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QUATRO MOÇAS DE TALENTO: UM ESTUDO DE PERSONAGENS EM


ADORÁVEIS MULHERES (2019)1

FOUR TALENTED GIRLS: A CHARACTER STUDY IN LITTLE WOMEN (2019)

Júlio César Lobo2

RESUMO

Esse texto é um ensaio sobre o filme de ficção norte-americano Adoráveis mulheres


(Little women, 2019), escrito e dirigido por Greta Gerwig, numa adaptação do
romance Mulherzinhas (1868), de Louise Marie Alcott (1832-1888), centrando-se na
discussão das vocações artísticas (escritora, pintora, pianista e atriz) de quatro
adolescentes antes, durante e depois da Guerra civil. A nossa abordagem
privilegiará a discussão de aspectos relacionados às características dos entraves
enfrentados por três dessas irmãs (Josephine, Amy e Meg) para a consecução de
uma carreira naqueles tempos citados, uma vez que se trata de drama de época.
Com esse objetivo, acionaremos conceitos básicos relativos à história da arte
ocidental – com as restrições à presença da mulher como artista profissional, - ao
mercado literário na segunda metade do século XIX, aos preconceitos com a
ocupação de atriz e os aspectos relacionados ao confronto da obra de arte única
com a cultura de massa.

Palavras-chave: Adoráveis mulheres, vocação, Greta Gerwig.

ABSTRACT

This text is an essay on the American fiction film Little women (2019), written and
directed by Greta Gerwig, in an adaptation of the novel Little Women (1868), by
Louise Marie Alcott (1832-1888), focusing in the discussion of the artistic vocations
(writer, painter, pianist and actress) of four teenagers before, during and after the
Civil War. Our approach will privilege the discussion of aspects related to the
characteristics of the obstacles faced by three of these sisters (Josephine, Amy and
Meg) in achieving a career in those times mentioned, since it is a period drama. With

1 Recebido em 07/02/2023. Aprovado em 11/02/2023. doi.org/10.5281/zenodo.8027124


2 Universidade Federal da Bahia/Universidade do Estado da Bahia. jclobo2000@yahoo.com.br

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this objective in mind, we will use basic concepts related to the history of western art
- with restrictions on the presence of women as professional artists, - the literary
market in the second half of the 19th century, prejudices with the occupation of
actress and aspects related to the confrontation of unique artwork with mass culture.

Keywords: Little women, vocation, Greta Gerwig.

Quando nos confrontamos com uma obra de arte, essa talvez seja a nossa
única reação possível: o equivalente a uma prece de gratidão por nos
permitir, com nossos sentidos limitados, um número infinito de leituras,
que, para o nosso maior proveito e alegrias, trazem a possibilidade de
esclarecimento.
Livro das orações inglesas, 1662.

APRESENTAÇÃO
O filme norte-americano Adoráveis mulheres (2019) é a sétima adaptação
apenas para o cinema do romance Little women (publicado inicialmente em duas
partes, nos anos de 1868 e 1880), da norte-americana Louisa May Alcott (1832-
1888).O título brasileiro de sua edição – Mulherzinhas – pode sugerir uma certa
depreciação, o que não está presente na obra original uma vez que é como o pastor
March (Bob Odenkirk) refere-se às suas filhas adolescentes: Meg, Josephine/Jo,
Beth e Amy, as quais, no início da história tem 16, 15, 13 e 12 anos
respectivamente. É importante que se tenha isso em mente principalmente porque,
nessa adaptação, são as mesmas atrizes, com sutis diferenças de caracterização,
que as interpretam ao longo de sete anos. Quando da realização desse filme, a
irlandesa-norte-americana Saoirse Ronan (Jo) tinha 25 anos; a inglesa Florence
Pugh (Amy), 23; a também inglesa Emma Watson (Meg, a primogênita), 19; e a
australiana Eliza Scanlen (Beth), 20 anos. Interessa-nos principalmente abordar o
tópico da vocação artística em todas elas, enquanto adolescentes, ou seja, como
elas são representadas com relação ao contexto familiar, ao contexto regional e ao

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mercado específico de cada uma delas: literatura, pintura, música clássica e teatro.
Marmee (Laura Dern), uma dona de casa, é a mãe de todas elas.
Cada uma dessas aptidões artísticas é trabalhada em nosso texto em blocos
distintos, marcados pelo intertítulo com o nome da personagem a ela associada.
Trata-se de uma estratégia que procura dar conta da discussão de uma narrativa
que tem praticamente quatro coprotagonistas, numa história que não é contada
numa sucessão linear, ficcionalizando aspectos relevantes a serem enfrentados por
cada uma delas, a saber: a) Josephine/Jo - gêneros literários, ficção serializada na
imprensa, o mercado do livro com seus gêneros de sucesso, o trabalho solitário, a
dependência dos editores e a permanente angústia entre a expressão pessoal, via
estilo e gosto, e “aquilo que vende”; b) Amy, de gosto pessoal refinado, tem que lutar
com o investimento pesado que se fazia à época para um aperfeiçoamento, com
estudos em academias em Paris e Roma em uma família de poucos recursos, além
das restrições de gênero; c) Meg, a atriz do quarteto, não possui as ambições das
irmãs precedentes, tem à frente um preconceito com atrizes; e d) Beth, a melhor
pianista das “adoráveis mulheres”, não sonha com maiores aspirações artísticas.
A imagem inaugural desse filme é uma tomada com pouca iluminação, em
que se vê uma mulher em pé, em plano americano, de costas para a câmera, com a
cabeça baixa diante de uma porta fechada em que está identificada uma editora:
Roberts Brothers Publishing. Segundos depois, ela levanta a cabeça, aparentemente
respira fundo, toma uma postura ereta e resolve entrar. No interior, há quase uma
dezena de homens, trabalhando. Ela segue resolutamente até avistar um senhor de
cabelos grisalhos a uma mesa. Trata-se de Mister Dashwood (Tracy Letts), publisher
de periódicos em Nova York, a quem ela vai propor a edição comercial de seus
contos no que é bem sucedida. São poucos minutos, mas se tem um perfil da
protagonista, de sua vocação e do tipo de narrativa a que se vai assistir: um drama

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em torno de motivações, objetivos (artísticos e existenciais) e os meios de como


consegui-los ou não. Um dos mandamentos da produção hollywoodiana é que o
público seja tomado pelo filme o mais cedo possível a tempo de refletir se quer
continuar a assisti-lo ou ir fazer outra coisa. Há até publicações, defendendo o início
do filme como sua “matriz”, que se detém apenas nesse tipo de análise. Ao fazê-lo,
esses autores apostam no conceito de “engendramento” da narrativa em suas
primeiras tomadas, que, idealmente, deveriam proporcionar elementos relativos ao
gênero narrativo, herói, vilão etc., o que ocorre neste filme.
O fato é que, decorridos uns cinco minutos, a narrativa do drama Adoráveis
mulheres literalmente pula de Nova York em direção a Paris, mais propriamente
para o Parc Monçon, onde descortinamos uma jovem muito elegante, passeando de
carruagem com uma idosa. Trata-se de Amy, acompanhada de sua Mecenas, a tia
March (Meryl Streep), que lhe patrocina aulas de pintura e de francês. De repente,
Amy é tomada de uma grande alegria: avista Laurie (Timothée Chalamet). E ambos
reconhecem como se transformaram fisicamente ao longo de vários anos. A
importância dele para ela não será fornecida com um jorro de adjetivos e advérbios,
mas, sim, por um recurso de filmagem (acelerada) e de montagem (ralentada): a
visão dele por ela nos é mostrada em câmera lenta, acentuando o seu porte físico, a
sua elegância, o seu charme e suas passadas longas. A tomada subjetiva busca nos
aproximar do que ele significaria ou significou para Amy.
O recurso de desaceleração dos movimentos de Laurie é usado de novo
quando ele se afasta dela e a mesma o contempla – via câmera subjetiva -, voltando
a cabeça para trás com a charrete em movimento. Mas, Laurie não é importante
apenas para Amy, o que comprovaremos ao longo da narrativa. Outro corte seco, e
estamos diante de Meg, já casada, com dois filhos, indecisa se deve gastar seus
parcos recursos na compra de um corte de tecido. Mais ou menos, um minuto

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depois, outro corte seco nos leva para a caçula dos March, Bete, ao piano em sua
casa. Não há uma só palavra dela, que apresenta uma expressão triste. Saberemos
depois que a mesma já está enfrentando uma doença fatal. De certa forma, a cultura
do videoclipe talvez tenha nos ajudado a não nos assustarmos tanto com tanta
elipse nessa espécie de prólogo estendido.
De repente, surge um letreiro: “Sete anos antes”. Tem início um flashback,
de certa forma incomum, uma vez que costumeiramente esse expediente de
rememoração deve se encerrar com o retorno ao plano em que ele começou. A
partir desse ponto, a instância narradora dispensará qualquer cronologia mais
rigorosa na disposição das sequências. Veremos Meg casada com dois filhos, e,
mais adiante, ela indo para um baile de debutante. Tivemos, no prólogo, Amy se
reencontrando com Laurie e, posteriormente, ela o conhecendo após ser ferida
numa punição na escola. O espectador acostumado com a estrutura tatibitate dos
três atos poderá se sentir desorientado.
A primeira sequência, que caracteriza fortemente Jo como uma escritora em
potencial e mulher destemida, é um dos bons exemplos da remontagem que o
roteiro de Greta Gerwig faz com o original de Alcott. A primeira vez que Jo vai à
Volcano Press, no romance Little women, está no capítulo 34 (“Um amigo”), Parte II,
da edição brasileira: Mulherzinhas. Se há essa anomalia na adaptação, por outro
lado, roteiro e direção colocam no início da narrativa os elementos essenciais da
caracterização da protagonista: quem ela é, como age e o que objetiva fazer mais
adiante. Diante das peculiaridades narrativas apontadas, optamos por trabalhar a
abordagem do nosso estudo de caracterizações por blocos, iniciando obviamente
pela protagonista e seguindo por suas coadjuvantes ordem decrescente de
importância na trama.

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PARTE I. UMA ESCRITORA CHAMADA JO


Mas quem é mesmo Jo? Mesmo sem ser a mais velha das quatro moças de
talento, a que nos referimos no título desse texto, ela se toma como a responsável
por manter o sustento de sua família enquanto o pai estiver fora, como capelão do
Exército da União (Yankee), na Guerra civil norte-americana (1861-1865), e
mostrando-se irritada por não poder lutar também, fato que a leva um desabafo: “Eu
acho que é uma decepção ser mulher”. Não podendo servir naquelas tropas, ela
busca a edição de seus escritos e espera, um dia, poder trabalhar em um romance,
cujo futuro editor já advertiu: “A sua heroína deve se casar ou morrer até o final”.
Vale notar que os textos de Jo vêm a público sob pseudônimo e, segundo ela, isso é
feito para não magoar a sua mãe, que não gosta de histórias sangrentas. Mais do
que dramatizar o cotidiano de uma escritora de classe média baixa nos arredores de
uma cidade do interior no Estado de Massachusetts, na segunda metade do século
XIX, esse filme constrói a trajetória de sua personagem principal de modo singular,
cujo comportamento destoa em parte daquele de suas irmãs e totalmente do seu
entorno.
Na realidade imediata, no século em que se passa a história, havia outros
motivos para que uma mulher divulgasse seus textos sob o anonimato. A biografia
de muitas escritoras famosas mostra que a maioria delas publicava também sob
pseudônimo, mas não um feminino, como faz Jo, mas, sim, com um masculino, uma
vez que os críticos importantes consideravam produções artísticas de mulheres
obras de segunda categoria. Assim procederam, por exemplo, as famosas irmãs
Brontë - citadas numa conversa sobre questões de gênero entre Laurie e Amy: Emily
assinava seus textos com o nome de Ellis Bell, e Charlotte era Currer Bell para os
seus leitores. A primeira é autora de O morro dos ventos uivantes (1847), e a
segunda, de Jane Eyre (1847). A britânica Virginia Woolf, em Um teto todo seu,

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lamentava que o uso de pseudônimo masculino não havia levado as suas colegas
de ocupação naquela época ao sucesso. Ainda a propósito das relações gênero-
literatura e pseudônimos masculinos, Woolf, numa resenha, argumenta que a
diferença fundamental entre a escrita masculina e a feminina não era que “os
homens descrevem batalhas e as mulheres, os nascimentos dos filhos, e, sim, que
cada sexo descreve a si mesmo. As primeiras palavras usadas para descrever um
homem ou uma mulher geralmente bastam para revelar o sexo do escritor” (2014,
p.30).

Prestígio ou popularidade?
Com o fim de tentar uma carreira profissional como escritora, com ou sem
pseudônimo, Jo aloja-se numa pensão em Nova York e resolve mostrar seus
originais também para um colega de moradia, um imigrante alemão, o professor
Friedrich Bhaer (Louis Garrell). Ele não gosta do que ela escreve – sobre duelos e
mortes. Friedrich não sabe que o publisher Dashwood quer dela histórias “curtas e
apimentadas”. Por sinal, em um dos encontros com este senhor, Jo tenta antecipar
mais uma recomendação dele dizendo que ela não vai se esquecer de fazer as
personagens “pecadoras” se arrependerem. Para surpresa dela, ele lhe avisa que os
sobreviventes da Guerra civil norte-americana não querem se entreter com textos
sisudos nem com sermões ou lições de moral. As observações de Dashwood
encontram um sólido piso argumentativo, para ficarmos apenas no cinema, numa
bibliografia norte-americana que estabelece uma forte relação do sucesso dos
cinemusicais hollywoodianos durante o período da Depressão.
Antes de ter acesso aos originais de Jo, Friedrich já lhe havia presenteado
com as obras completas de Shakespeare, recomendando que as lesse para uma
melhor construção de suas personagens. A resposta dela é rápida e irritada: “Não

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posso passar fome para manter a classe”. Um pouco antes, quando ele havia lhe
dito que ela só vivia trabalhando, ela já o tinha alertado para o papel do dinheiro na
vida dela: “Dinheiro é tudo o que mais busco nessa existência mercenária”.
Expressão que, por sinal, nos remete àqueles versos de outro poeta e dramaturgo
europeu, Bertolt Brecht, referentes à sua passagem por Hollywood: “Toda manhã,
para ganhar meu pão, vou ao mercado onde se compram mentiras. / Esperançoso,
/entro na fila dos vendedores”. De passagem, o vil metal será ainda tema de fundas
preocupações de suas irmãs Amy e Meg.
Como vimos acima, Jo está interessada em comercializar a sua arte,
buscando recursos para a sua família, e não está preocupada em prestígio literário,
principalmente – repetimos – porque os edita sob pseudônimo. Quando na abertura
do filme, Jo vai ao publisher da Volcano Press, ela já havia publicado em duas
revistas norte-americanas e ganhado prêmios. O que a protagonista está fazendo é
se aproveitar da existência dos primeiros periódicos literários voltados para um novo
público, em que há também uma classe trabalhadora pós-escravidão que já tem
acesso à escola e que ler contos, crônicas ou romances populares que a imprensa
publica em série, os chamados folhetins. Sendo assim, a observação do seu colega
de pensão sobre a contribuição de Shakespeare para a construção das personagens
dela pode até ser pertinente, mas a questão do novo público leitor parece a Jo mais
consequente. Além disso isso aponta para uma dualidade que, às vezes parece uma
dicotomia incontornável: prestígio (via livros) ou popularidade (via folhetins)?
A dicotomia prestígio versus popularidade, entre outras coisas, traz à cena
uma argumentação que procura associar o primeiro termo a público enquanto uma
determinada popularidade estaria vinculada ao emergente mercado da indústria
gráfica em que se inclui a edição de periódicos culturais ou não. E esse mercado, já
na segunda metade do século XIX, tem suas especificidades de que é exemplo a

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relação de publicações estampada na entrada da Volcano Press na primeira tomada


do filme Adoráveis mulheres: The Weekly Volcano, The Literary Light, The Long
Island Sportsman, The Monthly Register, Atlantic Panorama, The Weekly Progress,
The Morning Star e New York Kaleidoscope. Naquela mesma época, por exemplo,
no Brasil, grandes autores, em seus textos mais longos, eram publicados apenas por
livreiros, como Garnier (Machado de Assis) e, a partir dos anos 1930, por nomes
como José Olympio (lançador de Graciliano Ramos, por exemplo).
Quando não está escrevendo, Jo – que não namora ninguém – é uma
militante do celibato feminino. E ela explica o porquê de sua posição para Marmee,
quando esta contesta a solidão em que, no seu entendimento, essa sua filha estaria
vivendo depois dos casamentos de Amy e de Meg (ambas desistiram das carreiras
de pintora e de atriz, respectivamente) e da morte precoce de Beth, a pianista da
família: “Se eu fosse uma garota num livro, tudo seria mais fácil. Mulheres têm
mentes e têm almas, além de corações. Elas têm ambições, têm talento, além da
beleza. Eu estou cansada de as pessoas ficarem dizendo que o amor é a única
coisa para o que as mulheres servem”. Por falar em Amy, Meg e Beth, Jo tem uma
intensa participação na vida de suas irmãs. Mas quem são elas?

PARTE II. AMY: “A MELHOR PINTORA DO MUDO”


Pela ordem de entrada em cena, Amy é a segunda, surgindo
aproximadamente ao sexto minuto, numa aula de pintura ao ar livre, trabalhando em
um quadro, que remete, pela composição e pelo estilo, à famosa tela Le dejeuner
sur l’herbe (1863), de Édouard Manet. Há, no entanto, grandes diferenças entre o
quadro de Manet e o exercício de Amy. Nele, não há uma mulher nua como no
original (o que causou um escândalo na época), nem a outra mulher que está no
regaço (o que motivou o título original da obra: O banho). Porém, a disposição dos

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dois homens e da mulher, sentados na grama no centro da tela, atesta o plágio de


quem planejou as poses, o professor deles, certamente. Ainda sobre esse exercício,
Amy se mostra pouco contente com o seu resultado após olhar os quadros dos seus
dois colegas de aula. Entre outras coisas, a citada aula introduz na narrativa o
Impressionismo.
A primeira representação da inclinação de Amy para as artes plásticas dá-se
em sala de aula quando ainda adolescente. Sabemos disso porque, no cinema
norte-americano, meninas adolescentes são representadas com franjas. Uma colega
pede-lhe que desenhe em sua lousa uma caricatura de um idoso e sisudo professor.
Essa atividade é o pagamento a uma dívida contraída em torno de limões em
conserva. Amy não percebe a chegada do mestre ao ambiente. A punição física
infligida a Amy pela peraltice faz com que Marmee a retire daquela instituição,
colocando-a, doravante, sob a tutela pedagógica de Jo, que já faz isso com Beth.
Para Beth, por exemplo, já havia sido fechada a possibilidade de acesso à
escola, a qual – juntamente com a família e a vizinhança -, segundo Erik Erikson, em
Identity, youth and crisis, fornece o contato e a “identificação experimental” com
outros adolescentes e com outros adultos além do pai e mãe. Essa “identificação
experimental” com a vizinhança também pouco pode ajudar. Com os Laurence isto
não pode ocorrer porque há somente um adolescente, muito mais velho do que ela e
extremamente ligado a Jo e a Amy. Com a família Hummels – a quem ajuda no
Natal – também não é possível: os seis filhos são de idade muito inferior a Beth além
do fato de eles falarem apenas alemão.

Genialidade e concorrência masculina


A despeito do seu talento para a representação plástica, evidenciado
precocemente com o episódio da caricatura, Amy, agora aos 20 anos, se considera

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um fracasso por não ter atingido o alto padrão que se impôs como objetivo,
avaliando o que faz como “tolices artísticas”. Trata-se de um tema recorrente nos
desejos dela o que faz com que, Laurie, a sua mais constante companhia masculina
em Paris, lhe pergunte: “Quando vai começar a sua grande obra de arte, Rafaela?”
Ela lhe responde que isso jamais acontecerá, que “talento não é genialidade” e que,
por mais que ela se dedique, nada poderá mudar com relação a isso. E a sua meta é
alta: “Eu quero ser ótima ou nada”. Laurie lhe rebate colocando uma questão de
gênero: “Quais mulheres podem entrar no Clube dos Gênios, afinal?” Ao que ela
responde rapidamente, citando um exemplo mais perto da cultura norte-americana
[os dois estão em Paris], referindo-se às irmãs Brontëe [Charlotte e Emily],
advertindo que são os homens aqueles que determinam quem são os gênios. E
Laurie, complementa: “Eles eliminam a concorrência”. Em outro momento, durante
um baile, Laurie, visivelmente embriagado, se dirige a ela como a “grande artiste”.
Essa expressão acima em francês com que Laurie a ironiza aponta
inevitavelmente para questões de gênero pois o termo “artista de gênio” ou apenas
“gênio” acabava por se tornar um monopólio masculino, uma vez que, segundo Ana
Paula Cavalcanti,
[a]creditava-se que apenas aquela parte da humanidade havia
sido premiada com as faculdades mentais que a capacitava a
criar, a inovar ou transformar os saberes, construir a cultura,
concretizar as artes (2019, p.65).

Cavalcanti chega a estabelecer uma relação entre a citada genialidade e os


gêneros artísticos, informando-nos que, ao longo do século XIX, nos principais
centros difusores de artes plásticas – leia-se Paris e Roma - , difundiu-se a ideia de
que as mulheres – devido ao seu “espírito delicado”, a sua “atenção ao detalhe” – se
prestavam melhor às “pequenas obras”, propensas essas a se destacarem por “um
sentido decorativo e imitativo”, caracterizando o que se entendia por “arte feminina”,

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“gênero feminino”, ou seja, “um rótulo produzido historicamente” (2019, p.44).


Consequentemente, destinavam-se às mulheres uma espécie de gueto: a produção
de naturezas-mortas, pinturas de flores, telas em dimensões reduzidas etc.
Mais acima, em sua conversa com Amy, Laurie, ironicamente, chama Amy
de Rafaela, como, anteriormente, havia procurado comparar a arte dela com a de
Michelangelo. Comparações desproporcionais, em nosso entendimento. Rafael
havia se destacado como pintor (de altares, retratos e muitos autorretratos) e
arquiteto, especialmente para o Vaticano. Já o segundo possuía várias habilidades:
escultor, arquiteto, poeta e pintor. Para ser mais ou menos justo, e ficar apenas no
mesmo gênero artístico e de identidade, ele talvez pudesse comparar os progressos
dela, através das aulas, pagas pela antipática tia March, com as pintoras que
estavam em evidência, naquele período entre os impressionistas, como as francesas
Berthe Morisot, Suzanne Valadon e Eva Gonzalés ou a norte-americana Mary
Cassat. Naquela época, tempos do florescimento do Impressionismo, a grande arte,
a que se refere Laurie, não poderia se aplicar ao que ela produzia, pois esse termo
se referia à pintura figurativa – com que ela trabalhava – mas os temas eram
históricos, mitológicos e religiosos (Cristianismo exclusivamente). O que ocorria, em
síntese, à época ambientada no filme em discussão, era uma generificação das
chamadas Belas Artes em que se destina às mulheres a pintura em miniaturas, as
ilustrações em livros científicos, o desenho de joias, além de atividades, que
acabaram por prosseguir pelos séculos seguintes, agora em gêneros artísticos
menos prestigiados como o bordado, as rendas e a decoração em porcelanas.
Por seu lado, o roteiro sensível de Gerwig trata de colocar alguns desses
“gêneros femininos” em cenas com Amy. Exemplo 1: a tia March interrompe Amy
enquanto ela está pintando uma tela em sua casa para lhe convencer sobre a
necessidade que essa sua sobrinha tinha de “casar-bem”, ou seja com um homem

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rico. Terminado conselho, a tia lhe diz, meio ironicamente: “Pode voltar para as suas
telinhas”. Exemplo 2: Amy está em um atelier, esperando a chegada do seu noivo, o
abastado Fred, quando Laurie aparece e novamente discute o futuro artístico dela. E
o que ela está pintando antes dessa interrupção? Uma natureza-morta. Exemplo 3:
outro gênero atribuído historicamente às mulheres era a pintura de retratos. Não por
acaso, nessa mesma sequência do atelier, quando Amy já se preparava para retirar
o seu avental, Laurie lhe propõe pintar o seu retrato.
A concorrência masculina, citada mais acima, associada a questões de
gênero, é também um aspecto-chave na argumentação da historiadora de arte Linda
Nochlin, que começa pontuando o que as mulheres pintoras já perdem de saída
diante da falta de estímulo familiar, de oportunidades educacionais e de premiações,
dados esses que, segundo essa profissional, acabavam por direcionar vários
talentos para a “principal carreira da mulher: o casamento” (2019, p.27). Trata-se de
uma espécie de rendição para Amy que admite para Laurie o seu fracasso. Naquela
época, ter sucesso no campo das Artes Plásticas era “o processo final de acúmulo
de reconhecimento”, como frisa Ana Paula Simioni (2019), através dos “círculos de
reconhecimento”. Esses pressupunham a ultrapassagem de vários ciclos, iniciado
pelo sucesso entre os próprios pares e escritores, passava pela crítica especializada
(incluindo-se aqui curadores e museus), chegava ao mercado (colecionadores e
proprietários de galerias) até se chegar ao grande público.
Desencantada com a rala perspectiva que ela vê em se tornar uma pintora
reconhecida e também como uma forma de se afastar de Laurie – o neto de Mr.
Laurence (Chris Cooper), com quem se encontra em vários locais e é seu mais
constante modelo -, Amy resolve dar um tempo com as telas e volta para Concorde.
Lá, a abastada e ranzinza tia March oferece-lhe, além de casa e comida, uma
gratificação mensal para que ela lhe leia histórias. Trata-se de uma oportunidade

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para que a narrativa ofereça mais traços da personalidade dessa senhora,


especialmente quando ela resolve detratar todos as sobrinhas: “Amy, você é a
esperança da família agora. Jo é uma causa perdida [...]. Case-se bem. Salve sua
família”. A rigor, a tia March dirige as suas mais agudas críticas ao seu irmão pela
educação – digamos, ilustrada – que proporcionara às “meninas”. Um bom
casamento como uma reparação? Parece que Amy trocaria a sua sonhada trajetória
de pintora, bem como a viagem para Europa com a tia March, para se casar com
Laurie.
Na verdade, Amy ama Laurie, que ama Jo, que não ama ninguém, o que nos
lembra, por sinal, os versos bem humorados do poema “Quadrilha”, de Carlos
Drummond de Andrade. Ao final da história, Amy aos 20 anos, desiste mesmo de
uma carreira de pintora e se casa com Laurie, bem-nascido, culto e divertido, a
quem sempre amou. Entre seus vários sonhos – “ser artista em Paris, pintar belos
quadros e ser a melhor pintora do mundo” -, ela realizou pelo menos um deles: “Ser
uma madame”. Em outros, ela se via sendo artista reconhecida em Paris, pintando
quadros “divinos” e sendo “a melhor pintora do mundo”. Ao final, Amy decide que
deve investir em outros talentos dela – não diz quais são – e ser “um enfeite da
sociedade”.

Impressionismo: do conteúdo à forma


Aproximadamente no que seria a metade do tempo de duração do filme
Adoráveis mulheres, há uma longa sequência numa praia ensolarada em que todas
as quatro irmãs estão presentes. As tomadas alternam planos gerais, abarcando em
um só cena as pessoas que estão sentadas, aquelas que estão caminhando e
outras, crianças, soltando pipas etc., bem como planos americanos em que há
conversas leves, como as desenvolvidas entre Jo e Laurie. Será em uma dessas

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tomadas que Laurie apresentará as quatro irmãs a uma dupla de amigos, estando
entre eles John (James Norton), um inglês rico, a quem Amy promete que irá
encontrá-lo em breve em Londres. Ao azul claro no céu e no mar correspondem tons
claros nas roupas de todos os presentes, o que evidencia, entre outras coisas,
resultado de uma harmonização visual fruto do trabalho conjunto de direção de
fotografia (Yorick Le Saux) e figurinos, a cargo de Jacqueline Durand (Oscar de
2020). A trilha musical primorosa de Alexandre Desplat acentua a atmosfera de
alegria, de felicidade.
Além dessas cenas de exteriores numa praia, de certa forma,
proporcionarem uma “entrada de ar fresco” em meio a diálogos tensos sobre
pobreza, golpe do baú, morte de bebês de imigrantes e feridos da Guerra civil norte-
americana, em nosso entendimento toda essa sequência praieira é a tradução para
o universo da forma de algo que, em nosso entendimento, anteriormente, teria sido
apresentado como “conteúdo”. Ou seja, aquilo que, nas aulas de Amy, se
configurava em telas impressionistas, via uso peculiar das cores – o conteúdo/tema
de uma sequência – nessas tomadas ao ar livre, é incorporada à visualidade, com o
filme se tornando, nessas cenas, “impressionistas”.
Ainda sobre essa breve pontuação entre cinema e pintura, consultando-se a
bibliografia ilustrada sobre o Impressionismo, é possível se localizar vários quadros
que remetem, pela composição, pelas tonalidades empregadas e pelo espírito que
procuram emanar, à sequência mencionada acima, a saber: a) La plage à Trouville
(1863), de Eugène-Louis Boudin; b) La plage de Saint-Adresse (1867), de Claude
Monet; c) Sur la plage (1873), de Édouard Manet; e d) Brise d’été à Dinard (1907),
de Clarence Gagnon. Vale registrar que o primeiro pintor citado nesse parágrafo
pintou outra tela, com o mesmo título, naquele mesmo ano. Atribui-se a ele ter
apresentado a técnica da pintura ao ar livre para Monet. Já a propósito da última

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obra aqui mencionada, tomamos a ousadia de sugerir que ela teria sido a inspiração,
pela paleta escolhida, de toda a sequência alegre da praia com os barcos a vela,
sombrinhas, crianças e as roupas claras nela usadas.

PARTE III. MEG: ATRIZ OU DONA DE CASA?


Meg, a exemplo da caçula e amorosa Beth, é a única das quatro
“mulherzinhas” do título original desse filme que não tem maiores ambições
artísticas, digamos. Ela quer se casar e ter filhos, o que, convenhamos, não é pouco.
No entanto, Jo vê nela um grande potencial para ser atriz, chegando a essa
conclusão a partir dos desempenhos dela nos ensaios e no próprio desempenho de
Meg numa apresentação do drama infanto-juvenil The witch curse, da própria Jo.
Esta última justifica sua aposta vocacional, adiantando o que poderia ser uma
tréplica: “Nem todas são sirigaitas”. Curiosamente, essa associação atriz-prostituta,
prostituta-atriz voltará a cena, mais tarde, quando Jo vai ler um romance para a tia
March. Inicialmente, a escritora diz que não está preocupada com casamento uma
vez que pretende ganhar a vida sozinha. A tia replica que ninguém ganha a vida
sozinho e, por isso, se faz necessário um bom casamento. Jo treplica que há
realmente poucas formas de uma mulher ganhar dinheiro. A tia responde como
querendo encerrar a discussão: “Não é verdade. Uma mulher pode ter um prostíbulo
ou ser atriz de teatro. Praticamente, a mesma coisa”.
Trazendo o preconceito atriz-prostituta para a nossa história do teatro,
naquela época, no nosso Brasil, mais precisamente na então Capital Federal, as
atrizes mais conhecidas - como Adelina Abranches, Clara Ricciolini, Estela
Sezefreda, Gabriela da Cunha de Vecchy, Gertrudes Angélica da Cunha (mãe de
Gabriela), Lucinda Simões, Ludovina Soares da Costa (considerada a melhor
intérprete portuguesa de tragédias) e Palmira Bastos - tinham a sua moral

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contestada pelo público em geral. O fato é que algumas delas, de origem lusitana,
imigraram para o Brasil por um motivo de pura sobrevivência: D. Maria I havia
proibido a presença de mulheres nos palcos portugueses e isso fez com que. Victor
Porfírio de Borja começasse a ganhar mercado já na adolescência por interpretar
papéis femininos. Nos palcos da Corte brasileira, João Caetano também fizera
papéis femininos.
A associação atriz de teatro-prostituta, feita inicialmente por Jo e enfatizada
posteriormente pela tia March em conversa com a mesma, encontra uma
correspondência factual no Brasil na juventude da baiana Lúcia Mendes de Andrade
Rocha (1919-2014), mais conhecida como a mãe de Glauber Rocha, em discussão
com o seu pai, conforme está reconstituído na biografia romanceada Glauber, a
conquista de um sonho:
[...] ela se lembrava bem de quando Lúcia acabou os estudos em Salvador.
O pai lhe perguntara: ‘Agora, que você terminou seu curso, minha filha, o
que você quer fazer?’ Então, para espanto de toda a família, Lúcia dissera:
‘Eu quero fazer teatro, quero ser atriz’. A resposta do pai foi como um
estouro de boiada: ‘Eu tenho propensão pra muita coisa, menos pra ser pai
de puta! (PAULAFREITAS, 1995, p.20-21).

A representação no palco e no prostíbulo


O fato é que a frase ofensiva da tia March igualando atriz a prostituta – tal
como fizera o avô materno de Glauber Rocha - aponta para uma similaridade não no
sentido do que, em língua inglesa, chamam de “fallen women” (mulheres perdidas),
mas, sim porque tanto uma como outra remetem a uma dissimulação, a uma
encenação, tal como aponta Isabelle Anchieta, em Imagens da mulher. Essa
historiadora aposta na ideia de que as cortesãs (um grau distinto da prostituição)
haviam assumido traços da modernidade antes do que os homens, uma vez que,
segundo ela, desde muitos séculos, as mulheres haviam sido obrigadas a
experimentarem “o jogo de posições e representações sociais”. Essas precursoras

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tinham sido bem sucedidas na simulação de poses e maneiras de classes sociais


acima das delas: “Sua falsa (ou mesma efetiva) mobilidade dependia não só dos
atributos físicos da cortesã, mas também da sua capacidade de atuar, ainda que seu
papel fosse de domínio público” (2021, p.163).
Reencontramos uma retomada do binômio atriz-prostituta no cinema norte-
americano em um outro filme de ficção, ambientado na cidade de Nova York. Trata-
se de uma história sobre um serial killer de prostitutas, intitulado Klute (1971). Jane
Fonda interpreta Bree Daniel, uma garota de programa (call girls), agenciada através
de telefone, que, após ser fichada pelo crime de prostituição pela polícia local, busca
aumentar a sua renda, candidatando-se a modelo fotográfico e a atriz, junto a uma
agente e a um diretor teatral, respectivamente. Ficamos sabendo que ela tem
experiência também nessa última especialidade: aulas teóricas com um professor
respeitado na área e outras aulas práticas: duas montagens como consequência
desse aperfeiçoamento. Até aqui, temos a informação de que essa call girl é
diferente de outras cinematográficas norte-americanas ou europeias. Mas o que a
diferencia? As respostas de Bree não são dadas aos seus eventuais clientes, mas
sim surgem no atendimento dela com a sua terapeuta. Ela confessa não conseguir
parar de fazer o que faz, o que a leva a não resistir a passar por um telefone público
sem perguntar a uma agente se há algum chamado para ela, que faz entre 600 e
700 programas por ano!
A terapeuta lhe diz que não há nenhuma “poção mágica” para extinguir isso,
mas, ao longo da conversa, Bree acaba por revelar porque realmente continua
sendo uma prostituta. Essa profissional da escuta lhe pergunta se ela estabelece
diferenças entre um chamado (telefonema) para posar, para trabalhar numa peça ou
para fazer sexo: “Como prostituta, você controla tudo porque alguém quer você. Não
a mim propriamente, mas querem uma mulher. E eu sei que sou boa [nisto]. Eu sei o

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que faço. [...] por uma hora, eu sou a melhor atriz do mundo, a melhor trepada do
mundo”. A terapeuta mata a charada: “Por que você é a melhor atriz do mundo?” Ao
que Bree concorda e discorre fluentemente: “Porque é uma representação. E isso é
que é bom. Você não precisa sentir nada. Não precisa ligar para nada, não precisa
gostar de ninguém. [...] Você controla, você decide o que vai acontecer. E sempre eu
me sinto ótima no final.
Em síntese, o que Bree explica para a terapeuta é algo que, certamente,
muitos usuários de trabalhadoras do sexo já sabem depois de algumas idas aos
prostíbulos: elas fingem o orgasmo, algo que os homens, por outro lado, não podem
fazê-lo por motivos óbvios. Na língua inglesa, a associação prática feita por Bree
entre interpretação teatral e o teatro do gozo talvez esteja mais próxima do que na
língua portuguesa uma vez que a palavra performance denomina várias atividades,
como o ato de interpretar no teatro, executar um concerto ou cantar uma música. Ao
passo que a expressão Performing Arts intitula atividades criativas que são
executadas [performed] diante de um público, como teatro [drama], música e dança.
Uma cena que visualiza o que ela argumenta com a terapeuta é quando ela atende
a um encontro com um senhor bem tímido. Ela está por baixo e, enquanto ela finge
estar tendo orgasmo, dá uma olhada no relógio de pulso dela, manifestando uma
certa preocupação. Aí está, indiscutivelmente, a performing art. É claro que as duas
menções feitas no filme Adoráveis mulheres, associando o trabalho de atriz com a
de prostituta, não sugerem essa analogia de que Bree é um exemplo, mas a arte
tem essa qualidade de provocar ilações, evocações, associações, de que vivem
enfim todos nós, comentadores, não é mesmo?

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A viagem e o baile
Por que tia March implica com a atividade de atriz, que Meg poderia
desenvolver profissionalmente como queria Jo, mas não se refere a um eventual
futuro de Beth como pianista ou de Amy como pintora? Uma das várias respostas
que poderíamos levantar no século em que se passa a história diz respeito a uma
possível imagem ideal da mulher-artista, trabalhando em seu próprio lar, no atelier
ou em apresentações em récitas domésticas, estas no caso de poetas e
instrumentistas. Independentemente da implicação acima daquela senhora ocorre
que Jo nada mais diz a ela sobre como pretende ganhar a sua vida sozinha, mas,
umas seis décadas depois, do outro lado do Atlântico, Virginia Woolf, em Profissões
para mulheres e outros artigos feministas (2019, p.10), por exemplo, mostraria que a
atividade de escritora, quando ela começou a viver disso, era “respeitável e
inofensiva”, pois “o riscar da caneta” não perturba a paz do lar e nem subtrai “nada
do orçamento familiar”. E diz mais: “Uma escritora não precisa de pianos [caso de
Beth], nem de modelos [caso de Amy], nem de Paris [local em que Amy estuda
pintura], Viena ou Berlim, nem de mestres [caso conjunto de Beth e Amy] e
amantes” (2019, p.10). E, como sempre, acrescenta Woolf, o fator econômico não
deixa de ser levado em consideração na decisão de permanecer em uma ocupação:
“Claro que foi por causa do preço baixo do papel que as mulheres deram certo como
escritoras, antes de darem certo em outras profissões” (2019, p.10).
Apesar dessas vantagens arroladas por Woolf, é ela mesma quem denuncia,
no livro acima citado, que a famosa Charlotte Brontë tinha que interromper a escrita
de suas histórias... para descascar batatas. O fato de poder trabalhar em sua própria
casa, tal como aqui é destacado, também era utilizado, na Paris do século XIX, por
exemplo, para se defender a presença da mulher nas artes plásticas, uma vez que
ela disposta “no interior da arena doméstica”, sendo “protegida do olhar do público e

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dos espaços condescendentes da vida urbana”, acabava por ser tomada como “uma
figura respeitável, engajada em uma atividade adequadamente feminina” na
confecção de artefatos, contribuindo assim para o orçamento familiar (GARB, 1999).
Enquanto uma eventual carreira de atriz por parte de Meg tem poucas
chances, uma das imagens mais representativas de sua caracterização é a sua
preocupação em conseguir um vestido belo o bastante para não fazer feio em um
baile de debutante de uma amiga, Sallie (Hadley Robinson). Na comentada abertura
desse filme, notamos que Meg surge, já adulta, casada e ansiosa por não ter folga
financeira suficiente para comprar um tecido caro. Se esse traço dela está
deslocado, avançadamente, naquela espécie de multiprólogo é porque o roteiro
entendeu que esse componente de sua personalidade deveria ser enfatizado logo
de saída. Meg acaba participando da grande dança com um vestido emprestado de
Sallie, que é de uma classe social superior às das little women.
Se o baile de debutantes sempre teve o caráter de uma apresentação de
uma adolescente à sociedade, esse é também um momento singular para que a
equipe de filmagem também se exiba: a figurinista, a direção de arte (Chris Farmer,
Brsyan Felty e Sean Falkner), o compositor da trilha sonora principal, a direção de
fotografia, Nick Houy (montagem) e a direção de Greta Gerwig mostram-se virtuosos
na encenação desse baile. Trata-se de um brilhantismno que essa equipe já havia
nos brindado na dança folclórica que Jo e Bhaer participam num bar após assistirem
a uma peça em Nova York. Toda uma animação do baile de debutantes, por sinal, é
entrecortada com tomadas de Beth ao piano da mansão do Mister Laurence (Chris
Cooper), sem companhia, executando peças clássicas de memória. Tem-se, então,
a clássica montagem alternada que intercala ações que transcorrem numa mesma
temporalidade.

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Antes que esse baile acontecesse e temendo que o evento fosse uma
oportunidade para que Meg encontrasse o que antigamente se chamava de
“Príncipe encantado”, Jo havia pedido a Laurie que a seguisse e mais: “Fique de
olho na Meg. Não a deixe se apaixonar”. A preocupação de Jo com as
consequências de um futuro casamento da irmã com um sedutor “pé-de-valsa”
qualquer parece ecoar o pensamento da narradora de Orgulho e preconceito, a
inglesa Jane Austen (2018, p.358), quando essa diz, a propósito da busca das irmãs
Bennet por um “bom partido”: “A imaginação de uma mulher é muito rápida; pula da
admiração para o amor e do amor para o matrimônio em um segundo”. Por outro
lado, alguns psicólogos da adolescência veem o apaixonar-se nessa fase como um
objetivo psicológico autêntico, servindo como uma “tentativa de projetar e testar o
próprio Eu, difuso e indiferenciado por intermédio de outra pessoa” a fim de clarear e
refletir sobre o próprio autoconceito e a própria identidade do Ego” do que a
“natureza sexual” a que se associará mais tarde. Esse, por exemplo, é pensamento
de Muuss, em Teoria da adolescência (1976, p.45-6).

Baile, paixão e casamento


O baile de debutantes cresce de importância uma vez que, para participar
dele, Meg terá de viajar por mais de uma semana e faz com que a mãe dela atribua
a esse deslocamento muita importância: “Garotas precisam conhecer o mundo para
[então] tirar suas próprias conclusões”. De certa forma, essa frase de Marmee
parece ser fruto de eventuais leituras dela de romances de viagem europeus. No
caso de Meg, o investimento feito por Marmee parece-nos mais associado à viagem
como uma oportunidade para a revelação de novidades, em especial no campo da
moda em que ela é fortemente interessada. Isso, no entanto, não a impediria de
descobertas mais amplas - além daquelas que Jo descortina nela - autodescobertas

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e de mais interação com diferenças culturais, no mínimo, se bem que, nesse


aspecto, não deixa de ser um ponto de partida o fato de seu pai ter se dedicado à
alfabetização de libertos. A viagem de Meg é uma ficcionalização, na literatura norte-
americana, de que esse filme é originário, de um dado da história cultural feminina
do outro lado do Atlântico em que, conhecendo outros lugares e outras culturas, a
jovem teria um complemento do que havia aprendido na escola, com os seus pais e
na leitura de romances e folhetins.
Jo, ao perceber Meg na direção do casamento com o preceptor de Laurie e
depois de já haver tentado convencê-la a ser atriz, a “viver no teatro” - “Você é a
maior atriz de Concorde até o rio Mississipi” -, chega a prometer mundos-e-fundos
para que a sua irmã não o consuma: compromete-se a fazer serviços braçais para
sustentar a ambas, além de continuar comercializando seus escritos. Isso depois de
propor que as duas fujam juntas. Se essa história se transcorresse, naquela mesma
época, na Inglaterra, por exemplo, Jo não teria dificuldades em arranjar colocação
em fábricas, onde encontraria também crianças, auxiliando a compor a renda
familiar. No entanto, o dado mais dramático dessa tentativa desesperada de Jo na
virada da mesa na vida da modesta Meg é que toda essa conversa é na manhã do
dia do casamento da irmã. Como uma das réplicas ao que lhe diz Meg, Jo é taxativa:
“Prefiro ser uma solteirona livre e remar minha própria canoa”. Meg calmamente
rebate que o fato de os sonhos dela serem diferentes daqueles da irmã escritora não
significa necessariamente que eles são menos importantes.
O iminente casamento de Meg ainda faz com que, Jo, muito emocionada,
diga, logo depois, que isso estaria apontando para o fato de que a infância delas
estaria acabando. Estranhamos que Jo tenha se referido à infância e não à
adolescência, o que se coaduna mais com o título original desse filme: Little women.
A ideia do casamento da primogênita dos March também é criticada, já agora por

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outros motivos, pela rica tia paterna pelo fato de John Brooke (James Norton) ser um
“professor pobretão”. De certa forma, a tia March sintetiza uma boa parte dos
preconceitos de classe de uma sociedade em determinada região dos Estados
Unidos se bem que seu irmão seja um simples pastor, a quem ela vaticina um futuro
de “indigente” quando ele estiver mais velho.
Afirmamos acima a nossa estranheza com a expressão “infância”, naquele
contexto, mas, curiosamente, isso se associa a um pensamento construído, em uma
certa Psicologia, mais de um século depois dos tempos dessa trama. Isso se
encontra precisamente gravado por Erik Erikson, quando, ao discutir a “confusão
identitária”, ele afirma a adolescência é “o último estágio da infância”. O seu
argumento para o uso, aqui, do conceito de infância, é de que o processo da
adolescência somente estará concluído quando “o indivíduo tiver subordinado as
suas identificações infantis a um novo tipo de identificação, encontrada ao absorver
sociabilidade e no aprendizado competitivo com e entre seus colegas da mesma
idade” (1994, p.155). Mais ainda: foi no século XIX, tempo da ambientação do filme
Adoráveis mulheres, que a adolescência como uma “crise identitária”, como quer
Erik Erikson, foi trabalhada pelas novas Ciências Sociais principalmente enfocando a
emergência da sexualidade e o treinamento na direção da cidadania.

PARTE IV. BETH: PIANISTA E OUVINTE


Beth, entre as quatro irmãs March, aparenta ser aquela com perspectivas
mais modestas: a rigor, ela não tem nenhuma em um lar no qual Jo já publica
narrativas breves e escreve peças, Amy é pintora, e Meg destaca-se como atriz
amadora nas montagens domésticas. Diferentemente do que acontece com suas
irmãs, Beth não tem vida amorosa e somente ganha raros destaques em cena
quando toca piano. Assim mesmo, quando aceita usar o instrumento de Mr.

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Laurence (Chris Cooper), ela o condiciona a não ter ninguém lhe escutando. Ela
executa peças clássicas “de ouvido”, sugerindo uma familiaridade com o instrumento
e o seu repertório. Há muitas obras clássicas na trilha sonora desse filme, sugerindo
que a estamos ouvindo praticar extraquadro, via trilha sonora, a cargo de Alexandre
Desplat. E que trilha: Bach, Beethoven, Brahms, Chopin, Dvorak, Gottschalk,
Gounod, Schumann e Vivaldi. Acima mencionamos que Beth não namora ninguém,
diferentemente de suas irmãs. Esse dado de sua caracterização pode parecer
irrelevante, no entanto quando trabalhamos com psicologia da adolescência – uma
das bases disciplinares desse texto -, levamos em conta que o namoro tem funções,
a saber: “uma forma de recreação (diversão e fonte de prazer), uma fonte de status
e realizações, parte do processo de socialização (aprendizado de como se dar bem
com os outros), envolve aprender sobre intimidade e contribui para a formação e o
desenvolvimento da identidade”.
Além de não precisar de leitor, público ou espectadores para a sua arte,
tanto para lhe conferir algum prestígio, renda ou popularidade, Beth é também a
única da prole de Marmee a não ter manifestado qualquer projeto de futuro. Quando
menciona a palavra sonho, ela o aplica à possibilidade de todas as quatro irmãs
permaneceram juntas a vida toda ao lado dos pais. Enquanto o talento artístico de
duas de suas irmãs surge sendo comparado, como um desestímulo, a Shakespeare
(caso de Jo) e a Rafael ou Michelangelo (o que acontece com Amy), o de Beth não é
julgado por ninguém, nem mesmo pelo seu mecenas, Mr. Laurence, que,
inicialmente, cede o acesso ao piano de cauda em sua mansão e, depois, lhe dá
outro piano, mais modesto, de presente
Ainda com relação à caracterização de Beth, para quem está investigando
representações de talentos artísticos ou não no cinema protagonizado por
adolescentes, fazem falta algumas informações sobre como a vocação dela surge e

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como ela foi alimentada (um tutor como aquele que instrui Laurie? Autoaprendizado?
Aquisição de partituras numa família de poucos recursos?). Vale registrar que o
fonógrafo somente seria patenteado por Thomas Edison em 1877, 12 anos após o
final da trama, e a família não parece ter recursos para a compra de partituras,
também. A menção a um invento mecânico - o fonógrafo - nesse ponto do texto
serve-nos também como uma espécie de deixa, provocando-nos uma digressão em
torno de um ponto que une três das irmãs (Meg, Amy e Beth), que é o “objeto único”
– seja a tela, a execução musical antes do surgimento do gramofone ou uma
apresentação teatral - mas o afasta sensivelmente, do ponto de vista da recepção,
de Jo, que é trabalhar com livros e contos para os jornais, ou seja, com a cultura de
massas, via veículos de massiva comunicação.
Parágrafos acima, chamamos a atenção para o fato de a tia March não
implicar com o fato de Beth ser uma pianista diante das objeções, para não dizer
campanhas, que ela fazia para que Amy deixasse de pensar em uma carreira de
pintora, Meg deixasse de vir a ser atriz profissional de teatro e Jo deixasse de
buscar se manter e a sua família como escritora. Uma pista para uma provável
resposta por essa exceção talvez possa ser buscada nas sínteses produzidas por
Dalila Carvalho em sua pesquisa O gênero da música em que analisa a construção
social da vocação musical erudita:
a) a predominância feminina no piano é consequência do ensino do
instrumento na educação feminina como parte das prendas domésticas, isto
é, como uma obrigação que independe do envolvimento dos pais com a
música, da vontade e da aptidão das moças; b) o piano era um instrumento
que convinha às moças, mais do que outro qualquer porque elas podiam
tocar sentadas, com as pernas fechadas e sem fazer grandes movimentos –
além de não ficarem de frente para o público, fazendo trejeitos faciais ou
corporais; e c) a predominância feminina no piano é consequência da
inclusão que facilitou o acesso das mulheres à sua prática (CARVALHO,
2012, pp.79;33;70-71).

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PARTE V. JUNTAS E MISTURADAS


Traços importantes dos dons, talentos, vocações ou inclinações profissionais
das quatro personagens-título do filme Adoráveis mulheres foram descritos acima.
Mas quais pontos em comum poderiam ser estabelecidos nas trajetórias delas?
Cremos que isso pode ser aventado excluindo a caçula delas, Beth, que morre antes
que possa ser cobrado dela algo na linha da angustiante pergunta: “O que você quer
ser na vida?” Tanto Jo como Meg e Amy se assemelham, entre outras coisas, por
enfatizarem em seus discursos os tópicos do casamento, da precariedade ou
abundância de rendas e da sobrevivência dia a dia. Em um de seus momentos mais
tristes, não por acaso no Natal, Meg se lamenta: “É horrível ser pobre. Eu queria ter
rios de dinheiro e muitos empregados para não ter que trabalhar de novo”. `A revelia
desse pensamento, essa situação se prolonga após ela se casar com um professor
“pobretão”, como o chamava a tia March.
Meg tem uma ideia tão clara de que isso aconteceria que, no baile de
debutantes, deixa-se chamar de “Daisy” [Margarida], como se fosse um papel no
teatro. Acresce a isso, pedindo a Laurie que não diga para Jo o quanto ela pretende
se divertir, advertindo-o que vai ser “boazinha” o resto da vida dela. O adjetivo
“boazinha” pode ser lido como o que virá depois dessa espécie de despedida de
solteira que ela se oferece com muita antecedência. Correndo o risco de um certo
exagero uma vez que se trata de apenas um baile, o que Meg está fazendo com e
dele talvez seja a ilustração daquilo que Erik Erikson (1994) entende como
“moratória psicológica”, se bem que pensada para períodos mais longos. Esse
psicólogo conceitua a moratória como “um período de retardamento” que alguém se
concede uma vez que não se encontra preparado para dar conta de uma obrigação,
sendo uma espécie de postergação de compromissos adultos”.

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Retornando ainda ao “boazinha”, proferido por Meg – com relação ao seu


esperado comportamento no seu futuro casamento –, talvez se possa buscar um
começo de resposta para esse qualificativo generificado em um ensaio publicado na
Inglaterra no século XIX, de certa forma, contemporâneo a esse drama: A sujeição
das mulheres, de John Stuart Mill (2000). Interessa-nos pontualmente nesse texto
clássico o que ele diz sobre o casamento àquela época como uma “servidão” e,
assim, “uma contradição monstruosa a todos os princípios do mundo moderno” e
que poderia ser aplicado à advertência de Meg: “Este é o único caso – agora que a
escravidão negra foi abolida – no qual um ser humano, na plenitude de todas as
suas faculdades, é entregue às clemências instáveis de um outro ser humano na
real esperança de que este outro somente usará este poder para o bem da pessoa
sujeita a ele” (2000, p.114). Como esse pensador achasse isso pouco, parágrafos
adiante, retoma o ousado argumento: “O casamento é o único cativeiro real admitido
pela nossa lei. Não existem escravos legais, exceto a dona-de-casa em seu lar
(2000, p.114)”.

Literatura, marido e filhos


Talvez seja esse discurso de Mill que esteja por trás da obsessão que Jo
tem em impedir que Meg se case. Na metade do século XX, Simone de Beauvoir
acrescentaria sobre o trabalho não-remunerado da dona-de-casa que ele não lhe
proporcionava “autonomia”, não era “diretamente útil à coletividade” e não
desembocava no futuro. Enfim, “não produz nada”. Esse trabalho, em seu
entendimento, “[s]ó adquire sentido e sua dignidade se é integrado a existências,
que se ultrapassam para a sociedade, na produção ou na ação: isto significa que,
longe de libertar a matrona, ele a coloca na dependência do marido e dos filhos”
(1980, p. 209).

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Além do mais, no quesito “casamento de Meg”, Jo poderia argumentar na


defesa de seu celibato essa observação da inglesa Virginia Wollf, em Mulheres e
ficção: “É significativo que, das quatro grandes romancistas – Jane Austen, Emily
Brontë, Charlotte Brontë e George Eliot -, nenhuma delas teve filhos, e duas não se
casaram” (2019, p.11). Para que isso acontecesse, houve mudanças importantes no
seu contexto [europeu, em síntese] como pontua Woolf nesse mesmo texto, que
“pequenas mudanças nas leis, nos costumes e nas práticas sociais” na Inglaterra no
século XIX tiveram como uma de suas consequências que mulheres de
determinadas classes sociais passaram a desfrutar de “algum tempo livre e de certo
nível de instrução” – de que são exemplos, na Costa leste dos Estados Unidos, na
segunda metade daquele século, as prendadas (escritora, pintora, pianista e atriz)
quatro irmãs do filme Adoráveis mulheres. Isso segundo ainda Woolf, estaria por trás
também da “extraordinária explosão de ficção” naquele período no começo do
século XIX na Inglaterra e, por fim, “[e]scolher o próprio marido não era mais uma
exceção, só para mulheres da classe alta”.
O fato é que os pensamentos de Amy com relação ao casamento são bem
diferentes daqueles de Jo. Em várias oportunidades, ela destaca que sempre
sonhou em se casar... com um homem “extremamente rico”. Em uma discussão com
Laurie, em Paris, quando este lhe diz que ela vai ser a futura esposa do abastado
Fred (Dash Barber), mesmo sem amá-lo, Amy reclama que, como uma mulher, ela
não possui os meios de ganhar o seu próprio dinheiro, o suficiente para se sustentar
e sustentar a sua família. E aí vem a crítica política à ordem das coisas nos Estados
Unidos – e não somente lá, acrescentamos – à época:
- Se eu tivesse o meu próprio dinheiro – o que não tenho – ele pertenceria
ao meu marido a partir do momento em que nos casássemos. Se nós
tivéssemos filhos, o dinheiro seria deles, e não meu. Ou seja, seria
propriedade do meu marido e não venha me dizer que o casamento não é

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um acordo econômico porque o é sim. Pode não ser para você, mas
certamente o é para mim.

As bases antigas do patriarcado


O que Amy está dizendo acima é simplesmente uma explanação didática
sobre a Lei de cobertura, uma jurisprudência estabelecida, na Inglaterra, em 1795, e
expandida para vários países de língua inglesa até o final do século XIX, tempo da
história do filme Adoráveis mulheres. E do que tratava essa legislação? Ela
determinava que todos os bens de uma mulher – propriedades, dinheiro e as
heranças dos pais dela - passavam a ser patrimônio do seu cônjuge a partir do
casamento. A inglesa Lei de cobertura ia além dos dispositivos financeiros, uma vez
que estabelecia que a mulher casada ficava sob a proteção e sob a autoridade do
marido.
A fala acima de Amy sintetiza muito do que se pode discorrer sobre as bases
antigas do patriarcado. Por exemplo, quando ela diz que a herança do marido
passaria para seus filhos traz à tona algumas coisas: há a necessidade, nesse
sistema cultural, de que a noiva seja virgem – para garantir de que não haveria a
possibilidade de filhos anteriores “da rua” – como se diz no Brasil - e de que, casada,
seja fiel para não se ter o risco de filhos fora do casal. Com a virgindade pré-nupcial
e o duplo padrão (“santa esposa” versus marido garanhão) a sucessão da
propriedade não corre riscos de se destinar a bastardos. Engels, em A origem da
família, da propriedade privada e do Estado, mostra como toda essa intrincada
relação foi fundamental para que se instaurasse a família individual como uma
“unidade econômica”. Uma construção sofisticada que Amy, singelamente, simplifica
ao dizer para Laurie que o casamento é um “acordo econômico”, expressão que Jo
também utiliza para o seu editor quando discutem o final do romance que ela lhe

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entrega e que ele exige o casamento da protagonista ao final da trama, porque, do


contrário, o livro dela não venderia.
Ainda sobre a fala de Amy sobre o casamento como um “acordo
econômico”, vale destacar que a historiadora Isabelle Anchieta, em um dos capítulos
do livro Imagem da mulher, atribui a imputação de um caráter comercial ao
casamento como uma forma, em tempos pretéritos, de se “lutar contra a escassez
de recursos materiais e garantir a sobrevivência do grupo. Nesse sentido, não é
exagero pensar a virgindade da mulher como um capital social (moral e financeiro)
para as famílias” (2021, p.91).

A economia política do matrimônio


Em outro momento de suas conversas com Laurie, Amy lhe diz que o
casamento é um “acordo econômico”. Antes de ser uma fala neste filme ou um
trecho de diálogo no romance que lhe originou, há como se localizar essa
construção na História. A fala lúcida de Amy – uma simplificação de uma tese
engeliana - reverbera também nessa observação de Franco Moretti no já citado O
romance de formação de que, a partir do final do século XVII, o casamento passa a
ser entendido, civilmente, como “o modelo de um novo tipo de contrato social: não
mais estabelecido por forças que se situam fora do indivíduo (como outrora o
status), mas sim fundado sobre o seu sentido de ‘obrigação individual’ (2020, p.52) A
partir desse contexto, digamos, jurídico, Moretti defende a justificativa para que a
maioria dos romances de formação tenha o seu final assinalado por casamentos. E
arremata esse autor: “O casamento como metáfora do contrato social: isso é tão
verdadeiro que o Bildungsroman não lhe opõe o celibato, como, no fim das contas,
seria natural, mas sim a morte ou a ‘desgraça’” (2020, p.52).

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De passagem, encontramos, no estudo A criação do patriarcado, de Gerda


Lerner, um levantamento em quase 2.500 anos de história ocidental e oriental, uma
argumentação sintética, que se aplica, em termos, a boa parte dos discursos sobre
aspectos do patriarcado – como aqueles levantados por Amy- ao longo do filme
Adoráveis mulheres, e que parafrasearemos entre os colchetes para efeitos
didáticos. Essa autora afirma que esse sistema somente tem funcionado ao longo
daquele período com a “cooperação” das mulheres e que essa cooperação se dá
pelos seguintes meios:
a) “doutrinação de gênero” [de que se encarrega a rica tia March em suas
conversas com Jo e Amy];
b) “carência educacional” [Jo, quando recebe o palacete da tia March como
herança, a diz que vai transformá-lo numa escola mista porque são ruins as escolas
para as meninas e mulheres];
c) “negação às mulheres do conhecimento da própria história” [no que as
escolas ruins exclusivas para meninas contribuiriam, segundo Jo];
d) “divisão de mulheres pela definição de ‘respeitabilidade e ‘desvio’ de
acordo com suas atividades sexuais” [lembremos das ‘sirigaitas’ com que Jo tenta
convencer Meg a ser atriz e como a tia March acha que atriz e prostituta são
“praticamente a mesma coisa”];
e) por “restrições e coerção total”;
f) por meio de “discriminação no acesso a recursos econômicos” [discurso
de Amy sobre a falta de poder econômico das mulheres e da tia March sobre a
incapacidade de Jo ganhar a vida sem estar casada]; e
g) pela “concessão de privilégios de classe a mulheres que obedecem” [o
que está por trás do discurso de tia March que Amy pode “salvar” a sua família e os
pais dela, “futuros indigentes”, casando-se bem, o que não fez, segundo ela, Meg e

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que Jo “não tem salvação”]” na defesa intransigente do celibato feminino. (2019,


p.267).
O pensamento de Amy, mais acima, de que o casamento é um “acordo
econômico” curiosamente voltará à cena quando, próximo ao final da narrativa, Jo
discute com o seu editor o valor dos seus direitos autorais. Ele gosta somente um
pouco dos originais do romance que ela lhe prometera, mas o interesse de suas três
filhas adolescentes pelo texto em progresso faz com que ele comece as
negociações acima citadas. Em uma das últimas cenas do filme, Jo confessa às
irmãs que a vida delas está sendo retratada num romance que está sendo
negociado com o seu editor. O fato de ela resolver fazer de suas irmãs – mais
propriamente das aventuras de suas adolescências – o tema de seu próximo livro,
nos Estados Unidos pós-Guerra civil talvez seja um reflexo do que, na realidade
imediata, está acontecendo na Europa em que jovens estão se tornando
protagonistas de narrativas prestigiadas, como se tem, por exemplo, no romance A
educação sentimental (1869), de Gustave Flaubert. Já Virginia Woolf, em Mulheres e
ficção, nos informa que, nas primeiras décadas do século XIX, os romances escritos
(e assinados) por mulheres eram, em sua maioria, autobiográficos e justifica porque:
“Um dos motivos que as levavam a escrever era o desejo de expor o próprio
sofrimento, de defender sua causa” (2019, p.16).

Por que escrever? Para quem escrever?


Desde o início da narrativa, fomos postos em contato com o trabalho literário
de Jo, publicando histórias “curtas e apimentadas”. No entanto, o filme caminha para
o seu desfecho quando Jo começa a pensar sobre o que fazer com a mansão que a
ácida tia March lhe havia deixado como herança. Amy e Meg, já casadas, a
acompanham na visita àquele imóvel. Na caminhada de volta para as suas casas, Jo

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lhes diz que pretende usar aquele local como uma escola – para compensar as más
escolas que elas haviam frequentado, inspirando-se também no fato que várias
faculdades exclusivas para mulheres estavam sendo abertas. Entre essas, estava a
laica Vassar College, criada em 1861 e que somente passou a ter turmas mistas em
1969. Se Jo tivesse se referido a isso nas conversas com tia March, teríamos tido
uma piada interna uma vez que Meryl Streep lá estudou.
A despeito de já ter publicado contos, Jo se mostra desanimada a produzir
mais textos de ficção argumentando para Amy que a sua escrita não havia salvo a
vida da caçula. Ela acresce que escrever sobra a história dela e de suas irmãs talvez
pouca atração tivesse para o mercado editorial, argumentando que não via muito
futuro nessa empreitada uma vez haveria nulo interesse de leitores sobre “uma
história de lutas e alegrias domésticas?” A, agora, amadurecida Amy rebate dizendo
que o tema pode não parecer importante por não haver obras sobre isso. Jo treplica:
“Escrever não confere importância. Só reflete isso”. Amy contrapõe: “Acho que não.
Escrever torna tudo mais importante”.
As duas últimas falas desse diálogo apontam sinteticamente para uma
discussão sobre a necessidade social ou não da arte numa família em que a mais
velha das little women desistiu de uma eventual carreira teatral, a caçula somente
tocava piano sem que ninguém fora da família a assistisse e na qual a própria Amy
também havia desistido de uma carreira profissional como pintora. Em certa medida,
o pessimismo de Jo quanto a uma carreira artística já havia sido sinalizado após a
morte precoce de sua irmã caçula quando ela justificara para a sua mãe não estar
escrevendo mais porque a sua literatura não havia ajudado Beth a sobreviver.
E sobre o destino final de Beth, independente de dados biográficos sobre a
irmã caçula da autora de Little women, o fato é que a sua caracterização, tristonha,
tímida, isolada, doentia e tida por Jo como “a melhor de todas”, é um tipo recorrente

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na literatura daquela época, como observa Bruno Gambarotto em nota de rodapé na


sua tradução de Mulherzinhas: “Um elemento recorrente na ficção da época era a
morte trágica de uma criança ou jovem, reconhecidamente bondosa [o], marcando o
contraste entre a vileza e a hipocrisia do mundo social e a pureza dos valores
morais” (2019, p. 238). Segundo ele, esse “dispositivo” poderia ser encontrado
também na ficção de Charles Dickens, Charlotte Brontë e Harriet B. Stowe. Ainda
sobre o tipo mencionado acima, lembramos da morte, fruto de uma paixão interdita,
da adolescente personagem-título do romance Inocência (1872), de Visconde de
Taunay, tornado filme com o mesmo nome em 1983, protagonizado por Fernanda
Torres, e também em outra adaptação literária, A ostra e o vento (1997) em que a
personagem (interpretada quando adolescente por Ângela Leal) morre tão logo
chega à puberdade e descobre o desejo sexual.
Ao pessimismo pontual de Jo, acentuado após a morte da irmã caçula,
poder-se-ia agregar esses versos de Fernando Pessoa, em “Liberdade”: “O sol
doira/ sem literatura. /O rio corre, bem ou mal, / sem edição original”. Do outro lado
do Atlântico, mas mantendo o mesmo tom pessoano, Ferreira Gullar diria, em
“Homem comum” (1975): “Poeta fui de rápido destino. / Mas a poesia é rara e não
comove/ nem move o pau-de-arara”. A essas melancolias pessoana e gullariana (em
parte), podemos contrapor, levando água para o moinho de Amy, esses cantos de
esperança de Caetano Veloso na efetividade da arte literária: “Qualquer canção,
quase nada/ vai fazer o sol levantar/ vai fazer o dia nascer” (“Avarandado”, 1967) ou
essa aposta de Carlos Drummond de Andrade, em “Canção amiga”, 1948): “Eu
preparo uma canção/ que faça acordar os homens / e adormecer as crianças”.
Aquele algo a que Jo se referia acima como um trabalho em progresso,
antes da tristeza pela morte de Beth, é finalmente levado ao editor Dashword, que,
de início, já lhe indaga porque a protagonista desses originais não se casou com o

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seu vizinho. Ao que ela responde que ele o fez com a irmã dela, sinalizando que o
romance que está sendo proposto para publicação é a história das próprias
“adoráveis mulheres” e que a protagonista não se casou com ninguém, o que
contraria uma ordem inicial dele que a história que ela estava escrevendo se
encerrasse com as núpcias de sua protagonista ou com a morte dela. Jo lhe
responde atentando para a sua coerência ao longo de várias tratativas uma vez que
protagonista havia repetido infinita vezes que nunca se casaria. Ele se irrita, dizendo
que “garotas” – o que pressupõe o público cativo de romances à época – “querem
ver as mulheres casadas, e não consistência. Esse não é o final certo. Ninguém vai
querer comprar um livro com o final tendo a protagonista solteira”. Estava dada a
deixa para termos de volta aquilo que Amy havia dito para Laurie quando assumira
abandonar a pintura como vocação e se casar com um homem rico. Jo diz para o
editor a mesma frase: “O casamento sempre foi um acordo econômico”, ao que Jo
acrescenta: “... até na ficção”. Dashwood insiste que o assunto é “romance” ao que
ela rebate que é mercenarismo. Afinal, ela encontra uma saída, talvez inspirada no
discurso de Amy, e muda o final: “Se eu for casar minha protagonista por dinheiro,
acho bom ganhar dinheiro.
Em meio àquelas discussões na editora, Mr. Dashwood propõe a Jo
comprar-lhe os direitos autorais, o que lhe deixaria à vontade para se utilizar das
suas personagens em outras histórias – não necessariamente escritas por ela - ou
produzir sequências, dependendo da aceitação do romance que está sendo
negociado. Não por acaso, nas últimas linhas do volume I de Little women, Louisa
May Alcott se despede, acentuando isso a probabilidade ou não de uma
continuação: “E, assim, a cortina cai sobre Meg, Jo, Beth e Amy. Se ela se erguerá
novamente ou não, isso dependerá da recepção dada ao primeiro ato do drama
doméstico chamado Little women [Mulherzinhas]”. Anos depois, seria publicada a

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continuação do romance Little women, editado na Inglaterra sob o título de Good


wives.

PARTE VI. ASPECTOS DE UMA EXCELÊNCIA FÍLMICA


As últimas imagens do filme Adoráveis mulheres, assim como as primeiras
delas, têm a protagonista em cena, tomadas essas que são alternadas com a festa
de aniversário de Marmee nos jardins com as famílias de Amy, de Meg e a sua. As
crianças dão um tom de alegria. Toda essa festa é entrecortada com planos rápidos
e detalhados do processo de confecção de um livro nos Estados Unidos na segunda
metade dos anos 1890. Tem-se, então, imagens de rolo compressor, tesoura, fios
costurando os cadernos, correias da prensa, etc. Jo se posta, na editora, por trás de
uma vidraça, como se fosse espectadora do processo de confecção. Imagens da
prensa manual. A costura paciente dos cadernos, a produção da capa dura,
novamente a prensa. Tudo isso ao som de uma música envolvente.
Em determinado momento, a vemos acompanhando o primeiro exemplar lhe
sendo trazido por um gráfico. Ela se coloca então de costas para a câmera ao
recebê-lo, como nas primeiras tomadas da primeira sequência, como se estivesse
também a esconder do espectador a sua primeira emoção. Volta-se para a vidraça e
acompanha a confecção dos outros exemplares. Por instantes, Jo olha para baixo e
abraça fortemente aquele esperado volume de Little women, é um símbolo de uma
vitória: de seu talento, de ter perseguido uma vocação e de ter se sobreposto ao
negativismo de tia March, entre outras coisas. Lentamente, algo muda: Jo começa a
respirar fortemente e ergue o peito confiante, como na sequência inaugural, mas,
agora, celebrando uma vitória pessoal enquanto a montagem nos transporta em
toda essa sequência de impressão, uma comemoração pessoal, para uma
celebração coletiva: o aniversário de sua mãe.

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É claro que as sequências mencionadas acima, além de transcorrerem em


espaços diversos, também não são concomitantes. No entanto, cabe à montagem,
no caso, do tipo paralela – uma vez que não há simultaneidade – alternar a
associação entre a festa de Marmee e a vitória de Jo. Frequentemente, esse tipo de
montagem é usado principalmente para acentuar relações temáticas, que, às vezes,
o espectador vai ser solicitado a fazê-las com sua atenção, mais do que estabelecer
relações temporais, emocionando-se. A protagonista então, abraça o citado
exemplar como se fosse um bebê. E então nos encara placidamente, remetendo
inversamente à primeira tomada da sequência de abertura em que nos é mostrada
de costas e de cabeça baixa.
Mais acima, chamamos a atenção para edição entrecortada da confecção de
um livro e de uma festa de aniversário, destacando uma das funções da montagem
paralela. No entanto, podemos encontrar um outro tipo de paralelismo, agora, de
certa forma, temático, o qual diz respeito a como o filme se encaminha para o seu
desenlace. Enquanto Jo discute com o editor como deve ser o final, há imagens –
como se fosse imagens mentais dela – de ela indo atrás de Baher, admitindo, enfim,
que ele é o seu par romântico. Associa-se então a descrição dela do final que o
editor queria com o que acontece na “realidade” da história. Assim, temos, numa
sequência, através de alternâncias de planos que se dão em espaços diferentes, a
associação de um desfecho amoroso feliz com a viabilidade da publicação do
primeiro livro dela.
Por incrível que pareça, o roteiro desse filme, no desenlace da trama, acaba
por se utilizar de um expediente, de um macete, do filme musical hollywoodiano tal
como sistematiza Jane Feuer (1993), ao tratar dos “mundos do sonho” e dos ‘palcos
do sonho”. Tomando como corpus os musicais que tratam de ensaios de
espetáculos, entre os anos de 1933 e 1953, ela afirma que os finais desses filmes

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quase sempre associam a consecução de um par romântico com o sucesso dele,


como protagonistas, na estreia. Isso proporcionaria uma vitória do princípio do
prazer (o mundo da imaginação, o mundo da liberdade, os impulsos, a
espontaneidade) em detrimento do princípio de realidade. Em termos musicais, ter-
se-ia uma espécie de “coda de casamento”, tendo como imagem-símbolo o casal
artístico-amoroso abraçado ou em um grande beijo. No caso do filme Adoráveis
mulheres, o par que se forma ao final – Josephine e Bhaer – não se livra do primeiro
e grande beijo em meio a uma chuva. Esta é, por sinal, uma das mais constantes
imagens-clichê do cinema mundial, ao lado de outras, como a Pietá (a escultura de
Michelangelo), a mulher à janela, a mulher diante do espelho, o pensador, as
escadas e o caminhar em direção ao horizonte, entre outras imagens repertoriadas
por Jordi Balló em levantamento exaustivo no livro Imágenes del silencio (2000).
Além das imagens-solo de um processo editorial hoje obsoleto, essa
sequência, com 40 tomadas alternadas entre a gráfica e os jardins em que se dá a
citada comemoração é verdadeiramente também um solo de interpretação,
comprovando outra vocação, a de Saoirse Ronan como atriz. Por que dizemos isso?
Nos planos relativos à impressão, há um conjunto variado e sutil de expressões
faciais dela. Essa virtuosidade de interpretação cinematográfica cresce de valor se
atentarmos para o fato de que ela não estava contracenando com uma pessoa ou
um animal, mas, sim, provavelmente com um ponto qualquer no piso do estúdio.

Disposição das sequências x rimas e ecos


Ao sair da casa dos March pela primeira vez, Laurie contempla ao longe a
sua fachada. Todas as luzes estão acesas, o que é curioso pois se trata de um
imóvel com dois pavimentos e um sótão. Há um corte para janela deste andar e é
onde Jo está de pé, lendo folhas soltas. Senta-se. Um outro corte imediato mostra-

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nos um plano geral de prédios em Nova York. Noite. Há apenas luz numa janela. Por
trás da vidraça, vê-se Jo escrevendo. Muda-se de unidade de lugar, muda-se de
unidade de tempo, mas a trilha sonora é a mesma, passa de uma sequência para
outra, acentuando o paralelismo temático: a atividade laborativa, feita em silêncio,
solitariamente na calada da noite. Na teoria da montagem em audiovisual, isso que
ocorreu leva a denominação de “rima visual” ou “montagem em eco”.
Outro exemplo bem nítido de rima visual – com a presença de uma mesma
temática, no caso, a morte – dá-se quando temos associados duas posturas do olhar
de Jo sem que haja uma relação clara imediata dessa ligação. Seus pais e Meg a
acompanham no enterro de alguém. Todos saem de frente da lápide, mas Jo
permanece olhando para baixo e ligeiramente para a esquerda. Há um corte, e
temos a imagem dela no mesmo enquadramento, olhando para baixo e para a
esquerda. Ela está no primeiro andar de sua casa e vê, na entrada, Beth, que, como
se sabe atravessa toda a narrativa doente. Qual a síntese que se pode produzir
dessa montagem? Jo, em breve, teria que voltar a um cemitério para se despedir de
Beth? Nesse ponto, há uma espécie de brincadeira, uma pegadinha como se diz
hoje, uma vez que Beth não era Beth que estava sendo enterrada. Em mais duas
oportunidades, a instância narradora sugere que Beth já havia falecido, provocando
um desespero em Jo e, provavelmente, uma tristeza na recepção. De passagem, no
segundo enquadramento, a configuração fotográfica do rosto de Jo quase de perfil
remete quase imediatamente a uma forte referência na pintura, e não se trata do
Impressionismo, já citado. Em nosso entendimento, é uma espécie de citação
plástica, uma referência à figura central do quadro O nascimento de Vênus (c.1485),
de Sandro Botticelli (c.1445-1510).
Às vezes, tem-se duas sequências que se alternam com a mesma temática
– no caso, dança -, mas o modo como elas se dão, de certa forma, não ecoa, elas

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se contradizem. Meg e Laurie estão no baile de debutantes de Annie e dançam


conforme padrões específicos para esse momento, ou seja, as normas de um
valsear em grupo. Há um corte, e temos Jo e Bhaer em um bar logo após assistirem
a uma peça de teatro. Cada casal dança como quiser na maior alegria enquanto os
garçons vão se esgueirando entre eles. Cada sequência de dança é um dos
componentes da caracterização dessas duas irmãs.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quase todos os filmes de ficção ou dramas biográficos que tratam de
vocação ou de formação artística, há quase um século, centram-se em uma só
história ou a história de uma só pessoa, talentosa, genial, única, e isso não é pouco.
Assim, tivemos, quase ao longo de um século, dramas focalizando o nascimento e a
consolidação de virtuoses em vários campos artísticos: pintura (Caravaggio, Goya,
Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Van Gogh), escultura (Michelangelo, Rodin),
música clássica (Beethoven, Liszt, Mozart), literatura (Virginia Woolf, Vera Britain,
Mary Shelley), rock (Jim Morrison, John Lennon, Elvis Presley, Fred Mercury, Elton
John), jazz (Billie Holiday, Charlie Park) e balé (Nijinsky, Isadora Duncan), entre
outras modalidades artísticas. Em todos esses exemplos, que não são exaustivos,
têm-se uma cinebiografia.
Com raras exceções, as cinebiografias de artistas pautam-se pelos
seguintes aspectos: a) ênfase em traços que marginalizam os artistas com relação a
fatores étnicos, de orientação sexual ou de deficiência física; b) o talento que se
manifesta precocemente, de preferência na infância; c) a criação como um dom que
não necessita de exercícios, treinamento ou tutoria especializada; d) o definhamento
pessoal e profissional como consequência da dependência química; e e) a pouca
contribuição da função social da arte de cada um deles. É claro que o drama

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Adoráveis mulheres não é uma cinebiografia, mas é uma ficção como as obras
desse subgênero costumam ser. Além do mais, como pontuamos no início desse
ensaio, o filme em pauta distingue-se desse corpus principalmente por dar conta,
com maestria em seu roteiro, das aventuras de quatro adolescentes diante de quatro
vocações das personagens-título: literatura (Jo), pintura (Amy), interpretação teatral
(Meg) e interpretação musical (Beth).
Como se o afirmado acima fosse pouco, o roteiro dessa adaptação
contextualiza a luta pela afirmação de uma vocação de três das quatro “adoráveis
mulheres” na segunda metade do século XIX numa cidade do interior do Leste dos
Estados Unidos em uma família de um pastor (!). De forma brilhante, têm-se as
peculiaridades na aproximação de cada uma delas com uma arte, os impasses
decorrentes de uma eventual profissionalização no campo artístico e as idas-e-
vindas no plano do amor romântico, bem a propósito do universo de leitoras (sim, no
feminino) a que se destinava mercadologicamente o romance de Alcott no tempo em
que fora lançado. Como são as mesmas atrizes, sem maquiagem, que atravessam
todo o filme, talvez isso torne difícil se perceber que se trata de uma história de
adolescentes, que, ao longo de alguns anos, vão passando da fase da adolescência
inicial (bem assinalada no romance Mulherzinhas com as idades de cada uma delas)
para a adolescência final ou adultez emergente, fase essa marcada pontualmente
pelos casamentos de Jo, Amy e Beth.
A despeito do tratamento cuidadoso, minucioso que o roteiro dá às
caracterizações de Amy, Meg e Beth, há que se considerar que Jo é realmente a
protagonista e não só porque ela está em cena a maior parte do tempo, mas,
principalmente pela densidade que as suas falas colocam, além de ser o centro na
vida das irmãs. Não por acaso ela é a única que, ao final da história, não teve que
abandonar uma eventual carreira ao se casar. Esse final positivo, se considerarmos

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um eventual efeito pedagógico da ficção, trabalha no sentido de um estímulo a quem


tenha alguma dúvida na busca das condições de consecução de um ideal. E, de
quebra, pode soar como uma alusão à biografia da própria autora do romance que
deu origem a esse filme: Louisa Alcott. E, no mais, diante da excelência de
Adoráveis mulheres, somente nos resta concluir esse ensaio com um trecho do Livro
das orações inglesas, de 1662: “Quando nos confrontamos com uma obra de arte,
essa talvez seja a nossa única reação possível: o equivalente a uma prece de
gratidão por nos permitir, com nossos sentidos limitados, um número infinito de
leituras, que, para o nosso maior proveito e alegrias, trazem a possibilidade de
esclarecimento”.

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SANTROCK, John. Psicologia da adolescência. Porto Alegre: Artmed, 2014.

SIMIONI, Ana Paula. Profissão artista: pintoras e esculturas acadêmicas


brasileiras. São Paulo: EDUDSP, 2019.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos femininos. Porto


Alegre: L&PM, 2019.

FILMES

ADORÁVEIS mulheres (Little women). Estados Unidos. Direção e roteiro: Greta


Gerwig. 1DVD (135min), son., cor.

KLUTE (Klute). Estados Unidos. Direção: Alan Pakula. Roteiro: Andy Lewis e David
Lewis. 1DVD (114min), son., cor.

Revista Livre de Cinema, v. 10, n. 2, p. 9-52, abr-jun, 2023


ISSN: 2357-8807

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