570-Texto Do Artigo-1559-1-10-20230612
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RESUMO
ABSTRACT
This text is an essay on the American fiction film Little women (2019), written and
directed by Greta Gerwig, in an adaptation of the novel Little Women (1868), by
Louise Marie Alcott (1832-1888), focusing in the discussion of the artistic vocations
(writer, painter, pianist and actress) of four teenagers before, during and after the
Civil War. Our approach will privilege the discussion of aspects related to the
characteristics of the obstacles faced by three of these sisters (Josephine, Amy and
Meg) in achieving a career in those times mentioned, since it is a period drama. With
this objective in mind, we will use basic concepts related to the history of western art
- with restrictions on the presence of women as professional artists, - the literary
market in the second half of the 19th century, prejudices with the occupation of
actress and aspects related to the confrontation of unique artwork with mass culture.
Quando nos confrontamos com uma obra de arte, essa talvez seja a nossa
única reação possível: o equivalente a uma prece de gratidão por nos
permitir, com nossos sentidos limitados, um número infinito de leituras,
que, para o nosso maior proveito e alegrias, trazem a possibilidade de
esclarecimento.
Livro das orações inglesas, 1662.
APRESENTAÇÃO
O filme norte-americano Adoráveis mulheres (2019) é a sétima adaptação
apenas para o cinema do romance Little women (publicado inicialmente em duas
partes, nos anos de 1868 e 1880), da norte-americana Louisa May Alcott (1832-
1888).O título brasileiro de sua edição – Mulherzinhas – pode sugerir uma certa
depreciação, o que não está presente na obra original uma vez que é como o pastor
March (Bob Odenkirk) refere-se às suas filhas adolescentes: Meg, Josephine/Jo,
Beth e Amy, as quais, no início da história tem 16, 15, 13 e 12 anos
respectivamente. É importante que se tenha isso em mente principalmente porque,
nessa adaptação, são as mesmas atrizes, com sutis diferenças de caracterização,
que as interpretam ao longo de sete anos. Quando da realização desse filme, a
irlandesa-norte-americana Saoirse Ronan (Jo) tinha 25 anos; a inglesa Florence
Pugh (Amy), 23; a também inglesa Emma Watson (Meg, a primogênita), 19; e a
australiana Eliza Scanlen (Beth), 20 anos. Interessa-nos principalmente abordar o
tópico da vocação artística em todas elas, enquanto adolescentes, ou seja, como
elas são representadas com relação ao contexto familiar, ao contexto regional e ao
mercado específico de cada uma delas: literatura, pintura, música clássica e teatro.
Marmee (Laura Dern), uma dona de casa, é a mãe de todas elas.
Cada uma dessas aptidões artísticas é trabalhada em nosso texto em blocos
distintos, marcados pelo intertítulo com o nome da personagem a ela associada.
Trata-se de uma estratégia que procura dar conta da discussão de uma narrativa
que tem praticamente quatro coprotagonistas, numa história que não é contada
numa sucessão linear, ficcionalizando aspectos relevantes a serem enfrentados por
cada uma delas, a saber: a) Josephine/Jo - gêneros literários, ficção serializada na
imprensa, o mercado do livro com seus gêneros de sucesso, o trabalho solitário, a
dependência dos editores e a permanente angústia entre a expressão pessoal, via
estilo e gosto, e “aquilo que vende”; b) Amy, de gosto pessoal refinado, tem que lutar
com o investimento pesado que se fazia à época para um aperfeiçoamento, com
estudos em academias em Paris e Roma em uma família de poucos recursos, além
das restrições de gênero; c) Meg, a atriz do quarteto, não possui as ambições das
irmãs precedentes, tem à frente um preconceito com atrizes; e d) Beth, a melhor
pianista das “adoráveis mulheres”, não sonha com maiores aspirações artísticas.
A imagem inaugural desse filme é uma tomada com pouca iluminação, em
que se vê uma mulher em pé, em plano americano, de costas para a câmera, com a
cabeça baixa diante de uma porta fechada em que está identificada uma editora:
Roberts Brothers Publishing. Segundos depois, ela levanta a cabeça, aparentemente
respira fundo, toma uma postura ereta e resolve entrar. No interior, há quase uma
dezena de homens, trabalhando. Ela segue resolutamente até avistar um senhor de
cabelos grisalhos a uma mesa. Trata-se de Mister Dashwood (Tracy Letts), publisher
de periódicos em Nova York, a quem ela vai propor a edição comercial de seus
contos no que é bem sucedida. São poucos minutos, mas se tem um perfil da
protagonista, de sua vocação e do tipo de narrativa a que se vai assistir: um drama
depois, outro corte seco nos leva para a caçula dos March, Bete, ao piano em sua
casa. Não há uma só palavra dela, que apresenta uma expressão triste. Saberemos
depois que a mesma já está enfrentando uma doença fatal. De certa forma, a cultura
do videoclipe talvez tenha nos ajudado a não nos assustarmos tanto com tanta
elipse nessa espécie de prólogo estendido.
De repente, surge um letreiro: “Sete anos antes”. Tem início um flashback,
de certa forma incomum, uma vez que costumeiramente esse expediente de
rememoração deve se encerrar com o retorno ao plano em que ele começou. A
partir desse ponto, a instância narradora dispensará qualquer cronologia mais
rigorosa na disposição das sequências. Veremos Meg casada com dois filhos, e,
mais adiante, ela indo para um baile de debutante. Tivemos, no prólogo, Amy se
reencontrando com Laurie e, posteriormente, ela o conhecendo após ser ferida
numa punição na escola. O espectador acostumado com a estrutura tatibitate dos
três atos poderá se sentir desorientado.
A primeira sequência, que caracteriza fortemente Jo como uma escritora em
potencial e mulher destemida, é um dos bons exemplos da remontagem que o
roteiro de Greta Gerwig faz com o original de Alcott. A primeira vez que Jo vai à
Volcano Press, no romance Little women, está no capítulo 34 (“Um amigo”), Parte II,
da edição brasileira: Mulherzinhas. Se há essa anomalia na adaptação, por outro
lado, roteiro e direção colocam no início da narrativa os elementos essenciais da
caracterização da protagonista: quem ela é, como age e o que objetiva fazer mais
adiante. Diante das peculiaridades narrativas apontadas, optamos por trabalhar a
abordagem do nosso estudo de caracterizações por blocos, iniciando obviamente
pela protagonista e seguindo por suas coadjuvantes ordem decrescente de
importância na trama.
lamentava que o uso de pseudônimo masculino não havia levado as suas colegas
de ocupação naquela época ao sucesso. Ainda a propósito das relações gênero-
literatura e pseudônimos masculinos, Woolf, numa resenha, argumenta que a
diferença fundamental entre a escrita masculina e a feminina não era que “os
homens descrevem batalhas e as mulheres, os nascimentos dos filhos, e, sim, que
cada sexo descreve a si mesmo. As primeiras palavras usadas para descrever um
homem ou uma mulher geralmente bastam para revelar o sexo do escritor” (2014,
p.30).
Prestígio ou popularidade?
Com o fim de tentar uma carreira profissional como escritora, com ou sem
pseudônimo, Jo aloja-se numa pensão em Nova York e resolve mostrar seus
originais também para um colega de moradia, um imigrante alemão, o professor
Friedrich Bhaer (Louis Garrell). Ele não gosta do que ela escreve – sobre duelos e
mortes. Friedrich não sabe que o publisher Dashwood quer dela histórias “curtas e
apimentadas”. Por sinal, em um dos encontros com este senhor, Jo tenta antecipar
mais uma recomendação dele dizendo que ela não vai se esquecer de fazer as
personagens “pecadoras” se arrependerem. Para surpresa dela, ele lhe avisa que os
sobreviventes da Guerra civil norte-americana não querem se entreter com textos
sisudos nem com sermões ou lições de moral. As observações de Dashwood
encontram um sólido piso argumentativo, para ficarmos apenas no cinema, numa
bibliografia norte-americana que estabelece uma forte relação do sucesso dos
cinemusicais hollywoodianos durante o período da Depressão.
Antes de ter acesso aos originais de Jo, Friedrich já lhe havia presenteado
com as obras completas de Shakespeare, recomendando que as lesse para uma
melhor construção de suas personagens. A resposta dela é rápida e irritada: “Não
posso passar fome para manter a classe”. Um pouco antes, quando ele havia lhe
dito que ela só vivia trabalhando, ela já o tinha alertado para o papel do dinheiro na
vida dela: “Dinheiro é tudo o que mais busco nessa existência mercenária”.
Expressão que, por sinal, nos remete àqueles versos de outro poeta e dramaturgo
europeu, Bertolt Brecht, referentes à sua passagem por Hollywood: “Toda manhã,
para ganhar meu pão, vou ao mercado onde se compram mentiras. / Esperançoso,
/entro na fila dos vendedores”. De passagem, o vil metal será ainda tema de fundas
preocupações de suas irmãs Amy e Meg.
Como vimos acima, Jo está interessada em comercializar a sua arte,
buscando recursos para a sua família, e não está preocupada em prestígio literário,
principalmente – repetimos – porque os edita sob pseudônimo. Quando na abertura
do filme, Jo vai ao publisher da Volcano Press, ela já havia publicado em duas
revistas norte-americanas e ganhado prêmios. O que a protagonista está fazendo é
se aproveitar da existência dos primeiros periódicos literários voltados para um novo
público, em que há também uma classe trabalhadora pós-escravidão que já tem
acesso à escola e que ler contos, crônicas ou romances populares que a imprensa
publica em série, os chamados folhetins. Sendo assim, a observação do seu colega
de pensão sobre a contribuição de Shakespeare para a construção das personagens
dela pode até ser pertinente, mas a questão do novo público leitor parece a Jo mais
consequente. Além disso isso aponta para uma dualidade que, às vezes parece uma
dicotomia incontornável: prestígio (via livros) ou popularidade (via folhetins)?
A dicotomia prestígio versus popularidade, entre outras coisas, traz à cena
uma argumentação que procura associar o primeiro termo a público enquanto uma
determinada popularidade estaria vinculada ao emergente mercado da indústria
gráfica em que se inclui a edição de periódicos culturais ou não. E esse mercado, já
na segunda metade do século XIX, tem suas especificidades de que é exemplo a
um fracasso por não ter atingido o alto padrão que se impôs como objetivo,
avaliando o que faz como “tolices artísticas”. Trata-se de um tema recorrente nos
desejos dela o que faz com que, Laurie, a sua mais constante companhia masculina
em Paris, lhe pergunte: “Quando vai começar a sua grande obra de arte, Rafaela?”
Ela lhe responde que isso jamais acontecerá, que “talento não é genialidade” e que,
por mais que ela se dedique, nada poderá mudar com relação a isso. E a sua meta é
alta: “Eu quero ser ótima ou nada”. Laurie lhe rebate colocando uma questão de
gênero: “Quais mulheres podem entrar no Clube dos Gênios, afinal?” Ao que ela
responde rapidamente, citando um exemplo mais perto da cultura norte-americana
[os dois estão em Paris], referindo-se às irmãs Brontëe [Charlotte e Emily],
advertindo que são os homens aqueles que determinam quem são os gênios. E
Laurie, complementa: “Eles eliminam a concorrência”. Em outro momento, durante
um baile, Laurie, visivelmente embriagado, se dirige a ela como a “grande artiste”.
Essa expressão acima em francês com que Laurie a ironiza aponta
inevitavelmente para questões de gênero pois o termo “artista de gênio” ou apenas
“gênio” acabava por se tornar um monopólio masculino, uma vez que, segundo Ana
Paula Cavalcanti,
[a]creditava-se que apenas aquela parte da humanidade havia
sido premiada com as faculdades mentais que a capacitava a
criar, a inovar ou transformar os saberes, construir a cultura,
concretizar as artes (2019, p.65).
rico. Terminado conselho, a tia lhe diz, meio ironicamente: “Pode voltar para as suas
telinhas”. Exemplo 2: Amy está em um atelier, esperando a chegada do seu noivo, o
abastado Fred, quando Laurie aparece e novamente discute o futuro artístico dela. E
o que ela está pintando antes dessa interrupção? Uma natureza-morta. Exemplo 3:
outro gênero atribuído historicamente às mulheres era a pintura de retratos. Não por
acaso, nessa mesma sequência do atelier, quando Amy já se preparava para retirar
o seu avental, Laurie lhe propõe pintar o seu retrato.
A concorrência masculina, citada mais acima, associada a questões de
gênero, é também um aspecto-chave na argumentação da historiadora de arte Linda
Nochlin, que começa pontuando o que as mulheres pintoras já perdem de saída
diante da falta de estímulo familiar, de oportunidades educacionais e de premiações,
dados esses que, segundo essa profissional, acabavam por direcionar vários
talentos para a “principal carreira da mulher: o casamento” (2019, p.27). Trata-se de
uma espécie de rendição para Amy que admite para Laurie o seu fracasso. Naquela
época, ter sucesso no campo das Artes Plásticas era “o processo final de acúmulo
de reconhecimento”, como frisa Ana Paula Simioni (2019), através dos “círculos de
reconhecimento”. Esses pressupunham a ultrapassagem de vários ciclos, iniciado
pelo sucesso entre os próprios pares e escritores, passava pela crítica especializada
(incluindo-se aqui curadores e museus), chegava ao mercado (colecionadores e
proprietários de galerias) até se chegar ao grande público.
Desencantada com a rala perspectiva que ela vê em se tornar uma pintora
reconhecida e também como uma forma de se afastar de Laurie – o neto de Mr.
Laurence (Chris Cooper), com quem se encontra em vários locais e é seu mais
constante modelo -, Amy resolve dar um tempo com as telas e volta para Concorde.
Lá, a abastada e ranzinza tia March oferece-lhe, além de casa e comida, uma
gratificação mensal para que ela lhe leia histórias. Trata-se de uma oportunidade
tomadas que Laurie apresentará as quatro irmãs a uma dupla de amigos, estando
entre eles John (James Norton), um inglês rico, a quem Amy promete que irá
encontrá-lo em breve em Londres. Ao azul claro no céu e no mar correspondem tons
claros nas roupas de todos os presentes, o que evidencia, entre outras coisas,
resultado de uma harmonização visual fruto do trabalho conjunto de direção de
fotografia (Yorick Le Saux) e figurinos, a cargo de Jacqueline Durand (Oscar de
2020). A trilha musical primorosa de Alexandre Desplat acentua a atmosfera de
alegria, de felicidade.
Além dessas cenas de exteriores numa praia, de certa forma,
proporcionarem uma “entrada de ar fresco” em meio a diálogos tensos sobre
pobreza, golpe do baú, morte de bebês de imigrantes e feridos da Guerra civil norte-
americana, em nosso entendimento toda essa sequência praieira é a tradução para
o universo da forma de algo que, em nosso entendimento, anteriormente, teria sido
apresentado como “conteúdo”. Ou seja, aquilo que, nas aulas de Amy, se
configurava em telas impressionistas, via uso peculiar das cores – o conteúdo/tema
de uma sequência – nessas tomadas ao ar livre, é incorporada à visualidade, com o
filme se tornando, nessas cenas, “impressionistas”.
Ainda sobre essa breve pontuação entre cinema e pintura, consultando-se a
bibliografia ilustrada sobre o Impressionismo, é possível se localizar vários quadros
que remetem, pela composição, pelas tonalidades empregadas e pelo espírito que
procuram emanar, à sequência mencionada acima, a saber: a) La plage à Trouville
(1863), de Eugène-Louis Boudin; b) La plage de Saint-Adresse (1867), de Claude
Monet; c) Sur la plage (1873), de Édouard Manet; e d) Brise d’été à Dinard (1907),
de Clarence Gagnon. Vale registrar que o primeiro pintor citado nesse parágrafo
pintou outra tela, com o mesmo título, naquele mesmo ano. Atribui-se a ele ter
apresentado a técnica da pintura ao ar livre para Monet. Já a propósito da última
obra aqui mencionada, tomamos a ousadia de sugerir que ela teria sido a inspiração,
pela paleta escolhida, de toda a sequência alegre da praia com os barcos a vela,
sombrinhas, crianças e as roupas claras nela usadas.
contestada pelo público em geral. O fato é que algumas delas, de origem lusitana,
imigraram para o Brasil por um motivo de pura sobrevivência: D. Maria I havia
proibido a presença de mulheres nos palcos portugueses e isso fez com que. Victor
Porfírio de Borja começasse a ganhar mercado já na adolescência por interpretar
papéis femininos. Nos palcos da Corte brasileira, João Caetano também fizera
papéis femininos.
A associação atriz de teatro-prostituta, feita inicialmente por Jo e enfatizada
posteriormente pela tia March em conversa com a mesma, encontra uma
correspondência factual no Brasil na juventude da baiana Lúcia Mendes de Andrade
Rocha (1919-2014), mais conhecida como a mãe de Glauber Rocha, em discussão
com o seu pai, conforme está reconstituído na biografia romanceada Glauber, a
conquista de um sonho:
[...] ela se lembrava bem de quando Lúcia acabou os estudos em Salvador.
O pai lhe perguntara: ‘Agora, que você terminou seu curso, minha filha, o
que você quer fazer?’ Então, para espanto de toda a família, Lúcia dissera:
‘Eu quero fazer teatro, quero ser atriz’. A resposta do pai foi como um
estouro de boiada: ‘Eu tenho propensão pra muita coisa, menos pra ser pai
de puta! (PAULAFREITAS, 1995, p.20-21).
que faço. [...] por uma hora, eu sou a melhor atriz do mundo, a melhor trepada do
mundo”. A terapeuta mata a charada: “Por que você é a melhor atriz do mundo?” Ao
que Bree concorda e discorre fluentemente: “Porque é uma representação. E isso é
que é bom. Você não precisa sentir nada. Não precisa ligar para nada, não precisa
gostar de ninguém. [...] Você controla, você decide o que vai acontecer. E sempre eu
me sinto ótima no final.
Em síntese, o que Bree explica para a terapeuta é algo que, certamente,
muitos usuários de trabalhadoras do sexo já sabem depois de algumas idas aos
prostíbulos: elas fingem o orgasmo, algo que os homens, por outro lado, não podem
fazê-lo por motivos óbvios. Na língua inglesa, a associação prática feita por Bree
entre interpretação teatral e o teatro do gozo talvez esteja mais próxima do que na
língua portuguesa uma vez que a palavra performance denomina várias atividades,
como o ato de interpretar no teatro, executar um concerto ou cantar uma música. Ao
passo que a expressão Performing Arts intitula atividades criativas que são
executadas [performed] diante de um público, como teatro [drama], música e dança.
Uma cena que visualiza o que ela argumenta com a terapeuta é quando ela atende
a um encontro com um senhor bem tímido. Ela está por baixo e, enquanto ela finge
estar tendo orgasmo, dá uma olhada no relógio de pulso dela, manifestando uma
certa preocupação. Aí está, indiscutivelmente, a performing art. É claro que as duas
menções feitas no filme Adoráveis mulheres, associando o trabalho de atriz com a
de prostituta, não sugerem essa analogia de que Bree é um exemplo, mas a arte
tem essa qualidade de provocar ilações, evocações, associações, de que vivem
enfim todos nós, comentadores, não é mesmo?
A viagem e o baile
Por que tia March implica com a atividade de atriz, que Meg poderia
desenvolver profissionalmente como queria Jo, mas não se refere a um eventual
futuro de Beth como pianista ou de Amy como pintora? Uma das várias respostas
que poderíamos levantar no século em que se passa a história diz respeito a uma
possível imagem ideal da mulher-artista, trabalhando em seu próprio lar, no atelier
ou em apresentações em récitas domésticas, estas no caso de poetas e
instrumentistas. Independentemente da implicação acima daquela senhora ocorre
que Jo nada mais diz a ela sobre como pretende ganhar a sua vida sozinha, mas,
umas seis décadas depois, do outro lado do Atlântico, Virginia Woolf, em Profissões
para mulheres e outros artigos feministas (2019, p.10), por exemplo, mostraria que a
atividade de escritora, quando ela começou a viver disso, era “respeitável e
inofensiva”, pois “o riscar da caneta” não perturba a paz do lar e nem subtrai “nada
do orçamento familiar”. E diz mais: “Uma escritora não precisa de pianos [caso de
Beth], nem de modelos [caso de Amy], nem de Paris [local em que Amy estuda
pintura], Viena ou Berlim, nem de mestres [caso conjunto de Beth e Amy] e
amantes” (2019, p.10). E, como sempre, acrescenta Woolf, o fator econômico não
deixa de ser levado em consideração na decisão de permanecer em uma ocupação:
“Claro que foi por causa do preço baixo do papel que as mulheres deram certo como
escritoras, antes de darem certo em outras profissões” (2019, p.10).
Apesar dessas vantagens arroladas por Woolf, é ela mesma quem denuncia,
no livro acima citado, que a famosa Charlotte Brontë tinha que interromper a escrita
de suas histórias... para descascar batatas. O fato de poder trabalhar em sua própria
casa, tal como aqui é destacado, também era utilizado, na Paris do século XIX, por
exemplo, para se defender a presença da mulher nas artes plásticas, uma vez que
ela disposta “no interior da arena doméstica”, sendo “protegida do olhar do público e
dos espaços condescendentes da vida urbana”, acabava por ser tomada como “uma
figura respeitável, engajada em uma atividade adequadamente feminina” na
confecção de artefatos, contribuindo assim para o orçamento familiar (GARB, 1999).
Enquanto uma eventual carreira de atriz por parte de Meg tem poucas
chances, uma das imagens mais representativas de sua caracterização é a sua
preocupação em conseguir um vestido belo o bastante para não fazer feio em um
baile de debutante de uma amiga, Sallie (Hadley Robinson). Na comentada abertura
desse filme, notamos que Meg surge, já adulta, casada e ansiosa por não ter folga
financeira suficiente para comprar um tecido caro. Se esse traço dela está
deslocado, avançadamente, naquela espécie de multiprólogo é porque o roteiro
entendeu que esse componente de sua personalidade deveria ser enfatizado logo
de saída. Meg acaba participando da grande dança com um vestido emprestado de
Sallie, que é de uma classe social superior às das little women.
Se o baile de debutantes sempre teve o caráter de uma apresentação de
uma adolescente à sociedade, esse é também um momento singular para que a
equipe de filmagem também se exiba: a figurinista, a direção de arte (Chris Farmer,
Brsyan Felty e Sean Falkner), o compositor da trilha sonora principal, a direção de
fotografia, Nick Houy (montagem) e a direção de Greta Gerwig mostram-se virtuosos
na encenação desse baile. Trata-se de um brilhantismno que essa equipe já havia
nos brindado na dança folclórica que Jo e Bhaer participam num bar após assistirem
a uma peça em Nova York. Toda uma animação do baile de debutantes, por sinal, é
entrecortada com tomadas de Beth ao piano da mansão do Mister Laurence (Chris
Cooper), sem companhia, executando peças clássicas de memória. Tem-se, então,
a clássica montagem alternada que intercala ações que transcorrem numa mesma
temporalidade.
Antes que esse baile acontecesse e temendo que o evento fosse uma
oportunidade para que Meg encontrasse o que antigamente se chamava de
“Príncipe encantado”, Jo havia pedido a Laurie que a seguisse e mais: “Fique de
olho na Meg. Não a deixe se apaixonar”. A preocupação de Jo com as
consequências de um futuro casamento da irmã com um sedutor “pé-de-valsa”
qualquer parece ecoar o pensamento da narradora de Orgulho e preconceito, a
inglesa Jane Austen (2018, p.358), quando essa diz, a propósito da busca das irmãs
Bennet por um “bom partido”: “A imaginação de uma mulher é muito rápida; pula da
admiração para o amor e do amor para o matrimônio em um segundo”. Por outro
lado, alguns psicólogos da adolescência veem o apaixonar-se nessa fase como um
objetivo psicológico autêntico, servindo como uma “tentativa de projetar e testar o
próprio Eu, difuso e indiferenciado por intermédio de outra pessoa” a fim de clarear e
refletir sobre o próprio autoconceito e a própria identidade do Ego” do que a
“natureza sexual” a que se associará mais tarde. Esse, por exemplo, é pensamento
de Muuss, em Teoria da adolescência (1976, p.45-6).
outros motivos, pela rica tia paterna pelo fato de John Brooke (James Norton) ser um
“professor pobretão”. De certa forma, a tia March sintetiza uma boa parte dos
preconceitos de classe de uma sociedade em determinada região dos Estados
Unidos se bem que seu irmão seja um simples pastor, a quem ela vaticina um futuro
de “indigente” quando ele estiver mais velho.
Afirmamos acima a nossa estranheza com a expressão “infância”, naquele
contexto, mas, curiosamente, isso se associa a um pensamento construído, em uma
certa Psicologia, mais de um século depois dos tempos dessa trama. Isso se
encontra precisamente gravado por Erik Erikson, quando, ao discutir a “confusão
identitária”, ele afirma a adolescência é “o último estágio da infância”. O seu
argumento para o uso, aqui, do conceito de infância, é de que o processo da
adolescência somente estará concluído quando “o indivíduo tiver subordinado as
suas identificações infantis a um novo tipo de identificação, encontrada ao absorver
sociabilidade e no aprendizado competitivo com e entre seus colegas da mesma
idade” (1994, p.155). Mais ainda: foi no século XIX, tempo da ambientação do filme
Adoráveis mulheres, que a adolescência como uma “crise identitária”, como quer
Erik Erikson, foi trabalhada pelas novas Ciências Sociais principalmente enfocando a
emergência da sexualidade e o treinamento na direção da cidadania.
Laurence (Chris Cooper), ela o condiciona a não ter ninguém lhe escutando. Ela
executa peças clássicas “de ouvido”, sugerindo uma familiaridade com o instrumento
e o seu repertório. Há muitas obras clássicas na trilha sonora desse filme, sugerindo
que a estamos ouvindo praticar extraquadro, via trilha sonora, a cargo de Alexandre
Desplat. E que trilha: Bach, Beethoven, Brahms, Chopin, Dvorak, Gottschalk,
Gounod, Schumann e Vivaldi. Acima mencionamos que Beth não namora ninguém,
diferentemente de suas irmãs. Esse dado de sua caracterização pode parecer
irrelevante, no entanto quando trabalhamos com psicologia da adolescência – uma
das bases disciplinares desse texto -, levamos em conta que o namoro tem funções,
a saber: “uma forma de recreação (diversão e fonte de prazer), uma fonte de status
e realizações, parte do processo de socialização (aprendizado de como se dar bem
com os outros), envolve aprender sobre intimidade e contribui para a formação e o
desenvolvimento da identidade”.
Além de não precisar de leitor, público ou espectadores para a sua arte,
tanto para lhe conferir algum prestígio, renda ou popularidade, Beth é também a
única da prole de Marmee a não ter manifestado qualquer projeto de futuro. Quando
menciona a palavra sonho, ela o aplica à possibilidade de todas as quatro irmãs
permaneceram juntas a vida toda ao lado dos pais. Enquanto o talento artístico de
duas de suas irmãs surge sendo comparado, como um desestímulo, a Shakespeare
(caso de Jo) e a Rafael ou Michelangelo (o que acontece com Amy), o de Beth não é
julgado por ninguém, nem mesmo pelo seu mecenas, Mr. Laurence, que,
inicialmente, cede o acesso ao piano de cauda em sua mansão e, depois, lhe dá
outro piano, mais modesto, de presente
Ainda com relação à caracterização de Beth, para quem está investigando
representações de talentos artísticos ou não no cinema protagonizado por
adolescentes, fazem falta algumas informações sobre como a vocação dela surge e
como ela foi alimentada (um tutor como aquele que instrui Laurie? Autoaprendizado?
Aquisição de partituras numa família de poucos recursos?). Vale registrar que o
fonógrafo somente seria patenteado por Thomas Edison em 1877, 12 anos após o
final da trama, e a família não parece ter recursos para a compra de partituras,
também. A menção a um invento mecânico - o fonógrafo - nesse ponto do texto
serve-nos também como uma espécie de deixa, provocando-nos uma digressão em
torno de um ponto que une três das irmãs (Meg, Amy e Beth), que é o “objeto único”
– seja a tela, a execução musical antes do surgimento do gramofone ou uma
apresentação teatral - mas o afasta sensivelmente, do ponto de vista da recepção,
de Jo, que é trabalhar com livros e contos para os jornais, ou seja, com a cultura de
massas, via veículos de massiva comunicação.
Parágrafos acima, chamamos a atenção para o fato de a tia March não
implicar com o fato de Beth ser uma pianista diante das objeções, para não dizer
campanhas, que ela fazia para que Amy deixasse de pensar em uma carreira de
pintora, Meg deixasse de vir a ser atriz profissional de teatro e Jo deixasse de
buscar se manter e a sua família como escritora. Uma pista para uma provável
resposta por essa exceção talvez possa ser buscada nas sínteses produzidas por
Dalila Carvalho em sua pesquisa O gênero da música em que analisa a construção
social da vocação musical erudita:
a) a predominância feminina no piano é consequência do ensino do
instrumento na educação feminina como parte das prendas domésticas, isto
é, como uma obrigação que independe do envolvimento dos pais com a
música, da vontade e da aptidão das moças; b) o piano era um instrumento
que convinha às moças, mais do que outro qualquer porque elas podiam
tocar sentadas, com as pernas fechadas e sem fazer grandes movimentos –
além de não ficarem de frente para o público, fazendo trejeitos faciais ou
corporais; e c) a predominância feminina no piano é consequência da
inclusão que facilitou o acesso das mulheres à sua prática (CARVALHO,
2012, pp.79;33;70-71).
um acordo econômico porque o é sim. Pode não ser para você, mas
certamente o é para mim.
lhes diz que pretende usar aquele local como uma escola – para compensar as más
escolas que elas haviam frequentado, inspirando-se também no fato que várias
faculdades exclusivas para mulheres estavam sendo abertas. Entre essas, estava a
laica Vassar College, criada em 1861 e que somente passou a ter turmas mistas em
1969. Se Jo tivesse se referido a isso nas conversas com tia March, teríamos tido
uma piada interna uma vez que Meryl Streep lá estudou.
A despeito de já ter publicado contos, Jo se mostra desanimada a produzir
mais textos de ficção argumentando para Amy que a sua escrita não havia salvo a
vida da caçula. Ela acresce que escrever sobra a história dela e de suas irmãs talvez
pouca atração tivesse para o mercado editorial, argumentando que não via muito
futuro nessa empreitada uma vez haveria nulo interesse de leitores sobre “uma
história de lutas e alegrias domésticas?” A, agora, amadurecida Amy rebate dizendo
que o tema pode não parecer importante por não haver obras sobre isso. Jo treplica:
“Escrever não confere importância. Só reflete isso”. Amy contrapõe: “Acho que não.
Escrever torna tudo mais importante”.
As duas últimas falas desse diálogo apontam sinteticamente para uma
discussão sobre a necessidade social ou não da arte numa família em que a mais
velha das little women desistiu de uma eventual carreira teatral, a caçula somente
tocava piano sem que ninguém fora da família a assistisse e na qual a própria Amy
também havia desistido de uma carreira profissional como pintora. Em certa medida,
o pessimismo de Jo quanto a uma carreira artística já havia sido sinalizado após a
morte precoce de sua irmã caçula quando ela justificara para a sua mãe não estar
escrevendo mais porque a sua literatura não havia ajudado Beth a sobreviver.
E sobre o destino final de Beth, independente de dados biográficos sobre a
irmã caçula da autora de Little women, o fato é que a sua caracterização, tristonha,
tímida, isolada, doentia e tida por Jo como “a melhor de todas”, é um tipo recorrente
seu vizinho. Ao que ela responde que ele o fez com a irmã dela, sinalizando que o
romance que está sendo proposto para publicação é a história das próprias
“adoráveis mulheres” e que a protagonista não se casou com ninguém, o que
contraria uma ordem inicial dele que a história que ela estava escrevendo se
encerrasse com as núpcias de sua protagonista ou com a morte dela. Jo lhe
responde atentando para a sua coerência ao longo de várias tratativas uma vez que
protagonista havia repetido infinita vezes que nunca se casaria. Ele se irrita, dizendo
que “garotas” – o que pressupõe o público cativo de romances à época – “querem
ver as mulheres casadas, e não consistência. Esse não é o final certo. Ninguém vai
querer comprar um livro com o final tendo a protagonista solteira”. Estava dada a
deixa para termos de volta aquilo que Amy havia dito para Laurie quando assumira
abandonar a pintura como vocação e se casar com um homem rico. Jo diz para o
editor a mesma frase: “O casamento sempre foi um acordo econômico”, ao que Jo
acrescenta: “... até na ficção”. Dashwood insiste que o assunto é “romance” ao que
ela rebate que é mercenarismo. Afinal, ela encontra uma saída, talvez inspirada no
discurso de Amy, e muda o final: “Se eu for casar minha protagonista por dinheiro,
acho bom ganhar dinheiro.
Em meio àquelas discussões na editora, Mr. Dashwood propõe a Jo
comprar-lhe os direitos autorais, o que lhe deixaria à vontade para se utilizar das
suas personagens em outras histórias – não necessariamente escritas por ela - ou
produzir sequências, dependendo da aceitação do romance que está sendo
negociado. Não por acaso, nas últimas linhas do volume I de Little women, Louisa
May Alcott se despede, acentuando isso a probabilidade ou não de uma
continuação: “E, assim, a cortina cai sobre Meg, Jo, Beth e Amy. Se ela se erguerá
novamente ou não, isso dependerá da recepção dada ao primeiro ato do drama
doméstico chamado Little women [Mulherzinhas]”. Anos depois, seria publicada a
nos um plano geral de prédios em Nova York. Noite. Há apenas luz numa janela. Por
trás da vidraça, vê-se Jo escrevendo. Muda-se de unidade de lugar, muda-se de
unidade de tempo, mas a trilha sonora é a mesma, passa de uma sequência para
outra, acentuando o paralelismo temático: a atividade laborativa, feita em silêncio,
solitariamente na calada da noite. Na teoria da montagem em audiovisual, isso que
ocorreu leva a denominação de “rima visual” ou “montagem em eco”.
Outro exemplo bem nítido de rima visual – com a presença de uma mesma
temática, no caso, a morte – dá-se quando temos associados duas posturas do olhar
de Jo sem que haja uma relação clara imediata dessa ligação. Seus pais e Meg a
acompanham no enterro de alguém. Todos saem de frente da lápide, mas Jo
permanece olhando para baixo e ligeiramente para a esquerda. Há um corte, e
temos a imagem dela no mesmo enquadramento, olhando para baixo e para a
esquerda. Ela está no primeiro andar de sua casa e vê, na entrada, Beth, que, como
se sabe atravessa toda a narrativa doente. Qual a síntese que se pode produzir
dessa montagem? Jo, em breve, teria que voltar a um cemitério para se despedir de
Beth? Nesse ponto, há uma espécie de brincadeira, uma pegadinha como se diz
hoje, uma vez que Beth não era Beth que estava sendo enterrada. Em mais duas
oportunidades, a instância narradora sugere que Beth já havia falecido, provocando
um desespero em Jo e, provavelmente, uma tristeza na recepção. De passagem, no
segundo enquadramento, a configuração fotográfica do rosto de Jo quase de perfil
remete quase imediatamente a uma forte referência na pintura, e não se trata do
Impressionismo, já citado. Em nosso entendimento, é uma espécie de citação
plástica, uma referência à figura central do quadro O nascimento de Vênus (c.1485),
de Sandro Botticelli (c.1445-1510).
Às vezes, tem-se duas sequências que se alternam com a mesma temática
– no caso, dança -, mas o modo como elas se dão, de certa forma, não ecoa, elas
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quase todos os filmes de ficção ou dramas biográficos que tratam de
vocação ou de formação artística, há quase um século, centram-se em uma só
história ou a história de uma só pessoa, talentosa, genial, única, e isso não é pouco.
Assim, tivemos, quase ao longo de um século, dramas focalizando o nascimento e a
consolidação de virtuoses em vários campos artísticos: pintura (Caravaggio, Goya,
Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Van Gogh), escultura (Michelangelo, Rodin),
música clássica (Beethoven, Liszt, Mozart), literatura (Virginia Woolf, Vera Britain,
Mary Shelley), rock (Jim Morrison, John Lennon, Elvis Presley, Fred Mercury, Elton
John), jazz (Billie Holiday, Charlie Park) e balé (Nijinsky, Isadora Duncan), entre
outras modalidades artísticas. Em todos esses exemplos, que não são exaustivos,
têm-se uma cinebiografia.
Com raras exceções, as cinebiografias de artistas pautam-se pelos
seguintes aspectos: a) ênfase em traços que marginalizam os artistas com relação a
fatores étnicos, de orientação sexual ou de deficiência física; b) o talento que se
manifesta precocemente, de preferência na infância; c) a criação como um dom que
não necessita de exercícios, treinamento ou tutoria especializada; d) o definhamento
pessoal e profissional como consequência da dependência química; e e) a pouca
contribuição da função social da arte de cada um deles. É claro que o drama
Adoráveis mulheres não é uma cinebiografia, mas é uma ficção como as obras
desse subgênero costumam ser. Além do mais, como pontuamos no início desse
ensaio, o filme em pauta distingue-se desse corpus principalmente por dar conta,
com maestria em seu roteiro, das aventuras de quatro adolescentes diante de quatro
vocações das personagens-título: literatura (Jo), pintura (Amy), interpretação teatral
(Meg) e interpretação musical (Beth).
Como se o afirmado acima fosse pouco, o roteiro dessa adaptação
contextualiza a luta pela afirmação de uma vocação de três das quatro “adoráveis
mulheres” na segunda metade do século XIX numa cidade do interior do Leste dos
Estados Unidos em uma família de um pastor (!). De forma brilhante, têm-se as
peculiaridades na aproximação de cada uma delas com uma arte, os impasses
decorrentes de uma eventual profissionalização no campo artístico e as idas-e-
vindas no plano do amor romântico, bem a propósito do universo de leitoras (sim, no
feminino) a que se destinava mercadologicamente o romance de Alcott no tempo em
que fora lançado. Como são as mesmas atrizes, sem maquiagem, que atravessam
todo o filme, talvez isso torne difícil se perceber que se trata de uma história de
adolescentes, que, ao longo de alguns anos, vão passando da fase da adolescência
inicial (bem assinalada no romance Mulherzinhas com as idades de cada uma delas)
para a adolescência final ou adultez emergente, fase essa marcada pontualmente
pelos casamentos de Jo, Amy e Beth.
A despeito do tratamento cuidadoso, minucioso que o roteiro dá às
caracterizações de Amy, Meg e Beth, há que se considerar que Jo é realmente a
protagonista e não só porque ela está em cena a maior parte do tempo, mas,
principalmente pela densidade que as suas falas colocam, além de ser o centro na
vida das irmãs. Não por acaso ela é a única que, ao final da história, não teve que
abandonar uma eventual carreira ao se casar. Esse final positivo, se considerarmos
REFERÊNCIAS
AUSTEN, Jane. Orgulho e preconceito. São Paulo: Martin Claret, 2018 [1813].
ERIKSON, Eric. Identity, youth and crisis. New York: W. N. Norton & Company,
1994.
FEUER, Jane. The Hollywood Musical. Indiana: Indiana Univ. Press, 1993.
MILL, John Stuart. A sujeição das mulheres. São Paulo: Escala, 2000 [1869].
PERROT, Michelle. História das mulheres. O século XIX. São Paulo, Ebradil, 1991.
FILMES
KLUTE (Klute). Estados Unidos. Direção: Alan Pakula. Roteiro: Andy Lewis e David
Lewis. 1DVD (114min), son., cor.