N. 139 (2023) EDIÇÃO E POLÍTICA

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CREDENCIAMENTO E APOIO FINANCEIRO:


PROGRAMA DE APOIO ÀS PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS PERIÓDICAS DA USP
COMISSÃO DE CREDENCIAMENTO

Rev ista USP / Superintendência de Comunicação Social


da Universidade de São Paulo. – N. 1 (mar./maio 1989) -
- São Paulo, SP: Universidade de São Paulo, Superintendência
de Comunicação Social, 1989-

Trimestral.
Continuação de: Revista da Universidade de São Paulo
Descrição baseada em: N. 93 (2012)
ISSN 0103-9989

1. Ensaio acadêmico. I. Universidade de São Paulo.


Superintendência de Comunicação Social
CDD-080
ISSN 0103-9989 139 outubro/novembro/dezembro 2023

dossiê edição e política


5 Editorial

9 Apresentação Marisa Midori Deaecto e Hugo Quinta

13 A Editora da Universidade de Brasília: cultura e política na construção de um catálogo editorial


(1961-1964) Marisa Midori Deaecto

27 A Difel e a coleção Corpo e Alma do Brasil: princípios para a construção de uma brasiliana universitária
(1957-1964) Fabiana Marchetti

41 “A cultura a serviço do progresso social”: a atuação de Jorge Zahar na construção de um projeto de país
Leonardo Nóbrega

55 Os comunistas brasileiros e o desenvolvimentismo: a Frente Nacionalista nas edições da Editorial Vitória


(1958-1964) Vinícius Juberte

71 Os Cadernos Nacionalistas do Ipês e a luta ideológica no mercado editorial do pré-1964


Camila Alvarez Djurovic

87 Instituto Roberto Simonsen e Franklin Book Programs: relações internacionais e políticas editoriais
para um Brasil “em desenvolvimento” (1965-1971) Laura de Oliveira Sangiovanni

105 Sociabilidades literárias paulistas e as edições de poesia da Livraria Duas Cidades (1970-1980)
Hugo Quinta

textos
125 O preço da liberdade é a eterna vigilância: os desafios das democracias frente ao crescimento
da extrema direita Carla A. Risso e Marcello C. Rollemberg

139 A fala consumista (o supercliente na ordem do consumo) Jean Pierre Chauvin

arte
152 Portinari: sonho e realidade Elza Ajzenberg

livros
175 Lições para sair do atoleiro Daniel Afonso da Silva

179 Entre Deus e o Diabo, a histeria coletiva Karina Marques

185 A carta de Caminha José de Paula Ramos Jr.


A é uma publicação trimestral da
Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP.
Os artigos encomendados pela revista têm prioridade
na publicação. Artigos enviados espontaneamente poderão
ser publicados caso sejam aprovados pelo Conselho Editorial.
As opiniões expressas nos artigos assinados
são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor CARLOS GILBERTO CARLOTTI JUNIOR


Vice-reitora MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA

SUPERINTENDÊNCIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Superintendente EUGÊNIO BUCCI

Editor JURANDIR RENOVATO


Editora de arte LEONOR TESHIMA SHIROMA
Revisão MARIA ANGELA DE CONTI ORTEGA
MARIA PAULA LUCENA BONNA (estagiária)
SILVIA SANTOS VIEIRA
Secretária MARIA CATARINA LIMA DUARTE
Colaborador MARCOS SANTOS (fotografia)

Conselho Editorial
ALBÉRICO BORGES FERREIRA DA SILVA
CICERO ROMÃO RESENDE DE ARAUJO
EDUARDO VICTORIO MORETTIN
EUGÊNIO BUCCI (membro nato)
FERNANDO LUIS MEDINA MANTELATTO
FLÁVIA CAMARGO TONI
FRANCO MARIA LAJOLO
JOSÉ ANTONIO MARIN-NETO
OSCAR JOSÉ PINTO ÉBOLI

Ctp, impressão e acabamento


Gráfica CS

Rua da Praça do Relógio, 109 – Bloco L – 4o andar


CEP 05508-050 – Cidade Universitária – Butantã – São Paulo/SP
Telefax: (11) 3091-4403
www.usp.br/revistausp
e-mail: revisusp@usp.br
O
dossiê deste número da Revista USP é dedicado à
produção daquilo que Umberto Eco denominou de
memória vegetal. Ele estava se referindo, claro, ao
livro, esse objeto que, com exceção do pergaminho,
feito de pele animal, consolidou-se de fato na forma
vegetal, desde o papiro até o papel. Com a revolução
desencadeada por Gutenberg e com sua difusão, o
livro passou a interferir na cultura como nunca antes
havia acontecido. Assim surge a figura do editor, responsável este por dar o suporte
material sem o qual um texto jamais chegaria ao leitor.
O foco deste “Edição e Política” é o livro feito no Brasil, mais precisamente
aquele produzido entre as décadas de 50 e 80 do século passado. Os protagonistas são
aqueles editores (e autores) os quais, nesse período que se estende do pós-Segunda
Guerra Mundial ao pré e pós-Golpe de 64, vislumbraram a possibilidade de pensar e
dar sentido a um país que, enquanto se modernizava, permanecia cindido por visões
políticas tão distintas quanto antagônicas. E assim se explica o subtítulo inscrito na
capa desta edição: cultura, censura e batalhas ideológicas no Brasil.
O dossiê foi coordenado por Marisa Midori Deaecto, historiadora e professora de
História do Livro da Escola de Comunicações e Artes da USP, e por Hugo Quinta,
pós-doutorando em Editoração na mesma ECA-USP. O cuidado com que organizaram
e imprimiram uma unidade temática às contribuições aqui presentes, a mostrar
o alcance do papel das editoras (e de seus respectivos editores) na construção e
compreensão do Brasil contemporâneo, é de fato digno de aplausos e, quero crer, já
faz deste conjunto de artigos uma referência para os estudos sobre a história do livro
e da produção editorial no país.

Jurandir Renovato
6 REVISTA USP • SÃO PAULO • N.92 • P. XX-XX • DEZEMBRO/FEVEREIRO 2011-2012
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edição
e política
Apresentação

E
m “Cultura e política (1964- dezembro de 1968, pelo presidente Costa
1969)”, Roberto Schwarz e Silva. Destarte, o acirramento do estado
desenvolve “alguns esque- de violência sobre os setores culturais que
mas” interpretativos com se instaura, a partir de então, pode ser
vistas a decifrar o Brasil compreendido, segundo o autor, porque
após o Golpe de 1964. “em 1968, quando o estudante e o público
Para tanto, parte da dos melhores filmes, do melhor teatro, da
seguinte premissa: “A pre- melhor música e dos melhores livros já
sença cultural da esquerda constituem massa política perigosa, será
não foi liquidada naquela necessário trocar ou censurar os profes-
data, e mais, de lá para sores, os encenadores, os escritores, os
cá [o artigo foi escrito em músicos, os livros, os editores – noutras
1970] não parou de crescer palavras, será necessário liquidar a pró-
[...]. Apesar da ditadura da direita, há pria cultura viva do momento” 2 .
relativa hegemonia cultural da esquerda Particularmente no que se refere ao
no país”, que se concentra, cumpre frisar, mundo dos livros, a prisão do editor Ênio
“nos grupos diretamente ligados à pro- Silveira, em 14 de dezembro de 1968,
dução ideológica”1, portanto, longe das ou seja, no dia seguinte à publicação do
massas. Segundo o autor, esse quadro ou AI-5, guarda um significado profundo para
“esta anomalia” se mantém até a imposi- uma parte do setor cultural que apostava
ção do Ato Institucional n. 5, em 13 de na leitura, antes, na formação do leitor
como um instrumento de transformação

1 R. Schwarz, “Cultura e Política, 1964-1969”, in O pai


de família e outros estudos, São Paulo, Companhia das
Letras, 2008, p. 71. 2 Idem, ibidem, pp. 72-3.

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dossiê edição e política

da sociedade. Ele mesmo declarou, em alterou a fisionomia editorial e artística


um depoimento registrado muito tempo do Brasil em poucos anos”4 .
mais tarde, que a produção editorial nos Notemos que desde o pós-Segunda
primeiros anos que se seguiram ao golpe Guerra Mundial os editores brasileiros
não havia mudado de todo o programa por vinham nadando com certo êxito contra
ele consolidado na Civilização Brasileira. a maré do analfabetismo, da carência de
Mas a tomada de consciência do novo livrarias e do preço do livro, por meio
regime se dera antes da prisão, quando de projetos editoriais não raro ousados
a editora foi invadida e todo o material e inovadores que miravam um público
relativo à publicação das Obras completas universitário em ascensão, ao mesmo
de Lênin destruído pela polícia política. tempo que laboravam para fazer com que
Em suas palavras: “Eu publiquei muitas o livro extrapolasse os já relativamente
dessas obras – do golpe no Brasil, dos desbravados centros urbanos. É possível
erros do golpe, do Carpeaux e de outros, que este movimento intenso do mercado
e essas eles apreendiam logo. Mas com editorial brasileiro, responsável, inclusive,
as obras de Lênin, eu pensava, seria dife- por levantar a guarda de editores con-
rente, ele era um líder político, uma figura servadores contra o “perigo vermelho”,
histórica, e provavelmente passaria – eu como veremos mais adiante, tenha criado
tenho visto estas coisas. Eles não apreen- uma infraestrutura suficientemente sólida
deram Marx. Pensei, se não apreenderam para enfrentar os revezes do pós-1964.
Marx, não apreenderam Engels, que lancei E se os destinos tomados por cada edi-
também, vou lançar o Lênin, que é um tora após o golpe reafirmam ou enfra-
brilhante pensador” 3. quecem a ideia de uma “hegemonia da
Talvez, se pudéssemos recuar no tempo cultura de esquerda” até 1969, não nos
e f lanar pelas livrarias da Cinelândia e parece de todo fora do lugar a constatação
de seu entorno, nos anos de 1965, com- segundo a qual as prateleiras das livrarias
partilharíamos da mesma percepção de testemunharam uma resistência silenciosa,
Ênio Silveira. Ou se percorrêssemos as até o momento em que aqueles mesmos
estantes e bancadas das livrarias situadas livros (e seus potenciais leitores) passaram
no Centro Novo de São Paulo, partindo a figurar como protagonistas de uma opo-
do Viaduto do Chá até a Biblioteca Mário sição massiva e ruidosa. O epílogo desas-
de Andrade, ou seguindo mais adiante, troso do programa conduzido pela Editora
até a Rua Maria Antônia, constataría- da Universidade de Brasília, fundada em
mos, ainda nos idos de 1968, como o faz 1961, como veremos no artigo de aber-
Roberto Schwarz, que “a produção de tura do presente dossiê, cuja ocupação e
esquerda veio a ser um grande negócio, e intervenção do campus se deram no calor
do golpe civil-militar, não pode ser inter-

3 J. P. Ferreira (org.), Editando o editor 3: Ênio Silveira, São


Paulo, Edusp/Com-Arte, 2003, p. 70. 4 R. Schwarz, op. cit, p. 77.

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pretado senão no âmbito de uma editora empresários, industriais e militares que
universitária, portanto, pública, que se se empenharam em construir uma infraes-
moldou de acordo com um projeto total- trutura editorial focada na propaganda
mente inovador e progressista no coração anticomunista, com o apoio dos Estados
da nova e pulsante capital do país. Mas, Unidos. O primeiro artigo se intitula
ainda assim, as aspirações de intelectuais “Os Cadernos Nacionalistas do Ipês e
e editores que apostaram naquele projeto a luta ideológica no mercado editorial
dizem muito dessa percepção segundo a do pré-1964”, de Camila Djurovic, que
qual as editoras refletiam, para retomar a não apenas discorre sobre a história do
hipótese de Schwarz, “grupos diretamente Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
ligados à produção ideológica” ou, por formado por empresários e militares de
assim dizer, um pensamento universitário alta patente, mas também descreve as
no qual a esquerda se fazia hegemônica. características dos Cadernos do Instituto
Tal perspectiva se alinha muito bem à em contraste com os Cadernos do Povo
estratégia da Difel, cujo catálogo traduz Brasileiro, publicados pela Civilização
as noções e contradições da modernidade Brasileira, demonstrando como a disputa
brasileira das décadas de 1950-1960. É o ideológica dos anos 1960 ecoou em proje-
que vemos no artigo de Fabiana Marchetti, tos editoriais destinados às massas. Essa
“A Difel e a coleção Corpo e Alma do perspectiva está presente na contribui-
Brasil: princípios para a construção de uma ção de Laura de Oliveira Sangiovanni,
brasiliana universitária (1957-1964)”. Dando “Instituto Roberto Simonsen e Franklin
continuidade às edições que repercutem Book Programs: relações internacionais
os percalços da modernidade, Leonardo e políticas editoriais para um Brasil ‘em
Nóbrega, em “A cultura a serviço do pro- desenvolvimento’ (1965-1971)”.
gresso social: a atuação de Jorge Zahar na E se, como nos ensina Juan José Saer,
construção de um projeto de país”, aborda “os políticos não falam em versos”, há de
a trajetória da editora do ponto de vista da se fazer poesia! O artigo que encerra este
composição do catálogo de ciências huma- dossiê busca recuperar o sopro de vida
nas e, de modo particular, dos títulos que cultural que a Duas Cidades manteve vivo
conformaram um repertório importante, no Centro de São Paulo, já nos esterto-
senão fundamental, para a formação e a res da tão fatigada e sofrida década de
crítica da sociedade brasileira. 1970. Em “Sociabilidades literárias pau-
As editoras de esquerda aparecem aqui listas e as edições de poesia da Livraria
representadas pela experiência mais pro- Duas Cidades (1970-1980)”, Hugo Quinta
missora e longeva do PCB no campo edi- retrata as correntes poéticas pulsantes na
torial. Referimo-nos à Editorial Vitória, capital e que, graças à ação de Augusto
cujo artigo constitui um extrato da tese Massi e do Professor Santa Cruz, foram
de doutoramento recentemente defendida convertidas em livros, na charmosa e hoje
por Vinícius Juberte. raríssima Coleção Claro Enigma.
No outro extremo do front político, O dossiê “Edição e Política” buscou
dois artigos abordam a presença de reunir artigos cujas temáticas nos permi-

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dossiê edição e política

tissem compreender a ação de editoras a especificidade do dossiê que ora apre-


de esquerda, mas também dos projetos sentamos ao público não reside no inedi-
declaradamente anticomunistas formulados tismo da questão que o sustenta, parece
na era do desenvolvimentismo brasileiro certo que os sujeitos, temas e informa-
até a sua debacle, após o Golpe de 1964. ções sobre os quais uma majoritariamente
Não se trata de uma temática inédita, nova geração de pesquisadores aqui reu-
muito pelo contrário, ela foi problemati- nidos lança luz, vêm alicerçados com
zada tanto por testemunhas oculares, que documentos, abordagens e perspectivas
perceberam esse movimento de ebulição que demarcam um novo – e auspicioso
editorial vivenciado no país, como tam- – momento pelo qual passa a história do
bém por pesquisadores que, na esteira de livro e da edição brasileira.
Laurence Hallewell ou de Edgard Carone
– para citar dois exemplos superlativos –,
buscaram compreender esse período, por
Marisa Midori Deaecto
meio de contribuições monográficas. E se Hugo Quinta

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A Editora da Universidade de Brasília:


cultura e política na construção
de um catálogo editorial (1961-1964)
Marisa Midori Deaecto
resumo abstract

A Editora da Universidade de Brasília In 2021, the University of Brasília Press


completou, em 2021, sessenta anos. É celebrated its sixtieth anniversary. It is
a mais antiga em atividade no Brasil. the oldest in activity in Brazil. To record
Para registrar esta efeméride, a autora this anniversary, the author rescues, in
resgata, no presente artigo, o processo this article, the process of construction of
de construção da editora, à luz do the publishing house, in the light of the
programa editorial da coleção Biblioteca editorial program of the Biblioteca Básica
Básica Brasileira. Brasileira collection.
Marcos Santos/USP Imagens

Palavras-chave: Editora da Universidade Keywords: University of Brasília Press;


de Brasília; história do livro; Biblioteca book history; Biblioteca Básica Brasileira.
Básica Brasileira.
“Em suas conversas com Kuffer,
Dimitrijevic usou duas palavras para
definir o ofício do editor: barqueiro
e jardineiro [...] Tanto o barqueiro
quanto o jardineiro aludem a algo que
preexiste: um jardim ou um viajante a
ser transportado. Todo escritor possui
em si mesmo um jardim a ser cultiva-
do e um viajante a ser transportado”
(Calasso, 2020, p. 134).

“E chegou a hora dos professores


universitários brasileiros seguirem a
regra de ouro dos avisados colegas
norte-americanos: publish ou perish!”

A
(Bosi, 1987, p. 9).

s editoras universitárias bra- no fato da produção editorial universitária


sileiras são relativamente ter se colocado diante de uma falsa aporia,
novas, tanto quanto nossas exposta na epígrafe do presente artigo sob a
universidades. Se compa- fórmula um tanto constrangedora do publish
radas com as mais anti- ou perish. Ou seja, todo o trabalho de cons-
gas editoras universitárias trução de um catálogo editorial, fundamentado
europeias, Oxford (1478) e
Cambridge (1534), diría-
mos que elas se encontram 1 Em 2020, Mariana Bueno e Henderson Füst apresen-
na era dos incunábulos. No taram o seguinte balanço do setor: “Segundo a Série
Histórica da Pesquisa Produção e Vendas do Setor Edito-
entanto, o critério de lon- rial Brasileiro, as editoras de livros científicos, técnicos
e profissionais (CTP) registraram, em 2019, o pior
gevidade não nos parece resultado em mais de dez anos em que o mercado é
suficientemente esclarece- analisado, apresentando uma queda acumulada de
41% em termos reais nos últimos 14 anos. Esse resul-
dor quando se trata de reconhecer a presença tado negativo teve início em 2015 e, de lá para cá, o
e a força com que atuam no mercado edito- subsetor registra decréscimo acumulado de 50% em
termos reais. É válido notar que essa queda ocorre
rial, uma realidade que vem se confirmando após o segmento registrar crescimento substantivo
no período imediatamente anterior (2006-2014), com
desde meados da década de 1980. variação positiva de 16,7%”.
Sob a ótica do mercado, o cenário atual é
menos otimista, particularmente no que toca
o subsetor de livros científicos, técnicos e
profissionais (CTP), para o qual contribuem MARISA MIDORI DEAECTO é professora
livre-docentede História do Livro da Escola
mais fortemente as editoras universitárias1. de Comunicações e Artes (ECA) da USP e autora
Talvez a crise encontre suas raízes justamente de, entre outros, O império dos livros (Edusp).

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dossiê edição e política

no princípio da produção e difusão do conhe- parte atendida pelo mercado, de obras cientí-
cimento, o que faz do editor, nas palavras de ficas em língua portuguesa, as quais vinham
Calasso, um jardineiro pronto a transformar preencher os programas de um ensino superior
a matéria bruta em arte, reduziu-se ao qua- em plena expansão, tanto do ponto de vista
dro frio do produtivismo. Diante disso, por institucional quanto do público universitário.
que uma universidade pública deveria investir Para se ter uma ideia da conjuntura em
seus recursos na edição de livros? Dentre tan- que estas duas editoras universitárias se inse-
tas respostas possíveis: “porque seu objetivo rem, cumpre observar que desde o final da
principal é o atendimento às necessidades da Segunda Guerra Mundial o mercado apon-
comunidade acadêmica, a editora universitária tava diferenças qualitativas expressivas em
pode elaborar uma política editorial centrada relação ao primeiro movimento de “nacio-
[eu acrescentaria, exclusivamente] no aspecto nalização” da produção editorial brasileira,
acadêmico” (Franchetti, 2017, p. 41). Mas, se tal como observado na década de 1930. Se,
porventura o “aspecto acadêmico” se reduz naquele momento, a ficção nacional emer-
ao publish ou perish, parece óbvio que a gia na linha de frente dos catálogos das
produção entra em crise. Porque, afinal, toda principais editoras em atividade (Miceli,
a cadeia, do autor ao leitor, do original ao 1979) – embora não se possa negligenciar
livro, perde a sua razão de ser. a importância das coleções voltadas para
Com vistas nos dados alarmantes que os estudos brasileiros, como a Brasiliana,
se vislumbram nos dias de hoje, parece publicada pela Companhia Editora Nacio-
instrutivo recuperar as origens de uma nal, e a Documentos Brasileiros, por sua
importante editora universitária brasileira concorrente direta, a Editora José Olympio,
que, em 2021, celebrou 60 anos. para nos fixarmos nos exemplos mais fla-
A Editora da Universidade de Brasília (Ed. grantes –, nas décadas de 1950-60 os títulos
UnB) iniciou sua história em 1961, seguida de autores nacionais e estrangeiros voltados
pela Editora da Universidade de São Paulo para o público universitário na área de ciên-
(Edusp), fundada no ano seguinte. As duas cias humanas entram na mira dos editores3.
conformaram, nas suas origens, projetos e Segundo Florestan Fernandes (1962, p. 4),
modelos de gestão bem destoantes2, de par
com o caráter não menos diverso de suas ins-
tituições matrizes. Estas iniciativas buscaram 3 Um levantamento dos títulos em estoque das editoras
inventariadas no volume Edições Brasileiras 1-3 (janeiro
responder a uma demanda crescente, apenas em de 1963/março de 1965), 1963-1965 (apud Hallewell,
2005, p. 536), dá bem a medida da riqueza e diversidade
do mercado às vésperas do Golpe de 64: Nacional, 406
títulos; Freitas Bastos, 314; Melhoramentos, 310; Forense,
173; Biblioteca do Exército, 149; Editora Civilização Brasi-
2 A Edusp sustentou, de 1962 a 1985, o sistema de leira, 137; Ao Livro Técnico, 127; Cultrix, 124; Vecchi, 122;
coedição, tendo sido, à época, alvo de muitas críticas José Olympio, 115; Saraiva, 110; Pensamento, 88; Atlas, 81;
por seus pares. Segundo Vianney Mesquita (1984, p. Distribuidora Record, 79; O Cruzeiro, 72; Francisco Alves,
91), antigo diretor da Editora da Universidade Fede- 68; Difusão Europeia do Livro (Difel), 67; Martins, 64; Vitó-
ral do Ceará (UFC): “Aquilo que as editoras privadas ria, 61; Agir, 60; Editora do Autor, 50; São José, 46; Herder,
fazem com a Edusp, nas coedições, nada mais é que 45; Boa Leitura, 45; Globo, 40; Minerva, 40; Zahar, 39;
garantir o retorno do capital aplicado antes mesmo de Pongetti, 37; Revista dos Tribunais, 37; Edart, 34; Edameris,
iniciar a vendagem do público consumidor. A editora 32; Acadêmica, 30; Aguilar, 28; Biblos, 27; José Álvaro, 22;
comercial fez, às custas da Edusp, um investimento Vozes, 22; Brasil-América, 20; Mestre Jou, 17; Trabalhistas,
garantido, sem margem de risco!”. 14; Jackson, 11; Colibri, 8; Alfa, 2; Mérito, 2.

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“[...] parece patente que a vitalidade das TRADIÇÃO-INOVAÇÃO NO
experiências universitárias está modifi-
PROGRAMA DA ED. UNB
cando, radicalmente, os centros de inte-
resse e os padrões de preferência dos
consumidores de livro. Já existe um A Editora da Universidade de Brasília
público, embora ainda vacilante, para foi fundada sob a direção de Artur Neves5.
o ‘livro universitário’, o que cria pers- Informação altamente reveladora, dado o seu
pectivas novas para as editoras, para os protagonismo no mercado de livros paulista
autores e também para os leitores, que na década de 1940, à frente da Brasiliense,
poderão libertar-se progressivamente da editora fundada por Caio Prado Jr., que teve
dependência do livro estrangeiro”. Monteiro Lobato como sócio. O momento,
já o dissemos, era de otimismo. Afinal, a
Urgia, portanto, que as universidades abertura de uma universidade na recém-
criassem uma estr utura editorial pró- -criada capital do Brasil vinha de par com
pria, ou seja, algo além dos serviços os programas nacional-desenvolvimentistas
gráficos preexistentes 4 . de João Goulart. Podemos mesmo dizer
É nesse sentido que a experiência que o projeto editorial da Ed. UnB condi-
da UnB será recuperada no presente zia com um plano tão munificente quanto
artigo, ou seja, de um lado, interessa ousado como o foi a construção de Bra-
observar as condições de implantação da sília e de sua universidade. Celebrava-se,
editora como parte constitutiva de uma enfim, o princípio da Educação como um
universidade totalmente nova, condizente pilar para o progresso brasileiro, segundo
com a criação de uma nova capital, seus principais ideólogos6.
no interior do Brasil. Por outro lado,
pretende-se lançar luz sobre o programa
de publicações que embasou a formação 5 Artur Heládio Neves nasceu em 1916, em Ribeirão
do primeiro catálogo da Ed. UnB, discutir Bonito. Perdeu o pai muito jovem e seguiu para São
Paulo, onde ingressou na gráfica Revista dos Tribunais,
o significado inovador da proposta, mas de Nelson Palma Travassos. Dali seguiu para a Com-
também os seus limites. Nesse ponto, panhia Editora Nacional, tornando-se braço direito de
Octalles Marcondes Ferreira. Era membro da Juven-
interessa captar o processo de construção tude Proletária Estudantil e frequentava a União dos
Trabalhadores Gráficos. Em 1935, foi preso junto com
da Biblioteca Básica Brasileira, a BBB, vários trabalhadores na Imprensa Oficial do Estado. A
tanto do ponto de vista de seu repertório militância comunista, o amadurecimento profissional
e intelectual, mas também o círculo de amizades,
quanto dos intelectuais que atuaram para conduziram-no à Editora Brasiliense. Dali, ele partiria
a publicação dos dez primeiros títulos. para um novo desafio, a Editora da Universidade de
Brasília (Iumatti, 2016, pp. 127-174).
6 Devemos lembrar a importância da atuação de Anísio
Teixeira e de Fernando de Azevedo nos projetos de
4 A bibliografia especializada aponta o pioneirismo da renovação do ensino no Brasil, desde a década de
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ao fundar 1930. Eles estarão à frente de várias iniciativas edito-
sua gráfica e impressora de livros em 1955. Mas, nesse riais, tendo influenciado, inclusive, jovens editores, a
caso, não houve necessariamente um projeto editorial exemplo de Ênio Silveira, editor-fundador da revista
que guiasse os serviços gráficos prestados pela uni- Atualidades Pedagógicas, cuja história longeva (1931-
versidade. Para uma história completa das editoras 1981) não pode ser contada sem a presença desses
universitárias brasileiras, consultar Leilah Santiago dois grandes formuladores da educação brasileira.
Bufrem (2001). (Toledo, 2020; Silveira, 2003).

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dossiê edição e política

Darcy Ribeiro (primeiro reitor da ção científica da universidade. O primeiro


UnB) e Anísio Teixeira estiveram à frente desafio se coloca, em parte, ainda em nos-
daquela iniciativa vanguardeira (Bomeny, sos dias, dada a demanda permanente de
2016, pp. 1003-28). No Plano Orienta- traduções de obras fundamentais para a
dor da Universidade de Brasília (1962)7 a formação acadêmica e técnica em níveis
editora figura no arrolamento do patrimô- de graduação e pós-graduação. A partir da
nio da instituição com um fundo rotativo década de 80, a deficiência de traduções
próprio, no valor de Cr$ 50.000.000,00. de textos acadêmicos, cujos investimentos
Para se ter uma ideia da importância dessa não se justificavam comercialmente, dado
dotação, cumpre destacar que, no mesmo o caráter especializado e de circulação res-
período, era este o valor declarado dos trita de algumas obras, será atacada com
lucros da Rádio Nacional, noutros termos, maior vigor pelos editores universitários
do principal e mais popular veículo de em ascensão, o que não passou isento de
comunicação do país. A missão da editora críticas lançadas por seus próprios pares,
é explicitada no mesmo documento, que interessados, como estavam (e ainda estão),
passamos a citar: em enfatizar ou até mesmo priorizar a
publicização dos resultados das pesquisas
“Traduzir para o português as principais realizadas em suas instituições8.
obras do patrimônio cultural, científico e O segundo ponto, a saber, “editar a
técnico da humanidade, que ainda não são produção científica e literária da própria
acessíveis em nossa língua e, sobretudo, Universidade”, pode ser interpretado em
fazer elaborar e editar textos básicos para duas chaves: como um compromisso que se
o ensino em nível superior, além de editar ratifica por escrito com a instituição mater,
a produção científica e literária da pró- afinal, não podemos perder de vista o cará-
pria Universidade. Somos, hoje, um dos ter oficial do documento, mas, também,
maiores importadores de livros técnicos como resposta a uma tendência flagrante
da Espanha, do México e da Argentina. no mercado, que consistia na aproxima-
Vale dizer que os alunos de nossas uni- ção de editoras particulares com institui-
versidades estão estudando em espanhol.
A exemplo do que fizeram todos os países
modernos, impõe-se editar em português
8 Por mais contraditório que possa parecer, a maior
a bibliografia básica para a formação pro- parte das editoras universitárias “foram instaladas no
fissional comum, em nível universitário”. bojo da ditadura. Tendo na origem a imprensa oficial,
a maioria das editoras federais mais antigas data
dos anos 70, sendo que sua expansão foi resultado
da confluência de dois interesses: dos editores das
“Traduzir para o português as principais
gráficas de universidades federais, que desde 1976 se
obras do patrimônio cultural, científico e reuniam para debater temas como padronização dos
impressos, custos, melhor aproveitamento dos equipa-
técnico da humanidade” e editar a produ- mentos; e do MEC, que em 1981 criou um programa
especial, o Proedi, para estimular ‘a publicação da
produção científica e intelectual das IES [Instituições
de Ensino Superior], tanto para fomentar o debate
crítico [...] como para dar o imprescindível apoio ao
7 Este foi o primeiro título da editora, publicado em avanço do desenvolvimento científico e tecnológico
inglês e português. nacional’” (Guedes & Pereira, 2000, p. 78).

18 Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 13-26 • outubro/novembro/dezembro 2023


ções de ensino e de pesquisa emergentes na Universidade de Columbia10. Além disso,
no Rio de Janeiro e em São Paulo. Artur Ênio Silveira dialogava com representantes
Neves, como assinalado, um dos mentores de diferentes setores progressistas brasilei-
da Brasiliense, tanto quanto Darcy Ribeiro, ros, entre pensadores já bem estabelecidos
mentor intelectual da Ed. UnB, conheciam como Anísio Teixeira e Fernando de Aze-
bem o cenário intelectual da época. vedo, passando por intelectuais do Iseb11,
Em 1957, a Editora Zahar fazia sua órgão fundado durante o governo de Jus-
estreia na praça carioca com o slogan “A celino Kubitscheck, portanto, representativo
Cultura a Serviço do Progresso”. No catá- do pensamento nacional-desenvolvimentista
logo de abertura, o Manual de sociologia, em voga, e militantes do PCB, partido que,
de Rumney e Meier, traduzido por Octa- a partir de 1947, após um êxito eleitoral
vio Alves Velho, e Democracia e direito, histórico para representantes (deputados e
de Jerome Hall, com tradução de Arnold senadores) do Legislativo, foi uma vez mais
Wald e Carly Silva, e introdução de Paulo relegado à clandestinidade12.
Dourado Gusmão. Para se ter uma ideia da Outras editoras surgiram com fôlego
euforia com que o novo empreendimento novo e, vale dizer, boa dose de altruísmo,
editorial foi recebido, citamos a notícia como observa Florestan Fernandes ao
publicada n’O Estado de S. Paulo, de comentar o aumento das publicações de
28 de setembro de 1957 (apud Cataldo, livros universitários, no limiar da década
2017, p. 237) 9: de 60. O autor salienta a importância, por
exemplo, do “Fundo Universal de Cultura,
“[...] a falta de bons textos didáticos consti- Zahar Editores, Livraria Pioneira Editora,
tui uma das maiores dificuldades com que Ibrasa, Edart etc.”, além de coleções lançadas
se defrontam os professores de Ciências por “antigas editoras”, a exemplo da “Com-
Sociais no Brasil. Por isso, é sempre opor-
tuna e causa interesse a tradução e a edi-
ção, em português, de livros que podem ser
utilizados em cursos de iniciação científica 10 Para se ter uma ideia da afinidade do governo com
os programas editoriais em evidência, o que nos per-
dessas matérias, pois elas sempre concorrem mite compreender as orientações expressas no plano
da Ed. UnB, relata Ênio Silveira: “Um pouco antes do
para criar ou para aumentar os hábitos de Golpe de 64, surgiu no Rio de Janeiro um rumor de
leitura dos principiantes”. que, numa reforma ministerial, eu seria o próximo
ministro da Educação [...]. Era um rumor, e por isso
não dei crédito, achei que era uma brincadeira” (Sil-
A Editora Civilização Brasileira já inves- veira, 2003, p. 63).

tia, por seu turno, em traduções de obras de 11 O Iseb foi fundado em 1955. Participaram do projeto
inicial Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos, Cândido
ciências humanas, especialmente, de auto- Mendes de Almeida, Álvaro Vieira Pinto e Nelson
Werneck Sodré. Os dois últimos, vale sublinhar, com-
res norte-americanos, com os quais o edi- puseram a equipe editorial da UnB (ver doc. infra).
tor estabelecera relações durante um estágio 12 Nesse aspecto, é notável a atuação, na década de
1940, da Editorial Vitória e da Calvino Editores. O
componente nacional-popular de suas edições se
torna evidente nos catálogos, embora as editoras
não abram mão de publicações teóricas e de cunho
9 Além do artigo citado, valemo-nos do livro de Paulo social internacionais (Editorial Vitória, 1946) (Deaecto
Roberto Pires (2017). & Mollier, 2013; De Luca, 2014; Juberte, 2023).

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dossiê edição e política

panhia Editora Nacional (com a Biblioteca


Universitária, que já conta com duas séries
em plena atividade: a de filosofia e a de
ciências sociais) e da Difusão Europeia do
Livro (com sua Coleção Corpo e Alma do
Brasil e suas importantíssimas séries sobre
História – do Brasil, Universal e da Ciên-
cia)” (Fernandes, 1962, p. 4).
É, portanto, nesse ambiente de agitação
intelectual e política que o programa
editorial da UnB se define. Os caminhos
eram muitos, compatíveis com a sua missão
(ver documento supra). No caso das tradu-
ções, elas demandavam tempo e um tra-
Folha de rosto de Os sertões. Campanha
balho ulterior de prospecção, tal como o
de Canudos, de Euclides da Cunha.
realizado pela Zahar, Civilização Brasi- Toda a coleção obedece a um mesmo
leira e Difel. A produção docente da UnB padrão gráfico: formato 16 x 24, folha de rosto
estava certamente no horizonte de reali- em duas cores, seguindo o logo da editora em
verde, com o traçado do plano piloto vazado,
zações, mas estas viriam à luz apenas a
no pé da página. O número e o nome da
médio prazo, pois a universidade acabara coleção seguem no cabeço. As duas seções,
de inaugurar seus cursos. Talvez seja por cabeço e pé, são demarcadas por fios para
esse motivo que, na prática, a Ed. UnB conferir equilíbrio à página
tenha priorizado, como previsto no docu-
mento acima citado, um terceiro ponto:
“sobretudo, fazer elaborar e editar textos volumes de uma coleção uniforme deno-
básicos para o ensino em nível superior”. minada Biblioteca Básica Brasileira. Essa
Prevaleceu, portanto, nesse momento de coleção, que no futuro deverá enfeixar 100
constituição do catálogo editorial, o projeto (cem) obras de autores nacionais, seleciona-
de construção de uma biblioteca brasiliana das através de amplo inquérito, constitui [...]
que expressasse o espírito e a visão de um conjunto de livros indispensáveis para
mundo dos idealizadores da UnB. o conhecimento do nosso país e do homem
brasileiro” (apud Lacerda, 2018, p. 3).
A BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRA:
Sem dúvida, uma coleção ambiciosa, ao
ENSINO E POLÍTICA
prever a publicação simultânea de dez títulos,
A iniciativa foi apresentada em 1963, nos com tiragem inicial de 15 mil exemplares,
termos seguintes: totalizando 150 mil livros. Entre setembro
de 1962 e janeiro de 1963, Darcy Ribeiro
“A Editora da Universidade de Brasília edi- estava à frente do Ministério da Educação
tará, em 1963, em convênio com o Ministério do governo provisório de João Goulart, o
da Educação e Cultura, os 10 (dez) primeiros que tornou factível o programa editorial nos

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moldes apresentados, sobretudo, em termos brasilianas financiados pelo Instituto Nacio-
financeiros (ver Quadro 1). nal do Livro (Bragança, 2009); outrossim,
Ana Regina Luz Lacerda situa a Biblio- embora de forma mais episódica, mas nem
teca Básica Brasileira (BBB) dentro de um por isso menos relevante, o Manual biblio-
quadro mais amplo de coleções brasilianas. gráfico de estudos brasileiros, dirigido por
Como observa a autora, o projeto dá con- Rubens Borba de Moraes e Willian Berrien
tinuidade, dentro de suas especificidades, (Gráfica e Editora Souza, 1949.)15. O biblió-
a projetos editoriais que se notabilizaram filo brasileiro coordenará, inclusive, o curso
nos anos 1930, a saber, a Biblioteca Peda- de Biblioteconomia da UnB ao qual aparece
gógica Brasileira, da Companhia Editora vinculada a Biblioteca Central.
Nacional, e a Coleção Documentos Brasi- A edição de um repertório bibliográfico
leiros, da Editora José Olympio, ambas em brasileiro não constituía, portanto, fato inco-
atividade, embora sem o mesmo fulgor dos mum. Além dos exemplos citados, devemos
primeiros tempos13. lembrar que Nelson Werneck Sodré publicou,
A esses projetos assinalados pela autora em 1945, O que se deve ler para conhecer
é preciso acrescentar a iniciativa capitane- o Brasil. Pelo que se depreende do Prefá-
ada por Paul Monteil, fundador da Livraria cio à primeira edição, a pesquisa se dera
Francesa de São Paulo e editor-proprietá- a convite da Editora Leitura16. Aliás, este
rio da Difusão Europeia do Livro (Difel). título se reveste de uma importância maior
Além de se voltar para a tradução de títu- para nosso estudo justamente porque, pas-
los universitários franceses, ele publicou a sadas duas décadas desde a sua primeira
Coleção Corpo e Alma do Brasil, dirigida edição, ele será revisto para compor o pri-
por Fernando Henrique Cardoso, de 1951 meiro volume da Biblioteca Básica Brasileira
a 1970, projeto que congregou uma fração (BBB) – agora, em uma terceira edição.
importante do pensamento universitário bra- Passado e presente, tradição e inova-
sileiro ou, pelo menos, a expressão daquele ção se amalgamam, portanto, na BBB. Ou
“sopro de radicalismo”, para retomar um seja, ao contrário da tendência verificada
termo cunhado por Antonio Candido, nascido
no coração da Rua Maria Antônia14. Have-
ríamos de destacar, ainda, os programas de
15 “O projeto, originalmente concebido como Handbook
of Brazilian Studies, com financiamento generoso de
instituições como o American Council of Learned
Societies e a Rockefeller Foundation” demarcou um
momento importante das relações Brasil-Estados
13 Na verdade, é muito rica a produção editorial sobre Unidos (Nicodemo, 2019, pp. 67-84).
o período. Sobre o tema, assinalamos a pesquisa
fundamental de Fábio Franzini (2010). 16 “A importância que demos à organização deste livro
ressalta do nome escolhido – o do historiador e so-
14 O primeiro título da Coleção Corpo e Alma do Brasil ciólogo Nelson Werneck Sodré, como um dos mais
foi Novos estudos de geografia humana, de Pierre Mon- indicados para realizá-lo nos moldes que havíamos
beig (1957), em seguida, foi publicado Brasil, terra de idealizado”. “Nota dos Editores” (Sodré, 1945, p. 10).
contrastes, de Roger Bastide (1959), e Mudanças sociais Aliás, o título compõe o segundo volume da Coleção
do Brasil, de Florestan Fernandes (1960), para ficarmos Conhecimento do Brasil, a qual fora inaugurada com a
nos três primeiros títulos desse empreendimento tão tradução, por Aurélio Domingues, da obra de Oliveira
bem-sucedido, sob a direção de Fernando Henrique Lima, Formação histórica da nacionalidade brasileira,
Cardoso, que projetou a segunda geração de docen- prefaciada por Gilberto Freyre a convite do editor
tes da FFCL-USP (Marchetti, 2023). (como se lê nas orelhas do volume de Werneck Sodré).

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dossiê edição e política

QUADRO 1

A Biblioteca Básica Brasileira da Ed. UnB (1963)


Cit. por Nelson
Volume Referência Bibliográfica Werneck Sodré
(seção)*
Manoel Said Ali. Gramática secundária da língua
portuguêsa. 3a edição adaptada à nomenclatura
1 gramatical brasileira por Evanildo Bechara; e Gramática
-
histórica da língua portuguêsa. 3a edição revista e anotada
por Maximiano de Carvalho e Silva. Brasília, Editora da
Universidade de Brasília, 1964. 249 pp.; 375 pp.

João Capistrano de Abreu. Capítulos de história colonial


(1500-1800) & Os caminhos antigos e o povoamento
4. A Literatura/ B.
2 do Brasil. 5a ed. revista, prefaciada e anotada por José
Fontes principais
Honório Rodrigues. Brasília, Editora da Universidade de
Brasília, 1963. xix, 402 pp.

José Veríssimo. História da literatura brasileira: de Bento


Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 4a ed. Introdução 4. A Literatura/ B.
3
de Heron de Alencar. Brasília, Editora da Universidade de Fontes principais
Brasília, 1963. xxvi, 319 pp.

Fernando de Azevedo. A cultura brasileira: introdução ao


estudo da cultura no Brasil. 4a edição revista, ampliada e 4. A Literatura/ B.
4
ilustrada. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, Fontes principais
1963. 803 pp.

Euclides da Cunha. Os sertões. Campanha de Canudos.


27. A crise da
27a ed., 4 mapas. Introdução de Nelson Werneck Sodré.
5 República/ C. Fontes
Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1963. xliv, 474
subsidiárias
pp.

Celso Furtado. Formação econômica do Brasil. Introdução 2. Estudos


6 de Francisco Iglésias. Brasília, Editora da Universidade de econômicos/ B.
Brasília, 1963. xxxiv, 309 pp. Fontes principais

Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala. 12a edição


3. Estudos sociais/ B.
7 brasileira, 13a edição em língua portuguesa. Brasília,
Fontes principais
Editora da Universidade de Brasília, 1963. 589 pp.
6. Os costumes/
Joaquim Nabuco. Minha formação. Introdução de Gilberto
2) Memórias e
8 Freyre. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1963.
correspondências/ B.
xxiii, 260 pp.
Fontes principais

Manuel Antônio de Almeida. Memórias de um sargento de


4. A Literatura/ D. Um
9 milícias. Introdução de Mário de Andrade. Brasília, Editora
roteiro literário
da Universidade de Brasília, 1963. xxiv, 228 pp.

Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Introdução 17. A Sociedade


10 de Antonio Candido. 4a edição revista pelo autor. Brasília, colonial/ B. Fontes
Editora da Universidade de Brasília, 1963. xv, 228 pp. principais

Fonte: Lacerda, 2018


* Na segunda coluna é possível observar a seção na qual o título figura em: Sodré (1945)

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entre os editores citados anteriormente, ser de 15.000 (quinze mil exemplares),
cujas coleções brasilianas eram formadas isso significa que cada autor receberá Cr$
por textos originais, a BBB foi composta 1.050.000,00 (hum milhão e cinquenta mil
com um repertório de textos clássicos da cruzeiros) como direitos autorais”.
literatura nacional, de modo a conformar
seu próprio cânone. A presença de Nelson No tópico “Bibliografia”, o editor
Werneck Sodré, convidado diretamente por informa que os trabalhos de Wanda de
Darcy Ribeiro para contribuir com a editora, Alencar estavam bem avançados. Aprende-
foi fundamental nesse primeiro momento de remos, mais tarde, tratar-se da difícil tarefa
construção do repertório bibliográfico. E sua de identificar nas bibliotecas brasileiras os
presença não se resume à edição daquele títulos insertos no repertório de O que se
que deveria ter sido o primeiro volume da deve ler, com vistas a facilitar a busca dos
coleção. Como deixa entrever Artur Neves leitores, pois, como pondera o autor, nem
na missiva endereçada ao general comu- todas as edições eram de fácil acesso no
nista, datada de 8 de julho de 1963, o que mercado – aliás, esta é uma informação
se estabelece entre autor e editor é uma importante, pois não apenas confirma a
parceria que se pretendia longeva17. hipótese de que as editoras vinham respon-
A missiva se divide em três tópicos. der positivamente a uma demanda reprimida
O primeiro aborda questões relativas aos por títulos valorizados no ambiente acadê-
“direitos autorais”. As informações são pre- mico, mas também porque esta ideia defi-
ciosas, pois nos permitem concluir que o nirá os dez títulos selecionados para compor
projeto de edição dos dez primeiros títulos a coleção BBB18 . Além disso, ele solicita a
da BBB não se sustentava nem do ponto Werneck Sodré o encaminhamento dos ori-
de vista financeiro (aliás, ele era subven- ginais emendados diretamente à Revista dos
cionado pelo Ministério da Educação), nem Tribunais (que imprimia, de ordinário, os
mercadológico, pois a editora não detinha livros da Brasiliense, entre outras editoras
o direito de exclusividade sobre os títulos. em atividade). Ao que acrescenta: “Todos
Como explica Artur Neves: os outros livros já estão sendo compostos”
nesta gráfica – assim, a possibilidade de um
“Como não se trata de uma cessão defini- lançamento grandioso, dos dez primeiros
tiva de direitos, uma vez que o livro poderá volumes da coleção de uma só vez, ganha
ser publicado simultaneamente pelo autor peso nesta passagem.
ou por outra editora, para venda através Em “Prefácio para Os sertões”, o último
das livrarias, só poderemos pagar 7% (sete tópico desenvolvido na carta, Artur Neves
por cento) sobre o preço médio do volume esclarece que Werneck Sodré mantinha uma
(Cr$ 1.500,00). Como a nossa edição vai contribuição assídua com a Ed. UnB, a qual
durou “todo o primeiro semestre”. E que

17 Nesse ponto o artigo de Ana Regina Luz Lacerda


é certeiro, ao lançar luz sobre o papel de Nelson
Werneck Sodré na construção da Biblioteca Básica 18 Carta de Artur Neves ao general Nelson Werneck So-
Brasileira da Ed. UnB. dré, Brasília, 8 de julho de 1963, 2 fls.

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dossiê edição e política

não tinha prazo para acabar, pois era espe- do exílio, a professora Wanda de Alencar
rada a “sua vinda definitiva, bem como acompanhou seu marido na fuga para o
a do Vieira Pinto [filósofo do Iseb]”. No estrangeiro, o ilustre mestre de literatura
mais, o editor tem interesse particular por Heron de Alencar [...]. Fui informado de que
seu escrito sobre Os sertões, de Euclides da [meus] originais haviam sido destruídos e
Cunha, recomendando-lhe, todavia, justificar que este livro fôra, pelos novos dirigentes
sua inserção na BBB, por ser “muito con- da Universidade de Brasília, convenien-
veniente do ponto de vista editorial”, bem temente expurgado da biblioteca básica a
como acrescentar o estudo de Rui Facó, ser lançada, substituído por outro título,
“que soube ligar tão bem a luta de Canu- de natureza diversa” (Sodré, 1967, p. 19).
dos com as lutas gerais dos componeses
[sic] brasileiros pela conquista da terra”19. De fato, o projeto original da Ed. UnB
Como podemos observar no programa teve vida curta, abortado logo após o Golpe
da Biblioteca Básica Brasileira (Quadro de 1964. Esse primeiro impulso semeou,
1), foram lançados nove títulos no ano de todavia, um projeto político e autoral, voca-
1963. A obra de abertura surgiu apenas em cionado a pensar a produção de livros a par-
1964 e não contemplou o esquema origi- tir de um programa integrado à instituição
nal, a saber, uma terceira edição revista, universitária e à visão de mundo de seus
atualizada e ampliada de O que se deve gestores. Os limites desse projeto não se
ler para conhecer o Brasil. Importa, nos colocaram apenas pela conjuntura política,
limites do presente artigo, acentuar que, em é verdade, mas também pela estranheza com
meio a vários projetos de brasilianas, foi o que a inovação pretendida por seus editores
repertório construído por Nelson Werneck vinha chancelada por um repertório extem-
Sodré, naquele volume compacto editado porâneo, senão, conformado à luz de um
pela Leitura, que Darcy Ribeiro acolheu primeiro ensaio bibliográfico realizado por
para o programa de sua primeira coleção Werneck Sodré. A Biblioteca Básica Bra-
editorial. Nota bene: o primeiro programa sileira, formada maciçamente pela reedição
editorial da recém-fundada UnB. de estudos clássicos, respondia, enfim, a um
E por que O que se deve ler para conhe- único propósito previsto no programa edito-
cer o Brasil não veio a lume? O que se deu rial da Ed. UnB, a saber, “fazer elaborar e
depois pode bem ser representado pelo destino editar textos básicos para o ensino em nível
do original datiloscrito de Werneck Sodré: superior”. Edições de alto padrão gráfico e
intelectual, como denunciam seus paratex-
“Sobreveio o golpe de abril de 1964, a que tos, cujo repertório, tantas vezes reeditado,
se seguiu a implantação da ditadura: fui ainda demonstra o seu vigor na formação
preso, Darcy Ribeiro escolheu o caminho do leitor crítico brasileiro.

19 A obra de Euclides da Cunha, Os sertões. Campanha de


Canudos (27ª edição), foi publicada com o texto intro-
dutório de Nelson Werneck Sodré, mas sem o estudo
de Facó.

24 Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 13-26 • outubro/novembro/dezembro 2023


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agens
/USP Im
Santos
Marcos

A Difel e a Coleção Corpo e Alma do Brasil:


princípios para a construção de uma
brasiliana universitária (1957-1964)
Fabiana Marchetti
resumo abstract

O artigo apresentará a Corpo e Alma do The article will present Corpo e Alma
Brasil, coleção publicada pela editora do Brasil, a collection published by
Difusão Europeia do Livro (Difel) sob a the publisher Difusão Europeia do
direção de Fernando Henrique Cardoso, Livro (Difel) under the direction of
a partir de 1960. Por meio de seus Fernando Henrique Cardoso, from
primeiros lançamentos, analisaremos 1960’s. Through its first releases, we
como as condições culturais e materiais will analyze how the cultural and
para a produção editorial em São material conditions for editorial
Marcos Santos/USP Imagens

Paulo favorecem as elaborações da production in São Paulo benefits the


intelectualidade local sobre temas elaborations of local intellectuals on
relevantes para os projetos de nação relevant topics to the nation’s projects
discutidos no período. O levantamento discussed in the period. The survey
do catálogo e os paratextos das edições of the catalog and the paratexts of
serão a base da discussão e permitirão the editions will be the basis of the
identificarmos as referências que discussion and will allow us to identify
conectam o projeto com o referido the references that connect the project
contexto político-intelectual, definindo-o with the political-intellectual context,
enquanto uma brasiliana universitária. defining it as a university “brasiliana”.
Desta maneira, demonstraremos como In this way, we will demonstrate how
os modelos e cânones construídos the models and canons constructed
pela edição brasileira se ressignificam by the brazilian edition are given new
ao absorver e impulsionar novas meaning by absorbing and promoting
comunidades de autores e seus new communities of authors and their
posicionamentos no debate público. positions in the public debate.

Palavras-chave: Difel; edições univer- Keywords: Difel; university editions; USP;


sitárias; USP; brasiliana; pensamento brasiliana; brasilian thought.
brasileiro.
O
e o Partido Social Democrático (PSD), nos
TEMPOS DE REDESCOBRIR O BRASIL
quais estavam inseridos muitos membros do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) – colo-
s anos 1950 inaugura- cado na ilegalidade em 1947. Nesta aliança
ram um novo ambiente de espectro amplo, seus integrantes pauta-
político-intelectual para vam a discussão de um futuro materialmente
que o mercado de livros próspero e moderno, parte deles considerando
pudesse “editar o Bra- também o combate às desigualdades.
sil”. Após a derrocada As perspectivas de modernização da
do Estado Novo, que se estrutura político-econômica eram acom-
combinava com a der- panhadas por uma reorganização de sua
rota do nazi-fascismo superestrutura e, assim, para além dos
e a reorganização do partidos políticos que nutriam espaços de
bloco capitalista no elaboração e intelectuais orgânicos, as dis-
plano internacional, a putas sobre o projeto nacional em questão
sociedade brasileira foi foram produzidas e incentivadas por insti-
tomada pela perspectiva otimista de poder tuições de pesquisa. A mais emblemática
reconstruir a democracia e debater o desen-
volvimento da nação. As polêmicas sobre os
rumos a seguir ocorriam, no geral, sob uma
hegemonia progressista (Ricupero, 2000, pp. FABIANA MARCHETTI é doutora em
História Econômica pela FFLCH-USP
118-9) que institucionalmente se organizava e autora de Edgard Carone e a ideia
entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de revolução no Brasil (Ateliê Editorial).

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dossiê edição e política

expressão das elaborações desenvolvimentis- que pudessem atrair leitores especializados


tas (Bielschowsky, 2004) foi o Instituto Supe- dentro deste circuito, deveriam ser assumi-
rior de Estudos Brasileiros (Iseb), fundado dos com certo risco de investimentos até se
em 1955, no Rio de Janeiro, e vinculado ao consolidarem como um nicho de consumo.
Ministério da Cultura; mas os debates pau- Nesta relação entre interesses comer-
tados ali, bem como as críticas à perspectiva ciais, desenvolvimento das instituições
isebiana, encontrariam espaço na produção intelectuais e renovação do pensamento
realizada em torno de algumas fundações, brasileiro, situamos nosso ponto de partida
como a Fundação Joaquim Nabuco, criada para apresentarmos a Corpo e Alma do
no Recife em 1949, e nas universidades que Brasil, coleção criada pela Editora Difusão
se expandiam pelo país. Europeia do Livro (Difel) e dirigida por
Ainda que tivessem orientações distin- Fernando Henrique Cardoso, então profes-
tas, estas instituições conformavam um uni- sor assistente na cátedra de Sociologia I da
verso acadêmico que, aos poucos, se dife- Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
renciava do autodidatismo e bacharelismo da Universidade de São Paulo (FFCL-USP).
dominante nos meios intelectuais brasilei- Entendemos que o projeto foi concebido
ros. Especialização, formação técnica e para inserir a USP, e principalmente o
debate político permeavam os princípios grupo de sociólogos, nos debates políticos,
teóricos e a intenção dos trabalhos reali- econômicos e sociais do período. Desta
zados por seus membros, que, à medida de maneira, desejamos analisar sua formação
sua afirmação no debate público, dedicarão e o perfil de publicações de seus primeiros
esforços para fazer circular suas ideias anos, entre 1957-1964, para discutirmos as
por meio de veículos de comunicação, da relações que articulam edição, política e
mídia impressa, dos periódicos especiali- história do Brasil.
zados e dos livros.
Os referidos institutos e fundações A EDITORA DIFEL EM SÃO PAULO:
mantiveram editoras ou, ao menos, selos
OS LIVROS E A FORMAÇÃO
de publicação, e as universidades criaram
estruturas editoriais a partir dos anos 1960 DA METRÓPOLE
(Bufrem, 2000; Deaecto & Martins, 2017).
Em ambos os casos, contudo, essa produ- A economia de guerra, entre 1939-1945,
ção intelectual que se avolumava teve de deflagrou uma onda de industrialização e
se apoiar por muito tempo nas iniciativas crescimento dos centros urbanos no Bra-
das editoras comerciais, que também viam sil. Este processo, que atingiu sobretudo as
nesse meio uma oportunidade para inova- capitais de estados, beneficiava e ao mesmo
rem em seus catálogos. No caso da comu- tempo exigia a produção de uma realidade
nidade universitária, estas empresas serão material e simbolicamente correspondente
fundamentais, pois a realização de teses e ao ideal de modernização pensado por suas
outros resultados de pesquisa inscritos nos elites dirigentes, transformando estas áreas
ritos da instituição eram gêneros textuais urbanas em verdadeiras arenas em disputa
novos para o mercado brasileiro e, ainda para a construção de metrópoles que repre-

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sentariam modelos de um estilo de vida e de pp. 62-4). Situado à Praça Dom José Gas-
uma identidade para a sociedade brasileira par, o edifício da Biblioteca Municipal
(Peixoto & Gorelik, 2019). fora erguido como uma referência desse
Na cidade de São Paulo, vemos esta esforço de ampliação do sistema de ensino
conjuntura se manifestar em diversas ini- e do acesso à leitura, colocando os livros
ciativas e discursos de época, como nos apre- como bens culturais de protagonismo do
senta o texto introdutório de um álbum de desenvolvimento paulistano.
fotos publicado pela Editora Melhoramentos: Ao seu redor, orbitavam diversas livra-
rias, concentradas nas principais ruas
“[...] Situada num planalto de cerca de comerciais do Centro, por onde passavam
800 metros de altura, levanta São Paulo diariamente trabalhadores, profissionais
as fachadas visionárias de seus gigantescos liberais e mesmo parte da elite paulistana
edifícios para os céus brasileiros. [...] Belas que vivia em bairros próximos. Assim, a
e caprichosas construções foram erigidas região central da cidade vivenciava uma
para a ciência e a cultura. O imponente dinâmica cultural que compreendia a
colosso de cimento armado da Biblioteca expansão de seu público leitor, especial-
Municipal encerra farta messe de selecio- mente dos jovens estudantes e professores
nada literatura mundial. O Museu de Arte das escolas, faculdades e universidades ins-
encanta o visitante com as suas instalações taladas ali. O último grupo trazia os ares de
internas originalíssimas e perfeitamente renovação destes meios intelectuais (Pontes,
adaptadas às suas finalidades, deitando a 1998), reivindicando para si uma identidade
luz fluorescente, coada através dos tetos com a esfera simbólica construída na passa-
de vidro fosco, reflexos mágicos sobre as gem da “cidade mente” para a “metrópole
pinturas dos impressionistas. O Museu de cultural” (Morse, 1970, pp. 409-16).
Arte Moderna, cujas instalações obedecem O lançamento da revista Clima em
aos mesmos princípios, também impressiona 1941, apoiada por Alfredo Mesquita, o
pelas suas valiosas coleções de pintura. Os proprietário da Livraria Jaraguá, repre-
teatros e casas de diversão são do tipo de sentou uma das primeiras manifestações
cidade grande, estando a jovem e florescente deste movimento, assim como a aproxi-
indústria cinematográfica paulistana fadada mação do livreiro-editor José de Barros
a um grande futuro” (Melhoramentos, 1952). Martins com os primeiros doutores titulados
pela USP1. Essas iniciativas sinalizavam
Entre os símbolos do processo de metro- o potencial de crescimento das atividades
polização, destacavam-se os equipamentos
ligados à cultura e à instrução pública,
pois, segundo o discurso oficial, estes
1 Nos anos 1940, o editor recrutou os universitários
espaços garantiriam o envolvimento da para realizar traduções, como em O pensamento vivo
população com aquele projeto por consti- de Rousseau, de Romain Rolland e com trad. de J. Cruz
Costa (São Paulo, Livraria Martins Editora, 1940); e tam-
tuírem vetores dos hábitos, dos meios de bém publicou algumas teses produzidas no âmbito da
FFCL-USP, como o trabalho de Eurípedes Simões de
sociabilidade e da formação intelectual Paula, Marrocos e suas relações com a Ibéria na Antigui-
próprios da vida moderna (Arruda, 2015, dade (São Paulo, Livraria Martins Editora, 1946).

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dossiê edição e política

editoriais paulistanas, pois, além da dinâ- na formação da faculdade. Aproveitando-se


mica intelectual favorável, a cidade contava de seu capital econômico e simbólico como
com uma infraestrutura produtiva relevante livreiro, ele podia visualizar um horizonte
que a transformara no maior parque gráfico de atuação no mercado editorial, como já
da América do Sul já no início dos anos faziam muitos de seus concorrentes, absor-
1940 (Hallewell, 2012, p. 540), e com a vendo os efeitos decorrentes do amadure-
entrada massiva de investimentos em todos cimento dos primeiros “frutos da univer-
os setores de sua indústria cultural. sidade” (Arruda, 2017, p. 177).
A Editora Difusão Europeia do Livro, De início, os universitários trabalharam
fundada por Paul-Jean Monteil em 1951, nas traduções que estruturaram o catálogo
surge em meio a essa realidade urbana: da Difel, com destaque para dois projetos
originalmente publicados pela Presses Uni-
“Enfim, a vida cultural era entre a Praça versitaires de France: as coleções Saber Atual
da República, a faculdade e esse miolinho e História Geral das Civilizações3. E não tar-
das livrarias, e o Monteil era o dono da dou para que a colaboração se aprofundasse
Livraria Francesa. Bom, como eu estou e se desdobrasse em publicações diretamente
tentando dizer, era mais que uma livraria, produzidas pela comunidade uspiana.
era um centro de convívio. E a abertura A primeira obra autoral de estudos brasi-
pra você saber o que está acontecendo no leiros que a Difel publicou, no ano de 1957,
mundo. Nessa época, a predominância do foi Novos estudos de geografia humana
francês era muito grande. Na faculdade brasileira, de Pierre Monbeig, um livro que
as aulas eram dadas em francês [...]” não possuía nenhuma referência, estética ou
(Cardoso, 2019). paratextual (Genette, 2018), de que integra-
ria algum projeto específico para a editora.
Fernando Henrique Cardoso relembra Uma segunda publicação com características
a referência de Monteil nos circuitos do similares é lançada em 1959: Brasil, terra
centro novo paulista quando fundou a sua de contrastes, de Roger Bastide. Ambos
editora. Sua primeira empresa no mercado os autores eram professores franceses que
livreiro, a Livraria Francesa (1947), atraía haviam lecionado na FFCL-USP e cons-
o corpo discente e docente da FFCL-USP2, truído referência em suas cátedras. Bas-
apresentando-se como um espaço acolhedor tide foi aquele que provavelmente mais se
para que se reunissem e criassem relações sobressaiu na liderança de uma “escola” de
a partir da principal referência estrangeira pensamento (Arruda, 2015, p. 176) e não
é à toa que a obra em questão irá anun-

2 A FFCL-USP funcionou em vários endereços entre


1933 e 1949 – o principal foi a Escola Normal Caetano 3 A Saber Atual [Que sais-je?], coleção de bolso criada
de Campos, na Praça da República. Depois mudou pelo editor Paul Angoulvent, em 1941, foi traduzida
para a Rua Maria Antônia, 294, Edifício Rui Barbosa, pela Difel a partir de 1954; História Geral das Civili-
onde permaneceu até 1969. Nesses locais, a faculdade zações [Histoire Générale des Civilisations], dirigida
integrou o circuito cultural do centro novo de São por Maurice Crouzet, criada pela PUF em 1953, foi
Paulo, próximo à Barão de Itapetininga. publicada pela Difel a partir de 1955.

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ciar a coleção que nos interessa, a Corpo do ponto de vista científico de análise dos
e Alma do Brasil, em uma pequena nota problemas do homem, da sociedade e da
de orelha, na qual o trabalho de Monbeig cultura [...]” (Cardoso, 1960, p. 1).
é reivindicado como título inaugural. As
demais informações do empreendimento, seu O sociólogo anuncia o projeto assumindo
diretor, seus princípios e objetivos, seriam os títulos que a Difel havia publicado ante-
definidas em um terceiro volume. riormente. Embora ele afirme um marco de
distanciamento para a nova fase que ele inau-
PRINCÍPIOS E OBJETIVOS gurava, é possível percebermos a incorpora-
ção das obras como recurso para construir
DE UMA NOVA BRASILIANA
um espaço de autoridade para a coleção.
A presença dos professores franceses era
A Corpo e Alma do Brasil foi lançada fundamental para expressar aspectos da hie-
oficialmente com Mudanças sociais no Bra- rarquia universitária dentro do projeto, fato
sil, de Florestan Fernandes, publicado no que lhe conferiria também marcadores de
ano de 1960. Uma apresentação do projeto identidade internos à instituição.
é assinada por Fernando Henrique Cardoso, As cátedras eram símbolos do regime
intelectual escolhido para dirigi-la: de profissionalização intelectual que Car-
doso reivindicava em sua fala e, na USP,
“A Difusão Europeia do Livro encarre- sua organização ocorrera através desses
gou-me de orientar as publicações de sua mestres estrangeiros que, após alguns anos
coleção Corpo e Alma do Brasil, cujos dois de dedicação, passavam seu legado aos seus
primeiros títulos (Novos estudos de geo- principais assistentes brasileiros. Os primei-
grafia humana brasileira, de Pierre Mon- ros livros da Corpo e Alma apresentavam
beig, e Brasil, terra de contrastes, de Roger fundamentalmente o histórico da cadeira
Bastide) tanto êxito alcançaram. Escolhi de Sociologia I estruturada por Bastide e
para inaugurar o novo período da coleção herdada por Florestan Fernandes, autor do
o volume sobre Mudanças sociais no Bra- volume que oficializa o projeto. Fernando
sil porque através dele pode-se perceber Henrique, por sua vez, era uma das promes-
as características que os editores desejam sas de liderança que despontava entre os
imprimir a esta coletânea. [...] Pretende-se, assistentes de Florestan. O jovem pesquisador
pois, acolher nesta coleção trabalhos que estava concluindo seu doutorado, defendido
traduzam o resultado do esforço de revisão em 1961, e na direção do empreendimento
das técnicas de análise e interpretação da da Difel se tornava uma espécie de porta-
realidade brasileira que vem caracterizando -voz de seus mestres.
o desenvolvimento recente das ciências Sendo assim, a construção editorial repro-
humanas no Brasil. O antigo espírito de duzia a realidade do sistema acadêmico e
improvisação e verbalismo, que tanto mar- o interesse de seus membros em projetar
cou a fase do chamado bacharelismo bra- seus nomes, suas posições e sua produção
sileiro, começa a ser revisto e substituído, intelectual para círculos externos à univer-
pouco a pouco, pela radicação no Brasil sidade. Estas condições convergem com as

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dossiê edição e política

intenções da editora, que não se alinhou [...] Nenhum cientista responsável poderia
à cátedra em questão de modo aleatório. endossar as aspirações de fazer da ciência
Fernando Henrique já havia trabalhado na uma nova religião leiga que substituísse
Difel ao traduzir Do espírito das leis, de todas as demais formas de conhecimento
Montesquieu, e, ao que tudo indica, Florestan e propusesse explicações permanentes para
Fernandes era um frequentador da Livraria todos os problemas” (Cardoso, 1960, p. 3).
Francesa e tinha uma relação próxima com
Paul Monteil. Além disso, a atividade do A referência ao caráter doutrinário e
catedrático brasileiro se sobressaía no con- empirista de tais elaborações sugere que o
texto da FFCL-USP: ele foi o responsável sociólogo se dirigia indiretamente à produção
por metade das defesas de tese da facul- oriunda do ambiente intelectual que carac-
dade entre 1954-1964 (Brito, 2019, p. 218). terizamos na introdução ao artigo, aquele
Ou seja, uma rica fonte de matéria-prima fomentado em torno do Iseb e dos partidos
para uma casa que desejasse desenvolver progressistas, especialmente do PCB – com
seu catálogo junto à instituição. os quais ele dialogava (Brito, 2019, p. 212).
Fernando Henrique se coloca como res- Uma vez associados às políticas de governo,
ponsável individual pelo projeto, contudo, ou por corroborarem parte delas, estas insti-
estabelece seu pertencimento a um grupo e tuições e seus representantes acabavam por
a defesa de princípios coletivos que deverão hegemonizar o ideal de um projeto de nação
nortear aquela atividade. Isto posto, fica clara ao qual os uspianos iriam dirigir suas crí-
a sua intenção em promover o que seria uma ticas. O lugar ocupado pelo grupo de Car-
nova forma de compreender o Brasil através doso na realidade paulistana definia o tom
da ciência, designação sob a qual ele defende do discurso inaugural da coleção, porque a
a produção universitária. Do ponto de vista universidade garantia as condições profissio-
metodológico, determina de pronto sua con- nais para elaborarem suas intervenções e a
traposição com o bacharelismo e a produção possibilidade de imprimirem um sentido de
ensaística e, mais adiante, avança para uma engajamento para seus trabalhos sem cair
diferenciação com as demais tendências que no que consideravam ser os reducionismos
reivindicavam o pensamento científico: impostos pela interferência de instituições
do Estado, partidos etc.
“[...] Ciência e pesquisa são palavras que Outrossim, o diretor faz questão de situar
se tem empregado de maneira abusiva entre o projeto diante de um repertório editorial
nós. Parece que com elas se pretende, atra- consagrado por se colocar a serviço do pen-
vés de uma espécie de virtude mágica de samento brasileiro:
que estes vocábulos estão impregnados, dar
cunho de seriedade e fazer circular entre “Vê-se, pois, que não se deseja acrescer às
os setores acadêmicos e o grande público brasilianas existentes – que tão marcados
um conjunto de noções informadas por serviços têm prestado para a difusão dos
um empirismo grosseiro e revestidas de conhecimentos sobre o Brasil – uma cole-
pretensão à dignidade de um saber defi- tânea similar. Não se tem a intenção de
nitivo, que toca as raias do misticismo. promover a edição ou a reedição de textos

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clássicos sobre o Brasil, sejam eles fontes ver, o marco para a diferenciação entre as
primárias ou trabalhos de interpretação. chamadas “interpretações do Brasil” e os
Nem se pretende, sem excluí-los, publicar “estudos brasileiros” que então passariam a
apenas autores consagrados. O objetivo compor o repertório orientado por Fernando
expresso dessa coleção será a publicação Henrique Cardoso.
de estudos sobre o Brasil que reflitam, nas Além destas escolhas e do discurso de
suas cogitações e na técnica de elabora- apresentação, a edição de Mudanças sociais
ção, as preocupações do espírito científico” no Brasil realiza em si outros marcadores
(Cardoso, 1960, p. 2). para estabelecer o sentido e os objetivos que
os responsáveis pela Corpo e Alma do Brasil
Com “um pé” na inovação e outro na desejavam alcançar. A obra foi construída a
tradição, Fernando Henrique coloca a Corpo partir de artigos escritos por Florestan Fer-
e Alma no rol das brasilianas. A Brasiliana, nandes entre 1949-1959, passando por temas
da Companhia Editora Nacional (1931), e a variados, reunidos em três subeixos temáti-
Documentos Brasileiros, da José Olympio cos – “I. Aspectos da situação cultural do
(1936), consolidaram um habitus (Bourdieu, Brasil”, “II. Aspectos da evolução social de
1999, p. 31; Sorel, 2016, pp. 11-2) da edi- São Paulo” e “III. Aspectos da interação com
ção brasileira por estarem identificadas com o índio e com o negro” –, que atribuem um
grupos político-intelectuais que discutiam primeiro nível de coesão para aqueles estu-
“projetos de Brasil” em meio aos eventos dos produzidos de modo disperso e definem
da Revolução de 1930 (Franzini, 2006; Pon- os temas mais recorrentes em que podemos
tes, 1988; Sora, 2010). Três décadas após o enquadrar as publicações que a seguiriam.
lançamento daquelas precursoras, a Difel e Por fim, estas partes são costuradas em um
a cátedra de Sociologia I se propunham a nível mais geral pelo texto designado para
rever os critérios de seleção e abordagem introduzir o livro, “Atitudes e motivações
deste tipo de empreendimento, compreen- desfavoráveis ao desenvolvimento”.
dendo as mudanças da esfera intelectual e O artigo era uma transcrição da conferên-
a nova onda de debates políticos sobre o cia apresentada por Florestan no Seminário
futuro do país. Sobre Resistências à Mudança, organizado
Cumpre notar que o título do projeto da pelo Centro Latino-Americano de Pesquisas
Difel vinha de um artigo de Sérgio Buarque em Ciências Sociais (CLAPCS), em 1959. A
de Holanda (1933), do qual muitos espe- fala se destacou no encontro pelo tom demar-
cialistas consideram terem saído as lin- catório com o qual o sociólogo se propôs
has gerais de seu livro Raízes do Brasil. a apresentar o conceito de desenvolvimento
O historiador, que neste momento estava concebido pela cadeira de Sociologia I:
dentro da universidade e também era um
parceiro da Difel dirigindo a História Geral “Os sociólogos progrediram muito pouco
da Civilização Brasileira, fora um expoente no estudo desses problemas [de desenvolvi-
do ensaísmo, fundando, inclusive, a cole- mento], e ainda não dispomos de conheci-
ção da José Olympio. Sua referência indireta mentos comprovados sobre a influência dinâ-
neste projeto universitário designaria, a nosso mica dos fatores psicossociais nos processos

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dossiê edição e política

de desenvolvimento social. No entanto, a TABELA 1


importância científica e prática do assunto
Corpo e Alma do Brasil -
é tão grande que justifica os riscos de um Total de obras por disciplinas
debate baseado em implicações teóricas e
presunções de caráter conjetural. Ainda que Disciplina Nº de obras

não seja recomendável discutir questões de História 29


Sociologia 23
caráter geral, vimo-nos forçados a situar
Antropologia 6
certos problemas ligados à conceituação
Geografia 3
e ao estudo do desenvolvimento social na
Economia 2
sociologia” (Fernandes, 1960).
Outras 6

A edição e o lançamento da Corpo e


Alma do Brasil, por conseguinte, fixam TABELA 2
aquela discussão como a diretriz para as
Corpo e Alma do Brasil -
linhas gerais em que o grupo pretendia Total de obras por vínculo institucional
discutir o seu projeto de nação brasileira.
É certo que a coleção não conformará um Vínculo institucional Nº de obras
USP 21
bloco homogêneo de pensamento, contudo,
USP em parceria 18
entre a apresentação de Fernando Henrique,
Outros 30
o conteúdo e a construção de Mudanças
sociais no Brasil vemos se estabelecer uma
espécie de manifesto da cátedra uspiana TABELA 3
para afirmar, de um lado, a produção uni-
Corpo e Alma do Brasil -
versitária e sua concepção de ciência e, de Total de obras por temas principais
outro, para estabelecer a perspectiva con-
ceitual e os temas que considerava adequa- Principais temas Nº de obras
Política e formação
dos para elaborar diagnósticos e intervir 20
do Estado brasileiro
na realidade do país.
Industrialização e
11
mundo do trabalho
TRABALHOS UNIVERSITÁRIOS Questões étnico-raciais 9

PARA EDITAR O BRASIL


As quatro principais disciplinas que com-
põem a coleção integravam o núcleo das
O levantamento dos 69 títulos publica- ciências humanas na FFCL-USP. Nota-se,
dos pela Corpo e Alma do Brasil entre contudo, o predomínio da história e da socio-
1957-1988 pode ser analisado por meio de logia. Esta, que está associada evidentemente
alguns critérios que ajudam a visualizar à direção de Fernando Henrique e ao grupo
como esse “manifesto” fundador sustentou que ele representava dentro da faculdade,
seus critérios de seleção e subsidiou tam- dominou a Corpo e Alma até meados dos
bém as necessidades de adaptação que ela anos 1970, quando as obras de história se
sofrera ao longo dos anos. tornam mais recorrentes. A ultrapassagem

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ocorre diante de alguns fatores: o primeiro no Brasil Meridional, de Octávio Ianni, que
deles fora a publicação dos livros do his- se originavam das principais orientações de
toriador Edgard Carone, que, desde 1969, Florestan Fernandes até aquele momento. Os
desenvolvia uma série de estudos sobre a trabalhos eram desdobramentos do Projeto
história da República, com dez volumes Unesco (Maio, 1999) que envolveu pesqui-
publicados integralmente no projeto da Difel. sadores brasileiros para discutir as formas
O conjunto conformou uma verdadeira repu- de inclusão/exclusão da população negra na
blicana dentro desta brasiliana universitária. formação social e econômica do país, com
Em segundo lugar, podemos atribuir essa o objetivo de que a compreensão desta rea-
relação às alterações da conjuntura que aca- lidade miscigenada, supostamente democrá-
baram dificultando ou exigindo alterações na tica, contribuísse para limar de uma vez por
atuação coletiva dos sociólogos envolvidos todas as ideologias eugenistas e racistas que
com o projeto, como veremos adiante. sustentaram o nazifascismo.
Feitas estas considerações, ao tomarmos a Outras pesquisas que devem ser destaca-
composição de disciplinas de modo conjunto, das nesta fase são a livre-docência de Egon
podemos definir um perfil histórico-so- Schaden, Aspectos fundamentais da cultura
ciológico para a Corpo e Alma. Sob esta guarani, e o mestrado de Florestan Fer-
perspectiva, destaca-se o objetivo colocado nandes, Organização social dos Tupinambá.
por Cardoso de utilizar a coleção para se A primeira foi produzida na área da antro-
contrapor à tradição estabelecida pelas cha- pologia, no entanto, dialogava com a referida
madas “interpretações do Brasil”. O bacha- pesquisa de Florestan e com a utilização do
relismo marcou a produção da historiografia método funcionalista que ainda orientava
brasileira, especialmente pela produção do seus trabalhos na cátedra de Sociologia I.
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Os debates sobre desenvolvimento passavam
(IHGB), e os ensaios que tentaram moder- pela avaliação da presença, da contribuição
nizar essa tradição trouxeram os primei- e da “integração” das sociedades indígenas
ros incursos do método sociológico para nesse processo.
o pensamento nacional. Ora, a afirmação A posição dos uspianos se pautava funda-
do método científico deveria se fazer jus- mentalmente no conceito de aculturação que,
tamente em diálogo com essas referências aos poucos, seria questionado pela ideia de
anteriores, as quais marcavam igualmente “fricção interétnica” (Oliveira, 1987) desen-
os empreendimentos editoriais com os quais volvida nas pesquisas do Museu Nacional
a Difel iria concorrer. Então, seria natural do Rio de Janeiro. Esta polêmica conceitual,
que história e sociologia se sobressaíssem produzida no âmbito das pesquisas univer-
em relação a outras disciplinas. sitárias, ganha seu espaço na Corpo e Alma
Entre 1957-1964, a Corpo e Alma do do Brasil, pois, além dos trabalhos da Escola
Brasil é marcada pelo lançamento de teses Paulista de Sociologia, ela irá publicar O
universitárias. Dentre elas, Capitalismo e índio e o mundo dos brancos: a situação
escravidão no Brasil Meridional, de Fer- dos Tukuna do Alto Solimões, de Roberto
nando Henrique Cardoso, e Metamorfoses Cardoso de Oliveira, professor do museu e
do escravo: apogeu e crise da escravatura um dos líderes do projeto que iria conso-

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dossiê edição e política

lidar a perspectiva “interétnica”, oposta à a produção de conhecimento nas demais


dos uspianos. O debate surgia de um novo universidades brasileiras.
contexto institucional, mas é preciso lem-
brar que Oliveira teve sua tese de doutorado PROJETOS EDITORIAIS, UNIVERSIDADE
orientada por Florestan Fernandes. Assim, a
E PENSAMENTO BRASILEIRO
coleção incorpora divergências alimentadas
pelo espírito científico, em um campo de
relações externas que lhe eram familiares. Diante de uma realidade político-inte-
De modo geral, nestes primeiros anos, lectual em que diversas instituições e gru-
pode-se afirmar que a Corpo e Alma constrói pos se dedicavam a (re)descobrir o Brasil,
seu perfil alinhada com as discussões sobre as transformações de São Paulo nos anos
a formação e o desenvolvimento do Brasil, 1950 engendraram condições de incentivo
editando trabalhos pioneiros no tema das ao crescimento da economia do livro e,
relações raciais. A questão era sensível para especialmente, de aproximação entre o seu
a compreensão das desigualdades que asso- setor produtivo e os grupos que desejavam
lavam o país. Cumpre notar ainda que o protagonizar a construção de uma esfera cul-
projeto é lançado no auge das manifestações tural identificada com a metrópole. Desde
em defesa das Reformas de Base que res- sua criação, a USP representou um elemento
pondiam a estas injustiças, fato que dá rele- modernizador para as elites locais (Cardoso,
vância à coleção enquanto plataforma para 1982) e, ainda que seus principais expoentes
o diálogo das teses universitárias com os viessem a se distinguir social e politica-
posicionamentos políticos que alimentavam mente de seus princípios fundadores (Miceli,
a ação direta mobilizada por organizações 2001, p. 105), ela será fruto de um espaço
sociais, movimentos, partidos progressistas pensado para que a intelectualidade paulis-
e de esquerda. Desta maneira, ao lado da tana pudesse conformar uma comunidade
produção de outras instituições que citamos, de autores e agentes dispostos a pensar e
vemos a edição de livros contribuir para intervir na realidade do país.
engrossar o coro das mobilizações nacionais. A Difel surge embalada por este espí-
Não avançaremos aqui sobre o desen- rito de ação, e a Corpo e Alma do Brasil
volvimento da coleção a partir de 1964. será uma estratégia com a qual alguns dos
No entanto, cumpre notar que o caráter universitários uspianos buscaram expressar
universitário e crítico que se define nesse seus posicionamentos publicamente. Dentro
momento persistirá como base para a sele- dela, a apresentação de Fernando Henrique
ção de novas publicações, mesmo quando Cardoso será o primeiro recurso para defi-
estas passam a lidar com a onda reacionária nir a imagem do grupo reunido em torno
que se instala no país após o Golpe Militar. da cátedra de Sociologia I, afirmando seus
Na verdade, o impacto desta conjuntura princípios científicos diante da produção
terá reflexos no projeto na medida em que que embasava as discussões do desenvol-
ela intervém na organização da cátedra de vimento. Em paralelo aos argumentos con-
Sociologia I, na atuação de Fernando Hen- ceituais, ele define a intervenção do projeto
rique no Brasil e nas condições gerais para na referência representada pelo modelo edi-

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torial das brasilianas e demarca editorial- Desta maneira, a Corpo e Alma acom-
mente as diferenciações com setores com os panhou a produção do grupo de intelectuais
quais debatia para que o projeto pudesse se paulistas e a trajetória de seu diretor como
inserir e renovar um habitus deste mercado uma liderança universitária. O peso de inter-
que consagrava autores e editoras nacionais. venção que os estudos sociológicos adqui-
Por fim, a seleção de pesquisas e autores riam naquele contexto contava com iniciati-
desta primeira fase (1957-1964) organizou vas como esta para garantir a circulação e a
um repertório de estudos voltados à discus- legitimidade da disciplina no debate público.
são de um dos principais temas presentes A ação da Difel constituiu, portanto, um
em nossa tradição intelectual e que integra- caminho pelo qual o mercado editorial se
vam a pauta desenvolvimentista: a formação estabelecia como um aliado necessário para
social brasileira sob a perspectiva da raça que a produção da universidade se tornasse
e suas consequências para a construção de parte de um universo legítimo e fundamental
uma sociedade moderna. para se conhecer o Brasil.

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Marcos Santos/USP Imagens

“A cultura a serviço do progresso social”:


a atuação de Jorge Zahar
na construção de um projeto de país
Leonardo Nóbrega
resumo abstract

Jorge Zahar foi um dos mais importantes Jorge Zahar was one of the most
editores do Brasil, fundamental na i m p o r ta nt p u b l ish e r s i n B ra z i l ,
consolidação das ciências sociais e fundamental in the consolidation of
humanas e participante ativo nos social and human sciences and an active
principais debates públicos da segunda participant in the main public debates
metade do século XX. Neste texto, a of the second half of the 20th century. In
atuação editorial de Jorge Zahar será this text, Jorge Zahar’s editorial work will
analisada a partir da construção do be analyzed based on the construction
Marcos Santos/USP Imagens

catálogo da Zahar Editores, tendo como of the Zahar Editores catalog, focusing
foco dois momentos distintos. O primeiro, on two distinct moments. The first one,
que vai da criação da editora em 1957 which goes from the creation of the
até o início dos anos 1970, tem seu foco publisher in 1957 until the beginning
na tradução de autores vinculados à of the 1970s, focuses on translating
esquerda estadunidense. O segundo authors linked to the American left.
momento ganha relevância no final dos The second moment gained relevance
anos 1960 e continua na década seguinte, in the late 1960s, with emphasis on
com destaque para as abordagens críticas critical approaches to modernization
às teorias da modernização. A partir da theories. From the analysis of the Zahar
análise do catálogo da Zahar Editores, Editores catalog, it is possible to perceive
é possível perceber a existência de um the existence of a political project that
projeto político que foi construído em was built in dialogue with the various
diálogo com os diversos movimentos intellectual and social movements active
intelectuais e sociais da época. throughout the period.

Palavras-chave: Jorge Zahar; história Keywords: Jorge Zahar; History of books;


do livro; edição; ciências sociais; política publishing; social sciences; Brazilian
brasileira. politics.
J
orge Zahar foi um dos mais nalistas, tradutores, livreiros. Passou a se
importantes e longevos editores cercar de intelectuais que lhe ajudaram a
brasileiros do século XX. Iniciou dar forma a um dos catálogos mais pro-
sua atuação no mundo dos livros líficos do país, com obras fundamentais
em 1940, aos 20 anos, em uma para a consolidação das ciências sociais e
empresa dedicada à importação humanidades. Amparado por uma cautelosa
e distribuição de livros técni- conduta comercial, trazia na base da sua
cos, e encerrou sua trajetória em atuação editorial também uma crença na
1998, ano de seu falecimento. capacidade da cultura de agir como motor
Foram quase 60 anos dedicados de mudança social.
inteiramente aos livros, tempo Essa crença era compartilhada com
suficiente para participar de vários dos seus colegas de geração, que
momentos decisivos na conso- nutriam entusiasmo pela capacidade do pen-
lidação do mercado editorial, da institu- samento crítico e humanista de provocar
cionalização das ciências sociais e de um mudanças que impactassem positivamente
projeto coletivo de país1. a vida das pessoas. Havia, assim, uma atu-
Interlocutor ativo e interessado, ao longo
de todo esse tempo Zahar manteve contato
constante com professores, estudantes, jor-
LEONARDO NÓBREGA é professor de
Sociologia do Instituto Federal de Pernambuco
(IFPE - Campus Belo Jardim) e do Programa
1 Sobre a vida e a atuação editorial de Jorge Zahar, cf.: de Pós-Graduação em Sociologia da
Azevedo (2018), Pires (2017) e Silva (2019). Universidade Federal de Pernambuco (PPGS/UFPE).

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dossiê edição e política

ação conformada a partir de um projeto de de representações da realidade e formula


país e de sociedade. Uma construção cole- suas propostas de identidade, difundidas
tiva ancorada na ideia de progresso social, em linhas gerais de pensamento e atua-
tecida a várias mãos, que tem reflexos fun- ção. Jorge Zahar, por meio da sua atuação
damentais no catálogo da editora que geriu editorial, foi um importante vetor nessa
grande parte da sua vida. teia de interações, disponibilizando obras
O slogan “A cultura a serviço do pro- fundamentais para as discussões políticas
gresso social”, que passou a estampar as daquele momento.
capas dos livros da Zahar Editores a par- De forma a apreender a concepção polí-
tir de 1960, sintetizava não apenas uma tica que deu embasamento para a atuação
carta de princípios – posição em relação editorial de Jorge Zahar, o catálogo da
à qual a editora pretendeu se vincular –, Zahar Editores será analisado tendo como
mas a experiência compartilhada de parte foco dois momentos distintos. O primeiro
significativa de uma geração que, embalada momento, que vai da criação da editora em
pelo pensamento progressista em voga, iria 1957 até o início dos anos 1970, tem seu
encontrar nas publicações da editora um foco em uma política editorial de traduções.
suporte nas disputas sociais que se ins- Nesse período, foram privilegiados autores
talaram nos anos 1950 e, de forma mais vinculados à esquerda estadunidense, como
intensa, na luta contra o governo autoritário Charles Wright Mills, Paul Sweezy, Leo
instaurado pelo Golpe de 1964. Huberman, Paul Baran, além de autores
Jorge Zahar fazia parte, junto a outros vinculados à Escola de Frankfurt radica-
intelectuais, artistas, editores e demais dos no país norte-americano, como Erich
membros das classes médias intelectua- Fromm e Marcuse. Esse universo intelectual
lizadas de meados do século XX no Brasil, teve significativa recepção no Brasil e foi
de uma estrutura de sentimentos (Williams, fundamental para a conformação de um
1977, cap. 9) que era ao mesmo tempo pensamento crítico entre jovens estudan-
romântica e revolucionária (Ridenti, 2005; tes e demais leitores associados ao pensa-
2010; 2014). Trata-se de uma geração ante- mento de esquerda. O segundo momento
rior ao Golpe civil-militar de 1964, con- ganha escopo no final dos anos 1960 e se
formada a partir da ideia de superação do estende pela década de 1970. O período
passado oligárquico, que compartilhava o é marcado sobretudo pelo crescimento de
entusiasmo técnico estimulado pela indus- autores brasileiros no catálogo da Zahar. O
trialização do país e que trazia consigo a pensamento crítico estrangeiro dá espaço
ideia de revolução que estimulava a ima- à produção nacional. Ganham força nesse
ginação sobre o futuro. momento diversas abordagens críticas às
Tal conjunto de pessoas, embora fizes- teorias da modernização, com destaque
sem parte de um universo bastante hete- para as abordagens vinculadas às noções
rogêneo e disperso, foi capaz de elaborar de subdesenvolvimento e dependência.
mecanismos de atuação coletiva, agindo A partir da análise do catálogo da Zahar
como uma subjetividade coletiva (Domin- Editores, é possível perceber a existência
gues, 2003) que participa da elaboração de um projeto político que se constrói em

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diálogo com os diversos movimentos intelec- das entre 1959 e 1984, com várias reedi-
tuais e sociais atuantes ao longo do período. ções. A popularidade do autor se explica, em
Esse projeto toma forma e materialidade em grande medida, por suas interpretações sobre
parte significativa do catálogo da editora, o autoritarismo, que interessaram sobre-
revelando uma atuação que se deu sobre- tudo à audiência norte-americana dos anos
tudo por meio de uma construção coletiva. 1940, e suas reflexões sobre as mudanças
comportamentais que se desdobravam nos
RECEPÇÃO DO PENSAMENTO anos 1950 e 1960. Esse contexto viria a
reverberar no Brasil na década de 1960,
CRÍTICO ESTADUNIDENSE
relacionado ao crescimento da comunidade
universitária no país, aos protestos estudan-
Nos primeiros anos de atuação da Zahar tis, aos movimentos de contracultura e toda
Editores, os Estados Unidos foram o local sorte de questionamentos sociais que pas-
privilegiado de origem da maior parte das saram a surgir.
obras traduzidas. O país passou a ter uma É no contexto dos movimentos de con-
influência decisiva no mundo, sobretudo após testação política e cultural do final dos
a Segunda Guerra Mundial. Isso se refletiu anos 1950 e início de 1960 que a obra de
no Brasil em uma gradativa e inédita subs- Erich Fromm chega ao Brasil. Psicanálise e
tituição do francês – até então a língua de religião (1956), obra que integrou a Coleção
origem da maior parte dos livros importados Biblioteca de Psicologia Médica da Editora
e traduzidos no país – pelo inglês (Nóbrega, Civilização Brasileira, foi o primeiro livro
2021). Autores como Erich Fromm, os edito- do autor a ser traduzido e publicado no
res da revista Monthly Review Paul Sweezy país. Em seguida, a Zahar Editores publi-
e Leo Huberman, C. Wright Mills e Herbert cou Psicanálise da sociedade contempo-
Marcuse ganharam espaço privilegiado no rânea (1959), Análise do homem (1960) e
catálogo da editora. Estes autores fizeram O medo à liberdade (1960). As três obras
reverberar grande parte do pensamento crí- juntas formavam uma trilogia em que o
tico do país norte-americano que deu ensejo autor tratava do autoritarismo nas socieda-
à formação do que ficou conhecido como des contemporâneas, unindo elementos da
Nova Esquerda, movimento mundial que, teoria psicanalítica ao conceito de aliena-
de forma geral, pode ser identificado com a ção. As diversas obras lançadas por Fromm
emergência de jovens estudantes como atores nos anos subsequentes tiveram uma grande
políticos, atrelados à perda de centralidade recepção do público, o que se reverteu, para
das estruturas burocráticas dos partidos a Zahar, na produção de várias reedições e
comunistas e identificados também com em tiragens muito maiores do que a média
as lutas pacifistas, por direitos civis e pela dos demais livros da editora.
libertação nacional de países em situação Fromm passou a ter uma atuação pública
de colonização (Bottomore, 1970). relevante, participando de campanhas con-
O autor com o maior número de obras tra a Guerra do Vietnã, contra o desenvol-
no catálogo da Zahar Editores é Erich vimento de armas nucleares e a favor das
Fromm. Foram ao todo 18 obras publica- pautas levantadas pelos movimentos jovens

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dossiê edição e política

de esquerda, analisando os relacionamentos Ideologia da sociedade industrial3 (1968),


amorosos no mundo moderno, além de esta- Crítica da tolerância pura (1970) – livro
belecer grande proximidade com as religiões que reúne artigos de Marcuse, Robert Paul
orientais, o que lhe rendeu ares de misti- Wolf e Barrington Moore Jr. –, Ideias sobre
cismo e críticas de setores mais ligados ao uma teoria crítica da sociedade (1972) e
pensamento materialista. Junto a Fromm, Contra-revolução e revolta (1973).
outro autor, Herbert Marcuse, teve boa parte Outras editoras também aproveitaram o
de suas obras publicadas pela Zahar. movimento: Materialismo histórico e existên-
Oriundo da Escola de Frankfurt, Mar- cia (1968) foi publicado pela Editora Tempo
cuse tornou-se conhecido por estabelecer em Brasileiro; O marxismo soviético (1968) e
seus textos reflexões críticas às sociedades Razão e revolução: Hegel e o advento da
modernas, que levavam em conta pensadores teoria social (1969), pela Editora Saga; e O
como Marx e Freud, além de uma grande fim da utopia (1969), pela Paz e Terra. A
influência da crítica à razão instrumental grande quantidade de obras – foram nove
promovida pelos seus colegas na Escola de em cinco anos – atesta o súbito interesse do
Frankfurt Horkheimer e Adorno – embora mercado editorial brasileiro pelas obras do
mantivesse o papel da utopia nos seus escri- filósofo, cuja recepção se deu marcadamente
tos, à diferença dos seus colegas frankfur- vinculada aos movimentos de protesto de
tianos. Marcuse foi alçado pela imprensa jovens estudantes.
como o “guru” dos novos movimentos de Em paralelo à publicação de autores vin-
contestação (Wheatland, 2009) e seu nome culados à Escola de Frankfurt, a Zahar man-
passou a ser associado a uma espécie de lide- teve estreito contato com a revista Monthly
rança intelectual, embora passasse também Review. A Monthly Review foi uma revista
a contar com uma série de deturpações do socialista estadunidense criada pelo econo-
seu pensamento (Konder, 1998). mista Paul Sweezy e pelo jornalista Leo
A repercussão que o nome de Marcuse Huberman em 1949. Alocada inicialmente no
passou a ter na imprensa brasileira refletia o apartamento de Huberman, em Nova York,
papel de destaque que alcançava nos meios a publicação se somou ao universo da efer-
de comunicação norte-americanos e fran- vescente produção intelectual da cidade em
ceses: “Nos últimos meses o nome de um meados do século XX4, junto a outras revis-
filósofo alemão [Herbert Marcuse] começou tas que tiveram grande destaque no universo
a ser citado por jornais e revistas como o político e cultural.
mentor ideológico dos violentos movimentos
de reivindicações dos estudantes europeus e
americanos”2. O mercado editorial brasileiro 3 O título original, em inglês, é One-dimensional man:
studies in the ideology of advanced industrial society
respondeu rapidamente ao súbito interesse (1964).
pela obra de Marcuse. Do autor, a Zahar 4 Forma-se, em meados da década de 1940, um grupo
Editores publicou Eros e civilização (1968), bastante atuante de escritores, artistas e pensadores
que ficou conhecido como os Intelectuais Nova ior-
quinos (New York Intellectuals). Este foi, segundo Kevin
Mattson (2002), o grupo intelectual mais importante
do período posterior à Segunda Guerra Mundial nos
2 Jornal do Brasil, Cadernos B, 17 de maio de 1968, p. 5. Estados Unidos.

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Surgida no período em que o pensa- Reminiscences of the Cuban revolucio-
mento crítico de esquerda estava sob ataque nary war (1968), de Che Guevara, Lenin
(Bottomore, 1970), cuja expressão máxima and philosophy (1971), de Louis Althusser,
podia ser identificada na patrulha anti- Open veins of Latin America (1973), de
comunista liderada pelo senador Joseph Eduardo Galeano, dentre outros. O contato
McCarthy (1947-1957) no contexto inicial com grupos de esquerda fora dos Estados
de Guerra Fria, somada a uma diminuição Unidos rendeu não só a tradução de livros
da influência do Partido Comunista norte- importantes para o inglês, mas também a
-americano na esquerda, a política edito- publicação da Monthly Review em diversas
rial da Monthly Review focou, em grande outras línguas, como o espanhol (editado
medida, análises econômicas e políticas. O na Argentina entre 1963 e 1967, no Chile
capitalismo como um sistema de alcance entre 1967 e 1970, na Colômbia em 1973
mundial, o imperialismo norte-americano e na Espanha entre 1977 e 1982), italiano
e as revoltas no Terceiro Mundo foram os (1968-1987), grego (1973-1975, 1983, 1987-
temas principais, que passaram a ganhar 1988) e alemão (1974-1975) (Mcchesney,
destaque à medida que acontecimentos 2007; Phelps, 1999).
significativos foram ocorrendo por todo Vários dos livros publicados pela Zahar
o mundo (Mcchesney, 2007). Editores nos seus primeiros anos de ativi-
A revista contou com alguns colabora- dade foram de colaboradores da Monthly
dores frequentes. Esse foi o caso de Paul Review, o que marca a rede intelectual em
Baran (1910-1964), que, apesar de não ter torno da revista como um dos principais
estado formalmente vinculado à revista referenciais no estabelecimento da política
como editor, compartilhava das decisões editorial de traduções executada por Jorge
editoriais e direcionamentos da revista. Ao Zahar e, consequentemente, no projeto inte-
grupo viria a se juntar ainda Harry Magdoff lectual gestado pela editora. O primeiro deles
(1913-2006), que trabalhava com estatísticas foi Socialismo (1959), de Paul Sweezy, que
para o governo norte-americano e viria a havia sido publicado originalmente em 1949
substituir Huberman como editor em 1968. e apresentava ao público norte-americano o
Além da revista, Sweezy e Huberman sistema econômico e social dos países que
fundaram também, em 1952, a Monthly viviam sob um regime socialista. No mesmo
Review Press. A editora, a despeito de ano foi publicado O império do petróleo
ter realizado poucas publicações nos seus (1959), do jornalista norte-americano e autor
primeiros anos de atividade sob direção da Monthly Review Press, Harvey O´Connor.
de Huberman, ganhou posição de desta- O livro contou com ampla divulgação na
que em meados dos anos 1960, quando, imprensa, pouco tempo depois que o jor-
sob direção de Harry Braverman, publi- nalista havia visitado o Brasil e concedido
cou obras de autores da esquerda mundial diversas entrevistas. O prefácio da edição
como Rosa Luxemburgo, Nikolai Bukharin, brasileira foi escrito pelo cel. Janary Nunes,
Karl Korsh, além de títulos como Capi- que havia sido presidente da Petrobras e
talism and underdevelopment in Latin participado de uma sessão de autógrafos no
America (1967), de André Gunder Frank, lançamento do livro promovido pela editora

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dossiê edição e política

no Clube Militar, no Rio de Janeiro5. Na sil e presidente da Petrobras por indicação


orelha do livro é possível compreender o de João Goulart, entre 1962 e 1963.
direcionamento dado pela editora e a recep- A economia política do desenvolvimento
ção que se esperava com a publicação: (1960), de Paul Baran, publicado origi-
nalmente em 1957, inaugurou na Zahar
“Livro oportuno, acrescido de um não uma série de publicações que tratava sobre
menos oportuno prefácio do Cel. Janary a economia capitalista e as desigualda-
Nunes, contribuirá certamente para que se des globais. Paul Sweezy teve diversos
mantenha acesa a chama nacionalista de de seus livros publicados na sequência:
que se alimenta a Petrobras, único caminho Teorias do desenvolvimento capitalista
conducente à completa emancipação eco- (1962), Ensaios sobre o capitalismo e o
nômica do Brasil” (Harvey, 1959, orelha). socialismo (1965), Teóricos e teorias da
economia (1965) e Capitalismo monopo-
A Petrobras havia sido fundada em lista (1966), sendo este último escrito em
1953, sob a presidência de Getúlio Vargas, coautoria com Paul Baran.
garantindo ao Estado brasileiro, depois de Nenhum livro, entretanto, alcançou tanto
acirrado debate, o monopólio do petróleo sucesso de público como se deu com His-
disponível em território nacional, fato que tória da riqueza do homem (1962), de Leo
vinha sendo contestado por alguns setores Huberman. Foram ao todo 20 edições e
da sociedade menos afeitos às políticas de diversas reimpressões, chegando a mais de
intervenção estatal. Neste sentido, o prefácio 300 mil exemplares vendidos. Segundo afir-
do cel. Janary Nunes adota um posiciona- mou Jorge Zahar, esse foi o grande livro
mento bastante claro: de sua carreira como editor (Zahar, 2001).
Escrito em linguagem simples e concisa,
“O petróleo é patrimônio da nação, é ins- buscando prioritariamente um público
trumento de soberania, é arma de segu- jovem, o livro trata da história do capita-
rança, é ponto de germinação de desenvol- lismo no mundo desde a sua constituição até
vimento econômico. O petróleo representa as primeiras décadas do século XX. Com a
poder político, econômico e militar (Har- tradução da Zahar, o livro passou a ser ado-
vey, 1959, p. 15). tado por sucessivas gerações de estudantes
e militantes de esquerda no Brasil (Secco,
Pouco depois a Zahar viria a publicar 2017, p. 146). Foi parte desse público que
outro livro de O´Connor, O petróleo em crise ocupou o auditório da Faculdade Nacional
(1962), no mesmo ano em que a Monthly de Filosofia (FNFi), no Rio de Janeiro, no
Review Press fez seu lançamento nos Estados dia 30 de janeiro de 1963, para assistir à
Unidos, além do livro Imperialismo, petróleo, palestra de Sweezy e Huberman intitulada
Petrobrás (1964), de Francisco Mangabeira, “Situação internacional”6. A dupla estava de
advogado, professor da Universidade do Bra-

6 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 de janeiro de 1963,


5 Última Hora, Rio de Janeiro, 29 de julho de 1959, p. 4. p. 5.

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regresso de Buenos Aires, onde inaugurou ilha que a dupla fez pouco tempo depois de
a edição em espanhol da Monthly Review, consolidada a revolução de 1º de janeiro de
e foi recebida por Jorge Zahar. 1959. As suas primeiras impressões foram
É de se notar, portanto, a referência publicadas numa edição especial nos meses
que a Monthly Review representou para de julho e agosto da Monthly Review. Os
Jorge Zahar na seleção dos títulos a serem artigos foram editados em seguida como
traduzidos. Não só os editores da revista livro, que foi bastante lido e se tornou
tiveram suas obras vertidas ao português, referência no assunto. No Brasil, a obra
mas diversos autores que contribuíam com chegou à quarta edição apenas um ano
a publicação periódica norte-americana depois de lançada. Grande parte dos movi-
ou mesmo com títulos publicados pela mentos de esquerda via a experiência de
Monthly Review Press passaram a circular Cuba com entusiasmo, enxergando ali uma
no Brasil. Dentre elas, as obras sobre a alternativa tanto ao comunismo soviético,
Revolução Cubana. cada vez mais criticado por suas práticas
A Revolução Cubana de 1959, que havia autoritárias, quanto à experiência impe-
destituído do poder o ditador Fulgencio rialista dos Estados Unidos.
Batista e instaurado um novo governo O livro de C. Wright Mills foi publi-
socialista na ilha, passou ao foco das cado originalmente em 1960, pela Edi-
atenções e rendeu uma série de livros tora McGraw-Hill, com o título de Listen,
sobre os desdobramentos revolucionários Yankee. No Brasil, o contexto de eferves-
na ilha, bem como críticas ao imperia- cência política também esteve presente no
lismo norte-americano. Cuba: anatomia de momento da publicação de A verdade sobre
uma revolução (1960), de Paul Sweezy e Cuba (1961), que contou com o lançamento
Leo Huberman, e A verdade sobre Cuba de uma segunda edição no mesmo ano de
(1961), de C. Wright Mills, tratam dos lançamento da obra.
primeiros desdobramentos da revolução. O momento era de efervescência
Na sequência, a Zahar publicou ainda o política, social e cultural por todo o
livro Reflexões sobre a Revolução Cubana mundo, o que, em grande medida, explica
(1962), com artigos de Paul Sweezy, Leo o sucesso de venda dos livros sobre a
Huberman, Paul Baran, Marc Schleifer e Revolução Cubana, seja nos Estados Uni-
Ernesto Che Guevara. Outras editoras tam- dos, na América Hispânica ou no Brasil.
bém aproveitaram o momento: Furacão Tratava-se, portanto, de um momento de
sobre Cuba (1960), de Jean-Paul Sartre, mudanças culturais significativas, e os
foi lançado pela Editora do Autor e Cuba: livros ocupavam espaço privilegiado na
a revolução na América (1961), de Almir disseminação de ideias que alimentavam
Matos, pela Editorial Vitória, vinculada as discussões do momento.
ao Partido Comunista do Brasil. É de se notar, dessa forma, a centralidade
O livro de Paul Sweezy e Leo Huber- do pensamento estadunidense no Brasil.
man sobre a Revolução Cubana, Cuba: Isso se dava tanto por meio dos imigran-
anatomia de uma revolução (1960), teve tes alemães que estabeleceram carreira nos
como ponto de partida a série de visitas à Estados Unidos, quanto por meio de inte-

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lectuais norte-americanos que passaram a dualismo, secularização, dentre outros mar-


escrever sobre temas de interesse externo cadores cuja falta caracterizava os países
e a partir de uma perspectiva crítica ao tradicionais e atrasados.
que se concebia como o imperialismo do Moldando-se a interesses muitas vezes
seu país. O fato é que os Estados Unidos, relacionados à pretensão de dominação dos
nesse momento, serviram de referência para países centrais, a ideia de modernização ser-
a construção do catálogo da Zahar Editores viu para intervenções realizadas das mais
e para boa parte dos debates que partici- diversas formas, desde ajuda financeira e pro-
pavam da construção de um pensamento gramas de desenvolvimento até interferências
comum sobre os rumos do Brasil. políticas e militares. A política externa dos
Estados Unidos passava por um momento
MODERNIZAÇÃO, de efervescência depois da Segunda Guerra
Mundial e os esforços para o estabeleci-
DESENVOLVIMENTO E DEPENDÊNCIA
mento da Organização das Nações Unidas
(ONU), a continuidade do Plano Marshall
Se havia, por um lado, uma intelectuali- e a criação da Organização do Tratado do
dade estadunidense crítica à atuação global Atlântico Norte (Otan) vieram acompanhados
do seu país, havia, por outro, uma crença pelo lançamento de um programa de assis-
hegemônica nos Estados Unidos como um tência técnica para auxiliar na “melhoria e
modelo de desenvolvimento. Grande parte no crescimento de áreas subdesenvolvidas”,
das discussões nas ciências sociais em mea- como definiu o documento assinado pelo
dos do século XX foi pautada pela noção presidente Harry Truman em janeiro de 1949
de modernização. Aberta a inúmeras defi- (Truman apud Rist, 2008, p. 71).
nições, a depender dos propósitos e das A configuração da dicotomia desen-
circunstâncias de sua utilização, a ideia de volvimento/subdesenvolvimento como um
modernização deu base para a construção dos vetores fundamentais de elaboração
de teorias que foram bastante influentes da política externa dos Estados Unidos
na elaboração de diagnósticos de proble- respondia aos anseios de hegemonia do
mas sociais e na construção de mecanismos país norte-americano. Tal ferramenta era
para a sua solução. Sendo uma noção que ainda mais importante dado o contexto de
pressupõe mudança social, veio acompanhada Guerra Fria e disputa polarizada que o país
da existência de polos opostos, como pontos travava com a União Soviética. Ao defi-
extremos em uma mesma reta, demarcando, nir subdesenvolvimento “como uma falta
de um lado, o local de onde se partia e, de e não como o resultado de circunstâncias
outro, o local aonde se queria chegar. Os históricas, e tratando o ‘subdesenvolvido’
países ocidentais, industrializados e centrais simplesmente como pobre sem procurar as
no sistema econômico mundial, considerados razões para o seu desamparo, a ‘política de
modernos, serviram invariavelmente como desenvolvimento’ fez do crescimento e da
ponto de referência a ser alcançado, tendo ajuda (entendidos em termos tecnocráticos,
como elementos fundamentais a industriali- quantitativos) a única resposta possível”
zação, urbanização, democratização, indivi- (Rist, 2008, p. 79, tradução nossa).

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Ao mesmo tempo, a organização dos por Manuel Diegues Jr. Os aspectos rela-
países do chamado Terceiro Mundo, com cionados ao desenvolvimento foram centrais
demandas estabelecidas em acordos cole- nas discussões do CLAPCS, que realizou
tivos como os assinados na Conferência diversos estudos comparativos sobre mobi-
de Bandung (1955), passava a desafiar as lidade social, educação, industrialização,
políticas empreendidas pelos países cen- urbanização etc. Tais estudos, embora em
trais. Em termos de produção teórica, as grande medida fundamentados na noção de
críticas à política internacional norte-ame- desenvolvimento, serviram de base para a
ricana partiram tanto de intelectuais mar- elaboração de uma perspectiva crítica às
xistas do próprio país, citados no tópico teorias da modernização, inserindo ques-
anterior, como dos países em processo de tionamentos sobre os mecanismos estru-
emancipação e desenvolvimento. Entre os turais de desigualdade e a necessidade de
latino-americanos, uma massa crítica já rupturas para a superação da condição de
vinha sendo desenvolvida, sob diferentes subdesenvolvimento. Nas duas compilações
matizes, desde o processo de descoloniza- constam textos de Georges Balandier, Tor-
ção no século XIX. As chamadas teorias cuato Di Tella, Jorge Graciarena, Gino
da dependência, desenvolvidas sobretudo a Germani, Costa Pinto, dentre outros.
partir da segunda metade dos anos 1960, Na Coleção Textos Básicos de Ciências
seriam, entretanto, o produto mais direta- Sociais, iniciada em 1966 sob a direção de
mente relacionado a uma crítica à teoria Otávio Guilherme Velho, Moacir Palmeira
da modernização. Estabelecendo raízes no e Antonio Roberto Bertelli – a partir da
pensamento da Cepal, localizada na pulsante qual a Zahar Editores passou a contar com
cidade de Santiago, no Chile (Beigel, 2009; a interlocução mais sistemática de jovens
Garcia Jr., 2009), os teóricos da dependência intelectuais brasileiros –, foram publicados
formaram importantes redes de interação livros como Sociologia do desenvolvimento
e realizaram esforços no sentido de com- (1967), organizado por José Carlos Garcia
preender as limitações de um processo de Durand, Sociologia do desenvolvimento
desenvolvimento dado no momento em que II, organizado por Durand e Lia Pinheiro
a economia mundial constituía-se de forma Machado, Desenvolvimento, trabalho e
interdependente e sob a hegemonia de fortes educação (1968), Urbanização e subde-
grupos econômicos e forças estatais com senvolvimento (1969) e Subdesenvolvimento
características imperialistas (Beigel, 2006; e desenvolvimento (1969), estes três orga-
Dos Santos, 2000). nizados por Luiz Pereira. O mesmo Luiz
Este debate teve grande centralidade Pereira também organizou o livro Perspec-
na Zahar Editores. São exemplos os livros tivas do capitalismo moderno: leituras de
Teoria do desenvolvimento (1967) e Pro- sociologia do desenvolvimento (1971) para
cessos e implicações do desenvolvimento a Coleção Biblioteca de Ciências Sociais,
(1969), organizados por Luiz A. Costa também da Zahar. Nas coletâneas citadas
Pinto e Waldomiro Bazzanella, em par- foram publicados textos de autores como
ceria com o Centro Latino-Americano de Jacques Lambert, José Medina Echevarría,
Ciências Sociais (CLAPCS), então dirigido Peter Heintz, Rodolfo Stavenhagen, Herbert

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Blumer, André Gunder Frank, Daniel Lerner, desse livro havia sido publicada em 1963]
Lúcia Pinheiro Machado (“Alcance e limites (1976) e Poder e contrapoder na Amé-
das teorias da modernização”), Glaucio Ary rica Latina (1981).
Dillon Soares, Luiz Pereira, Alain Touraine, Uma das obras seminais para a discus-
Robert K. Merton, Frantz Fanon, Francisco são foi o Dependência e desenvolvimento
Zamora, além de textos da Cepal. na América Latina (1970), de Fernando
Aos textos das coletâneas se somaram Henrique Cardoso e Enzo Faletto. A obra
ao catálogo da Zahar livros que con- havia sido publicada em 1969, em espa-
tribuíram para compor o debate crítico nhol, pela Editora Siglo XXI e a versão
sobre modernização e desenvolvimento, em português, pela Zahar, saiu um ano
dentre eles, Desenvolvimento e crise no depois. Em 1984 a publicação chegou à
Brasil (1968), de Bresser Pereira, Proje- sua sétima edição. Fernando Henrique Car-
tos de desenvolvimento (1969), de Albert doso publicou também pela Zahar o livro
O. Hirschmann, Distribuição de renda Política e desenvolvimento em sociedades
na América Latina e desenvolvimento dependentes (1971).
(1973), de Aníbal Pinto, Desenvolvimento Esse breve panorama dos textos sobre
dependente brasileiro (1978), de Vilma modernização publicados pela Zahar Edito-
Figueiredo, e Limites sociais do cresci- res mostra como a editora contribuiu para
mento (1979), de Fred Hirsch. a configuração e disseminação do debate
O livro Da substituição de importações sobre desenvolvimento e dependência no
ao capitalismo financeiro (1972), de Maria Brasil. As perspectivas críticas às teorias
da Conceição Tavares – uma das obras da modernização então em voga encontra-
mais comentadas na época e que chegou ao ram na editora um espaço privilegiado de
total de 11 edições – reuniu quatro ensaios, materialização e disseminação. Jorge Zahar,
escritos entre 1963 e 1971, que elaboram a partir de sua atuação editorial, participou
uma análise histórica e abrangente das ativamente desse processo, disponibilizando
políticas econômicas do país. A autora, textos fundamentais, traduzindo obras de
formada em ciências econômicas pela autores estrangeiros e organizando antolo-
Universidade do Brasil, havia trabalhado no gias que serviram a diversas gerações de
Plano de Metas do governo do presidente estudantes universitários e leitores interes-
Juscelino Kubitscheck e era então, no sados neste que se tornou um dos principais
momento de publicação do livro, chefe debates públicos da época.
do escritório da Cepal no Brasil.
Quatro obras de Florestan Fernandes
publicadas pela Zahar contribuíram para CONSIDERAÇÕES FINAIS
essa discussão: Sociedade de classes e
subdesenvolvimento (1968), Capitalismo A Zahar Editores, seja por meio do
dependente e classes sociais na América estabelecimento de uma política edito-
Latina (1973), A revolução burguesa no rial de tradução de autores estrangeiros,
Brasil (1975), A sociologia numa era de com foco inicial no pensamento crítico
revolução social [uma primeira edição estadunidense, seja a partir dos vínculos

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com autores nacionais e dos demais paí- Militar em 1964 e o estabelecimento de
ses latino-americanos, que serviram de um inimigo comum.
espaço de materialização e disseminação Para além de comprometimento polí-
de um debate tão fundamental quanto o tico ou engajamento moral individual, o
do desenvolvimento e dependência, parti- que inegavelmente havia era uma subjeti-
cipou ativamente de um esforço coletivo vidade coletiva que unia as classes médias
de imaginação sobre o Brasil. intelectualizadas – estudantes, intelectu-
Jorge Zahar foi uma pessoa compro- ais e os diversos intermediários culturais
metida com grande parte das pautas de – pautada pelo pensamento de esquerda,
esquerda da sua época. A sua sociali- o que gerava também um mercado a ser
zação no universo intelectual da então explorado. Como o próprio Jorge Zahar
capital federal em meados do século XX reconhecia: “Minha ênfase maior caía [...]
e sua atuação como livreiro e editor de sobre os livros marxistas, e aí prevale-
livros universitários de ciências sociais cia também uma razão de mercado. Esses
e humanas – tendo publicado livros que livros tinham mais mercado que os livros
foram fundamentais para várias gerações antimarxistas [...]” (Zahar, 2001, p. 38).
de estudantes e militantes políticos – são Gerava-se, dessa forma, um caldo cultu-
reveladoras desse compromisso. Embora ral que se direcionava ao consumo e à
não houvesse engajamento militante na formação intelectual e política de jovens
atitude do editor – como havia no seu estudantes e demais leitores, que cons-
amigo e colega de atuação editorial Ênio truíam coletivamente uma massa crítica e
Silveira, por exemplo –, havia um com- engajada desde o final dos anos 1950 até
prometimento com as questões sociais que os períodos mais críticos do autoritarismo
era compartilhado por grande parte da sua no final dos anos 1960 e no transcurso da
geração: editores, livreiros, intelectuais década de 1970. Jorge Zahar contribuiu,
dedicados às mais diversas atividades, dessa forma, para a elaboração de um pro-
artistas e estudantes pareciam concordar jeto de país que, enfrentando percalços e
com uma série de valores e configura- embates ao longo do caminho, conformou
ções indentitárias que ficaram ainda mais a imaginação de gerações que se formaram
explícitos quando da instauração do Golpe lendo os livros publicados pela editora.

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dossiê edição e política

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Marcos Santos/USP Imagens

Os comunistas brasileiros e o
desenvolvimentismo: a Frente Nacionalista
nas edições da Editorial Vitória (1958-1964)
Vinícius Juberte
resumo abstract

O presente artigo analisa de que forma a This article analyzes how the Nationalist
Frente Nacionalista entre o PCB (Partido Front between the PCB and the PTB
Comunista do Brasil) e o PTB (Partido presents itself in the bookseller production
Trabalhista Brasileiro) se apresenta na of Editorial Vitória, the main communist
produção livreira da Editorial Vitória publisher at the time, between 1958
Limitada, principal editora comunista and 1964, period of line of “peaceful
da época, entre 1958 e 1964, período coexistence” in the world communist
da linha de “coexistência pacífica” no movement and the developmentalist
Marcos Santos/USP Imagens

movimento comunista mundial e do project in Brazil. These political tendencies


projeto desenvolvimentista no Brasil. appear in a concrete way in the editions
Essas tendências políticas apareceram of Editorial Vitória in two ways: through
de modo concreto nas edições da the Coleção de Documentos Políticos and
Editorial Vitória de duas formas: pela through the books O pão, o feijão e as
Coleção de Documentos Políticos e forças ocultas: primeiro livro de leitura
pelos livros O pão, o feijão e as forças popular by the writer Jocelyn Brasil, Brasil
ocultas: primeiro livro de leitura popular, século XX by Rui Facó and Problemas
do escritor Jocelyn Brasil, Brasil século brasileiros de educação by Paschoal
XX, de Rui Facó, e Problemas brasileiros de Lemme. It is intended to demonstrate
educação, de Paschoal Lemme. Pretende- the different editorial strategies involved
se demonstrar as diferentes estratégias in these editions and their role in the
editoriais envolvidas nessas edições e seu relationship between the editorial line and
papel na relação entre a linha editorial e a the political line of the PCB in this period.
linha política do PCB nesse período.
Keywords: publishing history; communist
Palavras-chave: história do livro; edições editions; PCB; developmental; Editorial
comunistas; PCB; desenvolvimentismo; Vitória.
Editorial Vitória.
O
s anos 1950 foram de com o suicídio de Getúlio Vargas, e apro-
intensas mudanças para fundada a partir de 1956 com o Relatório
o movimento comunista Kruschev, levarão o partido de uma linha
mundial, principalmente sectária no início dessa década para uma
após a divulgação do linha de frente nacionalista junto aos tra-
discurso de Nikita Krus- balhistas ao final dela, posição consolidada
chev denunciando os cri- na chamada Declaração de Março de 1958.
mes de Stalin durante o É evidente que o aparato político-cultural
XX Congresso do Par- do partido refletiu todas essas mudanças,
tido Comunista da União e aqui destacamos a principal editora do
Soviética (PCUS). Ana- PCB nesse período, a Editorial Vitória, e
logamente, mudanças ao menos cinco publicações que manifes-
importantes ocorreram tavam abertamente essa aliança entre PCB
no Partido Comunista do Brasil (PCB), que
nessa década foi palco de inúmeros debates
acerca da interpretação da realidade brasi- Uma versão preliminar do presente artigo foi apresentada
leira e a consequente tática de ação partidária no “Seminario Usos de lo Impreso en América Latina”
(Colegio Mexiquense, UAM-C y Cela-FFyL-Unam), em
que seria construída a partir dela, além da junho de 2022.
influência das já citadas mudanças no cená-
rio mundial para os PCs de todo o mundo.
Os anos de debates e embates entre os
VINÍCIUS JUBERTE é doutor em
comunistas brasileiros, principalmente com História Econômica pela Faculdade de Filosofia,
a autocrítica promovida a partir de 1954, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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dossiê edição e política

e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e sentido de influenciar no debate político


as discussões referentes ao projeto econô- nacional naquele momento, principalmente
mico desenvolvimentista. em relação ao ideal desenvolvimentista.
Em 1959 e 1960, aparecem pela Coleção
de Documentos Políticos, respectivamente, BREVE HISTÓRICO DA EVOLUÇÃO
A situação política e a luta por um governo
POLÍTICA DO PCB NOS ANOS 1950
nacionalista e democrático e Por que os
comunistas apoiam Lott e Jango, ambos
assinados pelo secretário-geral do partido, O PCB passará por uma metamorfose
Luís Carlos Prestes. São também desses entre o final dos anos 1940 e 1950, com
anos, respectivamente, Problemas brasi- a cassação de seu registro em 1947 e a de
leiros de educação, de Paschoal Lemme, seus parlamentares em 1948, colocando fim
Brasil século XX, de Rui Facó, e, em 1963, a um curto período de legalidade e partici-
o livro O pão, o feijão e as forças ocultas: pação ativa na vida democrática brasileira
primeiro livro de leitura popular, de auto- no contexto pós-Segunda Guerra Mundial
ria de Jocelyn Brasil, jornalista, escritor e e de redemocratização do país com o fim
brigadeiro da Força Aérea Brasileira. do Estado Novo varguista.
Os dois primeiros tratam da leitura da Nesse período ocorrerão importantes
realidade nacional pelos comunistas naquela mudanças no movimento comunista mun-
conjuntura, a qual leva o partido a apoiar dial, provocadas pela criação da Agência
uma aliança com a “burguesia nacional” de Informação dos Partidos Comunistas
para a realização da etapa “democrático- (Cominform) em 1947. Esse novo aparato
-popular” da Revolução Brasileira, aná- ligado ao PCUS retomará, em boa medida,
lise essa que culminava no apoio eleitoral o papel de centro dirigente desempenhado
aos candidatos nacionalistas do PTB nas até 1943 pela Internacional Comunista (IC).
eleições de 1960. O livro de Facó faz um Sua prática será marcada pelo dogmatismo
balanço da história brasileira a partir da stalinista e terá influência clara nas práticas
Revolução de 1930 e a obra de Lemme, e concepções defendidas pelo PCB até a
uma discussão sobre os desafios da educa- sua extinção em 1956 (Segatto, 1981, p. 61).
ção no Brasil e na América Latina naquela Os comunistas brasileiros iniciam uma
conjuntura. Já o livro de Jocelyn Brasil é nova linha política com o Manifesto de
uma cartilha explicando como o imperia- Janeiro de 1948, que serviria de base para
lismo norte-americano boicotava o desen- o importante Manifesto de Agosto de 1950.
volvimento brasileiro. Em linhas gerais, ambos criticavam a linha
No artigo aqui proposto pretende-se seguida pelo partido no período anterior,
demonstrar como essas edições são um de aliança com a “burguesia progressista”
exemplo claro da relação entre a linha polí- e de aposta na política institucional. Apon-
tica partidária e a linha editorial do PCB, tam como erros políticos a falta de um
e como esses livros procuravam legitimar posicionamento enfático contra o governo
essa linha para os quadros partidários, além Dutra e a Carta Constitucional de 1956,
de serem uma ação clara do partido no responsável pela redemocratização do país.

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Ainda apontam como erro estratégico a gueses”. No campo estético, o artista que
pouca atenção dada às lutas camponesas, não seguisse as diretrizes do “realismo
reafirmam que o Brasil permanece sendo socialista” era execrado publicamente pelas
um país “atrasado, semifeudal e semico- lideranças partidárias.
lonial” e que, por isso, a Revolução Bra- As dificuldades ficam bastante evidentes
sileira naquele momento seria “agrária e se analisarmos, por exemplo, a produção
anti-imperialista” (Segatto, 1981, p. 62). editorial do partido nesses anos. A Edi-
O Manifesto de Agosto de 1950 car- torial Vitória, a grande editora pecebista
rega nas tintas ao caracterizar o governo desde os anos 1940, enfrentará dificuldades
Dutra como “fascista”, de “traição nacio- nesse início de década, fruto das mudanças
nal” e responsável pelo “servilismo” aos conjunturais e do sectarismo da linha par-
EUA, e pela marcha rumo ao “caminho tidária. Se nos anos de 1948 e 1949 foram
da escravidão colonial e da perda total editados oito livros em cada um deles, no
de nossa soberania nacional”. Os comu- ano de 1950 a editora lança um único e
nistas, nesse momento, partindo de uma solitário título (Juberte, 2023, p. 398).
visão absolutamente sectária, colocam de Nesse contexto, o partido só terá algum
um lado o governo e todos os partidos sucesso justamente quando deixa de lado,
ditos “burgueses” e, do outro, as massas momentaneamente, a política sectária e
trabalhadoras, operários e camponeses, os voluntarista que vinha colocando em prática.
“intelectuais honestos” e classes médias Isso fica bastante evidente em movimentos
que, sob a liderança comunista, lutariam de massa como a campanha pelo monopó-
contra a dominação imperialista em uma lio estatal do petróleo e contra a Guerra
“Frente Democrática de Libertação Nacio- da Coreia. Não é à toa que na toada desses
nal” (Segatto, 1981, p. 64). movimentos o partido consegue eleger para a
Na prática, a nova linha partidária, bas- Câmara Federal o líder sindicalista Roberto
tante estreita, sectária e voluntarista, irá Morena em 1950 (Segatto, 1981, p. 66).
levar os comunistas ao isolamento político A partir dessas experiências, o ano de
nos mais diversos espaços de atuação do 1951 já apresenta mudanças na atividade
partido. No meio sindical, por exemplo, a partidária. No meio sindical, a própria
prática de criar sindicatos próprios, sem militância rompe com a linha do partido,
base real, e de promover greves “na marra” voltando a uma política de aliança com
irá minar a credibilidade dos comunistas os trabalhistas e a medidas concretas de
junto aos operários organizados, fazendo construção do partido nas empresas. Essa
com que o espaço deixado seja ocupado mudança leva ao fortalecimento dos comu-
pelos trabalhistas e outras forças políticas nistas no meio sindical e à ampliação de
(Segatto, 1981, p. 65). sua influência no movimento operário,
Nos meios intelectuais o impacto tam- obrigando a direção partidária a oficia-
bém foi bastante negativo. Aqueles que lizar essa linha de atuação para o meio
não utilizassem seu trabalho teórico como sindical. Ainda assim, a direção mantém
instrumento para a divulgação das teses sua linha sectária no essencial, como, por
partidárias eram acusados de “desvios bur- exemplo, considerando o líder trabalhista, e

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dossiê edição e política

agora novamente presidente, Getúlio Vargas pressas seu jornal das bancas e se unir às
como o grande inimigo a ser combatido. massas que tomavam as ruas. Ainda assim,
A linha desagregadora da direção colocava em Porto Alegre, a Tribuna Gaúcha, jornal
empecilhos para a bem-sucedida política do partido, não escapou da depredação de
da base partidária (Segatto, 1981, p. 67). sua sede pela turba popular ensandecida
É justamente na base operária do (Segatto, 1981, pp. 69-70).
partido que se inicia o processo de aliança Toda comoção nacional e crise política
política com os trabalhistas, muitos anos que a ela se seguiu não foram suficien-
antes de a direção do PCB adotar como tes para a direção do PCB mudar a linha
sua essa linha partidária. A luta naciona- política partidária que vinha defendendo
lista dos trabalhistas também passa a ser de forma mais bem acabada desde 1950.
defendida, o que leva, com o passar do O IV Congresso do PCB se dá nesse con-
tempo, ao engajamento dos comunistas no texto, com a cúpula partidária fechando ao
processo político democrático da luta pelo máximo o processo, o que gerou críticas
“capitalismo autônomo”, sem latifúndio e de inúmeras lideranças de base quanto às
sem o domínio do capital estrangeiro. É práticas antidemocráticas do Comitê Cen-
esse processo, com seus acertos e limi- tral. Dessa forma, pouco mudou em relação
tações, que permitirá, por exemplo, que às teses defendidas pela cúpula pecebista.
o PCB conquiste as direções dos sindi- A única mudança digna de nota foi o
catos mais importantes do país, seja em status da “burguesia nacional”, que agora
aliança com os trabalhistas, com estes e passava a ser entendida como aliada “por
os católicos, ou mesmo de forma exclusiva determinado período” da revolução “con-
(Segatto, 1981, p. 68). tra o imperialismo e contra o latifúndio
Mesmo essa nova postura de atuação no e os restos feudais”. O partido entendia
movimento operário e de massas tendo dei- que naquele momento se tratava de cons-
xado bastante evidente que havia pressões truir uma “revolução democrático-popular”
da militância para uma mudança defini- (Segatto, 1981, p. 73), reproduzindo a tese
tiva de linha política, a cúpula partidária do “etapismo” stalinista.
manteve-se irredutível ainda por muito A tímida mudança foi fruto do impacto
tempo. Tanto é que no dia 24 de agosto do suicídio de Getúlio nas fileiras par-
de 1954, quando o país acordava atônito tidárias, além do fracasso nas eleições
com o suicídio de Getúlio Vargas, o jor- parlamentares e para governadores daquele
nal do partido, Imprensa Popular, trazia ano. E o primeiro desdobramento dessa
a manchete “Abaixo o governo de traição linha política retificada foi o apoio do
nacional de Vargas”. PCB à candidatura de Juscelino Kubi-
O suicídio do presidente trabalhista, em tschek pelo Partido Social Democrático
meio a pressões externas e de setores da (PSD), em aliança com os trabalhistas
classe dominante brasileira, fez surgir uma (Segatto, 1981, p. 74).
onda de simpatia por Getúlio, com inúmeras Mas o acontecimento que de fato levará
manifestações país afora, e perseguição aos a mudanças fundamentais no partido e
seus opositores. O PCB precisou recolher às em sua linha política não será de ordem

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interna, mas sim externa: o XX Congresso no socialismo na URSS de Stalin, editada
do Partido Comunista da União Soviética em 1953 pela Editorial Vitória. Segundo
(PCUS), ocorrido em 1956. O chamado ele, essa obra foi ungida em “modelo de
“relatório secreto” do novo secretário-geral desenvolvimento criador do marxismo-
soviético, Nikita Kruschev, teve impacto -leninismo”, “expressão mais alta”, “bús-
fulminante no movimento comunista mun- sola” para todo comunista, entre outras
dial, inclusive no PCB. expressões comuns na imprensa pecebista.
Os comunistas brasileiros se manterão Macedo afirma:
em silêncio por sete meses a respeito do
relatório, tamanho o impacto das denún- “À concepção de um mundo onde tudo
cias. A imprensa pecebista continuará já está conhecido, onde nada é realmente
afirmando durante todo esse período que novo, onde para todos os processos e fenô-
se tratava de uma falsificação do serviço menos já existem explicação e interpre-
secreto norte-americano. A primeira reu- tação pronta e acabada da filosofia, da
nião do Comitê Central para discutir o política, da economia, limitar-se à aná-
tema se dará apenas em agosto de 1956, lise e interpretação dos textos ortodoxos.
na qual as críticas mais severas se abate- Infelizmente isso aconteceu, em grande
ram no até então homem forte do partido, parte, com as obras de Marx, Engels e
Diógenes de Arruda Câmara. Lenin, e, em grau superlativo, nos anos
A partir de outubro daquele ano se cinquenta, com os escritos de Stalin”
abre um enorme debate na imprensa par- (Santos, 1988, p. 239).
tidária, com destaque para os jornais Voz
Operária e Imprensa Popular, nos quais Apesar de reconhecer os excessos da
se colocam todas as críticas, dúvidas e disciplina militarizada imposta aos mili-
ressentimentos que ficaram represados por tantes, as críticas públicas violentas que
anos. Com o desenvolvimento das dis- criavam um ambiente de intimidação e o
cussões, a direção partidária publica um dogmatismo em termos teóricos e políti-
documento de autocrítica, reconhecendo cos, a direção partidária, em abril de 1957,
erros cometidos e, pela primeira vez, as encerra as discussões na imprensa com o
deformações provocadas pelo stalinismo argumento de “restabelecer a ordem” e
no seio partidário (Segatto, 1981, p. 76). “manter a unidade partidária”. Muitos mili-
Os chamados “renovadores” acusavam o tantes inconformados deixam o partido. No
Comitê Central pelo retraimento político fim, o que acaba prevalecendo no interior
dos comunistas, sua menor influência do PCB, entre ortodoxos e renovadores,
na sociedade, a estagnação da imprensa é uma corrente aberta a promover uma
partidária e pela diminuição das fileiras profunda autocrítica, mas sempre atenta
do partido (Santos, 1988, p. 212). à manutenção do partido.
A produção editorial não passa ilesa Além disso, se entende a necessidade
às críticas. Em artigo na revista Novos de uma nova reflexão sobre a “questão
Tempos, o militante Horácio Macedo faz democrática” nos âmbitos partidários e
dura crítica à obra Problemas econômicos da sociedade no geral, para evitar que

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as deformações stalinistas continuassem populares haviam sido fruto exatamente da


dando o tom no cotidiano partidário e na unidade das forças progressistas do país.
linha política seguida pelo PCB (Segatto, O documento também fazia uma crítica
1981, p. 78). bastante clara à linha política seguida
Finalmente, no início de 1958, o par- anteriormente, caracterizando-a como
tido lança a Declaração de Março, na qual “subjetivista” e “dogmática”, baseada em
consolidava sua autocrítica e salientava que fórmulas genéricas que ignoravam as par-
o processo histórico de desenvolvimento ticularidades concretas do desenvolvimento
do capitalismo no Brasil favorecia a luta histórico nacional.
pela democracia. O documento caracteri- Fica bastante evidente que a ela-
zava, por exemplo, os acontecimentos de boração da nova política significou, de
agosto de 1954, que levaram ao suicídio forma concreta, os primeiros ajustes de
de Vargas, como um “golpe”, e defendia contas mais profundos do PCB com o
que as duas contradições fundamentais stalinismo, seus dogmas e mandonismos
naquele momento eram a “da nação con- dos mais variados tipos. A Declaração
tra o imperialismo norte-americano e seus de Março de 1958 é um marco de um
agentes internos” e a contradição entre “as novo momento para o partido, com uma
forças produtivas em desenvolvimento e profunda redefinição sobre o papel dos
as relações de produção semifeudais na comunistas na luta democrática e nacio-
agricultura”. A contradição entre o prole- nalista, na política de frente única e nos
tariado e a burguesia continuava existindo, caminhos para a construção do socialismo
porém, nessa etapa do desenvolvimento no Brasil (Segatto, 1981, p. 85).
brasileiro, ela se tornara secundária. A Essa nova linha consolidará em termos
união contra o imperialismo norte-ame- políticos, finalmente, uma tendência que
ricano era o mais importante. vinha se apresentando na política de base
Dessa forma, “o desenvolvimento capi- do partido desde o início da década, e se
talista corresponde aos interesses do pro- mostra vitoriosa, definitivamente, no V
letariado e de todo o povo”, e “a revo- Congresso do PCB, em 1960. Fica pavi-
lução no Brasil, por conseguinte, não é mentado o caminho para os comunis-
ainda socialista, mas anti-imperialista e tas ampliarem o apoio ao governo JK e,
antifeudal, nacional e democrática”. A posteriormente, ao governo do trabalhista
transição para o socialismo deixa de ser João Goulart no início dos anos 1960,
um objetivo imediato nessa fase histórica com destaque para o movimento pelas
da luta no Brasil, segundo a nova orien- Reformas de Base.
tação partidária. Dado o panorama que levará o partido
Do ponto de vista da política prática, até a Declaração de Março de 1958 e à
cotidiana, essa nova orientação impli- construção da Frente Nacionalista junto aos
cava a necessidade de formação de uma trabalhistas, vale analisarmos como essa
frente única, ao mesmo tempo naciona- nova linha aparece na produção político-
lista e democrática. O documento ainda -cultural do PCB, por meio da sua prin-
reconhece que as últimas grandes vitórias cipal editora, a Editorial Vitória.

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A FRENTE NACIONALISTA NAS 1) Fortalecimento do campo socialista e
avanço das lutas de libertação nacional;
EDIÇÕES DA EDITORIAL VITÓRIA
2) Aprofunda-se a contradição que opõe a
nação brasileira ao imperialismo norte-
O primeiro fruto editorial decorrente americano e aos agentes entreguistas;
da Declaração de Março foi a Coleção 3) A luta de massas por um novo rumo
Documentos Políticos, formada por três na política do governo;
volumes. Os dois primeiros são lança- 4) As eleições de 3 de outubro;
dos em 1959, o primeiro se intitulando 5) A atividade dos comunistas na aplica-
A situação política e a luta por um ção de sua linha política;
governo nacionalista e democrático, 6) Por uma política de soluções naciona-
assinado por Luís Carlos Prestes, e o listas e democráticas.
segundo intitulado Sobre as cifras de
controle de desenvolvimento da econo-
mia da URSS nos anos de 1959-1965:
informe ao XXI Congresso (extraordi-
nário) do Partido Comunista da União
Soviética a 27 de janeiro de 1959, de
Nikita Kruschev. O terceiro e último
volume foi lançado no ano seguinte,
1960, e se intitulava Por que os comu-
nistas apoiam Lott e Jango, que tem
sua autoria também atribuída a Prestes.
O primeiro desses livros, A situação
política e a luta por um governo nacio-
nalista e democrático, é um libelo em
defesa da nova linha partidária, e isso
fica bastante evidente já nos paratextos
(Genette, 2009) da edição. A capa traz
A situação política e a luta por um governo
o nome do autor, seguido do título em nacionalista e democrático, Editorial Vitória,
verde, sobre um fundo branco chapado, 1959. Fonte: Biblioteca Edgard Carone – Museu
modelo que será padrão para os demais Republicano da USP
volumes, mudando apenas a cor do título
(vermelho e azul, respectivamente, para
os demais). O trabalho tipográfico da Ficam evidentes a reprodução da linha
coleção é bastante simples, sem grandes partidária em termos como “lutas de liber-
ornamentos, não há a presença de orelhas, tação nacional”, “imperialismo norte-ame-
nem mesmo de prefácios ou posfácios. ricano e agentes entreguistas” e “política
O índice acaba sendo o único paratexto de soluções nacionalistas e democráticas”,
digno de nota. No primeiro volume da e a importância que os comunistas passam
coleção, o índice traz os seguintes títulos: a dar para a luta democrática dentro da

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legalidade, com um capítulo todo dedi-


cado à discussão eleitoral. Na contracapa
do livro, temos um anúncio do volume 2,
que nesse caso aparece com o título pro-
visório de Informe ao XXI Congresso do
PCUS – Nikita S. Krushiov. A propaganda
reproduz o seguinte trecho do livro:

“O socialismo demonstrou plenamente


sua absoluta superioridade sobre o capi-
talismo nos ritmos de desenvolvimento da
produção. Agora entramos em uma nova
etapa da emulação econômica com o capi-
talismo. A tarefa consiste agora em lograr
a superioridade do sistema socialista sobre
o sistema capitalista na produção mundial, Sobre as cifras de controle de desenvolvimento
em ultrapassar os países capitalistas mais da economia da URSS nos anos de 1959-1965:
informe ao XXI Congresso (extraordinário)
desenvolvidos no que se refere à produ-
do Partido Comunista da União Soviética
tividade do trabalho social e à produção a 27 de janeiro de 1959, Editorial Vitória, 1959.
por habitante e em garantir o nível de Fonte: Biblioteca Edgard Carone – Museu
vida mais elevado do mundo”. Republicano da USP

Aqui se explicita também a chamada


“coexistência pacífica” que a essa altura O volume 3 da coleção, voltado também
já era a nova linha geopolítica seguida para as questões nacionais, intitulado Por
pela União Soviética, que pregava a supe- que os comunistas apoiam Lott e Jango,
ração do capitalismo pelo socialismo tem sua autoria atribuída a Luís Carlos
não mais pela revolução, mas sim pelo Prestes, tal qual o volume 1, e trata-se
sucesso econômico. Tal mudança de posi- de um manifesto em favor da candidatura
ção levou inclusive a uma importante presidencial trabalhista. O índice aparece
divisão no mundo comunista com a cisão da seguinte forma:
sino-soviética. No Brasil, esse processo
culminou com a divisão dos comunis- 1) Os comunistas e a sucessão presidencial;
tas em dois partidos a partir de 1962: 2) Pela vitória da causa nacionalista e
o PCB, que passou a se chamar Partido democrática nas eleições presidenciais;
Comunista Brasileiro desde a Conferên- 3) Introdução;
cia Nacional de 1961, de linha soviética 4) Perspectivas concretas de cessação da
e defensor da luta política institucional, “Guerra Fria”;
e o PCdoB, Partido Comunista do Bra- 5) O quadro político da campanha sucessória;
sil, de linha maoísta e defensor da luta 6) Agravam-se as dificuldades no campo
armada (Segatto, 1981, p. 91). janista e consolida-se a candidatura Lott;

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7) Concentrar a atividade política na luta delas é o livro Problemas brasileiros de
eleitoral. educação, de Paschoal Lemme. Aqui o
destaque fica por conta da capa do livro:
Mais uma vez, a linha partidária uma fotografia de Marcel Gautherot do
que trazia a formação de uma frente prédio do Ministério da Educação e Saúde
única democrática e nacionalista como no Rio de Janeiro, um dos símbolos da
prioridade para os comunistas aparece de arquitetura modernista e do ideário desen-
forma bastante evidente nessa edição. É volvimentista no Brasil.
enfatizada a centralidade da luta eleitoral,
que nesse momento é compreendida pelos
comunistas como o caminho tático que cul-
minará na revolução democrático-popular,
em aliança com os setores progressistas
da burguesia nacional. Existe também um
eco da nova linha política soviética no
capítulo 4, que colocava em perspectiva a
possibilidade real do fim da “Guerra Fria”,
graças à nova orientação sob Kruschev.

Problemas brasileiros de educação, Editorial


Vitória, 1959. Fonte: Biblioteca Edgard Carone –
Museu Republicano da USP

Gautherot era fotógrafo, natural de


Paris, e se mudou para o Brasil nos anos
1940 após ter seu interesse pelo país
despertado pela obra Jubiabá, de Jorge
Amado. Trabalhou para o Serviço do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional e
Por que os comunistas apoiam Lott e Jango, realizou diversas séries documentais sobre
Editorial Vitória, 1960. Fonte: Biblioteca Edgard
a arquitetura moderna e colonial brasi-
Carone – Museu Republicano da USP
leira ao lado do fotógrafo Pierre Verger,
com quem viajou o país. Notabilizou-se,
A nova orientação partidária também se de fato, pelas fotografias de edificações
manifesta em edições avulsas presentes no modernistas, tendo uma delas servido para
catálogo da Editorial Vitória. A primeira a arte de capa do livro citado.

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dialoga abertamente com a arquitetura


modernista da época.
O livro é apresentado no texto das ore-
lhas da seguinte forma:

“Brasil século XX, de Rui Facó, foi escrito


a pedido de uma editora argentina, dentro
de um plano geral de obra daquela casa
dedicada a cada um dos países latino-
-americanos. O editor argentino procurava
sanar uma falta: a ausência de conheci-
mento recíproco dos nossos povos. Mas
a verdade é que nós, brasileiros, também
ainda conhecemos muito pouco o nosso
país. Não se pode negar que nos últi-
mos tempos tem havido esforço para uma
tomada de consciência da nossa realidade.
Brasil século XX, Editorial Vitória, 1960. Vão aparecendo obras de real valor que
Fonte: Biblioteca Edgard Carone – Museu contribuem para que o povo brasileiro
Republicano da USP se conheça a si próprio. Dificilmente,
porém, essas obras abarcam o Brasil em
seu conjunto. Esperamos, neste sentido,
Nessa mesma linha, aparece em 1960 suprir uma falha: Brasil século XX contém
o livro Brasil século XX, de Rui Facó. alguns elementos essenciais da história
Aqui, todo o projeto do livro está clara- do nosso país que tornam possível uma
mente inserido no debate sobre o desen- melhor compreensão do presente e uma
volvimentismo e a nova diretriz partidá- perspectiva do futuro [...]”.
ria dos comunistas. A capa do livro traz
uma foto de Brasília, síntese, ao mesmo E complementa:
tempo, da arquitetura modernista em sua
busca por um ideal de brasilidade e do “Onde nos leva o atual ‘desenvolvimen-
país moderno que nascia por meio das tismo’? Podemos ignorar as grandes
ideias desenvolvimentistas. Vale destacar transformações operadas no mundo neste
que tanto a capa do livro de Paschoal meio século? Empreenderemos o cami-
Lemme quanto essa são de autoria de nho tradicional dos países capitalistas?
Mauro Vinhas de Queiroz, personagem Somos infensos ao socialismo, como se
responsável pela modernização do afirmava durante o Estado Novo? Estas
trabalho gráfico da editora nos anos e outras questões são postas em discus-
1960 e que reproduziu em suas capas são neste livro. Esperamos, oferecendo-o
pela Editorial Vitória, nessa década, ao público brasileiro, contribuir para o
uma linguagem de design de livros que seu esclarecimento”.

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O texto traz um tom de autocrítica é completado por algumas linhas que
quando afirma que os brasileiros desco- formam o rosto do personagem, e a
nhecem o próprio país, já que a própria letra “O” do nome do autor aparece em
editora sempre tratou de forma secundária destaque, fazendo as vezes de olhos da
os grandes temas nacionais, em favor dos ilustração. Vale destacar que a obra teve
temas internacionais ligados ao mundo duas edições, no mesmo ano.
comunista. Além disso, o fato de o autor Sobre as intenções colocadas na obra,
afirmar que obras que se propõem a uma o texto da orelha diz o seguinte:
análise mais ampla sobre o país estarem
aparecendo no “momento mais dinâmico “‘O pão, o feijão e as forças ocultas’ é
de sua história” é uma forma de chancelar outra contribuição de Jocelyn Brasil à
a linha política do partido de apoio ao causa do esclarecimento e da emancipa-
desenvolvimentismo encabeçado pelos tra- ção de nosso povo. Em linguagem fácil e
balhistas. Nessa mesma linha, é afirmado didática, o livro procura explicar ao povo
que o autor faz uma avaliação positiva os mecanismos por vezes complexos de
da Revolução de 1930, tema caro aos tra- alguns dos mais sérios e graves problemas
balhistas, mas longe de ser um consenso que assaltam a nação brasileira.
entre os comunistas. É interessante o fato As questões intrincadas do câmbio, do
de essa edição ter lançamento simultâneo comércio exterior, do processo inf la-
também na Argentina, ainda que, infeliz- cionário são aqui desenvolvidas, por
mente, não seja citada qual casa edito- Jocelyn Brasil, de forma acessível mesmo
rial foi responsável por editá-la por lá. para aqueles que nunca tiveram contato
Por fim, capa e contracapa apresentam com teorias e fórmulas econômico-
uma valorização de monumentos nacio- -financeiras. Lendo-o, a gente simples
nais, com destaque para Brasília, fruto do do nosso povo verá algumas das molas
desenvolvimentismo apoiado pelo PCB. escondidas que lhe tornam a vida cada
Por fim, há uma edição avulsa que dia mais difícil e dura.
também sustenta a linha de unidade com Nessa época, em que o povo é chamado
os trabalhistas; trata-se de O pão, o fei- a conhecer e opinar sobre os problemas
jão e as forças ocultas: primeiro livro fundamentais da vida econômica e social,
de leitura popular, de Jocelyn Brasil. em que a classe trabalhadora, que não
Nesse caso, o trabalho tipográfico é mais gozou desse privilégio que é a cultura
elaborado, capa e diagramação são de entre nós, é convocada para participar
autoria de Mauro Vinhas de Queiroz. das grandes decisões da vida nacional,
A partir da técnica da palavra-ilustra- ‘O pão, o feijão e as forças ocultas’ será
ção, o artista apresenta cada um dos um instrumento de indubitável utilidade
elementos do título em uma sequência na tarefa de elevação da consciência
de linhas paralelas, com o subtítulo per- popular sobre os problemas nacionais”.
pendicular a elas, e dessa junção acaba
surgindo a cartola do personagem Tio A partir dos grifos destacados fica
Sam, representando os EUA. O desenho bastante evidente qual era a intenção

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do partido ao editar essa obra. Ela é Vale ressaltar aqui uma diferença que
conscientemente concebida para ser de parece bastante evidente entre os livros
“linguagem fácil e didática”, voltada da Coleção Documentos Políticos e o
para um público-alvo bem definido: “a livro de Jocelyn. A primeira parece ser
gente simples do nosso povo”, visando um esforço editorial nascido da neces-
à “tarefa de elevação da consciência sidade de apresentar aos quadros parti-
popular”. Até mesmo o índice do livro, dários as novas diretrizes do movimento
separado em “primeira lição”, “segunda comunista mundial e do próprio PCB. O
lição” e assim por diante, denota a próprio trabalho tipográfico mais sim-
intenção didática da obra. ples, quase protocolar, parece denotar
uma preocupação menor em atingir um
público mais amplo.
Já o livro do escritor nacionalista
tem claramente o interesse de atingir
um público mais amplo, para além das
fileiras partidárias. Não é à toa que nele
se percebe de forma muito mais presente
a mão do editor, que cumpre a tarefa de
apresentar de forma clara, por meio dos
paratextos, a qual projeto servia aquele
livro. Ou seja, aqui presenciamos a Edi-
torial Vitória buscando divulgar a linha
partidária para públicos diversos, por
meio de estratégias editoriais diferentes.
Por fim, mas não menos importante,
a capa de rosto do livro traz uma dedi-
catória que, por si só, sintetiza a frente
O pão, o feijão e as forças ocultas: primeiro
livro de leitura popular, Editorial Vitória, 1963. única entre comunistas e trabalhistas.
Fonte: Biblioteca Edgard Carone – Museu Jocelyn dedica o seu livro em home-
Republicano da USP nagem a duas lideranças maiúsculas da
vida nacional brasileira do período: Luís
Carlos Prestes, pela “lealdade e dedica-
Esse era um livro voltado para a massa ção à causa do povo”, nas palavras do
popular brasileira, com o intuito de escla- autor, e a Leonel Brizola, “grande líder
recer importantes questões a respeito nacionalista”, também a juízo do escritor.
da economia, a partir das teses defen- Temos, basicamente, uma casa editorial
didas pelo partido. E mais, a partir da comunista, editando um autor anti-im-
escrita de um renomado nacionalista, o perialista, que escreve em homenagem
que demonstra como o nacionalismo era ao mais radical dos líderes trabalhistas.
a força propulsora das lutas populares Definitivamente, um livro como prova
naquele período. do espírito do tempo.

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CONCLUSÃO na linha político-partidária desses parti-
dos em 1958, adotando como bandeira a
Coube a este texto demonstrar como a luta pela “revolução democrático-popular”,
linha política do PCB e a linha editorial aceitando como caminho para ela a via
da Vitória estiveram sincronizadas nesse das reformas e o projeto desenvolvimen-
período entre 1958 e 1964, quando o PCB tista. Esse novo projeto político surge na
retoma protagonismo político (e editorial) estética e no conteúdo dos livros da sua
ao lado dos trabalhistas, marcando uma editora, demonstrando a total sintonia
de suas melhores fases. Nesse período, o entre linha política e linha editorial.
partido chega a ter entre 50 e 70 mil mem- Pouco tempo depois da euforia polí-
bros (Secco, 2017, p. 195), mesmo na ile- tica que vinha com a ascensão da luta de
galidade, perdendo em número apenas para massas, ambos os partidos serão traga-
o período da legalidade dos anos 1940. dos e extintos pelo Golpe Civil-Militar
Enfim, o PCB e o PTB protagoniza- de 1964. A Editorial Vitória foi fechada
ram, lado a lado, um dos momentos mais no dia 3 de abril de 1964, sem demora,
ricos e esperançosos das massas popula- três dias após o início do levante militar,
res brasileiras no início dos anos 1960, apoiado enfaticamente pelas forças civis
o que se reflete, inclusive, na produção conservadoras. Eis aqui a prova inconteste
editorial dos comunistas. Fundamental do poder transformador dos livros. E do
para essa aliança é a virada definitiva temor autoritário a eles.

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REFERÊNCIAS

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1986.
DEAECTO, M. M.; MOLLIER, J.-Y. (orgs.). Edição e revolução: leituras comunistas no Brasil
e na França. Cotia/Belo Horizonte, Ateliê Editorial/Editora UFMG, 2013.
GENETTE, G. Paratextos editoriais. São Paulo, Ateliê Editorial, 2009.
JUBERTE, V. de O. A Editorial Vitória e as edições comunistas no Brasil: da legalidade ao
golpe (1944-1964). Tese de doutorado. São Paulo, FFLCH/USP, 2023.
JUBERTE, V. de O. O PCB e os livros: a Editorial Calvino no período da legalidade do partido
nos anos 1940 (1943-1948). Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH/USP, 2016.
SANTOS, R. A primeira renovação pecebista: reflexos do XX Congresso do PCUS no PCB
(1956-1957). Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1988.
SECCO, L. A batalha dos livros. São Paulo, Ateliê Editorial, 2017.
SEGATTO, J. A. Breve história do PCB. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1981.

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Os Cadernos Nacionalistas do Ipês e a luta


ideológica no mercado editorial do pré-1964
Camila Alvarez Djurovic
resumo abstract

O artigo propõe uma análise dos The article proposes an analysis of


aspectos da campanha anticomunista e aspects of the anticommunist campaign
das propostas reformistas desenvolvidas and the reformist proposals developed
pelo Instituto de Pesquisas e Estudos by the Institute of Research and Social
Sociais (Ipês) a partir da Coleção Cadernos Studies (Ipês) based on the Cadernos
Nacionalistas, publicada pela entidade Nacionalistas Collection, published by the
entre 1964 e 1965. Observando os entity between 1964 and 1965. Observing
pontos de convergência e divergência the points of convergence and divergence
Marcos Santos/USP Imagens

entre este projeto editorial e a Coleção between this editorial project and the
Cadernos do Povo Brasileiro, promovida Cadernos do Povo Brasileiro Collection,
pela Civilização Brasileira de 1962 a promoted by Civilização Brasileira
1964, busca-se abordar a luta ideológica from 1962 to 1964, seeks to address the
no contexto que envolveu o Golpe de ideological struggle in the context that
1964, suas reverberações no mercado involved the 1964 Coup, its reverberations
editorial brasileiro do período e, mais in the Brazilian editorial market of the
especificamente, na atuação de dois period and, more specifically, in the
proeminentes editores: Ênio Silveira e actions of two prominent editors: Ênio
Octalles Marcondes Ferreira. Silveira and Octalles Marcondes Ferreira.

Palavras-chave: Cadernos Nacionalistas; Keywords: Cadernos Nacionalistas;


Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais Institute of Research and Social Studies
(Ipês); Golpe de 1964; anticomunismo; (Ipês); 1964 Coup; anticommunism; basic
reformas de base. reforms.
D
iante do conturbado con- Tais projetos se expressam, em diferentes
texto político e social medidas, na trajetória de dois importantes
do início da década de editores brasileiros do século XX: Octalles
1960, o financiamento Marcondes Ferreira e Ênio Silveira.
e a edição de publica- A história tem início em 1932, quando
ções tiveram um papel a Companhia Editora Nacional, sob o
fundamental para os comando de Octalles Marcondes Fer-
grupos organizados à reira e do seu irmão, o banqueiro Fenício
esquerda e à direita, Marcondes Ferreira, adquiriu parte das
auxiliando nas tarefas ações da Civilização Brasileira – editora
de propaganda ideoló- fundada em 1929 no Rio de Janeiro. A
gica, formação política partir de então, a Civilização Brasileira
e mobilização popular. passou a atuar como uma filial da Editora
A encruzilhada histórica que precedeu o Nacional, ocupando posição estratégica
Golpe de abril de 1964 se traduz bem no na distribuição de suas publicações no
campo editorial por meio de dois projetos Rio de Janeiro e na produção de livros
diametralmente opostos, mas com intrigan- de literatura. Essa divisão permitiu que
tes pontos de conexão: de um lado, a série
Cadernos Nacionalistas, editada pelo Instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês), de
1964 a 1965; de outro, a Coleção Cadernos
CAMILA ALVAREZ DJUROVIC é mestre em
do Povo Brasileiro, publicada entre os anos História Econômica pela Faculdade de Filosofia,
de 1962 e 1964 pela Civilização Brasileira. Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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a matriz paulista concentrasse esforços cisco Julião, Quem é o povo no Brasil?,


nos livros infantis e didáticos – nicho de Nelson Werneck Sodré, Quem dará o
comercial que fez da Editora Nacional golpe no Brasil?, de Wanderley Guilherme,
uma das maiores do país até a década e Por que os ricos não fazem greve?, de
de 1970 (Silva, 2019, p. 81). Álvaro Vieira Pinto, que atingiu a sur-
Em 1951, Ênio Silveira, então diretor preendente marca de 100 mil exemplares
editorial da Nacional, foi convidado a vendidos (Lovatto, 2013, p. 158).
assumir a direção da Civilização Brasi- Apesar do impressionante sucesso
leira no Rio de Janeiro. O jovem editor comercial da empreitada, Octalles Mar-
possuía um estreito laço familiar com o condes Ferreira, sogro e patrão, há muito
proprietário das companhias: era casado desaprovava as publicações esquerdistas
com Cléo Marcondes Ferreira, filha de de Ênio Silveira. Paralelamente ao agra-
Octalles. Com sua entrada na Civiliza- vamento da situação política do país, as
ção Brasileira – primeiro como diretor e diferenças ideológicas entre os dois edito-
depois como sócio – a filial foi gradu- res se tornaram cada vez mais acentuadas
almente tornando-se uma das principais e, segundo Hallewell (2012, p. 597), “os
editoras do país. Sob a administração Cadernos do Povo Brasileiro parecem ter
de Ênio, o selo passou por uma grande sido a gota d’água”. A solução encontrada
reformulação, constituindo um catálogo por Octalles foi oferecer a Ênio a opor-
de primeira linha baseado em temas das tunidade de comprar sua parte das ações
ciências humanas, com seletos autores vin- e assumir definitivamente o controle da
culados ao pensamento marxista e às teses Civilização Brasileira, o que lhe conferiria
do Iseb – Instituto Superior de Estudos total autonomia para a execução de seus
Brasileiros (1955-1964), o centro governa- projetos. Encerrou-se assim, em 1963, o
mental de pesquisas e projetos políticos vínculo entre as duas companhias.
ligados ao nacional-desenvolvimentismo. Na verdade, a distância entre as convic-
Dentre as coleções mais emblemáticas ções políticas e ideológicas entre os dois
idealizadas por Ênio Silveira e lançadas editores era ainda maior do que poderia
pela Civilização Brasileira está a Coleção parecer à primeira vista. Embora Octalles
Cadernos do Povo Brasileiro, editada entre fosse conhecido por seu posicionamento
1962 e 1964. Correspondendo à fase de conservador moderado, ele estava, assim
radicalização política do país, a coleção como Ênio, engajado nas disputas de seu
voltou-se para as pautas progressistas mais tempo: discretamente, ofereceu apoio téc-
candentes do momento: a defesa da reforma nico e financeiro ao programa editorial do
agrária, da cultura popular, do anti-impe- Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais,
rialismo e da luta democrático-popular de o Ipês, um dos principais articuladores do
caráter socialista (Lovatto, 2013). Publi- movimento que culminou no Golpe de 1964.
cada em formato de bolso, com linguagem A atividade editorial do Ipês desenvol-
popular e títulos provocativos, a coleção vida ao longo do governo de João Gou-
lançou em seu primeiro ano livros como lart (1961-1964) teve como tática recor-
Que são as ligas camponesas?, de Fran- rente a apropriação das formas de luta da

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esquerda, a distorção de seus discursos e como vimos, foram amplamente divulga-
a mimetização de seus instrumentos de das por meio dos projetos editoriais de
expressão cultural e de formação política. Ênio Silveira.
Como parte dos esforços para justificar A pretexto da incompatibilidade entre os
suas atribuições enquanto um “instituto de interesses da elite empresarial e a agenda
pesquisas” e se inserir no debate público nacional-reformista sustentada por João
da época, o Ipês desenvolveu uma série de Goulart e seus aliados, o Ipês promoveu,
folhetos sobre temas políticos contempo- nesse período, uma série de ações clandes-
râneos que foi provavelmente inspirada na tinas visando à desestabilização do governo,
exitosa experiência dos Cadernos do Povo tais como o financiamento de parlamentares
Brasileiro. Nos mesmos moldes da cole- e grupos oposicionistas, a infiltração em
ção idealizada por Ênio Silveira, Cadernos movimentos populares e a disseminação
Nacionalistas tinha como objetivo intervir de propagandas anticomunistas através de
na realidade política do país e esclarecer diversos meios de comunicação.
o leitor comum sobre temas e debates em Nas listas de membros e financiadores
pauta no momento – desta vez sob a ótica do instituto figuravam militares, políticos
do projeto político das frações civis e mili- e empresários dos mais diversos setores
tares organizadas para a tomada do poder. produtivos, que juntos representavam a
Mas, antes de abordar as especificidades principal força socioeconômica atuante
dos Cadernos Nacionalistas, é importante no país. Assim, a criação de um grupo
caracterizar brevemente a formação e a tra- de trabalho destinado exclusivamente à
jetória do Ipês, assim como as condições de atividade editorial foi incentivada e faci-
produção e circulação de suas publicações. litada por alguns associados e simpati-
zantes que eram proprietários, diretores
A AÇÃO EDITORIAL DO IPÊS ou intimamente ligados ao ramo editorial
e papeleiro. Embora não participasse for-
malmente dos quadros sociais do Ipês,
O Ipês foi oficialmente fundado em
Octalles Marcondes Ferreira contribuiu
1962 por grupos de empresários e mili-
com este grupo, estabelecendo parcerias
tares de alta patente organizados ini-
para a edição de publicações alinhadas
cialmente no Rio de Janeiro e em São
à orientação política e ideológica do ins-
Paulo. Professando um caráter técnico-
tituto e oferecendo serviços subsidiados
-empresarial, supostamente neutro e apar-
da sua empresa.
tidário, ele se apresentava publicamente
A Companhia Editora Nacional não
como uma alternativa ao Iseb1, cujas teses,
era a única implicada neste complexo
circuito. Além de editar seus próprios
impressos, o Ipês atuou como financiador
e difusor de publicações editadas por ter-
1 Na visão dos ipesianos, o Iseb se caracterizava como
um “órgão de ação subversiva”, tendo sido concebido ceiros, tendo estabelecido convênios com
“como uma réplica” da Escola Superior de Guerra “com
a finalidade de neutralizar os seus ensinamentos” (Ins-
ao menos 22 editoras brasileiras dos mais
tituto de Pesquisas e Estudos Sociais, 1964a, p. 12). diferentes perfis. O cruzamento dessas

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informações com os dados disponíveis deste acordo, tendo sido publicada pela
sobre o mercado editorial da época mostra Companhia Editora Nacional, do “editor
que, às vésperas do golpe, 30% do estoque amigo” Octalles Marcondes Ferreira4. Em
de livros no Brasil pertencia a editoras casos como esse, os nomes do Ipês e
envolvidas com o Ipês e que aproximada- da Usia eram omitidos dos créditos das
mente um quarto das mais reconhecidas publicações, que eram lançadas como se
casas editoriais em funcionamento na pri- fossem projetos exclusivamente idealiza-
meira metade dos anos 1960 colaborou de dos e realizados pelas editoras associa-
alguma forma com o instituto (Djurovic, das. Essa estratégia de ação política clan-
2021, p. 139)2 . destina tinha por objetivo, justamente,
Embora o nome do Ipês não constasse dificultar a identificação da verdadeira
nos créditos das publicações organizadas rede de financiamento por trás desse
por tais editoras, era ele quem realizava a circuito editorial.
encomenda das obras compatíveis com seus
interesses políticos e arcava com parte dos OS CADERNOS NACIONALISTAS:
custos de produção. Podia, por exemplo,
VISÃO GERAL
pagar os direitos autorais, a tradução, a
impressão ou até mesmo garantir a compra
de um determinado número de exemplares. Os Cadernos Nacionalistas foram edi-
Parte do volumoso conjunto de publi- tados e lançados pelo Ipês logo após os
cações pertencentes ao circuito ipesiano acontecimentos de 1º de abril de 1964,
também foi viabilizada por meio de finan- como parte de uma Campanha de Edu-
ciamento estrangeiro – sobretudo através cação Econômica promovida pela sede
do convênio estabelecido entre o instituto paulista com o objetivo de “estudar e
e o Book Development Program, da Uni- selecionar matérias de divulgação eco-
ted States Information Agency (Usia), uma nômica”. O relatório referente às ativida-
agência diplomática do Departamento de des do Grupo de Publicação e Editorial
Estado dos EUA3. A obra 1984, de George naquele ano reportou a atividade aos asso-
Orwell, foi uma das financiadas por meio ciados do instituto da seguinte maneira:

“Apesar da mobilização do Ipês nos pri-


meiros meses do ano para os objetivos
2 Destacamos aqui editoras como Abril, Record, Agir,
Ipanema, Vozes, Itatiaia, José Olympio e Saraiva.
3 A Usia atuou junto aos países subdesenvolvidos ser-
vindo aos propósitos da política externa e da guerra
cultural traçadas pelo governo estadunidense no 4 Por sua crítica ampla ao totalitarismo, o conjunto da
âmbito da Guerra Fria. O Book Development Program, obra de Orwell foi alvo de disputa no período da
ou Programa de Fomento ao Livro, vigorou no Brasil Guerra Fria, sendo capturada pelo imaginário tanto
entre 1953 e 1973 com a finalidade de estimular a da esquerda quanto da extrema direita. As obras de
produção editorial e a circulação de publicações ali- Orwell foram introduzidas ao público brasileiro no
nhadas à política cultural estadunidense. Em linhas contexto de intensa polarização política, tornando-se
gerais, o programa oferecia às editoras locais uma lista mais um exemplo da estratégia de apropriação das
de textos originais em língua inglesa para os quais críticas ao governo soviético vindas da esquerda “não
cedia gratuitamente os direitos autorais e a tradução alinhada” para fins de propaganda ideológica antico-
(Oliveira, 2015). munista (Djurovic, 2020).

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da Revolução e, após o 31 de março, José Setzer; Reforma universitária (nº 5),
para assegurar o Governo Revolucionário, de A. C. Pacheco e Silva; e Estratégia e
inclusive, colocando-o à sua disposição tática comunista para a América Latina
o melhor de seu material humano, foi (nº 6), de Eudócio Ravines.
iniciada a Campanha de Educação Eco- Essa linha editorial se diferenciava das
nômica, de acordo com o planejamento demais coleções da Campanha (Economia
de um programa de atividades para 1964. para Todos, Temas da Hora Presente e
Neste ano, a Campanha concentrou-se Administração Humana), que priorizavam
na tarefa complexa de estudar e selecio- textos relacionados ao campo do pensa-
nar matérias de divulgação econômica, mento liberal – em sua maioria, tradu-
publicando-as sob a forma de folhetos ções de autores estrangeiros ligados aos
de bolso práticos e de leitura acessível think tanks que disseminavam a Escola
ao maior número. Foram assim iniciadas Austríaca na América Latina, tais como
em 1964 as publicações de quatro séries o Cato Institute, o Mises Institute e a
de folhetos; Mont Pelerin Society5. Tal conjunto pode-
1. Economia para Todos ria ser considerado menos comprometedor,
2. Temas da Hora Presente na medida em que correspondia melhor
3. Administração Humana à estratégia propalada pela entidade de
4. Cadernos Nacionalistas” manter uma imagem pública supostamente
(Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, comprometida com os valores democráti-
1964b, grifos nossos). cos e com propósitos educacionais.
Mas um aspecto interessante reve-
No conjunto das quatro coleções pro- lado pelo relatório citado anteriormente
movidas no âmbito da Campanha de Edu- é que, à altura da publicação daque-
cação Econômica e publicadas sob a forma las quatro coleções, o Ipês já pouco se
de “folhetos de bolso práticos e de leitura preocupava com a vinculação de suas
acessível”, os Cadernos se destacam por atividades ao movimento conspiratório
sua proposta editorial híbrida, que con-
juga títulos abertamente anticomunistas,
de autores brasileiros e estrangeiros, a 5 As demais coleções eram compostas dos seguintes
escritos dos intelectuais ipesianos volta- títulos: [Economia para Todos] Livre empresa e de-
senvolvimento econômico (Ralph Husted); A Europa e
dos ao debate das reformas de base. Ao os países novos em desenvolvimento; Pleno emprego,
menos seis títulos pertencentes à série intervencionismo e inflação (F. A. Hayek); Monopólio
e concorrência (Bradford B. Smith); Por que os salários
foram lançados entre 1964 e 1965, sendo compram cada vez menos (W. P. Krause); [Temas da
Hora Presente] Política monetária (Luis Montes da Oca);
eles: Infiltração comunista no Brasil (nº A propriedade: fator imprescindível do progresso (Alber-
1), uma coletânea de textos publicada ori- to Benegas Lynch); Educação popular, fator primordial
do desenvolvimento e da paz social (José Joaquin Salce-
ginalmente na revista Este & Oeste; Os do); O problema da demografia nos países subdesenvol-
verdadeiros reacionários (nº 2), de Oscar vidos (Olavo Baptista Filho); [Administração Humana] A
verdade sobre a revolução industrial (Ludwig von Mises);
Schvarzberg; Como lidar com os comunis- Carta aos homens de empresa (Jacques Rueff); Teoria
e prática da gerência nas nações em desenvolvimento
tas (nº 3), de Wilhelm Roepke; O árduo (States M. Mead); As forças econômicas e sociais que
caminho da reforma agrária (nº 4), de influem no clima de administração (Enrique Sanchez).

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para a derrubada do governo, deixando atravessado, na diagonal da direita para a


claro que a entidade havia se mobili- esquerda, por uma faixa verde e amarela.
zado, desde os primeiros meses do ano, Além da evidente referência ao nacio-
para “os objetivos de Revolução” e, após nalismo, manifestado nas cores da ban-
sua consumação, para a manutenção do deira nacional, a arte gráfica escolhida
“Governo Revolucionário”. Talvez isso pelo Ipês parece buscar exprimir
explique o fato de os Cadernos Naciona- visualmente uma ideia de modernidade,
listas terem sido abertamente assinados racionalidade e neutralidade.
pelo instituto, exibindo na contracapa o
seu logotipo (Imagem 1), ao contrário da ANTICOMUNISMO E AS PROPOSTAS
maior parte dos impressos que haviam
REFORMISTAS DO IPÊS
sido distribuídos no período imediata-
mente anterior ao golpe.
No aspecto material, as brochuras dos Embora no presente texto não possam
Cadernos apresentavam um tratamento ser apresentadas de forma detalhada as
editorial simples e impressão em papel análises que compõem os volumes da cole-
de menor qualidade, o que provavelmente ção, bem como a especificidade de cada
pode ser atribuído à necessidade de redu- tema e autor, vale a pena destacar alguns
zir os custos de produção e ampliar a aspectos que são reveladores da ideologia
tiragem das impressões. Observando o ipesiana e de seu projeto político para o
conjunto, nota-se uma identidade visual país. Observando as temáticas abordadas
comum. Na capa de fundo neutro tem na totalidade dos Cadernos Nacionalistas,
destaque, ao centro, o título da obra, destacam-se duas que eram recorrentes

Capa e contracapa
da 4ª edição
dos Cadernos
Nacionalistas.
Fonte: Reprodução
da autora

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em suas páginas: a ameaça comunista e sobre a infiltração de agentes comu-
as chamadas reformas de base. nistas internacionais nos mais diversos
De uma maneira geral, todos os Cader- órgãos e escalões do governo Goulart,
nos trabalharam com a difusão do anti- bem como em organizações da socie-
comunismo. Mas alguns serviram mais dade civil, dentre sindicatos, órgãos da
diretamente a este propósito, como é o imprensa, movimento estudantil e até
caso do terceiro número lançado pela mesmo em setores das Forças Armadas
coleção, Como lidar com os comunistas, e da Igreja. Além de inúmeras acusações
do influente economista liberal alemão nominais dirigidas a membros e lide-
Wilhelm Roepke, e do sexto número, ranças ligadas a esses setores sociais,
Estratégia e tática comunista para a a brochura traz, para fins didáticos, um
América Latina, do jornalista e militante organograma das “Organizações auxilia-
anticomunista peruano Eudócio Ravines. res do aparelho de subversão comunista
Ambos consistem em manuais práticos no Brasil”, representando visualmente
com o objetivo de identificar a esquerda as supostas ligações de 13 movimentos
com o totalitarismo e preparar o leitor sociais, partidos e sindicatos brasileiros
para um possível confronto com a “ameaça a organismos comunistas internacionais.
vermelha”. Os textos têm como premissa No Brasil, a caracterização da “ameaça
identificar os elementos históricos e des- externa” ganhou novo impulso no perí-
trinchar a “real” natureza dos regimes odo da Guerra Fria – em especial, após
comunistas, partindo da máxima de que a vitória da Revolução Cubana, em 1959.
é preciso conhecer as teorias e estraté- Durante o governo Goulart, essa ideia,
gias do inimigo para então combatê-lo. tal qual tipificada pela Escola Superior
Mas foi Infiltração comunista no Bra- de Guerra, saltou definitivamente para
sil, primeiro número lançado pela coleção, fora dos círculos militares. Assim, tomou
o que apresentou a proposta mais radica- força o discurso de que o país viveria um
lizada e direcionada ao público leitor bra- estágio “pré-revolucionário”, estando na
sileiro. O texto foi resultado de uma sele- mira dos “imperialistas vermelhos”. As
ção de artigos publicados em diferentes afirmações baseavam-se, na maior parte
números da revista Este & Oeste, a versão dos casos, no argumento de que a aliança
em espanhol da publicação anticomunista política estabelecida entre o presidente
editada quinzenalmente pelo Bulletin de João Goulart e o Partido Comunista do
l’Association d’Etudes et d’Informations Brasil (PCB) resultara na infiltração de
Politiques Internationales (Beipi). O jor- agentes a serviço do regime soviético
nal comandado por Georges Albertini era dentro dos próprios aparatos governa-
sediado em Paris, mas possuía sucursal mentais, que gradualmente estariam se
na Venezuela, de onde era difundida a transformando em “organizações subver-
panfletagem anticomunista e antissovi- sivas”. Embora fosse muito difícil afir-
ética com enfoque na América Latina. mar diretamente que Goulart era, ele
Para efeitos práticos, este volume próprio, um comunista, a associação de
elaborado pelo Ipês reunia denúncias sua imagem à “ameaça vermelha” que

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permeava o imaginário daquele mundo Em Reforma universitária, o autor Antô-


polarizado pela Guerra Fria bastava para nio Carlos Pacheco e Silva – psiquia-
construir o discurso de legitimação do tra, empresário e vice-presidente do Ipês
golpe de Estado: paulista – traça um diagnóstico das uni-
versidades brasileiras, apontando para a
“É inútil que o Sr. Goulart seja rico e não defasagem dos currículos e dos métodos
figure nas listas do Partido Comunista. pedagógicos vigentes em comparação
Isso não impede que desde seu advento aos “avanços da ciência e da tecnolo-
em 1961, o Presidente admitisse a formar gia moderna”, bem como para a falta de
parte das pessoas que o rodeiam, certas recursos que tornava os laboratórios de
figuras significativas que ali continuam pesquisa “obsoletos e anacrônicos”. Essa
e que, para os comunistas e a opinião crise, segundo o autor, se agravava pelo
comunizante, ocupam lugares escolhidos a comportamento dos próprios estudantes
fim de influenciar a política […]” (Infil- que, reunidos no movimento estudantil,
tração comunista no Brasil, 1964, p. 6). se ocupariam mais de questões políticas
e ideológicas que dos “deveres escola-
Ao lado dos textos propriamente antico- res”. De acordo com Pacheco e Silva
munistas, os Cadernos Nacionalistas tam- (2015, p. 8), a recusa dos estudantes em
bém dedicaram dois volumes ao tema das “reconhecer a autoridade dos mestres”
reformas de base, programa de desenvolvi- e “respeitar a hierarquia” implantaria a
mento econômico e social que, desde que desordem, criando um “ambiente tumul-
assumido como bandeira do governo João tuário e subversivo”.
Goulart, tornou-se o principal objeto da A solução apresentada no texto passa
disputa política mais imediata travada pelo pela promoção de uma educação técnica
Ipês. Embora se enquadrasse nos marcos e utilitária, voltada à qualificação dos
do modelo de desenvolvimento capitalista, estudantes “para o melhor aproveitamento
o projeto reformista do governo inter- do curso e da aplicação do ensino na
vinha em questões historicamente vitais vida prática” (Pacheco e Silva, 1965, p.
para as classes dominantes brasileiras, 4). Nesse sentido, a função primordial
tais como o latifúndio e a dependência das universidades, segundo o ipesiano,
do capital estrangeiro. Enquanto entidade seria não somente promover a reflexão
representante dos pontos de vista tradi- ou o crescimento intelectual, mas pro-
cionais da direita, competia ao Ipês dis- fissionalizar e qualificar tecnicamente a
putar o caráter das reformas, conferindo mão de obra para renovação das fileiras
a elas um conteúdo social alinhado aos empresariais e abastecimento dos quadros
seus interesses. da indústria nacional em expansão.
A educação foi um dos objetos de Espinha dorsal das disputas político-
análise nos Cadernos Nacionalistas. O -ideológicas da época, a questão agrária
quinto número lançado pela coleção se também mereceu atenção especial nos
dedicou a apresentar o projeto reformista Cadernos. O quarto volume da coleção –
do Ipês para a educação superior no país. O árduo caminho da reforma agrária –

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foi assinado por José Setzer, agrônomo e tes no país bastariam, na visão dos ipesia-
professor de geologia da USP responsável nos, para solucionar todos os problemas
pela elaboração do anteprojeto de reforma sociais do campo, sendo apenas neces-
agrária defendido pelo Ipês. Em essência, sária a implementação de duas medidas
o texto defende a manutenção do latifún- pontuais: “1) campanha de educacional da
dio e o emprego do capital privado como roça e 2) planejamento do uso racional
soluções para o desenvolvimento do campo do solo” (Setzer, 1964, pp. 20-1).
e para a industrialização e racionalização Embora não seja compatível com nossos
do plantio. Nas palavras do autor, as razões propósitos contrapor a posição do Ipês nos
do atraso no campo se deviam à “igno- Cadernos Nacionalistas àquelas manifesta-
rância”, ao “desleixo” e ao “nível cultural das pelo campo progressista por meio dos
demasiadamente baixo” dos trabalhadores Cadernos do Povo Brasileiro6, não há como
rurais brasileiros. Desse modo, dar terras deixar de notar a assimetria entre o texto
a todos que vivem no campo equivaleria a de Setzer, que deixa transparecer o caráter
“desorganizar e encarecer a produtividade fundamentalmente antipopular e autoritá-
agrícola, arruinando ainda o solo em um rio do projeto ipesiano, e o emblemático
ritmo catastrófico” (Setzer, 1964, p. 17). volume Que são as Ligas Camponesas?,
Conclui Setzer que se o povo “desis- no qual Francisco Julião, liderança das
tisse de uma vez de possuir terra pró- Ligas Camponesas, faz a defesa radical da
pria seria melhor para o país e para ele eliminação do latifúndio e de uma reforma
mesmo, pois poderia morar na fazenda agrária profunda e popular.
e, sendo trabalhador diligente e honesto, Enquanto as proposições difundidas nas
recomeçar a vida em bases mais sadias” páginas dos Cadernos do Povo Brasileiro,
(Setzer, 1964, p. 15). Assim, na utopia produzidas em consonância com as teses do
liberal propalada pelo autor, a parceria Iseb, buscavam fazer florescer as determi-
entre o latifundiário com “consciência nações de classe – de modo a favorecer a
social” e o trabalhador rural “diligente tomada de consciência e a organização das
e honesto” traria benefícios para ambos classes populares –, nos Cadernos Naciona-
os lados: ao passo que o primeiro desen- listas do Ipês acontecia justamente o contrá-
volveria a produção a partir de sua capa- rio, ou seja, eram realizados esforços para
cidade de investimento, melhorando a sua mascarar essas determinações, de modo a
vida mas também a de seus empregados, favorecer os interesses dos latifundiários
o segundo cederia sua força de trabalho e do capital estrangeiro.
para adquirir benefícios que não possuiria Desta forma, o discurso ipesiano se
por conta própria, caso fosse proprietário revestia de um verniz técnico, cientí-
de algumas poucas terras. fico e apolítico, que apagava, no plano
A retórica da conciliação de classes,
apresentada como solução técnica para
a reforma agrária, servia, no final das
6 Que já se encontram amplamente documentadas,
contas, para justificar a manutenção do estudadas e analisadas em pesquisas como a de An-
status quo. As terras devolutas já existen- gélica Lovatto (2013).

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da aparência, os interesses das classes a chegada desse bloco ao poder, quando


dominantes presentes na formulação de boa parte das propostas reformistas elabo-
suas diretrizes para o país, conferindo- radas nas estufas ideológicas do instituto
-lhes um marco de legitimidade. Mas foi adotada pelo novo regime. Um dos
um olhar mais atento revela que os ante- exemplos mais emblemáticos nesse sentido
projetos das reformas de base elabora- foi a aprovação, ainda em novembro de
dos pelo Ipês imprimiam ao modelo de 1964, da Lei da Reforma Agrária (mais
desenvolvimento nacional traços de uma conhecida como Estatuto da Terra), cujo
“modernização conservadora” (Moore texto era amplamente baseado nas reco-
apud Gorender, 1983) que, se por um mendações preparadas e divulgadas pelo
lado buscava requalificar o Estado bra- Ipês ainda no período Goulart.
sileiro e integrá-lo à ordem capitalista
internacional, por outro, garantia que A LUTA IDEOLÓGICA NO MERCADO
esse processo se desse sem a participa-
EDITORIAL DA DÉCADA DE 1960
ção popular e as consequentes transfor-
mações mais profundas das estruturas
de poder tradicionalmente estabelecidas. Da esquerda à direita, muitos editores
De modo geral, as visões do Ipês tam- encontraram em sua atividade uma forma
bém se caracterizavam por sua aliança de expressão política durante a crise que
ao latifúndio e ao imperialismo, isto é, culminou no Golpe de 1964. A dissemi-
pela aceitação da supremacia econômica, nação do pensamento político de esquerda
militar e cultural dos EUA e pela recusa entre os movimentos populares, artísticos
de qualquer proposta que visasse, por e intelectuais do país durante o intervalo
exemplo, disciplinar a entrada do capital democrático de 1945 a 1964 resultou na
estrangeiro ou controlar a abusiva remessa formação de um significativo campo edi-
de lucros para o exterior. Assim, muito torial progressista e em diversas inovações
embora o nacionalismo tenha sido adotado técnicas e materiais, cuja oferta visava
como slogan pelos Cadernos do Ipês e corresponder à relevância das manifesta-
por inúmeros grupos anticomunistas bra- ções que agitavam a cena artístico-cul-
sileiros, os acontecimentos de 1964 dei- tural da época e atender a uma procura
xaram patente que esse discurso tinha estabelecida pela formação política nos
um caráter meramente retórico. partidos e movimentos sociais (Reimão,
Por fim, vale também notar que as 2018). Como vimos anteriormente, teve
teses reformistas constituíram o lado pro- destaque nesse campo a figura de Ênio
positivo e programático da atuação do Silveira, cuja política editorial abriu um
Ipês. Através delas, fica evidente que a importante canal de difusão para as teses
elite empresarial-militar desenvolveu não dos intelectuais ligados ao projeto nacio-
apenas uma campanha estruturada para a nal-desenvolvimentista do Iseb.
tomada do Estado, mas também um pro- A renovação editorial liderada por Ênio
jeto coerente e coeso para governar o país na Civilização Brasileira trouxe em seu
(Dreifuss, 1981). Isso se confirmou com bojo um projeto de popularização do livro,

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orientado a fazer deste um produto des-
tinado às massas (Lovatto, 2013). Para
se ter uma ideia da disseminação des-
ses empreendimentos editoriais, estima-
-se que os 28 volumes dos Cadernos do
Povo Brasileiro, publicados entre 1962
e 1964, tenham ultrapassado a marca de
um milhão de exemplares, atingindo um
público amplo e variado. Esse número,
segundo Lovatto (2013), classifica a cole-
ção entre os maiores fenômenos editoriais
do país no século XX.
Por esse alcance até então sem prece-
dentes, os intelectuais e editores envol-
vidos nos projetos entraram na mira da
repressão política. Durante a ditadura,
Ênio Silveira “sofreu contínuos prejuízos
financeiros e dilapidação do patrimônio,
repetidas prisões e pelo menos uma ten-
tativa de assassinato” (Hallewell, 2012,
p. 588). Da mesma forma, os intelectuais
ligados ao Iseb foram duramente perse-
guidos. Como consequência da campa-
nha anticomunista liderada pelo Ipês, a
ameaça representada pelo Iseb tornou-se
tamanha aos olhos das classes médias
conservadoras, que seu prédio foi inva-
dido e depredado ainda em 1º de abril
de 1964. Com efeito, o golpe de Estado
também resultou na sua completa desin-
tegração institucional.
Por outro lado, o engajamento do Ipês
no processo que conduziu a este momento
foi largamente recompensado. Quadros
proeminentes do instituto ocuparam posi-
ções estratégicas em ministérios, empre-
sas estatais e diversos órgãos públicos
ao longo de todo o regime. Durante esse
período, o Ipês se transformou em um
importante mediador entre o Estado, no
qual tinha seus colaboradores em cargos-

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dossiê edição e política

-chave, e os grandes interesses privados, Contudo, o volumoso conjunto de publi-


dos quais seus membros eram represen- cações encorajado pela entidade não foi
tantes. Também continuou a atuar como fruto de uma demanda do público leitor
um centro de debate e elaboração de brasileiro, que, como fica patente pela
diretrizes governamentais e teve implan- experiência dos Cadernos do Povo Brasi-
tada grande parte de seus programas de leiro, mostrava uma clara preferência pela
reformas administrativas, constitucionais produção de viés progressista e demo-
e socioeconômicas. crático. Fadados ao fracasso comercial,
As atividades anticomunistas tampouco os livros da direita só se viabilizaram
cessaram após a vitória de 1964. O Ipês por conta dos incentivos de entidades
continuou a elaborar relatórios sobre a ou pessoas interessadas politicamente
“ameaça vermelha” para círculos empresa- em sua divulgação, o que reforça o
riais, militares e administrativos, de forma caráter eminentemente propagandístico
a justificar, por um lado, a “linha dura” desse conjunto bibliográfico. Embora
da repressão7 e, por outro, a necessidade os Cadernos Nacionalistas tenham
contínua de contribuições financeiras à representado um esforço de apropriação
entidade, que foi extinta apenas em 1972. e mimetização das formas de difusão
A ação editorial do Ipês foi iniciada do pensamento da esquerda, certamente
com o objetivo de se contrapor à cres- faltava à coleção, tanto em seus aspectos
cente quantidade de “livros esquerdizan- formais quanto conteudísticos, o brilho
tes” em circulação no início dos anos de intelectuais como aqueles do Iseb e
1960. Nessa “batalha pelas mentes”, o de editores como Ênio Silveira.
instituto acumulou um vasto arsenal de Em última instância, pode-se afirmar
publicações que atingiram diversas par- que a relevância cultural ou intelectual da
tes do território nacional e do exterior produção editorial do Ipês foi praticamente
graças ao investimento e à colaboração nula diante do esforço de interpretação teó-
dos órgãos diplomáticos estadunidenses e rica e de formação política da esquerda no
de dezenas de empresários do ramo edi- período e, consequentemente, de sua “rela-
torial que aderiram ao projeto político tiva hegemonia cultural” (Schwarz, 2009).
do instituto, como foi o caso do editor Como aponta Toledo (2004, p. 31), logo
Octalles Marcondes Ferreira 8 . após o golpe, “foram os livros e revistas
da Editora Civilização Brasileira – gra-
ças ao arrojo e à coragem intelectuais de
Ênio Silveira – que alcançavam reedições e
7 Há registros de que alguns membros do Ipês estive-
ram diretamente envolvidos no lado mais sórdido da sucesso de venda, não os panfletos e livros
repressão política e social, financiando aparatos de vi-
gilância como o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) largamente financiados por empresários e
e centros de tortura como a Operação Bandeirantes. pela Embaixada norte-americana”.
8 Cabe aqui considerar a ponderação de Vieira (1996, Apesar disso, os impressos promovidos
p.11), que circunscreve a colaboração de Octalles com
o Ipês exclusivamente na área editorial, não tendo pelo Ipês desempenharam naquele con-
havido de sua parte “[...] um engajamento mais inten-
so na mobilização das forças conservadoras antes de
texto uma função cujo valor histórico
1964 e tampouco durante a ditadura”. não pode ser imediatamente descartado

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por nós. Embora as ideias difundidas nas projetos políticos em questão: no caso
páginas dos Cadernos Nacionalistas e dos dos Cadernos Nacionalistas, a circulação
Cadernos do Povo Brasileiro se distanciem dos materiais se beneficiou da cadeia de
radicalmente, os dois projetos editoriais veículos de divulgação do Ipês, formada
convergiam quanto à intenção de inci- com o apoio e engajamento de líderes
dir diretamente nas questões centrais em políticos, empresários e associações das
debate na sociedade daquele momento, classes dominantes localizadas em várias
fornecendo ao público leitor subsídios para cidades do país; já os Cadernos do Povo
intervenção prática e teórica na realidade. Brasileiro tiveram grande alcance graças à
Parece clara a expectativa dos organiza- articulação com os movimentos populares
dores das coleções de que estas servis- e, em particular, com os Centros Popu-
sem como instrumentos de conscientização lares de Cultura da União Nacional dos
política e ideológica. Estudantes (UNE), que levava a coleção
No plano formal, ambos os Cadernos às capitais e ao interior do Brasil.
se aproximavam pelo esforço de comu- Dessa forma, para além do conteúdo
nicação com um público amplo, materia- em si, um olhar para a materialidade das
lizado através de uma linguagem direta condições de produção e circulação des-
e acessível e pelo formato de bolso das sas publicações pode ensejar uma leitura
publicações, que facilitava sua leitura e mais abrangente sobre a luta ideológica
circulação. Também possuíam em comum travada no contexto da década de 1960
o uso de estratégias de divulgação mas- e, em especial, sobre o tráfego que houve
siva em âmbito nacional, por meio da no plano simbólico e cultural entre os
mobilização das bases sociais ligadas aos diferentes projetos colocados para o país.

Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 71-86 • outubro/novembro/dezembro 2023 85


dossiê edição e política

REFERÊNCIAS

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Marcos Santos/USP Imagens

Instituto Roberto Simonsen e Franklin Book


Programs: relações internacionais
e políticas editoriais para um Brasil
“em desenvolvimento” (1965-1971)
Laura de Oliveira Sangiovanni
resumo abstract

Em 1965, foi criado o Instituto Roberto In 1965, Roberto Simonsen Institute was
Simonsen. O instituto era dotado created. The institute had a specific
de um setor específico destinado às sector dedicated to publications, the
publicações, o Centro de Bibliotecnia para Library Science Center for Development
o Desenvolvimento (CBD), em cujo rol de (CBD), whose list of activities included
atividades estavam incluídas as traduções translations of foreign books. Despite a
de livros estrangeiros. A despeito de notion of development aimed at solving
uma noção de desenvolvimento voltada “national problems”, the CBD acted in
Marcos Santos/USP Imagens

à solução dos “problemas nacionais”, accordance with Simonsen’s thinking


o CBD atuou em conformidade com o regarding the relationship between
pensamento de Simonsen a respeito national capital and foreign investments,
da relação entre capital nacional e depending on the partnership with a
investimentos estrangeiros, dependendo North American institution, Franklin
da parceria com uma instituição norte- Book Programs, to achieve its activities.
americana, o Franklin Book Programs, This article deals with the relations
para a consecução de suas atividades. between the two institutions and the way
Este artigo trata das relações entre as in which a mitigated nationalism, made
duas instituições e do modo como um compatible with the North American
nacionalismo mitigado, compatibilizado agenda during the cultural Cold War,
com a agenda norte-americana durante a defined the contours of the institute’s
Guerra Fria cultural, definiu os contornos editorial policies for the development of
das políticas editoriais do instituto para o an industrial Brazil.
desenvolvimento de um Brasil industrial.
Keywords: Roberto Simonsen Institute;
Palavras-chave: Instituto Roberto Franklin Book Programs; editorial policies;
Simonsen; Franklin Book Programs; developmentalism; cultural Cold War.
políticas editoriais; desenvolvimentismo;
Guerra Fria cultural.
N
o dia 25 de maio de 1948, sen, põe em relevo uma profícua discussão
Roberto Simonsen mor- historiográfica sobre o papel das fundações
reu em plena Academia na Guerra Fria cultural. O instituto valeu-se
Brasileira de Letras, no de uma parceria fundamental e ainda pouco
Rio de Janeiro, enquanto explorada pela historiografia1 com um pro-
recepcionava o primeiro-
-ministro da Bélgica, Paul
van Zuland, que estava 1 Sobre o Franklin Book Programs, conferir os artigos
“Publishing American Values…”, de Louise Robbins, e
em visita oficial ao Brasil “Books in the Cold War…”, de Trysh Davis (2013), e o
livro Taking books to the world…, de Amanda Laugesen.
(Barreto, 2017). Imedia- Sobre a atuação do programa no Brasil e, em particular,
tamente após o seu fale- sua relação com o Instituto Roberto Simonsen, conferir
trabalhos historiográficos tais como O livro no Brasil, de
cimento, a Federação das Laurence Hallewell, e a dissertação de mestrado Pági-
Indústrias do Estado de nas golpistas..., de Martina Spohr Gonçalves. Uma aná-
lise mais detida sobre a atuação do Franklin no Brasil
São Paulo (Fiesp) criou o Fórum Roberto Simon- está no livro Guerra Fria e política editorial... e no verbete
“Franklin Book Programs: Guerra Fria e imperialismo
sen, um espaço de discussão sobre as questões cultural norte-americano”, na plataforma Transatlantic
relacionadas ao desenvolvimento brasileiro, que, Cultures, ambos de Laura de Oliveira Sangiovanni.
a partir de 1965, passaria a se chamar Instituto
Roberto Simonsen (IRS), situado no Viaduto D.
Paulina, 80, 4º. andar, em São Paulo, de natureza
LAURA DE OLIVEIRA SANGIOVANNI
jurídica distinta do fórum, com maior autono- é professora de História Contemporânea na
mia financeira e voltado às atividades culturais. Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autora
de Guerra Fria e política editorial: a trajetória das
A criação do Fórum Roberto Simonsen e Edições GRD e a campanha anticomunista dos
de seu congênere, o Instituto Roberto Simon- Estados Unidos no Brasil (1956-1968) (Eduem).

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dossiê edição e política

grama não governamental norte-americano tituição patrocinadora e gestora do Golpe


chamado Franklin Book Programs, cujo Civil-Militar de 1964. Ambas haviam se
marco fundador foi um evento realizado tornado epicentros da presença do pro-
na Biblioteca do Congresso (Library of grama norte-americano no Brasil na virada
Congress), em Washington, D.C., em 1951, de 1964 para 1965, e a escolha do IRS foi
promovido por bibliotecários e editores justificada por Wilbur Knerr, diretor do
vinculados ao Comitê de Relações Inter- Franklin para a América Latina, porque a
nacionais (International Relations Commit- nascente fundação previa, no rol de suas
tee) da Associação Americana de Biblio- atividades, projetos de incentivo ao livro
tecas (American Library Association) e e à leitura, o que a compatibilizava com
ao Comitê de Comércio Exterior (Foreign os interesses do programa.
Trade Committee) do Conselho Americano Correntes de interpretação gramscianas
de Editores de Livros (American Book têm reforçado que, apesar de sua imagem
Publishers Council), que viria a se tor- de “imparcialidade científica, neutralidade
nar a Associação de Editores America- político-ideológica e de estarem acima
nos (Association of American Publishers). do mercado e independentes do Estado”
Dedicado à promoção do mercado editorial (Parmar, 2012, p. 2), as fundações foram
e ao incentivo às práticas de leitura durante fundamentais para defender um capita-
a Guerra Fria, o programa foi justificado lismo global reformado, organizado poli-
pela carência de livros nos países “em ticamente por um Estado de bem-estar
desenvolvimento”. Sua principal atividade social. Embora a ênfase de Parmar sejam
eram as traduções de livros originalmente as fundações norte-americanas, notada-
publicados no mercado editorial anglófono, mente Carnegie, Rockefeller e Ford, seu
mas o programa também se dedicava à argumento empresta substância para a
“publicação de revistas semanais, dicioná- análise de outras fundações e progra-
rios e enciclopédias; treinamento e apoio mas paraestatais dos Estados Unidos e
técnico a livreiros, editores, revisores, seus parceiros no exterior – intelectuais,
ilustradores e profissionais da indústria representantes das elites políticas e eco-
gráfica; realização de eventos associados nômicas de diversas partes do mundo, que
à produção editorial; e formação de biblio- ajudaram a construir e consolidar a hege-
tecas escolares” (Oliveira, 2022). monia norte-americana, o imperialismo e
O Instituto Roberto Simonsen era a dominação cultural. No caso específico
dotado de um setor específico destinado do Franklin, ele assumia como objetivo
às publicações, o Centro de Bibliotecnia fomentar “culturas editoriais nativas”
para o Desenvolvimento (CBD), em cujo (indigenous publishing cultures), através
rol de atividades estavam incluídas as tra- de parcerias com as elites dos países em
duções de livros estrangeiros. Ele havia que atuava. Seu convênio com o Instituto
sido escolhido como uma das duas sedes Roberto Simonsen é ilustrativo.
do Franklin Book Programs no Brasil: a Patrick Iber pondera, entretanto, que
outra era o Centro de Bibliotecnia (CB) do não é possível afirmar que esses repre-
Ipês, na Guanabara (Rio de Janeiro), ins- sentantes das elites intelectuais tenham

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atuado meramente como “marionetes” Fundado como continuidade do fórum,
do governo norte-americano. A Guerra quase duas décadas depois, o Instituto
Fria cultural definiu a agenda política e Roberto Simonsen também afirmaria
cultural da segunda metade do século, ideias dessa natureza. A noção de
estabelecendo condições de financiamento desenvolvimentismo patrocinada pelo
de pesquisa, oportunidades acadêmicas e instituto baseava-se num nacionalismo
profissionais, políticas de edição e cir- mitigado e seu estatuto jurídico o tornava
culação de livros e, antes de tudo, uma mais permeável para o desenvolvimento de
linguagem de base ideológica que opunha atividades, sobretudo culturais, com uso
o “mundo livre” aos regimes totalitários2 . de capital alheio, privado e estrangeiro.
A parceria com instituições norte-ameri- A despeito de uma noção de desenvolvi-
canas tornou-se atrativa para uma direita mento voltada à solução dos “problemas
acordante com as plataformas liberais, nacionais”, o CBD atuou em conformidade
mas também para uma centro-esquerda com o pensamento de Simonsen sobre a
(Iber, 2015). A Guerra Fria cultural, nesse relação entre capital nacional e investi-
sentido, envolveu artistas, intelectuais, mentos externos, dependendo da parceria
editores e políticos latino-americanos de com o Franklin Book Programs para a
diferentes matizes na segunda metade do consecução de suas atividades. Este artigo
século XX, justificada pela comum agenda trata das relações entre as duas institui-
de promoção do desenvolvimento regional. ções e do modo como um nacionalismo
Esses atores adotaram a perspectiva de compatibilizado com a agenda norte-a-
interpretação e a linguagem que dividiam mericana durante a Guerra Fria cultural
o mundo entre “norte e sul”, “centro e definiu os contornos das políticas edi-
periferia”, “desenvolvimento e subdesen- toriais do instituto para um Brasil “em
volvimento” e pactuaram com um projeto desenvolvimento”.
de modernização voltado à superação do Este artigo faz um percurso histórico
“atraso” latino-americano, por meio de das relações entre o Instituto Roberto
reformas políticas e sociais, industriali- Simonsen e o Franklin Book Programs,
zação e urbanização. buscando avaliar em que medida a parce-
ria e as políticas editoriais desenvolvidas
através dela corroboraram o pensamento
2 A própria construção da categoria “totalitarismo” tem de seu patrono. O artigo segue dividido
a Guerra Fria cultural como pano de fundo. Original- em três itens. O primeiro, “Roberto
mente associado à atuação dos impérios europeus,
notadamente o britânico, o léxico foi atualizado entre Simonsen: pensamento econômico, desen-
o final dos anos 1940 e o início dos anos 1950 pela volvimentismo, nacionalismo e capital
intelectualidade judaica europeia, entre ela o francês
Raymond Aron e a alemã Hannah Arendt, assumindo estrangeiro”, apresenta uma análise, a
a conotação que ainda carrega, associada à Alemanha
nazista e à União Soviética sob Stalin (Losurdo, 2006). partir da literatura, de aspectos do pen-
Após os trabalhos de Frances Stonor Saunders (1999; samento de Roberto Simonsen associa-
2013), os usos políticos da tese de Arendt durante a
Guerra Fria ficaram patentes. O livro Origens do to- dos ao desenvolvimentismo e à articu-
talitarismo tornou-se um dos maiores best sellers do lação entre interesse nacional e capital
século, traduzido e distribuído em mais de 170 países,
graças ao patrocínio oculto da CIA. estrangeiro. O item dois, “A instalação

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do Instituto Roberto Simonsen: São Novo, esteve vinculado ao Conselho de


Paulo, 1966”, trata do anúncio público Expansão Econômica do Estado de São
da inauguração do IRS, por ocasião do Paulo, ao Conselho Nacional de Política
“Dia da Indústria” e do aniversário de Industrial e Comercial e ao Centro das
falecimento de seu patrono. O item 3, Indústrias do Estado de São Paulo. Após
“Instituto Roberto Simonsen e Franklin 1945, idealizou o chamado “sistema S”,
Book Programs: relações internacionais e partindo da fundação do Senai e do Sesi,
políticas editoriais”, recupera o histórico órgãos ligados à Federação das Indús-
de relações entre o IRS e o Franklin, trias e destinados aos aspectos sociais do
enfatizando a busca do programa nova- trabalho na indústria. A partir de 1946,
-iorquino por parceiros locais, a fim de como senador, ampliaria a crítica à luta
fortalecer as “culturas editoriais nativas”, de classes como um elemento fragmen-
e algumas das publicações tornadas pos- tador da sociedade brasileira e apoiaria
síveis por meio do convênio. a cassação dos mandatos comunistas e o
fechamento do Partido Comunista Brasi-
leiro em 1947 (Carone, 1971).
ROBERTO SIMONSEN: PENSAMENTO Suas atividades como empresário e
ECONÔMICO, DESENVOLVIMENTISMO, político foram entrecruzadas por uma
NACIONALISMO E CAPITAL ampla obra intelectual, que lhe rendeu
referências no campo da história econô-
ESTRANGEIRO
mica do Brasil, chegando a ser chamado
de “intelectual orgânico dos industriais”
A homenagem da Fiesp e sua urgên- (Barreto, 2017). Essa produção começou
cia em cristalizar a memória de Roberto a partir da década de 1930 e, ao mesmo
Simonsen, através do fórum, demonstra- tempo em que tinha um caráter “imedia-
vam o propósito de conservar as ideias tista” e nacionalista, voltado à solução dos
de um cânone da indústria nacional, que, assim chamados “problemas brasileiros”,
nas palavras de Curi e Lima (2015), havia também se voltou para um interesse his-
participado da esfera pública brasileira tórico e para o alcance dos temas globais.
em múltiplas dimensões. Em 1928, por Para Edgar Carone (1971), o que torna a
meio da criação do Centro das Indústrias contribuição de Simonsen “grandemente
de São Paulo (Ciesp), Roberto Simon- superior à da maior parte dos nossos teó-
sen afirmou-se como líder da classe ricos anteriores do pensamento industrial”
industrial paulista. Já àquele momento, é que, para ele, “conhecimento histórico é
demonstrava preocupação com a função também análise dos fatores geográficos e
social da indústria, a noção de desen- demográficos, econômicos e financeiros,
volvimento assentada nos interesses de problemas sociais etc.”.
nacionais e uma busca pela harmoniza- A literatura tem se empenhado em
ção do capital e trabalho que desaguaria demonstrar que Roberto Simonsen pro-
em um ardoroso anticomunismo (Leão, duziu um pensamento original sobre o
Pinto & Silva, 2015). Durante o Estado desenvolvimento brasileiro, ainda que

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influenciado por teorias em voga em o histórico dos movimentos populacio-
países como a Alemanha e os Estados nais para determinar políticas migratórias
Unidos, representando mais do que uma capazes de mitigar problemas sociais e
mera antítese política ao economista libe- produtivos. Para Simonsen, a preocupação
ral Eugênio Gudin, seu contemporâneo. com a questão populacional deveria ser
Conforme Cavalieri e Curado (2016), a permanente, a fim de evitar o desperdí-
ênfase na realização de estudos empíricos cio do escasso capital nacional e favore-
sobre os fenômenos sociais para lastrear cer a migração do campo para as zonas
cientificamente posteriores políticas industriais urbanas. Enquanto São Paulo
públicas afinava Simonsen à filosofia sofria com carência de mão de obra, por
do controle social, amplamente em voga exemplo, as regiões Norte e Nordeste,
nos Estados Unidos no período. Um além do estado de Minas Gerais, concen-
outro aspecto era a defesa do planeja- travam uma população ociosa em áreas
mento econômico como instrumento de de agricultura decadente. Nessa direção,
transformação da economia brasileira, o argumento pró-indústria de Simonsen
contrapondo-se à ideia de que o plane- reverberava claramente o dos norte-ame-
jamento era típico de regimes autoritá- ricanos (Cavalieri & Curado, 2016).
rios. Se, entre os autores norte-america- Conforme Leão (2015), havia nesse
nos, havia uma ênfase no planejamento período três correntes desenvolvimentis-
como forma de garantir a estabilidade tas. A primeira, antiliberal e favorável
econômica, Simonsen compreendeu que ao apoio estatal à acumulação privada,
ele também representaria uma forma de abrigava distintas concepções sobre o
superação da pobreza no Brasil. nível de participação estatal e do capital
Nessa direção, o estudo das populações estrangeiro. A segunda consistia em um
tornou-se, para Simonsen, como para os desenvolvimentismo “não nacionalista”,
norte-americanos, uma preocupação cen- que defendia o apoio estatal à industria-
tral. No trabalho Recursos econômicos lização, mas advogava pela prevalência
e movimentos das populações, proferido dos interesses e das ações da iniciativa
originalmente como palestra realizada privada. Roberto Simonsen foi o mais
em Washington, em 1940, e publicado importante representante da primeira
no Brasil em 1943, Simonsen se colocava corrente, cujas ideias foram a base para
em diálogo com pesquisas em curso na o projeto de constituição de uma junta
Escola Livre de Sociologia e Política de nacional de planificação no Conselho
São Paulo (ELSP), que ele havia ajudado Nacional de Política Industrial e Comer-
a criar, e com estudos norte-america- cial, proposta por ele e pelos ministros
nos como os de Carter Goodrich (1935; Marcondes Ferraz e San Thiago Dantas,
1936). O argumento consistia em que as em 1944. À segunda corrente estavam
migrações eram resultado do desequilí- vinculados Horácio Lafer, Lucas Lopes,
brio entre os recursos econômicos e o Valentin Bouças, Ary Torres e Roberto
excesso de população em um determinado Campos, que abandonaria paulatinamente
lugar. Nesse sentido, era tarefa estudar a tônica nacionalista e, na década de 60,

Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 87-104 • outubro/novembro/dezembro 2023 93


dossiê edição e política

assumiria claramente uma posição liberal. adoção de uma perspectiva nacionalista e


A terceira vertente, nacionalista, defendia não cosmopolita. Nessa direção, o indus-
a atuação estatal em setores estratégicos trial paulista incorporava “elementos do
e tinha em Celso Furtado seu principal historicismo, do nacionalismo e do refor-
expoente (Leão, Pinto & Silva, 2015). mismo social”.
O desenvolvimentismo patrocinado pela No que tange às relações internacio-
elite industrial brasileira, afigurado no nais, a noção de desenvolvimento no pen-
pensamento de Roberto Simonsen, nesse samento de Simonsen conjugava crítica
sentido, acompanhava a definição de Biels- ao imperialismo e defesa da cooperação
chowsky (apud Leão, Pinto & Silva, 2015) internacional, levando a um nacionalismo
e se baseava nos seguintes princípios: mitigado. Nesse sentido, este artigo con-
corda com Carone (1971) que nacionalismo
a) a industrialização integral é a via de não significa, na obra de Simonsen, xeno-
superação da pobreza e do subdesen- fobia, “mas tomada de posição consciente
volvimento brasileiro; a favor do progresso de sua classe e dos
b) não há meios de alcançar uma indus- interesses brasileiros”. Nessa direção, o
trialização eficiente e racional no Bra- industrial confrontava as afirmações de
sil através das forças espontâneas do que a indústria brasileira era artificial e
mercado; por isso, é necessário que o dependia de matéria-prima estrangeira,
Estado a planeje; dos supostos conflitos entre a agricultura
c) o planejamento deve definir a expan- e a indústria, e defendia a cooperação
são desejada dos setores econômicos entre campo e cidade como chave para o
e os instrumentos de promoção dessa desenvolvimento nacional. Embora crítico
expansão; e ao imperialismo, defendia o uso de capi-
d) o Estado deve ordenar também a execu- tais externos e sua aplicação em bene-
ção da expansão, captando e orientando fício das duas partes, postulando que a
recursos financeiros e promovendo inves- substituição de produtos antes importados
timentos diretos naqueles setores em que da Europa por produtos norte-americanos
a iniciativa privada seja insuficiente. favorecia o desenvolvimento industrial dos
Estados Unidos, mas não do Brasil. Nessa
Fica aí denotada sua perspectiva esta- direção, os acordos de cooperação eco-
tizante, que ele chama claramente de nômica deveriam ser firmados tendo em
intervencionismo do Estado, como finan- vista “uma larga, permanente e recíproca
ciador e agente de uma diplomacia que interpenetração de atividades produtoras e
garantisse o desenvolvimento. Para Curi e de consumo, segurança que deveria cons-
Lima (2015), Simonsen era um pensador tituir o seu principal objetivo [...]”, a fim
de múltiplas referências, e sua relação com de elevar as rendas nacionais dos dois
autores germânicos como Friedrich List países (Carone, 1971).
e Gustav Schmoller o aproximou de uma
linhagem do pensamento econômico mais “[...] ao invés de servilmente copiarmos
crítica ao livre mercado, conduzindo-o à os modelos estranhos, com a preocupa-

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ção de implantar aqui a grande indús- interesse dos trabalhadores, razão pela
tria, sem corrigir seus inconvenientes, qual o sistema S cumpriria o papel de
aproveitemos apenas os seus ensinamen- promover o desenvolvimento (qualifica-
tos técnicos, e adotemos os necessários ção profissional, lazer, saúde) dos traba-
corretivos de ordem prática e social, para lhadores, corroborando para o desenvol-
evitar a transplantação correlata de males vimento nacional. Esse objetivo poderia
verificados alhures do supercapitalismo “ser alcançado sem antagonismos violentos
industrial, desenvolvido ao sabor da lei do desde que se promova, inteligentemente,
domínio do mais forte” (Simonsen apud a cordial operação dos empregados, inte-
Leão, 2015 [1973]). ressando-os na produção” (Leão, Pinto
& Silva, 2015). Ainda segundo Leão, as
Simonsen defendeu que o Brasil e ações do Sesi combinavam-se “com um
a América Latina fossem incorporados paternalismo patronal e uma desejada soli-
ao Plano Marshall, a fim de garantir o dariedade entre capitalistas e trabalhado-
maquinário importado para auxílio no res” (Leão, Pinto & Silva, 2015). O Sesi
aprofundamento da nossa industrialização. e o Senai representaram, durante a vida
O industrial lamentava que o programa de Simonsen, instituições centrais para
da Comissão Econômica, que elaborou esse projeto: o combate à luta de classes.
o Plano Marshall, não tivesse incluído a A criação do fórum, imediatamente após
América Latina, o que produziria impac- sua morte, e do instituto, muitos anos
tos positivos na indústria, e justificava mais tarde, foi justificada como um cha-
seu pensamento realçando a admiração mado da classe industrial paulista para
pelos valores civilizacionais, democráti- a “plenitude de suas responsabilidades”,
cos e religiosos europeus, substrato das para a promoção de atividades culturais
instituições políticas, sociais e culturais que consagrassem um “humanismo indus-
latino-americanas, argumentando que os trial” no Brasil.
norte-americanos deveriam atender às
“legítimas aspirações, para que a valo- A INSTALAÇÃO DO INSTITUTO
rização do homem latino-americano seja
ROBERTO SIMONSEN:
propugnada simultaneamente com o soer-
guimento econômico do homem europeu” SÃO PAULO, 1966
(Simonsen apud Leão, 2015 [1973]).
O uso do capital estrangeiro para pro- No dia 17 de maio de 1966, o jornal 3
mover o desenvolvimento nacional foi Diário de São Paulo anunciou a iminente
acompanhado por uma defesa da har-
monização entre capital e trabalho que
tornou Simonsen um ávido anticomunista, 3 Os documentos referenciados neste artigo estão
novamente alinhando o industrial paulista abrigados no fundo Franklin Book Programs, identi-
ficado como MC057, na Mudd Manuscript Library da
às premissas norte-americanas na chamada Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Sobre
o Instituto Roberto Simonsen, especificamente: série
Guerra Fria cultural. Para Simonsen, o 2, subsérie 3, caixa 84, pasta 15 (“Instituto Roberto
interesse da nação se confundia com o Simonsen 1966-1971”).

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instalação do Instituto Roberto Simonsen tude de suas responsabilidades”, com as


com a manchete “Fiesp/Ciesp comemora- preocupações culturais.
rão o ‘Dia da Indústria’ com instalação O instituto, no entanto, ainda conforme
do Instituto Roberto Simonsen”. A come- as palavras do presidente, Noschese, não
moração, que se daria no dia 25 daquele havia “caído do céu”, mas derivava do
mês, coincidia com a data de falecimento Fórum Roberto Simonsen, que havia 18
do “patrono da indústria brasileira”, “um anos debatia “problemas de toda ordem”
dos iniciadores do esforço extraordiná- e propunha “expedientes resolutivos con-
rio” que se traduzia, àquele momento, dizentes com nossa [do Brasil] formação
“no [igualmente] extraordinário parque histórica”. Entre as atividades do fórum,
manufatureiro nacional”. A nascente ins- estavam o patrocínio de cursos e a edição
tituição seria responsável por “realizar de livros, que “foram um fator impressivo
amplo programa cultural, de pesquisas no panorama cultural do país”. “Limita-
tecnológicas, debates, estágios e treina- ções estatutárias”, contudo, haviam dei-
mentos e de bibliotecnia para o desen- xado muito por fazer, e a fundação do
volvimento social e econômico, especial- instituto, uma “entidade civil, com perso-
mente na área industrial”. nalidade jurídica de direito privado e sem
No dia 26 de maio seguinte, sob a fins lucrativos”, potencializaria o alcance
manchete “Instituto Roberto Simonsen: das atividades culturais do complexo das
marco na vida espiritual brasileira”, o instituições da indústria paulista.
mesmo jornal enfatizava o discurso de A “consciência industrializada” fazia
Raphael Noschese, presidente da Comércio parte do que o presidente designava
e Indústria Sousa Noschese, da Companhia “humanismo industrial”, a saber:
Hotéis e Imóveis S.A. e da Empresa de
Mineração Esperança, que, desde 1962, “[...] uma espécie de redescobrimento
presidia o complexo Fiesp/Ciesp, defi- do homem como homem, sendo a con-
nindo a nascente fundação como “uma sequência a afirmação da plenitude
entidade cultural dirigida e estipendiada humana enquanto pessoa, na acepção
pela indústria” e, colocando-a ao lado do cristã do termo. Valorizando ao máximo
Sesi e do Senai, postulava que as três, o ser humano, limando as arestas dos
“à maneira da Constelação Astral – o conflitos estamentais, harmonizando os
Cruzeiro do Sul – três estrelas norteiam indivíduos entre si, independentemente
os propósitos desta casa: o da paz social, das classes sociais, buscamos um ponto
através do Sesi, o da formação de mão de equilíbrio”.
de obra especializada, por intermédio do
Senai, e o da formação de uma consciên- Sob esse argumento, cabia ao IRS,
cia industrializada, mediante o Instituto como ferramenta para a consecução das
Roberto Simonsen”. O jurista e professor “nobres causas patrocinadas pelos homens
da USP Miguel Reale argumentou que, da indústria paulista”, adotar como meta
após o Sesi e o Senai, chegava o momento “a difusão do hábito da leitura em círcu-
de a indústria chamar para si “a pleni- los populacionais cada vez mais amplos”.

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Mário Barroso Ramos, que assumia para o progresso material e espiritual do
como diretor executivo do instituto, afir- país. Não mencionavam, por outro lado,
mava, em discurso proferido na mesma a existência de um importante parceiro
ocasião e reproduzido em jornal, que do instituto, cuja aproximação com a elite
“era objetivo promover edições de livros industrial paulista antecedia em alguns
técnicos, manuais, monografias, ensaios anos a comemoração de 1966: o Franklin
etc.: estimular a formação por promoção Book Programs.
de bibliotecas, especialmente bibliotecas
de empresas, a formação por promoção
direta, ou através de convênios, do res- INSTITUTO ROBERTO SIMONSEN
pectivo pessoal, inclusive mediante con- E FRANKLIN BOOK PROGRAMS:
cessão de Bolsas de Estudo”. O diretor RELAÇÕES INTERNACIONAIS
executivo assumia, ainda, a importância
E POLÍTICAS EDITORIAIS
de retomar a publicação da Revista de
História Econômica, cuja breve publica-
ção havia sido iniciada e interrompida Em 4 de agosto de 1965, o complexo
em 1963, ainda sob a vigência do fórum. constituído pela Federação das Indústrias
Por isso, existiria na estrutura orga- do Estado de São Paulo, a Fiesp, pelo
nizacional do instituto um setor especí- Centro das Indústrias do Estado de São
fico dedicado às publicações de livros, o Paulo, o Ciesp, pelo Departamento Regio-
Centro de Bibliotecnia para o Desenvolvi- nal de São Paulo do Serviço Social da
mento, a ser presidido por Mário Toledo Indústria, o Sesi, e pelo Departamento
de Moraes e cujo vice-presidente seria de São Paulo do Serviço Nacional de
Thomás Aquino de Queiroz. Além deles, Aprendizagem Industrial, o Senai, fez
seriam membros do CBD Júlio Sauer circular um convite para a inauguração
Broni de Toledo, Maria Brás, Arnaldo da Fundação Roberto Simonsen (Ciesp/
Magalhães de Giácomo e o general Pro- Fiesp), razão social do Instituto Roberto
pício Machado Alves. Simonsen. Em sua Escritura de Consti-
A despeito da inauguração formal tuição, redigida em duas línguas, portu-
em 1966, o instituto havia sido estabe- guês e inglês, a nascente fundação, uma
lecido aos 5 de agosto do ano anterior e, entidade civil sem fins lucrativos, previa
àquele momento em que era formalizado a existência de uma divisão editorial, de
perante a sociedade brasileira, empossava documentação e biblioteconomia em sua
os membros do seu conselho diretor e estrutura organizacional. Suas ativida-
conselhos consultivos e departamentais. des seriam: financiamento de pesquisas
Curiosamente, as reportagens que men- interessadas na solução dos “problemas
cionaram a comemoração e a instala- nacionais”; de eventos acadêmicos sobre
ção do instituto, baseadas nos discursos administração e sobre o mundo do tra-
proferidos pelos seus diretores, focali- balho, que aproximassem a universidade
zavam o papel cultural do instituto em da indústria, ao tempo em que encami-
corroborar as estratégias do sistema S nhassem possibilidades de resposta a

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desafios que se impunham ao desenvol- projetos editoriais já encaminhados naquele


vimento econômico e social do Brasil; primeiro ano de parceria:
preparação de mão de obra capacitada
nas áreas de ciências sociais e econô- “Como é de conhecimento de V. S. esta-
micas, programação e administração de mos absolutamente confiantes nos resulta-
empresas; edição de livros afinados com dos que em prol da publicação e difusão
os princípios do instituto; formação de do livro, como elemento primordial para
bibliotecas; oferta de bolsas de estudos o desenvolvimento cultural e econômico
e organização de prêmios para pesquisas do país, advirão do Centro de Biblio-
de relevo, que pudessem inspirar estra- tecnia para o Desenvolvimento (CBD),
tégias para o desenvolvimento nacional órgão departamental do Instituto ‘Roberto
(Fundação Roberto Simonsen [Escritura Simonsen’. [...] Estas breves considerações,
de Constituição da Fundação Roberto que reputamos auspiciosas, são feitas para
Simonsen], 1965). melhor ressaltar o significado da valiosa
O Centro de Bibliotecnia para o Desen- e apreciada cooperação do Franklin Book
volvimento faria parte da Divisão Edito- Programs, cuja integração no Centro de
rial, Documentação e Bibliotecnia, uma das Bibliotecnia para o Desenvolvimento
três que organizariam o instituto. As duas propiciou ao órgão realizar atividades
outras eram Estudos Econômicos, Sociais que são da maior importância para sua
e Políticos e Cursos, Seminários, Confe- dinamização programática já no corrente
rências e Bolsas de Estudos. Na Escri- exercício e sobretudo no ano próximo”
tura de Constituição, o convênio do CBD (Moraes [Carta a Wilbur Knerr], 16 de
com o Franklin era claro: do programa novembro, 1966).
norte-americano adviria a maior parte dos
recursos para custeio das atividades edi- Em 30 de agosto daquele mesmo ano,
toriais, em um conjunto de subvenções, Mário Barroso Ramos havia escrito para
doações e contribuições. Essa é umas das Wilbur Knerr dando conhecimento sobre
razões pelas quais o instituto foi criado o CBD. Ao que parece, entretanto, trata-
em substituição ao antigo fórum, dotado va-se de mera formalidade, uma vez que
de personalidade jurídica própria, inde- o Franklin já era representado no cen-
pendente de Fiesp, Ciesp, Sesi e Senai, tro pelo general Propício Machado Alves,
que eram paraestatais e, portanto, rece- diretor assistente da Ao Livro Técnico
biam recursos do governo federal brasi- Editora e também interlocutor do pro-
leiro. Assim, embora o intercâmbio entre grama norte-americano com o Centro de
o instituto brasileiro e o programa norte- Bibliotecnia do Ipês. Naquela ocasião,
-americano tenha, de fato, se iniciado em Ramos solicitava a Knerr o pagamento
1965, ele só seria consolidado e publici- dos direitos autorais do livro The com-
zado em 1966, quando a documentação ming age of wood, justificando a demanda
de registro do instituto foi concluída. Ao sob o argumento de que a publicação no
final daquele ano, Toledo escreveria para Brasil tinha finalidade “técnico-cultural”
Wilbur Knerr agradecendo pelo apoio aos e não “comercial”.

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Em 23 de maio de 1967, Vicente Chia- país” criava condições desfavoráveis para
verini, engenheiro e professor da Escola o início das atividades (Oliveira, 2016;
Politécnica da USP, além de diretor exe- 2022; 2023). Após o Golpe de 1964, o
cutivo do CBD, enviaria nova correspon- Franklin retomou os contatos que havia
dência ao Franklin, solicitando o paga- iniciado antes, assegurando um conjunto
mento de direitos autorais para publicar de parcerias importantes, entre elas, as
3 mil exemplares de The comming age of editoras Ao Livro Técnico, Artes Gráficas
wood, alegando que o livro favoreceria o Gomes de Souza, Atheneu, Companhia
uso de madeira na indústria. O pedido foi Editora Nacional, Cultrix, Dominus, Edi-
atendido e, na ocasião, Knerr aproveitou tora da Universidade de São Paulo, José
para lembrar que, dada a natureza das Olympio, Edgard Blucher, Empresa Grá-
atividades previstas para o CBD, os proje- fica O Cruzeiro, Globo, Guanabara Koo-
tos do programa norte-americano cumpri- gan, Lidador, Melhoramentos, Mestre Jou,
dos através do centro não levariam o seu Pioneira e Record, além da Associação
nome, mas o nome do Instituto Roberto Brasileira de Técnicos Gráficos (ABTG),
Simonsen. A clandestinidade não era uma das Escolas Profissionais Salesianas e
premissa das atividades do Franklin, mas do Instituto Brasileiro de Bibliografia e
esse parece ter sido um acordo entre as Documentação (IBBD). A lista dos livros
duas instituições, a fim de salvaguardar publicados através do programa em língua
a imagem de independência cara ao ins- portuguesa está disponível na Divisão de
tituto brasileiro. Mesmo assim, os livros Livros Raros da Biblioteca do Congresso
que resultaram do acordo entre as partes Americano e pode ser consultada online.4
traziam, na página de informações técni- Em São Paulo, os principais parceiros
cas, acima da ficha catalográfica, a ano- do Franklin, além do IRS, eram Mário
tação de que resultavam da colaboração Fittipaldi, diretor da Editora das Américas
do Franklin Book Programs. e presidente da CBL; Arnaldo Magalhães
Embora o início das atividades do IRS de Giácomo, administrador de vendas da
e do Franklin tenha se dado em 1965, Companhia Melhoramentos; Thomaz Aquino
a primeira sondagem do programa nor- de Queiroz, diretor editorial da Companhia
te-americano havia acontecido em 1961. Editora Nacional, e Enio Guazzelli, diretor
Naquele ano, a primeira missão do pro- administrativo da Livraria Pioneira. Foi
grama foi enviada à América Latina, assim através dessas relações que o programa
como à África Subsaariana, patrocinada nova-iorquino assegurou a publicação de
pela Usaid e pela Fundação Ford. Na oca- títulos tais como: Offset – princípios bási-
sião, o programa identificou lideranças do cos de impressão, de Charles Latham,
Sindicato Nacional dos Editores de Livros e Processos de produção de chapas, de
(Snel) e da Câmara Brasileira do Livro Robert Reed, ambos publicados em par-
(CBL), do Instituto Roberto Simonsen e
do Ipês, empresários e editores, mas adiou
sua entrada efetiva no país, alegando que 4 Disponível em: https://www.loc.gov/rr/rarebook/pdf/
a situação de “instabilidade política do FBPPortuguese.PDF. Acesso em: 15/10/2023.

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ceria com a Associação Brasileira de como se pode notar no livro Entrosamento


Técnicos Gráficos (que funcionava no universidade – indústria – setor químico,
mesmo prédio que o IRS, no Viaduto publicado pelo instituto em 1971. O IRS
D. Paulina, 80) e o segundo também em cumpria, assim, ainda que timidamente,
parceria com o Ipês-GB; um guia com dado o pequeno volume de títulos que
bibliografia universitária (obras de nível chegou a publicar, a missão de atualizar
superior), selado pela Companhia Editora e manter vivas as ideias de seu patrono.
Nacional; o livro Ensino e aprendizagem
nas escolas médicas, de George Miller,
pela Companhia Editora Nacional e pela CONSIDERAÇÕES FINAIS
Editora da Universidade de São Paulo,
com recursos do Fundo Commonwealth O Franklin Book Programs foi encer-
I; Geografia de população, de Jean Beau- rado em 1978 e suas últimas publicações
jeu-Garnier, e Populações brasileiras, de na América Latina datam de 1973. A crise
F. M. Salzano e N. Freire Maia, ambos do programa havia tido início em mea-
pela Companhia Editora Nacional e pela dos da década de 1960. Em 1967, Datus
Editora da Universidade de São Paulo, C. Smith, o mais importante diretor da
com recursos do The Population Council; história do Franklin, aposentou-se, em
Entrosamento universidade – indústria um momento que coincidiu com a redu-
– setor químico, publicado pelo próprio ção drástica dos recursos destinados ao
IRS após realização de um seminário programa pelo governo norte-americano.
interno; o Guia dos pais na escolha de Nesse mesmo período, teve fim o convênio
livros para crianças, de Nancy Larrick, do programa com a Usaid e a Fundação
também publicado pelo próprio IRS. Ford, que havia garantido, no início dos
Fundamentado nas teorias da moder- anos 1960, sua entrada na África Sub-
nização, amplamente em voga em círcu- saariana e na América Latina. A duração
los políticos e intelectuais americanos da Guerra do Vietnã e os desgastes eco-
do período, o projeto do Franklin Book nômicos que ela suscitou foram fatores
Programs admitia, portanto, a relação importantes na busca pela redução dos
com as elites locais como uma forma gastos públicos nos Estados Unidos, espe-
de assegurar a formação de lideranças, cialmente com os chamados “programas
o que, no caso específico do programa, culturais”, de cuja eficácia começava-se
afigurava-se através da atenção às “cul- a duvidar àquele momento. Em 1972, o
turas editoriais nativas”. Disso decorre programa criou a campanha “Friends of
a prioridade conferida à Fiesp como um Franklin”, que tinha como objetivo arre-
dos loci de sua atuação no Brasil. Além cadar doações de pessoas comuns para
disso, a publicação de manuais e livros mantê-lo em funcionamento (Laugesen,
técnicos indicava a clara relação estabe- 2017). Essas datas coincidem com a docu-
lecida pelo programa – e sobretudo pelo mentação encontrada sobre a presença do
Instituto Roberto Simonsen – entre letra- Franklin Book no Brasil. Ele finda em
mento e formação de mão de obra, tal 1971, de maneira mais ou menos abrupta,

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sem deixar entrever grandes motivações como atuais e relevantes para o contexto
internas para o fim da atuação do pro- dos anos 1960. Se, 20 anos antes, Simon-
grama no país. sen havia buscado nas teorias norte-a-
Nos seis anos em que permaneceu no mericanas respaldo para desenvolver um
Brasil, o Franklin publicou um número pensamento sobre o Brasil assentado na
expressivo de obras, mas a maior parte lógica do controle social, do planejamento
delas foi viabilizada através do Ipês e das e do imbricamento entre conhecimento
editoras da Guanabara. Foi através desse e política, àquele momento, quando as
convênio que o programa patrocinou, por teorias da modernização projetavam-se
exemplo, o projeto Bibliotecas Pré-Clínicas, nos Estados Unidos, afirmando a oposição
uma parceria com a Diretoria de Ensino entre sociedades tradicionais e moder-
Superior do Ministério da Educação e nas e imprimindo sobre elas o rótulo de
Cultura (Desu-MEC) para o provimento “desenvolvidas”, “subdesenvolvidas” ou
das bibliotecas universitárias de saúde de “em desenvolvimento” (Gilman, 2007),
todo o país com traduções de livros nor- as teses desenvolvimentistas continuavam
te-americanos (Oliveira, 2023). O Centro tendo forte apelo no Brasil.
de Bibliotecnia para o Desenvolvimento O nacionalismo mitigado de Simon-
do Instituto Roberto Simonsen teve uma sen, que admitia a importância do capital
atuação relativamente tímida. Dedicou-se estrangeiro para o desenvolvimento nacio-
a dois livros sobre artes gráficas, em par- nal e aspirava à ampliação do Plano Mar-
ceria com a Associação Brasileira de Téc- shall para contemplar também a América
nicos Gráficos, estabeleceu um convênio Latina, encontrava eco na política externa
com a Editora da USP para publicação norte-americana do período, que buscava
de dois livros sobre demografia e política ressonância nas elites nativas e entendia
de populações, produziu alguns guias e seu papel como fundamental para o ali-
um livro baseado em evento sobre indús- nhamento do Sul global às plataformas
tria química, entre outros. Produziu uma do chamado “mundo livre”.
campanha de incentivo ao livro idealizada A Guerra Fria cultural, com efeito,
pela agência de publicidade norte-ameri- envolveu o aparato diplomático dos Esta-
cana McCann-Erickson (Oliveira, 2015). dos Unidos e um conjunto de atores, entre
Embora representassem “pálidas ini- eles, fundações norte-americanas e estran-
ciativas num Brasil repleto de favelas geiras, responsáveis por afirmar a ideia
urbanas e más condições de vida rural” de que o capitalismo podia ser “melho-
(Leão, Pinto & Silva, 2015), no entanto, rado”, de que o comunismo deteriorava
o Instituto Roberto Simonsen realizou o as relações sociais ao conceber a luta de
projeto a que se propunha. Gozou de seu classes como motor da história, e defendia
estatuto jurídico, valeu-se dos recursos uma composição harmônica entre capital
provenientes do Franklin e cumpriu seu e trabalho que garantisse o desenvolvi-
papel, como fundação, de servir de vetor mento nacional.
às ideias de Roberto Simonsen, ainda O sistema S foi criado precisamente
entendidas, pela elite industrial paulista, com essa tarefa. No caso específico do

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dossiê edição e política

Instituto Roberto Simonsen, ele se vol- elite industrial paulista, ocupada com
tava para as atividades culturais e, atra- sua descendência, os livros sobre artes
vés do CBD, concebia o letramento como gráficas também pareciam atender a um
condição para formar uma classe operá- público endógeno, a saber, editoras e
ria mais qualificada. Quem eram, entre- gráficas parceiras do CBD. O evento da
tanto, os leitores dos livros publicados indústria, por sua vez, reuniu um conjunto
pelo instituto? A julgar pelas caracterís- de intelectuais uspianos, realizando de
ticas dos livros, esses leitores eram tão forma paradigmática o ideal de articu-
diversos quanto difíceis de identificar. lação entre instituição de ensino e pes-
Robert Darnton (1990) argumentou, com quisa, indústria e planejamento com o
precisão, que a recepção é a etapa mais qual Simonsen havia sonhado. Os livros
difícil de mapear no processo de edição sobre populações, que contaram com o
e circulação dos livros – esta é, portanto, patrocínio do The Population Council, por
a mais árdua tarefa para os historiadores outro lado, também corresponderam ao
do livro e da leitura. Alguns dados para- ideal do patrono e, embora desarticula-
textuais dos livros podem indicar, porém, dos de um projeto político mais amplo,
se não o leitor derradeiro, receptor último voltado à promoção de migrações inter-
do livro, o leitor imaginado pelas edito- nas controladas, acabaram coincidindo
ras e fundações que se articularam por com fluxos demográficos mais ou menos
trás das edições. Se o Guia dos pais na espontâneos, em um momento em que
escolha de livros parecia atender a um o Sudeste se consolidava como a região
público específico, qual seja, a própria industrial mais poderosa do Brasil.

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104 Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 87-104 • outubro/novembro/dezembro 2023


Marcos Santos/USP Imagens

Sociabilidades literárias paulistas e as


edições de poesia da Livraria Duas Cidades
(1970-1980)
Hugo Quinta
resumo abstract

Radicada no centro da cidade de São Based in São Paulo downtown between


Paulo entre 1954 e 2006, a Livraria Duas 1954 and 2006, Livraria Duas Cidades
Cidades foi uma editora e livraria religiosa was a religious publisher and bookstore
até 1972. Ao abandonar sua gênese until 1972. By undoing its Catholic genesis,
católica, a casa modificou o projeto the house modified the editorial project
editorial e publicou Antonio Candido and published Antonio Candido and his
e seus orientandos. Mas não foram mentees. In the new phase, it was not
apenas as pesquisas universitárias que only university research that was part
Marcos Santos/USP Imagens

fizeram parte do catálogo da editora na of the publisher’s catalog, but also São
nova fase, quando também promoveu Paulo literary sociabilities and poetic
as sociabilidades literárias paulistas e works in the 1970s and 1980s. At a time
lançou obras poéticas nas décadas de when poetry challenged experienced
1970 e 1980. Numa época em que a editors, the house which was directed
poesia desafiava experientes editores, a by Professor Santa Cruz innovated in the
casa dirigida pelo Professor Santa Cruz materiality of the published titles, radiated
inovou na materialidade dos títulos Brazilian contemporary poetry, fostered
publicados, irradiou a poesia brasileira relationships and cultural events. Based
contemporânea e ainda fomentou on this context, this article examines
relacionamentos e eventos culturais. É poetry books and the literary sociability’s
partindo desse contexto que este artigo network brought to the public by this
trata dos livros de poesia e das redes de fiftieth publishing house.
sociabilidade literária irradiadas por essa
cinquentenária editora paulistana. Keywords: Livraria Duas Cidades; poetry
editing; São Paulo literary sociabilities;
Palavras-chave: Livraria Duas Cidades; editorial production; Brazilian book history.
edição de poesia; sociabilidades literárias
paulistas; produção editorial; história do
livro no Brasil.
A
s profundas raízes da Se não fosse esse personagem, não haveria
Livraria Duas Cidades Livraria Duas Cidades.
percorrem a obra de Por ser grande admirador da obra de
Santo Agostinho. Em A Santo Agostinho, o frade definiu o projeto
cidade de Deus (1483), o livreiro e editorial considerando as inter-
pensador medieval con- seções das ideias terrenas e espirituais.
siderou a existência dos Essa é a aura da casa inaugurada por
mundos terreno e espiri- Frei Benevenuto em dezembro de 1954.
tual. Sua tese defendia a Situada no centro da cidade de São Paulo,
comunhão dos homens na a empresa atendeu a uma clientela majori-
Terra como a única via tariamente católica até 1972 (Marchetti
de conciliação dos planos & Quinta, 2023). Foi nesse ano que o
divino e secular. E foi religioso se desvinculou da Ordem, ini-
sob esse horizonte que nasceu a livraria e ciou as negociações para adquirir as cotas
editora da Ordem dos Dominicanos. Mas dos dominicanos, redefiniu o projeto do
a fundação e a trajetória desse empreendi- estabelecimento e ficou conhecido como
mento cultural ocorreram por iniciativa de
um homem: José Petronilo de Santa Cruz
é seu registro civil, Frei Benevenuto foi
o nome escolhido após seu ingresso na HUGO QUINTA é pós-doutorando
vida religiosa e Professor Santa Cruz foi em Editoração na Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP, bolsista Fapesp e
a alcunha adotada por amigos, autores e autor de A trajetória de um libertário: Pietro Gori
clientes assim que ele aposentou a batina. na América do Sul (1898-1902) (EdUnila).

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Professor Santa Cruz. Ainda que a tra- contramão de muitas das obras poéticas
vessia tenha sido marcada por episódios lançadas nesse contexto, a casa dirigida
ultrajantes – como o assassinato de Carlos pelo Professor Santa Cruz aperfeiçoou os
Marighella (Quinta, 2021, pp. 317-57) e a aspectos editoriais e gráficos dos títulos
longa peleja entre o livreiro-editor e os publicados e posteriormente forjou um
superiores da Ordem (Quinta, 2021, pp. virtuoso canal de difusão da poesia brasi-
361-86) –, a casa jamais renunciou ao leira contemporânea ao lançar a premiada
paradigma civilizacional incutido na obra Coleção Claro Enigma, projeto idealizado
do filósofo medieval. Pelo contrário, os por Augusto Massi.
livros publicados pela editora e os títulos Vistos e analisados em conjunto, os
importados pela livraria continuaram a livros anteriormente mencionados faziam
formar gerações de intelectuais brasileiros. parte do mercado editorial de literatura
Se antes editavam padres, filósofos e brasileira da segunda metade do século
teólogos progressistas da Igreja Católica, passado. Para situar as edições da Livraria
a partir de 1972 lançaram os trabalhos Duas Cidades nessa conjuntura histórica,
de Antonio Candido e de seus orientan- cabe explorar os seguintes dados levan-
dos. Mas não foram apenas os títulos de tados por Laurence Hallewell (2012, pp.
teoria e de crítica literária que fizeram 798-800). O livro literário nacional atingiu
parte da nova fase, as edições de poesia uma tiragem média de aproximadamente
também figuraram no catálogo da casa. 3 mil exemplares por título em finais dos
Ao lançar oito títulos na década de 1970, anos 1950, chegando ao patamar de 5 mil
11 na década de 1980 e três nos anos exemplares por livro passados dez anos. O
1990, a poesia se tornou a maior área aumento decorreu do crescimento econô-
temática do selo Livraria Duas Cidades. mico desse período, cujo desenvolvimento
É verdade que não se trata de quantias provocou a impressão de tiragens ainda
expressivas. O foco residia na qualidade maiores para os outros gêneros temáticos.
autoral, editorial e gráfica das obras. Ainda assim, houve contínua publicação
Foi por esse motivo que a casa publicou de obras literárias, ao ponto de, em 1980,
poetas consagrados, como Murilo Mendes alcançar uma tiragem média de 85 mil
e Henriqueta Lisboa. Também lançou a exemplares e 3.968 livros publicados nessa
vanguarda concretista representada por área – o dobro da quantidade de títulos
Décio Pignatari e os irmãos Augusto e lançados em 1969.
Haroldo de Campos. E divulgou a poesia As obras de autores brasileiros foram
de escritores desconhecidos do grande as grandes responsáveis por esse cresci-
público, como José Geraldo Nogueira mento. Em 1986, publicaram 4.703 títu-
Moutinho, Adelaide Petters Lessa e Dora los e depois lançaram 6.127 em 1990,
Ferreira da Silva. Os livros desses auto- quando a Editora Brasiliense inaugurou
res saíram entre os anos 1970 e 1980, a coleção de ficção nacional nomeada de
justamente numa época em que publi- Espaço Brasileiro. A despeito desse cená-
car poesia era desafiador para grandes, rio auspicioso, Hallewell adverte que as
médias e pequenas editoras brasileiras. Na dificuldades para editar livros ficcionais

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e literatura em geral nem sequer se apro- na década de 1970. Os “marginais” inova-
ximam dos obstáculos de editores espe- ram na expressividade jocosa e na forma
cializados em poesia moderna no Brasil. de divulgação dos poemas.
Na década de 1950 (Simon, 1999), os Seus versos eram impressos e finan-
poetas concretos se lançaram no cenário ciados pelos próprios autores, dentre os
cultural paulistano como uma corrente quais destacamos Ana Cristina César, Paulo
de vanguarda que rompia com o passado Leminski e Waly Salomão. Com o pas-
recente e dialogava com o Modernismo sar dos anos, suas obras foram publicadas
liderado por Oswald de Andrade. A ela- pelas editoras artesanais, a exemplo da Noa
boração dessa via poética acompanhou o Noa – do poeta, editor e tipógrafo Cleber
crescimento técnico, artístico e científico Teixeira (1838-2018) – e da Tipografia do
em voga no meio do século XX (Arruda, Fundo de Ouro Preto (Mello, 2018) – do
2015). Liderada, em São Paulo, por Décio editor, poeta e artista gráfico Guilherme
Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo Mansur (1958-). Tanto os selos artesanais
de Campos, a tríade manifestou outras quanto a Livraria Duas Cidades editaram
linguagens estéticas na apresentação dos poetas que não se encaixavam em uma
versos, por vezes se aproximando da lin- única linhagem literária (Salgueiro, 2018,
guagem publicitária. Mas o alcance da poe- pp. 17-8). Professor Santa Cruz (Quinta,
sia concreta ficou circunscrito aos eventos 2021, pp. 562-85) e outros editores resi-
culturais frequentados pelas elites paulista- dentes em São Paulo não apenas foram
nas e ao ambiente universitário da capital. entusiastas da edição de poesia, como
Com a ampliação do acesso à cul- também foram responsáveis por divulgar
tura e à educação durante os anos 1960, esse gênero literário em diferentes mate-
expandiu-se o mercado de bens culturais rialidades e projetos editoriais.
no Brasil (Ridenti, 2014, p. 25). Nesse Dentre eles, destaca-se a figura de
contexto, a indústria do livro atendia um Massao Ohno (1936-2010). Por ter se
público continuamente diversificado, e a notabilizado como editor e artista grá-
poesia brasileira publicada pelas grandes fico que trabalhou de maneira habilidosa
editoras dessa década acompanhou esse no emprego da impressão tipográfica (Da
movimento ao divulgar as obras vincula- Silva, 2019), suas edições de poesia –
das à temática social inaugurada com a publicadas desde os anos 1960 até seu
corrente modernista de Mário de Andrade. falecimento – foram reconhecidas no
Publicaram poetas renomados, como Carlos mundo do livro brasileiro. Ao final da
Drummond de Andrade, Murilo Mendes, década de 1970, Roswitha Hellbrugge
Jorge de Lima, Cecília Meirelles, Vinícius (1928-1989) interrompeu seu trabalho
de Moraes, João Cabral de Mello Neto, com Massao Ohno para fundar a Roswitha
entre outros que possuíam um público lei- Kempf Editora, selo que publicou obras
tor cativo. Mas o Golpe de 1964, a tensão clássicas do grego antigo e livros de poe-
política nacional e a ebulição sociocultural tas pouco conhecidos. Esses exemplos cor-
foram um terreno fértil para o surgimento roboram o crescimento das publicações
da “poesia marginal” (Simon, 1999, p. 33) literárias nos anos 1980 (Simon, 1999, pp.

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34-5), mas apenas os poetas consagrados venuto lançou, no ano de 1970, seus pri-
tiveram espaço nas grandes editoras, como meiros livros de poesia nacional. Um deles
a Nova Fronteira1. foi Amoressência (1970), da psicóloga Ade-
Enquanto os concretos e os “marginais” laide Petters Lessa, com tiragem de 1.033
eram respaldados por Massao Ohno, Gui- exemplares; o outro foi Exercitia (1970),
lherme Mansur, Cléber Teixeira e Roswitha de José Geraldo Nogueira Moutinho, com
Hellbrugge, os poetas que estabeleciam pon- 1.057 exemplares impressos; e o terceiro
tes entre as vanguardas e a tradição literá- foi Convergência, de Murilo Mendes, com
ria estavam dispersos em editoras artesanais a expressiva impressão de 16.616 exempla-
(Creni, 2013) ou em selos como a Brasiliense res. Com exceção dessa obra, a baixa tira-
e a Livraria Duas Cidades. gem dos outros títulos sinaliza o pequeno
alcance desses livros até mesmo entre os
OS PRIMEIROS LIVROS leitores devotos da poesia.
Nogueira Moutinho foi crítico literário,
DE POESIA DA DUAS CIDADES
jornalista, poeta e amigo de Frei Bene-
venuto. A partir dos documentos abriga-
Mesmo ciente da dificuldade de venda dos no arquivo da Livraria Duas Cidades
desse gênero literário, o então Frei Bene- (Quinta & Silva, 2020), em particular dos
relativos à publicação de Exercitia, é pos-
sível avaliar a relação entre autor e edi-
tor e o processo de construção do livro.
1 Hallewell (2012) pondera que nem mesmo as obras
de autores consagrados, como João Cabral de Mello Apesar da dificuldade de compreender o
Neto e Murilo Mendes, estavam livres dos obstácu- que motivou o editor a publicar a obra
los encarados pelos poetas menos conhecidos. Eles
geralmente obtinham notoriedade editorial depois do autor, supõe-se que a longa relação
de falecerem, como ocorreu com Carlos Drummond
de Andrade, que teve sua obra disputada pela José
de amizade (Quinta, 2021, p. 489) foi
Olympio, Companhia das Letras e Nova Fronteira. determinante na decisão de lançar o livro.
Dentre esses selos, o último teve forte presença na
poesia. A Nova Fronteira comprou os direitos da Ao consultar os documentos situados na
obra completa de João Cabral e de Murilo Mendes pasta do autor, encontra-se os vestígios de
(ambos amigos do Professor Santa Cruz). Ao final dos
anos 1980, essa editora não apenas lançou a Coleção produção e de financiamento da obra, os
Poesia de Todos os Tempos, dedicada a divulgar po-
etas tradicionais do Brasil e de outros países, como
comentários elogiosos de outros poetas, o
também foi contatada pela Livraria Duas Cidades. projeto de capa e contracapa (ver Imagem
Em 10 de junho de 1988, Professor Santa Cruz en-
viou uma carta para a Nova Fronteira mencionando 1) criado por José Armando Ferrara 2 e os
seu interesse em publicar as traduções dos poetas impasses para a venda do livro.
catalães feitas por João Cabral. O livreiro-editor
questionou sobre quais seriam as condições para sua
editora publicar coleções com “[...] características de
uma publicação de arte, com fotos e reproduções
fac-simile e de tiragem limitada”. No dia 29 de junho 2 Paulistano nascido em 1938, Ferrara iniciou sua forma-
de 1988 foi enviada a resposta escrita por Sebastião ção, em 1955, no curso de Artes Gráficas do Senai e a
Lacerda (filho de Carlos Lacerda e então diretor partir de 1961 foi aluno da Escola de Arte Dramática
vice-presidente da Nova Fronteira), que agradeceu a da USP. Essas experiências lhe possibilitaram ganhar
visita feita pela pessoa (Augusto Massi) responsável alguns prêmios nas artes plásticas, atuar como de-
pelas coleções da Duas Cidades, mas argumentou signer gráfico e cenógrafo, a exemplo do cargo que
que não autorizaria a inclusão de João Cabral e Mu- exerceu como diretor de cenografia da TV Cultura
rilo Mendes nas coleções pretendidas, argumentando e produtor da decoração de diversas peças teatrais
que a sua editora publicaria essas obras. encenadas na PUC-SP.

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Imagem 1. Capa e contracapa de Exercitia (1970), de José Geraldo Nogueira Moutinho.
O projeto de capa é assinado por José Armando Ferrara (ver nota 2) e o projeto gráfico
apresenta as seguintes características: brochura, formato 14 x 21, folha de rosto com
caracteres na cor preta, constando o nome do autor e o título do livro no cabeço,
enquanto no pé constam o nome da editora, a cidade de São Paulo e o ano de 1970.
A composição e impressão da obra foram realizadas pela Editora Pensamento S/A

No contrato de publicação de Exercitia destinaria 50 exemplares para divulgação


estão previstas as condições de edição do e propaganda da obra, o autor ficaria com
livro. Firmado em 6 de outubro de 1970, o 200 exemplares da tiragem impressa e o
artigo terceiro descreve os compromissos restante seria vendido por Cr$ 10,00 no
da casa e de Nogueira Moutinho. Enquanto ano do lançamento.
a editora se encarregava de realizar todas Um fato curioso foi a carta redigida
as etapas de editoração e de divulgação do pela poetisa mineira Henriqueta Lisboa
livro, o parágrafo primeiro desse artigo (1901-1985) e endereçada a Nogueira Mou-
esclarecia que “as despesas decorrentes tinho em 23 de outubro daquele ano. Ela
da composição, paginação, impressão, acusou o recebimento do livro com alegria,
execução da capa e encadernação da obra comentou que leu e releu os poemas do
serão debitadas ao autor”, e no parágrafo autor, ressaltando que a obra transmitia
seguinte ressaltam que os demais encargos rigor, nobreza e serenidade, transitando
seriam custeados pela editora. Como nos entre a utilização de termos arcaicos e
outros contratos da casa, os direitos auto- técnicas modernas de criação. Henriqueta
rais eram 10% do preço de capa, a editora parabenizou o autor pela obra, “[...] até

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dossiê edição e política

mesmo pela excelente apresentação gráfica, obra. As irrisórias taxas de comercializa-


a recomendar a editora”. Este comentário ção do livro estão descritas nos relatórios
elogioso sobre o trabalho gráfico realizado abrigados no arquivo da editora: foram
pela Livraria Duas Cidades talvez tenha vendidos 82 exemplares de Exercitia até
sido a razão de ela ter publicado o primeiro 1972, e em dezembro de 1981 ainda havia
tomo de sua poesia completa pela casa. 530 exemplares em estoque.
Lançada no ano de seu falecimento (1985), Se é verdade que o livro de Nogueira
Obras completas I – Poesia geral (1929- Moutinho resultou em baixa tiragem e
1983) teve a capa produzida por Luis Díaz poucas vendas, a obra de Murilo Mendes
e tiragem de 2 mil exemplares impressos. (1901-1975) fugiu ao padrão das edições
Ainda sobre o livro de Nogueira Mou- de poesia da casa por apresentar diversas
tinho, outro ilustre poeta a elogiar a obra particularidades. Uma delas foi a amizade
foi Carlos Drummond de Andrade. Uma de Murilo com Frei Benevenuto. Nas três
de suas cartas foi publicada na contracapa pastas do poeta mineiro, todas abrigadas
de Exercitia e a outra, também escrita no arquivo da casa, constam as correspon-
à mão, foi redigida no Rio de Janeiro e dências e as fotografias trocadas entre o
enviada ao autor em 7 de dezembro de autor e o livreiro-editor3. Ainda que este
1970. Nessa epístola, o remetente afirma artigo não seja o espaço adequado para
que o livro era poesia adulta, rigorosa, explorar todas as cartas do arquivo, vale
importante e coerente com os descaminhos destacar que os temas abordados nelas são
daquela época. Drummond agradeceu o vestígios da amizade e da rede de socia-
oferecimento do livro e deixou um abraço bilidade que havia entre eles. Mas cabe
de admiração ao destinatário. examinar as que estabelecem uma corres-
As missivas do poeta e da poetisa, ou pondência entre autor e editor no decorrer
até mesmo a crítica da obra escrita por do processo de construção do livro.
Ernildo Stein no Caderno do Povo, em Foi em 18 de agosto de 1966 que
11 de março de 1972, deixam a impres- Murilo Mendes respondeu uma carta do
são de que os comentários transcendiam religioso por meio de uma epístola redi-
uma análise imparcial do livro de poesia gida à mão diretamente de Lisboa. O
escrito por Nogueira Moutinho. Em certa poeta disse que seria um prazer ter seu
medida, elas demonstram a amizade e os livro editado pela Livraria Duas Cidades
afetos que o crítico literário tinha com o e descreveu como ele pensava as carac-
Professor Santa Cruz, Drummond, Henri- terísticas materiais da obra: “[...] inútil
queta e até mesmo com o filósofo, tradu-
tor e docente universitário, tendo em vista
que Moutinho publicou, na Folha de S. 3 Ao analisar o conjunto de missivas trocadas entre 1949
e 1975, é possível identificar que elas discorrem sobre
Paulo, as críticas dos livros de Heidegger, Minas Gerais; discos de música clássica; revistas cristãs
todos traduzidos por Ernildo e lançados progressistas; poeta Jorge de Lima; auxílio a frei Bene-
venuto durante sua moradia na França; reacionarismo
pela Livraria Duas Cidades. Mas nem os de altas figuras do clero; poeta Marcos Konder Reis;
livros religiosos; Carlos Pinto Alves; Antonio Candido;
laços de amizade (Sorá, 2010, pp. 213-65) e a relevância de o padre manter a amizade com o
foram capazes de garantir boas vendas da crítico de arte Paulo Mendes de Almeida.

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dizer-lhe que gostaria de apresentação sim- pos. E deixou dois post-scriptum com as
ples do ‘Contacto’, graficamente falando: seguintes recomendações:
nada de enfeites, nada de desenho, nada
de perfil do autor e bico de pena. Claro “Como disse antes: aspecto gráfico severo,
que gostarei de um aspecto moderno do nada de ilustrações, nada de desenho ou
livro, isto é, tipos modernos, linhas claras, foto de autor. Caso possível, o dorso do
retas etc.”, acrescentando que confiava no livro em branco, sem anúncios. Talvez Fer-
gosto de Frei Benevenuto. E prosseguiu nando Lemos pudesse fazer a capa. No
afirmando que seria importante ele receber máximo, uma vinheta geométrica. Tenho
as provas do livro para poder corrigi-las horror ao informal”.
antes da impressão.
O poeta enviou outra epístola a Frei Murilo Mendes enviou outra carta ao
Benevenuto em 8 de outubro de 1966, livreiro-editor em 16 de novembro de
por meio da qual respondia às dúvidas 1966. Nesta, o poeta escreveu que Haroldo
apresentadas pelo editor e dava orienta- de Campos faria revisão de “exercício”
ções gerais sobre o livro a ser produzido. (segunda parte) antes de encaminhá-la
O título da obra seria Contacto, e no para a editora. Também ponderou outras
frontispício deveria constar as palavras alterações que seriam feitas no manuscrito
“contacto” e “exercício” em caixa-alta, as e ao final disse que a alusão ao escultor
quais representavam cada uma das duas italiano Ettoré Colla e ao poeta lusitano
partes em que o autor dividiu o livro. A Cesário Verde não vinha com notas sobre
primeira com poemas acompanhados de a trajetória desses personagens, pois ele
títulos e ano de criação, os quais deve- julgava que o livro era destinado a um
riam estar dispostos na obra seguindo público culto. Mas ele poderia fazer bre-
a ordem cronológica; e a segunda eram ves notas se o editor julgasse necessário.
poemas sem títulos, mas que deveriam Já em 22 de novembro daquele ano, o
estar disponibilizados cronologicamente poeta enviou outra carta ao religioso. De
e separados por linha. Tanto a primeira imediato, ele relatou que Haroldo de Cam-
parte (contacto) quanto a segunda (exer- pos lhe escreveu dizendo que ficou contente
cício) deveriam estar inscritas em folhas de ter conhecido o frade e que pretendia
separadas. Entre elas deveria constar uma cultivar a amizade. Ato contínuo, Murilo
folha em branco e no fim da segunda ressaltou que as pontuações do original,
parte deveria ter outra folha em branco como o uso de bolinha ou asterisco entre
somente com a palavra “índice”, e nas algumas estrofes, deveriam estar presentes
páginas subsequentes estariam o sumá- na obra impressa. Em suas palavras, “[...]
rio listando os poemas da parte “con- preferiria que o livro não fosse publicado,
tacto”, os poemas do entreato chamado caso não se pudesse fazer o que peço, mas
“Murilogramas” e os poemas de “exer- penso que se pode”. Depois teceu mais algu-
cício”. Ao final, o poeta ressaltou que mas considerações sobre o livro, a exemplo
havia trechos e palavras experimentais da homenagem que queria fazer à filha do
que seriam revisadas pelos irmãos Cam- poeta português Miguel Torga.

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dossiê edição e política

Em 30 de dezembro de 1966, o poeta frontispício constou o período de produ-


enviou uma carta ao livreiro-editor indi- ção dos poemas (1963-1966); Haroldo de
cando uma relevante mudança na obra. Campos reviu as provas finais; e a casa
Na primeira página, o remetente infor- atendeu ao pedido de nomear a segunda
mou o destinatário da alteração do título parte do livro de “estudos”, “linhas” ou
do livro para Convergência, alegando que “sintaxe” (esta foi a escolhida), tendo em
tinha outra obra publicada no Brasil com vista que a editora havia publicado Exerci-
o nome anteriormente previsto. Na página tia. Outros pedidos do autor também foram
seguinte, Murilo ressaltou que no frontis- atendidos: a editora enviou três exemplares
pício do livro deveria constar o período por via aérea, os quais seriam entregues
de composição dos textos sob a justifica- para o cineasta Ruggero Jacobbi, para a
tiva de que em boa parte das obras poéti- historiadora Luciana Stegagno e para o
cas consta a data de criação dos poemas. crítico literário José Guilherme Merquior.
Logo em seguida afirmou que procedeu E nas linhas finais dessas cartas, Murilo
a uma pequena alteração no Murilograma agradeceu o exímio trabalho da casa na
para Manuel Bandeira, e encerrou a carta publicação de Convergência, realçando que
retomando temas expostos nas outras cor- o livro saiu perfeitamente a seu gosto,
respondências sobre o livro. desde a capa (ver Imagem 2) elaborada por
Após a passagem de ano, Murilo Men- José Armando Ferrara até a composição do
des enviou duas cartas a Frei Beneve- livro, realizada e coordenada pela editora.
nuto. Uma no mês de janeiro e outra em Apesar da riqueza epistolar presente na
fevereiro, sendo que ambas seguiram as pasta de Convergência abrigada no arquivo
sugestões elencadas pelo poeta nas cartas da editora, infelizmente não constam as
anteriores, com exceção de duas propos- fichas demonstrativas de vendas da obra,
tas. Em uma delas, Murilo pediu para cuja tiragem foi de 16.616 exemplares. O
o editor publicar o livro aberto (o que período de venda desse montante poderia
não ocorreu) e a outra era para a editora indicar quanto tempo levou para esgotar
não imprimir o livro antes de sua revisão o título de um poeta renomado. Mas o
final, alegando a necessidade de incluí- conjunto das epístolas nos permite tra-
rem uma errata entre a última página e fegar nas relações entre autor e editor,
a contracapa da obra. nos impasses e intermediações que decor-
Daí em diante houve poucas correspon- rem da construção e publicação de um
dências entre o poeta e o livreiro-editor. livro escrito por um autor já consagrado,
Apenas em novembro e dezembro de 1970 e que impunha uma série de exigências
foram enviadas três cartas de Murilo Men- para publicar a obra sem ser questionado
des à Livraria Duas Cidades, que também pela editora. Essas correspondências tam-
recebeu outras sete missivas do autor em bém nos permitem averiguar o grau de
1971. Todas as solicitações feitas nas epís- proximidade entre o então religioso e o
tolas de 1970 foram atendidas pela editora: poeta, e a rede de sociabilidade formada
o livro foi publicado; a errata foi inclu- por esse relacionamento. Foi a partir delas
ída em todos os exemplares impressos; no que tomei conhecimento da amizade entre

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Fontela (1940-1998)4, com tiragem de 1.023
exemplares e capa de Rosa Maria Delorenzo.
Essas publicações sinalizam que o Pro-
fessor Santa Cruz deu guarida a projetos de
vanguarda no cenário intelectual e cultural
da metrópole brasileira, abrindo sua casa
para novas correntes literárias. Enquanto
os livros de autores conhecidos geralmente
são publicados pelas grandes editoras, os
pequenos e médios selos editoriais, como
a Livraria Duas Cidades, usualmente são
responsáveis por divulgarem distintas
expressões culturais.
Foi por esse motivo que a cepa paulis-
tana da poesia concreta encontrou abrigo
na editora. Primeiro publicaram 3 mil
Imagem 2. Convergência (1970), de Murilo exemplares de Teoria da poesia concreta
Mendes. O projeto de capa também é (1975), de Augusto de Campos, Décio
assinado por José Armando Ferrara e o
Pignatari e Haroldo de Campos. Depois
projeto gráfico apresenta as seguintes
características: brochura, formato 14 x 21, lançaram Poesia pois é poesia (1977), de
folha de rosto com caracteres na cor preta, Décio Pignatari, com tiragem de 2.030
constando o nome do autor no cabeço, exemplares, e passados dois anos publi-
o título e as partes do livro, com as respectivas caram Viva vaia – poesia 1949-1979 (ver
datas de produção dos poemas, no centro da
página, e no pé há o nome, o logo da editora
Imagem 3), escrito por Augusto de Campos
e o ano de 1970. A impressão da obra foi e com 1.934 exemplares impressos.
realizada pela Símbolo S.A. Indústrias Gráficas Enquanto a capa do primeiro livro foi
criada, em 1965 (ano da primeira edição
do livro), por Décio Pignatari, com arte-
o livreiro-editor e Haroldo de Campos, por -final de Roberto Esteves Lopes, o segundo
intermédio de Murilo Mendes, permitindo e o terceiro (atualmente publicados pela
a posterior divulgação da vanguarda con- Ateliê Editorial) tiveram suas capas res-
cretista pela casa do Professor Santa Cruz. pectivamente elaboradas por Julio Plaza
Antes de discorrer sobre os livros de e Augusto de Campos. As baixas tiragens
Décio Pignatari e dos irmãos Campos, cabe dessas obras sinalizam um público leitor
mencionar duas obras poéticas lançadas pela restrito e ao mesmo tempo interessado pela
Livraria Duas Cidades em 1973. Uma delas
foi Uma via de ver as coisas, escrita por
Dora Ferreira da Silva, com tiragem de
4 Algumas das entrevistas que colhi durante o doutora-
1.090 exemplares e capa de José Márcio do descrevem episódios (Quinta, 2021, pp. 555, 581-2)
que indicam a proximidade de Orides Fontela com a
Brandão e Edmar José de Almeida. E a
Livraria Duas Cidades, onde ela teve dois livros publi-
outra foi Helianto, livro da poetisa Orides cados – Helianto e Trevo.

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dossiê edição e política

Imagem 3. Capa e verso da contracapa de Viva vaia – poesia 1949-1979 (1979), de Augusto
de Campos, que também criou a capa. Já o original projeto gráfico é assinado por Julio Plaza,
responsável por inovar na arte desenvolvida para o miolo do livro ao utilizar fitas, diferentes
famílias e tamanhos de tipos, distintos modelos e gramaturas de papel, letras de diversas
cores, imagens e ilustrações, como a fotografia de Ivan Cardoso que reveste o encarte
criado para o disco de vinil de Caetano Veloso. Trata-se de uma brochura no formato 19 x 25,
com a folha de rosto em cor preta na frente e branco no verso, constando o título e o nome
do autor alinhados à direita, no centro da página, enquanto no pé constam o nome
e o logo da editora. A impressão da obra foi realizada pela Planimpress Gráfica e Editora

forma, imagem e iconoclastia dos concre- moderna e a vanguarda literária concre-


tistas, características fundantes dessa cor- tista. Segundo, em virtude de o editor ter
rente literária que provocou a literatura, as aberto as portas de seu empreendimento
artes gráficas e a materialidade dos livros para que amigos e autores desenvolves-
publicados pela Livraria Duas Cidades. sem seus projetos editoriais. Foi assim
A poesia concreta reconfigurou a dispo- que Augusto Massi entrou na história da
sição da poesia na página e no formato Livraria Duas Cidades.
dos tipos utilizados, além de ter incluído
tiras e imagens coladas nas páginas, ou COLEÇÃO CLARO ENIGMA E
até mesmo um vinil de Caetano Veloso a
ARTES E OFÍCIOS DA POESIA
cantar as poesias de Augusto de Campos
em Viva vaia.
Essas inovações foram possíveis por Poeta, jornalista, editor e atualmente
dois motivos. Primeiro, em razão de o professor de Literatura Brasileira da Uni-
projeto editorial do selo abarcar a poesia versidade de São Paulo, o idealizador da

116 Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 105-122 • outubro/novembro/dezembro 2023


Coleção Claro Enigma nasceu em 1959. das obras e quais novidades editoriais que
Na adolescência, Augusto Massi estudou a coleção traria, tanto do ponto de vista
em colégios progressistas frequentados gráfico quanto dos materiais empregados
pela classe média paulistana, e no início no conjunto dos 13 títulos e milhares de
da juventude ingressou na Faculdade de exemplares impressos. Também refletiu
Direito do Largo de São Francisco. Como sobre os críticos literários, professores
estudava no centro da cidade de São Paulo universitários e críticos de arte que escre-
e apreciava o mundo dos livros, ele conhe- veriam a orelha dos livros. Selecionou a
ceu as principais livrarias dessa região. capista, os desenhistas e as outras pessoas
Foi nesse contexto que ele se relacionou que tornariam possível o lançamento de
com a Livraria Duas Cidades e o Professor seu projeto editorial.
Santa Cruz. Massi (2012, pp. 35-7) pas- Publicada entre dezembro de 1988 e
sou a frequentar esse espaço a partir dos junho de 1990, a Claro Enigma abarcou os
anos 1970 como leitor e cliente, depois livros de 11 poetas e duas poetisas brasi-
firmou-se como um parceiro e amigo do leiras. Reunindo 13 títulos, dos quais sete
estabelecimento (Quinta, 2021, pp. 586- correspondiam à poesia completa de seus
94), no mesmo período em que desistiu autores e seis ao lançamento de poesias
do bacharelado em Direito para cursar inéditas, a coleção reuniu as obras das
Jornalismo na Pontifícia Universidade poetisas Orides Fontela e Maria Lúcia
Católica de São Paulo. Após a conclu- Alvim, e os livros dos poetas José Paulo
são do curso, ele ingressou no mestrado Paes, Francisco Alvim, Alcides Villaça,
em Letras da USP, em 1984 e iniciou seu Sebastião Uchoa Leite, João Moura Jr.,
trabalho como editor da seção Livros, Rubens Rodrigues Torres Filho, Paulo
da Folha de S. Paulo, e ao final desse Henriques Britto, Ronaldo Brito, Duda
ano recebeu o Prêmio Jabuti na catego- Machado, Age de Carvalho e Alberto Ale-
ria “melhor noticiário literário”. Passados xandre Martins. O projeto de capa foi
dois anos, ele tornou-se correspondente assinado por Moema Cavalcanti (Museu
do jornal na Espanha e na França, perí- da Imagem e do Som – SP, 2000, pp.
odo em que estudou literatura espanhola e 48-9), enquanto Silvia Massaro elaborou
conheceu editoras e tipografias europeias. o projeto do miolo e Gisela Creni chefiou
Ao retornar ao Brasil, Augusto teve a secretaria editorial.
uma experiência de seis meses como edi- A edição também contou com o apoio
tor da Universidade Estadual de Campinas. dos críticos literários Antonio Candido,
Apesar da experiência frustrante como Roberto Schwarz e João Luiz Lafetá,
editor universitário, ele planejou seu pri- além do crítico de arte Rodrigo Naves,
meiro projeto editorial a partir de 1987, do pintor Iberê Camargo, da artista visual
ao esboçar a Claro Enigma. Foi nesse Mira Schendel, do escultor Amilcar de
ano que ele preparou a coleção, escolheu Castro, entre outras figuras de peso do
os autores e definiu como seria a mate- meio cultural e intelectual do país. Além
rialidade dos livros publicados. Pensou disso, ela foi amplamente divulgada nas
sobre quem poderia ser o público leitor universidades e nos meios de comunicação

Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 105-122 • outubro/novembro/dezembro 2023 117


dossiê edição e política

de seletos editores de poesia em finais do


século passado (Hallewell, 2012, pp. 799-
800). Para se ter uma ideia da projeção
da coleção, cabe aludir ao patrocínio da
indústria Metal Leve S/A (do empresário
e bibliófilo José Mindlin) e da Indús-
trias de Papel R. Ramenzoni S/A, além da
coedição com a Secretaria de Estado da
Cultura de São Paulo nos últimos cinco
títulos da coleção. E se for considerada
toda a construção do projeto editorial –
desde a elaboração da ideia, passando
pelo planejamento de produção gráfica
e editorial, e até mesmo o envolvimento
de dezenas de pessoas e empresas no tra-
balho –, é possível deduzir que Massi
almejava ultrapassar a mera publicação
de poesia brasileira (ver Imagem 4):

Imagem 4. Frente do folder constando as


capas dos oito primeiros livros da Coleção
“[...] lançada em dezembro de 1988, [a
Claro Enigma. Essas capas foram concebidas coleção] pretende criar um espaço literário
por Moema Cavalcanti e o projeto gráfico é inteiramente voltado para a poesia brasi-
de Silvia Massaro. Augusto Massi participou leira contemporânea. O objetivo é reunir
das decisões gráficas e artísticas do projeto
sob o arco de um projeto editorial [...]
editorial, a exemplo do acetato de plástico que
reveste a capa dos 13 livros da coleção, cuja leitores, críticos, poetas e editores. Esta
materialidade é composta com papel nevado. iniciativa possui duas faces: intervenção e
Garamond é a tipologia empregada em todos reflexão. A primeira procura resgatar uma
os livros da coleção e na falsa folha de rosto
tradição de publicar poesia mantida durante
das obras consta uma ilustração de um artista
convidado. Dos 1.500 exemplares para cada toda a década de 70 pela Duas Cidades,
título, “25 [...] foram impressos em papel Suzano que, em edições graficamente ousadas e
Classic – com a rubrica F. C. (fora de comércio) inovadoras, reuniu boa parte da produção
– numerados e assinados pelo autor”, os quais teórica e poética do movimento concreto.
dizem respeito às obras especiais da coleção,
com capa dura e formato 14 x 23. Diferentes
A ênfase do projeto atual recai, outra vez,
indústrias gráficas imprimiram as obras do sobre uma concepção gráfica original. O
programa editorial liderado por Massi trabalho desenvolvido por Moema Caval-
canti e Silvia Massaro, além de explorar
materiais inéditos, como o papel da capa e
da época, como Veja, Folha de S. Paulo, o polyester da sobrecapa, soube privilegiar
Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde. o branco da página, o espaçamento das
Foi nesse contexto que Augusto Massi letras e, consequentemente, a experiência
lançou a Claro Enigma e figurou na lista de leitura [...]” (folder Claro Enigma, 1989).

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Este trecho sinaliza o propósito do edi- literários em 1989. Um deles foi o Prê-
tor em oferecer uma nova experiência de mio da Associação Paulista de Críticos
leitura por meio das escolhas gráficas, dos de Arte (APCA) e o outro foi o Prêmio
materiais empregados na edição dos livros Jabuti na categoria de produção editorial
e da seleção dos poetas. Mas nenhum de obra em coleção, o qual foi novamente
editor age à revelia do contexto político, conferido à Claro Enigma em 1990. Essas
social, econômico e cultural (Mollier, condecorações deram fôlego para Augusto
2005, p. 14). Todos atuam num determi- lançar os cinco últimos títulos da coleção
nado campo editorial (Bourdieu, 2018) em e realizar o evento (ver Imagem 5) de
que há tensões e disputas condicionando encerramento do projeto editorial.
suas escolhas. Para explorar o campo em Artes e Ofícios da Poesia sucedeu em
sua complexidade, é necessário analisar maio de 1990. No ano anterior, os paulis-
tanto os vínculos objetivos entre autores tanos haviam empossado a primeira pre-
e editor como todos os elementos que feita da capital paulista. Então filiada ao
fazem parte da arquitetura do mercado Partido dos Trabalhadores (PT), Luiza
editorial, identificando o peso de cada um Erundina nomeou Marilena Chauí como
dos agentes e seus critérios de avaliação secretária da pasta cultural e deu aval às
ao atuarem nesse campo. Essa perspectiva comemorações do Dia do Trabalhador e
de totalidade tem nos desafiado a ava- a um evento de celebração da poesia. O
liar as editoras brasileiras que publicavam ciclo fez parte das festividades do Cen-
poesia contemporânea nos anos 1980 e tenário do Primeiro de Maio, recebeu
1990, e em que medida a Claro Enigma o incentivo da Secretaria Municipal de
foi capaz de mobilizar um conjunto de Cultura e as atividades previstas para o
recursos simbólicos, econômicos, técnicos evento transcorreram no Museu de Arte
e políticos que impactaram as edições de de São Paulo (Masp).
poesia no país, sobretudo quando se tem Ali estavam autores da Claro Enigma,
em conta que a coleção foi publicada por como Francisco Alvim, José Paulo Paes,
uma editora que havia saído de evidência Alcides Villaça e Orides Fontela. Tam-
em finais do século passado. bém participaram Adélia Prado, Manoel
Pela seleção dos autores, pela materia- de Barros e jovens poetas brasileiros.
lidade das obras e pelo diálogo promovido Cleber Teixeira, Massao Ohno, Gastão
entre poetas, artistas plásticos e críticos de Hollanda, Pedro Paulo Sena Madu-
literários reconhecidos em suas respecti- reira e outros representaram os editores
vas áreas de atuação, o projeto editorial de poesia, enquanto a crítica literária se
de Augusto Massi também foi um marco fez presente com Alfredo Bosi, Luiz Costa
no quesito das sociabilidades literárias, Lima e Vilma Arêas. O ciclo homenageou
as quais foram promovidas em razão das os poetas Ana Cristina Cesar, Leminski e
ações que ele colocou em prática. Ape- Cacaso, e simultaneamente realizou mos-
sar da dificuldade inicial em vender os tras de livros ao divulgar edições raras,
1.500 exemplares impressos por título, a revistas e outras publicações literárias. Em
coleção recebeu dois importantes prêmios recente entrevista concedida ao Estado de

Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 105-122 • outubro/novembro/dezembro 2023 119


dossiê edição e política

Minas, Augusto Massi enfatizou a reper-


cussão cultural do evento:

“A Claro Enigma não só vendeu bem como


me abriu os olhos para uma produção igno-
rada que chegava pelo correio, vinda de
diferentes cantos do país. Parte do mate-
rial foi incorporada num grande evento,
‘Artes e Ofícios da Poesia’ [...]. Poetas e
editores do Brasil todo [...] ocuparam o
Masp durante uma semana intensa, frené-
tica, fanática, manhã, tarde e noite. Poetas
que não pude publicar na Claro Enigma
foram contemplados no evento e, poste-
riormente, participaram de uma antologia
homônima [...]” (Braile, 2021).
Imagem 5. Cartaz de divulgação
do ciclo Artes e Ofícios da Poesia.
Organizada por Massi (1991), a obra Fonte: Centro de Documentação
Artes e ofícios da poesia é um dos e Memória da Unesp
registros do ciclo ocorrido em 1990 e uma
demonstração explícita da repercussão
proporcionada com a publicação da Ao fim e ao cabo, a Claro Enigma
coleção. Logo na orelha do livro, ele parece ter se tornado uma referência para
menciona que a Claro Enigma provou a personalidades do meio editorial e cultu-
existência de uma nova poesia e que a ral. Duas décadas após sua publicação, o
antologia pretendia dar continuidade aos poeta Carlito Azevedo afirmou:
debates sucedidos na semana do evento, a
fim de promover uma “discussão literária “Que uma coleção de poesia pode ter uma
permanente” e uma “ampliação do espaço intervenção poderosa na literatura de um
literário”. Segundo o organizador, aquele momento específico ficou mais do que
livro seria impensável no início dos anos provado com a Claro Enigma, editada
1980, quando os poetas se queixavam da pelo Augusto Massi, nos anos 80, que
crítica literária, dos editores, de outros ajudou a quebrar muitos preconceitos, ven-
autores e até mesmo dos leitores. Em cer muitas dicotomias, fez a discussão
sua opinião, a realização do ciclo e o avançar. [...] e num projeto gráfico que
lançamento da antologia que reuniu 29 reunia o artesanal, melhor característica
poetas eram dois indicadores da tomada da poesia independente, com um sistema
de consciência da poesia contemporânea profissional de edição e distribuição, van-
como arte e ofício, elementos que per- tagem indiscutível da máquina editorial.
mitiram levar adiante a crítica literária A Claro Enigma reconfigurou bastante o
e a realização poética. ambiente” (Werneck, 2011).

120 Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 105-122 • outubro/novembro/dezembro 2023


Ao reunir 13 poetas de diferentes gera- suscitar novos debates em torno da pro-
ções, a coleção provocou e realinhou o dução poética. Augusto Massi colocou a
cenário da poesia brasileira, provando poesia na ordem do dia e reavivou o catá-
que um projeto editorial concebido como logo da Livraria Duas Cidades ao realizar
intervenção cultural é capaz de promover um projeto editorial original, graficamente
sociabilidades literárias, de criar novas inovador e simultaneamente coerente com
formas de editar e divulgar poesia, e de as primeiras edições de poesia da casa.

REFERÊNCIAS

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Edusp, 2015.
BARILE, J. P. B. “Augusto Massi: ‘Me sinto herdeiro dessa militância a favor da crônica’”.
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BOURDIEU, P. “Uma revolução conservadora na edição”. Política & Sociedade, v. 17, n. 39.
Florianópolis, mai.-ago./2018, pp. 198-249.
CRENI, G. Editores artesanais brasileiros. Belo Horizonte, Autêntica, 2013.
GUELFI, M. L. F. “Do mimeógrafo ao laser: 20 anos de poesia”. Caravelle, n. 57, 1991,
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HALLEWELL, L. O livro no Brasil: sua história. 3ª ed. Trad. de Maria da Penha Villalobos,
Lólio Lourenço de Oliveira e Geraldo Gerson de Souza. São Paulo, Edusp, 2012.
MASSI, A. (org.). Artes e ofícios da poesia. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1991.
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MELLO, S. H. de M. Editando o editor 9: Guilherme Mansur. São Paulo, Edusp/Com-Arte,
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MOLLIER, J.-Y. “Naissance de la figure de l’éditeur”, in B. Legendre; C. Robin (orgs). Figures
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MUSEU DA IMAGEM E DO SOM. Ases da capa: 3 décadas de desenho gráfico em capas de
livros no Brasil. São Paulo, Donnelley Cochrane Gráfica Editora do Brasil, 2000.

Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 105-122 • outubro/novembro/dezembro 2023 121


dossiê edição e política

OLIVEIRA, S. R. de. “Brazilian arts: the migration of poetry to videos and instllations”,
in S. A. Glaser. Media inter media. Essays in honor of Claus Cluver. Amsterdam/New York,
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QUINTA, H.; SILVA, W. C. L. da. “O arquivo pessoal de José Petronilo de Santa Cruz: o
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QUINTA, H. de C. A trajetória de Santa Cruz e da Livraria Duas Cidades: o livreiro-editor
de religiosos, universitários e intelectuais na cidade de São Paulo (1954-2006). Tese de
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RIDENTI, M. “Caleidoscópio da cultura brasileira (1964-2000)”, in S. Miceli; H. Pontes
(orgs.). Cultura e sociedade: Brasil e Argentina. São Paulo, Edusp, 2014, pp. 21-72.
SALGUEIRO, W. C. F. “Notícias da atual poesia brasileira: dos anos 1980 em diante”,
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SORÁ, G. Brasilianas: José Olympio e a gênese do mercado editorial brasileiro. São Paulo,
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Azevedo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 17/set./2011.

Arquivos consultados

Arquivo pessoal de José Petronilo de Santa Cruz e da Livraria Duas Cidades.


Arquivo do Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista.

122 Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 105-122 • outubro/novembro/dezembro 2023


textos
O preço da liberdade é a
eterna vigilância: os desafios
das democracias frente ao
crescimento da extrema direita

Carla A. Risso
Marcello C. Rollemberg

S
egundo Rodrigues (1983, p. 14), “pela na-
tureza de seu espírito, o homem não pode
lidar com o caos. Seu maior medo é o
de defrontar-se com aquilo que não pode
controlar, seja por meios técnicos, seja
por meios simbólicos”. E é por reconhe-
cer que há algo de intrinsecamente bom e
virtuoso na lei e na ordem que, ao longo
de toda a história da humanidade, a livre
expressão de ideias tem sido submetida a
alguma forma de censura para assegurar a
conformidade do comportamento de seus

CARLA A. RISSO é professora


da Faculdade de Comunicação da
Universidade Federal da Bahia (UFBA).

MARCELLO C. ROLLEMBERG é jornalista,


doutor em Ciências da Comunicação pela
ECA-USP e editor de cultura do Jornal da USP.

Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 125-138 • outubro/novembro/dezembro 2023 125


textos / Homenagem

membros a um conjunto de regras e prin- Segundo Berlin (2002, p. 215), a exten-


cípios prescritos e sancionados. são da liberdade de um homem – ou de um
E a censura pode apresentar-se de várias povo – precisa ser confrontada com vários
maneiras – por exemplo, como ferramenta outros valores, tais como a igualdade, justiça,
usada por regimes totalitários para impedir felicidade, segurança ou ordem pública. Por
a propagação de ideias que questionam a essa razão, a liberdade nunca será ilimitada2.
organização do poder, ou até como uma
autocensura imposta pelos indivíduos a si Mesmo que não haja liberdade plena de
próprios. As justificativas para seu uso ação, é possível conceber que todo indivíduo
também são variadas: banir o que é, em ainda possui a liberdade de pensamento,
um determinado entendimento, indecente mesmo que não o expresse. Nesse senti-
ou obsceno; herético ou blasfemo; sedicioso do, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman
ou traiçoeiro. Assim, as ideias vêm sendo (2005, p. 141) afirma:
suprimidas sob o pretexto de proteger as
três principais instituições sociais: a fa- “Nós, seres humanos, somos, e não pode-
mília, a Igreja e o Estado. mos deixar de ser, animais ‘transgresso-
A dicotomia sempre presente entre res’ e ‘transcendentes’. Vivemos à frente
liberdade de expressão e a manutenção do presente. Nossas representações podem
dos valores éticos da sociedade tem sua ser destacadas dos sentidos e correr na
origem no conceito filosófico de liberda- frente deles. O mundo em que vivemos
de, que, geralmente, é dado pela negação está sempre a um passo, ou quilômetro,
(Risso, 2020): trata-se da ausência de im- ou um ano-luz à frente do mundo que
pedimentos externos capazes de impedir vivenciamos. A essa parte do mundo que
o indivíduo de fazer o que quiser, como se estende à frente da experiência vivida
diria o filósofo Thomas Hobbes (1588- damos o nome de ‘ideais’. A missão dos
1679). Isaiah Berlin (2002, p. 178) aponta ideais é conduzir-nos a um território ainda
que, para além dessa definição negativa inexplorado e não mapeado”.
de liberdade, há uma liberdade positiva:
O DIREITO À LIBERDADE
“The ‘positive’ sense of the word ‘lib-
erty’ derives from the wish on the part
DE EXPRESSÃO
of the individual to be his own master. I
wish my life and decisions to depend on A Declaração Universal dos Direitos
myself, not on external forces of what- Humanos, datada de 10 de dezembro de
ever kind”1. 1948, em seu artigo 19, afirma que: “To-

2 “The extent of a man’s, or a people’s, liberty to choose


1 “O sentido ‘positivo’ da palavra ‘liberdade’ deriva to live as he or they desire must be weighed against
do desejo por parte do indivíduo de ser seu próprio the claims of many other values, of which equality, or
mestre. Desejo que minha vida e minhas decisões justice, or happiness, or security, or public order are
dependam de mim mesmo, e não de forças externas perhaps the most obvious examples. For this reason,
de qualquer tipo” (tradução dos autores). it cannot be unlimited.”

126 Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 125-138 • outubro/novembro/dezembro 2023


do ser humano tem direito à liberdade de IX - é livre a expressão da atividade intelec-
opinião e expressão; este direito inclui a tual, artística, científica e de comunicação,
liberdade de, sem interferência, ter opi- independentemente de censura ou licença”.
niões e de procurar, receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios Para complementar, o artigo 220 garan-
e independentemente de fronteiras”. Mas te a liberdade de expressão no que tange à
esse direito não foi estendido e assegurado comunicação social:
a todos de maneira uniforme.
Em terras brasileiras, foi preciso superar “Art. 220. A manifestação do pensamen-
uma ditadura (1964-1985), que perseguia, to, a criação, a expressão e a informação,
torturava e condenava seus opositores à pri- sob qualquer forma, processo ou veículo,
são, à morte ou ao exílio, para se extinguir não sofrerão qualquer restrição, observado
a censura oficial no Brasil. Na Constituição o disposto nesta Constituição.
promulgada em 1988, é garantida a liberda- § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que
de de expressão em seu artigo 5º, que trata possa constituir embaraço à plena liberdade
dos direitos fundamentais difundidos por 78 de informação jornalística em qualquer
incisos. Seguem-se aqueles que estão mais veículo de comunicação social, observado
ligados à liberdade de expressão: o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem natureza política, ideológica e artística”.
distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no país a inviolabilidade do direito à vida, À SOMBRA DA CENSURA
à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: Apesar de a censura clássica ter sido
IV - é livre a manifestação do pensamento, extinta no Brasil com a Constituição de
sendo vedado o anonimato; 1988, é possível observar a existência de
V - é assegurado o direito de resposta, pro- diversos exemplos que evidenciam que a
porcional ao agravo, além da indenização cultura censória ainda existe no país – mes-
por dano material, moral ou à imagem; mo que de forma indireta, disfarçada como
VI - é inviolável a liberdade de consciên- processos judiciais, boicote financeiro ou
cia e de crença, sendo assegurado o livre veto a mensagens publicitárias estatais.
exercício dos cultos religiosos e garantida, Maria Cristina Castilho Costa, da Uni-
na forma da lei, a proteção aos locais de versidade de São Paulo, no vídeo de apre-
culto e a suas liturgias; sentação no YouTube do Projeto Prosa sem
[...] VIII - ninguém será privado de direitos Censura, salienta que “a vontade de con-
por motivo de crença religiosa ou de convic- trolar a crítica, de controlar a denúncia,
ção filosófica ou política, salvo se as invocar de controlar as ideias alternativas a um
para eximir-se de obrigação legal a todos determinado regime, a um determinado
imposta e recusar-se a cumprir prestação sistema num país –, continua permanente”.
alternativa, fixada em lei; E, para além dos censores oficiais, ainda

Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 125-138 • outubro/novembro/dezembro 2023 127


textos / Homenagem

são utilizados “outros meios indiretos pelos foi publicado na edição de aniversário
quais pessoas que ocupam determinados da edição brasileira da Playboy. As fo-
cargos, que tenham autoridade ou que te- tos realizadas em pontos históricos de
nham algum tipo de poder buscam definir Salvador, como o Pelourinho e a esca-
aquilo que pode ou não chegar ao público” daria da Igreja do Paço, traziam como
(Universidade de São Paulo, 2019). Assim personagens Dona Flor, Tieta e Gabrie-
sendo, os que ocupam o poder fazem uso la, as musas de Jorge Amado. Em pou-
desses meios como ferramenta de ascensão co tempo, a foto em que a atriz aparece
e permanência desse mesmo poder. vestida com um corpete, com os seios à
Podemos relatar inúmeros casos. Em mostra e um terço nas mãos causou po-
sua tese de doutorado Ecos do silêncio: lêmica. A censura da revista foi pedida
liberdade de expressão e reflexos da cen- em ação conjunta do Instituto Juventude
sura no Brasil pós-abertura democrática, Pela Vida, do Rio de Janeiro, e por um
Ivan Paganotti (2015, p. 274) defende: padre de Goiás. O juiz Oswaldo Freixi-
nho, da 29ª Vara Cível do Rio de Janeiro,
“No contexto histórico da redemocrati- no dia 25 de agosto de 2008, proibiu que
zação brasileira, cozida no fogo brando a imagem polêmica fosse veiculada em
de uma transição negociada, a solidez da novas edições da revista – uma decisão
antiga cultura monolítica de respeito e completamente ineficaz, uma vez que não
submissão à autoridade ainda se encontra impediu a circulação da publicação, nem
em derretimento gradual, enquanto novas tão pouco a remoção do conteúdo na ver-
instituições e demandas mais libertárias são online. Nessa mediação, o Poder Judi-
procuram encontrar seu espaço e respaldo ciário atendeu à demanda dos solicitantes,
social para cristalizar-se”. porém não causou danos ao censurado.
Outra violação à liberdade de expressão
Essa transição sem ruptura no Brasil promovida pelo Poder Judiciário se deu pela
permitiu a permanência dos poderes polí- caneta do desembargador Benedicto Abicair,
ticos e utilizou a concessão de meios de do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
comunicação como moeda de troca, o que (TJ-RJ). Em janeiro de 2020, Abicair acatou
evitou a criação de novos processos de cen- o pedido do Centro Dom Bosco para retirar
tralização do controle comunicativo. Cabe o programa “Especial de Natal Porta dos
lembrar que apenas 11 famílias controlam Fundos: A primeira tentação de Cristo” da
os principais meios de comunicação e 10% plataforma digital Netflix. O argumento
dos deputados são donos de concessões de para a suspensão é que o programa ofendeu
rádio e televisão no país. A censura tem, a fé e a religião cristã ao apresentar Jesus
assim, grande capilaridade no país e pode Cristo como homossexual. A Netflix apre-
ser observada em várias ocorrências, pro- sentou recurso ao Supremo Tribunal Federal
vocada por diversos atores sociais e quase (STF), que reverteu a decisão e determinou
sempre mediada pelo Poder Judiciário. a manutenção do programa no ar.
Em agosto de 2008, um ensaio do fo- Como se vê, é muito difícil abando-
tógrafo Bob Wolfenson com Carol Castro nar a cultura autoritária após séculos

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de condicionamento. No caso brasileiro, 30% para 41%. Esse é um exemplo claro
frequentemente é preciso apelar para o de tentativa de censura por meio de boi-
Poder Judiciário para atender a algumas cote financeiro, a fim de enfraquecer os
demandas sociais por maior liberdade de veículos que não são aliados do presidente
expressão. Ivan Paganotti (2015, p. 268) – a Globo fez uma cobertura muito dura
lembra que esse processo de judicializa- durante todo o período do governo Bol-
ção da censura tem um custo, que acaba sonaro, com críticas diretas ao presidente
por retroalimentar suas causas em novas e a seus filhos parlamentares.
consequências. Esse custo é definido por Os ocupantes de cargos executivos, em
Paganotti como “uma atrofia democrática todas as instâncias, também costumam im-
como resultado de abuso de muleta ju- por sua sanha censória por meio de ofícios.
diciária” para um país que manca pelo Em 5 setembro de 2019, o então prefeito
subdesenvolvimento de um Poder Legis- do Rio, Marcelo Crivella, pediu para a
lativo e que, por isso, precisa apelar para organização da Bienal do Livro da cida-
soluções emergenciais da Justiça. de recolher uma publicação à venda no
Para além dos meios jurídicos, a cen- evento: o romance gráfico (graphic novel)
sura pode ser exercida também pelo poder Vingadores, a cruzada das crianças, que
do dinheiro. Em 12 de agosto de 2020, de continha uma cena de dois personagens
acordo com os jornalistas Fábio Fabrini masculinos se beijando. Em um vídeo pu-
e Julio Wiziack, da Folha de S. Paulo, o blicado em seu Twitter, Crivella justificava
Tribunal de Contas da União (TCU) – ins- seu pedido porque, a seu ver, a obra con-
tituição que exerce a fiscalização contábil, tinha “conteúdo sexual para menores”. A
financeira, orçamentária, operacional e pa- organização do evento conseguiu na Jus-
trimonial do governo brasileiro – identifi- tiça do Rio de Janeiro uma liminar para
cou falta de critério técnico na mudança impedir a interferência da administração
da divisão das verbas oficiais investidas do município no evento e para garantir
nas principais emissoras de televisão do a sua continuidade. A assessoria de im-
país. Apesar de ser líder em audiência, prensa da Bienal do Livro confirmou à
com média diária de público maior do que imprensa que a obra se esgotou na manhã
Record TV e SBT juntos, a Rede Globo do dia seguinte à interferência censória
teve a participação reduzida de 39% pa- de Marcelo Crivella.
ra 16%, uma queda de quase 60% em Em seu livro Resistência – leitores,
comparação entre 2018, sob a gestão de autores, livreiros, editores e censura a
Michel Temer, e 2019, ano do primeiro livros no Brasil de 2019 a 2022, Reimão
mandato de Jair Bolsonaro. No mesmo et al. (2023, p. 14) afirmam:
período, o investimento de publicidade
oficial da Secretaria de Comunicação da “Na realidade, o que havia, por parte do
Presidência (Secom) em emissoras cujos prefeito do Rio de Janeiro, era uma per-
donos eram apoiadores de Jair Bolsona- seguição homofóbica, pois há um beijo
ro aumentou – a Record TV viu a verba entre dois personagens masculinos em uma
aumentar de 31% para 43% e o SBT, de página interna do livro. Convém ressal-

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tar que o livro estava embalado por ca- afirmou que as apostilas seriam devolvidas
pas plásticas, como prevê o Estatuto da às escolas sem nenhuma alteração no ma-
Criança e do Adolescente. Note-se que terial, mas com um “encarte” com orien-
não há nenhuma imagem erótica ou se- tações aos professores de como se deve
xual na capa do livro”. aplicar o conteúdo.
Outro caso de censura a livros foi
Como lembram os autores, imposto pela Secretaria de Educação de
Santa Catarina em novembro de 2023,
“no dia 7 de setembro, às 19 horas, no quando decidiu retirar nove livros da rede
Riocentro, local onde ocorria a Bienal pública de ensino. São eles: A química
Internacional do Livro, várias bandeiras entre nós, de Larry Young e Brian Ale-
com cores do arco-íris foram estendidas xander; Coração satânico, de William
e o público realizou um grande beijo si- Hjortsberg; Donnie Darko, de Richard
multâneo com os dizeres: ‘Fora Crivella’ Kelly; Ed&Lorraine Warren: demonolo-
e ‘Não vai ter censura’” (Reimão et al., gistas – arquivos sobrenaturais, de Gerald
2023, p. 15). Brittle; Exorcismo, de Thomas B. Allen;
It: a coisa, de Stephen King; Laranja
Dias antes desse episódio, o então go- mecânica, de Anthony Burgess; Os 13
vernador do estado de São Paulo, João Do- porquês, de Jay Ascher; O diário do dia-
ria, mandou recolher o material escolar de bo: os segredos de Alfred Rosenberg, o
ciências para alunos do Ensino Fundamen- maior intelectual do nazismo”, de Robert
tal da rede estadual. A apostila explica os K. Wittman e David Kinney. O ofício que
conceitos de sexo biológico, identidade de determinou a retirada de circulação desses
gênero e orientação sexual – com orienta- nove livros, enviado para a rede pública
ções sobre gravidez e doenças sexualmente pelo supervisor regional de Educação de
transmissíveis. O governador também se Florianópolis, Waldemar Ronssem Júnior,
manifestou sobre o caso, via Twitter: não contém nenhuma justificativa ou ex-
plicação para essa resolução. O Ministério
“Fomos alertados de um erro inaceitável Público de Santa Catarina foi acionado
no material escolar dos alunos do 8º ano pelo vereador Leonel Camasão (PSOL),
da rede estadual. Solicitei ao secretário de Florianópolis, para que apure os fatos
de Educação o imediato recolhimento do e tome as devidas providências.
material e apuração dos responsáveis. Não Rodrigo Casarin (2023), colunista do
concordamos e nem aceitamos apologia à Splash/UOL, fez a seguinte reflexão:
ideologia de gênero”.
“O jeito burocrático como a ordem para
Uma semana depois, o Tribunal de Jus- a retirada dos livros de circulação ocor-
tiça do Estado de São Paulo concedeu uma reu me parece um detalhe importante. Até
liminar que determinou a anulação do ato outro dia os gestos de censura eram feitos
do governo de São Paulo. No dia 13 de com contornos espalhafatosos por políticos
setembro de 2019, o governador João Doria que ascenderam com o obscurantismo. Pro-

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curavam um alvo. Vomitavam bobagens e Na matéria intitulada “Linha de publici-
demagogias. Com a projeção, fortaleciam dade do governo mudou, diz Bolsonaro”4,
a base e arrumavam mais alguns apoia- assinada por Pedro Rafael Vilela, da Agên-
dores. Agora, não. A coisa se deu numa cia Brasil, em 27 de abril de 2019, é re-
canetada, como se fizesse mesmo parte produzida a fala do chefe do Estado bra-
das atividades do Estado estipular o que sileiro sobre o caso:
pode ou não ser lido.
Pior: me parece que a sociedade naturaliza “Quem indica e nomeia o presidente do
certa ideia de que é legítimo estipularmos Banco do Brasil, não sou eu? Não precisa
o que os demais podem acessar e como falar mais nada, então. A linha mudou.
devem fazê-lo”. A massa quer o quê? Respeito à família,
ninguém quer perseguir minoria nenhuma.
No âmbito federal, durante todo o E nós não queremos que dinheiro público
mandato de Jair Bolsonaro foi possível seja usado dessa maneira”.
observar um número crescente de polê-
micas envolvendo atos censórios. Uma A campanha, que não voltou a ser vei-
das primeiras ocorreu com a remoção do culada, foi substituída por outro vídeo em
comercial do Banco do Brasil lançado agosto do mesmo ano. A nova propagan-
em 31 de março de 2019. A campanha da, mais conservadora, mostra mais de
publicitária, que convidava o público a 50 jovens, quase todos vestindo amarelo,
abrir uma conta pelo aplicativo da ins- a cor da marca do banco5.
tituição, foi tirada do ar em 14 de abril, Em outubro de 2022, o Fórum Nacio-
a pedido do presidente da República. O nal pela Democratização da Comunicação
filme, repleto de termos populares na (FNDC) publicou Violações à liberdade de
internet, era dirigido ao público jovem, expressão no Brasil – 2019 a 2022. Esse
com atores que representavam a diver- relatório, produzido pela Campanha Calar
sidade racial e sexual 3. O descontenta- Jamais, indica que a violação à liberdade
mento do presidente da República com de expressão foi institucionalizada no país
a campanha causou ainda a exoneração pelo então presidente da República:
do diretor de Comunicação e Marketing
do Banco do Brasil, Delano Valentim, “Jair Bolsonaro é o principal porta-voz da
responsável pela aprovação das peças violência, da agressividade contra qualquer
publicitárias. No começo de maio, Jair
Bolsonaro afirmou, em seu Twitter, que
o veto não se tratou de censura, mas
4 Agência Brasil. (2019, 27 de abril). Disponível em:
“de respeito com a população brasileira”. https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noti-
cia/2019 - 04/linha-de-publicidade-do-governo-
-mudou-diz-bolsonaro#.
5 Banco do Brasil estreia comercial após veto po-
lêmico de Bolsonaro (2019, 19 de agosto). Dispo-
3 Comercial Selfie, da WMcCann para Banco do Brasil nível em: https://economia.uol.com.br/noticias/
(2019, 25 de abril). Disponível em: https://www.youtu- redacao/2019/08/19/banco-do-brasil-estreia-comercial-
be.com/watch?v=TpvVkJnj1f8. -apos-veto-polemico-de-bolsonaro-veja.htm.

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profissional (jornalista, comunicador, artista, culpado pelas mazelas que poderiam se


professor), veículo de comunicação, grupo abater sobre seus reinos. De Dario III, na
artístico-cultural, instituição educacional que Pérsia, passando por Gengis Khan, impe-
expresse uma visão de país e mundo distinta radores romanos e califas muçulmanos,
da sua e de seu governo” (FNDC, 2022). muitos mataram mensageiros azarados co-
mo se, dessa forma, também se livrassem
O Fórum Nacional pela Democratiza- da notícia incômoda. Muito mais do que
ção da Comunicação contabilizou ao todo uma questão de miopia política e sober-
110 denúncias de violações à liberdade de ba, a prática era tal que na Roma Antiga
expressão, categorizadas em: 1) violações cunhou-se uma expressão para proteger
contra jornalistas, comunicadores sociais, aquele cuja missão era apenas dar uma má
veículos e meios de comunicação – a maio- notícia, não a criar: ne nuntium necare
ria das denúncias, com 54 ocorrências; – justamente “não mate o mensageiro”.
2) censura a manifestações artísticas; 3) Não adiantou muito. Até porque Sófocles,
cerceamento a servidores públicos; 4) re- em sua Antígona, já definia: “ninguém
pressão a protestos, manifestações sociais ama o mensageiro que traz más notícias”.
e organizações políticas; 5) repressão e Os séculos passaram, os tempos muda-
censura a instituições de ensino; 6) des- ram. E os mensageiros também. Mas não a
monte da comunicação pública; 7) discri- prática de culpar aquele que traz más novas.
minação contra grupos oprimidos; e 8) No caso, o alvo desde o século passado é
crimes contra a saúde pública. o jornalista, esse profissional inconveniente
que teima em colocar nas páginas de jornais
“Para que exista em uma sociedade a pos- e revistas, nas ondas do rádio, nas imagens
sibilidade de construção de uma opinião de TV e nas telas de aparatos eletrônicos
pública esclarecida é necessário que haja dos mais variados gêneros notícias que in-
debates de ideias. Ora, impedir a circulação comodam – e muito – os poderosos. Ou
de informação e promover a desinformação aqueles que se acham assim.
com teorias conspiratórias e negacionistas E não dá nem para dizer que a ex-
foi exatamente a estratégia pela qual o go- pressão “não mate o mensageiro” seja al-
verno Bolsonaro procurou gerar o caos e go mais para o metafórico do que para a
a instabilidade e assim dominar o espaço realidade, digamos, de um khan mongol.
público” (Reimão et al., 2023). Nada disso. Desde 1993, a Unesco (Or-
ganização das Nações Unidas para Edu-
LIBERDADE DE IMPRENSA AMEAÇADA cação, Ciência e Cultura) contabiliza o
número de jornalistas mortos no exercício
das suas funções. Até o dia 30 de ou-
Na Antiguidade, reis, ditadores e pode- tubro de 20236 , havia 1.626 registros de
rosos de todas as estirpes e naipes tinham
um hábito nada recomendável: mandar
matar aquele mensageiro que lhes trazia
6 Ver: https://www.unesco.org/en/safety-journalists/
más notícias, como se o portador fosse observatory.

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jornalistas assassinados em todo o mundo um populista autoritário chega ao poder,
– isso representa, em média, uma morte normalmente elege a imprensa como um
por semana. Embora tenha ocorrido certo de seus inimigos. Foi o que fizeram o
progresso nos últimos cinco anos, a taxa americano Donald Trump e o brasilei-
de impunidade em casos de assassinatos de ro Jair Bolsonaro durante seus mandatos
jornalistas permanece incrivelmente alta, presidenciais. No Brasil, ocorreram tantas
no patamar de 86% (Unesco, 2023). Além agressões que o Sindicato dos Jornalistas
dos assassinatos, os jornalistas continuam do Estado de São Paulo (SJSP), em abril
a ser ameaçados com múltiplas formas de de 2021, decidiu mover uma ação civil
violência, como desaparecimentos forçados, contra o ocupante do mais alto cargo do
sequestros e detenções arbitrárias, assédio Poder Executivo brasileiro, listando 175
legal e violência digital, principalmente ataques de Bolsonaro contra profissionais
contra as profissionais mulheres. da imprensa, apenas em 2020. O ex-líder
Jornalismo não é uma profissão que do Executivo foi responsável por 40,89%
requeira tranquilidade. Pelo contrário. de todas as agressões a jornalistas em
Talvez isso até faça parte do tal “char- 2020, de acordo com a entidade da ca-
me” que o senso comum – ou parte dele tegoria. Em outubro de 2023, o Tribunal
– vê no jornalista. Ser jornalista requer, de Justiça de São Paulo (TJ-SP) confir-
na verdade, determinação e uma vontade mou em definitivo a condenação do ex-
inaudita de encontrar a verdade dos fatos, -presidente Jair Bolsonaro (PL) por dano
fazer as perguntas que ninguém quer res- moral coletivo à categoria de jornalistas.
ponder, mostrar à sociedade o que muitos O ex-presidente terá de pagar uma inde-
gostariam de ver encoberto ou esquecido. nização de R$ 50 mil.
Por mais arriscado e perigoso que isso Bolsonaro expressou diversas vezes
possa ser. Porque, na verdade, é. sua simpatia pela ditadura militar, pe-
Mesmo quando jornalistas não andam ríodo em que se fez de tudo e mais um
com um alvo pregado nas costas, ainda pouco para censurar a imprensa e calar
assim sofrem perseguição por dar as no- jornalistas – em alguns casos terríveis, de
tícias que muitos não gostariam de ler, forma definitiva. Não concedeu uma úni-
ver ou ouvir. Como se essa categoria pro- ca entrevista coletiva em todos os quatro
fissional fosse a responsável pelas más anos de mandato e limitava-se a falar com
notícias. Se não são, no mínimo, demo- seus apoiadores em frente ao Palácio da
nizados, jornalistas sofrem tentativas das Alvorada, no chamado “cercadinho”. O
mais variadas de serem calados ou, pelo espaço foi usado para dar recados e in-
menos, intimidados. formações institucionais, além de proferir
Como ressalta Traquina (2005, p. 22), xingamentos aos setoristas que esperavam
“a democracia não pode ser imaginada a saída de Bolsonaro – os registros eram
como um sistema de governo sem liber- gravados pelos próprios apoiadores e di-
dade, e o papel central do jornalismo, vulgados nas redes sociais.
na teoria democrática, é de informar o Em maio de 2020, após uma escalada
público sem censura”. Por isso, quando de ataques verbais e hostilidades aos jorna-

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listas que faziam a cobertura presidencial dades, como a Federação Nacional dos
no cercadinho, os grupos Globo e Ban- Jornalistas e a Associação Brasileira de
deirantes, o jornal Folha de S. Paulo e o Imprensa, também emitiram notas de re-
portal Metrópoles anunciaram a suspensão púdio denunciando essas humilhações e
do plantão de repórteres no local devido cobrando respostas das autoridades. Se-
à falta de segurança – decisão já tomada gundo o monitoramento da Abraji, houve
pelo site Congresso em Foco e pelo jor- 59 ocorrências de discurso estigmatizante
nal Correio Braziliense dois meses antes. contra jornalistas por parte de políticos e
agentes públicos em 2019 e outras 39 até
“Era uma descompostura não apenas contra 25 de maio de 2020 8.
os jornalistas ali presentes, ou às marcas que Mas a perseguição a jornalistas – ou o
eles representam. Mas contra toda a socie- questionamento ao seu trabalho – não é
dade. Jornalistas e mídia são expressão do uma exclusividade do governo Bolsonaro.
desejo da população de ser informada. Não Mesmo governos democráticos e com ban-
há jornalismo perfeito, e é legítimo apon- deiras progressistas também se arvoraram
tar e corrigir os seus erros. Quem promove – e se arvoram – em colocar o papel da
campanha contra a imprensa, no entanto, é imprensa contra a parede. O jornalista e
aspirante a ditador, é quem não aceita ser professor Eugênio Bucci, que, ao mesmo
questionado. Ao menosprezar, mandar calar tempo que deita um olhar crítico sobre as
a boca, se recusar a responder perguntas, falhas da imprensa, também defende com
ameaçar e retaliar, Bolsonaro deixa de tratar determinação o seu inquestionável trabalho
dos muitos temas espinhosos de um governo para a sociedade, lembrou em duas passa-
que conquistou fama mundial pela prepo- gens como os governos de Lula e Dilma
tência e pela inépcia. Desqualifica para não Rousseff viam o trabalho dos jornalistas
ter de falar do Bolsonaro real, cuja honesti- e da imprensa em geral. Em um artigo
dade e cujos supostos méritos de liderança publicado na revista Época em 4 de ou-
são proclamados apenas por quem está de- tubro de 2014, Bucci lembrou uma frase
sinformado, mal-intencionado ou lhe deve do ex-presidente pouco antes da vitória de
obediência hierárquica. Para completar, fiel Dilma: “Vamos derrotar alguns jornais e
à vocação dos populistas, inventa adversários revistas que se comportam como partidos
contra os quais procura unir militantes cada políticos. Não precisamos de formadores
vez mais fanáticos e perigosos” (Congresso de opinião. Nós somos a opinião pública”.
em Foco, 2020)7. A seguir, o jornalista continuou:

A Associação Brasileira de Jornalis- “Se fosse uma pessoa comum desabafan-


mo Investigativo (Abraji) e outras enti- do numa mesa de bar, tudo bem. Mas ali

7 Ver: https://congressoemfoco.uol.com.br/cf-premio-e- 8 Ver: https://www.abraji.org.br/noticias/veiculos-de-


-analise/congresso-em-foco/bem-vindos-ao-clube-glo- -imprensa-suspendem-cobertura-presidencial-na-
bo-e-folha-o-jornalismo-nao-cabe-em-cercadinhos/. -porta-do-alvorada.

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quem falava era o presidente da Repúbli- – e pior, nos porões – dos poderosos. É
ca. Ao conclamar seus eleitores a fazer a “mídia golpista”, como afirmou-se há
do voto uma cruzada contra ‘jornais e pouco e gostam de repetir os poderosos
revistas’, ele confundia propositalmente acuados pela imprensa? Não cabe aqui
a opinião pública e intimidava ostensiva- talvez entrar no mérito das intenções dos
mente os órgãos de imprensa. Confundia donos de veículos de imprensa – não se
a opinião pública porque os jornais, por está falando aqui do patrão, mas do em-
piores e mais tendenciosos que sejam, pregado. Do jornalista. Do repórter. É
não são partidos, não funcionam como esse quem, no final das contas, vale a
partidos e não devem ser tratados pela pena (com e sem trocadilho). E é o alvo.
autoridade (o presidente da República) O que a imprensa faz não é publicar
como se fossem partidos. Intimidava os vazamentos, nem futricas, nem servir
órgãos de imprensa, porque insinuava ao poder, em caixa-alta ou não. Se os
que uma democracia não precisa de ‘for- jornalistas servem a alguém, em última
madores de opinião’, de ‘jornais que se instância – e aqui não se faz uma ila-
comportam como partidos’ e, finalmente, ção romântica, simplista ou ingênua, mas
de imprensa. Aquele discurso de Lula verdadeira – não é ao patrão que paga
foi uma lástima” 9. o salário, mas à sociedade. Porque uma
imprensa livre é fundamental em uma
Já em outro artigo, “Vazamento é a sociedade que se ache e se diga – e se-
mãe”, no jornal O Estado de S. Paulo ja, de fato – democrática. A liberdade
de 5 de março de 2016, Bucci questio- de expressão e a liberdade de imprensa
na a partir das “reclamações” (digamos estão nas Constituições de todos os paí-
assim) que o governo federal fazia da ses cujo povo exerce suas liberdades de
forma como eram apuradas as notícias forma ampla, seja nos Estados Unidos,
publicadas acerca das investigações da na França, na Inglaterra, no Uruguai ou
Operação Lava Jato: “Para as autoridades na Espanha. E no Brasil.
federais, jornalistas não investigam, não O que se faz é reportagem. E, como
pesquisam, não entrevistam, não racio- bem lembra mais uma vez Bucci, “ela [a
cinam. Ora, o que é uma notícia senão imprensa] deve – no sentido de ter o dever
um segredo revelado?”10 . de – ficar de olho no poder e trabalhar
Segundo ele, é mais fácil atacar, de- para descobrir os segredos do poder. Ao
monizar e diminuir a imprensa do que descobri-los, deve avaliar a necessidade e
entender ou explicar os erros em todos os a pertinência de torná-los públicos. Eis aí
níveis que podem ser cometidos nos salões o núcleo do trabalho mais essencial da ins-
tituição da imprensa livre” (Bucci, 2016).
Afinal, foi uma imprensa livre que pos-
sibilitou à sociedade saber das falcatruas
9 Ver: https://www.eca.usp.br/acervo/producao-acade- do governo Fernando Collor. Ou os ar-
mica/002653629.pdf.
dis de Richard Nixon no Caso Watergate.
10 Ver: https://www.estadao.com.br/alias/vazamento-e-
-a-mae/. Ou o quase picaresco Caso Profumo, na

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textos / Homenagem

Inglaterra dos anos 1960. Os exemplos quem for. Jornalistas são formadores de
são vários. Quando a imprensa realiza opinião, com certeza. Mas pode-se dizer
bem seu trabalho, quem ganha é a socie- que também são “informadores” para essa
dade. Quando ela erra – e sabemos que mesma opinião – ou Opinião. As conclu-
erra muitas vezes mais do que deveria sões quem deve tirar é a sociedade. E aí
ou poderia –, quem perde também é a decidir. Inclusive se vai comprar esse ou
sociedade. O jornalista vai no rebolo, vai aquele jornal, essa ou aquela revista. Ou
a reboque da qualidade (ou na falta de) se vai colocar a TV no Cartoon Network.
do trabalho realizado. Não é o jornalista que inventa a crise
Porque, não se pode jamais esquecer ou a cura. Ele não persegue nem adula
disso, o maior capital de um jornalista ninguém. Se a notícia é ruim, ainda assim
não é seu talento para escrever, sua pers- é notícia, e precisa ser revelada, contada,
picácia em apurar, as fontes que cultiva, debatida e refletida em cada bar, em cada
por mais importante que tudo isso seja. mesa de jantar, em cada salão do poder. Só
Não. O maior capital de um jornalista não culpem o mensageiro. Nem o matem.
é sua credibilidade, na maioria das ve-
zes conquistada depois de muitos anos.
E que pode ser perdida com uma rapi- CONSIDERAÇÕES FINAIS
dez diametralmente oposta. Basta uma
“barriga”, uma matéria mal apurada, um “O preço da liberdade é a eterna vigi-
texto salpicado de má fé. Ou um erro lância.” Esta frase, atribuída ao político
não intencional. Não importa. O jorna- irlandês John Philpot Curran (1750-1817),
lista Silvio Ferraz, que nos anos 1980 e nos lembra que há uma necessidade perene
1990 trabalhou no Jornal do Brasil e na de se monitorar continuamente os fatos
antiga revista IstoÉ-Senhor, usava uma que acontecem em uma sociedade para
frase emblemática e verdadeira: “escre- que seja possível identificar e neutralizar
vemos nossa biografia todos os dias”. E eventos, em suas fases iniciais, que possam
todo profissional deve cuidar bem dela. levar à instabilidade social, a revoluções
Por isso a necessidade de uma im- e à perda de direitos estabelecidos.
prensa livre em uma sociedade livre. Levitsky e Ziblatt, perplexos com a elei-
Uma precisa da outra, na ordem que se ção de Donald Trump em 2016, apontavam
quiser colocar. É a imprensa que fustiga que a democracia norte-americana estava
os poderosos, revela – depois de muito em perigo diante de uma polarização que se
bem apurado, é claro – aquilo que mui- estendia para além das diferenças políticas,
tos desejariam deixar nas sombras. Sem contaminada por conflitos de raça e cultu-
uma imprensa livre, o que sobra é o au- ra. “E, se uma coisa é clara ao estudarmos
toritarismo – ou pior, o totalitarismo, a colapsos ao longo da história, é que a po-
repressão, as bocas caladas, as mentes larização extrema é capaz de matar demo-
embotadas e os corações travados. Que cracias” (Levitsky & Ziblatt, 2018, p. 22).
fique bem claro: o papel da imprensa não Na mesma linha vão Reimão et al.
é confundir a opinião pública, seja ela (2023), apontando o quão perigoso para

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a sociedade e para as liberdades democrá- nais preservadas. O avanço da extrema
ticas – no final das contas, para o próprio direita por todas as latitudes do planeta
Estado democrático de direito – são as é um sinal claro de que a sociedade li-
manifestações que, ao tentar emular o vre – como a conhecemos e desejamos
líder autoritário e transgressor das nor- – está em xeque. Como afirma Stanley
mas sociais, acabam sendo, elas mesmas, (2019, p. 16), “[...] os políticos fascistas
veículos para reforçar movimentos de cen- reescrevem a compreensão geral da po-
sura e de combate à livre expressão. No pulação sobre a realidade [...] promoven-
caso, os autores se referem diretamente do o anti-intelectualismo, atacando uni-
aos apoiadores de Jair Bolsonaro, mas o versidades e sistemas educacionais que
sujeito não importa tanto – o mais sé- poderiam contestar suas ideias”. Desta
rio são as ações levadas adiante com os forma, explica o estudioso, cria-se “um
matizes de uma bandeira autoritária e estado de irrealidade, em que as teorias
repressora. Segundo os autores: da conspiração e notícias falsas tomam
o lugar do debate fundamentado”.
“A cultura autoritária da vigilância e da Mas mesmo governos ditos progressistas
perseguição ao diferente verificada nas esfe- – como foi apresentado neste artigo – tam-
ras do poder incentivou um imenso número bém são capazes de um olhar enviesado em
de ações realizadas por cidadãos comuns direção às liberdades individuais, de um
que passaram a achar que poderiam assim modo geral, e à liberdade de imprensa de
agir pois estariam em consonância com as forma mais específica. E também são auto-
posturas do governo de extrema direita. res/atores da tensão que acaba por perpassar
São milhares de relatos de perseguições, a sociedade como um todo, embaralhando
difamações, ameaças e ofensas por meio de o discurso e confundindo as polaridades
mídias sociais e também presencialmente do que entendemos como “liberdade” – de
durante os quatro anos do governo de Jair expressão, de ação, de vida.
Bolsonaro” (Reimão et al., 2023, p. 49). É diante deste quadro que, para
finalizar, devemos mais uma vez reforçar
Neste trabalho, apontamos as diversas o epíteto que dá título a este trabalho e
formas como ações repressoras podem se que abre estas “Considerações”: o preço
manifestar e o que elas representam para da liberdade é a eterna vigilância. Muitas
uma sociedade que deseja se manter livre, vezes, parece um preço alto e desgastante
plural e com suas garantias constitucio- a ser pago. Mas necessário.

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textos / Homenagem

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A fala consumista
(o supercliente na
ordem do consumo)

Jean Pierre Chauvin

“[…] no shopping center, que é o nosso


Panteão e Pandemônio, vêm congregar-se
todos os deuses ou demônios do consumo”

M
(Baudrillard, 2014, p. 21).

“O consumidor ideal é um homem sem caráter”


(Han, 2019, p. 73).

HÁBITAT
ercado é uma palavra milenar que car-
rega múltiplas acepções. Vilém Flusser
(2011) afirmava que o supermercado, na
forma como o conhecemos hoje, é uma
evolução gradual da basílica, que passou
a templo, depois a igreja e, finalmente,
o local para a troca de produtos. Espaço
que estimula o “pecado capital” da so-

JEAN PIERRE CHAUVIN é professor


livre-docente da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP e autor de,
entre outros, Sete falas: ensaios sobre
tipologias discursivas (Cancioneiro).

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textos / Homenagem

berba1, o supermercado sacralizou a rela- mercadinho, mercado, supermercado, hi-


ção mercantil entre homens, mercadorias permercado (e sua variante, megastore).
e serviços. Jacob-Peter Mayer (2018, p. No plano individual, o humor e a ação
14) alertava para o fato de que “o con- dos homens que o frequentam acompa-
sumo, como novo mito tribal, tornou-se nham as oscilações da conta bancária e do
a moral do nosso mundo atual. Ele está mercado de ações. Cornelius Castoriadis
a destruir as bases do ser humano, quer (1992, p. 22) sustentava que:
dizer, o equilíbrio que o pensamento eu-
ropeu, após os gregos, manteve entre as “As duas guerras mundiais, a emergên-
raízes mitológicas e o mundo do logos”. cia do totalitarismo, a derrocada do
Especialmente a partir da Segunda movimento operário […], o declínio da
Guerra Mundial (1939-1945), mercado mitologia do progresso marcam a entrada
passou a ser utilizado em contextos mais das sociedades ocidentais numa terceira
numerosos e de contornos mais fluidos, fase. […] o período subsequente a 1950
dentre os quais o macroeconômico e o caracteriza-se sobretudo pela evanescên-
microeconômico, o financeiro, o profis- cia do conflito social, político e ideo-
sional, o comercial e o empreendedorismo lógico. […] Depois dos movimentos dos
pessoal. Outro sentido igualmente vago da anos 60, o projeto de autonomia parece
palavra deriva da justaposição a outro vo- sofrer eclipse total”.
cábulo, como acontece em livre-mercado.
Essa acepção costuma se relacionar ao Em nossos dias, o supermercado apa-
universo financeiro e econômico, como renta ser uma das instituições comerciais
se vê em mercado de capitais, mercado mais sólidas, ao lado de shopping cen-
imobiliário, mercado editorial, mercado ters, bancos, livrarias, bibliotecas, facul-
de trabalho etc. dades, cafés, cinemas, casas de espetácu-
No âmbito social, o termo está forte- lo, igrejas (ou templos), parques, praças,
mente atrelado ao cotidiano das pequenas farmácias, borracharias e autoelétricas.
e grandes cidades, configurado de múl- Jean Baudrillard (2014, p. 15) observou
tiplas formas: bar, quitanda, mercearia, algumas peculiaridades que caracterizam
o universo do consumo nesse ambiente:

1 “[...] dentre as coisas que o homem naturalmente “No amontoamento, há algo mais que a
deseja está a excelência. Pois é natural ao homem – e soma dos produtos: a evidência do exce-
também a toda realidade – desejar a perfeição no
bem desejado, que consiste numa certa excelência. dente, a negação mágica e definitiva da
Tender a essa excelência segundo a regra da razão rareza, a presunção materna e luxuosa da
divinamente informada será um apetite reto e é pró-
prio da virtude da magnanimidade, segundo o que terra da promissão. Os nossos mercados,
diz o Apóstolo (II Cor. 10, 13): ‘Quanto a nós, não nos
gloriemos sem medida’, como que por uma regra que artérias comerciais. Superprisunic, imi-
nos é estranha, ‘mas segundo a regra que Deus nos tam assim uma natureza reencontrada,
deu como medida’. A deficiência em relação a essa
regra é o vício da pusilanimidade; o excesso é o vício prodigiosamente fecunda: são os nossos
da soberba [superbia], que, como o próprio nome in- vales de Canaã onde correm, em vez do
dica, é superar [superbire] a própria medida no desejo
de superioridade” (Aquino, 2004, p. 80). leite e do mel, as ondas de néon sobre

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o ketchup e o plástico. Que importa? A VALOR(ES)
esperança violenta de que não haja o bas-
tante, mas o demasiado, e demasiado para
Com Karl Marx4, havíamos aprendido
toda a gente, lá está: cada qual leva a
que a mercadoria tinha dois valores: o
pirâmide a desabar de ostras, de carnes,
de uso e o de troca. Pierre Bourdieu
de peras ou de aspargos em caixa, pelo
pressupunha que ela também comportava
fato de comprar uma simples parcela” 2 .
o caráter simbólico, conforme os desíg-
nios representativos para determinada
Com frequência, os terminais dos ban-
sociedade5. Por sua vez, Jean Baudrillard
cos se situam nas áreas circunvizinhas aos
agregou ao termo um quarto aspecto: o
supermercados. Mas há arranjos arquite-
do signo, especialmente quando a mer-
tônicos ainda mais eficazes. Isso acontece
cadoria se referia aos modos de diferen-
desde quando o estabelecimento passou a
ciação social na dimensão consumo: “A
integrar o próprio shopping center. Nesse
primeira [valor de uso] é uma lógica das
universo particular, projetado como se
operações práticas. A segunda [valor de
permitisse o acesso a uma nova dimensão
troca] é uma lógica de equivalência. A
temporal e espacial, as ações dos consu-
terceira [troca simbólica] é uma lógica
midores convergem para necessidades e
de ambivalência. A quarta [do signo] é
desejos os mais diversos:
uma lógica da diferença” (Baudrillard,
1995, p. 55).
“Entre as mercadorias presentes no shopping
Os estudos avançam nessa quarta
center está o lazer: as salas de cinema3, os
acepção, o que nos estimula a abordar
jogos eletrônicos, a praça de alimentação, os
os novos alcances da mercadoria dentro
ocasionais e padronizados eventos artísticos,
do mundo dito globalizado. Como assina-
os brinquedos etc. Os diversos equipamentos
la Valquíria Padilha (2006, p. 18): “Se a
de lazer disponíveis em shopping centers
produção das mercadorias está cada vez
levam as pessoas a encontrar diversão em
mais flexível e automatizada num mundo
torno da celebração do objeto, de modo que,
que parece irreversivelmente globalizado,
mesmo no lazer, o SER permanece subjugado
deve-se notar que as referências cultu-
ao TER” (Padilha, 2006, p. 181).

4 “A utilidade de uma coisa faz dela um valor-de-uso.


2 “Já faz tempo que a sociedade de consumo se exibe […] O valor-de-troca revela-se, de início, na relação
sob o signo do excesso, da profusão de mercadorias; quantitativa entre valores-de-uso de espécies dife-
pois agora isso se exacerbou com os supermercados rentes, na proporção em que se trocam, relação que
e shopping centers, cada vez mais gigantescos, que muda constantemente no tempo e no espaço” (Marx,
oferecem uma pletora de produtos, marcas e serviços” 2008, p. 58).
(Lipovetsky, 2004, pp. 54-5).
5 “[…] a pequena burguesia, classe de transição que se
3 “O supermercado e o cinema formam as duas asas de define fundamentalmente por aquilo que não é mais
um ventilador que insufla na massa o movimento do e pelo que ainda não é, extrai inúmeras atitudes, tal
progresso. No cinema a massa é programada para o como sua inclinação para o objetivismo, de uma
comportamento consumidor no supermercado, e do posição de dupla orientação, em relação às classes su-
supermercado a massa é solta para reprogramar-se no periores e em relação às classes populares” (Bourdieu,
cinema” (Flusser, 2011, p. 87). 2005, p. 9).

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rais também estão em pleno processo de -se, toma-se o primeiro café, assiste-se
mundialização”, em que certas “marcas ao filme, sente-se vontade de degustar
tornam-se verdadeiros símbolos de um um doce especial, visitam-se outras lojas
‘estilo de vida’”. Mais recentemente, o de roupas e quinquilharias, sente-se sono,
filósofo Byung-Chul Han (2019, p. 73) toma-se o táxi.
assinalou que “solidez e consistência não A esfera privada de consumo resiste às
são propícias para o consumo. Consumo e intempéries sociais. Sob a redoma quase
duração se excluem mutuamente. São as impenetrável de centros comerciais super-
inconsistências e a fugacidade da moda vigiados, o supercliente integra, durante
que o aceleram”. algumas horas, uma sociedade em que “o
Há meio século, Edgar Morin defen- Estado recua, a religião e a família se
dia a ideia de que o período reservado privatizam, a sociedade de mercado se
ao lazer no século XX também estava impõe”, de modo que os pilares do sujei-
previsto pela lógica do capital, já que to passam a ser “o mercado, a eficiência
obedecia aos pressupostos de uma “[…] técnica, o indivíduo” (Lipovetsky, 2004,
economia que, englobando lentamente os p. 54). No shopping center, assim como
trabalhadores em seu mercado, encontra- no supermercado, essa sensação de atem-
-se obrigada a lhes fornecer não mais poralidade 6 é reforçada pela disposição
apenas um tempo de repouso e de re- de múltiplos ambientes, cenários, bens,
cuperação, mas um tempo de consumo” produtos e serviços num mesmo lugar.
(Morin, 1977, p. 67). Os proprietários de As lojas comportam dimensões, for-
supermercados e shopping centers não matos, cores, sons e odores diversos, de
removeram os relógios à toa. Como a maneira que nossos sentidos as distingam
maioria dos quiosques e lojas não dispõe e não nos entediemos com a paisagem
de tais dispositivos à mostra, o tempo ali cifrada do cosmos mercantil. O impulso
costuma escoar rapidamente, o que suscita ao gasto é prioritário e deve retardar, se
comentários eivados de lugar-comum, a não evitar, nossas funções fisiológicas.
preencher o ócio consumista: “Tudo o que Os banheiros são recuados para saídas de
é bom acaba rápido...”; “Puxa, o tempo emergência, quase sempre menos visíveis
voa!”; “O dia rendeu, não é?”. que os bancos, as farmácias, os pet shops
Outro aspecto digno de nota, a lin- e os restaurantes:
guagem empregada pelos comerciantes
no shopping é um dos indícios de como “[…] o shopping center, um lugar de cir-
podemos vulgarizar o léxico e tecer proli- culação de mercadorias, está cada vez
xos comentários sobre temas irrelevantes mais tornando-se o local: a) de busca
e objetos reluzentes nas vitrines. Por sua da realização pessoal pela felicidade do
vez, o ambiente sintetiza a falsa sensação consumo; b) de identificação – ou não –
de que a produtividade se traduz em ca-
pacidade de consumo, no maior número
possível de departamentos e comparti-
6 “[O] relógio está para o tempo, assim como o espelho
mentos. Adquire-se um objeto, almoça- para o espaço” (Baudrillard, 1970, p. 33).

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com os grupos sociais; c) de segregação rimentar novas sobremesas e “topar” com
mascarada pelo imperativo de segurança; incríveis achados em quiosques e lojas de
d) de enfraquecimento da atuação dos se- utilidades domésticas – estrategicamente
res sociais e de fortalecimento da atuação semeadas nos desvãos do estabelecimento.
dos consumidores; e) de materialização A metragem-lucro se calcula pela quan-
dos sentimentos; f) de manipulação das tidade de estabelecimentos enfileirados8 .
consciências; g) de homogeneização dos Quando o estabelecimento conta com
gestos, dos pensamentos e dos desejos, muitos andares, escadas automáticas se
e o mais grave; h) de ocupação quase sucedem entre os pavimentos: elas brotam
integral do ‘tempo livre’ das pessoas” ou da área central ou em cantos opos-
(Padilha, 2006, p. 24). tos. No primeiro layout, elas favorecem
uma visão mais ampla do lugar: elevado,
Os comerciantes perceberam, há dé- amplo, a abrigar outros adeptos da reli-
cadas, que se deve estimular o passeio gião consumista. Se organizadas confor-
dos consumidores ansiosos, se possível me a segunda disposição, transformam
performado com aparente tranquilidade, o passeio pelos corredores em jornada
garbo e elegância. O consumidor indiscre- compulsória em meio às desventuras do
to não colabora com a imagem adequada consumo inebriante.
do shopping center ou do supermercado.
Desse modo, etiqueta e voracidade perfa- LABIRINTOS
zem uma curiosa síntese, convertida em
atos relativamente bem-comportados de
consumo7. Para estimular essa postura am- Num ambiente que pretende representar
bivalente, escadas rolantes são alocadas o simulacro para a compleição de variados
de modo calculado, com vistas a conduzir desejos e necessidades (sejam eles fisio-
o cliente pela maior distância possível, lógicos, afetivos ou materiais), há locais
sugerindo pausas para tomar café, expe- nem sempre fáceis de encontrar. O toilette,
como ficou dito, é um deles. Isso também
pode interferir na localização dos caixas

7 No Ensaio sobre a cegueira, José Saramago ilustrou


bem como a relativa ordem do supermercado é
deitada abaixo diante de situações-limite, em que a
sobrevivência importa mais que a aparência e os bons 8 Integrado ao cotidiano do homem pós-moderno, o
modos do consumidor: “Já se tinha afastado muito mercado já rendeu manifestações artísticas que per-
de onde havia deixado o marido e os companheiros, mitiram questionar a sua própria concepção de “utili-
cruzando e recruzando ruas, avenidas, praças, quando dade”. Em 1983, o compositor e multi-instrumentista
se encontrou diante de um supermercado. Lá dentro Jean-Michel Jarre prensou uma única cópia em vinil
o aspecto não era diferente, prateleiras vazias, esca- de Musique pour supermarché/Music for supermarkets.
parates derrubados, pelo meio vagueavam os cegos, O artista declarou ter destruído as matrizes que deram
a maior parte deles de gatas, varrendo com as mãos o origem às faixas registradas no disco. No entanto, com
chão imundo, esperando encontrar ainda algo que se o advento dos portais de áudio e vídeo, alguns inter-
pudesse aproveitar, uma lata de conserva que tivesse nautas reproduziram a capa e as dez faixas do long
resistido às pancadas com que tentaram abri-la, um play. Parte delas foi reaproveitada no álbum Zoolook,
pacote qualquer, do que fosse, uma batata, mesmo pi- de 1984. As faixas reproduzem inúmeros ruídos ca-
sada, um naco de pão, mesmo feito pedra” (Saramago, racterísticos do ambiente, intercalados com melodias
1995, p. 219). produzidas com o auxílio de sintetizadores e samplers.

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textos / Homenagem

eletrônicos, como se percebe em diversos Valquíria Padilha (2006, pp. 27-8) lem-
templos de consumo. Dificultar o acesso bra que “o capitalismo de hoje impõe à
imediato aos banheiros representa consi- classe média uma ditadura do lazer, ou
derável economia de materiais e serviços seja, faz-se necessário ocupar o ‘tempo
de limpeza ao estabelecimento. Quanto livre’ de qualquer maneira, uma vez que
aos “caixinhas” eletrônicos, em muitos o ócio – no sentido de não fazer nada ou
casos opta-se por estimular o impulso de simplesmente contemplar – é conde-
consumista, apostando que a distância nado num sistema que depende da pro-
do cliente até eles aumentará a voraci- dutividade acelerada”.
dade do consumo enquanto percorrer os As entidades do shopping center acom-
vários pavimentos, driblar as colunas e panham o supercliente a todos os lugares,
contornar as reentrâncias do templo de sem se restringir ao estado de vigília. Por
compras e serviços. isso mesmo, uma parte da sua pulsão vital
O supermercado também poderia ser é transferida para a ansiedade promovida
interpretado como uma Torre de Babel pela falsa necessidade de consumir.
“pós-moderna”, em que a multiplicação Faceta monstruosa do ser humano, o
das marcas corresponderia à profusão de ser-cliente faz planos sem fim. No dia
linguagens e modos eufóricos de gastar. seguinte, retornará a determinada loja para
Para Vilém Flusser (2011, p. 82): “resgatar” o objeto a que conseguira resis-
tir firmemente da primeira vez. Driblando
“O supermercado é labirinto composto a consciência e o orçamento doméstico,
de mensagens codificadas em imagens ele está convicto de que obter o produto
(conservas coloridas, garrafas, rótulos, trará felicidade e plenitude.
cartazes) e em sons (irradiados por alto-
-falantes). O labirinto devora os recep- TERAPÊUTICA
tores das mensagens. Dispõe ele de en-
tradas amplamente abertas, para criar a
ilusão de espaço público, de ‘ágora’ em Quem assistiu ao filme Clube da luta
‘pólis’. Como se o supermercado fosse (1999), dirigido por David Fincher, deve
lugar de trocas, de diálogos, de evalua- se recordar da cena em que a personagem
ções de valores”. interpretada por Edward Norton descreve
o próprio apartamento como catálogo de
A exemplo dos estabelecimentos que uma loja de departamentos. No romance
oferecem miríades de mercadorias, o su- homônimo, que inspirou a película, há uma
permercado está inserido na lógica do passagem que vale a pena transcrever:
sempre relativo “produtivismo”. Afinal,
providenciar as compras do mês é uma “Você compra móveis. E pensa, este é
tarefa compulsória que sugere ao consu- o último sofá que vou precisar na vida.
midor ocupar da melhor forma o tempo Você compra o sofá e fica satisfeito du-
que resta das horas trabalhadas na sema- rante uns dois anos porque, aconteça o
na. Reverberando Edgar Morin (1977), que acontecer, ao menos a parte de ter

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um sofá já foi resolvida. Depois precisa o santo périplo de suas mais recentes
do aparelho de jantar certo. Depois, da aquisições. Seu discurso entusiástico será
cama perfeita. De cortinas. E do tapete. pautado pela ordem do consumo, em con-
Então você fica preso em seu belo ni- sonância com a expectativa dos demais
nho e as coisas que costumavam ser su- membros da comunidade que, a exemplo
as agora mandam em você” (Palahniuk, dele, também frequentam o ambiente apa-
2012, p. 50). rentemente estável, feliz e pródigo dos
shopping centers e supermercados.
Até certo ponto, a trama acompanha Que lhe importa a consciência histó-
as frustrações do protagonista. Sim, por- rica e espacial de si e dos outros? Que
que, em princípio, ele reúne características lhe interessa que um garoto tenha sido
que permitiriam identificá-lo como um espancado e vergastado, feito escravo,
supercliente up-to-date, alinhado com as pelos agentes de segurança (segurança de
inovações mais recentes para melhorar quem?) do estabelecimento? Qual a sua
o humor e otimizar os cômodos do lar. relação com o assassinato de um cliente
Mas logo a conscientização do esvazia- no estacionamento do supermercado, não
mento de sentido o levará ao colapso. é mesmo?
A decoração do “ninho”, como mostrou A cupidez consumista se confunde com
Baudrillard (1970, p. 24) implica que “[...] as outras formas de desejo. Para começar,
tais inovações não contêm nada de uma ela também nasce do estímulo constante
improvisação livre: na maior parte das à aquisição de bens, segundo a ordem
vezes, mais mobilidade, comutabilidade e das falsas necessidades9. De certa forma,
oportunidade serão apenas o resultado de é uma maneira de postergar a consciên-
uma adaptação forçada à falta de espaço”. cia do vazio e o senso de finitude. Para
Porém, o mundo é insosso, quando não escoar a produção com maior eficácia e
violento e perigoso. Então, o supercliente eficiência, a ilógica do consumo é ma-
regressa ao útero comercial. Aderindo de- quiada com o suposto bem-estar de quem
corosamente ao shopping center, a cápsula muito tem, mas quase se esqueceu de ser.
de felicidade momentânea acompanha-o Erich Fromm (1977, p. 23) alertava: “Com
feito espírito obsessor, ao longo do tra- o progresso industrial [...], com a subs-
jeto entre o estabelecimento superseguro tituição da mente humana pelo compu-
até o seu bólido, devidamente protegido tador, podíamos perceber que estávamos
pela seguradora. Embora passageira, uma a caminho de produção ilimitada e, por
sensação estimulante o envolve durante o conseguinte, de consumo ilimitado”.
percurso de volta à casa-catálogo. O su-
jeito que consome e é consumido talvez
esteja consciente de que a euforia pós-
-compra, o sabor de novidade é efêmero. 9 “Podemos distinguir tanto as necessidades verídicas
como as falsas necessidades. ‘Falsas’ são aquelas
Por isso mesmo, acelera o conta-giros, superimpostas ao indivíduo por interesses sociais
ansioso que está por exagerar os relatos particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpe-
tuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça”
que fará aos familiares e amigos sobre (Marcuse, 1973, p. 26).

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textos / Homenagem

Evidentemente, a satisfação do con- Há que se dizer que o supercliente


sumidor é ilusória porque não advém da pode estar a duas carteiras de distân-
razão, mas de uma subespécie de dese- cia do professor, a protestar puerilmente
jo que ele supõe irrefreável. Afinal, a contra o rigor do método de ensino; ou a
repleção de suas vontades imediatas se desprezar as leituras e atividades que foi
lhe afigura o mais importante, urgente e orientado a fazer. Em geral, isso acon-
inadiável. O que determina a momentâ- tece quando o diploma se torna objeto
nea plenitude existencial do superclien- de fetiche e a universidade é percebida
te consiste em lograr o digno papel de como mero degrau para a atuação parti-
cidadão-consumidor, merecedor de toda cularíssima e inovadora do superindivíduo
a admiração, inveja ou respeito alheio. no mercado. Nessas e noutras circuns-
Na impossibilidade de figurar a si mes- tâncias, o certificado deixa de ser um
mo como super-homem, ele recorre aos signo de conhecimento e saber e passa
tênues limites da lógica mercantil como a servir como um atestado de que seu
parâmetros para traduzir poder (aquisiti- portador tem “nível superior” e passou
vo), prestígio (social) e felicidade (com- a contar com direitos e privilégios que o
partilhável). ajudarão a se apresentar como candidato
De maneira geral, o supercliente não sério e empenhado, digno em escalar mais
está satisfeito por si, nem consigo mesmo; rapidamente os degraus que o afastarão
ele deve o prazer da posse e propriedade dos enjeitados e o conduzirão ao topo da
à contínua aquisição de mercadorias e pirâmide-catálogo.
objetos. Diante da falsa segurança, o A essa altura, deveria estar claro que o
cidadão-consumidor recorre àqueles e a supercliente se distingue orgulhosamente
outros signos para ostentar o seu momen- de quem não tem o seu poder aquisitivo,
tâneo e frágil bem-estar10 . No entanto, irmanando-se àqueles que concebem as
cumpre lembrar que ele desempenha vá- pessoas como mercadorias. Porventura,
rios papéis, sem se restringir à condição isso também acontece porque, como notou
abstrata e temporária do consumidor que Vilém Flusser (2011, p. 88), “na socieda-
devaneia por entre corredores, hipnotizado de de massa não há elite, apenas espe-
pelas mercadorias das vitrines. cialistas”. O hiperconsumo tem idioma e
léxico próprios, forrados por clichês. Será
conveniente abordar os desvãos dessa lin-
guagem, examinando-se o que ela contém
10 “A fabricação em série, a venda a crédito abrem as de específico e generalizante.
portas para os bens industriais, para a limpeza do lar
com aparelhos eletrodomésticos, para os fins de sema-
na motorizados. É então possível começar a participar
da civilização do bem-estar, e essa participação em-
A FALA CONSUMISTA
brionária no consumo significa que o lazer não é mais
apenas o vazio do repouso e da recuperação física e
nervosa; não é mais a participação coletiva na festa,
não é tanto a participação nas atividades familiares Provavelmente, as duas palavras-chave
produtivas ou acumulativas, é também, progressiva- do discurso consumista sejam oportunis-
mente, a possibilidade de ter uma vida consumidora”
(Morin, 1977, pp. 68-9). mo e ansiedade. De um lado, o vendedor

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assegura a importância e a qualidade tos, logo após a Segunda Guerra Mundial.
do produto. A seu turno, o consumidor Tanto o supercliente quanto o “cidadão
se justifica, perante si e os concidadãos de bem” se supõem instalados no Olimpo
de bem, recorrendo a signos que expri- da sociedade concorrencial. Aliás, a de-
mem urgência: “Os exemplares vão aca- sigualdade social pouco importa aos que
bar!”; “São os últimos dias de oferta!”; “chegaram lá”, única e exclusivamente pe-
“O produto está com superdesconto!” e lo suposto “merecimento”. O discurso dos
congêneres. Embora seja presa fácil das “conquistadores” soa quase sempre como
gôndolas, vitrines, anúncios em revis- celebração da dignidade, da disciplina e
tas ou jornais, além do self-marketing da ordem sobre a vadiagem, a falta de
de “conteudistas” espalhados nas redes empenho e a inconveniência. A miséria
sociais, o consumista se considera um alheia não se traduz em conscientização
ser poderoso, bom e pensante. de que o mundo é injusto. Em lugar de
Certo de sua relevância para a micro solidariedade ou compaixão, o contraste
e a macroeconomia (“Estou ajudando o entre os que têm/conseguiram e os que
comércio local”), com frequência ele ad- não têm/perderam reforça a autoestima
quire produtos sem lembrar que metade e o juízo severo dos “conquistadores”.
do prazer em carregar sacolas consiste Para o consumista, fórmulas como “Fiz
em ostentar os objetos à vista do maior por merecer” e “Vai trabalhar, vagabundo”
auditório possível. Em parte, isso explica não são contraditórias, mas complemen-
a altivez de quem marcha ao ritmo nem tares. Conforme observa Michael Sandel:
lento, nem frenético, sobre o piso de gra- “Em uma sociedade desigual, aqueles que
nito, cercado de vitrines perfumadas, a alcançam o topo querem acreditar que seu
portar insígnias de bom gosto que com- sucesso tem justificativa moral. Em uma
provam seu poder aquisitivo. sociedade de meritocracia, isso significa
Provavelmente foi na década de 1950 que os vencedores devem acreditar que
que a sociedade, ainda ignorante de sua conquistaram o sucesso através do próprio
“pós-modernidade”, passou da disforia talento e empenho” (Sandel, 2021, p. 22).
planetária à euforia hiperindividualista. “Vencedores” e hiperconsumistas têm
Celebrando o fim da Segunda Guerra horror a termos que remetam a qualquer
Mundial, foi necessário que a paz armada forma de assistência – exceção feita à
estimulasse a ilusão de um mundo pa- sua colaboração, quase nunca espontânea,
dronizado, harmônico e estável, propício mas quase sempre paternalista. No âm-
à novíssima ordem do consumo. Não é bito profissional, o consumista – refém
segredo que uma parcela considerável das marcas e dos últimos lançamentos
do PIB dos países ocidentais advém do – readquire parte do poderio de super-
cultivo de supérf luos entre os cidadãos -homem ao disfarçar a exploração dos
ordeiros – apologetas da social-demo- “seus” colaboradores com a falácia da
cracia excludente. generosidade patronal. Aliás, a desigual-
Não é por acaso que hiperconsumo e dade social pouco lhe importa. A miséria
meritocracia nasceram praticamente jun- alheia não se traduz em solidariedade

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textos / Homenagem

ou compaixão, mas em juízo severo do assistir a enlatados em cinemas servidos


outro e autoestima. com pipoca e big copos de refrigerante.
O consumo deixa de ser privilégio de Para os adeptos e praticantes do hiper-
poucos e se torna direito geral. Como esse consumismo, as compras perfazem a ple-
ser ignora que o conceito de meritocracia nitude possível. Trabalhar até a exaustão
nasceu de um romance distópico de Mi- passa a ser percebido como chancela nobre
chael Young publicado em 195811, utiliza e critério nobilitante, capaz de explicar
o termo a torto e a direito, cioso de que o gasto desenfreado a reboque do salário
a lógica do mundo tende à expansão e é (ou do novo endividamento via cartão de
naturalmente exclusiva. Superado o welfare crédito). Mesmo quando isso acontece, o
state, o supercliente introjeta a racionalida- consumo costuma ser descrito como re-
de mercantil: em vez de lamentar que não compensa moral, mas também funciona
há (nem haverá) lugar para todos na ordem como uma espécie de muleta emocional.
do consumo, repete a máxima de que as O que os consumistas esquecem é que
sociedades são assimétricas desde o antigo o famigerado “banho de loja” resulta de
Egito. De modo geral, o consumista defen- um movimento cíclico que se inicia pela
de a irracionalidade humana – que repousa ansiedade de ter, a compulsão do gasto,
sobre a concentração de riqueza versus a a posse do objeto e o questionamento,
assimetria social –, sob o embalo da falácia dali a poucos meses, da efetiva utilidade
de que “basta não desistir dos sonhos” para do item, outrora adquirido com tamanha
todo e qualquer um “chegar lá”. fúria. A fala consumista naturaliza a cria-
Raramente o consumista antevê as ano- ção de falsas necessidades pela indústria
malias do macrossistema em que infravive. e o comércio, que depende de estratégias
A ideologia empreendedora (“nem patrão, publicitárias cada vez mais agressivas e
nem empregado”) tornou-o orgulhosamente invasivas. O deslumbramento frente às
prático, contrafeito ao “idealismo” da- engenhocas, perfeitamente dispensáveis
queles que não trabalham duro feito ele, até a véspera, traduz-se em sentenças tão
ou só orbitam no mundo teórico da aca- totalizantes quanto inconsistentes, tais
demia. Nada é mais incompatível com o como: “Eles pensam em tudo”.
pensamento, o discurso e a pragmática O consumista ajuíza e condena o mundo
consumista que a preocupação com as em guerra, mas cega frente à beligerância
questões sociais, por mais pungentes que dos meios de publicidade, prestes a arrancar
elas sejam. Ainda assim, sobram tempo mais bocados de suas parcas economias. É
e lugar para o cidadão-cliente se ocupar que o consumista constitui, em essência,
da vida “empolgante” das celebridades e um ser guloso e devorador. Se estivésse-
subcelebridades; acompanhar programas mos a reler os ensaios de Sigmund Freud,
superficiais que supervalorizam minúcias; ousaríamos afirmar que parte desse ser
permanece na fase oral. De certo modo,
bastaria adaptar a imagem de uma boca que
morde e suga o seio materno como metá-
11 Edição original: The rise of the meritocracy (London,
Pelican Books, 1958). fora da ânsia hiperconsumista. Um misto

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de avidez, pressa e cupidez caracterizam mostrar que seus empreendimentos resul-
a postura irrequieta desse cidadão-cliente, taram na penca de objetos-para-as-visitas
tão orgulhoso de seus feitos mercantis. que ele exibe sem constrangimento algum,
Ora, qual a melhor desculpa para a sua entre a porta de entrada do apartamento
obsessão pelo lucro, que a possibilidade de financiado e a eclética sala de estar?

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2008.

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arte
Portinari:
sonho e
realidade
Elza Ajzenberg
arte cândido portinari

A
s comemorações de 120 estudos pela Itália, Inglaterra e Espanha,
anos do nascimento do e fixa residência em Paris. Na Europa,
pintor Cândido Portinari uma experiência transformadora!
(Brodowski, 1903 – Rio Nesse período, pinta apenas quatro
de Janeiro, 1962) motivam quadros, porque o seu tempo é dividido
repensar o perfil, a trajetó- entre os trabalhos e as visitas frequentes
ria artística e os objetivos a museus, galerias e lugares de reuniões
temáticos do artista. Hoje, artísticas. Sabe ver os renascentistas e a
muitas questões podem ser pintura de vanguarda. Fica profundamente
assinaladas. Como podem impressionado com as soluções expres-
estar conectadas, por exem- sionistas, com formas e cores alteradas.
plo, suas contribuições às suas vivências Porém, é o contexto social que se insinua
e às questões históricas e sociais? como principal fonte de inspiração.
A revisão de sua densa e numerosa Conhece Maria Martinelli, com quem
obra, ou mesmo de uma mostra de sua se casa. Sente saudades de Brodowski e
trajetória, revela um artífice valorizando escreve o que pode ser considerado um
experiências históricas e vanguardistas. prefácio de sua futura obra – a histó-
Suas memórias contam muito. Filho de ria de Balaim: “[...] calças brancas feitas
imigrantes italianos, desde criança mani- de saco de farinha; paletó listrado, com
festa sua vocação artística. Aos 15 anos, quatro botões: três pretos e um branco;
sai de Brodowski e vai para o Rio de
Janeiro, em busca de conhecimentos de
pintura, matriculando-se na Escola Nacio-
nal de Belas Artes. ELZA AJZENBERG é professora da
Escola de Comunicações e Artes da USP e
Em 1928, conquista o Prêmio de Via- coordenadora do Centro Mario Schenberg de
gem. Entre 1929 e 1931, viaja com bolsa de Documentação da Pesquisa em Artes (ECA-USP).

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Mestiço, 1934. Óleo sobre tela. Pinacoteca do Estado de S. Paulo

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arte cândido portinari

Futebol, 1935. Óleo sobre tela. Coleção particular

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Café, 1935. Óleo sobre tela. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Fonte: Projeto Portinari

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arte cândido portinari

cara mole, esbranquiçada pelo amarelão, Em 1935, obtém reconhecimento inter-


aspecto de criança doente [...] eu, quando nacional com a tela Café, recebendo men-
voltar, vou ver se consigo fazer a minha ção honrosa na exposição do Instituto Car-
terra” (Portinari apud Bandeira, 1964). negie (Pittsburgh, EUA). Nessa obra, o
Em 1931, regressa ao Brasil. Em Bro- vigor do trabalhador, a plantação de café
dowski, pinta um afresco influenciado pela e as cores terrosas são elementos impor-
Renascença italiana, Fuga para o Egito tantes para as futuras obras, objetivando
(1937), inspirado na obra de Giotto (1267- questões plásticas e sociais.
1337). Nos momentos seguintes, dedica-se A tendência muralista de Portinari
a retratar o contexto brasileiro. revela-se nos painéis executados no Monu-

Algodão, 1938. Pintura mural afresco. Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro

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Descobrimento, 1941. Mural a têmpera. Biblioteca do Congresso, Washington, DC, EUA.
Fonte: Projeto Portinari

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arte cândido portinari

Portinari terminando Jogos infantis, no Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, c. 1940

mento Rodoviário Belvedere, na Estrada dro O morro, que René Huyghe, diretor
Rio-São Paulo, em 1936. A convite de do Louvre, aconselhara Portinari a não
Gustavo Capanema, são realizados os inutilizar. Em 1939, executa três grandes
murais no edifício do Ministério da Edu- painéis para o Pavilhão Brasileiro da Feira
cação, no Rio, retratando ciclos nacionais Mundial de Nova York. Em novembro
históricos e econômicos (1936-1944). do mesmo ano, expõe 269 trabalhos no
Em 1938, o Museu de Arte Moderna Museu Nacional de Belas Artes (MNBA).
de Nova York (MoMA) adquire o qua- Nasce o seu único filho – João Cândido.

São Francisco de Assis, 1944. Painel de azulejos. Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha,
Belo Horizonte. Fonte: Projeto Portinari

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Criança morta, 1944. Óleo sobre tela. Museu de Arte de São Paulo (Masp). Fonte: Projeto Portinari

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arte cândido portinari

Em 1940, participa da “Exposição os sofrimentos vividos na guerra, estabelece


Latino-Americana”, no Museu River- paralelos com a árida jornada das famí-
side de Nova York. Expõe com grande lias nordestinas brasileiras. Nessa série, o
sucesso em Detroit, EUA, e no MoMA. expressionismo de Portinari acentua rasgos
A University of Chicago Press publica na pele, utilizando instrumentos cirúrgicos.
Portinari, his life and art, o primeiro Estabelece comparativos com cenas bíblicas:
livro sobre o artista. O Menino morto retoma a Pietà.
Em 1942, passa alguns meses nos
Estados Unidos, pintando quatro afrescos “Todas as coisas
para a Fundação Hispânica da Biblio- Frágeis e pobres
teca do Congresso, em Washington. No Se parecem comigo”
MoMA, vê Guernica, de Picasso, que (Portinari, 1964).
o impressiona profundamente. Portinari
analisa-o com lupa. Enquanto em Criança morta o expres-
De volta ao Brasil, realiza, em 1943, oito sionismo do artista evidencia a morte
painéis conhecidos como a Série Bíblica, exposta, o corpo consumido pela miséria, o
influenciado pela visão de Guernica e sob o Enterro na rede mostra o reflexo da morte
impacto da Segunda Guerra Mundial (1939- nas pessoas. A morte provoca revolta. Os
1945). A pedido de Assis Chateaubriand, dois homens, de punhos cerrados, carre-
pinta uma série de murais para a Rádio gam o morto na rede, seguindo a tradição.
Tupi do Rio, inspirados na música popular Formam um triângulo com a mulher no
brasileira. Ilustra Memórias póstumas de centro, de costas para o observador.
Brás Cubas, de Machado de Assis. Ainda em 1944, é convidado para
O contexto trágico da Segunda Guerra pintar o painel e os azulejos sobre São
Mundial está também conectado à conhe- Francisco de Assis, na Capela da Pam-
cida Série Retirantes, de 1944. Altera as pulha, projeto de Oscar Niemeyer para
formas para assinalar a essência dos seres. o prefeito de Belo Horizonte – Jusce-
A condição de retirantes – ou, como Porti- lino Kubitschek. Portinari estuda o tema
nari prefere, despojados –, além de expor segundo o Evangelho de São João. Nessa

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Tiradentes, 1949. Têmpera sobre tela. Memorial da América Latina, São Paulo.
Obra destinada, inicialmente, ao Colégio de Cataguases, MG

obra, o drama e o patético vão se acen- que já prenuncia a cena do corpo esquar-
tuando à medida que os passos se apro- tejado do mural Tiradentes. Face à arqui-
ximam da crucificação, com referências tetura inovadora e às imagens chocantes,
ao Retábulo de Isenheim, de Mathias a Capela da Pampulha é considerada ultra-
Grunewald (1470-1528). jante, permanecendo fechada por dez anos.
O corpo torturado lembra ainda a Os anos de 1940 somam diversas abor-
desarticulação de seus espantalhos – o dagens históricas. Em 1948, em Monte-

Tiradentes, 1949 (detalhe)

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arte cândido portinari

Enterro na rede, 1944. Óleo sobre tela. Museu de Arte de São Paulo (Masp)

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Autorretrato, 1957. Óleo sobre madeira compensada

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arte cândido portinari

vidéu, Uruguai, pinta a Primeira missa formas mais realistas das figuras huma-
no Brasil, objeto de magnífica análise de nas. A narrativa e a homenagem ao mártir
Mário Pedrosa. Em 1949, executa o pai- da Inconfidência retomam obras anterio-
nel Tiradentes. Trata-se da representação res do pintor. Em azul pálido, retoma a
dos episódios e protagonistas principais memória d’Os retirantes de 1944. É um
da Inconfidência Mineira. A encomenda quadro dentro do outro, numa fusão de
da obra foi do Colégio de Cataguases, símbolos e mensagens.
Minas Gerais, com projeto de Oscar Nie- Nos anos seguintes, a densidade de sua
meyer. Essa cidade registra a publicação produção, visibilidade e reconhecimento
da Revista Verde, na qual colaboraram internacionais continuam. Em 1950, viaja
vários escritores modernistas. à Itália e visita Chiampo, na província
Posteriormente, o painel Tiradentes de Vicenza, no Vêneto, terra natal de seu
compôs o acervo da Coleção de Arte do pai. Expõe trabalhos na Bienal de Veneza.
Palácio dos Bandeirantes, e hoje se encon- Em 1951, participa com sala especial da
tra no Memorial da América Latina, em 1ª Bienal de São Paulo.
São Paulo. Portinari dedica-se ao mural Em 1952, pinta outro painel com temá-
por quase um ano. Destaca formas geomé- tica histórica – A chegada da Família Real
tricas, acentua cores em contraste com as portuguesa à Bahia – e inicia os estudos

Guerra e paz, 1956. Têmpera sobre tela. ONU, Nova York

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dos painéis Guerra e paz, destinados à bólico, sem perder a forma humana, a
sede da Organização das Nações Unidas intensidade e a naturalidade da vida. Entre
(ONU), em Nova York. Em 1955, recebe o sonho e a realidade, exprime um mundo
a medalha de ouro concedida pelo Inter- de fantasia, de liberdade, de aspiração do
national Fine Arts Council, cuja sede fica heroísmo – a apoteose do herói popular.
em Nova York, como melhor pintor do ano. Tal momento assinala o lirismo dos últi-
Em 1952, Portinari viaja a Israel, mos anos do pintor.
expondo em alguns museus locais. No Em 1957, expõe em Paris, França, e
mesmo ano, sofre intoxicação pelo uso de Munique, Alemanha. É o único artista
tintas. Um dos instrumentos com que pode brasileiro convidado a participar da expo-
continuar seu trabalho é o lápis de cor. sição “50 Anos de Arte Moderna”, no
Recorre a esse meio para poder continuar Palácio das Belas Artes, em Bruxelas,
a expressar seu mundo criativo. Desse Bélgica, em 1958. Em seguida, parti-
convívio com o lápis nascem várias obras, cipa da 1ª Bienal de Artes Plásticas da
com destaque à extraordinária Série D. Cidade do México.
Quixote – 21 desenhos da Coleção dos Em 1961, tem um momento de grande
Museus Castro Maya, no Rio. emoção e alegria, pelo nascimento de sua
Inspirado no texto de Cervantes, Por- neta Denise. No mesmo ano, realiza sua
tinari consegue ilustrar um mundo sim- última viagem à Europa.

Cavalo de pau (Série D. Quixote), 1956. Lápis de cor sobre cartão. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro

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Meninos brincando, c. 1958. Óleo sobre madeira.. Coleção particular

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Meninos com carneiro, 1959. Óleo sobre madeira. Coleção particular

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Denise em Copacabana, 1961. Óleo sobre tela

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Casa de Portinari em Brodowski, SP, hoje Museu Casa de Portinari

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arte cândido portinari

REFERÊNCIAS

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PEDROSA, M. “O painel de Tiradentes”. Diário de São Paulo. São Paulo, 18/nov./1949.
PORTINARI, C. Arte sacra. Apresentação de Alceu Amoroso Lima e comentários de Frei
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PORTINARI, C. Poemas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1964.

Sites

PORTINARI, O PINTOR SOCIAL. Disponível em: www.estado.com.br/edicao/especial/porti.


PROJETO PORTINARI. Disponível em: www.portinari.org.br.

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livros
Lições para sair do atoleiro

Daniel Afonso da Silva

A economia brasileira como ela é – como reverter a destruição neoliberal,


de J. Carlos de Assis, Rio de Janeiro, Amazon, 2022, 116 p.

A economia brasileira como ela é – como reverter a destruição neoliberal, de J.


Carlos Assis, Revista
Rio USPde •Janeiro, Amazon, 2022, 116 p.
São Paulo • n. 139 • p. 175-178 • outubro/novembro/dezembro 2023 175
livros / Homenagem

Q
uem em 2022- tiva. Aos mais vividos, não restam dúvi-
2023 alcan- das: estamos à beira da falésia, envoltos
çou alguma em tormentas, flertando com o trágico,
idade, passou subestimando o memento mori.
dos 40 ou 50 J. Carlos de Assis, em anunciação, vem
anos e culti- nos advertir da gravidade de tudo isso.
vou alguma O seu recente e necessário A economia
cultura vai se brasileira como ela é – como reverter a
lembrar com destruição neoliberal é o mais oportuno
nostalgia dos convite ao diálogo, ao convencimento e
tempos em que o destino do Brasil e dos à persuasão que se poderia fazer nestes
brasileiros era apresentado em ideias trans- tempos desabados que nos toca viver.
critas em livros debatidos em toda parte. Não é a primeira vez que J. Carlos de
Aqueles tempos – que começaram a es- Assis nos golpeia a alma com ideias per-
maecer na inauguração do século XXI – cucientes e lucidez acachapante transcri-
pareciam remontar às raízes mais antigas tas em livros seminais. Quem vivenciou
das civilizações contemporâneas que foram conscientemente a batalha de ideias que
tangidas pela prática do convencimento e ambientou a redemocratização brasileira
pela arte da persuasão. recente possui na memória e na retina o
Quem em 2022 perscrutar convenci- impacto político, intelectual e cultural de A
mento e persuasão, em contrário, vai en-
contrar tweets, grunhidos e força bruta.
O diálogo virou ofensa. A democracia,
quimera. A representação, ilusão. DANIEL AFONSO DA SILVA é doutor
em História Social pela FFLCH-USP
Aos mais moços, toda essa degradação e integrante do Núcleo de Pesquisa
pode parecer normal, natural e até fes- em Relações Internacionais (Nupri) da USP.

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chave do tesouro (São Paulo, Paz e Terra, de três dezenas de livros e dezenas de mi-
1983), Os mandarins da República (São lhares de artigos nos principais periódicos
Paulo, Paz e Terra, 1984) e O grande salto nacionais –, mas esses foram os esforços
para o caos (escrito com Maria da Con- que encontraram o timing exato para su-
ceição Tavares) (Rio de Janeiro, Zahar, prir as demandas precisas de um público
1985). Com uma mistura de análise política cujos olhos viam uma realidade que sua
de conjunturas econômicas e abordagens inteligência era precária para compreender.
filosóficas de história das ideias econômi- Em A economia brasileira como ela
cas, o autor inaugurou ali, de uma só vez é, uma vez mais, J. Carlos de Assis vem
no Brasil, o jornalismo investigativo e o para auxiliar todos a encontrarem espe-
jornalismo econômico; e, pouco a pouco, rança em flor num cenário complexo e,
foi se tornando referência incontornável muitas vezes, incompreensível, que nos
para a compreensão dos males causados prenuncia ruínas.
pelo Estado militar de 1964 a 1985. Quem em 2022-2023 alcançou alguma
Quem adentrou na vida adulta sob a idade e alguma cultura vai fazer vinculações
Constituição Cidadã de 1988 e observou de imediatas entre A economia brasileira como
soslaio a agonia caborteira dos mil dias da ela é e as colunas “A vida como ela é”, de
presidência de Fernando Collor de Mello Nelson Rodrigues. A mensagem nuclear dos
não pôde deixar de notar a presença mar- contos do saudoso cronista pernambucano
cante de A Nêmesis da privatização (Rio que faz tempo nos deixou segue eloquente:
de Janeiro, MECS, 1997) e As sete bestas a vida é real, independentemente das ilusões
do fim do mundo (Rio de Janeiro, ANC, nutridas sobre ela. A mensagem de nosso
1998) na compreensão do que foi, pode- J. Carlos de Assis – mineiro de Marliéria,
ria ser e deveria ter sido a presidência de radicado no Rio de Janeiro desde os anos
Fernando Henrique Cardoso. de 1960 e insistente observador da realidade
Quem ficou consternado com os ata- integral do Brasil desde sempre – não é
ques de 11 de setembro de 2001 encon- menos enfática ou eloquente: vaticina que a
trou em O atentado da nova era (Rio de superação das ilusões neoliberais, em 2022
Janeiro, MECS, 2001) os elementos mais e depois, é um imperativo nacional para o
determinantes para rasgar o véu da in- Brasil e para os brasileiros.
genuidade e perceber a onipresença do O tom contundente e realista da lição
trágico como sopro de vida na história do título de J. Carlos de Assis persegue to-
dos homens. Conseguintemente, quem de dos os suspiros do livro. Ora com mais,
fato rasgou esse véu percebeu que a con- ora com menos ênfase. Mas sempre com
temporização desse império de tragédias bocejos de esperança. Em seus mais de 70
possui como caminho apenas o reconhe- anos de idade, sendo mais de 50 dedicados
cimento quântico de Deus, corporificado a compreender o Brasil, esse nosso autor
e demonstrado em A razão de Deus (Rio segue entusiasta da capacidade brasileira
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012). de superação das agruras permanentes da
Esses não são todos os títulos de J. Car- sociedade dos brasileiros. Desemprego ele-
los de Assis – ao todo, ele publicou mais vado, taxas de juros extravagantes, inflação

Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 175-178 • outubro/novembro/dezembro 2023 177


livros / Homenagem

descontrolada, câmbio oscilante, atividade nevoeiro e concomitantemente vai dese-


da economia real estagnada, financeirização nhando alternativas e soluções de retorno
do capital, digitalização da vida atropelando ou indução a dias claros amenos de sol.
tudo, retórica climática enviesada e mundiali- Temas e problemas áridos e complexos,
zação de ilusões transvestida em pensamento feito dívida pública, gestão de crédito,
único do mainstream dos economistas são política monetária, pacto federativo e sis-
alguns dos temas contra os quais J. Carlos tema financeiro são tratados com rigor
de Assis se insurge. comezinho, mas numa linguagem apreen-
A presidência de Jair Messias Bolsonaro sível a todos. Mesmo aos mais leigos,
não representa o foco da crítica do livro. velhos ou moços.
Entretanto, J. Carlos de Assis, como in- Vale ressaltar, nesse quesito, que J. Car-
formado e sofisticado observador, destaca los de Assis não é bem um escritor. É um
a recorrência histórica dos problemas que oleiro. E seus livros, escritos e ideias são
ultrapassam os anos de 2019-2022 e che- como tijolos para a construção de um Bra-
gam ao retorno do presidente Lula da Silva. sil novo, melhor e mais justo para contem-
Em seu entender, na quadra do ministro plação, inspiração e fruição de quem vier.
Paulo Guedes no manejo da Economia, A economia brasileira como ela é,
todas as ilusões econômicas do passado por tudo isso, é um livro repleto de pre-
se aceleram drástica e dramaticamente. E, dicados. Mas, diferente do que se pode
caso não sejam revertidas pelo ministro intuir, não é bem algo para ser lido. É,
Fernando Haddad, poderão nos lançar num antes e acima de tudo, uma lição a ser
nevoeiro sem retorno. praticada; um Brasil a ser reconstruído.
Capítulo a capítulo, J. Carlos de As- Resta saber se estaremos à altura
sis vai descrevendo o lado obscuro desse dessa missão.

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Entre Deus e o Diabo,
a histeria coletiva

Karina Marques

Os diabos de Ourém, de Maria Luiza Tucci Carneiro,


Cotia, Ateliê Editorial, 2023, 266 p.

A economia brasileira como ela é – como reverter a destruição neoliberal, de J.


Carlos Assis, Revista
Rio USPde •Janeiro, Amazon, 2022, 116 p.
São Paulo • n. 139 • p. 179-184 • outubro/novembro/dezembro 2023 179
livros / Homenagem

O
s diabos de mas para um cúmplice de seu tempo. E
O u ré m é o que, ainda que contida no exotismo do
que podemos vilarejo equatorial de Ourém, constatamos
chamar de uma estar diante de uma história de pendor
narrativa es- universal, cujo foco não se concentra no
pecular, por fato em si, mas no que dele se depreende
meio da qual da psicologia humana.
o comporta- Trata-se, assim, inquestionavelmente,
mento social inserido no universo ficcio- de um marco no romance histórico brasi-
nal vê-se refletido no espaço extradiegé- leiro, pelo efeito reflexivo engenhosamente
tico de recepção da obra. Como ponto de criado, unindo criação e recepção literá-
contato interespacial, encontramos uma ria em torno de dois momentos históricos
crise epidêmica semelhante: aquela de oportunamente cotejados. Merece, ainda,
cólera-morbo na antiga província brasi- destaque a singularidade de uma voz nar-
leira do Grão-Pará, em 1855, e a pande- rativa repleta de escárnio pela ilusão de
mia de Sars-CoV-2, nos finais de 2019. controle dos fatos pelos personagens.
A ambiguidade do referencial “ano da Por meio dessa voz, projeta-se a ima-
peste”, mencionado na primeira página gem do historiador, afirmada no Posfácio
para situar temporalmente o enredo, cria do livro. Maria Luiza Tucci Carneiro, a
um espaço “paratópico” (Maingueneau, notável historiadora que revelou as cir-
2004, pp. 52-3) de enunciação, no limiar
entre o texto e o mundo. Um pacto meta-
ficcional é, então, estabelecido, criando
uma relação estreita entre enunciador e KARINA MARQUES é professora adjunta
(maître de conférences) no Departamento
destinatário. Sentimos que o autor não de Estudos Portugueses e Brasileiros
escreve para um leitor-modelo, atemporal, da Universidade de Poitiers (França).

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culares secretas antissemitas dos gover- um começo sem passado, o fundo obs-
nos Vargas e Dutra, assume-se, portanto, curo da insegurança, uma ‘singularidade’
como autora deste seu primeiro romance, latente, desvelada no plural contínuo dos
baseado em fontes documentais por ela acontecimentos. […] Podemos banir tão
mesma investigadas. Ela confessa ser a facilmente o pânico da história?” 3.
obra fruto da “expressão dos dilemas de
uma historiadora que se viu indecisa entre É esse eterno retorno do pânico na
as fronteiras do histórico e do literário, cicatriz aberta na história que nos permite
do real e do imaginário” (p. 243). Em associar o episódio singular de Ourém,
sentido inverso, esses mesmos dilemas num Brasil recém-independente, com a
foram compartilhados pelos historiadores crise mundial de Sars-CoV-2, que pontua
franceses Yves-Marie Bercé e Michel de o momento mesmo da primeira publicação
Certeau nos seus estudos historiográfi- do romance, em versão digital4; obra que
cos relativos, respectivamente, aos casos saiu este ano editada num belo volume
de possessão demoníaca que marcaram a pela Ateliê Editorial. Curiosamente, o caso
França do século XVII e, mais especi- de Loudun ocorreu quase no final de uma
ficamente, sobre o famoso caso do con- longa epidemia, época em que, simulta-
vento das freiras ursulinas em Loudun, neamente, Descartes dá a lume o seu Dis-
em 1634. O primeiro apresenta a sua obra curso do método (1637). Um julgamento
como um “livro de ‘história’, ou melhor, público, envolvendo instâncias jurídicas,
de ‘histórias’”1. Já o segundo, historia- políticas e religiosas, além de pareceres
dor consagrado, afirma que “a história científicos descreditados, sela tanto o epi-
nunca está segura” 2 . Sobre os sinais de sódio francês quanto o brasileiro.
desespero coletivo em épocas de crise, Em Os diabos de Ourém, temos como
Certeau afirma que fio condutor da trama o caso jurídico-e-
clesiástico do vigário exorcista José Maria
“essas expressões da inquietação social Fernandes, cujos autos de inquirição foram
parecem recusar […] os limites de um pre- encontrados pela autora em suas pesqui-
sente e as condições reais de seu futuro. sas no Arquivo da Arquidiocese de Belém
Como cicatrizes fixam novas doenças no
mesmo lugar das antigas, elas dão pre-
viamente sinais e localização para uma
3 Tradução nossa: “Ces langages de l’inquiétude sociale
fuga (ou um retorno?) do tempo. Daí o semblent récuser […] les limites d’un présent et les condi-
tions réelles de son avenir. Comme des cicatrices fixent à
caráter imemorial que se liga às irregu-
de nouvelles maladies la même place que les anciennes,
laridades da história, como se unissem ils donnent à l’avance ses signes et sa localisation à
une fuite (ou à un retour?) du temps. De là, ce caractère
d’immémorial qui s’attache aux irrégularités de l’histoire,
comme si elles rejoignaient un commencement sans
passé, le fond obscur d’une insécurité, une ‘singularité’
latente, dévoilée dans le pluriel continu des événements.
1 Tradução nossa: “Ceci est un livre d’histoire ou plutôt […] Peut-on si facilement exiler de l’histoire la panique?”
d’histoires” (Bercé, 2018, p. 7). (Certeau, 2005, p. 14).
2 Tradução nossa: “l’histoire n’est jamais sûre” (Certeau, 4 Primeira publicação, em formato digital: Amazon/
2005, p. 15). Kindle, 2020.

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livros / Homenagem

do Pará, em 1975. Tendo o caso ocorrido da Câmara, Martinho dos Santos Marti-
numa região ainda hoje negligenciada pelo nes. Com este, Fernandes divide a coau-
poder central do país, a sua importância toria da personagem luciferina Martinha.
é atestada pelo fato de que, anos depois, A Elias, filho legítimo da metrópole
em 1998, a historiadora volta a se deparar recentemente perdida, Fernandes confessa
com mais documentos associados a esse a sua admiração pelos inquisidores por-
episódio, desta vez no Instituto Histórico tugueses de outrora, que, tal como ele,
e Geográfico Brasileiro do Rio de Janeiro. eram experts em “rastrear a presença do
Na antiga capital do Império, a autora en- demônio em terras tropicais” (p. 27). O
contra um ofício da Secretaria da Polícia padre faz clara alusão às “visitações” do
do Pará, datado de 5 de setembro de 1860, Santo Ofício ao Brasil, cuja última e mais
encaminhando ao secretário do Instituto longa aconteceu, justamente, no estado do
Histórico da Corte do Rio de Janeiro um Grão-Pará e Maranhão, entre os anos de
folheto intitulado Averiguações policiais 1763 até, provavelmente, 1772. E, corro-
sobre os fatos praticados na Vila de Ou- borando a ideia de uma afinidade histó-
rém a pretexto de possessão do Demônio. rica entre colônia e metrópole, também
A constatação do desaparecimento desse a Ourém portuguesa foi palco desses ex-
folheto abre a brecha para o adentrar do perts em exorcismo.
imaginário no corpo da história, recriando O ex-ourives que acreditava ler “as li-
o que já de per se é rico em fabulação. nhas – e principalmente as entrelinhas –
Às forças do padre exorcista de seu melindroso cotidiano” (pp. 9-10) de
submetem-se não apenas Deus e o Diabo, desbravador do Novo Mundo, vê-se perdido
como toda uma cidade amedrontada pelo ao chegar à Ourém amazônica. Nesse vila-
fantasma das pestes e pragas enviadas pela rejo, passa a cortejar a morte ao contrair
ira de ambos. Aproveitando-se do clima de cólera; diagnóstico este percebido, todavia,
histeria coletiva reinante, o espaço paro- como insuficiente para apaziguar o seu es-
quial torna-se, então, um teatro político sob pírito aventureiro ferido. O parecer é, por
direção de José Maria Fernandes, no qual isso, completado pelo vigário Fernandes,
são dramatizadas as cenas de possessão conhecedor das “ciências ocultas”: Elias
de Martinha, a escrava endiabrada, e do é “suspeito de estar endiabrado e acome-
português Elias de Souza Pinto, ex-ourives tido de cólera” (p. 47). Ele passa, então,
e negociante. Nesse teatro, no qual des- a dividir o palco paroquial com Martinha,
filam autoridades políticas e eclesiásticas assumindo o papel de Ciprião – ou seria
locais e regionais, também são armados de “Cipriano”, “São Cipriano”, feiticeiro
autos de fé simbólicos nos quais os ini- convertido ao cristianismo, conhecedor dos
migos são queimados vivos. Esses bodes mistérios da transmutação enquanto alqui-
expiatórios, como o comerciante espanhol mista, assim como Elias o foi enquanto
Bento Mattos e a sua finada amante, Maria ourives? Elias, contudo, em razão talvez
do Nascimento, servem para expurgar os do seu grande temor a Deus, não conse-
males coletivos não só do povo, mas, so- gue desempenhar convincentemente o seu
bretudo, aqueles do vigário e do presidente papel de endiabrado.

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É Martinha, encarnando o espírito da no altar, liberto de todo o sofrimento e
sua antiga patroa, Maria do Nascimento, repressão, que atrai multidões à igreja.
ex-pecadora transformada em “Santa Maria Martinha cria, assim, nos termos de Car-
Mártir”, que rouba a cena das sessões de los Roberto F. Nogueira (2002, p. 103), um
“espanta-diabo”. Simone de Beauvoir diz “prazer estético do mal”, que se contrapõe
ser a mulher “ídolo supremo nas regiões à “didática do medo” do padre exorcista.
longínquas do céu e dos infernos; cercada Satã é, no romance tucciano, símbolo de
de tabus como todos os seres sagrados, ela libertação contra uma sociedade patriarcal
mesma é tabu; em razão dos poderes que escravagista que tem no medo cristão a sua
detém, é vista como mágica, feiticeira”5. maior arma de dominação. Assim, Martinha,
Após terem sido queimadas como bruxas, encarnação perfeita do bode expiatório
sobretudo nas zonas campesinas do Norte coletivo enquanto mulher, negra e escrava,
da Europa, as mulheres tornam-se as prin- consegue, graças à sua performance luci-
cipais vítimas de episódios de possessão ferina, inverter o jogo social.
demoníaca, como aqueles que acometeram A querela entre ciência e religião, ca-
muitos conventos franceses no século XVII. racterística de momentos epidêmicos, tam-
Sobre essa transformação da imagem da bém é pintada no romance com cores vi-
mulher, Beauvoir aponta para uma mani- vas, ganhando fortes contornos políticos.
pulação da Igreja Católica sobre o corpo D. Pedro II é acusado de abrir excessi-
feminino, subjugado à sociedade patriar- vamente a entrada no país a cientistas
cal através da idealização da imagem da estrangeiros, sem conseguir, no entanto,
Santa Maria: “Ela é a figura invertida de um tratamento eficaz às vítimas do “vô-
Eva, a pecadora; ela esmaga a serpente sob mito preto”. Além da necessidade de res-
seus pés; ela é a mediadora da salvação, suscitar os velhos bodes expiatórios, se-
como Eva foi da condenação”6. Coabitada gundo um mecanismo de culpabilização
pelas forças antagônicas de Eva e de Ma- das minorias e de responsabilização dos
ria, Martinha condensa em si todo o mis- governantes – que passam a ser também
tério feminino da criação e da destruição. acusados de complô contra a própria po-
Chantageada pelo vigário que a toma por pulação –, vemos a exacerbação comum
escrava sexual em troca de sua liberdade, de um sentimento nacionalista represen-
é ela que passa a tê-lo nas mãos. É o seu tado pela proteção das fronteiras territo-
corpo de anticristo exposto lascivamente riais. Quando não temos uma explicação
racional para uma crise sanitária, quando
não sabemos quase nada sobre um agente
patogênico responsável por uma epidemia
5 Tradução nossa: “Suprême idole dans les régions lointai-
nes du ciel et des enfers, la femme est sur terre entourée e, principalmente, quando não sabemos
de tabous comme tous les êtres sacrés, elle est elle-même como tratar a devastação por ele causada,
tabou; à cause des pouvoirs qu’elle détient on la regarde
comme magicienne, sorcière” (Beauvoir, 1993, p. 123). é o grito que preenche a ausência de res-
6 Tradução nossa: “Elle est la figure inversée d’Ève la posta. Não, não é fácil banir o pânico da
pécheresse; elle écrase le serpent sous son pied; elle est la
médiatrice du salut, comme Ève l’a été de la damnation”
história; entre Deus e o Diabo, a histeria
(Beauvoir, 1993, pp. 284-5). coletiva reaparece.

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livros / Homenagem

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, S. de. Le deuxième sexe I. Les faits et les mythes. Paris, Gallimard, 1993.
BERCE, Y.-M. Esprits et démons. Histoire des phénomènes d’hystérie collective. Paris, La
Librairie Vuibert, 2018.
CERTEAU, M. de. La possession de Loudun. Paris, Gallimard, 2005.
MAINGUENEAU, D. Le discours littéraire. Paratopie et scène d’énonciation. Paris, Armand
Colin, 2004.
NOGUEIRA, C. R. F. Diabo no imaginário cristão. Bauru, Universidade do Sagrado Coração,
2002.

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A carta de Caminha

José de Paula Ramos Jr.

A carta de Pero Vaz de Caminha, introdução, notas e


estabelecimento de texto de Marcelo Módolo e Maria de Fátima
Nunes Madeira, São Paulo, Ateliê Editorial, 2023, 120 p.

A economia brasileira como ela é – como reverter a destruição neoliberal, de J.


Carlos Assis, Revista
Rio USPde •Janeiro, Amazon, 2022, 116 p.
São Paulo • n. 139 • p. 185-187 • outubro/novembro/dezembro 2023 185
livros / Homenagem

N
ove de março Dom Manuel, escrita por Pero Vaz de
de 1500. Co- Caminha e datada de 1º de maio de 1500.
mandada por A Carta de Caminha, denominada “cer-
Pedro Álva- tidão de nascimento do Brasil”, registra o
res Cabral, espanto perante a natureza exuberante e a
uma esquadra estranheza perante os autóctones. Os belos
formada por e hígidos corpos e feições dos indígenas
três carave- contrastavam com o aspecto dos portugue-
las e dez naus menores parte de Lisboa ses, vestidos em pesadas roupas usadas e
com destino à Índia. Em vez de navegar sujas, além de, provavelmente, exalarem
rente à costa africana, a esquadra dela se um odor desagradável, pela ausência de
desvia ao alto-mar rumo ao Ocidente. Em banho. Tudo era inusitado aos olhos do eu-
22 de abril foi avistada terra, nomeada ropeu devoto católico, que observa a nudez
Monte Pascoal, pois era época da Páscoa de homens e mulheres sem que houvesse
católica. Mas ao aproximarem-se da terra vergonha entre eles, mas inocência. Isso
firme, verificaram que não era um simples o leva a sugerir ao rei Dom Manuel que
monte, mas uma extensão enorme, mais a ação mais importante na colonização
tarde denominada Terra de Santa Cruz, da terra seria a catequese e conversão do
antes de ser designada Brasil. gentio ao cristianismo católico. Mas não
Os navegantes permaneceram no sul somente, o escrivão também sugere que a
da Bahia por cerca de dez dias. Em 2 de
maio a esquadra levanta âncoras e parte
em demanda da Índia, que era o seu pri-
meiro propósito. Cabral ordena que uma JOSÉ DE PAULA RAMOS JR. é professor
aposentado do Departamento de Jornalismo
nau regressasse a Portugal, levando a no- e Editoração da ECA-USP e autor de Leituras de
tícia do descobrimento na Carta ao rei Macunaíma: 1928-1936 (Edusp/Fapesp).

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terra poderia ser fonte de cultura agrícola dos indígenas perante o “outro”, porém,
abundante, embora não houvesse mais que só pode ser imaginada.
indícios de que ouro e prata pudessem lá A edição da Carta na Coleção Clás-
ser encontrados. sicos Ateliê comenta com minúcia as
Os indígenas não foram belicosos, ao observações de Caminha e se caracte-
contrário, interagiram com os portugue- riza sobretudo por uma abordagem do
ses e chegaram a dançar com eles. Por texto original de caráter filológico, com
ocasião das duas missas celebradas pelo a transcrição diplomático-interpretativa
frei Henrique Soares, os indígenas imita- e a transcrição modernizada e anotada,
ram os movimentos dos navegantes, que trabalho realizado com exclusividade para
ora se ajoelhavam, ora postavam-se em a Ateliê Editorial pelo professor Marcelo
pé. Evidentemente, sem saberem os sig- Módolo, da Faculdade de Letras da Uni-
nificados dessas atitudes. versidade de São Paulo, com a colabora-
Caminha pôde se expressar de acordo ção de Maria de Fátima Nunes Madeira.
com sua cultura historicamente configu- Os estudantes do ensino médio e das
rada, proporcionando, segundo essa pers- faculdades de Letras, bem como a crítica
pectiva, uma visão dos primeiros contatos literária, terão acesso a um texto fide-
entre portugueses e selvícolas. A visão digno e esclarecedor.

Revista USP • São Paulo • n. 139 • p. 185-187 • outubro/novembro/dezembro 2023 187


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99 110 122
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100 111 123
Educação Música Popular Histórias Culturais
134
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Política

Rumos da Financiamento da Marketing Político


101 112 124
Justiça Brasileira Americanistas Inteligência
135
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Ciência e Tecnologia

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102 113 125
Metrópoles Amazônia Azul Saramago
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o Século XXI Ciências Exatas Latino-Americana

50
Revista Cinquenta Gestão e Política na Redes Sociais
103 114 126 137
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