Carlasilvino Caderno Texto 2023 Completo
Carlasilvino Caderno Texto 2023 Completo
Carlasilvino Caderno Texto 2023 Completo
O
ensino de História se destaca por mudanças marcantes em sua trajetória
escolar que a caracterizavam, até recentemente, como um estudo mne-
mônico sobre um passado criado para sedimentar uma origem branca e
cristã, apresentada por uma sucessão cronológica de realizações de “grandes
homens” para uma “nova” disciplina constituída sob paradigmas metodológi-
cos que buscam incorporar a multiplicidade de sujeitos construtores da nação
brasileira e da história mundial. No Brasil, a História escolar, sob diferentes de-
nominações, História Universal ou História da Civilização, História do Brasil
ou História Pátria..., são indicativas de um percurso de mudanças quanto aos
objetivos, conteúdos e práticas educacionais do século XIX aos dias atuais.
As recentes transformações da História têm sido constatadas por pesquisas
recentes,1 e enfrentam constantes desafios para se efetivarem, como a inclusão
da história da África e da cultura afro-brasileira, da história dos povos indígenas
ou das mulheres. As transformações do ensino de História têm proporcionado
debates importantes relacionados aos problemas epistemológicas e historiográ-
ficos, mas também quanto ao significado de sua inserção e rejeição em projetos
curriculares nacionais e internacionais (Monteiro, 2014; Bittencourt, 2018).
Historiadores de diversos países também têm analisado as mudanças ocor-
ridas no ensino de História, como o historiador francês François Furet que con-
siderou fundamental sua presença nos currículos ocidentais a partir do século
XIX por ser a disciplina que fornecia o “sentido do progresso da humanidade”
e a ela também atribuiu uma importância pedagógica por ser a “árvore genealó-
gica das nações europeias e da civilização de que são portadoras” (Furet, 1986,
p.135). Para o historiador canadense Christian Laville o ensino de História, no
período pós-Segunda Guerra Mundial, com uma vitória da democracia na maio-
ria dos países ocidentais, transformou-se em uma disciplina alinhada à função
primordial de uma formação para a cidadania participativa e, nessa perspectiva,
deveria “desenvolver (nos alunos) as capacidades intelectuais e efetivas necessá-
rias para esta forma de construção política democrática” (Laville, 1999, p.152).
E Laville também constatou que essa tendência, quanto aos objetivos do ensino
de História, se estendeu por quase todos os demais países europeus, americanos
e asiáticos no decorrer das décadas finais do século XX.
Uma História escolar concebida como “pedagogia do cidadão” mantém-
-se em currículos do século XXI como importante instrumento educativo de
Notas
1 As pesquisas sobre história do ensino de História tem ampliado muito conforme ba-
lanços apresentados em eventos da área de ensino: Encontro Nacional do Ensino de
História (ENPEH), Perspectivas do Ensino de História e GT de Ensino de História da
Associação Nacional de Professores de História (ANPUH Brasil e regionais).
2 O historiador David Hamilton (2002, p.196) considera a educação como “um pro-
cesso de empoderamento, [...] uma resposta a um eterno desafio humano. Ela explora
o potencial que os seres humanos têm de transcender os limites da evolução biológica
e almeja garantir que a mudança social agregada seja mais rápida do que a evolução
biológica da espécie humana”.
3 Martim Francisco Ribeiro de Andrada havia apresentado esta proposta para ser imple-
mentada na capitania de São Paulo e foi publicada na Memória sobre a Reforma dos
Estudos na Capitania de São Paulo, em 1816, após ter tido parecer desfavorável à sua
execução.
4 A proposta Instrução Pública e organização do ensino de Condorcet apresentada em
1792 como presidente da Comissão de instrução Pública da Assembleia Legislativa
Francesa, pelo seu caráter revolucionário quanto à criação da escola pública moderna
sob uma concepção democrática, foi objeto de vários trabalhos na história da edu-
cação, sendo o mais recente Instrução Pública e projeto civilizador, de Carlota Boto
(2017).
5 Esse Projeto de Lei sobre a Instrução Pública do Império do Brazil, após ter sido
debatido e reformulado, serviu de base para a primeira Lei de Ensino Primário de 15
de outubro de 1827.
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Circe Fernandes Bittencourt é mestre e doutora em História Social pela USP, professora
aposentada da Faculdade de Educação da USP, professora de Pós-graduação em Edu-
cação, História, Política, Sociedade da Pontificia Universidade Católica de São Paulo.
@ – circe@usp.br
Recebido em 28.5.2018 e aceito em 26.6.2018.
I
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.
Resumo
O trabalho se insere no projeto de investigação sobre a construção da História como disciplina
escolar no Brasil e toma, como fonte principal, resultados de pesquisas já realizadas em manuais
de didática da História, destinado a professores. Tem como objetivo identificar elementos constitu-
tivos do processo de construção da história do ensino de História, tendo como referência o concei-
to de código disciplinar da História (Fernandez Cuesta, 1998). Resultados, ainda que parciais,
indicam a predominância de uma separação entre a História e a didática da história, indiciária da
centralidade do ensino e aprendizagem histórica, pautada em concepções oriundas da psicologia
e da didática geral, apontando lacunas dos processos de ensino e aprendizagem fundamentados
no método e na cognição situados na própria ciência da história. Ademais, verificou-se também
que a consolidação do código disciplinar da história no Brasil teve influência das políticas e teorias
educacionais originadas no aparelho de Estado. A partir dessas sistematizações, há indicativos da
necessidade de continuidade das investigações, no sentido de recuperar elementos dos textos
visíveis (como manuais, experiências curriculares) e dos textos invisíveis (como a prática dos pro-
fessores e a participação dos alunos na relação ensino e aprendizagem), com o objetivo de apon-
tar as relações entre micro e macro manifestações do código disciplinar da história, nos diferentes
períodos da história do ensino da história no Brasil, tendo como referência a relação dialógica en-
tre a cultura histórica e a cultura escolar.
Palavras-chave: história do ensino de história, código disciplinar da história, didática da história.
Abstract
The work is part of the research project about the history of the construction of History as school
subject in Brazil, taking as the most important sources the researches already carried out about
didactic of History’s textbooks for teachers.Its main objective is to identify the constituent elements
of the construction’s process of the history of the History teaching, with the reference to the con-
cept disciplinary code of History (Fernandez Cuesta, 1998). Results, even if partial, indicated the
1
Texto apresentado no 17º Encontro da Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da
Educação - Asphe, em 14 de setembro 2011, realizado na Universidade Federal de Santa Maria/RS.
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predominance of a separation between History and the didactic of History, evidentiary of the cen-
trality of historical teaching and learning grounded on conceptions derived from psychology and
general didactic, pointing out gaps in the processes of teaching and learning based in the method
and cognition situated within the very science of history. Moreover, one also verified that the con-
solidation of the disciplinary code of history in Brazil was greatly influenced by educational politics
and theories originated in the state apparatus.Based on this systematization, there is evidence of
the need for continuity of research in order to retrieve elements of the visible texts (as textbooks,
curricular experiences) and invisible texts (such as teachers’ practice and students’ participation in
the relationship between teaching and learning), with the aim of pointing out dialectically the rela-
tionship between micro and macro events of the disciplinary code of history at different periods of
the history of the history teaching in Brazil. All this, with reference to a dialogical relationship be-
tween the historical culture and school culture.
Key-words: history of the history teaching, disciplinary code of history, didactic of history.
Resumen
El trabajo es parte del proyecto de investigación sobre la historia de la construcción de la Historia
como una asignatura escolar en Brasil, tomando como fuente principal investigaciones ya realiza-
das en los manuales de didáctica de la historia, para los maestros. Tiene como objetivo principal
identificar los elementos constitutivos de la construcción de la historia de la enseñanza de la histo-
ria, con referencia al concepto de código disciplinar de la Historia (Fernández Cuesta, 1998). Re-
sultados, aunque parciales, indican el predominio de una separación entre la historia y la didáctica
de la historia, prueba de la centralidad de la enseñanza y el aprendizaje basado en concepciones
derivadas de la psicología y didáctica general, señalando las lagunas en los procesos de ense-
ñanza y aprendizaje basados en el método y en la cognición situados en la ciencia de la historia.
Por otra parte, se constató también que la consolidación del código disciplinar de la historia en
Brasil ha recibido gran influencia por las políticas y teorías educativas originadas en el aparato
estatal. Con base en esta sistematización, hay evidencia de la necesidad de continuidad de las
investigaciones, con el fin de recuperar los elementos de los textos visibles (tal como manuales,
experiencias curriculares) y de los textos invisibles (por ejemplo, la práctica de los profesores y la
participación de los alumnos en la relación enseñanza y aprendizaje), con el objetivo de señalar
las relaciones entre los eventos de micro y macro en la historia del código disciplinar de la historia,
en los diferentes períodos de la historia de la enseñanza de la historia de Brasil, con referencia la
relación dialógica entre la cultura histórica y cultura escolar.
Palabras-clave: historia de la enseñanza de la historia, código disciplinar de la historia, didáctica
de la historia.
Résumé
Le travail est une partie du projet de recherche sur l'histoire de la construction de l'histoire en tant
que discipline scolaire au Brésil, en prenant comme sa source primaire de recherche déjà
effectués dans les manuels de la didactique de l'histoire, pour les enseignants. Il a comme
principal objectif identifier lês éléments dans le processus de la construction de l'histoire de
l'enseignement de l'histoire, en prenant comme référence le concept de code disciplinaire de
l'histoire (Fernandez Cuesta, 1998). Les résultats, même partiales, sont un indicatif de la
prédominance d'une séparation entre l'histoire et la didactique de l'histoire, indicatif de la
centralisation de l'enseignement et de l'apprentissage historique basée sur conceptions provenant
de la psychologie et de la didactique générale, signalant certaines lacunes de l'enseignement et
des processus d'apprentissage fondées sur la méthode et de cognition située dans la science elle-
même de l'histoire. En outre, il a été également constaté que la consolidation du code disciplinaire
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de l'histoire du Brésil avait une grande influence des politiques et théories pédagogiques
provenaient de l'appareil de l'État. À partir de cettes systématisations, il y a indicatifs de la
nécessité de poursuivre la recherche afin de récupérer des éléments textes visibles (tels que
manuels, expérience curriculaire et des textes invisibles (tels que la pratique des enseignants et la
participation des étudiants à la relation l'enseignement et l'apprentissage) dans le but de souligner
les relations entre le micro et macro manifestations du code disciplinaire de l'histoire, à différentes
périodes de l'histoire de l'enseignement de l'histoire au Brésil, ayant comme une référence à la
relation dialogique entre la culture de l'histoire et la culture d’école.
Mots-clé: histoire de l'enseignement de l’histoire, code disciplinaire de l'histoire, didactique de
l'histoire
Introdução
ste estudo insere-se no conjunto de reflexões sobre a história das discipli-
E nas escolares (Chervel, 1990; Citron, 1992; Goodson, 1997), as quais têm
apontado a necessidade de se entender os saberes escolares em sua es-
pecificidade, articulados às mudanças e continuidades inscritas nos ritmos
próprios da longa duração, relacionados com os contextos e estruturas de cada socieda-
de, tomando como fonte principal pesquisas realizadas em manuais didáticos destinados
a professores. Os manuais didáticos são considerados uma das fontes importantes para a
reconstituição da história das disciplinas escolares no Brasil, como atestam trabalhos co-
mo os de Bittencourt (1998), Freitas (2006) e Mattos (1998), incluindo-se também os ma-
nuais destinados a professores de História. 2
Para entender a construção da trajetória do ensino de História no Brasil, é importan-
te levar em consideração que esse processo insere-se no conjunto de estudos sobre o
campo da história das disciplinas escolares, que vem atraindo a atenção de historiadores,
como atestam os trabalhos de Terrise (2001), os quais apontam a constituição de um
campo específico de conhecimento, a partir do conceito de “referência”.
Neste sentido, Moniot (2001) assinala que a construção do campo específico do en-
sino da História é um fazer-se instituído a partir da referência à história dos historiadores e
ao conceito de transposição didática3, à sua própria constituição enquanto disciplina esco-
2
Desde 1999 coordeno a pesquisa Ensinar a ensinar: pesquisa e análise de manuais destinados a
professores de História. Além de resultados parciais já publicados em anais de eventos e como capitulos
de livros, foram desenvolvidas uma dissertação de mestrado, ver RODRIGUES Jr., Osvaldo. Os manuais
de didática da história e a constituição de uma epistemologia da didática da história. Curitiba: UFPR,
2010. 154f. Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-
Graduação em Educação e URBAN, Ana Claudia. Didática da história: percursos de um código disciplinar
no Brasil e na Espanha. Curitiba: UFPR, 2009. 246f. Tese (doutorado em História), Universidade Federal
do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Educação.
3
Sobre o conceito de transposição didática ver CHEVALLARD, Yvez. La transposición didactica. Buenos
Aires: Aique, 2000.
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lar4 e à ideia de prática social de referência5 pressupondo, portanto, uma determinada
cultura política e uma filosofia social.
Na esteira desses trabalhos, é consensual entre os pesquisadores, a constatação da
existência de uma história do ensino de História no Brasil. Mas, indo além, constata-se a
existência de um conjunto de conhecimentos específicos, cuja constituição, funcionamen-
to, objetivos e objetos têm como pressuposto o como ensinar a História e a perspectiva de
que esse processo está relacionado com a história das formas de escolarização, confor-
me atestam os estudos de Choppin (1992). Segundo Briand/Chapoulie (1993), o processo
de escolarização deve ser analisado como um fenômeno relacionado à experiência pró-
pria da instituição escolar e com os sujeitos nela envolvidos.
Ademais, segundo estes autores, diz respeito a um movimento inserido na dinâmica
das articulações entre as instituições escolares e determinados projetos e propostas polí-
ticas. Trata-se de um processo paulatino de produção de referências sociais, tendo a es-
cola ou a forma escolar de socialização e transmissão de conhecimentos como eixos arti-
culadores de sentidos e significados, ao qual dá o nome de escolarização do social. Nes-
se processo, a noção de cultura escolar é particularmente importante para a compreensão
deste fenômeno porque
Admite-se, ainda, a noção de cultura escolar como uma das categorias norteadoras
para a análise da constituição da História enquanto um conhecimento escolarizado, pois,
a cultura escolar pode ser considerada como um conjunto de teorias, ideias, princípios,
rituais, hábitos e práticas, formas de fazer e de pensar, mentalidades e comportamentos
sedimentados ao longo do tempo sob a forma de tradições, regularidades e regras
4
MONIOT, H. (2001). O autor faz referência ao conceito de disciplina escolar a partir dos trabalhos de
André Chervel. Ver CHERVEL, História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa.
Revista Teoria & Educaçao, n. 2, 1990, p. 177-227.
5
O conceito de prática social como referência para a transposição didática do saber cientifico ao saber
escolar foi apreendido por Moniot a partir das reflexões de DEVELAY, M. De l’apprentissage à
l’enseignement. Paris: ESF, 1992. Segundo Develay, a transposição didática tem como referencia
também as práticas sociais porque implica um trabalho de axiologizaçao e de didatizaçao do saber
cientifico para o saber a ser ensinado.
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tencia en el tiempo, su insitucionalización y su relativa autonomia que le
permite generar productos específicos - por exemplo, las disciplinas esco-
lares. (Viñao Frago, 1998, p. 169)
6
Sobre essa investigação, podem ser citados os trabalhos de SCHMIDT, Maria Auxiliadora. O aprender da
história no Brasil: trajetórias e perspectivas. In. OLIVEIRA, Margarida Marias Dias et al. Ensino de história:
múltiplos ensinos em múltiplos espaços. Natal: UFRN, 2008; bem como a História com pedagogia: a
contribuição de Jonathas Serrano na construção do código disciplinar da história no Brasil. Revista
Brasileira de História. São Paulo: Anpuh, v. 24, n. 48, jul-dez, 2004, p. 189-211.
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Esse processo de construção da História como disciplina escolar insere-se, a partir
da segunda metade do século 19, no próprio movimento de construção e consolidação do
Estado Nacional, no qual se destacam os embates entre monarquistas e republicanos e a
necessidade de definição de uma identidade nacional. A proclamação da República, em
1889, explicita a importância da História, principalmente a História do Brasil, para a
formação de um determinado tipo de cidadão:
Em 1942, ou seja, 11 anos após a reforma Francisco Campos, foi elaborada a nova
Lei Orgânica do Ensino Secundário, também conhecida como reforma Gustavo
Capanema. Um dos principais princípios desta nova lei era assentado na proposta de
autonomia didática para o professor, princípio este também defendido por Jonathas
Serrano, um dos relatores da lei. Entre suas propostas principais estava dividir cada
disciplina a partir dos programas e unidades didáticas.
Nessa lei não se ousou reunir a História e a Geografia com a Sociologia (eliminada
da escola secundária pela Reforma Capanema) e uma instrução cívica renovada, num
conjunto mais amplo e melhor articulado, semelhante aos social studies dos currículos
norte-americanos (Hollanda, 1957, p.1 56), o que revela a manutenção na ênfase aos
conteúdos específicos da História como componentes curriculares obrigatórios, fato que,
gradativamente, foi sendo absorvido pela implantação de projetos que viriam desaguar na
imposição dos Estudos Sociais pelo governo militar, em 1971.
Esta centralidade nos conteúdos específicos da História também foi incorporada pela
portaria n. 1.045, de 1951, da reforma da Escola Secundária brasileira, cujos princípios
básicos para o ensino de História eram a valorização dos fatos do presente e deles partir
para o passado; desenvolver um ensino intuitivo e crítico; focalizar os indivíduos como
expressões do meio social e, principalmente, desenvolver os processos de fixação,
investigação, raciocinativos, ilustrativos e outros, abrangendo esquemas, formas de
representação, literatura, exame, discussão, e também onde os julgamentos de valores
eram recomendados. Fazendo apelo à pedagogia da escola nova, a portaria ressaltava e
7
Jonathas Serrano foi autor de dois manuais de didática da História destinados a professores, considerados
os primeiros manuais do gênero produzidos e publicados no Brasil. Ver: SERRANO, Jonathas.
Methodologia da história na aula primária. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1917 e Como se ensina a
história. São Paulo: Melhoramentos, 1935.
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Na esteira do que afirma Fernandez Cuesta (1998), o código disciplinar da História
no Brasil consolidou-se sob a demarcação de fortes relações de poder do Estado na
configuração da História como disciplina escolar. Estas relações puderam ser detectadas,
principalmente, na articulação orgânica entre intelectuais cuja experiência se pautava na
prática do magistério e na produção e divulgação de determinadas políticas educacionais
governamentais das décadas de 1950 e 1960.
Vale destacar que é justamente neste período que se observa o início de uma crise
no código disciplinar da História, explicitada pelo embate entre proposições relacionadas
com o social studies e com a manutenção da História como disciplina autônoma.
Foi o regime militar, no governo do general Emilio Garrastazu Médici, que impôs a lei
n. 5.692, de 1971, na qual o ensino de Estudos Sociais foi compulsoriamente tornado o-
brigatório e estendido para as oito séries do antigo Primeiro Grau. O parecer n. 853/71,
imposto pelo Conselho Federal de Educação, fixou o núcleo comum obrigatório para os
currículos do 1o e 2o graus.
A doutrina do currículo da lei n. 5.692/71 impôs os Estudos Sociais como matéria8.
Desta forma, os conteúdos poderiam ser tratados como Atividades (1a a 4a séries sob o
nome de Integração Social); Áreas de Estudo (5a a 8a séries, sob o nome de Estudos So-
ciais) e Disciplina (somente no 2o Grau). Como se pode observar, o ensino de História
ficou restrito ao Segundo Grau, inserido na grade curricular com carga horária máxima de
duas horas semanais, durante um ano deste curso:
8
Segundo o parecer, “matéria é todo campo de conhecimentos fixado ou relacionado pelos conselhos de
educação e, em alguns casos, acrescentados pela escola, antes de sua reapresentaçao, nos curriculos
plenos, sob a forma de “didaticamente assimiláveis” de atividades, áreas de estudo ou disciplina”.
o
(MEC/Ed. Expressão e Cultura. Habilitações profissionais no ensino do 2 . Grau. Diretrizes, normas,
legislação, 1972.
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Acreditava-se que a adoção de Estudos Sociais deveria desenvolver nos
alunos noções de espaço e tempo a partir dos estudos da escola, do bair-
ro, da casa, da rua, para ir se ampliando, chegando ao estudo da cidade,
do estado e assim por diante. Ainda eram reforçadas pelo ensino de Estu-
dos Sociais, noções como: pátria, nação, igualdade, liberdade, bem como
a valorização dos heróis nacionais dentro de uma ótica que tentava legiti-
mar, pelo controle do ensino, a política do Estado e da classe dominante,
anulando a liberdade de formação e de pensamento. (Urban, 2011, p. 10)
O documento enfatiza a forma pela qual jovens e crianças podem ter acesso ao
conhecimento histórico, tais como convívio social e familiar, festejos de caráter local,
regional, nacional e mundial e pelos meios de comunicação, como a televisão. Parte,
ainda, do pressuposto de que os jovens sempre participam, a seu modo, do trabalho de
memória que recria e interpreta o tempo e a História e agregam às suas vivências,
informações, explicações e valores oferecidos na sala de aula.
Indica, assim, um segundo entendimento, de que as informações e questões
históricas podem ser incorporadas significativamente pelo adolescente, que as associa,
relaciona, confronta e generaliza, porque o que se torna significativo e relevante consolida
seu aprendizado. (Brasil, 1998b, p. 38).
O documento também estabelece a diferenciação entre um saber que os alunos
adquirem de modo informal e um outro, que denomina de saber escolar. Nessa
perspectiva, reafirma que
Considerações finais
De modo geral, pode-se afirmar que, a partir de meados da década de 1980 até o
fim da década de 1990, ocorreu um confronto de propostas que buscam novos referenci-
ais para o ensino de História. De um lado, diferentes projetos reformistas que acolhem,
alguns deles, perspectivas teóricas e metodológicas mais pertinentes à história dos mo-
vimentos sociais e do trabalho; de outro, projetos inovadores que sugerem adoções de
novas concepções metodológicas como a introdução da história temática mais articulada
a alguns autores dos Annales, sugerida, entre outros, pelos parâmetros curriculares na-
cionais (1998b). Este confronto está relacionado ao contexto em que a sociedade brasilei-
ra, recém-saída do período ditatorial, empreende a busca dos seus novos caminhos.
A produção dos parâmetros curriculares nacionais, especificamente o de História,
pode ser vista como um dos momentos deste confronto. Pode-se ver este embate
antecipado no documento de análise das propostas curriculares de história para o ensino
fundamental (Bittencourt, 1998b). Este documento foi feito com a finalidade de subsidiar a
elaboração dos parâmetros curriculares nacionais para o ensino fundamental e baseia-se
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na análise das propostas elaboradas pelas secretarias de Educação de vários Estados
brasileiros, entre 1984 e 1995.
Um dos pontos a serem destacados neste documento é a crítica que faz quanto às
contradições entre os discursos predominantes nessas propostas, o qual considera
bastante genérico e incapaz de auxiliar quanto às opções que devem ser feitas em
relação a enfoques teóricos divergentes em determinado campo de conhecimento.
Ademais, considera que o posicionamento das reformas em favor das classes populares
não é suficiente pois não supre as deficiências do processo de reelaboração didática
exigido pela transposição didática das respectivas disciplinas acadêmicas em saber
escolar pois, na perspectiva dessa análise, trata-se de um discurso com clara conotação
política que tem demonstrado contudo, no mais das vezes, frágil intersecção com as
proposições dos especialistas que efetivamente tem conferido a tônica ao currículo.
Observa-se, nessas afirmações, alguns dos pressupostos que norteariam a elabora-
ção dos parâmetros curriculares nacionais como um todo e, em particular, as diretrizes
sugeridas para o ensino de História, nas quais predominam aspectos multifacetados de
concepções historiográficas e a ênfase na concepção de currículo elaborada por especia-
listas, pautada na perspectiva atitudinal e procedimental dos conteúdos.
A transformação de determinados procedimentos e atitudes, em conteúdos pertinen-
tes ao ensino de História, pode ser entendida a partir de referenciais paradigmáticos em
que a própria noção de conteúdo é empobrecida, fragmentada e pragmatizada e onde os
temas perderam seu valor conceitual, tornando-se apenas palavras, pois não estão orga-
nicamente articulados com a pluralidade das experiências daqueles que lutam e fazem a
história do povo brasileiro, no presente e no passado e, portanto, não respondem às suas
demandas de transformação da sociedade contemporânea.
Constata-se, gradativamente, que a separação entre a Didática da História e a Histó-
ria acadêmica foi contribuindo para a formação de um código disciplinar da História com
características específicas em cada momento da sociedade brasileira, mas que, de modo
geral, empurrou as questões do ensino e aprendizagem da História tendencialmente para
o âmbito da cultura escolar e foi a partir desse reajustamento que a dimensão cognitiva do
ensino da História passou a se articular com a dimensão política da cultura histórica.
Nesse processo, as questões relacionadas à aprendizagem histórica e, portanto, ao
seu ensino, saíram da pauta dos historiadores e entraram, prioritariamente, na pauta das
políticas educacionais, ocorrendo um deslocamento entre a cultura histórica e a cultura
escolar, em que a perspectiva instrumental, particularmente centralizada na preocupação
com a transposição didática e com os métodos de ensino, tem sido privilegiada.
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No entanto, no século 21, tentativas de reconstrução do código disciplinar da Histó-
ria têm levado, não só no Brasil, mas em diferentes países, a debates e propostas que,
dialogicamente, procuram estabelecer articulações mais orgânicas entre as dimensões da
cultura histórica e a cultura escolar, não num sentido instrumental, mas numa perspectiva
mais emancipatória.
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ensino secundário brasileiro. 1931-1956. Rio de Janeiro: Inep, 1957.
Ensino de História
e seus conteúdos
ANTONIA TERRA DE CALAZANS FERNANDES I
O
s conteúdos tratados no ensino de História interferem nos valores e
crenças dos estudantes diante das questões do mundo atual. Por conta
da Lei 11.645/08, por exemplo, que estabelece a obrigatoriedade do en-
sino da história indígena na escola, em uma situação diagnóstica em uma escola
pública em São Paulo, para identificar o que os alunos já sabiam a respeito dos
indígenas, foi colhido o seguinte texto:
Havia uma índia. Nasceu e cresceu na aldeia. Nunca teve estudo e nem
mesmo sabia falar o português. Passava fome por este fato (por não saber
falar a língua). Por esse motivo, vivia triste e solitária.
Um dia, um grupo de voluntários chegou na aldeia e resolveu ajudar essa
índia triste e solitária.
Dando roupas, materiais e fazendo a matrícula dela. Colocaram ela na es-
cola e deram um lar para ela.
Quando adotada, a menina virou uma artesã bem conhecida e famosa.
Agradecendo e sempre mantendo contato com seus amigos voluntários.
(1º ano – Ensino Médio – EJA)
A aluna que escreveu o texto expressa algumas ideias difundidas social-
mente para as populações indígenas. Segundo ela, por não terem elementos da
cultura não índia, as populações indígenas são pobres, solitárias, passam fome e
precisam de ajudas caridosas para sobreviverem. E, para serem felizes, elas pre-
cisam dos elementos da cultura não índia, como frequentar a escola e conseguir
um trabalho remunerado.
Também em escola pública, com a intenção de intervir nessas e outras
representações sociais dos alunos a respeito das populações indígenas, a partir
do desenvolvimento de uma atividade de leitura de documentos históricos que
problematizavam situações que foram impostas oficialmente a essas populações,
junto com documentos escritos por indígenas questionando essas políticas, foi
colhido o seguinte texto síntese escrito pelos estudantes:
Antes eles sofreram violência e estão reivindicando território, direitos de
sobreviver a margem do rio, para ter vida digna, sem violência e justa, para
eles não serem expulsos de onde eles moram porque eles perderam as es-
peranças…
Estão denunciando os direitos de sobrevivência para o governo e justiça fe-
deral… De sobreviver dignamente e sem violência no seu território antigo.
(8º ano – Ensino Fundamental)
Notas
1 Assim, como hoje em dia tem sido propostas diferentes finalidades para as disciplinas,
Annie Brutter (2005 p.11), estudando a história da disciplina escolar, comenta como
no século XVII, na Europa, os estudos humanísticos assumiam diferentes finalidades:
“os estudos humanistas pretendiam conciliar em uma mesma visão três finalidades que
nos acostumamos a separar claramente: uma finalidade prática de domínio da lingua-
Resumo
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Abstract
Teaching history: implications of the new curricular provisions for
high school
Introdução
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do novo ensino médio, sob a ótica da relevância social e política dos bens
materiais e imateriais que constituem o caldo cultural no qual a juventude
está imersa.
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conjunto de regras que constroem uma memória que leva estudantes todos
os dias a “repetir o repetitório”, andar sobre o “já-dito”, sem desconfiar
do tom seco e amorfo dessa gramática.
Pesquisar é, no ensino médio e na aula de História, criar problemas,
colocar problemas, como resultado de um encontro inaudito entre o
conteúdo proposto pelo professor e as necessidades da vida de cada
estudante. Um problema forma-se, constitui-se e aparece quando
um encontro ocorre entre vida e história escrita. É claro que pensar o
conteúdo na sua relação com a vida e com a expansão da vida tem a ver
com o princípio da contextualidade, mas não se trata de simplesmente
aproximar o contexto, as agruras, as questões do cotidiano do conteúdo
de História, mas de fazer o conteúdo da disciplina debater com esse
cotidiano, problematizá-lo, desacomodá-lo e deixar o estudante andar
por caminhos ainda não trilhados por ele. Expandir a vida é, desse modo,
abandonar um pouco o próprio cotidiano. A História pode bem se prestar
a criar problemas para que isso aconteça, uma vez que é na diferença
e não na semelhança que ela nutre os programas, os currículos, e é ao
debater com o estranho que o estudante pode, por fim, criar problemas,
pesquisar, transfigurar-se.
Propor a pesquisa no ensino médio, em História, é ensinar a criar
problemas, a perguntar para uma fonte, uma imagem, uma música, uma
charge, um poema, um fragmento, uma crônica. As perguntas feitas não
decorrem de respostas, mas de forças que habitam o vazio em torno de
cada acontecimento ou de cada documento. Pesquisar torna-se uma arte,
uma arte de criar problemas, de fazer perguntas e de improvisar respostas.
É como perguntar “como é possível supor que tantos tenham aceitado
e seguido as ideias de Hitler?” ou “como pôde uma mulher liderar um
movimento messiânico numa colônia alemã, no sul do Brasil?”; ou, ainda,
“como pôde ser o nazismo um fenômeno da sociedade liberal, uma vez que
se tratava de um regime totalitário?”. Puras perguntas, que de sua pureza
podem sugerir problemas que se desdobram sobre suas respostas, jamais
encontradas em um longo texto copiado do livro didático ou “baixado” da
Wikipedia. Com maior ou menor complexidade, perguntar torna-se uma
arte, uma arte de fabular o passado, de criar um jogo que brinca com as
hipóteses levantadas e afirmadas pelos historiadores. Aqui a ciência tem
o seu limite, a própria escrita da História tem o seu limite. É na sala de
aula que a escrita da História encontra seu limite, e a fabulação é o modo
como professores da disciplina ruminam as afirmações e as hipóteses
criadas no âmbito da pesquisa histórica. A sala de aula é o lugar de
fabricação de disposições que permitem uma entrada no passado, uma
imersão no tempo, uma verdadeira viagem em direção à imaginação,
quebrando regras, desafiando a cronologia dos acontecimentos, expondo
a fragilidade de suas causas. Aprender com a pesquisa tornou-se uma
fabulação, na medida em que chegar à verdade se dá pelos caminhos do
jogo e da imaginação, pela ousadia de duvidar das afirmações da ciência,
problematizá-las, ou seja, colocá-las na forma de problemas.
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Considerações finais
Referências bibliográficas
ARGO. Direção Ben Affleck. EUA: Warner Bros., 2012. DVD (120 min).
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Docência em História:
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DOSSIÊ – Bases Nacionais e o Ensino de História embates, desafios e
possibilidades na/entre a Educação Básica e a formação de professores
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.77041
RESUMO
Assentadas na premissa de que entre o currículo prescrito, o currículo
editado e o currículo em ação ocorrem aproximações e distanciamentos
cujos contornos escapam a quaisquer formas de controle prévio, debruçamo-
nos, neste estudo, sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o
Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e os contextos
escolares em que se efetivam tais políticas curriculares. A abordagem se
caracteriza como pesquisa bibliográfica e documental, em que se focaliza
especificamente o componente curricular História nos Anos Finais do Ensino
Fundamental. Os resultados permitem concluir que a versão homologada da
BNCC guarda estreitas relações com a tradição historiográfica que privilegia
uma abordagem cronológica, linear, quadripartite/tripartite e eurocêntrica.
Ao adotar como um dos procedimentos básicos a identificação dos eventos
considerados importantes na história do ocidente, obstaculiza-se o acesso
a outras estratégias de seleção e organização do conhecimento histórico.
O PNLD, por sua vez, parece assumir o papel de guardião do currículo
prescrito na BNCC, zelando pela oferta de livros e materiais didáticos
que tendem a impor aos professores e estudantes uma matriz de referência
*
Universidade Estadual de Londrina. Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: sandraoliveira.uel@
gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-9777-4461
**
Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: caimi@
upf.br - https://orcid.org/0000-0001-5509-6060
ABSTRACT
Based on the premise that between the prescribed curriculum, the edited
curriculum and the curriculum in action occur approximations and distances
whose contours escape any form of prior control, we focus, in this study, on
the Base Nacional Comum Curricular [National Common Curriculum Base]
(BNCC), the Programa Nacional do Livro e do Material Didático [National
Book and Teaching Material Program] (PNLD) and the school contexts in
which such curricular policies are carried out. The approach is characterized
as bibliographic and documentary research, in which it focuses specifically
on the curricular component History in the Final Years of Elementary School.
The results allow us to conclude that the homologated version of BNCC has
close relations with the historiographical tradition that favors a chronological,
linear, quadripartite/tripartite and eurocentric approach. By adopting as one
of the basic procedures the identification of events considered important in
the history of the west, it impedes access to other strategies of selection and
organization of historical knowledge. The PNLD, in turn, seems to assume
the role of guardian of the curriculum prescribed at BNCC, ensuring the
supply of books and teaching materials that tend to impose on teachers and
students a reference matrix decontextualized of the school reality, reducing
possibilities for collective constructions in the face of local and regional
singularities. However, it is in the curriculum in action, in the daily life of the
school, in the practices of its main actors, that lies the impulse of creation,
innovation and resistance.
Keywords: BNCC. PNLD. School. History. Curriculum.
Introdução
O Brasil terá, pela primeira vez, uma Base Nacional Comum Curricular!
O documento é democrático e respeita as diferenças. Com a Base, todos
os estudantes do país, de escolas públicas ou particulares, terão os mesmos
direitos de aprendizagem. [A aula começa e o/a professor/a fala] Hoje a
aula é sobre cidadania. [O narrador prossegue] Isso é bom. Se a base da
educação é a mesma, as oportunidades também serão (BRASIL, 2018a).
concepção do que deveria ser uma base nacional comum foi se distanciando
do previsto na Constituição Federal (BRASIL, 1988), na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), no Plano Nacional de Educação
(BRASIL, 2014) e nas Diretrizes Curriculares Nacionais, culminando com a
elaboração de um documento curricular prescritivo, definidor de conteúdos
a serem ensinados e competências a serem desenvolvidas, ainda que o MEC
entenda e defenda que a BNCC não é currículo (AGUIAR, 2018).
Podemos afirmar, na esteira do anunciado por Alice Casimiro Lopes
(2018), quão significativo foi o volume de documentos que normatizaram
a questão curricular no Brasil nas últimas décadas. Ao retomar a história da
construção de cada um deles, deparamo-nos com cenários de intensas lutas,
acompanhadas de constantes acordos, e assim prosseguíamos escrevendo a
história da educação escolar brasileira. Ocorre que, após 2016, a sociedade
democrática que supúnhamos ser, um berço para lutas-acordos-lutas-acordos, foi
alterada radicalmente com a destituição da presidenta eleita. O que se desenhou
no país, a partir de então, é uma luta sem possibilidade de acordos, pois estamos
a operar com grupos que se definem detentores de verdades absolutas em torno
de vários assuntos, inclusive sobre o que é uma escola, como e o que deve ser
ensinado nesse lugar.
É a partir desse contexto que tecemos a abordagem sobre a Base Nacional
Comum Curricular, com recorte definido para o componente curricular História
destinado aos Anos Finais do Ensino Fundamental. Objetivamos abordar as
especificidades que identificamos na BNCC a partir do conceito de currículo
(prescrito, editado e em ação) em estreita relação com o Programa Nacional do
Livro e do Material Didático (PNLD). A escolha pelo PNLD se justifica pelo fato
de que essa política pública atravessou a elaboração dos documentos curriculares
citados e deles recebeu aportes que definiram e redefiniram os diversos editais
que normatizaram a produção dos livros didáticos no país nas últimas décadas.
O livro didático também pode ser compreendido como uma orientação
curricular, uma vez que nele se materializam as prescrições curriculares, como
afirmam Franco, Silva Junior e Guimarães (2018, p. 1028):
município que não aderiu à proposta de História da BNCC, pois considerou que
o programa elaborado em parceria com a universidade local e com uma ampla
equipe de professores é mais adequado ao que se almeja ensinar aos jovens e
às crianças daquele lugar.
O que podemos aprender com essas histórias? Muito, mas acreditamos
que se aliar à rica diversidade que se apresenta nas escolas sobre o currículo
em ação, ou sobre os saberes eleitos para comporem a categoria de conteúdo
escolar, é um caminho muito mais seguro para consolidar os cenários de uma
educação de qualidade.
Indignações finais
REFERÊNCIAS
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Segundo Nóvoa (1991), as políticas reformadoras do Ensino têm aprofundado o fosso que
separa professores das situações concretas mais emergentes, alimentando perspectivas sociais que
não permitem uma crítica intelectual sobre o papel do professor. A subordinação ao estado tende a
prolongar-se através de uma assistência científico-curricular verificando a instauração de novos
controles, mais sutis, sobre a profissão docente.
Nesse sentido, são necessárias a compreensão do professor sobre os efeitos dessas políticas
reformadoras e captar qual sua relação com a educação de qualidade que se almeja. Portanto, é
fundamental uma formação que possibilite ao docente uma ação-reflexiva sobre sua prática, tendo
em vista que o papel do professor não é de mero transmissor de conteúdos programados, mas um
facilitador da construção desse conhecimento e a partir das experiências dos alunos. Por
consequência, outro desafio que se posta ao professor em sala de aula é de ter um olhar mais
cuidadoso sobre seus alunos, na perspectiva de uma construção de saberes pautada na troca de
experiências entre os discentes e os conteúdos formatados por um currículo.
(*)
Doutor em História pelo Programa de Pós-graduação em História (CAPES/UFSC), com estágio pós-doutoral pelo
Programa de Pós-graduação de História (PNPD/CAPES/UFPR). Coordenador do Grupo de Pesquisa Imagens e Ensino
(CNPq/UFERSA). Professor permanente do Programa de Pós -graduação em Ensino (UERN/UFERSA/IFRN). E-mail:
paulo@tamanini.com.br. ORCID: <http://orcid.org/0000-0001-6963-2952>.
(**)
Membro do Grupo de Pesquisa Imagens e Ensino (CNPq/UFERSA). Aluna especial no Programa de Pós-graduação
em Ensino (UERN); Especialista em Psicopedagogia e Graduada em Pedagogia-UERN. Professora do Ensino Básico da
Rede Pública da Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Norte. E-mail: vanusa.noronha@yahoo.com.br.
ORCID: <https://orcid.org/0000-0001-5113-8518>.
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Segundo Bittencourt (2009), a proximidade com o uso do livro didático facilita sua
identificação e estabelece distinções entre ele e os demais livros. Porém, não é um objeto cultural de
fácil definição, por se tratar de uma obra bastante complexa, que tem como característica a
interferência de vários sujeitos em sua produção e consumos.
No ensino de História não é diferente, pois o professor precisa ter embasamento teórico e
pedagógico para saber diferenciar reformas curriculares nos projetos políticos pedagógicos e nas
propostas de ensino. Para Schmidt e Cainelli (2010), um dos principais significados apontados para
a aprendizagem histórica é transformar informações em conhecimento, apropriando-se das ideias
históricas de forma cada vez mais complexa, no sentido da construção de uma literacia histórica, ou
seja, de seu próprio processo de alfabetização significativa.
Como se pode perceber, assumir o livro didático sem questionar o que nele está exposto
implica em não compreender o processo político e social que este apresenta. Para atingir nosso
objetivo, de investigar os conteúdos de História após a BNCC, sancionada em 2017 para a
Educação Infantil e Fundamental e em 2018 para o Ensino Médio, fizemos uma análise
comparativa, em um corpus composto por dois capítulos de livros didáticos de história do 5° ano,
sendo um anterior a BNCC e o outro de acordo com as normas estabelecidas pela nova proposta
curricular. De acordo com, o propósito do nosso trabalho, fizemos um recorte temático para
desenvolver nossa análise, e investigando os dois exemplares, percebemos que o tema “escravidão”
é recorrente em ambos, sendo este o primeiro critério de seleção do corpus, e portanto,
trabalharemos apenas o tema escravidão, sendo um capítulo de cada livro.
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anterior a BNCC, datado de 2015, a história da escravidão é marcada por uma versão tradicional e
superficial, com textos resumidos, com algumas representações em desenhos e fotografias.
Apresenta textos complementares e sugestões de atividades nos procedimentos metodológicos no
final do livro.
O segundo exemplar, amparado pelo novo currículo da BNCC 2017, traz um pequeno
resumo na borda, com orientações didáticas, e apontam recursos que auxiliam o professor em seu
planejamento e na construção de atividades, com imagens e textos resumidos, mas com indicações
de leituras complementares.
Lopes e Macedo (2011) promovem discussões sobre estudos curriculares, mas não
pretendem pontuar uma conceituação única para currículo. As autoras afirmam que há uma ideia
comum a tudo que se tem chamado de currículo, que é a ideia de organização, prévia ou não, de
experiências/situações de aprendizagem realizada por docentes/redes de ensino de forma a levar a
cabo um processo educativo.
Avançando na temática, as autoras afirmam que o ensino precisa ser planejado e que esse
planejamento envolve a seleção de determinadas atividades/ experiências ou conteúdos e sua
organização ao longo do tempo de escolarização. Mas como definir o que é útil? Útil para quê?
Quais as experiências ou os conteúdos mais úteis? Como podem ser ordenados temporalmente? Por
onde começar? Não tem sido fácil responder a tais questões e as muitas perspectivas assumidas ao
longo do tempo têm criado diferentes teorias curriculares. As referidas autoras tratam de duas
dessas teorias: o eficientismo social e o progressivismo.
Ainda que o eficientismo seja um movimento com muitas nuanças, pode-se resumi-lo pela
defesa de um currículo científico, explicitamente associado à administração escolar e baseado em
conceitos como eficácia e economia. Em 1918, Bobbit defende um currículo cuja função é preparar
o aluno para a vida economicamente ativa a partir de dois conjuntos de atividades que devem ser
igualmente consideradas pela escola – o que chama currículo direto e as experiências indiretas.
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Em 1949, a teoria curricular produzia a mais duradoura resposta às questões sobre seleção e
organização de experiências ou conteúdos educativos. Com uma abordagem eclética, Ralph Tyler
se propunha a articular abordagens técnicas, como as eficientistas, com o pensamento
progressivista. Ainda que sua apropriação do progressivismo tenha sido caracterizada como
instrumental e que seu pensamento estivesse muito mais próximo do eficienticismo, sem dar conta
da tensão entre criança e mundo adulto que caracteriza o pensamento de Dewey, a racionalidade
proposta por Tyler se impunha, quase sem contestação, por mais de 20 anos, no Brasil e nos EUA.
Sobre hegemonia, ideologia e poder, Lopes e Macedo (2011) relatam as críticas sobre o
tema currículo no decorrer da história, começando por uma das críticas mais incisivas da escola e
do currículo como aparato de controle social, parte do que se convencionou chamar de teorias da
correspondência ou da reprodução, produzidas, principalmente, nos anos de 1970. Trata-se de
teorias marxistas que defendem a correspondência entre a base econômica e a superestrutura, indo
de perspectivas mecanicistas, em que a correspondência é total e exata, a concepções em que a
dialética entre economia e cultura se faz mais visível.
Althusser se destaca nesse período, apontando para o duplo caráter de atuação da escola na
manutenção da estrutura social: diretamente, atua como elemento auxiliar do modo de produção,
como formadora de mão de obra, indiretamente contribui para difundir diferenciadamente a
ideologia, que funciona como mecanismo de cooptação das diferentes classes.
Na trajetória das críticas ao papel reprodutivo da escola, a sociologia britânica dos anos de
1970 explicita um conjunto de preocupações que se direcionam mais fortemente para questões que
podemos chamar de curriculares. É, no entanto, com a publicação de Ideologia e currículo, por
Michael Apple em 1979, que as análises reprodutivistas passam a tratar especificamente do
currículo com enorme popularidade na área. No Brasil, o trabalho de Apple ganha notoriedade nos
anos 1980, tendo sido seus livros traduzidos poucos anos depois de publicados. Vivíamos, então, o
processo de abertura política depois de 15 anos de ditadura militar, marcada, no campo da
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Na esteira do pensamento das autoras, sobre o que acontece nas escolas, relatam as críticas
ao conceito restrito de currículo. Teóricos de matriz fenomenológica argumentam em favor de um
currículo aberto à experiência dos sujeitos e defendem uma definição de currículo para além do
saber socialmente prescrito a ser dominado pelos estudantes. Propõem que a ideia de um documento
pré-estabelecido seja substituída por uma concepção que englobe atividades capazes de permitir ao
aluno compreender seu próprio mundo-de-vida. Em certa medida, essas preocupações também se
fazem presentes no pensamento crítico, no qual, no entanto, a ênfase no social despreza o
individual. Para os teóricos de matriz fenomenológica, essa ênfase torna o pensamento crítico
desmobilizante, na medida em que enreda o indivíduo numa estrutura social da qual ele não pode
sair.
Paulo Freire é, sem dúvida, uma das importantes influências para as concepções de currículo
focadas na compreensão do mundo-da-vida dos indivíduos que convivem no espaço da escola.
Ainda que influenciado pelo marxismo, Freire constrói uma teoria eclética para a qual muito
colaboram a fenomenologia e o existencialismo.
Lopes e Macedo (2011) relatam ainda sobre o pós-estruturalismo nos estudos curriculares,
que apontam para outra definição de currículo. Os primeiros estudos pós-estruturais do currículo
datam de fins dos anos 1970, no entanto, apenas na década seguinte eles se tornaram mais
numerosos. No Brasil, até meados de 1990, não havia praticamente nenhuma menção ao pós-
estruturalismo nos estudos curriculares, o que viria a se intensificar fortemente no início deste
século, especialmente com os textos e traduções produzidos por Tomaz Tadeu da Silva.
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conta a construção sócio histórica das estruturas, ao negligenciar o diacrônico, e teria dificuldade de
entender a passagem de um sistema de relações (estrutura) a outro.
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Após esse arrazoado teórico sobre “currículo”, discorreremos sobre a utilização do livro
didático na seção seguinte.
Segundo Stray (1993, p.77-78), o livro didático é definido, como um produto cultural
composto, híbrido, que se encontra no “cruzamento da cultura, da pedagogia, da produção editorial
e da sociedade”. No âmbito escolar atual, o livro didático concorre com outros artefatos, tais como
quadros, mapas, enciclopédias, audiovisuais, softwares didáticos, CD-Rom, Internet. Entretanto,
ainda persiste e ocupa um papel central como artefato de fácil manuseio e acessibilidade.
O caminho percorrido pelos livros didáticos até as escolas brasileiras teve início em 1929,
com a fundação de um órgão específico para legislar sobre políticas do livro didático: o Instituto
Nacional do Livro (INL) com o intuito de promover a efetivação do livro didático nacional, nas
escolas. Porém, somente em 1934, no governo do presidente Getúlio Vargas, o INL recebeu suas
primeiras atribuições, como a de editar obras literárias para a formação cultural da população, a de
elaborar uma enciclopédia e um dicionário nacionais e a de expandir o número de bibliotecas
públicas.
Somente em 1938, o livro didático voltou ao destaque das discussões, quando foi instituída
por meio do Decreto-Lei 1.006, de 30/12/38, a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) que
estabelecia a primeira política de legislação para tratar da produção, do controle e da circulação
dessas obras. Esta comissão possuía mais a função de controle político-ideológico do que
propriamente uma função didática (FREITAG et al., 1989).
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Diante desse breve resgate, da história do livro didático, nos interessa aqui tratar das
mudanças ocorridas no contexto atual sugerido pela nova base, no que se refere a questões de
decisões políticas e mercadológicas, e ao que se tem de novo, quando se trata da organização
conteudista sugerida pela BNCC para o desenvolvimento de habilidades e competências dos alunos.
Assim, com o objetivo de investigar se essa mudança curricular trouxe alguma contribuição
significativa para os conteúdos de história, analisaremos na próxima seção dois capítulos de livros
sobre o tema escravidão.
O corpus coletado para análise foi selecionado de livros de História que fazem parte do
projeto ÁPIS, sendo um exemplar de 2015 e o outro de 2017; ambos do Ensino Fundamental. Por
conseguinte, os livros que escolhemos fazem parte de uma coleção que vai do 1º ao 5º ano sendo
que a análise está voltada para o 5º ano. Para efeitos de compreensão, vamos chamar de exemplar 1
o livro (antes da BNCC) e exemplar 2 o livro (com orientações da BNCC), ambos da Editora Ática,
conforme imagem abaixo. Nosso objetivo é investigar se a mudança curricular (BNCC) trouxe
alguma contribuição significativa para os conteúdos de ensino de história, por isso justificamos a
escolha desse corpus.
Figura 1 . Capa (SIMIELLI, 2015, 5º Ano) Figura 2. Capa (CHARLIER, 2017, 5º Ano)
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Para contemplar o critério de análise (ou seja, os Parâmetros sugeridos pelos órgãos
normativos sobre a estrutura, conteúdo e respeito às diversidades, culturais e regionais), observamos
inicialmente a estrutura e o conteúdo dos capítulos, e percebemos algumas fragilidades. O exemplar
1 apresenta uma capa com cores frias e pouco atrativa para a faixa etária de 10 anos ao qual é
destinada. Já no exemplar 2, visualizamos na capa, a presença de cores vivas, mais cativantes e
interessantes ao público alvo.
Observamos que entre os dois exemplares, os textos e figuras sobre o tema escravidão estão
dispostos de forma resumida, impossibilitando ao aluno ter uma visão aprofundada ou detalhada
sobre a escravidão no Brasil, como por exemplo, os motivos, as consequências e a relação desse
acontecimento com os dias atuais. As imagens e textos complementares não dão conta dessas
questões, pois são abordadas de forma compacta e só faz relação com a atualidade no final do
capítulo. Vejamos:
Figura 4. Orientações dos parâmetros sugeridos pela BNCC sobre respeito e diversidade
Fonte: (CHARLIER, 2017, 5º ano, p. 79).
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O conjunto das cenas não faz um resgate detalhado do momento histórico e das implicações
sociais da época. O que está por trás da fala: “amamentavam com seu próprio leite os bebês de seus
donos”? O que essa foto quer mostrar? A “valorização da ama de leite porque alimentava a
criança”? Ela era considerada da família por conviver com seus donos? O texto não informa aos
alunos tais detalhes, precisando o professor buscar em fontes alternativas tais conteúdos.
Entretanto, as próprias orientações didáticas informam que o professor não deve simplificar
o processo abolicionista para os alunos, pois os interesses eram variados e alguns defendiam a
escravidão por motivos econômicos. Mas não detalha os motivos desse cuidado! Diante das
perguntas “A quem interessava a continuação da escravidão? A quem interessava a libertação dos
escravos?” caberia ao professor apoiado em outras fontes, junto com os alunos, elucidar as questões
surgidas em sala de aula. A reflexão, a criticidade e a escuta das respostas tornam-se então,
elementos paradidáticos, material de auxílio que enriquece o andamento da aula.
1
(EF05HI04) Associar a noção de cidadania com os princípios de respeito à diversidade e à pluralidade.
(EF05HI05) Associar o conceito de cidadania à conquista de direitos dos povos e das sociedades, compreendendo -o
como conquista histórica.
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Figura 5. Orientações dos parâmetros sugeridos pela BNCC sobre respeito e diversidade
Mais uma vez, neste caso, o professor precisaria recorrer a outros suportes para adensar o
conteúdo historiográfico e fazer com que os alunos exercitem a criticidade e se incomodem com as
frases prontas, temas fechados que não permitem reflexões mais apuradas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho apresentamos algumas discussões sobre currículo e livro didático de História,
buscando relacionar no contexto da prática a implementação das diretrizes da base curricular. Nosso
objetivo foi investigar o quanto as diretrizes estipuladas pela BNCC contribuíram para que os
alunos de história exercessem seu pensamento crítico e fossem capacitados de refletir sobre como
os conteúdos oferecidos eram explanados. Após estudar os capítulos anteriormente selecionados,
verificamos que os conteúdos transmitiam informações mais gerais acerca de temas, sem se
preocupar com a possibilidade de oferecer aos discentes reflexões mais densas.
Apesar de a análise ter sido feita através de um pequeno recorte de dois livros didáticos,
podemos apontar ações que precisariam ser repensadas, como por exemplo, a utilização do livro
didático em sala aula, por professores e alunos, como única fonte de material didático. É consensual
que o livro ainda ocupe um lugar importante no processo de ensino e aprendizagem, mas ele não é o
único. A pesquisa, o contato e criação de novos saberes com outras fontes desenvolvem também as
competências para que o aluno se torne um sujeito relacional, aberto a novos olhares e percepções,
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crítico e ao mesmo tempo complacente com as fragilidades alheias. Desta forma, a revolta daria
lugar ao renascimento de outras possibilidades, prepararia o cidadão-aluno a ser um empreendedor
educacional que usaria das suscetibilidades elemento de recriação e fomentador de propostas que
melhore o Currículo escolar. Da mesma forma, o professor torna-se mais que um mediador de as
informações, mas um cooperador e estimulador de novos talentos da arte de ensinar. Portanto, e
nesta perspectiva, os protagonistas do ensino, para além do livro, são também os alunos e o
professor que são os primeiros a se depararem com o desafio de se exercitar a cidadania e querer
um mundo mais democrático, justo, inclusivo, solidário, em paz e ecologicamente viável.
REFERÊNCIAS
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
FREITAG, Bárbara et al. O livro didático em questão. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997.
LOPES, A. C.; MACEDO, E. Currículo. In: ALICE, Casimiro Lopes; MACEDO, Elizabeth. Teorias de Currículo.
São Paulo: Cortez, 2011.
MARCHELLY, Paulo Sergio. Políticas de Currículo, formação docente e as propostas da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). In: LOPES, Alice Casimiro; OLIVEIRA, Marcia Betania de. (Org.). Políticas de Currículo:
Pesquisas e articulações discursivas. Curitiba: CRV, 2017.
NÓVOA, Antonio. A formação contínua entre a pessoa-professor e a organização escola. vol. 4. Lisboa: Inovação,
1991.
SILVA, E. D. R.; TAMANINI, P. A.; MARIANO, T. de S. Da representação aos estereótipos: o Nordeste e os negros
escravizados nos livros de história. In: TAMANINI, P. A. (Org.). O ensino em perspectivas: múltiplas abordagens,
outros enfoques e a interdisciplinaridade no ofício docente. Curitiba: CRV, 2018.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar história. 1.ed. São Paulo: Scipione, 2009.
STRAY, Chris. QuiaNominor Leo: Vers une sociologiehistoriquedumanuel. In: CHOPPIN, Alain. (Org.). Histoire de
l'éducation, n° 58 (numérospécial). Manuelsscolaires, Étatsetsociétés. XIXe-XXesiècles, Ed. INRP, 1993.
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RESUMO
As mudanças propostas para o currículo de História trazem à pauta discussões sobre o que se deve ou não
ser ensinado na escola, em conformidade com as demandas e contextos. Na tentativa de buscar meios que
auxiliem o processo de aprendizagem, o livro didático de História é ainda um dos muitos recursos facilitadores
e mais utilizados pelo professor. Apesar de frequentes críticas sobre a sua produção e a sua distribuição, o
livro não perde seu lugar eficiente como ferramenta que aproxima os alunos dos saberes formais acerca de
um passado e a sua relação com o presente. Assim, o desafio da prática pedagógica de associar as demandas
curriculares do ensino formal com os contextos da prática passa pelo crivo e seleção de alguns conteúdos e
diretrizes da BNCC, sancionada em 2017 para a Educação Infantil e Fundamental e, em 2018, para o Ensino
Médio. Este artigo apoia-se nas discussões de Lopes e Macedo (2011) e Bittencourt (2009) para discutir a
influência do BNCC nos Livros Didáticos de História e como as suas diretrizes repercutem na prática escolar.
Para atingir nosso objetivo, fizemos uma análise comparativa sobre como o tema da escravidão é retratado
em dois períodos distintos. Os critérios para análise foram: 1) Recorrência do tema nos dois livros e 2)
Parâmetros sugeridos pelos órgãos normativos sobre a estrutura, conteúdo e respeito às diversidades,
culturais e regionais. Nosso trabalho justifica-se pela necessidade de identificar as mudanças curriculares na
busca de oferecer reflexões e discussões concernentes à aplicabilidade da BNCC na ação d ocente e nos
recursos pedagógicos. Observando a estruturação, conteúdos, atividades e ilustrações nos livros didáticos,
anteriores e posteriores a perspectiva da nova base, espera-se como resultados identificar o impacto dessa
possível efetivação curricular no ensino de história.
Palavras-chave: Currículo. Ensino de história. Livro Didático.
ABSTRACT
The proposed changes to the History curriculum bring discussions about what should or should not be taught
in school, in accordance with the demands and contexts. In an attempt to find ways to help the learning
process, the textbook is still one of the most important resources used by the teacher. Despite frequent
criticisms of production and distribution, the textbook has not lost its effective place as a tool that brings
students closer to formal knowledge of past history in relation to the present. In this way, the challenge of the
pedagogical practice of associating the curricular demands with the formal education goes through the sieve
and selection of some contents and guidelines of the National Curricular Common Base (BNCC in Portuguese),
sanctioned for Elementary and Middle School in 2017 and for High School in 2018. T his article is based on the
discussions of Lopes and Macedo (2011) and Bittencourt (2009) to discuss the influence of the BNCC in the
textbooks of History and how this influence has repercussions on pedagogical practice. To achieve our goal,
we have made a comparative analysis of how the theme of slavery is portrayed in two distinct periods. The
criteria for analysis were: 1) Recurrence of the theme in the two textbooks and 2) Parameters suggested by
the normative institutions on the structure, content and respect to cultural and regional diversities. This article
is justified by the need to identify the curricular changes in the search to offer reflections and discussions
regarding the applicability of the BNCC in the educational action and in the pedagogic al resources. Observing
the structuring, contents, activities and illustrations in textbooks, before and after the new curricular basis, it
is expected as results to identify the impact of the possible use of these curricular guidelines in the teaching
of History.
Keywords: Curriculum. Teaching of History. Textbook.
123
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RESUMÉN
Los cambios propuestos para el currículo de Historia traen a la pauta discusiones sobre lo que se debe o no
ser enseñado en la escuela, de acuerdo con las demandas y contextos. En el intento de buscar medios que
auxilien el proceso de aprendizaje, el libro didáctico de Historia es todavía uno de los muchos recursos
facilitadores y más utilizados por el profesor. A pesar de frecuentes críticas sobre producción y distribución, el
libro no pierde su lugar eficiente como herramienta que aproxima a los alumnos de los saberes formales de
un pasado en relación al presente. Así, el desafío de la práctica pedagógica, de asociar las demandas
curriculares a la enseñanza formal pasa por el cribado y selección de algunos contenidos y directrices de la
BNCC, sancionada en 2017 para la Educación infantil y Enseñanza primaria y en 2018, para la Enseñanza
secundaria. Este artículo se apoya en las discusiones de Lopes y Macedo (2011) y Bittencourt (2009) para
discutir la influencia de la BNCC en los Libros Didácticos de Historia y cómo repercute en la práctica
pedagógica. Para alcanzar nuestro objetivo, hicimos un análisis comparativo sobre cómo el tema de la
esclavitud es retratado en dos períodos distintos. Los criterios para el análisis fueron: 1) Recurrencia del tema
en los dos libros y 2) Parámetros sugeridos por los órganos normativos sobre la estruct ura, contenido y
respeto a las diversidades, culturales y regionales. Nuestro trabajo se justifica por la necesidad de identificar
los cambios curriculares en la búsqueda de ofrecer reflexiones y discusiones concernientes a la aplicabilidad
de la BNCC en la acción docente y en los recursos pedagógicos. Por medio de la observación de la estructura,
contenidos, actividades e ilustraciones en los libros didácticos, anteriores y posteriores a la perspectiva de la
nueva base, se espera como resultados, identificar el impacto de esa posible efectividad curricular en la
enseñanza de la asignatura de historia.
Palabras clave: Currículo. Enseñanza de historia. Libro Didáctico.
124
Revista Teias v. 20 • n. 57 • Abr./Jun. 2019 • Pesquisa em Educação em múltiplos contextos
DOI: 10.47694/issn.2674-7758.v2.i5.2020.157174
Resumo: Os livros didáticos são o meio mais utilizado pelos professores de História, mesmo
com o uso crescente da internet. As leis 10.639 e 11.645 tornaram obrigatório o ensino da
História da África, da cultura afro-brasileira e da temática indígena, mas tais assuntos ainda não
são tão explorados e problematizados nos livros didáticos, embora já se encontrem modificações
importantes. Nos cursos de licenciatura em História, a África e os indígenas são estudados em
um ou dois semestres, o que acreditamos ser pouco tempo para professores em formação. Uma
saída seria a prática de oficinas utilizando os livros didáticos para refletir sobre a abordagem da
História da África, da diversidade da experiência do negro no Brasil e da temática indígena.
Este artigo objetiva refletir sobre as representações dessas temáticas em livros didáticos a partir
de oficinas e a elaboração de aulas em cursos de licenciatura em História no Rio de Janeiro e
Minas Gerais.
Palavras-chave: Oficinas. Ensino de História. África. Indígenas.
Abstract: Textbooks are the most used by history teachers, even with the increasing use of the
internet. Laws 10,639 and 11,645 established the mandatory teaching of the history of Africa,
Afro-Brazilian culture and indigenous themes, but such subjects are still not as demonstrated
and problematized in textbooks, although important changes have already been found. In 157
History degree courses, Africa and the natives of Brazil are studied in one or two semesters,
which we believe is a short time for teachers in training. One way out would be the practice of
workshops using textbooks to reflect on the approach to African history, the historical diversity
of black people in Brazil and the indigenous theme. This article aims to demonstrate workshops
with textbooks and preparation of classes in History degree courses in Rio de Janeiro and Minas
Gerais.
Keywords: Workshops. History Teaching. Africa. Indigenous people.
Resumé: Les livres didatiques sont le plus utilisé par les professeurs d'histoire, même avec
l'utilisation croissante d'Internet. Les lois 10639 et 11645 ont rendu obligatoire l'enseignement
de l'histoire africaine, de la culture afro-brésilienne et des thèmes autochtones, mais ces sujets
ne sont toujours pas comme démontré et problématisé dans les livres didatiques, bien que des
1
Professora adjunta de História da África, Educação e Relações Étnico-raciais da Universidade Federal
São João del Rei (UFSJ). É professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em História da UFSJ
e coordenadora da área de História do PIBID na mesma instituição. Possui experiência em temas
referentes às sociedades africanas e à presença política, militar e religiosa de europeus no continente
africano durante os séculos XVII e XVIII. Possui graduação e licenciatura em História pela UFRJ (2007),
especialização em História da África e do Negro no Brasil pela UCAM e mestrado em história no
Programa de Pós-graduação em História da UFRRJ (2011). Seus estudos de doutorado foram realizados
no Programa de Pós-graduação em História da UFF (2015). Realizou atividades de pós-doutorado no
Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, na área de História da África.
changements importants aient déjà été trouvés. Dans les cours de licence d'histoire, l'Afrique et
les natifs du Brésil sont étudiés en un ou deux semestres, ce qui nous semble être un court laps
de temps pour les enseignants en formation. Une façon de sortir de cette limite serait la pratique
d'ateliers utilisant des livres didatiques pour réfléchir sur l'approche de l'histoire africaine, la
diversité de l'expérience des Noirs au Brésil et le thème indigène. Cet article vise à démontrer
ateliers avec des manuels et la préparation de cours dans des cours de licence d'histoire à Rio de
Janeiro et Minas Gerais.
Mots-Clés: Ateliers. Enseignement de l'histoire. Afrique. Indigène.
Resumen: Los libros didácticos son el medio más utilizado por los profesores de historia,
incluso con el uso cada vez mayor de Internet. Las leyes 10.639 y 11.645 hicieron obligatoria la
enseñanza de la historia africana, la cultura afrobrasileña y los temas indígenas, pero tales temas
aún no se demuestran y problematizan en los libros didácticos, aunque ya se han encontrado
cambios importantes. En los cursos de licenciatura de Historia, África y los nativos de Brasil se
estudian en uno o dos semestres, lo que creemos que es poco tiempo para los profesores en
formación. Una forma de salir de este límite sería la práctica de talleres utilizando libros
didácticos para reflexionar sobre el enfoque de la historia africana, la diversidad de la
experiencia negra en Brasil y el tema indígena. Este artículo tiene como objetivo demostrar
talleres con libros didácticos y preparación de clases en cursos de licenciatura en Historia en Río
de Janeiro y Minas Gerais.
Palabras clave: Cursos. Enseñanza de la historia. África. Pueblos indígenas.
2
Neste artigo, optou-se apenas por demonstrar autores que abordam questões para os livros didáticos de
História. Contudo, há outros estudos importantes que analisam a representação dos negros nos livros
didáticos de outras disciplinas. Para o caso de Língua Portuguesa, cf. SILVA, 2011. Para o caso da
Geografia, cf. COSTA, R.L. S da; DUTRA, D. F. A lei 10639/2003 e o ensino de geografia:
representação dos negros e África nos livros didáticos. In: 10º Encontro nacional de Prática de Ensino em
Geografia, 30 de agosto a 02 se setembro de 2009. Porto Alegre. Para o caso da Matemática, cf.
OLIVEIRA, 2016.
3
Esse é um ponto fulcral para o debate. Afinal de contas, existiria algum grupo ou alguém que se
“adapte” mais facilmente a algum tipo de trabalho forçado? O professor em sala de aula precisa levantar
esse tipo de questão junto aos alunos.
4
A chamada “guerra justa”.
didáticos durante tanto tempo e na valorização dada ao estudo da história geral, tendo
por paradigma a história europeia. Por isso, é preciso sempre reavaliar a história
ensinada e aprendida no Brasil, tirando do ostracismo aqueles que tiveram sua
participação na construção desse país subvertida e/ou silenciada.
Marina de Mello e Souza também sugere abordagens sobre a história da África.
A presença de exploradores europeus no continente africano é um tema interessante
para ser trabalhado em sala de aula, por exemplo. É possível abordar questões
metodológicas e de crítica documental relativas ao uso desses textos como fontes. O
fator aventura pode captar a atenção de um adolescente ao demonstrar e problematizar
os casos de Henry Stanley, Mungo Park, Richard Francis Burton, John Hanning Speke e
James Augustus Grant5. Até mesmo uma produção bibliográfica anterior pode ser
trabalhada, como a de exploradores e geógrafos europeus, eruditos árabes ou africanos
islamizados6.
Além de abordar a história da África pelo viés das narrativas escritas, pode-se
também estudar o continente utilizando as informações de natureza geográfica, as trocas
culturais que permeavam as transações comerciais, a importância dos rios e a
localização de grupos, por exemplo:
161
Ensinar História da África e aspectos da cultura afro-brasileira nas escolas
parece ser um bom caminho para nos livrarmos de preconceitos historicamente
constituídos e que ajudam a impedir que a população negra tenha igualdade de
oportunidades diante da parcela mais branca, ou mais clara, dos brasileiros. Isso
não tem nada a ver com estimular antagonismos entre as raças, num país
composto de pessoas de ascendências variadas, ou seja, mestiças. Mas sim com
valorizar o que há de africano, e consequentemente de negro, em todos nós,
assim como devemos valorizar o que há de europeu, de oriental e de indígena.
(SOUZA, 2008, p. 75)
Assim como a História da África, a temática indígena vem recebendo uma maior
visibilidade no ensino de História. Desde 1990, os estudos históricos na academia
deram novas dimensões para a agência das populações indígenas na história do Brasil,
especialmente considerando o seu papel a partir da ocupação colonial portuguesa.
5
Tais nomes se referem a europeus que produziram textos sobre regiões do continente africano entre os
séculos XVIII e XIX.
6
Importante também evidenciar o método de escrita utilizados por esses autores, que relatavam o que
viram, ouviram e pesquisaram em documentos que tiveram acesso, como Al-Bakri, Al-Masudi, Ibn
Matuta, Ibn Kaldun, As-Saadi e Yuhanna al-Asad. Isso também contribui para tornar possível uma série
de materiais sobre uma África medieval, ao invés de uma compreensão do medievo permeada da presença
da fé católica e do feudalismo europeu, que aparecem de forma predominante nos livros didáticos.
Os livros didáticos
De acordo com Selva Guimarães Fonseca, a maior parte dos especialistas estão
de acordo que o livro didático é a ferramenta mais importante no ensino de História
(FONSECA, 2003). O livro didático é o segundo gênero mais lido pelos brasileiros,
ficando atrás apenas na Bíblia. Desde a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), o governo federal legisla sobre o livro didático, além de gerenciar
sua circulação. Pensar o ensino de História e os materiais didáticos implica refletir sobre 163
do todo, não podem ser percebidas desarticuladas do universo social em que estiveram
inseridas quando produzidas (COSTA, 2005). Warley Costa defende a necessidade de
observação e problematização do que elas nos dizem a respeito das culturas em que
foram produzidas e suas finalidades ao serem criadas: “Elas foram produzidas para
ilustrar determinado texto, para ornamentar determinada peça de arte ou para registrar o
presente vivido para a posteridade? São realistas?” (COSTA, 2005, p. 148).
Sem o devido questionamento por parte dos professores em sala de aula,
problemas graves podem ocorrer. Costa afirma que nos livros didáticos de História que
analisou observou grande quantidade de imagens que informavam sobre as condições de
vida dos cativos, reforçando a trajetória de vida sofrida, de permanente dor. Para a
autora, o manual didático se configura como instrumento de divulgação de uma
memória que com suas gravuras e fotografias passam a constituir importantes acervos
selecionados de acordo com sua significação para diferentes grupos. Com a intenção de
observar as imagens que existiam sobre o tema escravidão, Costa revela que as
denúncias necessárias demonstradas pelas imagens são importantes, mas relegam ao
escravo o papel de agente absolutamente passivo: “Sem movimento próprio, sem
nem tudo está no livro didático: o ensino se dá por múltiplos caminhos, logo a produção
de materiais didáticos, vinculada a realidades específicas de aprendizagem, deve ser
apoiada e valorizada (FONSECA, 2003).
Ainda segundo Selva Guimarães Fonseca, é necessária uma revisão dos modos
de uso dos livros didáticos. A autora defende a complementação dessa ferramenta, como
a diversificação das fontes históricas e o uso de paradidáticos, mídias e linguagens. A
sala de aula não é um mero espaço de reprodução de conteúdo, logo, requer dos
professores uma postura de criticidade diante do que é veiculado. Especialmente porque
a perspectiva curricular da disciplina História ainda é baseada num critério temporal,
linear eurocêntrico, articulada, quando possível, à História do Brasil, da América e da
África. Para a autora, isso se evidencia ainda mais com o uso de apostilas, que
simplificam, fragmentam e reduzem a versões simplificadas e acríticas o conhecimento
histórico. Os livros didáticos são, portanto, representativos para a compreensão da
difusão do saber histórico (FONSECA, 2003).
7
Foram analisados os seguintes livros didáticos: APOLINÁRIO, 2010. 4 v. (do 6° ano 9° ano); BOULOS
JÚNIOR, 2012. 4 v. (do 6° ano 9° ano); BRAICK, 2001. 4 v. (do 6° ano 9° ano); VAZ; PANAZZO,
2012. 4 v. (do 6° ano 9° ano).
Em uma outra aula, ocorria outra oficina, com perguntas diferentes, focando na
temática indígena. As perguntas eram: quais capítulos/unidades existem no livro que
abordam a questão indígena no Brasil? Como os indígenas são caracterizados? Seus
comportamentos? Existem imagens? Existe uma contextualização para tais imagens ou
são usadas apenas como ilustração? Você utilizaria esse livro para abordar a questão
indígena ou se sentiria mais seguro produzindo um material próprio?
Percebeu-se que, tanto para a análise da África, africanos e seus descendentes no
Brasil quanto para o caso indígena, houve uma atenção especial às imagens que
existiam nos livros. Esse recorte foi realizado tendo em vista o tempo para a análise (60
minutos cada oficina) e levando em consideração o impacto que elas podem causar no
público-alvo, visto que os alunos do Ensino Fundamental II são mais afetados por elas
do que por grandes textos informativos.
Em ambas as situações, os alunos expressaram que os livros didáticos sempre
apresentariam algum tipo de “problema”, especialmente se comparados às pesquisas
8
Especialmente os textos de Anderson Oliva, Warley Costa, Monica Lima, Gandra e Nobre e Grupioni.
As referências completas dos textos seguem nas referências bibliográficas.
acadêmicas. Foi interessante notar essa percepção que possuíam sobre o livro didático
não ser uma “vulgarização” do saber acadêmico, mas um saber diferente e que precisa
de uma mediação importante do professor.
Com relação às imagens, os alunos da licenciatura destacaram algumas imagens
que faziam referências à Copa do Mundo de 2010, realizada na África do Sul, e a
figuras como Nelson Mandela. A maior parte das imagens referiam-se a uma história
contemporânea do continente, no caso dos livros do 9° ano. Com relação ao 6° ano,
chamaram a atenção as imagens do Egito e do destaque dado a sua localização no
continente africano, bem como a referência à origem africana da espécie humana.
Nesses casos, as imagens foram entendidas de maneira bastante positiva. O caso do 7°
ano foi o que mais espantou os alunos, ao perceberem as páginas que falavam sobre
Reinos de Gana, Mali, Songhai e a influência dos povos Banto e Iorubá no Brasil.
Muitos diziam não ter visto tal conteúdo em sala de aula e que também teriam
dificuldade de abordar o tema quando se tornassem professores de História por conta da
falta de contato com tais temas.
O caso mais grave apontado pelos alunos ocorria nos livros didáticos do 8° ano.
Eram raras as imagens do continente, exceto por mapas que faziam referência ao tráfico
de pessoas escravizadas. Ou seja, nesse momento, os alunos tiveram a impressão de que 168
a única leitura que teriam da África seria como “mera fonte de escravos”. Além disso,
contestaram o fato de existirem poucas informações sobre a experiência histórica dos
africanos e de seus descendentes no Brasil, dando a entender que todos eles vieram
como escravos e permaneceram como tal até a chegada dos imigrantes europeus e a
chamada “política de embranquecimento”, promovida pelo governo brasileiro. Os
alunos da licenciatura disseram que os negros pareciam “sumir” no livro didático
quando a imigração europeia começou e só reapareceram na Revolta da Chibata (já no
livro de 9º ano). Mesmo assim, não existia um contexto do papel do negro na sociedade
do pós-abolição.
Para o caso indígena, os alunos da licenciatura perceberam certa presença de
imagens sobre os povos nativos nos livros do 6° ano. Nos livros didáticos do 7º ano, as
imagens demonstravam os indígenas apenas como “pano de fundo” da chegada dos
portugueses na América. Nos livros de 8º e 9º ano, eles não apareciam. Apenas em um
livro do 9º ano aparecia a figura de um indígena e um texto referente aos direitos
adquiridos pelo grupo no contexto da criação da Constituição Brasileira de 1988. Ou
seja, foi unânime a impressão de que, nos livros didáticos, os indígenas quase não
aparecem ou, quando aparecem, são abordados de forma superficial, “presa” ao passado
e sem aprofundamento sobre questões atuais vivenciadas por esses povos.
Após as trocas de informações e debates levantados pelas oficinas, foram
apresentados temas referentes à África, aos africanos e seus descendentes no Brasil e
aos indígenas, que poderiam ser trabalhadas no Ensino Fundamental II e Médio. Cada
aluno sorteou um tema e, ao longo do semestre, deveria elaborar uma aula tendo a
própria turma como ouvinte. Cientes das características e limitações dos livros
didáticos, os alunos foram estimulados a pensar suas abordagens de maneira
problematizada, colaborando para a construção de um saber escolar que fosse além das
informações dos livros didáticos.
Caso 1
Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, um aluno do 7° período da
licenciatura de História teve que escolher um tema de “África contemporânea”, que
deveria ser pensado para um público de 9° ano do Ensino Fundamental II. O licenciando
iniciou sua aula ressaltando a complexidade desse período e que, como cada país
africano teve sua singularidade, ele destacaria apenas um caso como exemplo: o da
guerra civil de Ruanda, em 1994. Depois, ele distribuiu um questionário com perguntas
rápidas para serem respondidas por cada um que assistia sua aula, alegando que queria
conhecer a todos melhor. A surpresa foi grande quando recebemos o questionário e
percebemos perguntas como: “qual é o seu time?”; “você come carne?”; “você se sente
melhor andando calçado ou descalço em sua casa?”. Especialmente, nos perguntávamos
“o que isso tem a ver com a matéria?”. Depois de 5 minutos, devolvemos os
questionários respondidos e ele rapidamente os analisou. O aluno então declarou que
aqueles que “torciam para o flamengo”, “não comiam carne” e “andavam calçados em
casa” teriam privilégios durante a aula, pois pensavam como ele. Esse grupo foi
separado dos demais, que começaram a “reclamar”, pois não teriam as mesmas
condições. Finalmente, o autor da aula nos revelou que os sentimentos de
descontentamento e rivalidades vividos minimamente ali naquela experiência foram
vivenciados por grupos maiores e de forma muito grave. Então, explicou como as
rivalidades entre Hutus e Tutsis foram agravadas pela Bélgica a partir de 1910 em
Ruanda, pelas classificações feitas sobre a população local9. Em seguida, explicou como
tais rivalidades levaram ao genocídio ocorrido e passou algumas cenas editadas do filme
Hotel Ruanda. A aula foi finalizada apresentando as seguintes perguntas: “como você se
sentiria se fosse um Hutu naquele contexto?”; “como você se sentiria se fosse um Tutsi
naquele contexto?”. 170
Caso 2
Em 2019, na Universidade Federal de São João del-Rei, uma aluna no 6° período
tinha como tema o “Encontro das culturas indígenas e portuguesa” no contexto da
chegada lusitana na América. O público-alvo eram alunos do 7° ano. A aluna da
licenciatura distribuiu fragmentos do texto “O ritual do corpo entre os Sonacirema”, de
autoria de Horace Minner. O artigo é uma crítica ao modo de vida americano,
especialmente no que se refere ao “ritual do corpo”. É uma crítica para a facilidade de
como aceitamos nossas práticas como naturais e repudiamos os costumes de outras
comunidades entendidas como crenças “sem fundamento”. A crítica de Minner revela
que a nossa sociedade conserva o mesmo estilo ritualístico existente em outras
comunidades. Segue um trecho do texto, para uma melhor compreensão:
9
Obviamente as situações e sentimentos vivenciados naquele contexto não podem ser minimizados e
tratados de forma pejorativa. Essa não foi a intenção da atividade proposta. O aluno esclareceu que, por se
tratar de uma aula planejada para o 9° ano do Ensino Fundamental II, a experiência possibilitaria que
aqueles que estivessem na aula se imaginassem no lugar das pessoas durante a explicação das condições
de diferenciação provocadas, levando a um movimento de empatia e um exercício de imaginação
histórica, ou seja, uma forma de construir o conhecimento de forma mais ativa.
A crítica contida no texto não foi explicada para a turma inicialmente. A aluna
apenas distribuiu os fragmentos do texto e, em seguida, pediu para que cada aluno da
licenciatura lesse em voz alta o seu fragmento. Ao mesmo tempo, ela escrevia no
quadro as ideias principais de cada trecho. Ao final da leitura de todos, ela perguntou se
a turma tinha ideia de qual sociedade o texto abordava. Como recebeu uma resposta
negativa de todos, ela revelou que se tratava dos “americanos”, que é a palavra
sonacirema ao contrário. Todos ficaram surpresos com a revelação daqueles hábitos
serem comuns ao nosso cotidiano, momento em que ela solicitou que todos, novamente,
lessem os trechos, mas agora com outra visão. Finalmente, ela refletiu sobre o
conhecimento que possuímos dos povos indígenas e, em que medida, os conhecemos
ainda pela lente do outro e não deles próprios, uma vez que as fontes escritas do período
foram criadas pelos europeus, e não pelos nativos. A aluna finalizou a aula abordando a
171
necessidade de valorizarmos a alteridade e criar um senso crítico sobre o que sabemos
sobre os indígenas.
Considerações finais
las.
Referências
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Moderna, 2010. 4 v.
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2012. 4 v.
BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar História: das origens do homem à era digital. São
Paulo: Moderna, 2001. 4 v.
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Rio de Janeiro, Niterói, n. 7, p. 68-101, 2006.
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1976. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/364413/mod_resource/content/0/Nacirema.pd
f>. Acesso em: 15 fev. 2020.
MIRANDA, Ana Paula Teixeira; PASTANA, Jéssica Joyce Rodrigues; FERRO, Simão
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ENCONTRO DE DISCENTES DE HISTÓRIA DA UNIFAP. 3., 2017, Macapá.
Anais... Macapá: [s. l.], 2017 Disponível em:
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MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São
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VAZ, Maria Luísa; PANAZZO, Silvia. Jornadas.hist: História. São Paulo: Saraiva,
2012. 4 v.
174
Resumo: Nosso objetivo com esse texto é refletir - à luz das pulsões do cenário particular em
que vivemos, marcado por importantes retrocessos no caminho de construção democrática da
sociedade brasileira – sobre as conexões entre a política para os livros didáticos de História e as
proposições curriculares constituídas na esteira das formulações da Base Nacional Comum
Curricular - BNCC. Partimos da compreensão de que tanto a formulação de documentos
curriculares quanto o desenho de livros didáticos envolvem territórios em disputa e batalhas
narrativas, sendo que a análise do tempo presente se impõe, de modo particular, para
compreendermos o que se desponta no cenário da política educacional em suas interfaces diretas
com o ensino de História.
Palavras-chave: Ensino de História. Livros Didáticos. BNCC.
Abstract: Our objective with this text is to reflect - in the light of the impulses of the particular
scenario in which we live, marked by important setbacks in the path of democratic construction
of Brazilian society - on the connections between the policy for history didactic book and the
curricular propositions constituted in the following the formulations of the National Common
Curricular Base - BNCC. We start from the understanding that both the formulation of
curricular documents and the design of didactic book involves territories in dispute and 10
narrative battles, and the analysis of the present time is particularly necessary to understand
what is emerging in the educational policy scenario in its direct interfaces with the teaching of
history.
Keywords: History teaching. Didactic book. BNCC.
Résumé: À la lumière des impulsions du scénario particulier dans lequel nous vivons, marqué
par d’importants revers sur la voie de la construction démocratique de la société brésilienne,
l’objectif de ce texte est réfléchir à propos des liens entre la politique des manuels d’Histoire et
des propositions de curriculum constituées dans les formulations de la Base National Commun
1
Esse artigo é dedicado à memória de Júnia Sales Pereira (1968-2019), que transitou com maestria,
compromisso público e ética republicana por todos esses territórios.
2
A pesquisadora possui Graduação em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1985),
Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1990), Doutorado em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas (2004) sob a supervisão da profa. Dra. Ernesta Zamboni e Pós-
Doutorado em Didática das Ciências Sociais pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha - 2012,),
sob a supervisão do prof. Dr. Joan Pagès. Atualmente é professora titular aposentada da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação
orientando trabalhos em nível de Mestrado e Doutorado.
3
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008) e mestrado em
Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2012). Atualmente é doutoranda em Educação pelo
PPGE/UFJF, pesquisadora colaboradora da Universidade Federal de Juiz de Fora e docente EBTT -
Colégio de Aplicação João XXIII/UFJF, atuando principalmente nos seguintes temas: memória, ensino de
história, livros didáticos, história e saberes docentes.
Resumen: El presente texto busca reflexionar – bajo las pulsiones del escenario particular en
el que vivimos, donde percibimos importantes retrocesos en el camino de la construcción
democrática de la sociedad brasileña – sobre las conexiones entre la política para los libros de
texto de Historia y las proposiciones curriculares constituidas en las formulaciones de la Base
Nacional Común Curricular - BNCC. Nuestra apuesta teórica y metodológica busca comprender
que no solamente los documentos curriculares sino también el diseño de libros de texto
involucran territorios en disputa y batallas narrativas. El análisis del momento presente se
impone, de manera particular, para comprender el escenario emergente de la política educativa
en sus interfaces directas con la enseñanza de Historia.
Palabras-clave: Enseñanza de Historia. Libros de texto. BNCC.
para começo de conversa, a hipótese de que existe um elo conectivo entre esses dois
eixos privilegiados por nossa análise, a saber: o eixo da modelagem histórica e movente
das disciplinas escolares e a força dos fatores que impulsionam a definição dos
currículos prescritos em cada tempo. Nos dois casos o lugar dos materiais didáticos
cumpre um papel essencial. Ou seja, há uma relação diretamente proporcional entre o
esforço contemporâneo de consolidação da BNCC e o desmonte da política pública para
os livros didáticos tal como a mesma evoluiu ao longo das suas quase quatro décadas e
vários governos. Nos apoiaremos, nesse momento, sobretudo nos documentos oficiais
do Estado brasileiro acerca do tema, compreendendo-os como indicadores de um
processo mais amplo de desmonte de uma política pública longeva. Comecemos,
portanto, tentando compreender essa conexão entre livros didáticos e propostas
curriculares.
Em um texto datado da última década do século XX, mas que ainda ocupa um
lugar de clássico nos estudos sobre a história das disciplinas escolares, André Chervel
(1990) inaugura um caminho de teorização essencial à reflexão futura sobre os
componentes pedagógicos presentes na configuração das formas disciplinares presentes
define como o núcleo central das disciplinas, que permite às mesmas um quadro de
permanência diante da passagem das gerações.
O terceiro componente de uma disciplina escolar, intrinsecamente associado aos
dois primeiros, remete-se ao desenho dos métodos de ensino. Originalmente, segundo
Chervel, a preocupação com os aspectos relativos ao desenvolvimento da motivação dos
estudantes e à capacidade de memorização e desenvolvimento da retórica já se
encontrava plasmada na tradição jesuítica desde o período medieval. Todavia, a
proposição de métodos capazes de favorecer a aprendizagem relaciona-se ao próprio
desenvolvimento da Pedagogia num sentido mais amplo.
Em uma direção um pouco distinta, porém complementar, Alain Chopin (2004)
advoga que a origem do livro didático como objeto situado entre a literatura religiosa
com dimensão narrativa e exemplar; a literatura técnica, didática ou profissional, que foi
progressivamente se embrenhando na escola e a literatura de lazer, de caráter tanto
moral quanto recreativo, justificaria sua profundidade social desde sua origem até os
dias de hoje. Segundo aquele autor, o livro didático segue sendo depositário de funções
essenciais: a função referencial ou curricular, atinente à dimensão programática que
financeira e logística: sua longevidade histórica. Como uma política cujas raízes
remontam ao Estado Novo, a formulação de programas voltados à distribuição de livros
para a população brasileira data da criação da Comissão Nacional do Livro Didático,
por meio do Decreto-Lei nº 100638, de 30 de dezembro de 1938, que pela primeira vez
em nossa história estabeleceu condições para produção, importação e utilização do livro
didático. Sem uma relação de continuidade em termos de política e sem suportes
operacionais e financeiros permanentes conferidos por meio de uma política
institucional, a CNLD ganharia um novo contorno em 1966, quando foi criada a
Comissão do Livro Técnico e Livro Didático – COLTED – que, no âmbito dos acordos
MEC/USAID, garantiu a oferta de recursos externos, capazes de promover distribuição
de livros e estabeleceu a garantia, pelo MEC, da distribuição gratuita. Dois novos
marcos, também sob a esteira dos governos militares, viriam em 1971 e 1976, quando a
sociedade assistia, respectivamente, à criação do Instituto Nacional do Livro Didático -
e junto com ele o Programa do Livro Didático para o Ensino fundamental - e,
posteriormente, à criação da FENAME, responsável pelos programas de livro didático e
assistência ao estudante. O tema da assistência ao estudante ganharia força já no
contexto de redemocratização da sociedade brasileira e, em 1983 se daria a criação da
Fundação de Assistência ao Estudante – FAE – com a estruturação de programas de 16
demarcar a relação entre a Declaração de Nova Deli, na Índia, que tem o Ministro
Murilio Hingel como um de seus signatários no mundo, e a inauguração de um conjunto
de ações circunscritas na esteira do Plano Decenal de Educação para todos, no interior
do qual a melhoria da qualidade do livro didático era um dos componentes selecionados
para uma ação organizadora por parte do poder público. É, portanto, sob o signo do
Plano Decenal que emerge, por parte do MEC, a decisão de estabelecer medidas
públicas de avaliação, construídas sob critérios validados pela comunidade científica.
Assim, um componente se situa, a nosso ver, como decisivo nesse processo a partir de
1993: a paulatina e crescente parceria entre o MEC e as Universidades Públicas
brasileiras no sentido de engendrar processos de avaliação dos livros didáticos.
Cabe por ênfase em dois momentos emblemáticos na estruturação da Política
nacional para o livro didático: o estabelecimento de um fluxo regular de recursos
voltados especificamente para esse fim a partir de 1993 e, a partir de 1997, o início da
avaliação pedagógica das obras didáticas. Ainda em 1993, o MEC institui a primeira
comissão acadêmica com o objetivo de fixar regras e indicadores para a avaliação,
evocando diferentes pesquisadores de Universidades públicas brasileiras que tiveram a
tarefa de propor critérios que diferenciavam as obras passíveis de serem compradas com
recursos públicos e as obras reprovadas. Tal fato acabou produzindo, em longo prazo, 17
cifras liberadas pelos processos de compra de livros didáticos - que podemos dizer que a
face do livro didático brasileiro se transforma e se conecta, progressivamente, a
contornos singulares envolvendo a discussão sobre currículos e programas de História.
Retomando o script inicial de André Chervel, a partir do qual nos é possível derivar o
livro didático da interseção dos três componentes centrais de uma disciplina escolar,
podemos apontar os efeitos da avaliação das obras didáticas ao longo da história recente
do PNLD, afetando os conteúdos e suas potenciais repercussões para os programas de
História, as metodologias de ensino e o desenho das atividades e exercícios, com fortes
impactos sobre a condição de aprendizagem dos alunos. Tudo isso é tecido pela
dimensão dos usos e apropriações que professores, no exercício de sua autonomia
docente, selecionam a partir dos livros didáticos. Nesse sentido, cabe-nos pontuar
algumas dessas principais modificações que, no momento presente, são desmontadas
por uma política de governo cujo interesse precípuo é buscar a imposição de uma base
curricular definida que seja, sobretudo, asséptica ou notadamente retrógrada sob o ponto
de vista acadêmico e ideológico.
Antes de prosseguirmos na análise das principais modificações que o processo
de avaliação engendrou, é importante apontar, num sentido amplo, as conexões entre as
políticas públicas de avaliação e seus impactos no desenho dos materiais didáticos e nos 18
como ferramenta aberta ao protagonismo docente. O que queremos destacar com essas
considerações é que na medida em que a política pública em torno do livro didático -
particularmente a partir do momento em que se deflagram processos sistêmicos de
avaliação que vinculam e orientam processos de escolha e compra - se amalgama com o
desenvolvimento das pesquisas acadêmicas a respeito dos livros didáticos, tal
articulação produz impactos em mão dupla e, nesse sentido, tanto se altera a cartografia
das pesquisas sobre o livro didático, como também se modifica a elaboração acadêmica
que orienta a política pública, uma vez que os intelectuais que passaram a atuar em sua
formulação emanam de comunidades disciplinares que assistem ao deslocamento dos
eixos de pesquisa. Os efeitos de tais conexões são profundos, seja para a modelagem de
um perfil de obras didáticas, seja para a abertura sob o ponto de vista da organização
curricular na articulação com os projetos políticos pedagógicos das escolas, seja para o
cenário das problemáticas de pesquisa que emergem, paulatinamente, em consonância
com esse processo de produção de uma escrita didática para a História escolar. Graças à
construção de uma política de avaliação pública de livros, vinculada ao processo de
compra e distribuição das obras didáticas, é possível dizer que o componente avaliativo
repercutiu ao longo das duas últimas décadas, no perfil do livro didático brasileiro que,
nos últimos anos foi o grande catalizador do debate público produzido e amplificado 19
aproximadamente uma década. Nos referimos diretamente aqui aos efeitos das
pesquisas desenvolvidas a reboque de obras emblemáticas como aquela de Maria de
Lourdes Nosella (1981), por exemplo, que se dedicou a desvendar o discurso presente
nos livros didáticos como uma modalidade de aparelho ideológico a serviço da
construção de projetos de hegemonia e poder. Antes da fixação dessa tendência
analítica, era usual encontrar nas obras didáticas, especialmente naquelas destinadas aos
anos iniciais, imagens e textos que regularmente evocavam sujeitos negros e mulheres
apresentados em condições sistemáticas de inferioridade, matrizes únicas de família
nuclear composta exclusivamente por pai, mãe e filhos, como se não houvesse outras
modalidades de família, proselitismo religioso cristão como único modo de organização
da fé humana, enfim, um sem número de estereótipos em relação à posição dos sujeitos
na sociedade fortemente comprometedoras do desenvolvimento da noção de
historicidade e de sujeito histórico. Como o tema da presença de estereótipos de todo
tipo, além de graves incorreções, era uma marca das obras didáticas oferecidas para a
escola básica àquela altura, a pesquisa acadêmica subsequente que evidenciou essa
problemática acabou elevando esse item a um lugar fundamental no tocante à definição
dos primeiros parâmetros avaliativos, a partir dos quais os processos de avaliação foram
se complexificando e se aprimorando. Desse modo, desde os primeiros editais do PNLD 20
após 1997, até o Edital do PNLD 2017, foram ficando progressivamente mais claros e
complexos os mecanismos de exclusão de obras didáticas que incorressem em
estereótipos e apresentassem erros graves.
O fato é que, ao longo de pouco mais de uma década, o estabelecimento de
medidas rígidas de avaliação no tocante à presença de estereótipos, erros e
desatualizações acabou por provocar uma modificação significativa do perfil das obras
didáticas. A cadeia de autoria articulada pelas Editoras que passam a se organizar em
função do PNLD foi produzindo novos desenhos nas obras didáticas e,
consequentemente, novos perfis de obras no tocante à articulação programática e
abordagens para o Ensino de História.
Sob o ponto de vista dos efeitos dessa ação avaliativa para o campo investigativo
e para sua consequente proposição de orientações para o Ensino de História nas escolas
brasileiras, podemos dizer que o final dos anos 1980 e anos 1990 foram decisivos, no
sentido de provocar uma reflexão pública acerca de novas possibilidades de organização
dos Programas escolares. Ancorados nos avanços metodológicos ocorridos no âmbito da
teoria da História europeia ao longo dos anos 70/80, cuja divulgação viria a se
Gráfico 1: Proporção entre história temática e história cronológica nas obras didáticas
de História – 2005-2017
Fonte: Guias do Livro didático de História 2005, 2008, 2011, 2014, 2017. Ministério da Educação.
O gráfico nos revela coisas muito importantes e nos permite direcionar o olhar
22
para uma pergunta central hoje: o que aconteceu com os livros didáticos de História ao
longo da última década? Dois contextos de expansão dessa tendência metodológica
pautada na História temática são seguidos por dois movimentos de retração e, neste
último processo avaliativo, as coleções com abordagem temática foram retiradas do
mercado. Se em 2005 tínhamos 17% das coleções elaboradas sob essa perspectiva
(MIRANDA; LUCA, 2004), em 2008 esse movimento se amplia, chegando a um
patamar de 24% das coleções. Diante de um cenário de pouca adesão por parte dos
professores, que acabam por escolher coleções elaboradas em torno de uma perspectiva
mais canônica e tradicional quanto ao tratamento do tempo histórico, as editoras iniciam
um movimento de eliminação dessa perspectiva no mercado, inferimos que por decisão
de seus editores. Um ensaio quanto a essa retirada evidencia-se em 2011, quando o
percentual de coleções cai de 24% para apenas 7%. Um novo movimento de expansão e
criação é retomado no programa de 2014, quando novamente se atinge o patamar de
20% das coleções constituídas em torno de recortes temáticos. Uma ruptura brusca
nessa tendência é observada, todavia, com a versão do PNLD 2017, quando todas as
coleções orientadas em torno de uma perspectiva temática simplesmente desaparecem.
Isso não significa dizer que estamos, com essa análise, preconizando a
abordagem temática como uma alternativa, considerando o PNLD é uma política de
Estado que, até o contexto que antecedeu o Golpe de 2016, não possuía dimensão
prescritiva, mas estamos apontando o fato de que a presença de coleções inspiradas
numa História temática representava a possibilidade de ruptura e favorecia um trabalho
docente mais refletido quanto à dimensão necessária dos recortes de conteúdos e,
sobretudo, mais palatável em relação ao princípio de se favorecer uma ação escolar
pautada mais interdisciplinar, o que depende de seleções pautadas em intencionalidades
didáticas claras e recortes temáticos passíveis de integração de áreas de conhecimento.
No momento em que coleções que ancoram essa possibilidade desaparecem do
mercado, a escolha temática envolvida na ação interdisciplinar passa a ser
exclusivamente dependente do coletivo de professores de uma escola. Aquelas coleções
representavam um contraponto criativo e eivado de potencialidades para o
desenvolvimento do trabalho escolar a partir do fortalecimento da autonomia docente.
Ao serem retiradas do mercado, o que restou fez com que o problema das coleções que
abordam “toda a história” de modo detalhado, descritivo e canônico se sobressaísse de
modo desfavorável ao bom enfrentamento de uma condição de melhoria do ensino de
História na rede escolar, sem contar que se apresentam como instrumentos mais 23
4
Cadastro aberto para interessados em: https://pt.research.net/r/P39XZ2W
prática”. Este se tornou um dos pontos principais de debates entre os educadores que se
colocaram contra e a favor da base.
Antes da organização do CNE para abordagem do tema da BNCC, o MEC,
durante o governo da presidente Dilma, já estava organizando suas ações em torno das
demandas do PNE por uma base para a educação brasileira. Tais discussões se
intensificaram a partir de 2014, quando uma versão preliminar foi apresentada ao
ministro da educação José Henrique Paim e a toda equipe do MEC como ponto de
partida para produção da BNCC. Este documento não se tornou objeto de análise
pública devido ao curto tempo que esteve disponível no site do MEC e logo engavetado,
mas se abre como um material de formação potente ao evocar o contexto preliminar de
produção da base, situando o currículo como artefato histórico e cultural. Ali
levantavam-se reflexões conceituais importantes sobre os significados do direito à
aprendizagem e ao desenvolvimento da educação básica. A organização escolar poderia
ser pensada a partir de muitas lógicas, inclusive não disciplinares. Partindo desse
pressuposto, seria possível pensar em uma organização escolar baseada em eixos
integradores, ou por áreas, por exemplo. Assim, se instaurou, no movimento inicial de
escrita da base, uma abertura sobre paradigmas curriculares em que inclusive outras
lógicas para além do currículo disciplinar pudessem emergir no debate nacional. É 28
currículo irá se consolidar nas versões seguintes, apagando de vez o que havia sido
pensado na “versão preliminar”, cujas aberturas de entendimento sobre o que é currículo
provocavam as escolas a pensar em múltiplas possibilidades pedagógicas. A partir da
“primeira versão”, a base passa a fragilizar o pacto federativo, diminuindo a autonomia
dos entes federados e centralizando a priori uma definição de currículo que será
controlado cada vez mais pelos sistemas nacionais de avaliação.
Após sua publicação, a “primeira versão” foi supostamente aberta à consulta
pública via internet, entre setembro de 2015 e março de 2016. De acordo com o MEC,
houve intensa participação da sociedade, somando mais de 12 milhões de contribuições
ao texto, vindo de diferentes pessoas e instituições. Os participantes eram cadastrados
em três categorias: indivíduos; organizações; redes de ensino. Contudo, há uma mística
em torno dessa participação na medida em que nenhum desses grupos citados tinham a
possibilidade de sugerir uma consideração sobre o conjunto das proposições. Apenas
era possível apontar mudanças pouco significativas, como as de redação dos descritores,
o que por fim representa um falso sentido de participação em nada afetou
substantivamente as versões seguintes. Além dessas participações, a “primeira versão”
também contou com pareceres de especialistas brasileiros e estrangeiros. Todos os
apontamentos dados ao texto da base foram sistematizados por uma equipe de 29
elucidativo deste cenário de ataque e desqualificação da BNCC, e que reuniria boa parte
dos holofotes projetados nessa querela pública, concentrou-se na área de História.
Desde o início, o documento da “primeira versão” enfrentou uma série de
críticas e contestações, visto que foi publicado, com o aval do então Ministro da
Educação, sem a parte que competia a disciplina de História. Essa fragmentação da base
diz muito sobre a concepção de currículo assumida pelos seus elaboradores, não havia
um projeto unificado e dialógico de currículo. A interdição do documento de História
foi justificada por Renato Janine a partir de dois critérios: primeiro porque a área de
História não estava alinhada às demais áreas e segundo pois haveria uma “falta de
repertório básico”. Para o filósofo, portanto um sujeito externo as discussões
epistemológicas do campo da História e do Ensino de História, era um absurdo deixar
Inconfidência Mineira fora do currículo de História (G1, 2015). Sob este argumento, e
através das mídias nacionais, o ministro desqualificou todo o trabalho realizado por
especialistas de referência do campo do Ensino de História em nome de um paradigma
de currículo e de História.
Não tardou para que a discussão do documento de História catalisasse o debate
público, ocupando grandes espaços em jornais, blogs, redes sociais, seminários,
conferências e grupos de debates em associações dos campos. Sob esse cenário de 30
referência de onde partirão as demais políticas públicas educacionais que, para além do
currículo, envolvem a formação dos profissionais de educação e os processos
avaliativos de larga escala. Por essa razão, pensar o processo de elaboração da BNCC
envolve pensar o currículo como artefato social (GOODSON, 2002), para assim
entendermos todos os jogos de força que permearam sua formulação. Mais que isso,
recuperar a historicidade e as tensões no interior de sua construção torna-se fundamental
para elucidar os limites e as contradições que pairam sobre a versão final.
É interessante observar que o processo de construção das diferentes versões da
base foi atravessado por censuras de diferentes naturezas. Se a “versão preliminar”
sofreu interdição em nome de um projeto de educação mediado pela avaliação de larga
escala, as versões públicas sofreram repreensões também de caráter ideológico e que
foram acompanhadas por debates também no âmbito dos livros didáticos de História
que, naquele cenário, foram designados como ferramentas privilegiadas a serviço de um
suposto controle ideológico de crianças e jovens. Do mesmo modo que a mídia escrita e
televisa se interpôs ao documento da BNCC, o fez também em relação aos livros que
entraram, então, no espaço de censura, perseguição e desqualificação por parte de um
público amplo, leigo e, sobretudo, exterior à História e à Educação.
É nesse cenário que importa, então, retornarmos o Decreto 9099, que anula o 33
***
Ainda é cedo para indicar qual será o futuro do PNLD enquanto política pública
voltada ao livro e à leitura no Brasil. Sabemos que na eventual e esperada restituição de
um caminho sério e pautado no respeito republicano às instituições democráticas, muito
terá que ser reconstruído. O estudo da História nos oferece, como alento e esperança, a
clareza de que tudo passa, até os cenários de barbárie. Também é cedo para presumir o
que será da BNCC. Uma coisa é certa: BNCC não é currículo. Currículo é aquilo que os
professores produzem, criam e recriam no cotidiano da escola e da sala de aula e, por 34
isso, apostamos que essa BNCC não tem futuro, uma vez que ela já nasceu
estruturalmente comprometida em seu DNA. É um texto fadado a um fracasso porque é
desconectado de seu tempo histórico. Um texto velho e epistemologicamente defasado,
tributário de um duplo golpe. Contudo, diante de todo o cenário que pautamos até o
momento, tudo nos leva a afirmar que há em curso uma política de desmonte de uma
educação pública laica, democrática e plural no Brasil, para a qual o papel do professor
de História é e sempre será preponderante em uma trincheira de enfrentamento contra
toda forma de irracionalismo. Caminhos de luta e disputas narrativas.
Assim como começamos, terminamos evocando a voz de Júnia Sales, cujo
caminho de busca pela valorização de uma Educação pública laica, de qualidade,
inclusiva e democrática, muito contribuiu para a história recente do PNLD junto à
Coordenação dos Materiais Didáticos da Secretaria de Educação Básica do MEC. Em
sua última entrevista em vida, Júnia destacou o que nos parece ser decisivo para esse
nosso modo de concluir:
Referências
Fontes
Bibliografia:
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negócios? In: AGUIAR, Márcia Angela da S. e DOURADO, Luiz Fernando (orgs). A
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ZAMBONI, Ernesta (org.). A prática do Ensino de História. Caderno Cedes n. 10. São
Paulo: Cortez Editora. 1984.
38
Abstract: The authorship of textbooks has occupied a secondary place in our society, partly due
to the devaluation of knowledge and materials produced in/for the school institution.
Recognizing the relevance of research that seeks to understand the specificity and complexity of
this production, we discussed, in dialogue with Foucault's theorizations about “what an author
is”, the authorship of didactic books in an investigation perspective that considers it a discursive
function, a constituent of subjects in contexts in which knowledge and powers are disputed,
negotiated, validated. This issue is discussed in the scope of public policies and the Brazilian 117
publishing market, in which profound changes have affected the conditions and possibilities of
exercising this function, repositioning subjects, and their productions.
Keywords: Textbook. Authorship. History teaching. Curriculum. Subject.
Résumé: L’auteurs des manuels scolaire ont occupé une place secondaire dans notre société, en
partie à cause de la dévaluation des connaissances et des matériaux produits dans / pour
l'établissement scolaire. Reconnaissant la pertinence d'une recherche qui cherche à comprendre
la spécificité et la complexité de cette production, nous avons discuté, en dialogue avec les
théorisations de Foucault sur « Qu'est - ce qu'un auteur», l’auteurs des manuels dans une
perspective d'investigation qui la considère comme une fonction discursive, constituant des
sujets dans des contextes où les connaissances et les pouvoirs sont contestés, négociés, validés.
Cette question est abordée au regard des politiques publiques et du marché brésilien de l'édition,
où de profonds changements ont affecté les conditions d'exercer cette fonction, ayant
repositionné les sujets et leurs productions.
Mots-clés: Manuel scolaire. Propriété intelectuelle. Enseignement de l'histoire. Curriculum.
Sujet.
1
Doutora em Educação (UFRJ). Pesquisadora em ensino de História do GEHPROF/UFRJ.
2
Doutora em Educação (PUC-RIO). Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora CNPq.
Resumen. La autoría de los libros de texto ha ocupado un lugar secundario en nuestra sociedad,
en parte debido a la devaluación del conocimiento y de los materiales producidos en/para la
institución escolar. Reconociendo la relevancia de la investigación que busca comprender la
especificidad y complejidad de esta producción, discutimos, en diálogo con las teorizaciones de
Foucault sobre “qué es un autor”, la autoría de los libros de texto en una perspectiva de
investigación que la considera una función discursiva, que constituye sujetos en contextos en
que los conocimientos y poderes son disputados, negociados, validados. Este tema se discute en
el ámbito de las políticas públicas y del mercado editorial brasileño, en que los cambios
profundos han afectado las condiciones y posibilidades de ejercer esta función, reposicionando
temas y sus producciones.
Palabras-clave: Libro de texto. Autor. Enseñanza de historia. Currículo. Sujeto.
Introdução
3
Produção híbrida cultural expressa concepção sobre currículo entendido como “produção dos
docentes/agentes culturais em diálogo com seus alunos, em contextos curriculares específicos. Estes
podem estar constituídos em uma sala de aula, uma atividade museal, um texto de livro didático, uma
dinâmica na modalidade EAD, considerados em seus aspectos contingenciais, nos quais circulam
diferentes sentidos e demandas de conhecimento: fluxos oriundos dos conhecimentos científicos que se
articulam com referências culturais dos diferentes sujeitos em diálogo e das instituições onde se efetivam
as mediações/produções/práticas articulatórias/negociações, no movimento constitutivo do “ensino de” no
fazer curricular (MONTEIRO, 2015, p. 166).
Assim, uma questão que nos é cara é a valorização da prática docente e a busca
da compreensão dos saberes e práticas mobilizados no exercício da atuação profissional.
Entendemos a docência como um ato de ensinar/aprender, mas também de produzir
conhecimentos na especificidade do contexto escolar. A prática docente se constitui em
um espaço-tempo de fronteira cultural (MACEDO, 2006), no qual saberes são
produzidos e mobilizados em contextos sócio-político-culturais, em que opções e
processos de mediação são realizados na busca de atribuição de sentidos ao
conhecimento escolar a ser ensinado.
Nesse sentido, a prática docente/fazer curricular torna-se um dos focos de nossa
investigação na busca da compreensão dos processos de sua constituição e de sua
epistemologia, tendo como pressuposto que o conhecimento histórico escolar é uma
produção curricular, um híbrido cultural no qual se articulam fluxos do conhecimento
científico (GABRIEL e MORAES, 2014), saberes dos alunos e dos professores e
referências culturais mais amplas. Nesta perspectiva de abordagem temos investigado a
relação dos professores com os saberes que ensinam nos diversos contextos possíveis de
sua atuação profissional nos quais possibilidades de exercício da prática docente pode se
manifestar.
As fontes e as análises realizadas, a metodologia empregada e as discussões 119
compreensão das lutas por significação no âmbito dessa disciplina. Afinal, quem decide
o que ensinar? Documentos oficiais exercem influência sobre as práticas docentes, mas
não de forma hierárquica e, sim, em um ciclo de relações que envolve diferentes sujeitos
(BALL, 2001). Entendendo o currículo como um híbrido cultural, é preciso
compreender os diferentes fluxos de saber e poder mobilizados na produção do
conhecimento histórico escolar. E um dos objetos que exerce grande influência nesse
processo de ensino é o livro didático. Ora desvalorizado, ora julgado como manipulador
de ideologias, mesmo com todas as críticas que esse instrumento de ensino tem
recebido, sua presença ainda é muito forte nos diversos usos que possa ter dentro do
contexto escolar.
E mesmo em um ambiente em que o mundo digital se faz cada vez mais presente
em sala de aula, esse objeto permanece, reconhecido como necessário para professores e
alunos. Em muitos casos, o livro didático é o único material de referência a que uma
criança terá acesso em sua casa. Sua formatação de conteúdos organizados de forma
própria para o ensino, com uma linguagem já didatizada, facilita seu processo de
aprendizagem. Para docentes, se torna material de apoio, guia para os conteúdos a serem
ensinados, objeto de consulta, pesquisa e atualização (MONTEIRO, 2009, p. 177-199).
Podemos nos questionar: por que dessa permanência? O que faz do livro didático um 120
de acordo com o contexto no qual estão inseridos (RALEJO, 2018). Seguindo essa linha
de pensamento, citamos os trabalhos de Circe Bittencourt (2004, 2008) e Arlette
Gasparello (2013) que se dedicaram a investigar a trajetória de produção e uso dos
livros didáticos desde o século XIX, analisando implicações político-culturais no
processo de construção de identidades e da ideia de nação. Em estudos sobre esses
objetos de ensino na contemporaneidade, destacamos os trabalhos de Kazumi Munakata
(1997, 2009, 2012, 2016) e Décio Gatti Júnior (2004, 2007) que aprofundam a análise
na busca da compreensão das relações entre autores e editores rompendo com visões
dicotômicas.
Esses trabalhos foram produzidos no contexto do processo de redemocratização
no país, quando o ensino de História se constituía como um problema e se
intensificavam as políticas de controle e qualidade sobre o conhecimento histórico
escolar (RALEJO, 2018). É interessante observar que, dentro de um cenário em que
emergiam as críticas ao livro didático como objetos de caráter ideológico, denunciados
por serem permeados de erros e preconceitos, esses autores se destacam por buscar
compreender seu processo de constituição, contextualizando-os em seu tempo e lugar.
Objetos culturais complexos, além das questões econômicas, reconhecemos hoje que
estão envolvidos em relações de poder relacionadas aos processos de produção, 121
desenvolvido no âmbito do grupo de pesquisa para pensar a autoria como uma função
discursiva, um lugar de produção de significados. A partir das contribuições teóricas de
Michel Foucault (2001, 2012), traçamos novos olhares sobre a autoria em tempos
atuais, estabelecendo relações com os livros didáticos, com o currículo, e com os
saberes mobilizados.
da escrita, ou seja, os significados que lhe são atribuídos ganha maior destaque no lugar
daquele que escreve4.
Há um segundo sentido sobre essa morte do autor destacada por Foucault. Neste
caso, a morte do autor está ligada ao seu desaparecimento de forma proposital quando
este despista signos de sua individualidade particular para atribuir à sua obra a
consagração da imortalidade. Imortalidade no sentido de caráter de verdade, ou seja,
legitimando seu trabalho como representação do “verdadeiro” conhecimento sem abrir
brechas para que surjam argumentos que possam criticar a procedência das informações
ali presentes. Quando a escrita ganha um empoderamento, ela fala por si. Se ela é
relacionada como um produto, fruto de ideias individuais, esta pode ser criticada pelos
valores de seu tempo e da mão que a escreveu. Assim, o autor faz “papel de morto” no
jogo da escrita e se torna um herói, assim como os heróis gregos que viam a morte
como a consagração para a imortalidade (FOUCAULT, 2001).
Foucault não nega a existência de alguém que escreve, mas considera que a
autoria não está ligada a uma pessoa, mas a uma função da ordem do discurso.
4
Foucault (2001) manifesta sua preocupação com a presença/ausência do autor quanto à designação de
suas obras. Porém, ao contrário de Barthes, não acredita que haja realmente uma morte, e sim uma
ausência das marcas autorais ocasionada pelos caminhos da escrita contemporânea. Assim, a noção de
autor foi ressignificada por meio de regras históricas e culturais de seu funcionamento em nossa
sociedade. O historiador Roger Chartier (1994; 2014) tem desenvolvido pesquisas em diálogo com
Foucault também ao problematizar a autoria no contexto de produção de livros e na interferência do
editor. Mas neste trabalho buscamos destacar uma abordagem discursiva, enquanto Chartier destaca uma
perspectiva histórica de livros, autores e editores, bem como a tensão entre a imposição do texto e a
liberdade do leitor. A questão do leitor não é objeto de discussão neste artigo.
sujeito. Sabemos que existe uma inquietação provocada na linguagem, alguém que em
meio às palavras, rompe, traz seu gênio e sua desordem (FOUCAULT, 2012, p. 27).
Mas não é o indivíduo e suas experiências pessoais que está em jogo, porque
isso muda de acordo com as especificidades temporais e discursivas nas quais está
inserido. O foco de Foucault ao falar de autoria é a função que o indivíduo desempenha.
É o que ele recorta, seleciona, modifica o que pode ser dito ou não em sua obra (ibid). O
autor localiza-se em um lugar fronteiriço porque ao mesmo tempo em que ele é
constituído por discursos, ele os mobiliza e os rompe ao classificar, reagrupar, delimitar,
excluir, opor e relacionar textos uns dos outros. Eis uma das funções do autor:
homogeneizar diferentes discursos que o tocam e dar sentidos a eles:
[...] mas o fato de que vários textos tenham sido colocados sob um mesmo nome
indica que se estabelecia entre eles uma relação de homogeneidade ou de
filiação, ou de autenticação de uns pelos outros, ou de explicação recíproca, ou
de utilização concomitante. Enfim, o nome do autor funciona para caracterizar
um certo modo ele ser do discurso: para um discurso, o fato de haver um nome
de autor, o fato de que se possa dizer "isso foi escrito por tal pessoa", ou "tal
pessoa é o autor disso", indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana,
indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra
imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser
recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um
certo status. (FOUCAULT, 2001, s/n). 124
Autor seria dessa forma, não um indivíduo real, mas a posição de sujeito que une
e delimita diversos tipos de discursos, reduzindo suas diferenças e dando-lhes coerência
e uma homogeneidade (FOUCAULT, 2012, p. 25). O princípio de unidade ou
agrupamento é uma das quatro “função autor” discriminadas por Foucault,
classificações essas que não são universais, mas uma característica do modo de
existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma
sociedade.
Cada discurso funciona de uma forma específica e complexa, mas quem dá sua
coerência é o sujeito considerado como autor devido à função que ele exerce. Ou seja, o
discurso possui marcas de uma existência pertinentes para compreender o momento e o
lugar de sua produção. O autor se torna aquele que cria um aspecto de homogeneidade
diante de uma pluralidade de posições e diversidade de vozes, selecionando-os e
organizando-os de forma lógica. As outras três funções enumeradas por Foucault (2001,
p. 14-18) são:
1. Apropriação: um texto possui um autor quando este pode ser punido ao praticar um
gesto carregado de riscos, estabelecendo uma propriedade ao texto. Entende-se esta
função como forma de conservar os direitos do autor sobre sua obra através de regras
restritas como contratos e os direitos de copyright.
2. Valor de verdade: um texto é dotado de autoria quando o nome de um sujeito
representa uma referência e uma garantia sobre o que foi escrito. Neste caso, é atribuído
ao autor o valor de autoridade e credibilidade que legitima o conhecimento que está
sendo transmitido e dá credibilidade como valor de verdade. Esse tipo de função surge
na Modernidade, quando textos científicos passam a desafiar o sagrado.
3. Origem: a autoria é uma operação complexa e se constitui de diferentes formas de
acordo com o tempo histórico e com os tipos de discursos que o constituem, mas é
atribuído a esse sujeito um valor de criador, aquele que dá uma razão ao texto. Quando
um texto passa por modificações, como uma atualização ou revisão, ele está sendo
situado em seu momento histórico e confere a possibilidade de transformação mediante
a ação de um sujeito.
Tendo por base essas considerações, podemos dizer que existe autoria no
contexto de produção de livros didáticos atualmente, marcado por complexas disputas
políticas e culturais, nas relações de saber/poder? Se formos considerar, a partir das
ideias foucaultianas, que a autoria é uma função, então podemos dizer que sim. Existe
nesse lugar de autoria um princípio de unidade, pois nesse material estão reunidos 125
5
Compreendemos o autor como proprietário da obra no sentido que a ele é atribuída responsabilidade
sobre aquele objeto. Compreendemos que no contexto de produção a editora possui também diretos, mas
a primeira referência sobre o livro normalmente é o autor, sendo assim identificado como seu
proprietário.
Assim, podemos considerar que um sujeito se torna autor quando inserido dentro
de um determinado contexto, reconhecido pelos seus pares para exercer essa função.
Dito isso, nos questionamos: o que é um autor de livro didático? Que contexto e
127
condições de produção caracterizam aqueles responsáveis por uma produção curricular
de tamanha importância para o processo de ensino e aprendizagem?
Responder essa questão nos leva a uma complexa análise sobre os desafios da
escrita didática na contemporaneidade. Citamos aqui dois aspectos contingenciais dessa
prática: as políticas públicas e o mercado editorial brasileiro. Podemos considerar que
essas duas instituições, mas não somente elas, produzem enunciados que exercem
práticas de poder nesse processo de produção de livros didáticos. Seguindo a concepção
foucaultiana, o significante “poder” não é considerado como uma entidade
materializável, uma racionalidade interna que se manifesta em um lugar específico, mas
são forças, no plural, multidirecionais, difusas e capilares (FONSECA, 2011). O poder,
para Foucault, passa a ser entendido em uma escala da microfísica, operando em
práticas difundidas na sociedade, ações que se manifestam sobre outras ações e que,
dessa forma, alteram o estado de um corpo (VEIGA-NETO, 2007).
Em relação aos impactos das políticas públicas, destacamos como o Programa
Nacional de Livros Didáticos (PNLD) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
têm desempenhado uma relação de poder no processo de escolha e produção desses
propostas didáticas. Novos títulos surgiram no mercado, com ampla divulgação de suas
propostas didáticas alardeadas pelo teor de novidade e renovação alcançado nas obras.
Os autores, ou a equipe editorial, são continuamente substituídos, promovendo a
consagração de alguns sujeitos já famosos e permitindo o surgimento de novos nomes
nesse meio (SOUZA, 1996).
Quando nos referimos a autoria, é importante salientar, com base nas
contribuições de Foucault, que não se trata de um sujeito responsabilizado pela escrita
da obra. Essa atribuição de função não se situa somente no papel de uma pessoa, mas de
uma equipe ampla que atua desde o projeto até a impressão do livro em sua versão final.
Estão incluídos aí editores, ilustradores, designers gráficos, revisores, dentre muitos
outros. Todos eles atuam produzindo significados sobre o que deve ser ensinado. Assim,
defendemos que a editora, composta por essa variedade de funcionários, também
constitui parte da autoria porque passa a exercer também a função-autor.
Ainda, analisando o que/quem é o autor de livro didático na atual conjuntura
educacional, gostaríamos de refletir sobre o reconhecimento social desses sujeitos. Sem
dúvida trata-se de um trabalho complexo, com muitas idas e vindas, impeditivos de
diversas ordens para que, no final, possamos ter um produto de qualidade e atraente para
seu público. Mesmo assim, identificamos pouco reconhecimento no meio acadêmico. Se
analisarmos o perfil desses sujeitos na Plataforma Lattes, por exemplo, há pouca
divulgação de suas atuações como produtores de obras didáticas e, quando o registro é
feito, está listado como produção técnica, e não produção intelectual que, em um
concurso público, possui valor menor se comparada a de artigos e capítulos de livros
científicos. Esta situação é decorrente da concepção que orienta o registro das
produções na Plataforma Lattes e que não reconhece a produção de livros didáticos
como produção intelectual, confirmando uma perspectiva hierarquizante que subestima
o conhecimento escolar. Conforme exposto na introdução deste artigo, defendemos que
esta produção é complexa e apresenta características culturais diferenciadas que
precisam ser consideradas.
Defendemos que é importante reconhecer a atuação desses profissionais na
educação. Gatti Jr (2004) relata que na década de 1990, a produção de livros didáticos
não era uma atividade central na carreira de alguns autores, que mantinham essa
profissão de forma concomitante com a carreira de professores da educação básica ou
do ensino superior. Hoje, já percebemos uma alteração nesse cenário, com um aumento
significativo de escritores que tomaram a produção de livros didáticos uma profissão de 130
dedicação exclusiva, o que indica que houve uma mudança em relação à essa prática.
Tem sido preciso se concentrar mais nas regras de produção, obedecer aos apertados
prazos para revisão e participar da divulgação do livro, percorrendo o país oferecendo
palestras pela editora ou por convites de escolas e associações. Isso tem levado a
estarem menos presentes em sala de aula (MUNAKATA, 2016; GATTI JR, 2004).
Com tantos sujeitos envolvidos no processo produtivo de livros didáticos,
poderíamos afirmar que não existe mais autoria? Não, pelo contrário. Nossa proposta é
trazer outro olhar sobre o que é ser autor. Por isso é importante colocar a autoria em
questão, pois não se trata de uma função representada por um sujeito, mas sim
desempenhada atualmente pelas mãos de muitos. Resgatando a teorização foucaultiana
explorada na primeira parte deste artigo, quando passamos a compreender a autoria não
como uma identidade, mas uma função discursiva, nos desprendemos de materialidades
que ligam o processo criativo a um nome. Se a autoria está ligada às funções discursivas
de unidade, apropriação, valor de verdade e origem, precisamos rever a quem são
atribuídas essas funções.
É preciso reconhecer quem são esses novos sujeitos que ocupam essa função
para compreender como ela continua sendo desempenhada. Por isso propormos olhar
para a ação das editoras como parte constituinte da autoria, pois ali há também uma
mobilização de saberes e poderes que produzem sentidos e conhecimentos. O resultado
dessa ação ganha a forma de livros didáticos que serão apropriados por professores e
estudantes de todo o país.
Considerações finais
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