IHGRN, 2023).
5
Apesar de não ter sido a primeira responsável pela escrita histórica norte-rio-grandense
(COSTA, 2017a, p. 549-550), a instituição inaugurou uma historiografia mais sistemática e con-
tínua sobre o estado (AZEVEDO, 2020, p. 8).
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O IHGRN e as produções presentes na sua revista são uns dos principais
objetos de pesquisa histórica no estado, devido à alta quantidade de publica-
ções nas suas mais de 50 edições, à sua disponibilidade em acervos digitais e à
sua relevância na produção de discursos sobre o Rio Grande do Norte ao longo
do século XX. Os artigos acadêmicos, as monografias, as dissertações, as teses e
os capítulos de livros publicados,6 em sua maioria, podem ser divididos em dois
grupos.7 O primeiro é composto por análises das narrativas construídas pelos
sócios na revista do IHGRN,8 sendo que alguns desses textos focaram em temas
específicos, como, por exemplo, povos originários,9 educação (CUNHA, 2020) e
sertão (SILVA, 2021). O segundo conjunto, por sua vez, abordou o aspecto patri-
monial e museológico da instituição10 e buscou listar e descrever o seu acervo.11
A maior parte dessas obras, especialmente as do primeiro grupo,
chegaram a conclusões similares: o IHGRN tinha metodologia cientificista
e sua escrita atendeu aos interesses da elite local, ao tecer uma origem e
uma identidade para o Rio Grande do Norte, posicioná-lo como relevante
para a história nacional e enfatizar as contribuições da instituição e de seus
sócios para a história do estado. As pesquisas privilegiam os aspectos mais
gerais e característicos da escrita na revista, mas as contribuições mais especí-
ficas de certos autores têm sido citadas tangencialmente,12 o que representa
uma lacuna historiográfica.
6
A escrita e os materiais do acervo do IHGRN foram utilizados em inúmeras pesquisas, porém,
meu levantamento se restringiu a aquelas em que o instituto em si foi o objeto da pesquisa.
Consultando as plataformas Scielo, Google Scholar, Lattes e o Repositório Institucional
da UFRN, identifiquei 30 títulos. Apesar de, provavelmente, alguns trabalhos não terem sido
encontrados, a amostragem analisada foi suficiente para suprir o objetivo de explicitar o esta-
do atual dos estudos sobre o IHGRN.
7
As exceções foram os artigos sobre a fundação do IHGRN (FERNANDES, 2012b; COSTA, 2020)
e sobre a participação do instituto nas festividades cívicas e monumentalização em Natal
(VIANA, 2019).
8
Nos artigos de Menezes (1996), Oliveira (2012), Fernandes (2016), Costa (2017b, 2018),
Silva (2020b), Santos (2020a) e Costa (2021a, 2021b), no capítulo de livros de Azevedo (2019),
nas monografias de Menezes (1997), Azevedo (2005), Mata (2005), Silva (2007) e
Dutra (2018), nas dissertações de Fernandes (2012c) Azevedo (2020), Cunha (2020) e
Silva (2021) e na tese de Costa (2017a).
9
Oliveira (2012) e Dutra (2018).
10
As monografias de Macedo (2005), Alcoforado (2014) e Silva (2020a), o capítulo de livro de
Santos (2020b) e o livro de Morais e Oliveira (2005).
11
Os livros de Mariz (1995) e Sobral (2017).
12
Uma exceção foi o artigo de Nobre (2021), sobre a escrita de Tarcísio Medeiros.
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Além disso, a historiografia do sodalício foi influenciada pela tradição
interpretativa ligada ao projeto de identidade nacional brasileiro, que surgiu
a partir do período Imperial, momento em que o Brasil foi posicionado
como herdeiro de Portugal, da colonização e da cultura considerada
“civilizada”, e quando a presença negra foi minimizada, assim como a indí-
gena. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi um dos principais
espaços de produção e socialização dessa perspectiva (GUIMARÃES, 2011;
1997), e a irradiou para suas congêneres, como o IHGRN, ao longo do período
republicano.13 Esses elementos foram disseminados pela elite intelectual poti-
guar em instituições estratégicas, como no Atheneu Norte Riograndense.14
Desse modo, existiu uma busca da elite política e intelectual em instituir
uma tradição historiográfica norte-rio-grandense, da qual Tavares de Lyra e
Câmara Cascudo foram os principais ideólogos e com a qual Tarcísio Medeiros
dialogou em seus artigos. Duas das principais bases dessa linha interpretativa
são a obra História do Rio Grande do Norte, escrita por Lyra em 1921, e a pu-
blicação homônima de Cascudo, de 1955. Em seu estudo, Tavares de Lyra
organizou a história do Rio Grande do Norte a partir da colonização portu-
guesa, com destaque para a iniciativa de povos europeus, como os holan-
deses (LYRA, 1921). Os primeiros nativos das terras potiguares tiveram papel
secundário, enquanto os negros quase não surgiram na narrativa.15 O autor foi
o primeiro a escrever um compêndio de história norte-rio-grandense.
13
No período da Primeira República, os historiadores no IHGB colaboraram na constituição
da História como disciplina atrelada a uma função social, política e pedagógica de incutir
nos discentes sentimentos nacionalistas e cidadãos (GOMES, 2009). Mesmo que estas carac-
terísticas fossem mais evidentes durante a Primeira República, a força dessa tradição historio-
gráfica e a influência desses espaços de produção e divulgação de conhecimento histórico
perduraram nas décadas seguintes, e as semelhanças das características delas com as da
história produzida na congênere norte-rio-grandense, o IHGRN, evidenciaram isto.
14
O Colégio Atheneu Norte Riograndense ofertou o Curso Normal a partir de 1892 para for-
mação de professores, e como uma etapa de estudos prévios (bacharelado em Ciências e
Letras), obrigatória para cursar o Ensino Superior. Os estudos de História Geral, do Brasil e do
Rio Grande do Norte eram parte basilar do programa do Curso. As obras indicadas como
leitura básica para referenciar o ensino dessas áreas foram escritas por Tavares de Lyra e
Câmara Cascudo, e contribuíram para disseminar a perspectiva histórica assumida por eles
e pela elite intelectual no estado (MORAIS, 2019). Desse modo, a pesquisa e o ensino foram
processos aliados no projeto de identidade potiguar.
15
Como discutido na dissertação de Francisco Silva sobre as ações político-intelectuais de
Tavares de Lyra (SILVA, 2012) e na análise presente na monografia de Lucélia Dantas sobre o
conteúdo da História do Rio Grande do Norte do autor (DANTAS, 2005).
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Já Câmara Cascudo16 esteve em diálogo com a estrutura discursiva
apresentada por Lyra, sua História do Rio Grande do Norte também destacou
a ação colonizadora. No entanto, esse autor foi ainda mais explícito em mi-
nimizar a presença e o legado de indígenas e negros na história e sociedade
potiguares (CASCUDO, 1955). Cascudo, Lyra e o próprio Tarcísio Medeiros es-
tiveram entre os principais disseminadores de uma visão do êxito colonial e
da ausência de povos originários no espaço potiguar (LOPES, 1998, p. 27-28),
ausência que se estendeu aos descendentes da África.
Cascudo defendeu a existência de um elemento étnico que deno-
minou como “sertanejo”, apresentado como a representação da popu-
lação norte-rio-grandense e originado pela mestiçagem entre brancos,
indígenas e, de modo quase invisibilizado, negros. Esse arquétipo foi carac-
terizado pela pele em tons pardos e pela ligação cultural, identitária e de
costumes com o legado branco, europeu e “civilizado”, ou seja, como um
símbolo da vitória da colonização. Os traços de ascendência africana nos
seus aspectos culturais foram ocultados por Cascudo.17 Na obra de Tarcísio
Medeiros, são notáveis as ressonâncias dessa leitura da sociedade potiguar.
16
A produção literária e de análise histórica e folclórica de Câmara Cascudo tem sido vas-
tamente analisada por pesquisadores de diversas áreas, resultado da relevância das inter-
pretações traçadas em seus escritos para o arcabouço histórico e cultural potiguar. Entre as
investigações, destacam-se as teses de Gico (1998) e Galvão (2010), as dissertações de Sales
Neto (2009), Costa (2011) e Fernandes (2012a), e a monografia de Barros (2018).
17
Isto foi perceptível na narrativa presente em História do Rio Grande do Norte, e identifi-
cado por Salatiel Gomes ao analisar a obra Vaqueiros e Cantadores, também de autoria
de Câmara Cascudo (GOMES, 2008), ou seja, era traço central na perspectiva histórica
defendida pelo autor.
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Tarcísio Medeiros, 2023). De acordo com levantamento feito nas revistas do
Instituto, Tarcísio Medeiros foi redator da Revista do IHGRN durante as décadas
de 1960, 1970 e 1980, e publicou 13 artigos nesse interregno, produção pro-
fícua em comparação com os demais sócios do período.
Além disso, era neto do intelectual e político potiguar Vicente de Lemos,
intimamente ligado a Pedro Velho e à oligarquia Albuquerque Maranhão
(FERREIRA, 2023). Medeiros mobilizou o prestígio promovido por esse grau de
parentesco em diferentes ocasiões, como na escrita de artigo sobre os elos
entre seu ancestral e Augusto Tavares de Lyra (NOBRE, 2021). Ou seja, ele es-
teve em posição estratégica na elite intelectual norte-rio-grandense. A par-
ticipação de Tarcísio Medeiros na produção do Ensino Superior de História
no Rio Grande do Norte também garantiu o destaque do autor no meio
intelectual local.18
O professor Tarcísio Medeiros atuou no Curso de História do início
das aulas, em 1957, até sua aposentadoria, em 1991 (NOBRE, 2022a, p. 97), e foi
caracterizado como um dos docentes precursores.19 Em meados das décadas
de 1980 e 1990, ocorreu uma série de transformações no Ensino Superior po-
tiguar,20 que resultaram na impressão estabelecida na memória institucional
18
O atual Curso de História da UFRN foi, inicialmente, uma das graduações da Faculdade de
Filosofia de Natal (FAFIN), instituição criada por iniciativa dos integrantes da Associação de
Professores do Rio Grande do Norte (APRN), liderados pelo seu presidente Joaquim Coutinho.
A partir de 1955, dois anos antes do início das aulas, ele já se mobilizava para se aliar a outros
intelectuais na constituição da nova faculdade. Tarcísio Medeiros estava entre alguns desses
primeiros convidados (NOBRE, 2023, p. 2), o que demonstrou seu bom posicionamento na
rede de sociabilidade dos letrados. A partir desse convite, Tarcísio Medeiros passou a integrar
os quadros do Curso de História da FAFIN, posteriormente incluído na UFRN.
19
A Geração dos Precursores foi um grupo composto pelos professores fundadores do cur-
so e lentes das cadeiras/disciplinas que compuseram suas primeiras grades curriculares.
Seus participantes eram caracterizados pela formação em Direito, pela participação na
imprensa local, pela experiência no Ensino Secundário, principalmente no Atheneu Norte-
Riograndense, e pela passagem por cargos burocráticos e políticos (NOBRE, 2023, p. 5-6).
Com exceção da atuação prévia no Ensino Básico, Tarcísio Medeiros teve sua trajetória de
acordo com esse perfil.
20
Essas mudanças foram consequência de medidas federais pela modernização das univer-
sidades públicas brasileiras, e, entre elas, esteve a exclusividade do concurso público para
o ingresso na docência superior e a vantagem de professores com título de Doutorado ao
ocupar os postos de trabalho. Diante desse cenário, formados em universidades externas ao
Rio Grande do Norte passaram a compor os quadros do curso da UFRN. Essa fase foi mar-
cada por tensões entre os novos docentes e aqueles que lecionavam no curso antes deles
(NOBRE, 2022a, p. 106-108). Estes eram ex-alunos dos precursores e, em sua maioria, tinham re-
lações de amizade e de conexão de legado com seus antigos mestres. Apesar disso, tiveram
a tendência de considerar os precursores como “professores tradicionais”, com perspectiva
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do Curso de História da UFRN de que o legado de professores precursores,
como Tarcísio Medeiros, não teve ligação significativa com as características
do curso após 1990 (NOBRE, 2022b, p. 147-148). Porém, como produtores desse
espaço de ensino e formadores de parte dos docentes que atuaram em sua
trajetória, os precursores influenciaram a construção de conhecimentos nesse
curso ao longo de suas primeiras décadas (NOBRE, 2023).
Investigar a perspectiva histórica adotada por um ente desse grupo,
Tarcísio Medeiros, foi um meio para a compreensão da consolidação de seu
ponto de vista na consciência histórica coletiva potiguar. Além disso, as rela-
ções familiares de Tarcísio Medeiros o colocavam numa posição privilegiada
enquanto historiador. Seu filho, Ivoncísio Meira de Medeiros, encontrou uma
gama de documentos administrativos da Coroa Portuguesa em suas pes-
quisas no Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal, e enviou có-
pias ao seu pai. Numa realidade sem as bases de dados digitais, o acesso a
essas fontes estava restrito a poucos estudiosos. Medeiros publicou a docu-
mentação oficial analisada no artigo por meio de longas citações, de modo
a facilitar o acesso a demais pesquisadores.
Ele analisou Cartas Régias, as correspondências trocadas entre os
Capitães-Mores da Capitania do Rio Grande e a Metrópole, nos séculos
XVII e XVIII, e os documentos direcionados aos capitães donatários, como
Requerimentos de Sesmarias, Cartas de Doação, Cartas Forais e Cartas de
Mercês de Minas, Ouro e Prata, em “Como fomos colonizados (por degre-
dados)?” e em “O negro na etnia do Rio Grande do Norte”. Além disso, dados
estatísticos também foram salutares na pesquisa histórica do autor. Foi notável
a valorização que Tarcísio Medeiros deu para as fontes administrativas.
O intelectual tinha a perspectiva de fonte oficial como um retrato do
passado, e a influência das circunstâncias, instituições e grupos em sua pro-
dução raramente era levada em conta em suas investigações. Esse posicio-
namento acabou por privilegiar o ponto de vista dos grupos sociais envolvidos
histórica elitista e pouco crítica, em certa medida pela influência das pressões dos colegas
vindos de fora. As relações entre as diferentes gerações docentes do Curso de História da
UFRN e os precursores foram abordadas de maneira mais aprofundada em (NOBRE, 2022a) e
(NOBRE, 2022b).
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na produção desses vestígios, ou seja, a elite político-intelectual, nos resul-
tados de suas pesquisas. A análise isolada da documentação oficial e ins-
titucional endossou o ponto de vista do conquistador, produtor das fontes,
sobre os acontecimentos (PUNTONI, 2002, p. 79), característica que influenciou
as conclusões obtidas pelo autor mediante a análise das fontes e as suas inter-
pretações históricas nos artigos em questão.
21
“As migrações, no Brasil, tiveram um caráter acentuadamente compulsório e os migrantes
foram vistos como sujeitos expropriados e, por isso, forçados a uma peregrinação constante
na busca de trabalho” (BRUMES; SILVA, 2011, p. 124), o que também foi notável nos processos
de migração forçada, que levou à constante apresentação de fatores econômicos nas análi-
ses dos fluxos migratórios. Porém, especialmente depois da década de 1990, tornaram-se mais
frequentes as análises que pautaram fatores econômicos, sociais e pessoais e suas interrela-
ções (BRUMES; SILVA, 2011, p. 125).
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As causas econômicas também foram enfatizadas pelo autor ao ana-
lisar o aumento do deslocamento de escravizados ao Rio Grande do Norte
no século XIX. De acordo com ele, a economia local se modificou, o que
provocou o aumento de negros na população, mas esse processo foi mos-
trado como algo efêmero e sem consequências demográficas do século
seguinte em diante:
O surto econômico maior da cana-de-açúcar na região do agreste-
-litoral foi até 1870, quando cedeu lugar à agricultura do algodão no
sertão do Seridó, isto pela maior demanda dos mercados europeus
em plena cotton famins da segunda etapa da revolução industrial.
Portanto, marca o ano de 1870 o maior índice de população negra
no Rio Grande do Norte, porque daí para diante cai a importação
humana, a renovação dos estoques não é feita, a miscigenação
diminui e as manumissões espontâneas, pela descessidade do negro,
vão anteceder a lei áurea (MEDEIROS, 1980, p. 93).
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revista crescente maioria de brancos e pardos. [...] A progressiva transfor-
mação para o fenotípico alvarinto será o resultado final (MEDEIROS,
1980, p. 96-97).
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De acordo com os parâmetros estabelecidos pelo autor, em diálogo
com Luschan e Haddon, apenas poderiam ser considerados negros aqueles
que tivessem um conjunto de elementos fenotípicos específicos de pele,
cabelos, nariz, lábios e cabeça. A categoria dos que o autor chamou de
verdadeiros negros, nesses critérios, estaria limitada a um grupo tão restrito
que excluiria parte considerável dos indivíduos socialmente reconhecidos
como afros na realidade brasileira. Tarcísio Medeiros não incluiu em sua aná-
lise as circunstâncias em que essas teorias foram criadas. Luschan e Haddon
desenvolveram suas pesquisas dentro do cientificismo racial que predominou
no século XIX.22
Persistiram durante décadas as influências dessas teorias raciologistas
no senso comum e até mesmo na visão de grupos intelectuais sobre o ser
negro, representação imaginada marcada por estereótipos. Uma conse-
quência disso foi a dificuldade de parte da sociedade em admitir a legitimi-
dade da identidade dos que rompem com esses clichês, além da tendência
em apontá-los como “aculturados”, “mestiços” e sujeitos sem “pureza”
suficiente para se identificarem com a cultura negra (CAVIGNAC, 2003,
p. 10). Ao descrever as irmandades negras potiguares, o historiador optou
por interpretar as manifestações dos negros pelo prisma da desterritoriali-
zação (SANTOS, 2006, p. 222), ou seja, ele buscou representar os africanos
que vieram ao Rio Grande do Norte, e seus descendentes, como um grupo
que perdeu os hábitos e as práticas pertencentes aos territórios de que foram
provenientes para assumir costumes eurocêntricos:
Sabe-se das várias formas de reações contra-aculturativas dos negros.
Algumas violentas, ruidosas, como as rebeliões de negros muçulmanos
na Bahia, os quilombos, os crimes. E outras silenciosas, mais de fun-
do psicológico, como o banzo, os suicídios, as fugas ou refúgio nas
regiões. As irmandades ou Confrarias religiosas [do Rio Grande do
Norte] podem ser consideradas sob o segundo aspecto. [...] Recebeu
a Irmandade, em Portugal, o selo da Real Mesa da Consciência e
22
A Escala Cromática de Luschan foi criticada por sua subjetividade e por, frequentemente,
ter diferentes resultados para o mesmo indivíduo (COR/RAÇA?, 2016). Já Haddon esteve no
grupo dos cientistas que se posicionaram contra o projeto genocida nazista, mas que tam-
bém compartilhavam da visão eugenista de que existia certa hierarquia biológica na qual
os negros estavam em desvantagem (MUNARETO, 2017, p. 51-52). Estas questões não foram
mencionadas no artigo de Medeiros.
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revista da Ordem. [...] O costume não era propriamente brasileiro. Veio da
Europa, onde em 1552, já havia com iguais encargos na cidade de
Lisboa (MEDEIROS, 1980, p. 99-100).
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ao projeto colonial, teve sua existência no Rio Grande do Norte negada no
artigo, pois seria uma prova da relevância da população africana e de sua
identidade na formação do estado, e de sua autonomia em relação a Portugal.
A minimização e o apagamento da participação de grupos não brancos
na sociedade norte-rio-grandense foi um elemento característico da escrita de
Tarcísio Medeiros. Na visão do autor, o Rio Grande do Norte não tinha nem in-
dígenas e nem negros verdadeiros.23 Existia apenas o branco e o pardo, e este
último poderia não ter a pele clara como os brancos, mas compartilhava dos
mesmos costumes e da mesma cultura. Assim, ele argumentou em prol do
sucesso da colonização, de uma sociedade potiguar homogênea, sem diver-
sidade. Medeiros concluiu o artigo com as seguintes palavras:
Assim, pelo visto, na verdade, a contribuição da raça negra para for-
mação da etnia no Rio Grande do Norte, foi mínima: Pouco deixou
de seus caracteres antropológicos, não representou, como escravo,
elemento de importância na economia regional, e não legou mani-
festação cultural de valor.
23
A escrita de Tarcísio Medeiros na Revista do IHGRN sobre a presença indígena no Rio Grande
do Norte foi investigada por Nobre (2021).
24
Em 1978, dois anos antes da publicação do artigo de Medeiros, ocorreu, em São Paulo,
um evento que marcou o surgimento do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil.
Foi um ato público que reuniu lideranças negras de todo país e fundou o Movimento Negro
Unificado (MNU). A organização teve como principal objetivo a transformação da socie-
dade em prol de uma democracia racial verdadeira, e, entre outras demandas, prezava
pela mudança do lugar do negro na história do Brasil e pela valorização de sua cultura.
Uma das principais conquistas do MNU, demanda que já existia desde, pelo menos, 1971,
foi a instituição do Dia da Consciência Negra na data de 20 de novembro, efeméride da
morte de Zumbi dos Palmares, líder da resistência à escravidão em um dos maiores quilom-
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apresentada por eles, o protagonismo da história afrodescendente saiu das
mãos dos colonizadores e brancos e passou aos escravizados em luta pela
própria liberdade (PEREIRA, 2010, p. 98-102). Nesse discurso, os quilombos dei-
xaram de representar a insubordinação violenta à ordem vigente e se tor-
naram um ato legítimo de resistência.
É provável que a crítica contundente de Tarcísio Medeiros ao ar-
tigo jornalístico que apontou a presença de quilombos no Rio Grande do
Norte, assim como a representação negativa desse modo de resistência
à escravidão, e a busca por dar protagonismo ao legado português,
inclusive ao descrever iniciativas coletivas negras, foram parte da reação
de Medeiros, e da elite a que pertencia, a essas mudanças na interpre-
tação da história negra no Brasil. As narrativas históricas estavam em disputa,
e Medeiros se colocou contra a alternativa proposta pela nova mobilização
negra e a favor da herança colonial e eurocêntrica. A longevidade dessa
visão distorcida da identidade negra no estado provavelmente foi resultado
da força e da influência dos discursos da elite intelectual, na qual pensadores
como Tarcísio Medeiros estiveram integrados.
A historiografia norte-rio-grandense tradicional foi construída por inte-
grantes das elites locais, em instituições como o IHGRN, e declarar extinção
dos povos originários e subestimar o impacto da escravidão de negros no
sertão era parte de um projeto de história aliada à glorificação da coloni-
zação. As análises feitas por esse grupo foram profundamente marcadas por
esse objetivo (CAVIGNAC, 2003, p. 2). Além disso, ao afirmar que os povos
originários desapareceram, que a escravidão foi mais suave e que o racismo
não existiu no Rio Grande do Norte, o autor invalidou qualquer movimento ou
ação social que buscasse diminuir a desigualdade e reparar os danos do ge-
nocídio dos indígenas e da escravidão dos negros no estado.25
bos da história brasileira. Desse modo, o centro das celebrações da negritude nacional
deixou de ser o 13 de maio, a data da Abolição da Escravatura, mudança que teve um
significado simbólico.
25
O historiador norte-rio-grandense Muirakytan Macêdo abordou a construção historiográfica
sobre a presença indígena e negra no processo de ocupação colonial do sertão do Rio
Grande do Norte e suas consequências em sua dissertação de mestrado (1999). Além disso,
ele aprofundou a abordagem da questão em artigos (2000, 2008, 2011) e em capítulos de
livros (2013, 2014).
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Os degredados no Rio Grande do Norte, na perspectiva de Tarcísio Medeiros
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mandante Peres Mendes de Gouveia, foram um grupo colocado como
protagonista da narrativa, heroico e martirizado em nome da supremacia por-
tuguesa. Em outro momento do mesmo artigo, Tarcísio Medeiros explicou a re-
construção do Rio Grande após o período da Ocupação Holandesa, através
do relato das ações e qualidades de Antônio Vaz Gondim:
Foi Antônio Vaz Gondim, o primeiro Capitão-Mor nomeado por D.
Affonso VI, em janeiro de 1656, para o Rio Grande. Na sua administração,
podemos dizer que a Capitania começou a povoar-se. Entretanto
continuava em grande penúria [...] Antônio Vaz, como primeiro ato de
sua administração, conseguiu que recolhessem à Capitania, ou nela
viessem morar, mais de 150 pessoas. Multiplicou-se no esforço contí-
nuo de atender a tudo, restaurando estradas, a Fortaleza, a Matriz,
nomeando autoridade, restaurando o Senado da Câmara, fazendo
milagre de energia, operosidade e animação (MEDEIROS, 1984, p. 35).
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Considerações finais
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Assim, a História escrita por esses sujeitos foi mobilizada como um meio para fins
didáticos de criação de um senso de pertencimento e de gratidão da socie-
dade potiguar com os colonizadores. Nessa construção de sentidos, não houve
espaço para diversidades, e a glorificação do processo supostamente civiliza-
tório foi o que ditou os rumos das narrativas.
Referências bibliográficas
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