Fotografia Compartilhada

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Fotografia Compartilhada

(Foto) jornalismo e mobilização política nas favelas do Rio de Janeiro

Alice Baroni & Andrea Mayr

Um dos fenômenos cívicos mais importantes que emergem das favelas do Rio de Janeiro hoje é o “(foto)
jornalismo comunitário”, que é praticado por moradores de favelas com treinamento em jornalismo e
técnicas artísticas para fomentar a consciência crítica e promover a mobilização política dentro e fora das
favelas. Este artigo analisa alguns dos trabalhos produzidos em um local de treinamento para fotógrafos
comunitários, a agência-escola Imagens do Povo na Nova Holanda, uma favela localizada na Zona Norte do
Rio. Usando uma abordagem etnográfica, esse artigo primeiro fornece um relato das práticas de trabalho da
Escola e de seus fotógrafos. Isso é seguido por uma discussão sobre uma pequena amostra de seu trabalho
fotográfico, para o qual empregamos um paradigma semiótico social de análise de imagem. Esta sinergia
metodológica fornece insights sobre como esses jornalistas documentam a violência estrutural de longo
prazo e, também, a violência "espetacular" nas favelas, ao mesmo tempo que se esforçam para capturar um
pouco da beleza dessas comunidades. O artigo conclui que esta forma de trabalho fotográfico constitui um
passo importante para uma marca mais analítica de jornalismo com diferentes valores-notícia que
incentivam uma abordagem mais sensível ao contexto para cobrir a violência urbana e a vida cotidiana nas
favelas.

Palavras chave: mídia alternativa; Imagens do Povo; multimodalidade; valores de notícias; fotojornalismo

Introdução

Um dos fenômenos cívicos mais importantes que emergem das favelas do Rio é o (foto)jornalismo
comunitário ou popular, que é praticado por moradores de favelas que são treinados para empregar técnicas
jornalísticas e artísticas com o objetivo de aumentar a consciência sobre as questões culturais, sociais e
políticas dentro das favelas e da grande cidade. Este trabalho frequentemente denuncia violações de direitos
humanos por parte do Estado, promove a mobilização política em torno do “direito à cidade” (Lefebvre
1968), mas tão importante quanto, celebra as favelas e seus moradores, desafiando assim a cobertura
restritiva e amplamente negativa feita pela mídia hegemônica sobre essas comunidades. Neste artigo,
examinamos um desses locais de treinamento, a agência-escola Imagens do Povo, com o intuito de explorar
as motivações dos fotógrafos populares e suas tentativas de fornecer contradiscursos visuais que também
estabeleçam valores-notícia alternativos. Será argumentado que esse trabalho difere das “notícias
imediatas” que compartilham os mesmos valores-notícia da cobertura noticiosa convencional. Ao gerar
imagens que apresentam uma perspectiva diferente de dentro das favelas, os fotógrafos populares da Escola
oferecem uma marca alternativa de jornalismo visual que apresenta formas de informação visual e
conhecimento que são sub-representados e marginalizados na mídia hegemônica carioca. Nossa intenção
neste artigo é, portanto, explorar como essa produção de mídia alternativa contesta e desafia "o monopólio
da mídia na produção de formas simbólicas" (Atton 2015, 6).

A seguir, apresentamos inicialmente um panorama da história do Imagens do Povo e de sua


abordagem da fotografia. Em seguida, apresentamos uma pequena amostra do trabalho fotográfico para
explorar como a filosofia do fundador da Escola, João Roberto (J. R.) Ripper, influenciou a produção dos
1
fotógrafos do Imagens do Povo. Para este fim, olhamos para duas distintas, mas muitas vezes sobrepostas,
categorias de fotógrafos populares. Ambos os grupos consideram a fotografia como uma forma de expressão
crítica e política que visa demonstrar solidariedade e apoio às lutas diárias dos moradores de favelas e
combater o estigma mantido sobre eles na cidade mais ampla. Ambos destacam a importância de fazer seu
trabalho fotográfico com os moradores fotografados, não sobre eles ou para eles.

Escolhemos as fotografias que apresentamos em consulta com três fotógrafos do Imagens do Povo,
que eles consideram representativas dos seus trabalhos. Para a análise dessas imagens, usamos um
paradigma semiótico social de análise de imagens (Kress e Leeuwen [1996] 2006; Machin e Polzer 2015), que
é informado por trabalho de campo etnográfico na forma de entrevistas. Estas consistiam em conversas
informais e entrevistas semi-estruturadas com sete fotógrafos, incluindo os três fotógrafos apresentados
neste artigo, três ex-coordenadores do Imagens do Povo e seu fundador J. R. Ripper. Dependendo da pessoa
e da situação, às vezes as entrevistas duravam duas horas e meia e às vezes apenas 35 minutos. Sempre que
possível, íamos às comunidades dos fotógrafos para obter uma visão mais ampla sobre a sua vida cotidiana.
De acordo com Patton (2002, 27) “A compreensão de que a entrevista e a observação são técnicas
qualitativas que se reforçam mutuamente é uma ponte para compreender a natureza fundamentalmente
orientada às pessoas do inquérito qualitativo”.

Além disso, utilizamos cerca de 50 horas de gravação de vídeo do cineasta Guillermo Planel, que
continha muitas entrevistas longas com fotojornalistas comunitários. Adquirimos ainda de Ripper suas notas
pessoais sobre "fotografia compartilhada", vídeos e seu vasto banco de imagens. Usamos esses dados como
um importante corpo de evidências para entender melhor como os fotógrafos comunitários são
influenciados pela filosofia e carreira profissional do próprio Ripper. Acreditamos que uma análise da mídia
alternativa seja mais bem servida por métodos qualitativos, uma vez que oferecem uma abordagem interna
para a compreensão da cultura dos participantes e busca pela significância da produção como processo
(Jensen 1991). Este último é particularmente importante, pois é um dos objetivos declarados da Escola e de
seus fotógrafos.

Uma abordagem sócio-semiótica para a Comunicação Visual e Mídia Alternativa

A fotografia jornalística tem sido associada ao fornecimento de evidências visuais e testemunhos dos
acontecimentos. Mas os fotojornalistas fazem mais do que simplesmente registrar a realidade e documentar
momentos no tempo. Eles criam imagens complexas que simbolizam ideias, atitudes e valores mais amplos.
As imagens também devem se ajustar a quadros de notícias e a valores-notícia estabelecidos como "conflito",
que se tornaram "senso comum" e muitas vezes são tomados como certos. Aqui, estamos interessadas em
como os atores da mídia alternativa "desnaturalizam" algumas dessas práticas e constroem realidades que
se opõem às práticas convencionais e aos valores-notícia da mídia hegemônica. Para isso, usamos uma
tradição emergente em comunicação visual, Multimodalidade (Machin e Polzer 2015). A Multimodalidade é
uma abordagem de análise de imagens que nos permite ir além de uma descrição de imagens meramente
em termos estéticos para fornecer uma análise mais sistemática e crítica da comunicação visual. Diversa das
abordagens semióticas mais tradicionais (por exemplo, Barthes) que exploram como os signos individuais
conotam e simbolizam, a Multimodalidade está mais interessada em como esses sinais funcionam em
conjunto para criar significado. Portanto, olhamos como jornalistas visuais alternativos aproveitam certos
"recursos semióticos" visuais para cumprir seus objetivos comunicativos específicos com o intuito de criar
significado ou “potenciais de significação”.

Um corpo substancial de literatura acadêmica desenvolveu-se sob o nome de "mídia alternativa" ou


“Jornalismo alternativo”, que explorou, analisou e criticou seus princípios e práticas (Atton 2015). Atton
2
(2015, 6) define "mídia alternativa ou comunitária" como uma mídia que “é capaz de construir realidades
que se opõem às convenções e representações da mídia convencional”. Outro termo que é semelhante a
"mídia alternativa" e usado particularmente no contexto da América do Sul, é “mídia cidadã”, que Rodríguez
(2011, 24) entende como espaços de comunicação onde os cidadãos podem aprender a manipular suas
próprias linguagens, códigos, sinais e símbolos, capacitando-os a nomear o mundo em seus próprios termos.
A mídia cidadã, portanto, também está conectada à mudança sócio-política. Contudo, Atton (2009)
argumenta que a noção de Rodríguez sobre mídia cidadã compreende as práticas de mídia não
principalmente como jornalismo, mas como projetos de autoeducação de certos grupos marginalizados e
que no trabalho de Rodríguez aprendemos pouco sobre a prática do jornalismo em termos de o que e como
os participantes fazem as coisas e como aprendem suas práticas. Ela argumenta que qualquer análise de
mídia alternativa deve olhar para ambos, os processos e os produtos. Deve considerar o conteúdo de mídia
como jornalismo, não apenas como relatos sobre auto reflexividade (como Rodríguez parece sugerir), visto
que não são apenas as relações sociais que podem ser transformadas, mas também as próprias formas de
mídia, discursiva e visualmente.

Portanto, adotamos a definição de Atton de jornalismo alternativo como uma categoria analítica
porque captura adequadamente o trabalho dos fotógrafos populares do Imagens do Povo. Isso ocorre porque
eles tendem a usar modelos participativos de produção e pôr em questão os valores-notícia convencionais
de "conflito e controvérsia", "negatividade" e “imediatismo”. Devido a valorizarem reportagens que são
desenvolvidas a partir de uma abordagem compartilhada com os moradores de favelas e uma orientação
para a mudança social, eles também pretendem expor o dia-a-dia, padrões culturais implícitos de violência
estrutural nas favelas que geralmente fomentam a violência física.

Favelas como locais de visualidades contestadas

As favelas podem ser definidas como “áreas de alta densidade populacional, muitas vezes
caracterizadas por infraestrutura urbana de baixa qualidade e serviços públicos insuficientes” (Custódio
2014, 139). Cerca de 20 por cento dos 6,2 milhões de habitantes do Rio vivem em favelas, enquanto muitos
outros são consignados para áreas menos afluentes do norte e oeste da cidade e estão em grande parte
isolados das partes consideradas ‘economicamente bem-sucedidas’ da Zona Sul da cidade de classe média
(alta), onde muitas favelas estão intimamente conectadas. Ao longo de sua história, as favelas foram vistas
como lugares perigosos e violentos que ameaçam os, muitas vezes adjacentes, bairros ricos da cidade (ver
Perlman 1975, 2010). Repetidas e mal sucedidas tentativas de recuperar o controle sobre essas áreas por
meio de intervenções esporádicas do exército e da polícia militar deu origem a um ciclo interminável de
discursos na mídia que invocam uma imagem e uma retórica do Rio como uma cidade “em guerra” (ver
Biazoto 2011; Caldeira 2000; Mayr 2015; Penglase 2007).1 As imagens são especialmente potentes para
transmitir essas mensagens negativas sobre as favelas. Segundo Sontag (2003, 19), isso ocorre porque as
fotos da imprensa têm uma “mordida mais profunda” do que o filme ou a televisão, pois “congelam” eventos
em uma única imagem. Ela diz: “em uma área de sobrecarga de informações, a fotografia fornece uma forma
rápida de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-lo”.

Isso tem incentivado a mídia e o público a pensar sobre eventos como momentos memoráveis, em
vez de processos longos e complexos, e a aceitar um mundo de notícias de acontecimentos em grande parte
desconexos e descontextualizados. Então, embora, por exemplo, a Maré, onde fica a sede do Imagens do
Povo, tenha uma longa e positiva história de lutas e conquistas, um cenário cultural rico e seja o lar de várias
organizações comunitárias internacionalmente reconhecidas, documentadas por alguns de seus fotógrafos
comunitários, são os confrontos violentos entre a polícia militar e as facções do tráfico que lutam por controle

3
de território que dominam as notícias convencionais. Fotógrafos do Imagens do Povo, no entanto,
considerariam a falta de diálogo entre os residentes e autoridades e os abusos de direitos humanos por parte
da polícia militar como as principais fontes de conflito. Eles retrataram a Maré e outras favelas como
comunidades sitiadas, principalmente desde o início da “Pacificação” em 2008, a ambiciosa abordagem de
policiamento comunitário do Rio pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs; Unidades de Polícia
Pacificadora).2 O trabalho produzido pelos fotógrafos do Imagens do Povo, pelo menos, promete um relato
mais matizado dos processos de eventos.

Agência-escola Imagens do Povo e a “Fotografia Compartilhada”

O Imagens do Povo tem sede em Nova Holanda, uma das 16 favelas que formam o Complexo da
Maré, o maior complexo de favelas do Rio com mais de 130.000 habitantes, localizado na periférica Zona
Norte. Foi concebido como uma escola crítica de fotografia que se inspira no conceito de “conscientização”
de Paulo Freire (1997), para referir-se ao despertar de uma consciência crítica. Ao contrário da tradição
educacional brasileira, o trabalho de Freire defende uma educação em que aluno e professor aprendam,
questionem, reflitam, troquem ideias e participem na construção de significado. Baseando-se nas ideias de
Freire, o Imagens do Povo vem desenvolvendo projetos colaborativos com moradores de favelas por meio
de um diálogo intenso com eles por meio de workshops, seminários e atividades que visam atender às
demandas e necessidades das comunidades da favela. Incorpora o que Ripper chamou de fotografia
compartilhada. A “Fotografia compartilhada” é entendida como uma abordagem à interação humana que
promove o diálogo genuíno, interação e colaboração com as pessoas que estão sendo fotografadas. É usado
por Ripper como uma ferramenta de aprendizagem para reconhecer e representar as identidades distintas
das pessoas de uma forma que suas dignidades como seres humanos e suas diferenças sejam preservadas.
Este tipo de troca reconhece a dignidade do indivíduo, independentemente de estarem sendo fotografados
em um contexto de conflito e dor ou durante suas práticas cotidianas.

Ripper enfatiza a importância de ser paciente e esperar o momento certo para tirar uma foto, e isso
deve ser feito construindo uma relação, um diálogo, com as pessoas. Em suas palavras,

Espere até ter um gesto mais gentil... Às vezes você passa duas, três, quatro, horas na casa de
alguém, mas haverá um momento mais delicado. Eu costumo dizer: “Espere na casa, fique com os moradores,
principalmente se for uma casa onde há cortinas nas janelas ou uma casa com forno a lenha. Se houver um
pequeno buraco no telhado, a luz irá entrar eventualmente... Haverá um momento em que as mães vão
brincar com seus filhos e a seda, a cortina, vão tornar este momento ainda mais delicado. Vale a pena esperar
por momentos como este”. (Ripper, entrevista, 28 de abril de 2015)

Fábio Caffé, que se formou na escola e depois se tornou educador do Imagens do Povo explica como
Ripper influenciou a sua própria abordagem fotográfica:

Ripper, citando Bresson, nos diz que muito mais importante do que as fotos são as pessoas. Então,
tentamos seguir esse ideal. Eu acredito que devemos fotografar na tentativa de contar a história do outro e,
em certo sentido, estar aberto para aprender com essa pessoa. (Caffé, entrevista, 18 de janeiro de 2011)

O argumento de Ripper, portanto, é que o uso da imagem para contar histórias pode ser
"transformador" quando guiados pelo respeito pelas pessoas. Este respeito valoriza o conhecimento indígena
e relatos pessoais de moradores de favelas que vivenciaram certos eventos mais do que aqueles
provenientes das fontes oficiais e institucionais. O conhecimento, portanto, começa com a experiência dos
moradores de favelas, que por sua vez estimula seu pensamento crítico em direção à mudança social.

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O trabalho fotográfico produzido no Imagens do Povo também desafia os “valores-notícia”
dominantes, isto é, “os critérios tomados como certos e geralmente implícitos que rotineiramente orientam
os jornalistas na seleção e construção de narrativas de notícias”, como imediatismo e individualismo (Hackett
2011, 43). A esse respeito, vale destacar que Sousa (1997) analisou 40 imagens vencedoras do prêmio
principal da World Press Photo, World Press Foto do ano, entre 1956 e 1995, e constatou que os valores-
notícia das imagens eram os mesmos produzidos pelo jornalismo convencional. Ele concluiu que as imagens
premiadas durante 40 anos do prêmio estavam relacionadas a valores-notícia tradicionais, como
“intensidade”, “momento instantâneo”, “proximidade”, “consequência”, “oportunidade”, “conflito” e
"negatividade". Ele também identificou outras categorias menos proeminentes, tais como "interesse
humano", “emoção” e “valor estético”. No entanto, ele sugeriu que "tensão e ação", que estão
frequentemente relacionadas com a categoria “conflito”, são os valores-notícia fotojornalístico por
excelência. Esses valores-notícia são semelhantes aos identificados por Moreira (2014, 177-178) que analisou
e comparou os valores-notícia de 259 artigos de notícias de três diferentes jornais, Folha de São Paulo, O
Estado de São Paulo e O Globo. Ela descobriu que os valores-notícia mais proeminentes nos três jornais foram
“importância”; "realidade"; “excepcionalidade”; “proximidade” e “interesse” (leitor). O Imagens do Povo
incentivaria seus fotógrafos a considerar "positividade" e "beleza" como importantes contra valores de
valores-notícia em seu retrato da vida nas favelas.3

Os fotógrafos comunitários da Escola também se opõem às visões tradicionais das favelas atuando
sobre as visualidades da mídia convencional. Às vezes, eles assumem o papel de repórteres de notícias ao
contribuir com o trabalho das principais organizações de mídia hegemônica. Por exemplo, enquanto a visão
da mídia convencional retrata a Zona Sul do Rio como uma “cidade maravilhosa”, onde a “beleza” pode ser
encontrada nas ricas áreas da classe média alta, com imagens de suas famosas praias e principais atrações
turísticas, os fotógrafos comunitários levam as favelas e o dia a dia de seus moradores para o primeiro plano
do Rio de Janeiro. Em seu trabalho, as favelas surgem não como áreas da cidade que são ocupadas
ilegalmente por seus moradores, mas como parte integrante do Rio de Janeiro. Por outro lado, ao relatar as
casualidades que ocorrem em suas comunidades, esses fotógrafos assumem o papel de fotojornalistas
preocupados em construir uma narrativa visual do evento em vez de um mero registro instantâneo.
Elaboraremos sobre isso abaixo em nossa discussão sobre as imagens.

Os fotógrafos comunitários e os fotojornalistas convencionais são ambos criadores de realidade


social. Em suas tentativas de narrar as histórias de outras pessoas, eles criam uma representação social da
realidade, o que é feito em um contexto institucional (Alsina 2009, 12). Ambos os grupos dos fotógrafos são
influenciados pelo quadro institucional em que trabalham ou têm sido treinados. Entretanto, embora as
práticas dos fotojornalistas convencionais sejam incorporadas à cultura e rotinas das redações, a abordagem
dos fotógrafos da comunidade é mais influenciada pela própria carreira profissional de Ripper e pela
compreensão "alternativa" da fotografia da Escola. Ripper trabalhou por muitos anos para os principais
jornais do Rio e, como tal, ele trouxe para a Escola sua formação profissional como repórter de notícias. No
entanto, como ele acreditava que o fotojornalismo convencional era "contra os pobres" (Baroni 2013), ele
rompeu com as principais organizações de mídia e procurou por outras formas de usar a fotografia em prol
dos direitos humanos. Esta posição também pode ser observada nos fotógrafos comunitários, que
questionam a possibilidade ou mesmo o ideal de “objetividade” do jornalismo hegemônico. Esses fotógrafos
reconhecem que estão inseridos em contextos e processos sociais que moldam sua forma de representação.
Como Luiz Baltar aponta,

[O termo] fotógrafo popular ou comunitário representa nossa posição ideológica que é em prol dos
direitos humanos. Produzimos representações visuais contestadas sobre as favelas e seus residentes para
apresentá-los de maneiras diferentes de como eles são mostrados na mídia convencional. Colocamos em
questão os discursos estabelecidos que fazem parte da imaginação social. A fotografia comunitária é uma
posição política. É uma forma de ver e representar o mundo. É o que você escolhe ver e representar. Uma
5
fotografia que cria empatia para com os moradores da favela e indivíduos e grupos que vivem às margens.
(Baltar, entrevista, 29 de abril de 2015)

Na próxima seção, veremos uma pequena amostra do trabalho de dois distintos, embora
frequentemente sobrepostos, tipos de fotógrafos comunitários, que incorporam alguns dos princípios e
práticas principais de trabalho defendidas pela Escola. Essas duas categorias foram cunhadas por Cangialosi
(2015). Um é o fotógrafo “repórter-ativista”, cujo trabalho destaca questões sociais e políticas, tais como a
ocupação contínua e “pacificação” das favelas pela polícia militar e as expulsões forçadas de muitos
moradores de favelas de suas comunidades devido aos Jogos Olímpicos de 2016. A segunda categoria é o
fotógrafo “arquivista-documentarista”, cujo trabalho se concentra mais nos aspectos mais mundanos da vida
nas favelas e suas culturas. Este trabalho costuma incluir eventos e atividades sociais e culturais, como
música, arte, esportes urbanos e grafite, e tem como objetivo explícito celebrar a cultura nas favelas. Ambos
os grupos vêem a fotografia como uma forma de expressão crítica e política que busca fornecer solidariedade
e apoio para as lutas diárias dos moradores da favela e, por fim, trabalhar para uma mudança sócio-política.

Análise de imagem

A seção de análise de imagem discute o trabalho de três fotógrafos profissionais independentes


formados pela Escola: Ratão Diniz, Luiz Baltar e Naldinho Lourenço. A razão para escolhê-los é que eles
representam as duas categorias sobrepostas dos fotógrafos da Escola, o “repórter-ativista” e o
“documentarista-arquivista”. Examinamos seis imagens usando uma abordagem sócio-semiótica multimodal
adaptada de Kress e van Leeuwen ([1996] 2006) para explorar alguns dos potenciais de significado dessas
fotos. De acordo com essa abordagem, as imagens podem ser “narrativas” ou “conceituais”.

As imagens narrativas representam as pessoas e suas ações, enquanto as imagens conceituais são
mais simbólicas e pode representar mais as pessoas em termos de seus atributos. As imagens narrativas são
também de “modalidade de alto naturalismo”, ou seja, contêm detalhes e profundidade, sombreamento
natural e muitas vezes um fundo. Imagens conceituais tendem a ser mais estilizadas e são de "baixa
modalidade".

Kress e van Leeuwen ([1996] 2006) analisam imagens em termos de interação e composição. A
interação se refere ao tipo de relação social estabelecida entre o visualizador e imagem, como a posição do
ângulo da câmera e o tipo de foto. A composição está relacionada à onde na imagem o participante
representado é colocado e quanto do quadro ele ocupa, o que Kress e van Leeuwen chamam de "saliência"
e que se relaciona com o grau em que um elemento chama atenção para si mesmo. Olhando para o potencial
de criação de significado nas fotografias significa ir além do referencial para incluir o potencial da fotografia
para envolver o espectador interpessoalmente e para criar uma postura avaliativa no mesmo. Buscamos ver,
portanto, quais significados avaliativos podem ser provocados pelas escolhas dos fotógrafos em conteúdo,
interação e composição.

Naldinho Lourenço

Lourenço, residente da Maré, documentou originalmente eventos esportivos na Maré, mas mudou
seu foco em 2008 para se tornar um repórter-ativista, quando um menino de oito anos foi morto pela polícia
e ele documentou a cena (ver Figura 1). Desde então, Lourenço continuou a documentar a abordagem da
pacificação por meio da polícia militar do Rio. Ele critica o retrato das favelas pela grande mídia, que ele diz
ser distorcido pela "visão do fotógrafo que não mora na favela e vai acompanhado pela polícia, já esperando
6
violência”. Lourenço foi citado pela Anistia Internacional em 2016 como um dos vários fotógrafos que foram
perseguidos pela polícia e que tiveram seus projetos culturais boicotados por membros do Ministério da
Cultura por causa de sua posição contra a ocupação militar da Maré.

A imagem de Lourenço (Figura 1) mostra a mão estendida de um menino de oito anos, Matheus
Rodrigues, que foi morto por um único tiro disparado pela Polícia Militar durante uma operação na Maré em
2008, ao sair de casa para comprar pão.

FIGURA 1

O menino que saiu de casa para comprar pão

O legista concluiu que o tiro atingiu a porta da frente, ricocheteou e matou o menino. Ele foi
encontrado ainda segurando uma moeda de um real na mão, que sua mãe lhe dera. A polícia queria remover
o corpo antes da chegada do médico legista, mas foram impedidos pelos moradores e pelo Diretor de uma
organização não governamental. Lourenço tirou a foto a pedido do legista após o tio do menino colocá-lo em
uma maca e cobrir seu corpo com um lençol. Ele então colocou na internet, onde foi amplamente
compartilhada (ver Alves e Evanson 2011, 65–71). Ele comentou que queria expressar a indignação que ele
e outros moradores da favela sentiram. Lourenço tirou a foto quando a mão da criança morta se abriu para
revelar a moeda. A imagem é o que Perlmutter (1998) chamou de “ícone da indignação”. Isso é alcançado
por meio da modalidade de alto naturalismo da imagem, principalmente pelo uso do recurso semiótico da
cor, ou seja, o vermelho brilhante do sangue seco na mão do menino e no lençol usado para cobrir o seu
corpo. Cores saturadas, particularmente vermelhos e laranjas brilhantes, denotam intensidade emocional
(Machin 2007). Nada nesta imagem parece ser estilizado. A imagem é narrativa, mas ao mesmo tempo
conceitual no sentido de que se tornou um símbolo pungente de muitas crianças que se tornam vítimas de
operações policiais, algumas das quais são desconhecidas e das quais não se prestam contas. Isso também é

7
acentuado pelo tipo de disparo fotográfico, que foi tirado de um alto ângulo, expressando a total impotência
da vítima, mas também do espectador que poderia não evitar essa morte. Todavia, talvez a imagem não peça
apenas ao espectador para testemunhar a morte, mas para agir de acordo com o que vê. A representação da
mão do menino morto com a moeda ensanguentada coloca o espectador em uma forte relação afetiva com
ele. Lourenço contou-nos que algumas pessoas comentaram que a imagem lembrava a mão de Jesus na cruz
com a moeda representando o prego.

A Figura 2 foi tirada durante a “Marcha pela Vida” na Maré em fevereiro de 2015 que foi organizada
por residentes em protesto contra táticas de policiamento violento semanas antes do protesto que deixou
vários moradores feridos e um morto. O protesto foi brutalmente reprimido pelo Batalhão de Choque do Rio
de Janeiro. Na imagem, vemos uma moradora desafiando os soldados citando uma música da banda O Rappa
(1999), “Paz sem voz não é paz, é medo”, para expressar sua indignação com a repressão policial.4

FIGURA 2

Maré “Marcha pela Vida”

Lourenço tirou a foto por detrás da mulher, pegando emprestado uma técnica cinematográfica
estabelecida, a tomada do ponto de vista (Bordwell e Thompson 2008). O espectador, portanto, olha a cena
a partir do ponto de vista da moradora, convidando-o a se identificar com ela. O tipo de cena é horizontal,
colocando o espectador e o manifestante em um mesmo nível. Embora não vejamos a expressão facial da
mulher, o que permitiria ao espectador ver suas emoções, sua postura corporal e o gesto do punho levantado
claramente demonstra sua raiva, potencialmente criando um forte afeto no espectador (Caple 2013). O
"Drama" e a intensidade emocional desta imagem de alta modalidade é novamente reforçada pela cor laranja
viva e pelo peso visual do tanque e dos soldados que superam muito em número a única manifestante
posicionada no canto inferior esquerdo. Esta configuração de significados é claramente aprimorada por sua
8
composição. Então, embora essa foto tenha sido tirada em uma situação potencialmente explosiva, há
também uma qualidade estética que demonstra uma preocupação com a composição.

Depois de tirar a foto, Lourenço foi procurar a moradora para entrevistá-la sobre a sua opinião sobre
a ocupação policial da Maré e incorporou suas declarações à Exposição “Composições Políticas” no Rio em
abril de 2016. Essa etapa não só proporciona uma maior contextualização da agenda de segurança pública
mais ampla no Rio, mas também questiona em que medida os moradores de favelas vêem o potencial de
“pacificação” da polícia.

Enquanto a cobertura jornalística da ocupação de favelas pelo exército e pelas UPPs tem focado
principalmente na espetacular “libertação” dos moradores de favelas das garras de facções criminosas (ver
Dias e Eslava 2013), Lourenço e outros têm documentado as realidades do dia-a-dia dessa ocupação policial,
fornecendo uma contra informação importante para a cobertura amplamente superficial e acrítica da mídia
convencional. Essas imagens convencionais muitas vezes simbolizam a manutenção da paz, em vez de nos
mostrar como isso é realmente feito. O que a imagem da Figura 2 implica é o oposto, ou seja, que apesar da
intenção declarada da UPP de "segurança, cidadania e inclusão social” dos moradores de favelas, sua
abordagem pode, de fato, ter reforçado a noção de cidadania como um conceito incômodo no Rio.

Ratão Diniz

O trabalho de Diniz é um excelente exemplar da "fotografia compartilhada" e pode ser inserido na


categoria do documentarista-arquivista, que desafia os discursos (visuais) estabelecidos que associam as
favelas como espaços exclusivos da violência e dos conflitos armados. Em seu primeiro ensaio fotográfico,
“Explosões de Alegria,” ele capturou as expressões emocionais das pessoas como sorrisos e alegria, mas
também sua resistência e resiliência em face da segregação e discriminação. Em seu livro “Em Foto,” ele
reflete sobre sua obra dizendo “Eu vejo muita beleza na favela, e uma das maravilhas mais lindas que vejo
são as relações humanas” (Diniz 2014, np). Parafraseando Ripper, ele prefere "uma boa história a uma boa
fotografia”, uma ideia que também esteve presente no trabalho dos fotógrafos documentaristas Carl Mydans
e Eugene Smith. Para Diniz, que também nasceu e cresceu na Maré, todas as suas documentações
fotográficas são sobre resistência, esteja ele reportando sobre festividades populares, desocupações
forçadas, ocupações policiais, carnaval de rua, grafite e as rotinas cotidianas das pessoas de comunidades
marginalizadas no Brasil.5,6 Em seu livro de 2014, ele homenageia sua comunidade, dizendo que “resistência
é uma palavra que define as lutas cotidianas dos moradores da Maré” (Diniz 2014, np).

Na Figura 3, Diniz fotografou a sua mãe em sua casa na Maré assistindo televisão e ao mesmo tempo
oferece um vislumbre do beco em que ela vive. A imagem foi tirada pelo fotógrafo parado no batente da
porta. Seguindo o conselho de Ripper, que se deve começar a fotografar a própria família já que estamos
inclinados a retratar os familiares de forma digna, Diniz dedicou muito tempo a redescobrir sua própria rua,
seus vizinhos e particularmente sua própria mãe durante os últimos anos de sua vida. Com a distorção em
barril e as bordas levemente borradas, a imagem é claramente artística; tornando-a de baixa modalidade e
estilizada e traindo o olhar para a composição. A imagem é narrativa e conceitual; documenta, fornecendo-
nos uma impressão da vida de alguém; mas também simboliza um modo de vida que Diniz faz questão de
apresentar:

Fotografar nosso próprio lugar... é realmente difícil. Às vezes eu observo minha mãe... eu tirei
algumas fotos... como você se vê? É um processo muito desafiador. Não, é um grande conflito. Para mim, é
um exercício... Eu sempre tento fotografar minha própria casa. Eu quero dizer, minha mãe em particular.
Tento pegá-la em suas rotinas diárias... A coisa mais difícil é fotografar nosso próprio lugar, pois precisamos
9
olhar para ele com outros olhos. Para tornar estranho o que é comum. Sempre procuro fotografar o beco
onde moro, que é [conhecido como] o beco da felicidade. (Diniz, entrevista, 11 de novembro de 2010)

FIGURA 3

Um lugar só seu

Diniz segue o argumento de Ripper que afirma que, ao fotografar as pessoas que nos são próximas
podemos expandir esta experiência para outros assuntos, explorando a beleza que existe dentro de cada um
dos fotografados.

Na Figura 4, Diniz captou a resistência de crianças de um grupo de teatro em um protesto no Fórum


Mundial de Educação 2008 em Nova Iguaçu na Baixada Fluminense, um dos municípios do Rio. As crianças
lembravam as vítimas de um dos piores massacres policiais do Rio, no qual 29 pessoas foram executadas
pelos policiais militares que atiraram aleatoriamente contra elas enquanto dirigiam pela área. As balaclavas
que as crianças vestiam era uma reminiscência daquelas usadas pela polícia durante algumas de suas
operações. Ao estender rosas vermelhas para as pessoas desejavam indicar que o protesto era pacífico.

Quanto à interação entre o espectador e os participantes representados, dois meninos em primeiro


plano são fotografados a partir de um ângulo horizontal em um close médio, resultando no que Kress e van
Leeuwen ([1996] 2006, 124) chamam de “distância social próxima”. Toda a expressão emocional está nos
olhos dos dois meninos enquanto o resto de seus rostos está escondido, embora um menino à esquerda, que
está um pouco mais ao fundo, tenha o rosto à mostra e esteja sorrindo. Os meninos olham direto para o
espectador em uma imagem de "demanda" (Kress e van Leeuwen [1996] 2006), que pode ser visto como um
convite para que o espectador tenha empatia por eles. Em termos de afeto, o espectador está posicionado
para reagir com empatia a eles. Isso é alcançado tanto pelos significados de interação (olhar direto, ângulo
horizontal e plano médio em vez de plano geral), e evidentemente pelo conteúdo da imagem. As escolhas
composicionais na imagem, como o contraste de cor entre vermelho, azul e preto, conotam exuberância e
10
energia e podem também provocar uma reação estética no espectador. Esta incrivelmente bela e comovente
imagem de alta modalidade e narrativa também personaliza o evento, expressando a esperança dessas
crianças por uma vida sem tais níveis de violência.

FIGURA 4

Bela resistência

Luiz Baltar

Quando Luiz Baltar se tornou aluno da Escola de Fotógrafos Populares em 2012, já vinha
documentando movimentos sociais durante manifestações públicas por três anos. Formado em Artes
Plásticas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Baltar é influenciado pela obra de Sebastião Salgado e
João Roberto Ripper, e atua como foto documentarista.

Desde 2009, o principal projeto de Baltar tem sido documentar as remoções forçadas em curso dos
moradores das favelas, que faz parte da política do prefeito Eduardo Paes para transformar o Rio de Janeiro
em uma cidade global que deve sediar as Olimpíadas de 2016. Este é o testemunho dos princípios da Escola,
da fotografia como um processo. Algumas das obras de Baltar aparecem no livro “Remoções no Rio de Janeiro
Olímpico” (“Removals in the Olympic City”; Faulhaber e Azevedo 2015), que mostra o impacto das políticas
do governo local, estadual e federal sobre as vidas dos grupos mais vulneráveis. Entre janeiro de 2009 e
dezembro de 2013, mais de 20.000 famílias foram retiradas de suas casas sem terem sido consultadas ou
mesmo informadas sobre esses programas governamentais (Faulhaber e Azevedo 2015).
11
Baltar, que vem documentando as remoções do Morro da Providência, a primeira favela do Rio,
percebeu que não era um caso isolado, mas parte de uma disputa mais ampla sobre o “direito à cidade”
(Lefebvre 1968) entre o governo local e estadual e os menos favorecidos que estão sendo removidos das
áreas centrais do Rio para a distante zona oeste da cidade. Como Baltar observa,

Você começa a entender que o processo de remoção é o primeiro estágio de um processo mais amplo
de limpeza urbana, que envolve uma luta maior; uma luta pela cidade. E a ocupação militar funciona como a
estratégia do governo estadual para remover [as pessoas] e redesenhar o tecido urbano. (Baltar, entrevista,
29 de abril de 2015)

Para Baltar, o “direito à cidade” é muito mais do que a liberdade individual de acesso aos recursos
urbanos: é um direito de mudar as pessoas mudando a cidade. Na Figura 5 apresentamos uma das imagens
de Baltar em uma longa série de fotos que ele tirou desses despejos.

A imagem foi tirada na favela de Manguinhos, Zona Norte do Rio, onde 900 famílias serão removidas
e o local será usado para construir um centro esportivo e um complexo de apartamentos “Minha Casa, Minha
Vida” subsidiado pelo governo para realojar as famílias removidas. Os residentes receberam a oferta de
assistência social para aluguel enquanto os apartamentos estão sendo construídos, mas muitos rejeitaram a
oferta de apartamentos ainda não construídos, preferindo um valor de indenização que lhes permitiria
comprar uma casa em Manguinhos.

A imagem é uma montagem de três imagens, o que a torna menos naturalista e mais estilizada e,
portanto, de baixa modalidade. À direita, vemos um residente entrando em sua casa que permanece de pé,
enquanto as casas vizinhas já foram demolidas. No canto inferior esquerdo da imagem, vemos outro
residente em um ponto de vista da foto, aparecendo para olhar a cena de devastação. Baltar nos disse que
na montagem ele queria o porco em primeiro plano para dar à imagem um ar surreal. Ele disse que queria
transmitir um ar de destruição, uma cena repleta de destroços e ruínas. Ele não queria retratar sujeira ou um
“chiqueiro”, mas uma paisagem de guerra com uma criatura exótica [o porco] que é completamente fora de
lugar, como as pessoas que não deveriam estar vivendo nessas condições.

FIGURA 5

Remoções forçadas em Manguinhos

O layout da foto é “bagunçado”, assim como a vida das pessoas nela retratadas. O preto e branco
tem o potencial de significado adicional de melancolia ou “coragem” urbana. A montagem, que surgiu como
uma crítica estética e política dada, na Berlim do início do século XX, é “uma forma popular disponível de
crítica visual” do dominante (Hamilton 2001, 159). Ao denunciar o forte despejo de moradores de favelas por
meio desta criação artística de edição e remontagem de três de suas fotografias, Baltar implicitamente
também critica os excessos do capitalismo neoliberal na forma de gentrificação de áreas pobres e sua

12
perpetuação em alguns dos principais meios de comunicação do Rio. Em termos de seus valores estéticos, a
montagem é certamente digna de nota.

Baltar também construiu um arquivo visual intitulado “Paz Armada” em que vem documentando a
ocupação militar de algumas favelas do Rio desde novembro de 2010. Baltar tirou a foto da Figura 6 na favela
do Jacaré durante sua ocupação pelo mais temido Esquadrão de Operações Policiais Especiais BOPE. Ele
comentou que o fotógrafo às vezes é um “caçador” que pensa em composição e enquadramento, esperando
que algo aconteça. Às vezes ele passa minutos, às vezes dias voltando ao mesmo lugar. Em outra ocasião há
uma oportunidade, onde tudo está pronto para a foto ser tirada, embora, como fotógrafo, ainda se decida o
que entra em uma imagem e o que não. Esse foi o caso com a imagem da Figura 6. Quando Baltar tirou a
foto, ele queria imaginar o soldado do BOPE, de aparência bastante esquelética, em pé na frente de um
recipiente de sucata de ferro com a palavra "reciclagem" escrita no mesmo, ao mesmo tempo que garante
que tenha colocado o veículo do Esquadrão e seu logotipo icônico em primeiro plano, um agressivo e
desdenhoso crânio humano (caveira), que é empalado por uma adaga e flanqueado por duas pistolas
cruzadas (que são as insígnias da Polícia Militar). A imagem é “equilibrada” no sentido em que o veículo do
BOPE ocupa de metade a dois terços e o policial cerca de um terço da imagem. Isso é também típico do que
os fotógrafos chamariam de criação de interesse em diferentes níveis de profundidade na cena, que é
conseguida pela van escura com o logotipo em um nível, depois o oficial mais para trás e depois, para trás
dele, o contêiner de sucata.

FIGURA 6

Paz armada

A análise multimodal indicou que a composição e as considerações técnicas, como o ângulo da


câmera, têm impacto na qualidade estética das imagens e podem contribuir para a avaliação positiva ou
negativa dos participantes da imagem. Também se tentou descobrir sistematicamente alguns dos potenciais
de significado dessas imagens. Embora qualquer imagem esteja aberta a muitas leituras possíveis,
dependendo do espectador, as imagens apresentadas aqui certamente convidam a certos significados em
13
vez de outros e colocam o espectador em forte relação afetiva com o que se apresenta nessas imagens, que
está de acordo com os princípios da Escola e seus fotógrafos. No entanto, mobilizar simpatia para as favelas,
por meio da representação visual da dor e da beleza, está longe de ser simples. A proximidade visual que as
imagens deste tipo proporcionam não se traduz necessariamente na simpatia do espectador e não pode
reduzir a distância entre o espectador e a vítima (Allan 2006). Certamente, uma imagem esteticamente
agradável ou "equilibrada" pode interpretar o evento como digno de se tornar notícia justamente por sua
“beleza”. A estética é certamente um valor-notícia importante para algumas das imagens discutidas aqui
(Caple 2013). Importante para as preocupações dos moradores da favela, a “beleza” de uma imagem pode
atrair a apreciação do espectador para a cena/evento/pessoas retratadas e ajudar a desafiar os estereótipos
negativos. Todavia, muito mais significativo é que o trabalho desses fotógrafos comunitários pode, em última
análise, tornar o estado mais responsável por suas ações nas favelas, embora isso também seja verdade para
os fotojornalistas da mídia convencional. De acordo com os moradores da favela, a mera presença fotográfica
de Lourenço, Diniz e Baltar durante as operações nas favelas pelo exército e pela polícia ajudou a conter
métodos agressivos de policiamento.

A agência-escola é hoje administrada por seus próprios fotógrafos, que é o que Ripper imaginou para
o Imagens do Povo. No entanto, o que era para ser um futuro promissor se tornou o início de uma série de
eventos infelizes: cortes no orçamento, desentendimentos internos que levaram os fotógrafos mais
proeminentes a deixarem o Programa e a ocupação militar da Maré, que dificultou o trabalho. A Escola
realizou seu último curso em 2012 e está inativa desde então. A falta de financiamento está ameaçando sua
existência.

Existem outros desenvolvimentos mais promissores. No momento da escrita, alguns dos fotógrafos
que saíram da Escola formaram seus próprios coletivos de mídia Maré Vive e Na Favela. Isso foi feito com os
moradores da favela, para ajudá-los a criar sua própria mídia para resistir ao processo de ocupação militar.
Eles também promoveram o evento cultural “Eles lançam bombas, Nós lançamos filmes” para fomentar uma
cultura de paz nas suas comunidades. Outros se tornaram arquivista-documentaristas profissionais
independentes, como é o caso de Ratão Diniz. Esses fotógrafos ainda seguem a filosofia da "fotografia
compartilhada" de Ripper.

Conclusões

Como os fotojornalistas da mídia convencional, os fotógrafos populares que discutimos aqui “se
esforçam para produzir imagens bem equilibradas, tecnicamente competentes e interpessoalmente
atraentes que desafiam o espectador” (Caple 2013). No entanto, talvez diferentemente dos fotojornalistas
da imprensa hegemônica, os fotógrafos comunitários assumem abertamente uma postura de defesa, em vez
da “pseudo-objetividade” jornalística. Eles também experimentam temas e estilos estéticos incomuns, deste
modo, propõem valores-notícia alternativos, como "positividade", "beleza", "estética", “solidariedade” e
“bem-querer” (compaixão e cuidado para com os outros). O trabalho deles talvez possa ser melhor entendido
como o tipo de fotografia defendida por John Berger (1972, 62), segundo o qual o fotógrafo deve se
posicionar não tanto como um repórter de um evento para o resto do mundo, mas mais como “um
registrador do evento para os envolvidos.” Evidentemente, o fotojornalismo comunitário produzido na Maré,
e em outras favelas do Rio de Janeiro, enfrenta o mesmo problema do fotojornalismo convencional em que
não há garantia de que a lacuna entre os espectadores das imagens e a vida de estranhos será reduzida. Isso
sempre dependerá do envolvimento empático dos espectadores com aqueles que são os “outros”, bastante
remotos.

14
No Rio de Janeiro, o ambiente violento torna o trabalho jornalístico, tanto para o fotojornalista da
mídia convencional como para os fotojornalistas da comunidade, difícil. Os fotógrafos do Imagens do Povo
enfrentaram dificuldades em relatar até mesmo sobre o dia a dia dos moradores da Maré, com alguns deles
tendo que suportar o assédio de soldados e policiais. No entanto, apesar dessas dificuldades, nós
argumentamos neste artigo que são imagens como as que discutimos aqui que têm maior potencial para
servir como fontes alternativas de informação. Isto porque essas imagens, com seu foco maior em expor o
dia-a-dia, incorporado de padrões de injustiças estruturais, bem como da beleza das favelas, permitem que
as pessoas dessas comunidades se reconheçam nessas imagens. Há alguma esperança de que, praticando o
fotojornalismo alternativo como forma de resistência, as representações da mídia sobre as favelas possam
ser transformadas no longo prazo. Também constitui um primeiro passo para a participação dos moradores
da favela nesse processo.

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de expressar nossa gratidão a João Roberto Ripper e a todos os fotógrafos do Imagens
do Povo que generosamente cederam seu tempo para serem entrevistados. Nós estamos particularmente
agradecidas a Naldinho Lourenço, Luiz Baltar e Ratão Diniz, que também gentilmente nos cederam o uso de
algumas de suas imagens para a análise neste artigo. Além disso, Andrea Mayr gostaria de agradecer a
Washington Teixeira por toda a ajuda e apoio ao longo do projeto.

FINANCIAMENTO

Este trabalho foi apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), no âmbito do Programa Nacional de Pós-Doutorado.

DECLARAÇÃO DE DIVULGAÇÃO

Nenhum potencial conflito de interesse foi relatado pelos autores.

NOTAS

1. O estudo de Biazoto sobre a grande mídia do Rio, por exemplo, apontou para sua falta de
refletividade e pensamento crítico, onde as raízes da pobreza e da violência são absolutamente ignoradas.

2. A ocupação policial da Maré foi iniciada em 21 de março de 2015. Na semana anterior à ocupação
oficial, vários abusos e várias mortes foram relatadas, incluindo a de um jovem de 18 anos levado a um beco
e morto pelo Batalhão de Operações Especiais BOPE em 27 de março. A organização não-governamental
local Redes de Desenvolvimento da Maré publicou um relatório em 28 de março descrevendo as violações,
incluindo os relatos de policiais espancando e trancando um grupo de meninos em uma sala, ameaçando

15
explodi-la, e o BOPE invadindo casas para dormir e tomar banho (ver http: //
www.rioonwatch.org/?p=14260).

3. Por exemplo, em 2008, a Escola de Fotógrafos Populares venceu o Prêmio Faz Diferença,
organizado pelo maior jornal do Rio O Globo, após a realização de um extenso ensaio fotográfico sobre
diversão e alegria nas favelas do Rio, que resultou no material “A favela se diverte,” publicado na capa da
revista dominical de O Globo.

4. A marcha também foi filmada e postada no YouTube pelo jornal local Nova Democracia (consulte
https://www.youtube.com/watch?v=dw4PpP5hhAQ).

5. Desde 2007, Diniz documenta o sertão do Brasil com seu projeto “Revelando os Brasis” (disponível
em http://www.revelandoosbrasis.com.br) pelo Ministério de cultura. Nesta iniciativa, ele explorou e
documentou indivíduos e grupos que estão isolados do desenvolvimento social e econômico.

6. O trabalho de campo deste artigo foi realizado no Imagens do Povo, na Maré, por ambas as autoras
e em outras favelas por Alice Baroni.

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Alice Baroni (autora a quem a correspondência deve ser endereçada), Departamento de


Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Email: alicebaroni@gmail.com

Andrea Mayr, School of English, Queen’s University Belfast, Reino Unido. E-mail: a.mayr@qub.ac.uk

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