N. 139 (2023) EDIÇÃO E POLÍTICA
N. 139 (2023) EDIÇÃO E POLÍTICA
N. 139 (2023) EDIÇÃO E POLÍTICA
Trimestral.
Continuação de: Revista da Universidade de São Paulo
Descrição baseada em: N. 93 (2012)
ISSN 0103-9989
27 A Difel e a coleção Corpo e Alma do Brasil: princípios para a construção de uma brasiliana universitária
(1957-1964) Fabiana Marchetti
41 “A cultura a serviço do progresso social”: a atuação de Jorge Zahar na construção de um projeto de país
Leonardo Nóbrega
87 Instituto Roberto Simonsen e Franklin Book Programs: relações internacionais e políticas editoriais
para um Brasil “em desenvolvimento” (1965-1971) Laura de Oliveira Sangiovanni
105 Sociabilidades literárias paulistas e as edições de poesia da Livraria Duas Cidades (1970-1980)
Hugo Quinta
textos
125 O preço da liberdade é a eterna vigilância: os desafios das democracias frente ao crescimento
da extrema direita Carla A. Risso e Marcello C. Rollemberg
arte
152 Portinari: sonho e realidade Elza Ajzenberg
livros
175 Lições para sair do atoleiro Daniel Afonso da Silva
Conselho Editorial
ALBÉRICO BORGES FERREIRA DA SILVA
CICERO ROMÃO RESENDE DE ARAUJO
EDUARDO VICTORIO MORETTIN
EUGÊNIO BUCCI (membro nato)
FERNANDO LUIS MEDINA MANTELATTO
FLÁVIA CAMARGO TONI
FRANCO MARIA LAJOLO
JOSÉ ANTONIO MARIN-NETO
OSCAR JOSÉ PINTO ÉBOLI
Jurandir Renovato
6 REVISTA USP • SÃO PAULO • N.92 • P. XX-XX • DEZEMBRO/FEVEREIRO 2011-2012
Marcos Santos/USP Imagens
edição
e política
Apresentação
E
m “Cultura e política (1964- dezembro de 1968, pelo presidente Costa
1969)”, Roberto Schwarz e Silva. Destarte, o acirramento do estado
desenvolve “alguns esque- de violência sobre os setores culturais que
mas” interpretativos com se instaura, a partir de então, pode ser
vistas a decifrar o Brasil compreendido, segundo o autor, porque
após o Golpe de 1964. “em 1968, quando o estudante e o público
Para tanto, parte da dos melhores filmes, do melhor teatro, da
seguinte premissa: “A pre- melhor música e dos melhores livros já
sença cultural da esquerda constituem massa política perigosa, será
não foi liquidada naquela necessário trocar ou censurar os profes-
data, e mais, de lá para sores, os encenadores, os escritores, os
cá [o artigo foi escrito em músicos, os livros, os editores – noutras
1970] não parou de crescer palavras, será necessário liquidar a pró-
[...]. Apesar da ditadura da direita, há pria cultura viva do momento” 2 .
relativa hegemonia cultural da esquerda Particularmente no que se refere ao
no país”, que se concentra, cumpre frisar, mundo dos livros, a prisão do editor Ênio
“nos grupos diretamente ligados à pro- Silveira, em 14 de dezembro de 1968,
dução ideológica”1, portanto, longe das ou seja, no dia seguinte à publicação do
massas. Segundo o autor, esse quadro ou AI-5, guarda um significado profundo para
“esta anomalia” se mantém até a imposi- uma parte do setor cultural que apostava
ção do Ato Institucional n. 5, em 13 de na leitura, antes, na formação do leitor
como um instrumento de transformação
A
(Bosi, 1987, p. 9).
no princípio da produção e difusão do conhe- parte atendida pelo mercado, de obras cientí-
cimento, o que faz do editor, nas palavras de ficas em língua portuguesa, as quais vinham
Calasso, um jardineiro pronto a transformar preencher os programas de um ensino superior
a matéria bruta em arte, reduziu-se ao qua- em plena expansão, tanto do ponto de vista
dro frio do produtivismo. Diante disso, por institucional quanto do público universitário.
que uma universidade pública deveria investir Para se ter uma ideia da conjuntura em
seus recursos na edição de livros? Dentre tan- que estas duas editoras universitárias se inse-
tas respostas possíveis: “porque seu objetivo rem, cumpre observar que desde o final da
principal é o atendimento às necessidades da Segunda Guerra Mundial o mercado apon-
comunidade acadêmica, a editora universitária tava diferenças qualitativas expressivas em
pode elaborar uma política editorial centrada relação ao primeiro movimento de “nacio-
[eu acrescentaria, exclusivamente] no aspecto nalização” da produção editorial brasileira,
acadêmico” (Franchetti, 2017, p. 41). Mas, se tal como observado na década de 1930. Se,
porventura o “aspecto acadêmico” se reduz naquele momento, a ficção nacional emer-
ao publish ou perish, parece óbvio que a gia na linha de frente dos catálogos das
produção entra em crise. Porque, afinal, toda principais editoras em atividade (Miceli,
a cadeia, do autor ao leitor, do original ao 1979) – embora não se possa negligenciar
livro, perde a sua razão de ser. a importância das coleções voltadas para
Com vistas nos dados alarmantes que os estudos brasileiros, como a Brasiliana,
se vislumbram nos dias de hoje, parece publicada pela Companhia Editora Nacio-
instrutivo recuperar as origens de uma nal, e a Documentos Brasileiros, por sua
importante editora universitária brasileira concorrente direta, a Editora José Olympio,
que, em 2021, celebrou 60 anos. para nos fixarmos nos exemplos mais fla-
A Editora da Universidade de Brasília (Ed. grantes –, nas décadas de 1950-60 os títulos
UnB) iniciou sua história em 1961, seguida de autores nacionais e estrangeiros voltados
pela Editora da Universidade de São Paulo para o público universitário na área de ciên-
(Edusp), fundada no ano seguinte. As duas cias humanas entram na mira dos editores3.
conformaram, nas suas origens, projetos e Segundo Florestan Fernandes (1962, p. 4),
modelos de gestão bem destoantes2, de par
com o caráter não menos diverso de suas ins-
tituições matrizes. Estas iniciativas buscaram 3 Um levantamento dos títulos em estoque das editoras
inventariadas no volume Edições Brasileiras 1-3 (janeiro
responder a uma demanda crescente, apenas em de 1963/março de 1965), 1963-1965 (apud Hallewell,
2005, p. 536), dá bem a medida da riqueza e diversidade
do mercado às vésperas do Golpe de 64: Nacional, 406
títulos; Freitas Bastos, 314; Melhoramentos, 310; Forense,
173; Biblioteca do Exército, 149; Editora Civilização Brasi-
2 A Edusp sustentou, de 1962 a 1985, o sistema de leira, 137; Ao Livro Técnico, 127; Cultrix, 124; Vecchi, 122;
coedição, tendo sido, à época, alvo de muitas críticas José Olympio, 115; Saraiva, 110; Pensamento, 88; Atlas, 81;
por seus pares. Segundo Vianney Mesquita (1984, p. Distribuidora Record, 79; O Cruzeiro, 72; Francisco Alves,
91), antigo diretor da Editora da Universidade Fede- 68; Difusão Europeia do Livro (Difel), 67; Martins, 64; Vitó-
ral do Ceará (UFC): “Aquilo que as editoras privadas ria, 61; Agir, 60; Editora do Autor, 50; São José, 46; Herder,
fazem com a Edusp, nas coedições, nada mais é que 45; Boa Leitura, 45; Globo, 40; Minerva, 40; Zahar, 39;
garantir o retorno do capital aplicado antes mesmo de Pongetti, 37; Revista dos Tribunais, 37; Edart, 34; Edameris,
iniciar a vendagem do público consumidor. A editora 32; Acadêmica, 30; Aguilar, 28; Biblos, 27; José Álvaro, 22;
comercial fez, às custas da Edusp, um investimento Vozes, 22; Brasil-América, 20; Mestre Jou, 17; Trabalhistas,
garantido, sem margem de risco!”. 14; Jackson, 11; Colibri, 8; Alfa, 2; Mérito, 2.
tia, por seu turno, em traduções de obras de 11 O Iseb foi fundado em 1955. Participaram do projeto
inicial Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos, Cândido
ciências humanas, especialmente, de auto- Mendes de Almeida, Álvaro Vieira Pinto e Nelson
Werneck Sodré. Os dois últimos, vale sublinhar, com-
res norte-americanos, com os quais o edi- puseram a equipe editorial da UnB (ver doc. infra).
tor estabelecera relações durante um estágio 12 Nesse aspecto, é notável a atuação, na década de
1940, da Editorial Vitória e da Calvino Editores. O
componente nacional-popular de suas edições se
torna evidente nos catálogos, embora as editoras
não abram mão de publicações teóricas e de cunho
9 Além do artigo citado, valemo-nos do livro de Paulo social internacionais (Editorial Vitória, 1946) (Deaecto
Roberto Pires (2017). & Mollier, 2013; De Luca, 2014; Juberte, 2023).
QUADRO 1
não tinha prazo para acabar, pois era espe- do exílio, a professora Wanda de Alencar
rada a “sua vinda definitiva, bem como acompanhou seu marido na fuga para o
a do Vieira Pinto [filósofo do Iseb]”. No estrangeiro, o ilustre mestre de literatura
mais, o editor tem interesse particular por Heron de Alencar [...]. Fui informado de que
seu escrito sobre Os sertões, de Euclides da [meus] originais haviam sido destruídos e
Cunha, recomendando-lhe, todavia, justificar que este livro fôra, pelos novos dirigentes
sua inserção na BBB, por ser “muito con- da Universidade de Brasília, convenien-
veniente do ponto de vista editorial”, bem temente expurgado da biblioteca básica a
como acrescentar o estudo de Rui Facó, ser lançada, substituído por outro título,
“que soube ligar tão bem a luta de Canu- de natureza diversa” (Sodré, 1967, p. 19).
dos com as lutas gerais dos componeses
[sic] brasileiros pela conquista da terra”19. De fato, o projeto original da Ed. UnB
Como podemos observar no programa teve vida curta, abortado logo após o Golpe
da Biblioteca Básica Brasileira (Quadro de 1964. Esse primeiro impulso semeou,
1), foram lançados nove títulos no ano de todavia, um projeto político e autoral, voca-
1963. A obra de abertura surgiu apenas em cionado a pensar a produção de livros a par-
1964 e não contemplou o esquema origi- tir de um programa integrado à instituição
nal, a saber, uma terceira edição revista, universitária e à visão de mundo de seus
atualizada e ampliada de O que se deve gestores. Os limites desse projeto não se
ler para conhecer o Brasil. Importa, nos colocaram apenas pela conjuntura política,
limites do presente artigo, acentuar que, em é verdade, mas também pela estranheza com
meio a vários projetos de brasilianas, foi o que a inovação pretendida por seus editores
repertório construído por Nelson Werneck vinha chancelada por um repertório extem-
Sodré, naquele volume compacto editado porâneo, senão, conformado à luz de um
pela Leitura, que Darcy Ribeiro acolheu primeiro ensaio bibliográfico realizado por
para o programa de sua primeira coleção Werneck Sodré. A Biblioteca Básica Bra-
editorial. Nota bene: o primeiro programa sileira, formada maciçamente pela reedição
editorial da recém-fundada UnB. de estudos clássicos, respondia, enfim, a um
E por que O que se deve ler para conhe- único propósito previsto no programa edito-
cer o Brasil não veio a lume? O que se deu rial da Ed. UnB, a saber, “fazer elaborar e
depois pode bem ser representado pelo destino editar textos básicos para o ensino em nível
do original datiloscrito de Werneck Sodré: superior”. Edições de alto padrão gráfico e
intelectual, como denunciam seus paratex-
“Sobreveio o golpe de abril de 1964, a que tos, cujo repertório, tantas vezes reeditado,
se seguiu a implantação da ditadura: fui ainda demonstra o seu vigor na formação
preso, Darcy Ribeiro escolheu o caminho do leitor crítico brasileiro.
O artigo apresentará a Corpo e Alma do The article will present Corpo e Alma
Brasil, coleção publicada pela editora do Brasil, a collection published by
Difusão Europeia do Livro (Difel) sob a the publisher Difusão Europeia do
direção de Fernando Henrique Cardoso, Livro (Difel) under the direction of
a partir de 1960. Por meio de seus Fernando Henrique Cardoso, from
primeiros lançamentos, analisaremos 1960’s. Through its first releases, we
como as condições culturais e materiais will analyze how the cultural and
para a produção editorial em São material conditions for editorial
Marcos Santos/USP Imagens
intenções da editora, que não se alinhou [...] Nenhum cientista responsável poderia
à cátedra em questão de modo aleatório. endossar as aspirações de fazer da ciência
Fernando Henrique já havia trabalhado na uma nova religião leiga que substituísse
Difel ao traduzir Do espírito das leis, de todas as demais formas de conhecimento
Montesquieu, e, ao que tudo indica, Florestan e propusesse explicações permanentes para
Fernandes era um frequentador da Livraria todos os problemas” (Cardoso, 1960, p. 3).
Francesa e tinha uma relação próxima com
Paul Monteil. Além disso, a atividade do A referência ao caráter doutrinário e
catedrático brasileiro se sobressaía no con- empirista de tais elaborações sugere que o
texto da FFCL-USP: ele foi o responsável sociólogo se dirigia indiretamente à produção
por metade das defesas de tese da facul- oriunda do ambiente intelectual que carac-
dade entre 1954-1964 (Brito, 2019, p. 218). terizamos na introdução ao artigo, aquele
Ou seja, uma rica fonte de matéria-prima fomentado em torno do Iseb e dos partidos
para uma casa que desejasse desenvolver progressistas, especialmente do PCB – com
seu catálogo junto à instituição. os quais ele dialogava (Brito, 2019, p. 212).
Fernando Henrique se coloca como res- Uma vez associados às políticas de governo,
ponsável individual pelo projeto, contudo, ou por corroborarem parte delas, estas insti-
estabelece seu pertencimento a um grupo e tuições e seus representantes acabavam por
a defesa de princípios coletivos que deverão hegemonizar o ideal de um projeto de nação
nortear aquela atividade. Isto posto, fica clara ao qual os uspianos iriam dirigir suas crí-
a sua intenção em promover o que seria uma ticas. O lugar ocupado pelo grupo de Car-
nova forma de compreender o Brasil através doso na realidade paulistana definia o tom
da ciência, designação sob a qual ele defende do discurso inaugural da coleção, porque a
a produção universitária. Do ponto de vista universidade garantia as condições profissio-
metodológico, determina de pronto sua con- nais para elaborarem suas intervenções e a
traposição com o bacharelismo e a produção possibilidade de imprimirem um sentido de
ensaística e, mais adiante, avança para uma engajamento para seus trabalhos sem cair
diferenciação com as demais tendências que no que consideravam ser os reducionismos
reivindicavam o pensamento científico: impostos pela interferência de instituições
do Estado, partidos etc.
“[...] Ciência e pesquisa são palavras que Outrossim, o diretor faz questão de situar
se tem empregado de maneira abusiva entre o projeto diante de um repertório editorial
nós. Parece que com elas se pretende, atra- consagrado por se colocar a serviço do pen-
vés de uma espécie de virtude mágica de samento brasileiro:
que estes vocábulos estão impregnados, dar
cunho de seriedade e fazer circular entre “Vê-se, pois, que não se deseja acrescer às
os setores acadêmicos e o grande público brasilianas existentes – que tão marcados
um conjunto de noções informadas por serviços têm prestado para a difusão dos
um empirismo grosseiro e revestidas de conhecimentos sobre o Brasil – uma cole-
pretensão à dignidade de um saber defi- tânea similar. Não se tem a intenção de
nitivo, que toca as raias do misticismo. promover a edição ou a reedição de textos
REFERÊNCIAS
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Edusp, 2015.
BIELSHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro 1930-1964: o ciclo ideológico do
desenvolvimento. Rio de Janeiro, Contraponto, 2004.
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politica e poder. Buenos Aires, Editora Universitária de Buenos Aires, 2009, pp. 23-43.
BUFREM, L. S. Editoras universitárias no Brasil. São Paulo, Edusp, 2000.
BRITO, L. O. B. de. Marxismo como crítica da ideologia: um estudo sobre o pensamento
de Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwartz. Tese de doutorado. São paulo,
Universidade de São Paulo, 2019.
CARDOSO, F. H. “Apresentação”, in F. Fernandes. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo,
Difusão Europeia do Livro, 1960, pp. 1-12.
Jorge Zahar foi um dos mais importantes Jorge Zahar was one of the most
editores do Brasil, fundamental na i m p o r ta nt p u b l ish e r s i n B ra z i l ,
consolidação das ciências sociais e fundamental in the consolidation of
humanas e participante ativo nos social and human sciences and an active
principais debates públicos da segunda participant in the main public debates
metade do século XX. Neste texto, a of the second half of the 20th century. In
atuação editorial de Jorge Zahar será this text, Jorge Zahar’s editorial work will
analisada a partir da construção do be analyzed based on the construction
Marcos Santos/USP Imagens
catálogo da Zahar Editores, tendo como of the Zahar Editores catalog, focusing
foco dois momentos distintos. O primeiro, on two distinct moments. The first one,
que vai da criação da editora em 1957 which goes from the creation of the
até o início dos anos 1970, tem seu foco publisher in 1957 until the beginning
na tradução de autores vinculados à of the 1970s, focuses on translating
esquerda estadunidense. O segundo authors linked to the American left.
momento ganha relevância no final dos The second moment gained relevance
anos 1960 e continua na década seguinte, in the late 1960s, with emphasis on
com destaque para as abordagens críticas critical approaches to modernization
às teorias da modernização. A partir da theories. From the analysis of the Zahar
análise do catálogo da Zahar Editores, Editores catalog, it is possible to perceive
é possível perceber a existência de um the existence of a political project that
projeto político que foi construído em was built in dialogue with the various
diálogo com os diversos movimentos intellectual and social movements active
intelectuais e sociais da época. throughout the period.
Blumer, André Gunder Frank, Daniel Lerner, desse livro havia sido publicada em 1963]
Lúcia Pinheiro Machado (“Alcance e limites (1976) e Poder e contrapoder na Amé-
das teorias da modernização”), Glaucio Ary rica Latina (1981).
Dillon Soares, Luiz Pereira, Alain Touraine, Uma das obras seminais para a discus-
Robert K. Merton, Frantz Fanon, Francisco são foi o Dependência e desenvolvimento
Zamora, além de textos da Cepal. na América Latina (1970), de Fernando
Aos textos das coletâneas se somaram Henrique Cardoso e Enzo Faletto. A obra
ao catálogo da Zahar livros que con- havia sido publicada em 1969, em espa-
tribuíram para compor o debate crítico nhol, pela Editora Siglo XXI e a versão
sobre modernização e desenvolvimento, em português, pela Zahar, saiu um ano
dentre eles, Desenvolvimento e crise no depois. Em 1984 a publicação chegou à
Brasil (1968), de Bresser Pereira, Proje- sua sétima edição. Fernando Henrique Car-
tos de desenvolvimento (1969), de Albert doso publicou também pela Zahar o livro
O. Hirschmann, Distribuição de renda Política e desenvolvimento em sociedades
na América Latina e desenvolvimento dependentes (1971).
(1973), de Aníbal Pinto, Desenvolvimento Esse breve panorama dos textos sobre
dependente brasileiro (1978), de Vilma modernização publicados pela Zahar Edito-
Figueiredo, e Limites sociais do cresci- res mostra como a editora contribuiu para
mento (1979), de Fred Hirsch. a configuração e disseminação do debate
O livro Da substituição de importações sobre desenvolvimento e dependência no
ao capitalismo financeiro (1972), de Maria Brasil. As perspectivas críticas às teorias
da Conceição Tavares – uma das obras da modernização então em voga encontra-
mais comentadas na época e que chegou ao ram na editora um espaço privilegiado de
total de 11 edições – reuniu quatro ensaios, materialização e disseminação. Jorge Zahar,
escritos entre 1963 e 1971, que elaboram a partir de sua atuação editorial, participou
uma análise histórica e abrangente das ativamente desse processo, disponibilizando
políticas econômicas do país. A autora, textos fundamentais, traduzindo obras de
formada em ciências econômicas pela autores estrangeiros e organizando antolo-
Universidade do Brasil, havia trabalhado no gias que serviram a diversas gerações de
Plano de Metas do governo do presidente estudantes universitários e leitores interes-
Juscelino Kubitscheck e era então, no sados neste que se tornou um dos principais
momento de publicação do livro, chefe debates públicos da época.
do escritório da Cepal no Brasil.
Quatro obras de Florestan Fernandes
publicadas pela Zahar contribuíram para CONSIDERAÇÕES FINAIS
essa discussão: Sociedade de classes e
subdesenvolvimento (1968), Capitalismo A Zahar Editores, seja por meio do
dependente e classes sociais na América estabelecimento de uma política edito-
Latina (1973), A revolução burguesa no rial de tradução de autores estrangeiros,
Brasil (1975), A sociologia numa era de com foco inicial no pensamento crítico
revolução social [uma primeira edição estadunidense, seja a partir dos vínculos
REFERÊNCIAS
Os comunistas brasileiros e o
desenvolvimentismo: a Frente Nacionalista
nas edições da Editorial Vitória (1958-1964)
Vinícius Juberte
resumo abstract
O presente artigo analisa de que forma a This article analyzes how the Nationalist
Frente Nacionalista entre o PCB (Partido Front between the PCB and the PTB
Comunista do Brasil) e o PTB (Partido presents itself in the bookseller production
Trabalhista Brasileiro) se apresenta na of Editorial Vitória, the main communist
produção livreira da Editorial Vitória publisher at the time, between 1958
Limitada, principal editora comunista and 1964, period of line of “peaceful
da época, entre 1958 e 1964, período coexistence” in the world communist
da linha de “coexistência pacífica” no movement and the developmentalist
Marcos Santos/USP Imagens
agora novamente presidente, Getúlio Vargas pressas seu jornal das bancas e se unir às
como o grande inimigo a ser combatido. massas que tomavam as ruas. Ainda assim,
A linha desagregadora da direção colocava em Porto Alegre, a Tribuna Gaúcha, jornal
empecilhos para a bem-sucedida política do partido, não escapou da depredação de
da base partidária (Segatto, 1981, p. 67). sua sede pela turba popular ensandecida
É justamente na base operária do (Segatto, 1981, pp. 69-70).
partido que se inicia o processo de aliança Toda comoção nacional e crise política
política com os trabalhistas, muitos anos que a ela se seguiu não foram suficien-
antes de a direção do PCB adotar como tes para a direção do PCB mudar a linha
sua essa linha partidária. A luta naciona- política partidária que vinha defendendo
lista dos trabalhistas também passa a ser de forma mais bem acabada desde 1950.
defendida, o que leva, com o passar do O IV Congresso do PCB se dá nesse con-
tempo, ao engajamento dos comunistas no texto, com a cúpula partidária fechando ao
processo político democrático da luta pelo máximo o processo, o que gerou críticas
“capitalismo autônomo”, sem latifúndio e de inúmeras lideranças de base quanto às
sem o domínio do capital estrangeiro. É práticas antidemocráticas do Comitê Cen-
esse processo, com seus acertos e limi- tral. Dessa forma, pouco mudou em relação
tações, que permitirá, por exemplo, que às teses defendidas pela cúpula pecebista.
o PCB conquiste as direções dos sindi- A única mudança digna de nota foi o
catos mais importantes do país, seja em status da “burguesia nacional”, que agora
aliança com os trabalhistas, com estes e passava a ser entendida como aliada “por
os católicos, ou mesmo de forma exclusiva determinado período” da revolução “con-
(Segatto, 1981, p. 68). tra o imperialismo e contra o latifúndio
Mesmo essa nova postura de atuação no e os restos feudais”. O partido entendia
movimento operário e de massas tendo dei- que naquele momento se tratava de cons-
xado bastante evidente que havia pressões truir uma “revolução democrático-popular”
da militância para uma mudança defini- (Segatto, 1981, p. 73), reproduzindo a tese
tiva de linha política, a cúpula partidária do “etapismo” stalinista.
manteve-se irredutível ainda por muito A tímida mudança foi fruto do impacto
tempo. Tanto é que no dia 24 de agosto do suicídio de Getúlio nas fileiras par-
de 1954, quando o país acordava atônito tidárias, além do fracasso nas eleições
com o suicídio de Getúlio Vargas, o jor- parlamentares e para governadores daquele
nal do partido, Imprensa Popular, trazia ano. E o primeiro desdobramento dessa
a manchete “Abaixo o governo de traição linha política retificada foi o apoio do
nacional de Vargas”. PCB à candidatura de Juscelino Kubi-
O suicídio do presidente trabalhista, em tschek pelo Partido Social Democrático
meio a pressões externas e de setores da (PSD), em aliança com os trabalhistas
classe dominante brasileira, fez surgir uma (Segatto, 1981, p. 74).
onda de simpatia por Getúlio, com inúmeras Mas o acontecimento que de fato levará
manifestações país afora, e perseguição aos a mudanças fundamentais no partido e
seus opositores. O PCB precisou recolher às em sua linha política não será de ordem
do partido ao editar essa obra. Ela é Vale ressaltar aqui uma diferença que
conscientemente concebida para ser de parece bastante evidente entre os livros
“linguagem fácil e didática”, voltada da Coleção Documentos Políticos e o
para um público-alvo bem definido: “a livro de Jocelyn. A primeira parece ser
gente simples do nosso povo”, visando um esforço editorial nascido da neces-
à “tarefa de elevação da consciência sidade de apresentar aos quadros parti-
popular”. Até mesmo o índice do livro, dários as novas diretrizes do movimento
separado em “primeira lição”, “segunda comunista mundial e do próprio PCB. O
lição” e assim por diante, denota a próprio trabalho tipográfico mais sim-
intenção didática da obra. ples, quase protocolar, parece denotar
uma preocupação menor em atingir um
público mais amplo.
Já o livro do escritor nacionalista
tem claramente o interesse de atingir
um público mais amplo, para além das
fileiras partidárias. Não é à toa que nele
se percebe de forma muito mais presente
a mão do editor, que cumpre a tarefa de
apresentar de forma clara, por meio dos
paratextos, a qual projeto servia aquele
livro. Ou seja, aqui presenciamos a Edi-
torial Vitória buscando divulgar a linha
partidária para públicos diversos, por
meio de estratégias editoriais diferentes.
Por fim, mas não menos importante,
a capa de rosto do livro traz uma dedi-
catória que, por si só, sintetiza a frente
O pão, o feijão e as forças ocultas: primeiro
livro de leitura popular, Editorial Vitória, 1963. única entre comunistas e trabalhistas.
Fonte: Biblioteca Edgard Carone – Museu Jocelyn dedica o seu livro em home-
Republicano da USP nagem a duas lideranças maiúsculas da
vida nacional brasileira do período: Luís
Carlos Prestes, pela “lealdade e dedica-
Esse era um livro voltado para a massa ção à causa do povo”, nas palavras do
popular brasileira, com o intuito de escla- autor, e a Leonel Brizola, “grande líder
recer importantes questões a respeito nacionalista”, também a juízo do escritor.
da economia, a partir das teses defen- Temos, basicamente, uma casa editorial
didas pelo partido. E mais, a partir da comunista, editando um autor anti-im-
escrita de um renomado nacionalista, o perialista, que escreve em homenagem
que demonstra como o nacionalismo era ao mais radical dos líderes trabalhistas.
a força propulsora das lutas populares Definitivamente, um livro como prova
naquele período. do espírito do tempo.
REFERÊNCIAS
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1986.
DEAECTO, M. M.; MOLLIER, J.-Y. (orgs.). Edição e revolução: leituras comunistas no Brasil
e na França. Cotia/Belo Horizonte, Ateliê Editorial/Editora UFMG, 2013.
GENETTE, G. Paratextos editoriais. São Paulo, Ateliê Editorial, 2009.
JUBERTE, V. de O. A Editorial Vitória e as edições comunistas no Brasil: da legalidade ao
golpe (1944-1964). Tese de doutorado. São Paulo, FFLCH/USP, 2023.
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(1956-1957). Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1988.
SECCO, L. A batalha dos livros. São Paulo, Ateliê Editorial, 2017.
SEGATTO, J. A. Breve história do PCB. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1981.
entre este projeto editorial e a Coleção between this editorial project and the
Cadernos do Povo Brasileiro, promovida Cadernos do Povo Brasileiro Collection,
pela Civilização Brasileira de 1962 a promoted by Civilização Brasileira
1964, busca-se abordar a luta ideológica from 1962 to 1964, seeks to address the
no contexto que envolveu o Golpe de ideological struggle in the context that
1964, suas reverberações no mercado involved the 1964 Coup, its reverberations
editorial brasileiro do período e, mais in the Brazilian editorial market of the
especificamente, na atuação de dois period and, more specifically, in the
proeminentes editores: Ênio Silveira e actions of two prominent editors: Ênio
Octalles Marcondes Ferreira. Silveira and Octalles Marcondes Ferreira.
informações com os dados disponíveis deste acordo, tendo sido publicada pela
sobre o mercado editorial da época mostra Companhia Editora Nacional, do “editor
que, às vésperas do golpe, 30% do estoque amigo” Octalles Marcondes Ferreira4. Em
de livros no Brasil pertencia a editoras casos como esse, os nomes do Ipês e
envolvidas com o Ipês e que aproximada- da Usia eram omitidos dos créditos das
mente um quarto das mais reconhecidas publicações, que eram lançadas como se
casas editoriais em funcionamento na pri- fossem projetos exclusivamente idealiza-
meira metade dos anos 1960 colaborou de dos e realizados pelas editoras associa-
alguma forma com o instituto (Djurovic, das. Essa estratégia de ação política clan-
2021, p. 139)2 . destina tinha por objetivo, justamente,
Embora o nome do Ipês não constasse dificultar a identificação da verdadeira
nos créditos das publicações organizadas rede de financiamento por trás desse
por tais editoras, era ele quem realizava a circuito editorial.
encomenda das obras compatíveis com seus
interesses políticos e arcava com parte dos OS CADERNOS NACIONALISTAS:
custos de produção. Podia, por exemplo,
VISÃO GERAL
pagar os direitos autorais, a tradução, a
impressão ou até mesmo garantir a compra
de um determinado número de exemplares. Os Cadernos Nacionalistas foram edi-
Parte do volumoso conjunto de publi- tados e lançados pelo Ipês logo após os
cações pertencentes ao circuito ipesiano acontecimentos de 1º de abril de 1964,
também foi viabilizada por meio de finan- como parte de uma Campanha de Edu-
ciamento estrangeiro – sobretudo através cação Econômica promovida pela sede
do convênio estabelecido entre o instituto paulista com o objetivo de “estudar e
e o Book Development Program, da Uni- selecionar matérias de divulgação eco-
ted States Information Agency (Usia), uma nômica”. O relatório referente às ativida-
agência diplomática do Departamento de des do Grupo de Publicação e Editorial
Estado dos EUA3. A obra 1984, de George naquele ano reportou a atividade aos asso-
Orwell, foi uma das financiadas por meio ciados do instituto da seguinte maneira:
Capa e contracapa
da 4ª edição
dos Cadernos
Nacionalistas.
Fonte: Reprodução
da autora
REFERÊNCIAS
Em 1965, foi criado o Instituto Roberto In 1965, Roberto Simonsen Institute was
Simonsen. O instituto era dotado created. The institute had a specific
de um setor específico destinado às sector dedicated to publications, the
publicações, o Centro de Bibliotecnia para Library Science Center for Development
o Desenvolvimento (CBD), em cujo rol de (CBD), whose list of activities included
atividades estavam incluídas as traduções translations of foreign books. Despite a
de livros estrangeiros. A despeito de notion of development aimed at solving
uma noção de desenvolvimento voltada “national problems”, the CBD acted in
Marcos Santos/USP Imagens
Instituto Roberto Simonsen, ele se vol- elite industrial paulista, ocupada com
tava para as atividades culturais e, atra- sua descendência, os livros sobre artes
vés do CBD, concebia o letramento como gráficas também pareciam atender a um
condição para formar uma classe operá- público endógeno, a saber, editoras e
ria mais qualificada. Quem eram, entre- gráficas parceiras do CBD. O evento da
tanto, os leitores dos livros publicados indústria, por sua vez, reuniu um conjunto
pelo instituto? A julgar pelas caracterís- de intelectuais uspianos, realizando de
ticas dos livros, esses leitores eram tão forma paradigmática o ideal de articu-
diversos quanto difíceis de identificar. lação entre instituição de ensino e pes-
Robert Darnton (1990) argumentou, com quisa, indústria e planejamento com o
precisão, que a recepção é a etapa mais qual Simonsen havia sonhado. Os livros
difícil de mapear no processo de edição sobre populações, que contaram com o
e circulação dos livros – esta é, portanto, patrocínio do The Population Council, por
a mais árdua tarefa para os historiadores outro lado, também corresponderam ao
do livro e da leitura. Alguns dados para- ideal do patrono e, embora desarticula-
textuais dos livros podem indicar, porém, dos de um projeto político mais amplo,
se não o leitor derradeiro, receptor último voltado à promoção de migrações inter-
do livro, o leitor imaginado pelas edito- nas controladas, acabaram coincidindo
ras e fundações que se articularam por com fluxos demográficos mais ou menos
trás das edições. Se o Guia dos pais na espontâneos, em um momento em que
escolha de livros parecia atender a um o Sudeste se consolidava como a região
público específico, qual seja, a própria industrial mais poderosa do Brasil.
OLIVEIRA, L. de. “O Franklin Book Programs e a Guerra Fria cultural na América Latina
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fizeram parte do catálogo da editora na of the publisher’s catalog, but also São
nova fase, quando também promoveu Paulo literary sociabilities and poetic
as sociabilidades literárias paulistas e works in the 1970s and 1980s. At a time
lançou obras poéticas nas décadas de when poetry challenged experienced
1970 e 1980. Numa época em que a editors, the house which was directed
poesia desafiava experientes editores, a by Professor Santa Cruz innovated in the
casa dirigida pelo Professor Santa Cruz materiality of the published titles, radiated
inovou na materialidade dos títulos Brazilian contemporary poetry, fostered
publicados, irradiou a poesia brasileira relationships and cultural events. Based
contemporânea e ainda fomentou on this context, this article examines
relacionamentos e eventos culturais. É poetry books and the literary sociability’s
partindo desse contexto que este artigo network brought to the public by this
trata dos livros de poesia e das redes de fiftieth publishing house.
sociabilidade literária irradiadas por essa
cinquentenária editora paulistana. Keywords: Livraria Duas Cidades; poetry
editing; São Paulo literary sociabilities;
Palavras-chave: Livraria Duas Cidades; editorial production; Brazilian book history.
edição de poesia; sociabilidades literárias
paulistas; produção editorial; história do
livro no Brasil.
A
s profundas raízes da Se não fosse esse personagem, não haveria
Livraria Duas Cidades Livraria Duas Cidades.
percorrem a obra de Por ser grande admirador da obra de
Santo Agostinho. Em A Santo Agostinho, o frade definiu o projeto
cidade de Deus (1483), o livreiro e editorial considerando as inter-
pensador medieval con- seções das ideias terrenas e espirituais.
siderou a existência dos Essa é a aura da casa inaugurada por
mundos terreno e espiri- Frei Benevenuto em dezembro de 1954.
tual. Sua tese defendia a Situada no centro da cidade de São Paulo,
comunhão dos homens na a empresa atendeu a uma clientela majori-
Terra como a única via tariamente católica até 1972 (Marchetti
de conciliação dos planos & Quinta, 2023). Foi nesse ano que o
divino e secular. E foi religioso se desvinculou da Ordem, ini-
sob esse horizonte que nasceu a livraria e ciou as negociações para adquirir as cotas
editora da Ordem dos Dominicanos. Mas dos dominicanos, redefiniu o projeto do
a fundação e a trajetória desse empreendi- estabelecimento e ficou conhecido como
mento cultural ocorreram por iniciativa de
um homem: José Petronilo de Santa Cruz
é seu registro civil, Frei Benevenuto foi
o nome escolhido após seu ingresso na HUGO QUINTA é pós-doutorando
vida religiosa e Professor Santa Cruz foi em Editoração na Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP, bolsista Fapesp e
a alcunha adotada por amigos, autores e autor de A trajetória de um libertário: Pietro Gori
clientes assim que ele aposentou a batina. na América do Sul (1898-1902) (EdUnila).
Professor Santa Cruz. Ainda que a tra- contramão de muitas das obras poéticas
vessia tenha sido marcada por episódios lançadas nesse contexto, a casa dirigida
ultrajantes – como o assassinato de Carlos pelo Professor Santa Cruz aperfeiçoou os
Marighella (Quinta, 2021, pp. 317-57) e a aspectos editoriais e gráficos dos títulos
longa peleja entre o livreiro-editor e os publicados e posteriormente forjou um
superiores da Ordem (Quinta, 2021, pp. virtuoso canal de difusão da poesia brasi-
361-86) –, a casa jamais renunciou ao leira contemporânea ao lançar a premiada
paradigma civilizacional incutido na obra Coleção Claro Enigma, projeto idealizado
do filósofo medieval. Pelo contrário, os por Augusto Massi.
livros publicados pela editora e os títulos Vistos e analisados em conjunto, os
importados pela livraria continuaram a livros anteriormente mencionados faziam
formar gerações de intelectuais brasileiros. parte do mercado editorial de literatura
Se antes editavam padres, filósofos e brasileira da segunda metade do século
teólogos progressistas da Igreja Católica, passado. Para situar as edições da Livraria
a partir de 1972 lançaram os trabalhos Duas Cidades nessa conjuntura histórica,
de Antonio Candido e de seus orientan- cabe explorar os seguintes dados levan-
dos. Mas não foram apenas os títulos de tados por Laurence Hallewell (2012, pp.
teoria e de crítica literária que fizeram 798-800). O livro literário nacional atingiu
parte da nova fase, as edições de poesia uma tiragem média de aproximadamente
também figuraram no catálogo da casa. 3 mil exemplares por título em finais dos
Ao lançar oito títulos na década de 1970, anos 1950, chegando ao patamar de 5 mil
11 na década de 1980 e três nos anos exemplares por livro passados dez anos. O
1990, a poesia se tornou a maior área aumento decorreu do crescimento econô-
temática do selo Livraria Duas Cidades. mico desse período, cujo desenvolvimento
É verdade que não se trata de quantias provocou a impressão de tiragens ainda
expressivas. O foco residia na qualidade maiores para os outros gêneros temáticos.
autoral, editorial e gráfica das obras. Ainda assim, houve contínua publicação
Foi por esse motivo que a casa publicou de obras literárias, ao ponto de, em 1980,
poetas consagrados, como Murilo Mendes alcançar uma tiragem média de 85 mil
e Henriqueta Lisboa. Também lançou a exemplares e 3.968 livros publicados nessa
vanguarda concretista representada por área – o dobro da quantidade de títulos
Décio Pignatari e os irmãos Augusto e lançados em 1969.
Haroldo de Campos. E divulgou a poesia As obras de autores brasileiros foram
de escritores desconhecidos do grande as grandes responsáveis por esse cresci-
público, como José Geraldo Nogueira mento. Em 1986, publicaram 4.703 títu-
Moutinho, Adelaide Petters Lessa e Dora los e depois lançaram 6.127 em 1990,
Ferreira da Silva. Os livros desses auto- quando a Editora Brasiliense inaugurou
res saíram entre os anos 1970 e 1980, a coleção de ficção nacional nomeada de
justamente numa época em que publi- Espaço Brasileiro. A despeito desse cená-
car poesia era desafiador para grandes, rio auspicioso, Hallewell adverte que as
médias e pequenas editoras brasileiras. Na dificuldades para editar livros ficcionais
34-5), mas apenas os poetas consagrados venuto lançou, no ano de 1970, seus pri-
tiveram espaço nas grandes editoras, como meiros livros de poesia nacional. Um deles
a Nova Fronteira1. foi Amoressência (1970), da psicóloga Ade-
Enquanto os concretos e os “marginais” laide Petters Lessa, com tiragem de 1.033
eram respaldados por Massao Ohno, Gui- exemplares; o outro foi Exercitia (1970),
lherme Mansur, Cléber Teixeira e Roswitha de José Geraldo Nogueira Moutinho, com
Hellbrugge, os poetas que estabeleciam pon- 1.057 exemplares impressos; e o terceiro
tes entre as vanguardas e a tradição literá- foi Convergência, de Murilo Mendes, com
ria estavam dispersos em editoras artesanais a expressiva impressão de 16.616 exempla-
(Creni, 2013) ou em selos como a Brasiliense res. Com exceção dessa obra, a baixa tira-
e a Livraria Duas Cidades. gem dos outros títulos sinaliza o pequeno
alcance desses livros até mesmo entre os
OS PRIMEIROS LIVROS leitores devotos da poesia.
Nogueira Moutinho foi crítico literário,
DE POESIA DA DUAS CIDADES
jornalista, poeta e amigo de Frei Bene-
venuto. A partir dos documentos abriga-
Mesmo ciente da dificuldade de venda dos no arquivo da Livraria Duas Cidades
desse gênero literário, o então Frei Bene- (Quinta & Silva, 2020), em particular dos
relativos à publicação de Exercitia, é pos-
sível avaliar a relação entre autor e edi-
tor e o processo de construção do livro.
1 Hallewell (2012) pondera que nem mesmo as obras
de autores consagrados, como João Cabral de Mello Apesar da dificuldade de compreender o
Neto e Murilo Mendes, estavam livres dos obstácu- que motivou o editor a publicar a obra
los encarados pelos poetas menos conhecidos. Eles
geralmente obtinham notoriedade editorial depois do autor, supõe-se que a longa relação
de falecerem, como ocorreu com Carlos Drummond
de Andrade, que teve sua obra disputada pela José
de amizade (Quinta, 2021, p. 489) foi
Olympio, Companhia das Letras e Nova Fronteira. determinante na decisão de lançar o livro.
Dentre esses selos, o último teve forte presença na
poesia. A Nova Fronteira comprou os direitos da Ao consultar os documentos situados na
obra completa de João Cabral e de Murilo Mendes pasta do autor, encontra-se os vestígios de
(ambos amigos do Professor Santa Cruz). Ao final dos
anos 1980, essa editora não apenas lançou a Coleção produção e de financiamento da obra, os
Poesia de Todos os Tempos, dedicada a divulgar po-
etas tradicionais do Brasil e de outros países, como
comentários elogiosos de outros poetas, o
também foi contatada pela Livraria Duas Cidades. projeto de capa e contracapa (ver Imagem
Em 10 de junho de 1988, Professor Santa Cruz en-
viou uma carta para a Nova Fronteira mencionando 1) criado por José Armando Ferrara 2 e os
seu interesse em publicar as traduções dos poetas impasses para a venda do livro.
catalães feitas por João Cabral. O livreiro-editor
questionou sobre quais seriam as condições para sua
editora publicar coleções com “[...] características de
uma publicação de arte, com fotos e reproduções
fac-simile e de tiragem limitada”. No dia 29 de junho 2 Paulistano nascido em 1938, Ferrara iniciou sua forma-
de 1988 foi enviada a resposta escrita por Sebastião ção, em 1955, no curso de Artes Gráficas do Senai e a
Lacerda (filho de Carlos Lacerda e então diretor partir de 1961 foi aluno da Escola de Arte Dramática
vice-presidente da Nova Fronteira), que agradeceu a da USP. Essas experiências lhe possibilitaram ganhar
visita feita pela pessoa (Augusto Massi) responsável alguns prêmios nas artes plásticas, atuar como de-
pelas coleções da Duas Cidades, mas argumentou signer gráfico e cenógrafo, a exemplo do cargo que
que não autorizaria a inclusão de João Cabral e Mu- exerceu como diretor de cenografia da TV Cultura
rilo Mendes nas coleções pretendidas, argumentando e produtor da decoração de diversas peças teatrais
que a sua editora publicaria essas obras. encenadas na PUC-SP.
Imagem 3. Capa e verso da contracapa de Viva vaia – poesia 1949-1979 (1979), de Augusto
de Campos, que também criou a capa. Já o original projeto gráfico é assinado por Julio Plaza,
responsável por inovar na arte desenvolvida para o miolo do livro ao utilizar fitas, diferentes
famílias e tamanhos de tipos, distintos modelos e gramaturas de papel, letras de diversas
cores, imagens e ilustrações, como a fotografia de Ivan Cardoso que reveste o encarte
criado para o disco de vinil de Caetano Veloso. Trata-se de uma brochura no formato 19 x 25,
com a folha de rosto em cor preta na frente e branco no verso, constando o título e o nome
do autor alinhados à direita, no centro da página, enquanto no pé constam o nome
e o logo da editora. A impressão da obra foi realizada pela Planimpress Gráfica e Editora
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Arquivos consultados
Carla A. Risso
Marcello C. Rollemberg
S
egundo Rodrigues (1983, p. 14), “pela na-
tureza de seu espírito, o homem não pode
lidar com o caos. Seu maior medo é o
de defrontar-se com aquilo que não pode
controlar, seja por meios técnicos, seja
por meios simbólicos”. E é por reconhe-
cer que há algo de intrinsecamente bom e
virtuoso na lei e na ordem que, ao longo
de toda a história da humanidade, a livre
expressão de ideias tem sido submetida a
alguma forma de censura para assegurar a
conformidade do comportamento de seus
são utilizados “outros meios indiretos pelos foi publicado na edição de aniversário
quais pessoas que ocupam determinados da edição brasileira da Playboy. As fo-
cargos, que tenham autoridade ou que te- tos realizadas em pontos históricos de
nham algum tipo de poder buscam definir Salvador, como o Pelourinho e a esca-
aquilo que pode ou não chegar ao público” daria da Igreja do Paço, traziam como
(Universidade de São Paulo, 2019). Assim personagens Dona Flor, Tieta e Gabrie-
sendo, os que ocupam o poder fazem uso la, as musas de Jorge Amado. Em pou-
desses meios como ferramenta de ascensão co tempo, a foto em que a atriz aparece
e permanência desse mesmo poder. vestida com um corpete, com os seios à
Podemos relatar inúmeros casos. Em mostra e um terço nas mãos causou po-
sua tese de doutorado Ecos do silêncio: lêmica. A censura da revista foi pedida
liberdade de expressão e reflexos da cen- em ação conjunta do Instituto Juventude
sura no Brasil pós-abertura democrática, Pela Vida, do Rio de Janeiro, e por um
Ivan Paganotti (2015, p. 274) defende: padre de Goiás. O juiz Oswaldo Freixi-
nho, da 29ª Vara Cível do Rio de Janeiro,
“No contexto histórico da redemocrati- no dia 25 de agosto de 2008, proibiu que
zação brasileira, cozida no fogo brando a imagem polêmica fosse veiculada em
de uma transição negociada, a solidez da novas edições da revista – uma decisão
antiga cultura monolítica de respeito e completamente ineficaz, uma vez que não
submissão à autoridade ainda se encontra impediu a circulação da publicação, nem
em derretimento gradual, enquanto novas tão pouco a remoção do conteúdo na ver-
instituições e demandas mais libertárias são online. Nessa mediação, o Poder Judi-
procuram encontrar seu espaço e respaldo ciário atendeu à demanda dos solicitantes,
social para cristalizar-se”. porém não causou danos ao censurado.
Outra violação à liberdade de expressão
Essa transição sem ruptura no Brasil promovida pelo Poder Judiciário se deu pela
permitiu a permanência dos poderes polí- caneta do desembargador Benedicto Abicair,
ticos e utilizou a concessão de meios de do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
comunicação como moeda de troca, o que (TJ-RJ). Em janeiro de 2020, Abicair acatou
evitou a criação de novos processos de cen- o pedido do Centro Dom Bosco para retirar
tralização do controle comunicativo. Cabe o programa “Especial de Natal Porta dos
lembrar que apenas 11 famílias controlam Fundos: A primeira tentação de Cristo” da
os principais meios de comunicação e 10% plataforma digital Netflix. O argumento
dos deputados são donos de concessões de para a suspensão é que o programa ofendeu
rádio e televisão no país. A censura tem, a fé e a religião cristã ao apresentar Jesus
assim, grande capilaridade no país e pode Cristo como homossexual. A Netflix apre-
ser observada em várias ocorrências, pro- sentou recurso ao Supremo Tribunal Federal
vocada por diversos atores sociais e quase (STF), que reverteu a decisão e determinou
sempre mediada pelo Poder Judiciário. a manutenção do programa no ar.
Em agosto de 2008, um ensaio do fo- Como se vê, é muito difícil abando-
tógrafo Bob Wolfenson com Carol Castro nar a cultura autoritária após séculos
tar que o livro estava embalado por ca- afirmou que as apostilas seriam devolvidas
pas plásticas, como prevê o Estatuto da às escolas sem nenhuma alteração no ma-
Criança e do Adolescente. Note-se que terial, mas com um “encarte” com orien-
não há nenhuma imagem erótica ou se- tações aos professores de como se deve
xual na capa do livro”. aplicar o conteúdo.
Outro caso de censura a livros foi
Como lembram os autores, imposto pela Secretaria de Educação de
Santa Catarina em novembro de 2023,
“no dia 7 de setembro, às 19 horas, no quando decidiu retirar nove livros da rede
Riocentro, local onde ocorria a Bienal pública de ensino. São eles: A química
Internacional do Livro, várias bandeiras entre nós, de Larry Young e Brian Ale-
com cores do arco-íris foram estendidas xander; Coração satânico, de William
e o público realizou um grande beijo si- Hjortsberg; Donnie Darko, de Richard
multâneo com os dizeres: ‘Fora Crivella’ Kelly; Ed&Lorraine Warren: demonolo-
e ‘Não vai ter censura’” (Reimão et al., gistas – arquivos sobrenaturais, de Gerald
2023, p. 15). Brittle; Exorcismo, de Thomas B. Allen;
It: a coisa, de Stephen King; Laranja
Dias antes desse episódio, o então go- mecânica, de Anthony Burgess; Os 13
vernador do estado de São Paulo, João Do- porquês, de Jay Ascher; O diário do dia-
ria, mandou recolher o material escolar de bo: os segredos de Alfred Rosenberg, o
ciências para alunos do Ensino Fundamen- maior intelectual do nazismo”, de Robert
tal da rede estadual. A apostila explica os K. Wittman e David Kinney. O ofício que
conceitos de sexo biológico, identidade de determinou a retirada de circulação desses
gênero e orientação sexual – com orienta- nove livros, enviado para a rede pública
ções sobre gravidez e doenças sexualmente pelo supervisor regional de Educação de
transmissíveis. O governador também se Florianópolis, Waldemar Ronssem Júnior,
manifestou sobre o caso, via Twitter: não contém nenhuma justificativa ou ex-
plicação para essa resolução. O Ministério
“Fomos alertados de um erro inaceitável Público de Santa Catarina foi acionado
no material escolar dos alunos do 8º ano pelo vereador Leonel Camasão (PSOL),
da rede estadual. Solicitei ao secretário de Florianópolis, para que apure os fatos
de Educação o imediato recolhimento do e tome as devidas providências.
material e apuração dos responsáveis. Não Rodrigo Casarin (2023), colunista do
concordamos e nem aceitamos apologia à Splash/UOL, fez a seguinte reflexão:
ideologia de gênero”.
“O jeito burocrático como a ordem para
Uma semana depois, o Tribunal de Jus- a retirada dos livros de circulação ocor-
tiça do Estado de São Paulo concedeu uma reu me parece um detalhe importante. Até
liminar que determinou a anulação do ato outro dia os gestos de censura eram feitos
do governo de São Paulo. No dia 13 de com contornos espalhafatosos por políticos
setembro de 2019, o governador João Doria que ascenderam com o obscurantismo. Pro-
listas que faziam a cobertura presidencial dades, como a Federação Nacional dos
no cercadinho, os grupos Globo e Ban- Jornalistas e a Associação Brasileira de
deirantes, o jornal Folha de S. Paulo e o Imprensa, também emitiram notas de re-
portal Metrópoles anunciaram a suspensão púdio denunciando essas humilhações e
do plantão de repórteres no local devido cobrando respostas das autoridades. Se-
à falta de segurança – decisão já tomada gundo o monitoramento da Abraji, houve
pelo site Congresso em Foco e pelo jor- 59 ocorrências de discurso estigmatizante
nal Correio Braziliense dois meses antes. contra jornalistas por parte de políticos e
agentes públicos em 2019 e outras 39 até
“Era uma descompostura não apenas contra 25 de maio de 2020 8.
os jornalistas ali presentes, ou às marcas que Mas a perseguição a jornalistas – ou o
eles representam. Mas contra toda a socie- questionamento ao seu trabalho – não é
dade. Jornalistas e mídia são expressão do uma exclusividade do governo Bolsonaro.
desejo da população de ser informada. Não Mesmo governos democráticos e com ban-
há jornalismo perfeito, e é legítimo apon- deiras progressistas também se arvoraram
tar e corrigir os seus erros. Quem promove – e se arvoram – em colocar o papel da
campanha contra a imprensa, no entanto, é imprensa contra a parede. O jornalista e
aspirante a ditador, é quem não aceita ser professor Eugênio Bucci, que, ao mesmo
questionado. Ao menosprezar, mandar calar tempo que deita um olhar crítico sobre as
a boca, se recusar a responder perguntas, falhas da imprensa, também defende com
ameaçar e retaliar, Bolsonaro deixa de tratar determinação o seu inquestionável trabalho
dos muitos temas espinhosos de um governo para a sociedade, lembrou em duas passa-
que conquistou fama mundial pela prepo- gens como os governos de Lula e Dilma
tência e pela inépcia. Desqualifica para não Rousseff viam o trabalho dos jornalistas
ter de falar do Bolsonaro real, cuja honesti- e da imprensa em geral. Em um artigo
dade e cujos supostos méritos de liderança publicado na revista Época em 4 de ou-
são proclamados apenas por quem está de- tubro de 2014, Bucci lembrou uma frase
sinformado, mal-intencionado ou lhe deve do ex-presidente pouco antes da vitória de
obediência hierárquica. Para completar, fiel Dilma: “Vamos derrotar alguns jornais e
à vocação dos populistas, inventa adversários revistas que se comportam como partidos
contra os quais procura unir militantes cada políticos. Não precisamos de formadores
vez mais fanáticos e perigosos” (Congresso de opinião. Nós somos a opinião pública”.
em Foco, 2020)7. A seguir, o jornalista continuou:
Inglaterra dos anos 1960. Os exemplos quem for. Jornalistas são formadores de
são vários. Quando a imprensa realiza opinião, com certeza. Mas pode-se dizer
bem seu trabalho, quem ganha é a socie- que também são “informadores” para essa
dade. Quando ela erra – e sabemos que mesma opinião – ou Opinião. As conclu-
erra muitas vezes mais do que deveria sões quem deve tirar é a sociedade. E aí
ou poderia –, quem perde também é a decidir. Inclusive se vai comprar esse ou
sociedade. O jornalista vai no rebolo, vai aquele jornal, essa ou aquela revista. Ou
a reboque da qualidade (ou na falta de) se vai colocar a TV no Cartoon Network.
do trabalho realizado. Não é o jornalista que inventa a crise
Porque, não se pode jamais esquecer ou a cura. Ele não persegue nem adula
disso, o maior capital de um jornalista ninguém. Se a notícia é ruim, ainda assim
não é seu talento para escrever, sua pers- é notícia, e precisa ser revelada, contada,
picácia em apurar, as fontes que cultiva, debatida e refletida em cada bar, em cada
por mais importante que tudo isso seja. mesa de jantar, em cada salão do poder. Só
Não. O maior capital de um jornalista não culpem o mensageiro. Nem o matem.
é sua credibilidade, na maioria das ve-
zes conquistada depois de muitos anos.
E que pode ser perdida com uma rapi- CONSIDERAÇÕES FINAIS
dez diametralmente oposta. Basta uma
“barriga”, uma matéria mal apurada, um “O preço da liberdade é a eterna vigi-
texto salpicado de má fé. Ou um erro lância.” Esta frase, atribuída ao político
não intencional. Não importa. O jorna- irlandês John Philpot Curran (1750-1817),
lista Silvio Ferraz, que nos anos 1980 e nos lembra que há uma necessidade perene
1990 trabalhou no Jornal do Brasil e na de se monitorar continuamente os fatos
antiga revista IstoÉ-Senhor, usava uma que acontecem em uma sociedade para
frase emblemática e verdadeira: “escre- que seja possível identificar e neutralizar
vemos nossa biografia todos os dias”. E eventos, em suas fases iniciais, que possam
todo profissional deve cuidar bem dela. levar à instabilidade social, a revoluções
Por isso a necessidade de uma im- e à perda de direitos estabelecidos.
prensa livre em uma sociedade livre. Levitsky e Ziblatt, perplexos com a elei-
Uma precisa da outra, na ordem que se ção de Donald Trump em 2016, apontavam
quiser colocar. É a imprensa que fustiga que a democracia norte-americana estava
os poderosos, revela – depois de muito em perigo diante de uma polarização que se
bem apurado, é claro – aquilo que mui- estendia para além das diferenças políticas,
tos desejariam deixar nas sombras. Sem contaminada por conflitos de raça e cultu-
uma imprensa livre, o que sobra é o au- ra. “E, se uma coisa é clara ao estudarmos
toritarismo – ou pior, o totalitarismo, a colapsos ao longo da história, é que a po-
repressão, as bocas caladas, as mentes larização extrema é capaz de matar demo-
embotadas e os corações travados. Que cracias” (Levitsky & Ziblatt, 2018, p. 22).
fique bem claro: o papel da imprensa não Na mesma linha vão Reimão et al.
é confundir a opinião pública, seja ela (2023), apontando o quão perigoso para
REFERÊNCIAS
M
(Baudrillard, 2014, p. 21).
HÁBITAT
ercado é uma palavra milenar que car-
rega múltiplas acepções. Vilém Flusser
(2011) afirmava que o supermercado, na
forma como o conhecemos hoje, é uma
evolução gradual da basílica, que passou
a templo, depois a igreja e, finalmente,
o local para a troca de produtos. Espaço
que estimula o “pecado capital” da so-
1 “[...] dentre as coisas que o homem naturalmente “No amontoamento, há algo mais que a
deseja está a excelência. Pois é natural ao homem – e soma dos produtos: a evidência do exce-
também a toda realidade – desejar a perfeição no
bem desejado, que consiste numa certa excelência. dente, a negação mágica e definitiva da
Tender a essa excelência segundo a regra da razão rareza, a presunção materna e luxuosa da
divinamente informada será um apetite reto e é pró-
prio da virtude da magnanimidade, segundo o que terra da promissão. Os nossos mercados,
diz o Apóstolo (II Cor. 10, 13): ‘Quanto a nós, não nos
gloriemos sem medida’, como que por uma regra que artérias comerciais. Superprisunic, imi-
nos é estranha, ‘mas segundo a regra que Deus nos tam assim uma natureza reencontrada,
deu como medida’. A deficiência em relação a essa
regra é o vício da pusilanimidade; o excesso é o vício prodigiosamente fecunda: são os nossos
da soberba [superbia], que, como o próprio nome in- vales de Canaã onde correm, em vez do
dica, é superar [superbire] a própria medida no desejo
de superioridade” (Aquino, 2004, p. 80). leite e do mel, as ondas de néon sobre
rais também estão em pleno processo de -se, toma-se o primeiro café, assiste-se
mundialização”, em que certas “marcas ao filme, sente-se vontade de degustar
tornam-se verdadeiros símbolos de um um doce especial, visitam-se outras lojas
‘estilo de vida’”. Mais recentemente, o de roupas e quinquilharias, sente-se sono,
filósofo Byung-Chul Han (2019, p. 73) toma-se o táxi.
assinalou que “solidez e consistência não A esfera privada de consumo resiste às
são propícias para o consumo. Consumo e intempéries sociais. Sob a redoma quase
duração se excluem mutuamente. São as impenetrável de centros comerciais super-
inconsistências e a fugacidade da moda vigiados, o supercliente integra, durante
que o aceleram”. algumas horas, uma sociedade em que “o
Há meio século, Edgar Morin defen- Estado recua, a religião e a família se
dia a ideia de que o período reservado privatizam, a sociedade de mercado se
ao lazer no século XX também estava impõe”, de modo que os pilares do sujei-
previsto pela lógica do capital, já que to passam a ser “o mercado, a eficiência
obedecia aos pressupostos de uma “[…] técnica, o indivíduo” (Lipovetsky, 2004,
economia que, englobando lentamente os p. 54). No shopping center, assim como
trabalhadores em seu mercado, encontra- no supermercado, essa sensação de atem-
-se obrigada a lhes fornecer não mais poralidade 6 é reforçada pela disposição
apenas um tempo de repouso e de re- de múltiplos ambientes, cenários, bens,
cuperação, mas um tempo de consumo” produtos e serviços num mesmo lugar.
(Morin, 1977, p. 67). Os proprietários de As lojas comportam dimensões, for-
supermercados e shopping centers não matos, cores, sons e odores diversos, de
removeram os relógios à toa. Como a maneira que nossos sentidos as distingam
maioria dos quiosques e lojas não dispõe e não nos entediemos com a paisagem
de tais dispositivos à mostra, o tempo ali cifrada do cosmos mercantil. O impulso
costuma escoar rapidamente, o que suscita ao gasto é prioritário e deve retardar, se
comentários eivados de lugar-comum, a não evitar, nossas funções fisiológicas.
preencher o ócio consumista: “Tudo o que Os banheiros são recuados para saídas de
é bom acaba rápido...”; “Puxa, o tempo emergência, quase sempre menos visíveis
voa!”; “O dia rendeu, não é?”. que os bancos, as farmácias, os pet shops
Outro aspecto digno de nota, a lin- e os restaurantes:
guagem empregada pelos comerciantes
no shopping é um dos indícios de como “[…] o shopping center, um lugar de cir-
podemos vulgarizar o léxico e tecer proli- culação de mercadorias, está cada vez
xos comentários sobre temas irrelevantes mais tornando-se o local: a) de busca
e objetos reluzentes nas vitrines. Por sua da realização pessoal pela felicidade do
vez, o ambiente sintetiza a falsa sensação consumo; b) de identificação – ou não –
de que a produtividade se traduz em ca-
pacidade de consumo, no maior número
possível de departamentos e comparti-
6 “[O] relógio está para o tempo, assim como o espelho
mentos. Adquire-se um objeto, almoça- para o espaço” (Baudrillard, 1970, p. 33).
eletrônicos, como se percebe em diversos Valquíria Padilha (2006, pp. 27-8) lem-
templos de consumo. Dificultar o acesso bra que “o capitalismo de hoje impõe à
imediato aos banheiros representa consi- classe média uma ditadura do lazer, ou
derável economia de materiais e serviços seja, faz-se necessário ocupar o ‘tempo
de limpeza ao estabelecimento. Quanto livre’ de qualquer maneira, uma vez que
aos “caixinhas” eletrônicos, em muitos o ócio – no sentido de não fazer nada ou
casos opta-se por estimular o impulso de simplesmente contemplar – é conde-
consumista, apostando que a distância nado num sistema que depende da pro-
do cliente até eles aumentará a voraci- dutividade acelerada”.
dade do consumo enquanto percorrer os As entidades do shopping center acom-
vários pavimentos, driblar as colunas e panham o supercliente a todos os lugares,
contornar as reentrâncias do templo de sem se restringir ao estado de vigília. Por
compras e serviços. isso mesmo, uma parte da sua pulsão vital
O supermercado também poderia ser é transferida para a ansiedade promovida
interpretado como uma Torre de Babel pela falsa necessidade de consumir.
“pós-moderna”, em que a multiplicação Faceta monstruosa do ser humano, o
das marcas corresponderia à profusão de ser-cliente faz planos sem fim. No dia
linguagens e modos eufóricos de gastar. seguinte, retornará a determinada loja para
Para Vilém Flusser (2011, p. 82): “resgatar” o objeto a que conseguira resis-
tir firmemente da primeira vez. Driblando
“O supermercado é labirinto composto a consciência e o orçamento doméstico,
de mensagens codificadas em imagens ele está convicto de que obter o produto
(conservas coloridas, garrafas, rótulos, trará felicidade e plenitude.
cartazes) e em sons (irradiados por alto-
-falantes). O labirinto devora os recep- TERAPÊUTICA
tores das mensagens. Dispõe ele de en-
tradas amplamente abertas, para criar a
ilusão de espaço público, de ‘ágora’ em Quem assistiu ao filme Clube da luta
‘pólis’. Como se o supermercado fosse (1999), dirigido por David Fincher, deve
lugar de trocas, de diálogos, de evalua- se recordar da cena em que a personagem
ções de valores”. interpretada por Edward Norton descreve
o próprio apartamento como catálogo de
A exemplo dos estabelecimentos que uma loja de departamentos. No romance
oferecem miríades de mercadorias, o su- homônimo, que inspirou a película, há uma
permercado está inserido na lógica do passagem que vale a pena transcrever:
sempre relativo “produtivismo”. Afinal,
providenciar as compras do mês é uma “Você compra móveis. E pensa, este é
tarefa compulsória que sugere ao consu- o último sofá que vou precisar na vida.
midor ocupar da melhor forma o tempo Você compra o sofá e fica satisfeito du-
que resta das horas trabalhadas na sema- rante uns dois anos porque, aconteça o
na. Reverberando Edgar Morin (1977), que acontecer, ao menos a parte de ter
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A
s comemorações de 120 estudos pela Itália, Inglaterra e Espanha,
anos do nascimento do e fixa residência em Paris. Na Europa,
pintor Cândido Portinari uma experiência transformadora!
(Brodowski, 1903 – Rio Nesse período, pinta apenas quatro
de Janeiro, 1962) motivam quadros, porque o seu tempo é dividido
repensar o perfil, a trajetó- entre os trabalhos e as visitas frequentes
ria artística e os objetivos a museus, galerias e lugares de reuniões
temáticos do artista. Hoje, artísticas. Sabe ver os renascentistas e a
muitas questões podem ser pintura de vanguarda. Fica profundamente
assinaladas. Como podem impressionado com as soluções expres-
estar conectadas, por exem- sionistas, com formas e cores alteradas.
plo, suas contribuições às suas vivências Porém, é o contexto social que se insinua
e às questões históricas e sociais? como principal fonte de inspiração.
A revisão de sua densa e numerosa Conhece Maria Martinelli, com quem
obra, ou mesmo de uma mostra de sua se casa. Sente saudades de Brodowski e
trajetória, revela um artífice valorizando escreve o que pode ser considerado um
experiências históricas e vanguardistas. prefácio de sua futura obra – a histó-
Suas memórias contam muito. Filho de ria de Balaim: “[...] calças brancas feitas
imigrantes italianos, desde criança mani- de saco de farinha; paletó listrado, com
festa sua vocação artística. Aos 15 anos, quatro botões: três pretos e um branco;
sai de Brodowski e vai para o Rio de
Janeiro, em busca de conhecimentos de
pintura, matriculando-se na Escola Nacio-
nal de Belas Artes. ELZA AJZENBERG é professora da
Escola de Comunicações e Artes da USP e
Em 1928, conquista o Prêmio de Via- coordenadora do Centro Mario Schenberg de
gem. Entre 1929 e 1931, viaja com bolsa de Documentação da Pesquisa em Artes (ECA-USP).
Algodão, 1938. Pintura mural afresco. Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro
Portinari terminando Jogos infantis, no Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, c. 1940
mento Rodoviário Belvedere, na Estrada dro O morro, que René Huyghe, diretor
Rio-São Paulo, em 1936. A convite de do Louvre, aconselhara Portinari a não
Gustavo Capanema, são realizados os inutilizar. Em 1939, executa três grandes
murais no edifício do Ministério da Edu- painéis para o Pavilhão Brasileiro da Feira
cação, no Rio, retratando ciclos nacionais Mundial de Nova York. Em novembro
históricos e econômicos (1936-1944). do mesmo ano, expõe 269 trabalhos no
Em 1938, o Museu de Arte Moderna Museu Nacional de Belas Artes (MNBA).
de Nova York (MoMA) adquire o qua- Nasce o seu único filho – João Cândido.
São Francisco de Assis, 1944. Painel de azulejos. Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha,
Belo Horizonte. Fonte: Projeto Portinari
obra, o drama e o patético vão se acen- que já prenuncia a cena do corpo esquar-
tuando à medida que os passos se apro- tejado do mural Tiradentes. Face à arqui-
ximam da crucificação, com referências tetura inovadora e às imagens chocantes,
ao Retábulo de Isenheim, de Mathias a Capela da Pampulha é considerada ultra-
Grunewald (1470-1528). jante, permanecendo fechada por dez anos.
O corpo torturado lembra ainda a Os anos de 1940 somam diversas abor-
desarticulação de seus espantalhos – o dagens históricas. Em 1948, em Monte-
Enterro na rede, 1944. Óleo sobre tela. Museu de Arte de São Paulo (Masp)
vidéu, Uruguai, pinta a Primeira missa formas mais realistas das figuras huma-
no Brasil, objeto de magnífica análise de nas. A narrativa e a homenagem ao mártir
Mário Pedrosa. Em 1949, executa o pai- da Inconfidência retomam obras anterio-
nel Tiradentes. Trata-se da representação res do pintor. Em azul pálido, retoma a
dos episódios e protagonistas principais memória d’Os retirantes de 1944. É um
da Inconfidência Mineira. A encomenda quadro dentro do outro, numa fusão de
da obra foi do Colégio de Cataguases, símbolos e mensagens.
Minas Gerais, com projeto de Oscar Nie- Nos anos seguintes, a densidade de sua
meyer. Essa cidade registra a publicação produção, visibilidade e reconhecimento
da Revista Verde, na qual colaboraram internacionais continuam. Em 1950, viaja
vários escritores modernistas. à Itália e visita Chiampo, na província
Posteriormente, o painel Tiradentes de Vicenza, no Vêneto, terra natal de seu
compôs o acervo da Coleção de Arte do pai. Expõe trabalhos na Bienal de Veneza.
Palácio dos Bandeirantes, e hoje se encon- Em 1951, participa com sala especial da
tra no Memorial da América Latina, em 1ª Bienal de São Paulo.
São Paulo. Portinari dedica-se ao mural Em 1952, pinta outro painel com temá-
por quase um ano. Destaca formas geomé- tica histórica – A chegada da Família Real
tricas, acentua cores em contraste com as portuguesa à Bahia – e inicia os estudos
Cavalo de pau (Série D. Quixote), 1956. Lápis de cor sobre cartão. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro
REFERÊNCIAS
Sites
Q
uem em 2022- tiva. Aos mais vividos, não restam dúvi-
2023 alcan- das: estamos à beira da falésia, envoltos
çou alguma em tormentas, flertando com o trágico,
idade, passou subestimando o memento mori.
dos 40 ou 50 J. Carlos de Assis, em anunciação, vem
anos e culti- nos advertir da gravidade de tudo isso.
vou alguma O seu recente e necessário A economia
cultura vai se brasileira como ela é – como reverter a
lembrar com destruição neoliberal é o mais oportuno
nostalgia dos convite ao diálogo, ao convencimento e
tempos em que o destino do Brasil e dos à persuasão que se poderia fazer nestes
brasileiros era apresentado em ideias trans- tempos desabados que nos toca viver.
critas em livros debatidos em toda parte. Não é a primeira vez que J. Carlos de
Aqueles tempos – que começaram a es- Assis nos golpeia a alma com ideias per-
maecer na inauguração do século XXI – cucientes e lucidez acachapante transcri-
pareciam remontar às raízes mais antigas tas em livros seminais. Quem vivenciou
das civilizações contemporâneas que foram conscientemente a batalha de ideias que
tangidas pela prática do convencimento e ambientou a redemocratização brasileira
pela arte da persuasão. recente possui na memória e na retina o
Quem em 2022 perscrutar convenci- impacto político, intelectual e cultural de A
mento e persuasão, em contrário, vai en-
contrar tweets, grunhidos e força bruta.
O diálogo virou ofensa. A democracia,
quimera. A representação, ilusão. DANIEL AFONSO DA SILVA é doutor
em História Social pela FFLCH-USP
Aos mais moços, toda essa degradação e integrante do Núcleo de Pesquisa
pode parecer normal, natural e até fes- em Relações Internacionais (Nupri) da USP.
Karina Marques
O
s diabos de mas para um cúmplice de seu tempo. E
O u ré m é o que, ainda que contida no exotismo do
que podemos vilarejo equatorial de Ourém, constatamos
chamar de uma estar diante de uma história de pendor
narrativa es- universal, cujo foco não se concentra no
pecular, por fato em si, mas no que dele se depreende
meio da qual da psicologia humana.
o comporta- Trata-se, assim, inquestionavelmente,
mento social inserido no universo ficcio- de um marco no romance histórico brasi-
nal vê-se refletido no espaço extradiegé- leiro, pelo efeito reflexivo engenhosamente
tico de recepção da obra. Como ponto de criado, unindo criação e recepção literá-
contato interespacial, encontramos uma ria em torno de dois momentos históricos
crise epidêmica semelhante: aquela de oportunamente cotejados. Merece, ainda,
cólera-morbo na antiga província brasi- destaque a singularidade de uma voz nar-
leira do Grão-Pará, em 1855, e a pande- rativa repleta de escárnio pela ilusão de
mia de Sars-CoV-2, nos finais de 2019. controle dos fatos pelos personagens.
A ambiguidade do referencial “ano da Por meio dessa voz, projeta-se a ima-
peste”, mencionado na primeira página gem do historiador, afirmada no Posfácio
para situar temporalmente o enredo, cria do livro. Maria Luiza Tucci Carneiro, a
um espaço “paratópico” (Maingueneau, notável historiadora que revelou as cir-
2004, pp. 52-3) de enunciação, no limiar
entre o texto e o mundo. Um pacto meta-
ficcional é, então, estabelecido, criando
uma relação estreita entre enunciador e KARINA MARQUES é professora adjunta
(maître de conférences) no Departamento
destinatário. Sentimos que o autor não de Estudos Portugueses e Brasileiros
escreve para um leitor-modelo, atemporal, da Universidade de Poitiers (França).
do Pará, em 1975. Tendo o caso ocorrido da Câmara, Martinho dos Santos Marti-
numa região ainda hoje negligenciada pelo nes. Com este, Fernandes divide a coau-
poder central do país, a sua importância toria da personagem luciferina Martinha.
é atestada pelo fato de que, anos depois, A Elias, filho legítimo da metrópole
em 1998, a historiadora volta a se deparar recentemente perdida, Fernandes confessa
com mais documentos associados a esse a sua admiração pelos inquisidores por-
episódio, desta vez no Instituto Histórico tugueses de outrora, que, tal como ele,
e Geográfico Brasileiro do Rio de Janeiro. eram experts em “rastrear a presença do
Na antiga capital do Império, a autora en- demônio em terras tropicais” (p. 27). O
contra um ofício da Secretaria da Polícia padre faz clara alusão às “visitações” do
do Pará, datado de 5 de setembro de 1860, Santo Ofício ao Brasil, cuja última e mais
encaminhando ao secretário do Instituto longa aconteceu, justamente, no estado do
Histórico da Corte do Rio de Janeiro um Grão-Pará e Maranhão, entre os anos de
folheto intitulado Averiguações policiais 1763 até, provavelmente, 1772. E, corro-
sobre os fatos praticados na Vila de Ou- borando a ideia de uma afinidade histó-
rém a pretexto de possessão do Demônio. rica entre colônia e metrópole, também
A constatação do desaparecimento desse a Ourém portuguesa foi palco desses ex-
folheto abre a brecha para o adentrar do perts em exorcismo.
imaginário no corpo da história, recriando O ex-ourives que acreditava ler “as li-
o que já de per se é rico em fabulação. nhas – e principalmente as entrelinhas –
Às forças do padre exorcista de seu melindroso cotidiano” (pp. 9-10) de
submetem-se não apenas Deus e o Diabo, desbravador do Novo Mundo, vê-se perdido
como toda uma cidade amedrontada pelo ao chegar à Ourém amazônica. Nesse vila-
fantasma das pestes e pragas enviadas pela rejo, passa a cortejar a morte ao contrair
ira de ambos. Aproveitando-se do clima de cólera; diagnóstico este percebido, todavia,
histeria coletiva reinante, o espaço paro- como insuficiente para apaziguar o seu es-
quial torna-se, então, um teatro político sob pírito aventureiro ferido. O parecer é, por
direção de José Maria Fernandes, no qual isso, completado pelo vigário Fernandes,
são dramatizadas as cenas de possessão conhecedor das “ciências ocultas”: Elias
de Martinha, a escrava endiabrada, e do é “suspeito de estar endiabrado e acome-
português Elias de Souza Pinto, ex-ourives tido de cólera” (p. 47). Ele passa, então,
e negociante. Nesse teatro, no qual des- a dividir o palco paroquial com Martinha,
filam autoridades políticas e eclesiásticas assumindo o papel de Ciprião – ou seria
locais e regionais, também são armados de “Cipriano”, “São Cipriano”, feiticeiro
autos de fé simbólicos nos quais os ini- convertido ao cristianismo, conhecedor dos
migos são queimados vivos. Esses bodes mistérios da transmutação enquanto alqui-
expiatórios, como o comerciante espanhol mista, assim como Elias o foi enquanto
Bento Mattos e a sua finada amante, Maria ourives? Elias, contudo, em razão talvez
do Nascimento, servem para expurgar os do seu grande temor a Deus, não conse-
males coletivos não só do povo, mas, so- gue desempenhar convincentemente o seu
bretudo, aqueles do vigário e do presidente papel de endiabrado.
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N
ove de março Dom Manuel, escrita por Pero Vaz de
de 1500. Co- Caminha e datada de 1º de maio de 1500.
mandada por A Carta de Caminha, denominada “cer-
Pedro Álva- tidão de nascimento do Brasil”, registra o
res Cabral, espanto perante a natureza exuberante e a
uma esquadra estranheza perante os autóctones. Os belos
formada por e hígidos corpos e feições dos indígenas
três carave- contrastavam com o aspecto dos portugue-
las e dez naus menores parte de Lisboa ses, vestidos em pesadas roupas usadas e
com destino à Índia. Em vez de navegar sujas, além de, provavelmente, exalarem
rente à costa africana, a esquadra dela se um odor desagradável, pela ausência de
desvia ao alto-mar rumo ao Ocidente. Em banho. Tudo era inusitado aos olhos do eu-
22 de abril foi avistada terra, nomeada ropeu devoto católico, que observa a nudez
Monte Pascoal, pois era época da Páscoa de homens e mulheres sem que houvesse
católica. Mas ao aproximarem-se da terra vergonha entre eles, mas inocência. Isso
firme, verificaram que não era um simples o leva a sugerir ao rei Dom Manuel que
monte, mas uma extensão enorme, mais a ação mais importante na colonização
tarde denominada Terra de Santa Cruz, da terra seria a catequese e conversão do
antes de ser designada Brasil. gentio ao cristianismo católico. Mas não
Os navegantes permaneceram no sul somente, o escrivão também sugere que a
da Bahia por cerca de dez dias. Em 2 de
maio a esquadra levanta âncoras e parte
em demanda da Índia, que era o seu pri-
meiro propósito. Cabral ordena que uma JOSÉ DE PAULA RAMOS JR. é professor
aposentado do Departamento de Jornalismo
nau regressasse a Portugal, levando a no- e Editoração da ECA-USP e autor de Leituras de
tícia do descobrimento na Carta ao rei Macunaíma: 1928-1936 (Edusp/Fapesp).
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A , publicação trimestral da Superintendência de Comunicação Social da USP,
é editada desde 1989, mantendo sempre a mesma estrutura. A cada número, além da relação dos
Dossiês aqui apresentada, temos as seções Textos, Livros e Arte. Abaixo, os números ainda disponíveis.
50
Revista Cinquenta Gestão e Política na Redes Sociais
103 114 126 137
Clima Interculturalidades Semiótica e Cultura Vida Escolar
Universidade Pública
Cosmologia
96 107 119 130
Alcoolismo Saúde Urbana Direitos Humanos Independências
Balanço da
Crise Mundial Latino-Americanas