Carlasilvino Caderno Texto 2023 Completo

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CADERNO DE TEXTOS

CURSO: Especialização em Ensino de História do


Brasil e do Mundo Contemporâneo
DISCIPLINA: História do Ensino de História
CARGA HORÁRIA: 30H
PERÍODO: 17/06 a 27/06/2023
DOCENTE: Profa. Dra. Carla Silvino de Oliveira
CEAD-UFPI /2023
UNIDADE I - História do Ensino de História entre mudanças e permanência
Texto 01: BITTENCOURT, C. F. Reflexões sobre o ensino de História. Estudos Avançados,
[S. l.], v. 32, n. 93, p. 127-149, 2018. DOI: 10.5935/0103-4014.20180035. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/152562. Acesso em: 25 abr. 2022.
Texto 02: SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. História do ensino de
História no Brasil: uma proposta de periodização. Revista de História de Educação –
RHE, Porto Alegre, v. 16, n. 37, maio/ago, 2012, p. 73- 91.
Texto 03: NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: trajetórias e perspectivas. In:
Revista Brasileira de História, ANPUH/Marco Zero, São Paulo, no 25/26, setembro
92/agosto 93, p. 143-162.

UNIDADE II – História Social do Currículo de História


Texto 01: OLIVEIRA, Carla Silvino de. A Base Nacional Comum Curricular: disputas em
torno da seleção curricular para o Ensino de História. 2021. Tese (Doutorado em
Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.
doi:10.11606/T.48.2021.tde-19102021-100241. Acesso em: 2022-05-24.
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-19102021-100241/pt-
br.php
Texto 02: FERNANDES, A. T. de C. Ensino de História e seus conteúdos. Estudos
Avançados, [S. l.], v. 32, n. 93, p. 151-173, 2018. DOI: 10.5935/0103-4014.20180036.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/152566. Acesso em: 25
abr. 2022.
Texto 03: PEREIRA, Nilton Mullet et al. Docência em História: implicações das novas
disposições curriculares do ensino médio. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.
2014, v. 95, n. 239, pp. 152-174. Disponível em: <>. Epub 05 Maio 2014. ISSN 2176-6681.

UNIDADE III - História do Ensino de História, Materiais Didáticos e Livros Didáticos


Texto 01: CAIMI, Flávia Eloisa. Vitória da tradição ou resistência da inovação: o ensino
de história entre a BNCC, o PNLD e a Escola. Educ. rev, [S. l.], v. 37, n. 02, 2021. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/er/a/sTMcykZgTNYBcFYn7f3L94C/
Texto 02: TAMANINI, Paulo Augusto; NORONHA, Vanusa Maria Gomes. O ENSINO DE
HISTÓRIA E A BNCC: LIVROS DIDÁTICOS SOB UMA ANÁLISE COMPARATIVA. Revista
Teias, Rio de Janeiro , v. 20, n. 57, p. 109-124, abr. 2019. Disponível em:
http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-
03052019000200109&lng=pt&nrm=iso. Acessos em: 24 maio 2022. Epub 18-Dez-2019.
Texto 03: LEITE, I. A abordagem da temática indígena e da História da África nos livros
didáticos: uma experiência na formação docente. Escritas do Tempo, v. 2, n. 5, p. 157-
174, 30 out. 2020. Disponível em:
https://periodicos.unifesspa.edu.br/index.php/escritasdotempo/article/view/1332.
Acesso em Escritas do Tempo 24 maio 2022.
Texto 04: MIRANDA, S.; ALMEIDA, F. Passado, presente e futuro dos livros didáticos de
História frente a uma BNCC sem futuro. Escritas do Tempo, v. 2, n. 5, p. 10-38, 30 out.
2020. Disponível em:
https://periodicos.unifesspa.edu.br/index.php/escritasdotempo/article/view/1364.
Acesso em 24 maio 2022.
Texto 05: RALEJO, A.; MONTEIRO, A. M. Livros didáticos: autoria em questão., v. 2, n. 5,
p. 117-134, 30 out. 2020. Disponível em:
https://periodicos.unifesspa.edu.br/index.php/escritasdotempo/article/view/1400.
Acesso em 24 maio 2022.
DOI: 10.5935/0103-4014.20180035 Ensino de Humanidades

Reflexões sobre o ensino


de História
CIRCE FERNANDES BITTENCOURT I

O
ensino de História se destaca por mudanças marcantes em sua trajetória
escolar que a caracterizavam, até recentemente, como um estudo mne-
mônico sobre um passado criado para sedimentar uma origem branca e
cristã, apresentada por uma sucessão cronológica de realizações de “grandes
homens” para uma “nova” disciplina constituída sob paradigmas metodológi-
cos que buscam incorporar a multiplicidade de sujeitos construtores da nação
brasileira e da história mundial. No Brasil, a História escolar, sob diferentes de-
nominações, História Universal ou História da Civilização, História do Brasil
ou História Pátria..., são indicativas de um percurso de mudanças quanto aos
objetivos, conteúdos e práticas educacionais do século XIX aos dias atuais.
As recentes transformações da História têm sido constatadas por pesquisas
recentes,1 e enfrentam constantes desafios para se efetivarem, como a inclusão
da história da África e da cultura afro-brasileira, da história dos povos indígenas
ou das mulheres. As transformações do ensino de História têm proporcionado
debates importantes relacionados aos problemas epistemológicas e historiográ-
ficos, mas também quanto ao significado de sua inserção e rejeição em projetos
curriculares nacionais e internacionais (Monteiro, 2014; Bittencourt, 2018).
Historiadores de diversos países também têm analisado as mudanças ocor-
ridas no ensino de História, como o historiador francês François Furet que con-
siderou fundamental sua presença nos currículos ocidentais a partir do século
XIX por ser a disciplina que fornecia o “sentido do progresso da humanidade”
e a ela também atribuiu uma importância pedagógica por ser a “árvore genealó-
gica das nações europeias e da civilização de que são portadoras” (Furet, 1986,
p.135). Para o historiador canadense Christian Laville o ensino de História, no
período pós-Segunda Guerra Mundial, com uma vitória da democracia na maio-
ria dos países ocidentais, transformou-se em uma disciplina alinhada à função
primordial de uma formação para a cidadania participativa e, nessa perspectiva,
deveria “desenvolver (nos alunos) as capacidades intelectuais e efetivas necessá-
rias para esta forma de construção política democrática” (Laville, 1999, p.152).
E Laville também constatou que essa tendência, quanto aos objetivos do ensino
de História, se estendeu por quase todos os demais países europeus, americanos
e asiáticos no decorrer das décadas finais do século XX.
Uma História escolar concebida como “pedagogia do cidadão” mantém-
-se em currículos do século XXI como importante instrumento educativo de

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formação para o exercício da democracia, mas em confronto com as novas
tendências de uma educação tecnicista cuja prioridade é formar “o cidadão do
mundo capitalista global” sob novas formas de individualismo submetido aos
ritmos do mundo digital (Crary, 2014).
Estudos sobre a História nas escolas brasileiras evidenciam que essa dis-
ciplina teve sua trajetória sujeita a confrontos semelhantes aos dos países eu-
ropeus, mas, evidentemente, sob condições específicas dadas as problemáticas
decorrentes de uma política educacional complexa que tem mantido a socie-
dade brasileira em constante disputa por uma educação que possa se estender,
efetivamente, ao conjunto de crianças e jovens do país. E tais disputas ocorrem
também no espaço escolar por comunidades de pessoas que competem e cola-
boram entre si, definem suas fronteiras epistemológicas, assim como conferem
uma determinada identidade às suas respectivas disciplinas ou áreas de estudo.
A partir das problemáticas elencadas, esta reflexão fundamenta-se em uma
concepção de educação escolar como um campo de tensão constante entre
poder e empoderamento, conforme explicita David Hamilton2 e, nessa condição,
situa a constituição da História escolar articulada a tendências curriculares no
confronto entre humanidades clássicas, humanidades modernas e humanidades
científicas (Chervel; Compère, 1999) e o contraditório referencial tecnológico
instrucional da “sociedade do conhecimento” (Hamilton, 2002).
Ensino de história nas Humanidades clássicas
Estudos sobre a história da educação europeia destacam que, a partir do
século XVI, as Humanidades foram entendidas por intelectuais e educadores
como uma formação originária dos antigos romanos e gregos que visava “ofe-
recer uma preparacão do indivíduo para ser homem em toda a plenitude do seu
sentido” (Chervel; Compère, 1999, p.150). A essa concepcão inicial, os edu-
cadores cristãos introduziram um outro conceito às Humanidades situando-a
como base para uma formação centrada nos estudos das Escrituras cristãs, dando
outro sentido às concepções de ser homem em “sua plenitude”. No decorrer
dos séculos XVIII e XIX, novos estudos dos textos “antigos” foram sendo in-
corporados e deu origem ao currículo das Humanidades clássicas que integra-
ram, no processo de modernização da educação secundária, novas concepções
do mundo e de homem por intermédio dos estudos científicos e que têm sido
denominadas Humanidades modernas ou Humanidades científicas (Chervel;
Compère, 1999).
Sob tais currículos o ensino de História ocupou determinados espaços e
articulou-se aos dois tipos de formação humanística: uma que integra o indi-
víduo a uma elite, a uma cultura destinada aos filhos dos grupos dirigentes ou
de classes mais ricas, e outra fundada sobre a natureza ou sobre as “coisas do
universo” que permite a todos se situar no mundo e possibilita multiplicar suas
marcas e nele inscrever suas ações e, portanto, destinada aos filhos de todas as
classes sociais, ou seja, em princípio, à totalidade da juventude.

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A historiografia sobre o ensino de História tem apresentado sua origem
como disciplina escolar ao compor o currículo das Humanidades clássicas do
século XIX (Bruter, 1997; Gasparello, 2004; Bittencourt, 1993). No entanto,
sem discordar quanto à constituição da disciplina História entre final do século
XIX e início do XX, é possível constatar que conteúdos históricos fizeram parte
dos estudos das Humanidades clássicas em escolas dos jesuítas dos séculos XVI
ao XVIII, mas sob diferentes objetivos e formas. Annie Bruter (1997) mostra
as especificidades do uso de textos “clássicos” dos antigos autores, de Cícero ou
Quintiliano, cujo objetivo era determinar uma formação moral religiosa, assim
como tais autores serviam como modelo para a aprendizagem das linguas anti-
gas e, sobretudo, formar um “bom orador” capaz de fazer uma preleção “erudi-
ta” em esferas políticas ou em sermão nas igrejas. Nessa perspectiva, os autores
pagãos foram “cristianizados” e integrados aos métodos de leitura e seleção
de excertos publicados em livros especialmente organizados para os alunos. Os
mestres eram sempre clérigos e por essa condição social, “as Humanidades clás-
sicas sempre provocaram contradições de toda ordem entre os dogmas, a moral,
os usos e os modelos do cristianismo e do paganismo” (Chervel; Compère,
1999, p.153).
Nos colégios dos jesuítas instalados na colonia americana dos portugueses
houve, igualmente, a difusão de uma história por intermédio de antigos textos
“clássicos” e de maneira semelhante ao que ocorria em escolas europeias. João
Hansen (2007) destaca que a utilização de autores da Antiguidade pelos jesuítas
nas regiões colonizadas da América serviu, mais fortemente do que na Europa,
como meio de seleção social das elites do que efetivamente como fundamento
para o estudo de uma cultura letrada. Nesse sentido, as práticas escolares tinham
como objetivo formar oradores para pregarem sermões para “colonos iletrados”
e os excertos dos autores antigos eram cuidadosamente selecionados para aten-
der a essa finalidade. De acordo com José Maria Paiva (2007), muitos dos tex-
tos de autores “clássicos” usados nos colégios serviam para uma adesão à cultura
portuguesa, mas eram adaptados para difundir uma moral específica adequada às
condições da colônia que destacava, dentre outros aspectos, as diferenças entre
os “humanos” de forma a justificar as práticas de guerras de extermínio de in-
dígenas, da escravização de africanos e da controversa “escravização de índios”.
Os excertos de autores gregos e romanos eram, portanto, cuidadosamente sele-
cionados e deviam ser adequados ao convivio em sociedades guerreiras, além de
haver, nos escritos dos antigos, justificativas para a escravização.
A partir da segunda metade do século XVIII, sob as Humanidades clás-
sicas reformuladas em seus princípios, pode-se identificar mudanças ocorridas
pelas reformas pombalinas nas quais foram introduzidos estudos que se utili-
zavam de textos históricos, mas com outra função pedagógica. As mudanças
educacionais decorrentes das reformas do marquês de Pombal de 1759, após a
expulsão dos jesuítas de todo o reino português, foram consideradas como um

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marco na história da educação, segundo Andrade (1978) e Boto (2017). Esses
autores destacam a introdução do ensino escolar em língua materna, ao lado de
uma mudança significativa quanto ao corpo de mestres que se põem a serviço
fundamentalmente do Estado e não mais da Igreja. A partir dessas medidas polí-
ticas válidas para todo o reino português e suas colônias, tiveram início mudan-
ças sob novos paradigmas educacionais, notadamente para o ensino da Língua
Portuguesa e, de forma incipiente, para a constituição de um ensino autônomo
de História.
No final do século XVIII, no Seminário de Olinda, colégio pernambucano
considerado pela historiografia como um dos raros locais da colônia portuguesa
em que se buscou organizar currículos modernos sob inspiração de John Locke
(1632-1704) e Luis Antonio Verney (1713-1792), foi possível identificar uma
introdução aos estudos de história nos documentos curriculares pelos quais deve-
riam ser ensinados “os principios gerais, em que se funda toda a História” e as
“principais noções de Cronologia, das épocas, dos tempos em comum” (Alves,
1993, p.127). As justificativas para a introdução da Cronologia no currículo do
Colégio estavam articuladas ao ensino da Língua Pátria e essas se constituíam
como um “pórtico de qualquer saber”, um fundamento metodológico para se
compreender as questões controversas e para “evitar a discussão impertinente”
e, dessa forma, as “notícias históricas” deveriam se reduzir a “uma cronolo-
gia dos fatos, em estilo frio, de molde a fugir dos anacronismos ou confusão
dos tempos e evidenciar o rumo certo dos acontecimentos” (Andrade, 1980,
p.47). Criou-se, a partir de então, um modelo para uma forma da escrita da
história, concebida como “narrativa cronológica”, e essa foi fundamental para
sistematizar a história das novas nações modernas. E essa concepção serviu para
a constituição do ensino da história escolar conforme se constata pelos primeiros
livros de História do Brasil do início do século XIX, tais como o Compendio de
Geografia e história seguido de um breve epítome sobre os globos e seus círculos e de
uma tabela cronológica dos principais acontecimentos da história do Brasil, desde
seu descobrimento até a coroação de SM. I. D. Pedro II (Freese, 1842).
Em vários países europeus, o ensino da língua nacional nas escolas foi for-
talecido pelo estudo de obras literárias e evidenciou-se que os reinos europeus
podiam realizar sua educação escrita lendo “seus próprios clássicos” em detri-
mento dos clássicos latinos (Garin, 1968, p.239). A polêmica sobre o lugar do
ensino do Latim e das linguas nacionais, no século XVIII, recolocava o debate
sobre o sentido do humanismo para uma sociedade que vivenciava novos desa-
fios econômicos e sociais. Autores e suas obras foram revistos como prioridade
para o ensino e selecionados novos excertos de autores antigos sob temáticas
que valorizavam uma “moral” laica e pelo conteúdo histórico sob a perspectiva
de que
[...] l’étude du monde antique pouvait encore constituer le plus heureux prélu-
de à la pleine conscience historique du processus de la civilization européenne,

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même si le problème devenait désormais plus riche et plus complexe, du moment
qu’entre la ‘commune patrie’ gréco-romaine et l ‘époque présente s’interposait
l’histoire nationale des peuples. (Garin,1968, p.239)
Uma história da moderna civilização e uma história nacional foram, nesse
contexto, esboçadas e referenciadas sob as origens laicas dos “antigos greco-
-romanos” e introduzidas lentamente em currículos entre final do século XVIII
e no decorrer do século XIX em países europeus convulsionados pelas revolu-
ções burguesas e nas antigas colônias americanas em processo de constituição de
Estados nacionais.
História entre Humanidades clássicas e Humanidades modernas
O ensino de História, nas primeiras décadas do século XIX, foi organizado
e efetivado a partir de projetos elaborados no processo de constituição do Estado
nacional brasileiro por representantes das elites que integravam os ministérios, o
Conselho de Estado, a Câmara dos Deputados e o Senado, e também pelos que
assumiam a presidência das províncias com seu corpo de funcionários criados
pela Independência. A definição da política do Estado, incluindo a educacional,
era determinada por uma verdadeira oligarquia constituída por “fazendeiros em
sua maioria, altos funcionários ou comerciantes respeitáveis [...] ligados entre
si por laços de família, brasileiros, filhos de portugueses uns, nascidos em Por-
tugal outros, a maioria tendo realizado seus estudos na metrópole, no Colégio
dos Nobres ou em Coimbra” (Viotti da Costa, 1968, p.117). Entre integrantes
dessa elite política estavam também religiosos seculares, notadamente os que
atuaram de forma ativa nas decisões parlamentares com apresentação de projetos
originários de suas trajetórias educacionais.
Um primeiro projeto em que o ensino de História foi apresentado como
conhecimento específico e desvinculado do “tronco das letras humanísticas” foi
proposto pelo deputado Martim Francisco Ribeiro de Andrada,3 então membro
da Comissão de Instrução da Assembleia Constituinte de 1823 (Bontempi Jr.;
Boto, 2014). A proposta tinha como princípio fundamental a constituição de
um sistema de educação de caráter público e desvinculado da interferência da
Igreja conforme havia proposto Condorcet na Assembleia Nacional da França
de 1793, em meio à Revolução Francesa.4 A proposta de Martim Francisco tinha
como princípio a organização de dois graus de ensino. Um Primeiro Grau ele-
mentar, com três anos de duração para alunos entre 8 e 10 anos, e um Segundo
Grau de instrução, para jovens de 12 a 18 anos, organizado por “disciplinas”,
e dentre elas a História e a Geografia. Pelo ensino de História, o aluno deve-
ria “seguir a ordem dos tempos, e ordenar no espaço e no tempo, os fatos e
observações diversas que lhe forem transmitidos” e, por esta atividade, consti-
tuiria o hábito de “abarcar suas relações e a criar para si uma filosofia da história”
(Andrada, 1945, p.104). Propunha uma renovação metodológica, na qual a
História não seria um mero estudo de fatos isolados “que, espalhados nas dife-
rentes páginas de um livro, instantaneamente se riscam da memória”, mas seu

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conhecimento seria fixado na memória e conservado o que aprendeu mediante a
possibilidade de construção de “quadros em seu pensamento” (ibidem, p.104-
5). A constituição da História sob forma de uma disciplina autônoma incluía,
portanto, uma fundamentação sustentada nas relações entre conteúdo e método
de ensino e aprendizagem.
Martim Francisco incorporava também as ideias de Condorcet para a efeti-
vação do projeto, ao sugerir a confecção de livros que deveriam ser de duas natu-
rezas distintas: os compêndios para alunos e os livros dos mestres ou dos professores
que conteriam “anotações sobre o método de ensinar, de esclarecimentos neces-
sários para permitir aos professores responder às questões das crianças, às defini-
ções das palavras difíceis” (Trenard, 1986, p.6). A produção dos livros didáticos
era, portanto, um material essencial para a efetivação do novo ensino e eles deve-
riam “ser feitos ou pelos mestres encarregados deste trabalho em benefício de sua
pátria, voluntariamente ou por ordem superior” (Andrada, 1945, p.104).
Essa proposta foi rejeitada pela Assembleia Constituinte de 1823 não ape-
nas por uma questão de discórdia em relação aos pressupostos educativos de-
mocráticos de Condorcet e incorporados por Martim Francisco, mas por refletir
as dificuldades dos deputados em debater, com fundamentos, a organização de
um sistema educacional amplo e abrangente com uma articulação entre os três
graus de ensino elementar, secundário e superior, que, dentre outros problemas
estratégicos, o que demandaria investimentos públicos consideráveis. A propos-
ta de Condorcet, como destaca Boto (2017, teve também pouca repercussão no
Parlamento francês de 1792 pelo seu espírito inovador, pelo caráter democrático
de inclusão de todos os jovens e crianças, assim como das mulheres em escolas
organizadas sob uma concepção de educação humanística igualitária, e apenas
ao final do século XIX serviu como referência para as reformas educacionais de
Jules Ferry, na III República francesa.
Em 1826, outro projeto educacional retomou o problema da organização
do ensino “secundário” no país com base em pressupostos liberais conservado-
res em relação tanto à sua forma quanto ao conteúdo educativo e instrucional.
A proposta apresentada pelo deputado Januário da Cunha Barbosa, um liberal
religioso vinculado à maçonaria, era bastante pormenorizada, e pelo “ensino
médio” as aulas seriam organizadas sob “disciplinas escolares” autônomas e im-
plementadas por educadores especialistas. Assim caberia ao professor de História
fornecer aos alunos
[...] uma história civil e cronológica, depois de dar uma noção das ideias
morais e religiosas dos povos antigos e de expor os diversos modos porque
marcavam e exprimiam a ordem sucessiva dos tempos [...], daria os fatos
mais importantes relativos à sua política, costumes e usos mais notáveis, de
maneira que o seu curso de história cronológica tenha menos em vista os
indivíduos que o das causas que influíram para a elevação e decadência das
nações e fixar as épocas mais notáveis relativamente à prosperidade e des-
graças dos povos. (Brasil, 1826, p.152, grifo meu)

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Essa proposta defendida por um deputado religioso que incorporava um
ensino de História profana, embora tenha sido inicialmente rejeitada, acabou
por ser vitoriosa conforme se constata pelos programas do curso secundário do
Colégio Pedro II, criado em 1837.5
A História organizada como disciplina histórica a ser oferecida em cursos
seriados, em estabelecimentos públicos ou privados, no entanto, não foi, assim
como outras disciplinas, efetivada facilmente ao longo do período imperial. Se-
gundo Mariotto Haidar (2008, p.45) essa dificuldade foi resultante da “função
atribuída aos estudos secundários, encarados no Império quase que exclusiva-
mente, como canais de acesso aos cursos superiores, [que] os reduziu de fato,
aos preparatórios exigidos para a matrícula nas Faculdades”.
Com a instalação do curso de Ciências Jurídicas e Sociais de São Paulo e
em Olinda, Pernambuco (depois transferido para Recife), a partir de 1828, hou-
ve também a criação do curso de preparatório anexo às academias com o objetivo
de preparar alunos para o ingresso nos cursos acadêmicos, e esse curso se cons-
tituiu também sob o controle da administração pública. A partir de 1831, His-
tória e Geografia foram incluídas nesses exames e integraram, portanto, o curso
preparatório das academias, e a partir de 1855 tornaram-se matérias obrigatórias
para a matrícula nos cursos de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. Dessa
forma, a História se constituiu primeiramente em um conhecimento “obriga-
tório” pelos exames de admissão aos cursos superiores, e essa condição avaliativa
imprimiu uma cultura educacional que tem controlado a seleção de conteúdos e
métodos das escolas públicas e particulares secundárias até os dias atuais.
O conhecimento histórico dos cursos preparatórios foi constituído e sis-
tematizado juntamente com o geográfico e caracterizou-se por uma atuação
efetiva dos professores na organização da disciplina. O primeiro professor con-
tratado para as aulas de História e Geografia no curso preparatório em São Pau-
lo, Julio Frank, era estrangeiro, natural da Saxônia, e destacou-se por “seus
profundos conhecimentos em geometria, história antiga e moderna, condição
que justificou seu ingresso na Academia” (Gomes, 2016, p.76). A importância
de Julio Frank na organização e sistematizacão do conhecimento histórico sob o
formato de uma disciplina se deveu à publicação, em 1839, do Resumo da His-
tória Universal, que serviu de base para o ensino de História em São Paulo por
décadas. Esse primeiro livro de História editado no Brasil, um resumo de obras
de autores germânicos inspirados em Kant,6 fundamenta-se em um conceito de
história cuja importância pedagógica residia em mostrar a evolução do gênero
pelo estudo do progresso das civilizações, e assim seria possível desenvolver no
aluno um pensamento racional e evolucionista “em marcha para o progresso”
(Gomes, 2016, p.77).
O ensino de História organizado nos colégios secundários, sob regime se-
riado (variaveis entre 6 e 7 anos de estudos), pelos cursos preparatórios das aca-
demias e pelas escolas normais criadas para a formação de professores das escolas

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primárias, representou uma renovação das Humanidades clássicas e atingiu os
propósitos centrais dos cursos secundários: contribuir para a distinção cultural das
classes dominantes, composta por uma aristocracia agrária escravocrata e por co-
merciantes submetidos à cultura europeia, e para quem a Europa, como declamou
Castro Alves na Academia de São Paulo em 1868, era “sempre a Europa, a glo-
riosa, a mulher deslumbrante e caprichosa, rainha e cortezã” (“Vozes d’Africa”).7
A introdução da disciplina de História nos cursos preparatórios e no Co-
légio Pedro II, e posteriormente em liceus e escolas privadas das províncias, de-
sempenhou “um papel iniciador no processo de autonomização das disciplinas”
de forma semelhante ao que ocorreu na França e, ao desligar-se do tronco das
letras, marcou “a abolição do princípio unitário no ensino das humanidades clás-
sicas” (cf. Chervel; Compère, 1999, p.168). A História se inseriu ardilosamente
no âmbito das Humanidades juntamente com os estudos da literatura e das lín-
guas vivas, e seus objetivos estavam comprometidos com uma formação moral
por intermédio de um curso dogmático estabelecido por um programa oficial
ao qual os professores se submetiam, mas por vezes se rebelavam, especialmente
no confronto entre uma história sagrada e uma história profana (Pirola, 2013).
Considerando a formação e origem dos professores, os conteúdos de uma His-
tória Universal ou da Civilização passaram a ser selecionados em função ou da
História Sagrada ou de uma História Profana. E da mesma forma também se
criava uma “cadeira” para a História do Brasil com reconhecidos professores
oriundos do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil e que disputavam o sen-
tido de uma formação nacionalista na formação de “cidadãos aristocráticos”.
No Colégio Pedro II, o ensino de História se constituiu pela criação das
“cadeiras”, situação de prestígio por ter um docente responsável especialmente
designado para cada curso e “distribuído o ensino de História e Geografia no
Colégio, lecionaria Calógeras a 1ª cadeira, Macedo a segunda, a História Pátria
a cargo de Gonçalves Dias, escol de docente pois” (Doria, 1997, p.69). Os pro-
fessores, ao adquirirem status como catedráticos, tornaram-se responsáveis pela
criação e mudanças na programação junto à Congregação, e nesse sentido os
Programas do Colégio fizeram parte de um percurso de confrontos e disputas
(Gasparello, 2004).
No ensino de História os confrontos entre História Universal e História
Sagrada centraram-se na constituição de um discurso laicizado sobre uma his-
tória construída inicialmente para explicar a origem dos homens conforme os
textos da História Sagrada. Clérigos do Brasil e da França, principal referência
para o ensino no Brasil, consideravam falso um estudo de História que começas-
se antes do nascimento de Cristo e argumentavam que “muito mais moderna é
a História Eclesiástica assim como as histórias dos imperadores e reis cristãos por
serem fatos comprovados pelos textos escritos” (Andrade, 1980, p.48).
Essa disputa pode ser identificada pela tradução do Nouveau Manuel du
baccalaureat es lettres – histoires ancienne, du moyen age et des temps moder-

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nes de Victor Duruy (1865),8 adotado no Colégio Pedro II para as cadeiras
de História Antiga à História Moderna distribuídas ao longo dos sete anos do
curso (Haidar, 2008, p.120). O livro do historiador francês foi traduzido pelo
padre Francisco Bernardino de Souza em 1865, mas não foi fiel ao livro original.
Dentre suas modificações, o clérigo alterou os capítulos iniciais, “Monde connu
des anciens”, no qual Duruy apresenta as origens dos homens pelas diferen-
tes formas de comunicação entre os diversos povos, e, no capítulo II, “Temps
primitifs”, em que o historiador utiliza as tradições bíblicas sobre as três raças
humanas desde a origem dos “homens”, mas explica que “a ciência também
reconhecia três grandes divisões da espécie humana espalhadas pelo antigo con-
tinente” (Duruy, 1852, p.7). O tradutor brasileiro, ardilosamente, inverteu os
capítulos iniciando pela origem dos homens pela tradição bíblica e atenuou os
pareceres científicos quanto às origens das raças humanas.
A concepção de História Antiga laica ou religiosa marcou, então, o debate
entre os professores religiosos e laicos sobre o ensino da origem do homem nos
currículos de História e de Ciências. E foi pela definição da origem da espécie
humana que, entre o final do século XIX e meados do século XX, se constituiu a
organização do ensino de História sob o conceito de História da Civilização. A
consolidação da História da Civilização fundamentava-se em bases “científicas”
da História e essas foram incorporadas pelos programas das escolas secundárias
denominadas “ginásios”, que se ampliavam no decorrer do século XX, além de
serem disseminados pela maior parte dos manuais escolares. A necessidade de
situar a história como conhecimento científico e válida, portanto, como expli-
cação do passado humano defendida pelos positivistas ou por historiadores da
escola metódica determinou uma tradição no ensino de História que consiste,
ainda na atualidade, em apresentar em um capítulo introdutório dos manuais
escolares o significado do conhecimento histórico:
A história tem por objeto narrar metodicamente os fatos notáveis sucedi-
dos nas sociedades humanas civilizadas procurando deduzir metodicamen-
te tanto quanto possível as relações que os ligam. (Benevides, 1912, p.4)
Ou
História é a ciência que tem por fim tratar dos acontecimentos notáveis da
vida da humanidade e estudar as leis que presidem o progresso e a
decadência das sociedades humanas. (Berquó, 1887, p.1)
E em obra didática atual:
Na primeira metade do século XIX, outro tipo de explicação para a origem
da humanidade ganhou importância. Com base na observação e na análise
de evidências materiais do passado, foi sendo elaborado de forma sistemati-
zada um conjunto d argumentos lógico-racionais e verificáveis por meio de
experimentos. Em outras palavras, a ciência passou a propor novas razões
para o surgimento da humanidade, entrando em choque com as explicações
religiosas, metafísicas, mágicas e mitológicas. (Napolitano, 2013, p.14)

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A introdução da “civilização” e do “progresso” como conceitos funda-
mentais no ensino de História sofreu contestações por parte de professores e
historiadores mas tais conceitos foram sendo incorporados e consagrados pela
elite nacional renovada no período republicano pelos novos “donos do poder”,
idealizadores da política “café com leite”. Os paradigmas do historiador francês
Charles Seignobos,9 explicitadas pelas suas obras didáticas traduzidas e adap-
tadas no Brasil, representavam a idealização desses setores que determinavam
nosso futuro como país com “vocação” para a agricultura de exportação, inse-
rido no comércio internacional com um papel definido no concerto das nações
que buscavam “se aperfeiçoar” sob o modelo civilizatório do ocidente europeu.
A modernização do Brasil estava ainda em fase inicial e difundia-se a ideologia
do “país do futuro” de acordo com a noção do tempo histórico evolutivo e do
progresso impossível de ser violado. E nessa perspectiva era fundamental que as
novas gerações incorporassem o sentido da predestinação do povo europeu, da
raça branca cristã, originária da Grécia e de Roma determinante dos rumos de
todos os povos:
Somos irresistivelmente levados a considerar como única e verdadeira a
civilização europeia que é a nossa, e a esperar que ela absorva ou rechasse
as suas rivais. [...]. O próprio continente africano não escapa a esta fecunda
iniciação, nem tampouco o longínquo arquipélago oceânico, chamado pela
Inglaterra, pela Holanda e pela Franca ao convívio da civilização europeia.
(Benevides, 1912, p.21)
Nas escolas confessionais que se multiplicavam após a proclamação da Re-
pública e que, de forma contraditória, haviam estabelecido a separação entre Es-
tado e Igreja Católica houve uma conciliação com a laicidade da História da Ci-
vilização e em tais escolas se estabeleceu a nomeação da disciplina como História
Universal. A conciliação se fazia pela valorização da atuação da Igreja Católica
na constituição da civilização europeia, sobretudo na Idade Média, e que, para
alguns poucos autores de livros didáticos, era apresentada como a Idade das Tre-
vas. Na pesquisa de André Pirola (2013), ao apresentar o concurso para o Ginásio
Espírito Santense, na cidade de Vitória, para professores de História Universal,
ficou evidente a concepção de humanidades da cadeira de História Universal pe-
los pontos escolhidos pela Congregação: 6º) A influência do catolicismo sobre a
civilização e o 10º) Influência da grande guerra (conflagração europeia) no de-
senvolvimento espiritual da humanidade (Piorla, 2013, p.176).
Dessa forma, professores católicos brasileiros justificavam as diversas for-
mas de violência praticadas pelos europeus, inclusive com seus próprios conterrâ-
neos, as conquistas ferozes sobre outros povos, as guerras de extermínio, dentre
outras formas de violência pela necessidade do desenvolvimento da civilização
sob uma “ética econômica” necessária à ascensão do capitalismo internacional.
As inovações e ampliação dos conteúdos e as novas divisões da História,
incorporando a Idade Contemporânea, no entanto, não provocaram mudanças

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metodológicas no ensino, apesar de debates entre educadores sobre métodos
intuitivos, analógicos e ativos que, aparentemente, se limitaram aos cursos pri-
mários e Escolas Normais em toda a primeira metade do século XX. As propos-
tas curriculares e os manuais escolares que se difundiam nas primeiras décadas
republicanas mantinham, em essência, o método catequético do humanismo clás-
sico com as práticas do “aprender de cor” as causas e os efeitos dos diferentes
acontecimentos realizados sempre pelos poderosos representantes do Estado,
da Igreja ou do poder dos grandes proprietários. A consolidação de um ensino
de História da Civilização se fez pelas determinações da Reforma de Francisco
Campos de 1931 que uniformizou o currículo em escala nacional. Embora hou-
vesse indicações de mudanças metodológicas estas não se concretizaram, dentre
outras razões, pelo crescente número de alunos que ingressaram no ginasial ao
se tornar uma etapa obrigatória para alunos que desejassem cursar as Faculdades.
(Bittencourt, 1990).
Os confrontos mais complexos do ensino de História, no entanto, têm
sido marcados pela História do Brasil e o lugar a ser ocupado nos diferentes cur-
rículos constituídos a partir da Lei de 15 de outubro de 1827. Por essa primeira
proposta de ensino, cabia aos que “ensinarão a ler [...] preferindo para as leituras
a Constituição do Imperio e a Historia do Brazil” (Brasil, Art. 6º, 1827a). O
ensino de História estava associado à aprendizagem da leitura por intermédio de
temas articulados a um senso moral e cívico, um dever filial para com a Pátria e
seus governantes. E esse objetivo marcou a trajetória da História do Brasil sob
os currículos humanísticos e modernos.
A História Pátria para alunos do ensino elementar, ou a História do Brasil
no secundário, foi sempre considerada um estudo suplementar e construído sob
a lógica da História Sagrada e seus santos que serviram como referencial de al-
truísmo e bondade para a constituição e seleção dos “heróis” da pátria.
O ensino de História da Pátria ou História regional nas escolas primá-
rias, após a instauração do regime republicano, integrou os novos programas
curriculares com o objetivo explícito de sedimentar uma identidade nacional
capaz de justificar o predomínio de uma política oligárquica sobre uma popu-
lação composta por ex-escravos, indígenas e mestiços despossuídos de bens e
de propriedades. Diante de uma sociedade em processo de mudanças quanto
às concepções de trabalho, o ensino de História do Brasil passou a ter como
objetivo principal formar alunos sob os princípios limitados de cidadania e conti-
nuou a selecionar os “grandes homens” provenientes de uma elite predestinada
da Nação. A História escolar, encarregada de “inventar tradições”, de maneira
semelhante ao que acontecia em outros países europeus e americanos, aliou-se
a outras disciplinas, Lingua Portuguesa, Geografia, Música, especialmente, para
sedimentar não apenas nas salas de aula, mas também nas ruas e espaços públi-
cos, por intermédio das “festas cívicas”, dos desfiles em que se cultuavam heróis
da “pátria” e heróis locais, os oligarcas “fundadores das cidades”, os bandeiran-

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tes “construtores do imenso território brasileiro”. Muitos homens e algumas
poucas mulheres (Bittencourt, 1990).
A História do Brasil nos cursos secundários foi constituída de forma mais
complexa. No Colégio Pedro II e nos liceus provinciais, com vários professo-
res sócios dos Institutos Históricos e Geográficos que se espalhavam pelo país
com objetivos de “compor uma história nacional”, foram sendo elaborados os
currículos da História da nação como disciplina autônoma. No Colégio Pedro
II, após algumas celeumas, a história nacional submeteu-se ao referencial de
Varnhagen e sua excludente concepção de “povo” brasileiro e foi ensinada no
decorrer do período monárquico, mas com a República, de forma inusitada, a
disciplina responsável pela criação da nacionalidade, perdeu sua autonomia. E,
[...] o então professor da cadeira, Capistrano de Abreu, se não era ainda o
historiador consagrado dos Capítulos de História Colonial, já era um inte-
lectual de prestígio, reconhecido no meio cultural do Rio de Janeiro, além
de ser catedrático do Colégio Pedro II. Com energia, negou-se a lecionar
a História do Brasil nas novas condições, como apêndice da História Uni-
versal. Foi, por isso, colocado em disponibilidade pelo governo, o que o
afastou das aulas do secundário. (Gasparello, 2004, p.69)
A atitude de Capistrano de Abreu não era um ato de simples rebeldia, mas
representava as disputas na consolidação de um modelo hegemônico para a His-
tória escolar que, em princípio, deveria se estender por todo o país. Uma disputa
em que tem prevalecido uma concepção da história História do Brasil como
simples apêndice da história de civilização europeia, com data de nascimento
estabelecida no processo da expansão marítima dos portugueses. A maioria dos
historiadores brasileiros incorporou passivamente as concepções históricas con-
cebidas pelos europeus e essas se tornaram determinantes de um etnocentrismo
que justificava a superioridade da Europa sobre os demais povos e nações, con-
forme analisa Jack Goody (2008) em o O roubo da história. E esse etnocentris-
mo europeu assumiu um aspecto mais agressivo no contexto da dominação de
uma “‘outra raça’ que passa a ser automaticamente ‘raça inferior’ e na Europa
um ensino sofisticado [...] criou justificativas para explicar por que as coisas eram
assim” (Goody, 2008, p.16).
A permanência do lugar da História do Brasil como anexo inferiorizado
por uma História da Civilização foi constante e as tentativas de oposição foram
vencidas, como o projeto de Manoel Bomfim (1868-1932)10 sobre a inclusão de
História da América no currículo da Escola Normal do Rio de Janeiro. Para im-
plementar estudos sobre as sociedades americanas, Manoel Bomfim usou como
estratégia uma abordagem sob outra concepção da história da civilização que
serviria como meio de confrontar o domínio de uma cultura sobre as demais,
opondo “civilizados e selvagens” e, consequentemente, serviria de instrumento
para enfrentar o racismo difundido pelas teorias da superioridade da raça branca
ariana sobre mestiços e negros e índios, ou seja do “povo brasileiro”. Para im-
plementar o novo currículo, Manoel Bomfim promoveu um concurso público

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para a composição de um manual sobre História da América, cujo vencedor foi
o Compêndio de História da América, de Rocha Pombo.11 A obra, escrita de
acordo com o plano indicado por Bomfim, foi bastante inovadora em sua versão
sobre a colonização europeia:
[...] E eis aí a massa de gente que tinha de eliminar as populações indígenas
do Novo Mundo. Por toda parte andava esta gente proclamando o seu
direito de raça mais culta e mais nobre e sem ver desde logo nos habitantes
das terras conquistadas mais do que raças inferiores e vis, contra as quais
tinha o europeu os mesmos privilégios que tem o homem sobre toda a
animalidade. E, portanto, em todas as colônias, foi se cuidando de tirar o
maior proveito possível da pobre besta. (Rocha Pombo, 1900, p.86)
A História da América apresentada como “uma nova civilização”, fruto de
um amálgama cultural não se consolidou nos currículos, embora o Compêndio
de História da América tenha circulado até os anos de 1920 em algumas escolas
normais do país.
O retorno da História do Brasil como disciplina autônoma ocorreu pela
Reforma Capanema de 1942, com uma renovação curricular fundamentada nas
Humanidades modernas, sob princípios de um nacionalismo patriótico e cívico,
cujo conteúdo foi distribuído em várias séries, mas, manteve o referencial da
civilização europeia. As disciplinas de História da Civilização – História Anti-
ga, Idade Média e de uma História Moderna e Contemporânea continuaram a
difundir, principalmente, as histórias das “guerras civilizadas” do mundo con-
temporâneo acrescidas de uma história econômica que anunciava a importância
do desenvolvimento tecnológico e escondia a história das revoluções socialistas
contemporâneas.
O ensino de História sob um Humanismo científico?
Os debates sobre o ensino de História realizados por historiadores ao fin-
dar a Segunda Guerra Mundial questionavam o sentido ou mesmo o significado
da civilização europeia. Constatavam que nações civilizadas da Europa, com
desenvolvimento econômico e tecnológico avançados, com crianças e jovens
escolarizados e com boa saúde, haviam sido responsáveis pela criação de uma
das mais perversas formas de extermínio da história da humanidade que resultou
na morte de milhões de pessoas. No contexto de redefinições políticas e ideoló-
gicas, sob patrocínio de entidades internacionais, como a Unesco, foi proposta
a difusão de um ensino de “História para a paz” e iniciaram-se debates sobre
os fundamentos que serviriam como alicerce para uma renovação curricular em
escala internacional.
Alguns princípios dos currículos das Humanidades foram retomados e, na
França em particular, passou a ser valorizada uma educação sob fundamentos
das Humanidades científicas. A organização dos novos currículos teve como
objetivo a consolidação das disciplinas escolares constituidas por uma combina-
ção articulada por “objetivos, conteúdos, métodos e avaliação” (Chervel, 1990,

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p.207). Para cada disciplina, sobretudo as que tinham como base as ciências de
referência, constituiu-se um corpus de conhecimento específico, organizado por
temáticas relevantes para diferentes grupos de alunos, de idades diferentes, mas
que visavam atender objetivos educacionais gerais e particulares da área cien-
tífica e organizados sob métodos constituídos para desenvolver uma formação
intelectual e uma aprendizagem capaz de ser difundida em todos os níveis de
ensino. O ensino de História tornou-se fundamental para se repensar a cultura
humanística sob uma nova concepção de formação científica na qual o conhe-
cimento histórico se inseria “em uma perspectiva não resumida ao passado que
paralisa mas como expressão de um futuro que libera” (Garin, 1968, p.251).
No Brasil, com a criação de cursos de história em centros universitários,
a partir dos anos 1950, intensificou-se a preocupação com a formação de pro-
fessores que proporcionasse uma convivência com pesquisas desenvolvidas pelas
Faculdades de Filosofia e de Ciências Humanas e que deveriam apoiar a revisão
de conteúdos para o ensino das diferentes disciplinas escolares. Para professores
de História das universidades, seria fundamental a revisão, sobretudo, do ensino
da História do Brasil que deveria incorporar as novas pesquisas que então se
multiplicavam.12
Mas além da revisão dos conteúdos. também tiveram início propostas de
novos métodos de ensino a serem introduzidos em escolas públicas secundárias
que se multiplicavam e se transformavam com a presença de novos grupos sociais.
Havia preocupação em construir projetos que articulassem, portanto uma expan-
são quantitativa aliada a uma de caráter qualitativo para tornar possível deslocar
métodos instrucionais para métodos de aprendizagem e foram criadas escolas expe-
rimentais nas quais era fundamental sedimentar uma educação que superasse os
limites do “mundo da instrução” e se voltasse para o “mundo do estudo”. Nesse
sentido, as propostas de reformulação dos métodos de ensino preocupavam-se em
superar o método cateqúetico para possibilitar uma formação intelectual pela qual
a investigação seria parte integrante do conhecimento escolar (Hamilton, 2001).
Para o ensino de História significava “deixar de lado” os questionários e as disser-
tações que repetiam, de forma mais fiel possível, os textos dos livros didáticos, e
estimular os alunos com narrativas sob o pressuposto de “centros de interesse”.
Nas escolas secundárias, no entanto, no decorrer das décadas de 1950
e 1960, havia o problema de redefinir os objetivos da disciplina. A História
mantinha-se como um ensino propedêutico com conteúdos selecionados para
atender os exames vestibulares e que limitavam mudanças de conteúdos e mé-
todos. Os objetivos centrais da História elaborados pelas políticas públicas do
período da democratização populista deveriam limitar-se à disseminação do ide-
ário da “democracia racial brasileira”: a forma pacífica da abolição dos escravos,
a importância dos jesuítas na pacificação dos indígenas na fase da colonização, as
contribuições dos africanos e dos índios na cultura brasileira... A proposta para
o ensino de História era, então, a de contribuir para resolver a equação Estado-

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-povo-nação sob uma história que deveria manter os pressupostos da civilização
europeia e esse projeto servia como confronto às várias experiências de renova-
ção das escolas experimentais.13
A renovação do ensino de História, em especial a do Brasil, com início nos
anos 1960, teve que esperar a década de 1980 para ser efetivada, uma vez que a
História foi uma disciplina especialmente visada pelo regime militar ditatorial. A
polêmica em torno da História Nova do Brasil, uma coleção didática produzida
por historiadores do Instituto Superior e Estudos Brasileiros (Iseb), com o apoio
do Ministério da Educação e Cultura, lançada no início de 1964, foi um episódio
exemplar do nível de repressão que o regime político exerceu sobre a Educação,
em particular, sobre a renovação do ensino de História. A História Nova do Bra-
sil, sob a coordenação de Nelson Werneck Sodré, então chefe do Departamento
de História do Iseb, foi uma obra coletiva de professores recém-formados do
Centro de História da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil e
[...] Sua origem – assim como a de todas as demais que compõem esta co-
leção – prende-se à tentativa já impostergável de reformular, na essência e
nos métodos, o estudo e o ensino de nossa história.
Nos últimos tempos, não foram poucos, os que tomaram consciência de
que a história do Brasil, tradicionalmente concebida e comunicada, em es-
pecial na literatura didática, longe de revelar as verdadeiras bases do pro-
cesso de formação do nosso país, vem servindo, pelo contrário, como ins-
trumento de freios e desvios, obstáculo para seu próprio desdobramento.
Dentro de tal perspectiva reformuladora é que surgiu a coleção história
nova. [...] Resta esperar de professores e estudantes, que de uma nova refle-
xão sobre os dados componentes de nossa história se passe imediatamente
aquela ação capaz de dar ao povo brasileiro o Brasil pelo qual ele realmente
anseia. (Rufino et al. 1965, Apresentação)
O resultado da publicação pelo Ministério da Educação em março de
1964 foi uma repressão violenta depois de 1º de abril pelo “novo governo”,
que invadiu o Iseb, abriu Inquério Policial Militar (IPM) pelo qual situava o
convênio como exemplo de corrupção e de subversão, apreendeu livros por
todo o país e prendeu e submeteu seus autores a torturas. Para Nelson Werneck
Sodré, a investida sobre a História Nova do Brasil tinha como alvo o Miinistério
da Educação e Cultura e estava
[...] dentro daqueles planos meticulosamente montados e desenvolvidos,
colhida como pretexto. Só o jornal O Estado de S.Paulo dedicou à coleção
de monografias cinco virulentos editoriais. Claro que, nesses editoriais, não
se analisava o texto delas, mas se utilizava a conhecida e rotineira técnica
nazista de repetir tantas vezes a mentira que ela acabe passando por verda-
de. (Sodré et al., 1993, p.75).
Na sequência das políticas públicas do regime ditatorial, a História e a Geo-
grafia foram substituídas pelos Estudos Sociais, e como consequência criaram-se
novos cursos de Licenciatura Curta que, dentre outras características, limitavam

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 141


a formação docente, sem contato com pesquisas e atualizações historiográficas.
Em decorrência dos problemas educacionais que se multiplicaram sob o regime
militar, o retorno da História como disciplina foi um desafio que professores das
redes de ensino e das universidades enfrentam ainda na atualidade.
A partir de 1980 foram propostos novos currículos de História para as
escolas de Primeiro e Segundo Graus, mas sob novas condições quanto ao aten-
dimento de um público escolar diferenciado, com experiências complexas em
salas de aulas sempre precárias e professores em constantes lutas para melhoria
das condições de trabalho e de salário. Era urgente introduzir novos conteúdos
que estimulassem os alunos ao mesmo tempo que havia necessidade de propos-
tas que incorporassem a nova produção da história sócio/cultural e a do mundo
do trabalho.
Os currículos produzidos após a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, assim
como as propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1998 (PCN – Bra-
sil, 1998) se estenderam para todos os níveis de ensino e de sistemas escolares,
incluindo escolas das comunidades indígenas e quilombolas. Constata-se que
houve mudanças significativas pela introdução de novos conteúdos históricos
com base em seu compromisso de formação de uma cidadania democrática.
De forma inédita, como fruto das lutas de movimentos sociais foram in-
troduzidas a História da Africa e das culturas afro-brasileiras e a História dos in-
dígenas por intermédio das leis 10.639/03 e 11.645/08, que estão em processo
de integração em currículos ainda submetidos à lógica eurocêntrica, mas que
anunciam uma formação política e cultural para o exercício de uma cidadania
social com vistas a um convívio sem preconceitos e democrático:
[...] no ensino de História, o mito de Clio, a musa da história que tem
numa das mãos o estilete da escrita e na outra a trombeta da fama, pare-
ce expressar em uma de suas formas mais desafiadoras. Mas esta constru-
ção da cultura clássica, fiel à tradição da Antiguidade greco-latina, que tem
orientado nosso olhar investigativo, não é a única forma de reprewentação
do nosso oficio. Os gritos em muitas sociedades africanas, por exemplo,
são também referências no que diz respeito à narração de histórias, como
guardiões da memória; assim como pajés ou xamãs também são referên-
cias nesse aspecto em muitas sociedades indígenas aqui no Brasil. (Pereira;
Monteiro, 2013, p.8)
Os velhos marcos históricos estão sendo revistos, mesmo que paulatina-
mente, podendo-se introduzir uma história da Antiguidade pelas sociedades
indígenas, pela diversidade de uma história econômica da agricultura ou por
uma história social pelo trabalho escravo criador das riquezas que sustentam
o sistema capitalista do mercantilismo ao neoliberalismo, de uma história das
sociedades constituídas antes do aparecimento da escrita, da formação de uma
civilização americana miscigenada.
A constituição dessa nova proposta de História, assim como de outras
disciplinas, no entanto, tem se realizado sob novos embates e confrontos com

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a nova política estabelecida após 2016, mas já visíveis em currículos de estados
e municípios na primeira década do século XXI. Alguns dos atuais currículos de
História, como em São Paulo faz Escola – uma proposta curricular para o Estado
implememtada em 2008, indicam um retorno a determinados conceitos e expli-
citam de forma mais evidente que o objetivo da história é o estudo do tempo do
capitalismo (Proposta curricular do estado de São Paulo: História). A história da
Idade Antiga mantém a concepção de sociedade atrasada x sociedade moderna,
a História medieval, limitada a uma configuração do feudalismo da cristandade,
se interessa apenas pelo seu declínio que propicia o advento da burguesia e do
capitalismo mercantil, e a Idade Moderna e a Contemporânea se consolidam
pelo triunfo do capitalismo em sua expansão mundial, pelas suas revoluções in-
dustriais e pelas guerras mundiais. E a história do Brasil e dos demais países pe-
riféricos ao capitalismo continuam sem importância como conteúdos relevantes.
A construção de “uma base nacional comum curricular” (BNCC), prevista
pela LDB de 1996, em processo de finalização, tem se realizado de forma iné-
dita com prioridade a interlocutores internacionais e, internamente, com uma
exclusão quase que total das universidades, delegou sua elaboração a gestores
empresariais cujos princípios se fundamentam nas premissas do Banco Mundial.
Sob essa política, os currículos brasileiros ficam submetidos a uma avaliação
externa, que passa a determinar conteúdos e métodos sob modelo internacio-
nal. Uma primeira consequência desse modelo imposto externamente reside na
perda do poder dos professores na organização das suas aulas assim como seu o
poder de criação, de adaptações metodológicas e mesmo de opções de materiais
didáticos diante de uma realidade educacional caracterizada por uma enorme di-
ferenciação cultural e socioeconômica nas salas de cursos noturnos, de Educação
de Jovens e Adultos...
A opção da política educacional brasileira tem ocasionado questionamentos
sobre a concepção de conhecimento escolar e sobre o papel dos professores no
atual modelo pedagógico em que os métodos de ensino tendem a uma submis-
são tecnológica controlada pelas mídias eletrônicas. A BNCC aponta para uma
“modernização” dos conteúdos e dos métodos escolares tendo como premissas
as novas vivências da geração das mídias, do individualismo do jovem cidadão
consumidor cujo sonho é se integrar ao sistema capitalista globalizado que o
torna dependente da aquisição contínua das novas tecnologias. Nesse contexto,
os currículos de História podem ser transformados novamente em currículos
voltados para a difusão de uma religiosidade, que na atualidade corresponde à
introjeção do capitalismo como religião conforme Max Weber (1967) e Walter
Benjamin (2013) já haviam anunciado.
Pelas propostas atuais, em âmbito internacional, muitos dos pressupostos
humanistas estão sendo relegados e considerados implicitamente retrógrados.
Pelos projetos do moderno capitalismo a educação deve se submeter exclusi-
vamente à constituição de identidades integrantes do mundo globalizado, com

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 143


total diluição das diferenças. E sob essa concepção de “todos iguais” torna-se
possível estabelecer formas de avaliação internacional com pretensões de con-
trole sobre conteúdos, métodos em escala internacional. Assim, a formação das
futuras gerações deve, necessariamente, basear-se em uma aprendizagem eletrô-
nica que exige uma reorganização pedagógica para que se possa elevar o capital
humano ao status do capital financeiro. O controle dos currículos pela lógica do
mercado é, portanto, estratégico e proporciona o domínio sobre o tempo pre-
sente e futuro dos alunos. A avaliação do ensino torna-se uma tarefa externa à
sala de aula a ser exercida por intermédio de materiais didáticos majoritariamen-
te tecnológicos produzidos também por empresas internacionais e por sistemas
avaliativos que limitam a atuação e o poder dos professores. Tal perspectiva
indica um retorno aos métodos instrucionais catequéticos uma vez que se torna
fundamental treinar, sistematicamente, os alunos para que tenham êxito nas res-
postas aos testes de múltipla escolha.
Ao finalizar algumas reflexões sobre a trajetória do ensino de História en-
tre os séculos XVI aos dias atuais, cabe uma indagação: como situar o ensino de
História em um currículo tecnicista em confronto com um currículo das huma-
nidades científicas ou simplesmente humanista?

Notas
1 As pesquisas sobre história do ensino de História tem ampliado muito conforme ba-
lanços apresentados em eventos da área de ensino: Encontro Nacional do Ensino de
História (ENPEH), Perspectivas do Ensino de História e GT de Ensino de História da
Associação Nacional de Professores de História (ANPUH Brasil e regionais).
2 O historiador David Hamilton (2002, p.196) considera a educação como “um pro-
cesso de empoderamento, [...] uma resposta a um eterno desafio humano. Ela explora
o potencial que os seres humanos têm de transcender os limites da evolução biológica
e almeja garantir que a mudança social agregada seja mais rápida do que a evolução
biológica da espécie humana”.
3 Martim Francisco Ribeiro de Andrada havia apresentado esta proposta para ser imple-
mentada na capitania de São Paulo e foi publicada na Memória sobre a Reforma dos
Estudos na Capitania de São Paulo, em 1816, após ter tido parecer desfavorável à sua
execução.
4 A proposta Instrução Pública e organização do ensino de Condorcet apresentada em
1792 como presidente da Comissão de instrução Pública da Assembleia Legislativa
Francesa, pelo seu caráter revolucionário quanto à criação da escola pública moderna
sob uma concepção democrática, foi objeto de vários trabalhos na história da edu-
cação, sendo o mais recente Instrução Pública e projeto civilizador, de Carlota Boto
(2017).
5 Esse Projeto de Lei sobre a Instrução Pública do Império do Brazil, após ter sido
debatido e reformulado, serviu de base para a primeira Lei de Ensino Primário de 15
de outubro de 1827.

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6 Julius Frank estudou na Universidade de Gottingen, importante centro de difusão da
obra de Kant e sob esta influência, tornou-se defensor de ideias liberais que o levaram
a fundar em 1831, em São Paulo, uma sociedade filantrópica secreta, a Burschenschaft
(ou Bucha) que defendia idéias republicanas e abolicionistas e dela participaram mui-
tos estudantes da Academia paulista (Deaecto, 2011; Gomes, 2016).
7 O poema “Vozes d’África” foi escrito por Castro Alves em São Paulo no dia 11 de
junho de 1868.
8 O historiador Victor Duruy (1811-1894), discípulo de Michelet e Edgar Guinet, foi
ministro da Instrução Pública da França entre 1863 a 1868 e destacou-se pela defesa
da laicização do ensino. Foi autor de obras didáticas de História adotadas nos liceus
franceses e introduziu a nova divisão dos períodos históricos, acrescentando a História
Contemporânea cujo marco inicial, por ele determinado, era o Congresso de Viena
de 1815.
9 Charles Seignobos (1854-1942) foi adepto da escola metódica, com inspiração nos
trabalhos do alemão Leopoldo Von Ranke (1795-1880), defendeu estudos históricos
científicos empiristas e negava referências às filosofias positivistas. Sua obra didática,
Histoire de la civilisation au moyen- age et dans les temps modernes (1886) foi usada em
escolas brasileiras e posteriormente traduzida pela editora Francisco Alves.
10 Manoel Bomfim foi professor da Escola Normal do Rio de Janeiro, director do Pe-
dagogium e ocupou o cargo de Diretor de Instrução publica no Rio de Janeiro e
destacou-se como importante intelectual, autor de várias obras de história (América
Latina (1905), O Brasil na América (1929), O Brasil na História(1930) e foi autor
de Através do Brasil (1910), em co-autoria com Olavo Bilac, um dos livros didáticos
de maior circulação nas escolas primárias até os anos de 1960.
11 Trata-se da obra de Rocha Pombo (1900). Compêndio de História da América.
12 A História Nova do Brasil, elaborada em 1963 pela jovem “turma”de historiadores do
ISEB”, Pedro de Alcântara, Mauricio de Mello, Rubem Cesar, Pedro Celso Cavalcan-
ti, Joel Rufino, sob a coordenação de Nelson Werneck Sodré, teve como objetivo a
renovação dos estudos da história para as escolas brasileiras, e tornou-se um marco na
história da repressão do regime militar. A obra didática introduziu, pela primeira vez,
uma interpretação marxista da história brasileira e seus autores sofreram uma ofensiva
“reacionária virulenta”, que a tornou emblemática na história do livro didático brasi-
leiro.
13 Muitas inovações realizadas nas décadas de 1950 e 1960 eram de escolas experimen-
tais, vocacionais e e escolas de Aplicação criadas para os cursos de formação dos docen-
tes junto às Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras das Universidades.

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resumo – O texto apresenta o percurso do ensino de História no Brasil a partir de sua


inserção nos currículos das Humanidades propostas para uma educação escolar nos paí-
ses católicos ocidentais. A trajetória da História como disciplina escolar é apresentada
em meio aos confrontos sobre seus objetivos para a formação de uma elite política e
econômica caracterizada por uma prática de exclusão dos diferentes grupos sociais dos
sistemas de ensino dos séculos XIX ao XXI. O ensino de História é apresentado pelas
determinações das políticas educacionais e práticas dos professores no processo de cria-
ção de conteúdos e métodos nos currículos das Humanidades clássicas ao científico pelo
qual constituíram conceitos de História da Civilização, História Sagrada, História do
Brasil, História das Sociedades.
palavras-chave: Currículo, Ensino de História, Humanidades clássicas, Humanidades
científicas
abstract – These reflections present the trajectory of history teaching in Brazil from
its insertion in the curricula of the Humanities proposed for a school education in the
western Catholic countries. The trajectory of history as a school discipline is presented
amidst the confrontations about its objectives for the education of a political and eco-
nomic elite characterized by a practice of exclusion of different social groups from the
education systems in the nineteenth to the twenty-first century. The teaching of history
is presented by the determinations of the educational policies and the practices of the

148 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


teachers in the process of creating contents and methods in the curricula of the classical
Humanities to the scientific by which they established the concepts of History of Civi-
lization, Sacred History, History of Brazil, History of Societies.
keywords: Curricula, History teaching, Classical Humanities, Scientific Humanities.

Circe Fernandes Bittencourt é mestre e doutora em História Social pela USP, professora
aposentada da Faculdade de Educação da USP, professora de Pós-graduação em Edu-
cação, História, Política, Sociedade da Pontificia Universidade Católica de São Paulo.
@ – circe@usp.br
Recebido em 28.5.2018 e aceito em 26.6.2018.
I
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 149


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73

HISTÓRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL:


UMA PROPOSTA DE PERIODIZAÇÃO1

Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt


Universidade Federal do Paraná, Brasil

 

Resumo
O trabalho se insere no projeto de investigação sobre a construção da História como disciplina
escolar no Brasil e toma, como fonte principal, resultados de pesquisas já realizadas em manuais
de didática da História, destinado a professores. Tem como objetivo identificar elementos constitu-
tivos do processo de construção da história do ensino de História, tendo como referência o concei-
to de código disciplinar da História (Fernandez Cuesta, 1998). Resultados, ainda que parciais,
indicam a predominância de uma separação entre a História e a didática da história, indiciária da
centralidade do ensino e aprendizagem histórica, pautada em concepções oriundas da psicologia
e da didática geral, apontando lacunas dos processos de ensino e aprendizagem fundamentados
no método e na cognição situados na própria ciência da história. Ademais, verificou-se também
que a consolidação do código disciplinar da história no Brasil teve influência das políticas e teorias
educacionais originadas no aparelho de Estado. A partir dessas sistematizações, há indicativos da
necessidade de continuidade das investigações, no sentido de recuperar elementos dos textos
visíveis (como manuais, experiências curriculares) e dos textos invisíveis (como a prática dos pro-
fessores e a participação dos alunos na relação ensino e aprendizagem), com o objetivo de apon-
tar as relações entre micro e macro manifestações do código disciplinar da história, nos diferentes
períodos da história do ensino da história no Brasil, tendo como referência a relação dialógica en-
tre a cultura histórica e a cultura escolar.
Palavras-chave: história do ensino de história, código disciplinar da história, didática da história.

HISTORY OF THE HISTORY TEACHING IN BRAZIL: A


PROPOSAL OF PERIODIZATION

Abstract
The work is part of the research project about the history of the construction of History as school
subject in Brazil, taking as the most important sources the researches already carried out about
didactic of History’s textbooks for teachers.Its main objective is to identify the constituent elements
of the construction’s process of the history of the History teaching, with the reference to the con-
cept disciplinary code of History (Fernandez Cuesta, 1998). Results, even if partial, indicated the

1
Texto apresentado no 17º Encontro da Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da
Educação - Asphe, em 14 de setembro 2011, realizado na Universidade Federal de Santa Maria/RS.
Revista História da Educação - RHE Porto Alegre v. 16 n. 37 Maio/ago. 2012 p. 73-91
74
predominance of a separation between History and the didactic of History, evidentiary of the cen-
trality of historical teaching and learning grounded on conceptions derived from psychology and
general didactic, pointing out gaps in the processes of teaching and learning based in the method
and cognition situated within the very science of history. Moreover, one also verified that the con-
solidation of the disciplinary code of history in Brazil was greatly influenced by educational politics
and theories originated in the state apparatus.Based on this systematization, there is evidence of
the need for continuity of research in order to retrieve elements of the visible texts (as textbooks,
curricular experiences) and invisible texts (such as teachers’ practice and students’ participation in
the relationship between teaching and learning), with the aim of pointing out dialectically the rela-
tionship between micro and macro events of the disciplinary code of history at different periods of
the history of the history teaching in Brazil. All this, with reference to a dialogical relationship be-
tween the historical culture and school culture.
Key-words: history of the history teaching, disciplinary code of history, didactic of history.

HISTORIA DE LA ENSEÑANZA DE LA HISTORIA EN BRASIL:


UNA PROPUESTA DE PERIODIZACIÓN

Resumen
El trabajo es parte del proyecto de investigación sobre la historia de la construcción de la Historia
como una asignatura escolar en Brasil, tomando como fuente principal investigaciones ya realiza-
das en los manuales de didáctica de la historia, para los maestros. Tiene como objetivo principal
identificar los elementos constitutivos de la construcción de la historia de la enseñanza de la histo-
ria, con referencia al concepto de código disciplinar de la Historia (Fernández Cuesta, 1998). Re-
sultados, aunque parciales, indican el predominio de una separación entre la historia y la didáctica
de la historia, prueba de la centralidad de la enseñanza y el aprendizaje basado en concepciones
derivadas de la psicología y didáctica general, señalando las lagunas en los procesos de ense-
ñanza y aprendizaje basados en el método y en la cognición situados en la ciencia de la historia.
Por otra parte, se constató también que la consolidación del código disciplinar de la historia en
Brasil ha recibido gran influencia por las políticas y teorías educativas originadas en el aparato
estatal. Con base en esta sistematización, hay evidencia de la necesidad de continuidad de las
investigaciones, con el fin de recuperar los elementos de los textos visibles (tal como manuales,
experiencias curriculares) y de los textos invisibles (por ejemplo, la práctica de los profesores y la
participación de los alumnos en la relación enseñanza y aprendizaje), con el objetivo de señalar
las relaciones entre los eventos de micro y macro en la historia del código disciplinar de la historia,
en los diferentes períodos de la historia de la enseñanza de la historia de Brasil, con referencia la
relación dialógica entre la cultura histórica y cultura escolar.
Palabras-clave: historia de la enseñanza de la historia, código disciplinar de la historia, didáctica
de la historia.

L'HISTOIRE DE L'ENSEIGNEMENT DE L'HISTOIRE AU BRESIL:


UNE PROPOSITION DE DECOUPER UNE DUREE EN PERIODES HISTORIQUES
CARACTERISTIQUES

Résumé
Le travail est une partie du projet de recherche sur l'histoire de la construction de l'histoire en tant
que discipline scolaire au Brésil, en prenant comme sa source primaire de recherche déjà
effectués dans les manuels de la didactique de l'histoire, pour les enseignants. Il a comme
principal objectif identifier lês éléments dans le processus de la construction de l'histoire de
l'enseignement de l'histoire, en prenant comme référence le concept de code disciplinaire de
l'histoire (Fernandez Cuesta, 1998). Les résultats, même partiales, sont un indicatif de la
prédominance d'une séparation entre l'histoire et la didactique de l'histoire, indicatif de la
centralisation de l'enseignement et de l'apprentissage historique basée sur conceptions provenant
de la psychologie et de la didactique générale, signalant certaines lacunes de l'enseignement et
des processus d'apprentissage fondées sur la méthode et de cognition située dans la science elle-
même de l'histoire. En outre, il a été également constaté que la consolidation du code disciplinaire
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75
de l'histoire du Brésil avait une grande influence des politiques et théories pédagogiques
provenaient de l'appareil de l'État. À partir de cettes systématisations, il y a indicatifs de la
nécessité de poursuivre la recherche afin de récupérer des éléments textes visibles (tels que
manuels, expérience curriculaire et des textes invisibles (tels que la pratique des enseignants et la
participation des étudiants à la relation l'enseignement et l'apprentissage) dans le but de souligner
les relations entre le micro et macro manifestations du code disciplinaire de l'histoire, à différentes
périodes de l'histoire de l'enseignement de l'histoire au Brésil, ayant comme une référence à la
relation dialogique entre la culture de l'histoire et la culture d’école.
Mots-clé: histoire de l'enseignement de l’histoire, code disciplinaire de l'histoire, didactique de
l'histoire

Introdução
ste estudo insere-se no conjunto de reflexões sobre a história das discipli-

E nas escolares (Chervel, 1990; Citron, 1992; Goodson, 1997), as quais têm
apontado a necessidade de se entender os saberes escolares em sua es-
pecificidade, articulados às mudanças e continuidades inscritas nos ritmos
próprios da longa duração, relacionados com os contextos e estruturas de cada socieda-
de, tomando como fonte principal pesquisas realizadas em manuais didáticos destinados
a professores. Os manuais didáticos são considerados uma das fontes importantes para a
reconstituição da história das disciplinas escolares no Brasil, como atestam trabalhos co-
mo os de Bittencourt (1998), Freitas (2006) e Mattos (1998), incluindo-se também os ma-
nuais destinados a professores de História. 2
Para entender a construção da trajetória do ensino de História no Brasil, é importan-
te levar em consideração que esse processo insere-se no conjunto de estudos sobre o
campo da história das disciplinas escolares, que vem atraindo a atenção de historiadores,
como atestam os trabalhos de Terrise (2001), os quais apontam a constituição de um
campo específico de conhecimento, a partir do conceito de “referência”.
Neste sentido, Moniot (2001) assinala que a construção do campo específico do en-
sino da História é um fazer-se instituído a partir da referência à história dos historiadores e
ao conceito de transposição didática3, à sua própria constituição enquanto disciplina esco-

2
Desde 1999 coordeno a pesquisa Ensinar a ensinar: pesquisa e análise de manuais destinados a
professores de História. Além de resultados parciais já publicados em anais de eventos e como capitulos
de livros, foram desenvolvidas uma dissertação de mestrado, ver RODRIGUES Jr., Osvaldo. Os manuais
de didática da história e a constituição de uma epistemologia da didática da história. Curitiba: UFPR,
2010. 154f. Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-
Graduação em Educação e URBAN, Ana Claudia. Didática da história: percursos de um código disciplinar
no Brasil e na Espanha. Curitiba: UFPR, 2009. 246f. Tese (doutorado em História), Universidade Federal
do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Educação.
3
Sobre o conceito de transposição didática ver CHEVALLARD, Yvez. La transposición didactica. Buenos
Aires: Aique, 2000.
Revista História da Educação - RHE Porto Alegre v. 16 n. 37 Maio/ago. 2012 p. 73-91
76
lar4 e à ideia de prática social de referência5 pressupondo, portanto, uma determinada
cultura política e uma filosofia social.
Na esteira desses trabalhos, é consensual entre os pesquisadores, a constatação da
existência de uma história do ensino de História no Brasil. Mas, indo além, constata-se a
existência de um conjunto de conhecimentos específicos, cuja constituição, funcionamen-
to, objetivos e objetos têm como pressuposto o como ensinar a História e a perspectiva de
que esse processo está relacionado com a história das formas de escolarização, confor-
me atestam os estudos de Choppin (1992). Segundo Briand/Chapoulie (1993), o processo
de escolarização deve ser analisado como um fenômeno relacionado à experiência pró-
pria da instituição escolar e com os sujeitos nela envolvidos.
Ademais, segundo estes autores, diz respeito a um movimento inserido na dinâmica
das articulações entre as instituições escolares e determinados projetos e propostas polí-
ticas. Trata-se de um processo paulatino de produção de referências sociais, tendo a es-
cola ou a forma escolar de socialização e transmissão de conhecimentos como eixos arti-
culadores de sentidos e significados, ao qual dá o nome de escolarização do social. Nes-
se processo, a noção de cultura escolar é particularmente importante para a compreensão
deste fenômeno porque

ela se permite articular, descrever e analisar, de uma forma muito rica e


complexa, os elementos-chave que compõem o fenômeno educativo, tais
como os tempos, os espaços, os sujeitos, os conhecimentos e as práticas
escolares (Faria Filho, 1998, p. 17).

Admite-se, ainda, a noção de cultura escolar como uma das categorias norteadoras
para a análise da constituição da História enquanto um conhecimento escolarizado, pois,
a cultura escolar pode ser considerada como um conjunto de teorias, ideias, princípios,
rituais, hábitos e práticas, formas de fazer e de pensar, mentalidades e comportamentos
sedimentados ao longo do tempo sob a forma de tradições, regularidades e regras

que se trasmiten de generación en generación y que proporcionan estrate-


gias para integrarse en dichas instituciones, para interactuar y para llevar
cabo, sobre todo en el aula, las tareas cotidianas que de cada uno se es-
peran, asi como hacer frente a las exigencias y limitaciones que dichas ta-
reas o conllevan. Sus rasgos caracteristicos serian la continuidad y persis-

4
MONIOT, H. (2001). O autor faz referência ao conceito de disciplina escolar a partir dos trabalhos de
André Chervel. Ver CHERVEL, História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa.
Revista Teoria & Educaçao, n. 2, 1990, p. 177-227.
5
O conceito de prática social como referência para a transposição didática do saber cientifico ao saber
escolar foi apreendido por Moniot a partir das reflexões de DEVELAY, M. De l’apprentissage à
l’enseignement. Paris: ESF, 1992. Segundo Develay, a transposição didática tem como referencia
também as práticas sociais porque implica um trabalho de axiologizaçao e de didatizaçao do saber
cientifico para o saber a ser ensinado.
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77
tencia en el tiempo, su insitucionalización y su relativa autonomia que le
permite generar productos específicos - por exemplo, las disciplinas esco-
lares. (Viñao Frago, 1998, p. 169)

No entanto, a especificidade do campo do ensino de História impõe a necessidade


de se analisar a natureza desse conhecimento e sua relação com as culturas escolares.
Nesse sentido, os trabalhos de Rüsen (2010; 1994) podem ser tomados como referência
para a construção de um diálogo entre o ensino da História e as perspectivas dessa
ciência, levando-se em conta a categoria de cultura histórica. Para esse autor, cultura
histórica pode ser considerada uma categoria de análise que trata dos fenômenos
relacionados ao papel da memória no espaço público, referindo-se ao

boom contínuo da história, à grande atenção que tem suscitado os debates


acadêmicos fora do círculo dos especialistas e à surpreendente
sensibilidade do público ao uso dos argumentos históricos para fins
políticos. (Rüsen, 1994, p. 2)

No pensamento ruseniano, cultura histórica inclui todos os procedimentos da


memória histórica pública e diz respeito às diferentes estratégias de investigação
científico-acadêmica, de criação artística, da luta política pelo poder, da educação escolar
e extraescolar. Essas estratégias conformam as diferentes dimensões da cultura histórica,
como a dimensão estética, a política, a cognitiva e a dimensão ética, relacionadas às
diferentes sociedades, em diferentes épocas.
Entendendo a cultura escolar e a cultura histórica numa perspectiva relacional e
dialética pode-se afirmar que, no processo de constituição da História como disciplina
escolar no Brasil, ocorreu o mesmo fenômeno da Alemanha. Com a institucionalização e
profissionalização da história, a didática da história, isto é, a questão do seu ensino e
aprendizagem

deixou de ser o centro de reflexão dos historiadores sobre sua própria


profissão. O resultado dessa atitude foi empurrar a didática da história para
mais perto da pedagogia e abrir uma lacuna entre ela e os estudos
normais de história. A fascinação com as reformas curriculares tendeu a
subestimar as características peculiares da história como campo de
aprendizado. (Rüsen, 2010, p.31)

A partir dessas reflexões é que se propõe uma periodização da história do ensino de


história no Brasil, abordada a partir do conceito de código disciplinar. Esse conceito foi
proposto por Fernandez Cuesta (1998) em pesquisa sobre a história do ensino de história,
na Espanha. Para esse autor, o processo de constituição do código disciplinar relaciona-
se à construção do processo de escolarização e de formação da cultura escolar e, “en
virtud de una acción recontextualizadora efectuada por vários agentes sociales, convierte
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78
el saber acadêmico en conocimiento escolar legítimo, trasmuta la ciência que se hace en
la ciência que se enseña” (Fernandez Cuesta, 1998, p. 102).
Essa transmutação a que se refere Fernandez Cuesta, implica na produção do que
ele chama de “textos visíveis do código disciplinar”, tais como currículos e manuais
didáticos, além dos “textos invisíveis do código disciplinar”, isto é, as práticas dos
profesores e dos alunos em aulas de História. Com base nesse conceito e partir de
investigações já realizadas em manuais destinados a professores e em propostas
curriculares, produzidos no Brasil6, foram sistematizados elementos para construção da
seguinte periodização do ensino de História no Brasil: construção do código disciplinar da
história no Brasil (1838-1931); consolidação do código disciplinar da história no Brasil
(1931-1971); crise do código disciplinar da história no Brasil (1971-1984); reconstrução do
código disciplinar da história no Brasil (1984-?).

Construção do código disciplinar da História no Brasil: 1838-1931


Pode-se afirmar que a construção do código disciplinar da História no Brasil tem
como marco institucional fundador o Regulamento de 1838 do Colégio D. Pedro II, que
determinou a inserção da História como conteúdo no currículo. Em obra considerada uma
referência para o estudo da história do ensino de História no Brasil, Nadai (1993), além de
considerar esse momento como o marco fundador da história enquanto disciplina escolar
no Brasil, indica alguns matizes que delinearam o que pode ser considerado como
elementos do código disciplinar da História na sociedade brasileira no período.
Entre eles estão algumas experiências particularizadas de ensino, a presença de
certos conteúdos de História em algumas séries da escola e a produção de manuais
didáticos destinados a alunos. Da mesma, pode ser considerada a existência de uma forte
influência das concepções européias da história, particularmente a francesa, fazendo com
que, inicialmente,

a História da Europa Ocidental fosse apresentada como a verdadeira


História da Civilização. A História pátria surgia como seu apêndice, sem
um corpo autônomo e ocupando papel extremamente secundário.
Relagada aos anos finais dos ginásios, com número ínfimo de aulas, sem
uma estrutura própria, consistia em um repositório de biografias de
homens ilustres, de datas e de batalhas (Nadai, 1993, p. 146)

6
Sobre essa investigação, podem ser citados os trabalhos de SCHMIDT, Maria Auxiliadora. O aprender da
história no Brasil: trajetórias e perspectivas. In. OLIVEIRA, Margarida Marias Dias et al. Ensino de história:
múltiplos ensinos em múltiplos espaços. Natal: UFRN, 2008; bem como a História com pedagogia: a
contribuição de Jonathas Serrano na construção do código disciplinar da história no Brasil. Revista
Brasileira de História. São Paulo: Anpuh, v. 24, n. 48, jul-dez, 2004, p. 189-211.
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Esse processo de construção da História como disciplina escolar insere-se, a partir
da segunda metade do século 19, no próprio movimento de construção e consolidação do
Estado Nacional, no qual se destacam os embates entre monarquistas e republicanos e a
necessidade de definição de uma identidade nacional. A proclamação da República, em
1889, explicita a importância da História, principalmente a História do Brasil, para a
formação de um determinado tipo de cidadão:

se atentarmos para as questões postas pelos programas, currículos,


materiais de ensino e pelas produções didáticas, a História, enquanto
disciplina educativa, ocupou, nas suas origens, não só no Estado de São
Paulo mas em todas as escolas secundárias e primárias (oficiais e
particulares) que foram sendo implantadas pelo território nacional um lugar
específico, que pode ser sintetizado nas representações que procuravam
expressar as ideias de nação e de cidadão embasadas na identidade
comum de seus variados grupos étnicos e classes sociais constitutivos da
nacionalidade brasileira. (Nadai, 1993, p. 149)

Esse movimento consolida-se com a Revolução de 1930, no bojo do movimento de


defesa da importância da educação para a formação do cidadão e o desenvolvimento do
país. Entre as bandeiras de luta dos educadores brasileiros deste período, estavam a
necessidade da difusão da escola, principalmente a escola pública; a formação
profissional dos novos mestres e a renovação pedagógica. Este tripé, difusão da escola,
formação de professores e renovação pedagógica, em função das demandas nacionais,
embasa e estimula a produção e difusão de elementos constitutivos de uma cultura
escolar, como os manuais didáticos para alunos e manuais de didática da História
destinados à formação renovada de professores. Essas publicações destinadas a
professores consolidar-se-ão como documentos importantes para orientação das práticas
pedagógicas escolares, de modo geral, e de História, em particular.
Observa-se que, gradualmente e a partir de um diálogo com outras ciências, como a
psicologia e a sociologia, foi ocorrendo a chamada pedagogização da História. Essa pe-
dagogização caracterizou-se, principalmente, pela incorporação de aspectos relacionados
aos métodos e técnicas de ensino e aos estudos referentes à personalidade e psicologia
do educando, importados da Psicologia e da Didática Geral, indicando a existência de um
novo tipo de conhecimento ou de uma didática específica, cujos conteúdos destinavam-se
ao ensino e aprendizagem da história.
A forma da transposição didática do conhecimento histórico em conhecimento histó-
rico escolar que constituiu o substrato de conteúdos próprios desta nova disciplina não
levou em consideração, neste momento, o fato de que o método de ensino pressupõe
uma relação intrínseca com o método e a filosofia da própria ciência, o qual delimita, não

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somente os objetivos e finalidades do ensino, mas também a sua forma de ensinar. Pelo
contrário, a transposição didática do conhecimento histórico em conhecimento escolar
pautou-se, sobretudo, na imposição dos aspectos psicológicos e pedagógicos. Essa pers-
pectiva ainda predomina, ainda que de forma diferenciada, em propostas de ensino de
História no Brasil.

Consolidação do código disciplinar da História no Brasil: 1931-1971


Considera-se que, a partir de 1931, tem início um processo de consolidação do
código disciplinar da História. As transformações neste sentido inserem-se no contexto da
sociedade brasileira pós-Revolução de 1930, que concretizam a institucionalização de
alguns projetos de reformas educacionais, como a reforma Francisco Campos, de 1931,
pois

a revolução de 30 colocou fim ao regime federativo criado pela


Constituição de 1891 e o poder político passou a ser centralizado pelo
governo federal. Alegando a necessidade de substituir as antiquadas
instituições políticas brasileiras, Getúlio Vargas prometia a modernização
do país mediante a reformulação do seu modelo econômico e jurídico-
político. Nesse contexto, a reforma Francisco Campos pode ser visto como
“fator de coesão nacional” e “a História era tida como disciplina que, por
excelência, formava os estudantes para o exercício da cidadania e seus
programas incorporavam essa concepção. (Abud, 1993, p. 165).

Na opinião de Abud (1993), as instruções metodológicas para o ensino de História,


da reforma de 1931, apresentavam os objetivos e as técnicas necessárias para
desenvolver o programa, bem como os aspectos da disciplina a serem enfatizados. Neste
sentido,

o fato que primeiramente salta à vista é a concepção de História como


conhecimento produzido e como disciplina escolar. A História é concebida
como um produto acabado, positivo, que tem na escola uma função
pragmática e utilitária, na medida em que ela serve à educação política e à
familiarização com os problemas que o desenvolvimento impõe ao Brasil.
(Abud, 1993, p. 166)

As instruções metodológicas como a grande novidade da Reforma Francisco


Campos já havia sido enfatizado por Hollanda (1957). A presença destas instruções é um
fato demonstrativo da consolidação da História como disciplina escolar obrigatória para
todas as escolas. Nelas, a ênfase na renovação metodológica como o caminho para a
construção de um ensino necessário ao cidadão mais crítico, também pode ser articulada
ao contexto educacional da época, pois é revelador do momento de expansão das idéias
da Escola Nova no Brasil (Nagle, 1976).

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81
As instruções metodológicas de História sugeridas em 1931 revelam uma tentativa
de renovação metodológica do ensino, particularmente no que se refere às sugestões de
procedimentos técnicos que o professor deveria utilizar para motivar o aluno, ressaltando
e valorizando alguns aspectos, como a necessidade da relação dos conteúdos com o
presente; a utilização do método biográfico (vida de grandes homens, heróis e condutores
de homens, estudados somente a partir de sua inserção nos contextos da sociedade em
que viveram), o privilegiamento dos fatos econômicos, além da valorização dos aspectos
éticos, em consonância com o pensamento de John Dewey, cuja influência fazia-se
presente devido à publicação de sua obra no Brasil e, para quem, a história é um

instrumento para analysar-se a urdidura da presente vida social, e para


tornar conhecidas as forças que crearam os seus padrões. A significação
moral da história está no seu poder de cultivar uma intelligencia
socializada. (Dewey, 1936, p. 274)

Em 1942, ou seja, 11 anos após a reforma Francisco Campos, foi elaborada a nova
Lei Orgânica do Ensino Secundário, também conhecida como reforma Gustavo
Capanema. Um dos principais princípios desta nova lei era assentado na proposta de
autonomia didática para o professor, princípio este também defendido por Jonathas
Serrano, um dos relatores da lei. Entre suas propostas principais estava dividir cada
disciplina a partir dos programas e unidades didáticas.
Nessa lei não se ousou reunir a História e a Geografia com a Sociologia (eliminada
da escola secundária pela Reforma Capanema) e uma instrução cívica renovada, num
conjunto mais amplo e melhor articulado, semelhante aos social studies dos currículos
norte-americanos (Hollanda, 1957, p.1 56), o que revela a manutenção na ênfase aos
conteúdos específicos da História como componentes curriculares obrigatórios, fato que,
gradativamente, foi sendo absorvido pela implantação de projetos que viriam desaguar na
imposição dos Estudos Sociais pelo governo militar, em 1971.
Esta centralidade nos conteúdos específicos da História também foi incorporada pela
portaria n. 1.045, de 1951, da reforma da Escola Secundária brasileira, cujos princípios
básicos para o ensino de História eram a valorização dos fatos do presente e deles partir
para o passado; desenvolver um ensino intuitivo e crítico; focalizar os indivíduos como
expressões do meio social e, principalmente, desenvolver os processos de fixação,
investigação, raciocinativos, ilustrativos e outros, abrangendo esquemas, formas de
representação, literatura, exame, discussão, e também onde os julgamentos de valores
eram recomendados. Fazendo apelo à pedagogia da escola nova, a portaria ressaltava e

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82
enfatizava a importância do estudo da história do passado para a compreensão do
presente.
A proposição desta portaria pelo MEC fez parte um conjunto de medidas
constitutivas do processo de redemocratização da sociedade brasileira após o período da
ditadura Getulista, Estado Novo (1937-1945). No campo educacional, um dos principais
investimentos do governo brasileiro no período (1945-1961) foi a valorização, expansão e
modernização da escola secundária (Nunes, 1980).
Já em 1946, o Ministério da Educação e Cultura havia criado a Diretoria do Ensino
Secundário cujos objetivos eram, entre outros, orientar e fiscalizar a aplicação das leis, a
melhoria das condições materiais e do ensino, a inspeção das escolas, a melhoria do
ensino secundário e a sua adequação prática aos interesses e necessidades da crescente
clientela urbana. Devido ao grande volume de trabalho, as atividades passaram a ser
descentralizadas e foram sendo criados diferentes órgãos da administração pública para
executá-las. Entre eles, merecem destaques o Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos, criado em 1953, e a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino
Secundário - Cades, criada também em 1953. Entre as ações principais desses órgãos
estava a publicação de periódicos e manuais destinados à formação complementar dos
professores brasileiros.
Segundo Nunes, (1980), o decreto n. 34.638, da Diretoria do Ensino Secundário do
Ministério da Educação, de 17 de novembro de 1953, ainda no período do segundo
governo de Getúlio Vargas, criou a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão da Escola
Secundária, com o objetivo precípuo de elevar o nível do ensino secundário no Brasil.
Nesse sentido, a autora destaca alguns objetivos da Cades:
a) tornar a educação secundária mais ajustada aos interesses e possibilidades dos
estudantes, bem como às reais condições e necessidades do meio a que a escola serve,
conferindo ao ensino secundário maior eficácia e sentido social;
b) possibilitar a maior número de jovens brasileiros acesso à escola secundária.
Para atingir estas finalidades, a Cades desenvolveria algumas ações, como:
realização de cursos e estágios para aperfeiçoamento de professores e outros
trabalhadores escolares; distribuição de bolsas de estudos a professores secundários
para desenvolvimento profissional em cursos e estágios promovidos por entidades
nacionais e estrangeiras; assistência técnica a estabelecimentos de ensino secundário;
realização de estudos dos programas do curso secundário e dos métodos de ensino, a fim
de melhor ajustar o ensino aos interesses dos alunos e às condições e exigências do
meio; elaboração de material didático; providências para melhoria e barateamento do livro
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didático; elaboração e aplicação de avaliações do rendimento escolar; organização do
serviço de orientação educacional nas escolas de ensino secundário; plano de concessão
de bolsas de estudos a alunos intelectualmente bem dotados e carentes; renovação do
mobiliário, oficinas e laboratórios escolares; estudos sobre as necessidades e
possibilidades do ensino secundário no país; divulgação e publicização de experiências
de interesse do ensino secundário; promoção de intercâmbios nacionais e internacionais
e esclarecimento da opinião pública sobre a importância de uma boa escola secundária.
Durante as décadas de 1950 e 1960 merecem destaque as ações da Cades no que
se refere aos cursos de treinamento de professores para a escola secundária, a
organização de simpósio e jornadas para capacitação do pessoal técnico das escolas e a
produção de publicações destinadas à formação de professores, nomeadamente a
Revista Escola Secundária, que circulou entre 1957 e 1963 com 19 números.
No que se refere ao ensino de História, a Revista incluiu, em todos os seus números,
artigos produzidos por professores de História e destinados a professores de História,
num total de 13 autores e 21 artigos. O número 14, de setembro de 1960, na seção
Noticiário, publicou a informação sobre a realização de seminários, entre eles um de
História:

A Diretoria do Ensino Secundário, através da Cades, organizou para os


meses de setembro e outubro, no auditório da Cades, Av. Rio Branco, 115,
9o.andar, seminários de Matemática, Inglês, História e Desenho,
destinados especialmente aos professores que têm lecionado nos cursos
de Orientação promovidos pela Cades, podendo ser frequentado por
quaisquer outros professores do ensino secundário e por alunos dos
cursos de Didática das faculdades de Filosofia. (Cades, Seminários, 1960,
p.39).

A programação para o seminário era a seguinte: 1. Objetivos do Ensino da História


na Escola Secundária: prof. Guy de Hollanda (6 de setembro); 2. Métodos e processos do
ensino da História na escola secundária: prof. Hugo Weiss (13 de setembro); 3. A
formação do professor de História: prof. Eremildo Luiz Vianna (s/d); 4. A motivação no
Ensino da História: prof. Arthur Bernardes Weiss (s/d); 5. A verificação da Aprendizagem
em História: prof. James Braga Vieira da Fonseca (4 de outubro); 6. O estudo dirigido na
aprendizagem da História: prof. Vicente Tapajós (11 de outubro); 7. O material didático e
sua utilização no ensino da História: prof. Cláudio José de Figueiredo (18 de outubro); 8.
A História no currículo secundário brasileiro: programas oficiais, sua interpretação. Prof.
Roberto Accioli (25 de outubro). A definição e opção pela ênfase em ítens como métodos
e processos de ensino, motivação, estudo dirigido e material didático são evidências da
valorização dos aspectos metodológicos do ensino.
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Assim, do ponto de vista do método de ensino da História, estão explícitas, nesse
momento, as perspectivas metodológicas já evidenciadas na reforma de 1931, bem como
na obra pioneira de Jonatas Serrano.7 Questões como o emprego de unidades didáticas
no ensino de História, uso do museu, uso de documentos históricos na sala de aula e até
a proposta de se criar um ensino de História Bossa Nova, também estão presentes nas
publicações da Cades, nesse período.
No entanto, uma nova mudança se aproximava, pois o anúncio dos Estudos Sociais
já se fazia presente no horizonte, mesmo que, oficialmente, a lei não o tenha acolhido
como proposta. É importante lembrar que, desde 1934, a proposição dos Estudos Sociais
era sugerida para a escola primária, integrando a reforma realizada por Anísio Teixeira no
antigo Distrito Federal.
Simultaneamente à difusão pela Cades, de idéias e propostas relacionadas a uma
determinada visão da Didática da História, o outro órgão de divulgação do Ministério da
Educação e Cultura, o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos - Inep -, veiculava e
defendia determinados princípios para o ensino da História mais ligados ao projeto dos
Estudos Sociais, destinados à formação do professor do Ensino Primário, na perspectiva
da educação complementar.
Com esta perspectiva, o Inep publicou, em 1964, a obra de Castro e Gaudenzi
(1964), Estudos Sociais na Escola Primária, destinada a professores da Escola Normal e
outros que já atuavam de 1a a 4a séries (antigo curso primário). Ao contrário do manual
destinado a professores da escola secundária, esse manual não revelava nenhuma
preocupação em relacionar o trabalho do historiador com o do professor e nem
apresentava sinais ou referências à renovação historiográfica dos Annales.
A perspectiva central desta obra era o social studies, de influência norte-americana,
a qual tomava como idéia central para o ensino de História a interdisciplinaridade e a
concepção de currículo por círculos concêntricos: família, escola, bairro, cidade e país. O
princípio da criança como centro do ensino era nitidamente expresso nesta proposta, mas
os conteúdos da História eram diluídos em relação a outros conteúdos disciplinares.
Ademais, a finalidade da aprendizagem era inserir o educando em um meio cada vez
mais amplo, tendo como norte a questão da nacionalidade construída a partir do
conhecimento do legado das gerações do passado.

7
Jonathas Serrano foi autor de dois manuais de didática da História destinados a professores, considerados
os primeiros manuais do gênero produzidos e publicados no Brasil. Ver: SERRANO, Jonathas.
Methodologia da história na aula primária. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1917 e Como se ensina a
história. São Paulo: Melhoramentos, 1935.
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Na esteira do que afirma Fernandez Cuesta (1998), o código disciplinar da História
no Brasil consolidou-se sob a demarcação de fortes relações de poder do Estado na
configuração da História como disciplina escolar. Estas relações puderam ser detectadas,
principalmente, na articulação orgânica entre intelectuais cuja experiência se pautava na
prática do magistério e na produção e divulgação de determinadas políticas educacionais
governamentais das décadas de 1950 e 1960.
Vale destacar que é justamente neste período que se observa o início de uma crise
no código disciplinar da História, explicitada pelo embate entre proposições relacionadas
com o social studies e com a manutenção da História como disciplina autônoma.

Crise do código disciplinar da História no Brasil: 1971-1984


Um diagnóstico realizado por Leite (1969) pode ser considerado indiciário do início
de uma crise no código disciplinar da História, provocada, essencialmente, pela gradativa
consolidação do ensino de Estudos Sociais no Brasil. Segundo a autora,

A partir de 1960 vem-se propondo substituir o ensino de História e Geogra-


fia pelo de Estudos Sociais. No ginásio, as alterações têm sido mais pro-
fundas: reduziu-se a proporção do ensino de História Geral, e ampliou-se o
de História nacional e local. Os Estudos Sociais, introduzidos nos cursos
vocacionais e experimentais em 1959, tendem a se alastrar e substituir o
ensino autônomo de História e Geografia, completando-o com noções de
Economia e Sociologia. (Leite, 1969, p.10).

Foi o regime militar, no governo do general Emilio Garrastazu Médici, que impôs a lei
n. 5.692, de 1971, na qual o ensino de Estudos Sociais foi compulsoriamente tornado o-
brigatório e estendido para as oito séries do antigo Primeiro Grau. O parecer n. 853/71,
imposto pelo Conselho Federal de Educação, fixou o núcleo comum obrigatório para os
currículos do 1o e 2o graus.
A doutrina do currículo da lei n. 5.692/71 impôs os Estudos Sociais como matéria8.
Desta forma, os conteúdos poderiam ser tratados como Atividades (1a a 4a séries sob o
nome de Integração Social); Áreas de Estudo (5a a 8a séries, sob o nome de Estudos So-
ciais) e Disciplina (somente no 2o Grau). Como se pode observar, o ensino de História
ficou restrito ao Segundo Grau, inserido na grade curricular com carga horária máxima de
duas horas semanais, durante um ano deste curso:

8
Segundo o parecer, “matéria é todo campo de conhecimentos fixado ou relacionado pelos conselhos de
educação e, em alguns casos, acrescentados pela escola, antes de sua reapresentaçao, nos curriculos
plenos, sob a forma de “didaticamente assimiláveis” de atividades, áreas de estudo ou disciplina”.
o
(MEC/Ed. Expressão e Cultura. Habilitações profissionais no ensino do 2 . Grau. Diretrizes, normas,
legislação, 1972.
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Acreditava-se que a adoção de Estudos Sociais deveria desenvolver nos
alunos noções de espaço e tempo a partir dos estudos da escola, do bair-
ro, da casa, da rua, para ir se ampliando, chegando ao estudo da cidade,
do estado e assim por diante. Ainda eram reforçadas pelo ensino de Estu-
dos Sociais, noções como: pátria, nação, igualdade, liberdade, bem como
a valorização dos heróis nacionais dentro de uma ótica que tentava legiti-
mar, pelo controle do ensino, a política do Estado e da classe dominante,
anulando a liberdade de formação e de pensamento. (Urban, 2011, p. 10)

A obrigatoriedade do ensino de Estudos Sociais percorreria todo o período entre


1964 e 1984, momento em que os professores e profissionais da História foram objetos
de perseguições e censuras. A imposição dos Estudos Sociais foi acompanhada de um
grande movimento de resistência e luta pela volta do ensino de História nas escolas brasi-
leiras, configurando um novo momento na construção do código disciplinar da História.

A reconstrução do código disciplinar da História: 1984/...


A fase de reconstrução do código disciplinar da história pode ser contextualizada a
partir de dois acontecimentos principais. O primeiro refere-se ao movimento de saída do
país do período da ditadura militar e o segundo, ao movimento de crítica aos Estudos
Sociais, proposta que vigorava oficialmente na escola fundamental, desde 1971. Esse
movimento contou com a participação de educadores e professores de História, sendo
especialmente liderado pela Associação Nacional de Professores de História - Anpuh.
Após o fim do período da ditadura militar, houve um crescimento do movimento pela
chamada “volta do ensino de História” à escola básica. Nesse contexto, há que se
destacar a existência de várias propostas curriculares, 23 no total, segundo estudos de
Bittencourt (1998), elaboradas por diferentes sistemas estaduais e municipais de
educação, e sua discussão por professores de História de escolas públicas, em diferentes
Estados brasileiros.
Um marco definidor desse projeto de reconstrução do código disciplinar da História,
pode ser considerada a proposta dos Parâmetros Curriculares de História, encaminhada
pelo Ministério da Educação aos educadores brasileiros, em 1997 e 1998, contendo, em
sua estrutura, os Eixos Temáticos sugeridos para o ensino de História de 1º ao 4º ciclos,
do ensino fundamental. O documento introdutório dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(Brasil, 1998a.) partiu do pressuposto de que os fracassos escolares seriam os
indicadores da necessidade de se tomar como referência uma nova concepção de ensino
e aprendizagem que propiciasse maior interação dos alunos com a realidade. A partir
desses pressupostos, o aluno

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ao aprender a resolver problemas e a construir atitudes em relação às
metas que quer atingir nas mais diversa situações de vida, faz aquisições
dos domínios cognitivo e linguístico, que incluem formas de comunicaçao e
de representaçao espaciais, temporais e gráficas. (Brasil, 1998, p. 73)

O documento enfatiza a forma pela qual jovens e crianças podem ter acesso ao
conhecimento histórico, tais como convívio social e familiar, festejos de caráter local,
regional, nacional e mundial e pelos meios de comunicação, como a televisão. Parte,
ainda, do pressuposto de que os jovens sempre participam, a seu modo, do trabalho de
memória que recria e interpreta o tempo e a História e agregam às suas vivências,
informações, explicações e valores oferecidos na sala de aula.
Indica, assim, um segundo entendimento, de que as informações e questões
históricas podem ser incorporadas significativamente pelo adolescente, que as associa,
relaciona, confronta e generaliza, porque o que se torna significativo e relevante consolida
seu aprendizado. (Brasil, 1998b, p. 38).
O documento também estabelece a diferenciação entre um saber que os alunos
adquirem de modo informal e um outro, que denomina de saber escolar. Nessa
perspectiva, reafirma que

apropriação de noções, métodos e temas próprios do conhecimento


histórico, pelo saber histórico escolar, nao significa que se pretende fazer
do aluno um “pequeno historiador” e nem que ele deve ser capaz de
escrever monografias. A intenção é que ele desenvolva a capacidade de
observar, de extrair informações e de interpretar algumas características
da realidade do seu entorno, de estabelecer algumas relações e
confrontações entre informações atuais e históricas, de datar e localizar as
suas ações e as de outras pessoas no tempo e no espaço e, em certa
medida, poder relativizar questões específicas de sua época. (Brasil,
1998b, p. 40)

Observa-se a apropriação de uma concepção de ensino e aprendizagem que, em


primeiro lugar, diferencia o conhecimento escolar do científico, no processo de
aprendizagem, confundindo o aprender com o ensinar, esse sim, objeto da transposição
didática. Esse ponto de partida não leva em conta que, na perspectiva da cognição
situada na história como ciência de referência para a aprendizagem do aluno, a forma
pela qual o conhecimento a ser aprendido pelo aluno deve ter como base a própria
racionalidade histórica, e os processos cognitivos devem ser os mesmos da própria
epistemologia da ciência da História.
Outra questão a destacar na concepção de aprendizagem referida nos PCNs de
História é a ênfase na temporalidade cronológica como forma de orientação temporal.
Segundo Rüsen (2004), a orientaçao no tempo e sobre o tempo organiza-se a partir dos
casos do passado e sua articulação com o presente, a partir de categorias históricas,
Revista História da Educação - RHE Porto Alegre v. 16 n. 37 Maio/ago. 2012 p. 73-91
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sendo a datação uma estratégia apenas. Ainda com relaçao ao terceiro ciclo do ensino
fundamental, o objetivo da aprendizagem histõrica é a formação de procedimentos e
atitudes que favoreçam a compreensão dos temas em dimensões históricas, por meio de
diferentes atividades, como pesquisas e estudos do meio, não incorporando os processos
cognitivos que constituem uma aprendizagem propriamente histórica.
Ademais, ao descrever os objetivos da aprendizagem histórica, o documento
seleciona alguns objetivos, tais como “conhecer”, “caracterizar”, “refletir” e “utilizar fontes
históricas”, indicando uma delimitaçao de categorias do pensamento que indicam ações a
serem desenvolvidas em relação a determinados conteúdos, e não formas de
compreensões históricas.
Essa mesma perspectiva está presente nos pressupostos e objetivos para o quarto
ciclo, de maneira mais ampliada. Segundo Rüsen (2010), os processos de aprendizado
da História precisam ser pensados para além de serem considerados como processos
dirigíveis e controláveis, mas, em que pese o fato de estar ainda em construção uma
teoria da aprendizagem histórica referenciada em uma cognição situada na própria
História, isso pode ser fecundado por concepções teóricas do aprendizado histórico que
tenham como finalidade principal a formação e desenvolvimento da consciência histórica,
constituindo-se, assim, a possibilidade de uma relação mais orgânica entre a cultura
histórica e a cultura escolar de uma sociedade.

Considerações finais
De modo geral, pode-se afirmar que, a partir de meados da década de 1980 até o
fim da década de 1990, ocorreu um confronto de propostas que buscam novos referenci-
ais para o ensino de História. De um lado, diferentes projetos reformistas que acolhem,
alguns deles, perspectivas teóricas e metodológicas mais pertinentes à história dos mo-
vimentos sociais e do trabalho; de outro, projetos inovadores que sugerem adoções de
novas concepções metodológicas como a introdução da história temática mais articulada
a alguns autores dos Annales, sugerida, entre outros, pelos parâmetros curriculares na-
cionais (1998b). Este confronto está relacionado ao contexto em que a sociedade brasilei-
ra, recém-saída do período ditatorial, empreende a busca dos seus novos caminhos.
A produção dos parâmetros curriculares nacionais, especificamente o de História,
pode ser vista como um dos momentos deste confronto. Pode-se ver este embate
antecipado no documento de análise das propostas curriculares de história para o ensino
fundamental (Bittencourt, 1998b). Este documento foi feito com a finalidade de subsidiar a
elaboração dos parâmetros curriculares nacionais para o ensino fundamental e baseia-se
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na análise das propostas elaboradas pelas secretarias de Educação de vários Estados
brasileiros, entre 1984 e 1995.
Um dos pontos a serem destacados neste documento é a crítica que faz quanto às
contradições entre os discursos predominantes nessas propostas, o qual considera
bastante genérico e incapaz de auxiliar quanto às opções que devem ser feitas em
relação a enfoques teóricos divergentes em determinado campo de conhecimento.
Ademais, considera que o posicionamento das reformas em favor das classes populares
não é suficiente pois não supre as deficiências do processo de reelaboração didática
exigido pela transposição didática das respectivas disciplinas acadêmicas em saber
escolar pois, na perspectiva dessa análise, trata-se de um discurso com clara conotação
política que tem demonstrado contudo, no mais das vezes, frágil intersecção com as
proposições dos especialistas que efetivamente tem conferido a tônica ao currículo.
Observa-se, nessas afirmações, alguns dos pressupostos que norteariam a elabora-
ção dos parâmetros curriculares nacionais como um todo e, em particular, as diretrizes
sugeridas para o ensino de História, nas quais predominam aspectos multifacetados de
concepções historiográficas e a ênfase na concepção de currículo elaborada por especia-
listas, pautada na perspectiva atitudinal e procedimental dos conteúdos.
A transformação de determinados procedimentos e atitudes, em conteúdos pertinen-
tes ao ensino de História, pode ser entendida a partir de referenciais paradigmáticos em
que a própria noção de conteúdo é empobrecida, fragmentada e pragmatizada e onde os
temas perderam seu valor conceitual, tornando-se apenas palavras, pois não estão orga-
nicamente articulados com a pluralidade das experiências daqueles que lutam e fazem a
história do povo brasileiro, no presente e no passado e, portanto, não respondem às suas
demandas de transformação da sociedade contemporânea.
Constata-se, gradativamente, que a separação entre a Didática da História e a Histó-
ria acadêmica foi contribuindo para a formação de um código disciplinar da História com
características específicas em cada momento da sociedade brasileira, mas que, de modo
geral, empurrou as questões do ensino e aprendizagem da História tendencialmente para
o âmbito da cultura escolar e foi a partir desse reajustamento que a dimensão cognitiva do
ensino da História passou a se articular com a dimensão política da cultura histórica.
Nesse processo, as questões relacionadas à aprendizagem histórica e, portanto, ao
seu ensino, saíram da pauta dos historiadores e entraram, prioritariamente, na pauta das
políticas educacionais, ocorrendo um deslocamento entre a cultura histórica e a cultura
escolar, em que a perspectiva instrumental, particularmente centralizada na preocupação
com a transposição didática e com os métodos de ensino, tem sido privilegiada.
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No entanto, no século 21, tentativas de reconstrução do código disciplinar da Histó-
ria têm levado, não só no Brasil, mas em diferentes países, a debates e propostas que,
dialogicamente, procuram estabelecer articulações mais orgânicas entre as dimensões da
cultura histórica e a cultura escolar, não num sentido instrumental, mas numa perspectiva
mais emancipatória.

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MARIA AUXILIADORA MOREIRA DOS SANTOS SCHMIDT é doutora em Histó-


ria Social das Ideias, pela Universidade Federal do Paraná; com estágio pós
doutoral em Didática da História, pela Universidade Nova de Lisboa. Professo-
ra na Universidade Federal do Paraná e coordenadora do Laboratório de Pes-
quisa em Educação Histórica - http://www.lapeduh.ufpr.br.
Endereço: Rua 15 de Novembro, 1299 - 80060-000 - Curitiba - PR - Brasil
E-mail: dolinha08@uol.com.br.

Recebido 10 de novembro de 2011.


Aceito em 14 de março de 2012.

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DOI: 10.5935/0103-4014.20180036
Ensino de Humanidades

Ensino de História
e seus conteúdos
ANTONIA TERRA DE CALAZANS FERNANDES I

O
s conteúdos tratados no ensino de História interferem nos valores e
crenças dos estudantes diante das questões do mundo atual. Por conta
da Lei 11.645/08, por exemplo, que estabelece a obrigatoriedade do en-
sino da história indígena na escola, em uma situação diagnóstica em uma escola
pública em São Paulo, para identificar o que os alunos já sabiam a respeito dos
indígenas, foi colhido o seguinte texto:
Havia uma índia. Nasceu e cresceu na aldeia. Nunca teve estudo e nem
mesmo sabia falar o português. Passava fome por este fato (por não saber
falar a língua). Por esse motivo, vivia triste e solitária.
Um dia, um grupo de voluntários chegou na aldeia e resolveu ajudar essa
índia triste e solitária.
Dando roupas, materiais e fazendo a matrícula dela. Colocaram ela na es-
cola e deram um lar para ela.
Quando adotada, a menina virou uma artesã bem conhecida e famosa.
Agradecendo e sempre mantendo contato com seus amigos voluntários.
(1º ano – Ensino Médio – EJA)
A aluna que escreveu o texto expressa algumas ideias difundidas social-
mente para as populações indígenas. Segundo ela, por não terem elementos da
cultura não índia, as populações indígenas são pobres, solitárias, passam fome e
precisam de ajudas caridosas para sobreviverem. E, para serem felizes, elas pre-
cisam dos elementos da cultura não índia, como frequentar a escola e conseguir
um trabalho remunerado.
Também em escola pública, com a intenção de intervir nessas e outras
representações sociais dos alunos a respeito das populações indígenas, a partir
do desenvolvimento de uma atividade de leitura de documentos históricos que
problematizavam situações que foram impostas oficialmente a essas populações,
junto com documentos escritos por indígenas questionando essas políticas, foi
colhido o seguinte texto síntese escrito pelos estudantes:
Antes eles sofreram violência e estão reivindicando território, direitos de
sobreviver a margem do rio, para ter vida digna, sem violência e justa, para
eles não serem expulsos de onde eles moram porque eles perderam as es-
peranças…
Estão denunciando os direitos de sobrevivência para o governo e justiça fe-
deral… De sobreviver dignamente e sem violência no seu território antigo.
(8º ano – Ensino Fundamental)

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 151


Nesse último exemplo, as situações escolares de estudos da história in-
dígena incluíram as lutas dessas populações e como elas têm interpretado as
situações históricas por elas vividas, favorecendo aos estudantes aproximações
com as realidades complexas de interação e conflitos entre os colonizadores, in-
dígenas e políticas estatais instituídas ao longo da história brasileira, e como essas
realidades foram vivenciadas e respondidas pelos diferentes sujeitos históricos
envolvidos. A seleção de conteúdos e as intervenções didáticas podem, assim,
fazer diferença na formação dos estudantes.
A proposta desse texto, partindo desses exemplos, é identificar os conteú-
dos de História ensinados na escola, que de algum modo, por sua oficialidade,
interferem nas interpretações que os alunos projetam para as vivências sociais.
Ou seja, a intenção é analisar os conteúdos de ensino de História, entendidos
como seleções, proposições e saberes legitimados, no interior da cultura, para
serem ensinados nas escolas (Forquin, 1992, p.31). A finalidade é, então, de-
pendendo da época, e disponibilidade de fontes documentais, identificar histo-
ricamente os conteúdos propostos na legislação, em livros didáticos, em progra-
mas escolares e/ ou em currículos institucionalizados.
A premissa é que os conteúdos formais, organizados para o ensino, são
parcialmente inclusos naquilo que o professor seleciona para ensinar em aula,
e representam apenas uma potencialidade daquilo que os alunos aprendem. A
aprendizagem escolar é muito mais ampla do que está estabelecido em lei, nos
programas ou nos manuais. Mas o que é posto como conteúdo formal revela
aproximações com o que pode ser apreendido no ambiente escolar.
A preocupação com a história dos conteúdos decorre da constatação de
que, nas últimas décadas, há embates de diferentes proposições do que deve ser
ensinado na escola, chamando a atenção para quais têm sido, em outras épocas,
as seleções legitimadas para o ensino de História.
A análise aqui empreendida considera preliminarmente que a seleção dos
conteúdos escolares de história expressa uma parcela importante do saber es-
colar, e, nesse sentido, também é influenciada por diálogos estabelecidos com
as tradições e memórias da escola, com reflexões historiográficas (novos temas,
conceitos, pesquisas, documentação…), com exigências da sociedade de cada
época (que delineiam suas finalidades políticas, sociais e educativas), como tam-
bém com proposições dos estudos e reflexões educacionais. Assim, constante-
mente, há demandas para mudanças e/ou permanências.
Por conta desses inúmeros fatores que moldam os saberes escolares (Cher-
vel, 1990, p.181), a seleção de conteúdos de História tem sido variável. Em
parte, eles permanecem por conta de memórias consolidadas ou resignificadas
nas tradições de ensino; sofrem influência de debates intelectuais e políticos
e de projetos educacionais apresentados e/ou reformados por diferentes regi-
mes; são reforçados em materiais escolares e em seus vínculos com avaliações
institucionais e particularidades do mercado editorial; são reorganizados pelos

152 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


sistemas oficiais de avaliação da aprendizagem; são ampliados ou reduzidos por
demandas de movimentos sociais; e incorporam diferentes fundamentos históri-
cos, didáticos e pedagógicos.
Há, nesse texto, a premissa de que os conteúdos escolares do ensino de
História são conhecimentos que incluem a seleção de fatos, sujeitos, tempos e
conceitos históricos, e seus entrelaçamentos em narrativas e/ou dissertações,
para serem estudados na escola. Mas esse delineamento tem sido ampliado, em
diferentes épocas, para inclusão de outras exigências ou finalidades educativas,
que vão além do conhecimento específico.1
Exemplo disso, na década de 1990, foram propostos os denominados
conteúdos “procedimentais” e “atitudinais” (Zaballa, 1996, p.161), presentes
em currículos das diferentes disciplinas. Também naquele contexto, para dar
conta de questões interdisciplinares para entendimento da realidade contem-
porânea, foram propostos “temas transversais”, a serem estudados por toda a
escola, como cidadania, meio ambiente e pluralidade cultural. Outras vezes, as
proposições de conteúdos fogem do modelo descritivo ou de enumeração, para
serem substituídos por orientações pedagógicas de avaliação das aprendizagens
finais dos estudantes, através do que se denomina de “habilidades” e “compe-
tências” (Perrenauld, 2000, p.15). Diante dessa diversidade de encaminhamen-
tos do que ensinar, a ideia é aqui contribuir para refletir a respeito de alguns
conteúdos que têm sido apresentados para o ensino de História, por meio de
alguns recortes temáticos e temporais, com foco na história dos povos indígenas
e afro-brasileiros.
Ensino de História do Brasil
Proposições do que ensinar de história na escola foram sendo moldadas
ao longo dos séculos, e podem ser identificadas na legislação, nos materiais e
nos programas escolares. Uma constatação frequente, por exemplo, desde os
mais antigos livros de ensino de História do Brasil, até os elaborados ao longo
dos séculos XX e XXI, é a predominância de uma narrativa que inicia na Euro-
pa – “Saindo do Tejo…” (Benevides, 1910, p.13) – e apresenta as façanhas
heroicas de quem vinha de fora, impondo uma exploração e conquista sobre
a terra e os povos que aqui viviam. Mas, claro que existiram exceções. E a
proposta aqui é identificar que histórias eram essas contadas às gerações de
alunos brasileiros.
Um dos mais antigos livros didáticos, estudados por Arlette Gasparello
(2004, p.77), como o Compêndio de História do Brasil do General J. L. de
Abreu e Lima (1943, p.1), adotado como manual para o ensino secundário,
no Colégio Pedro II, de 1850 até 1862, os conteúdos pautavam a história da
“nação”, que nas palavras do autor “apenas conta com vinte anos de existência”,
mas que retrocedia aos acontecimentos europeus de mais de quatro séculos.
Com essa orientação, os fatos históricos do livro de Abreu e Lima inicia-
vam com as grandes navegações portuguesas, com descrições episódicas, deta-

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 153


lhes dos principais eventos políticos, ações desencadeadas pelos governantes e
navegantes, enfatizando o vinculo do acontecimento com a monarquia lusa e as
benções da igreja católica. Esse “nascimento” da nação era associado ao terri-
tório, descrito em sua extensão e riquezas naturais: floretas, rios, portos, cabos,
serras, animais, vegetais e minerais. E só adiante, os povos daqui eram apre-
sentados como sujeitos coadjuvantes dos acontecimentos, caracterizados física
e culturalmente, com descrições gerais de seus costumes, divididos em tupis e
tapuias. Mas quando ao longo do livro focava os contextos das ações adminis-
trativas do domínio luso no território, o autor posiciona-se mais criticamente: os
indígenas assumiam outro papel – o de resistência à ocupação.
Os senhores portuguezes, que ambicionavam estes meios de grandeza e de
fortuna, não viram ao princípio em seus vastos domínios senão terras, de
que uma cultura pouco dispendiosa provava fertilidade, e nações estupidas,
que poderiam subjugar sem perigos, e sujeitar sem esforços.
Elles se enganavam no que respeita a este ultimo ponto: a resistência con-
tumaz da maior parte as tribos selvagens, os combates sanguinolentos que
foi preciso sustentar contra elles, seu ódio implacável, sua vingança feroz,
destruíram por muitas vezes as mais belas esperanças. (Lima, 1843, p.44)
Os esforços de colonização eram detalhadamente descritos, região por re-
gião, capitania por capitania, e os personagens portugueses eram nomeados.
Em algumas passagens, o autor expunha negativamente as ações dos indígenas e
também dos administradores lusos. No segundo caso, por exemplo, denunciou
as perseguições feitas no século XVII, no Grão-Pará e Maranhão, pelo militar
Bento Maciel Parente.
[...] o Grão Pará estava mais exposto às crueldades de Maciel do que aos
desígnios hostis dos Hollandezes. Este chefe indômito e feroz não se can-
sava de fazer aos Indios guerra de extermínio: perseguia com igual barbari-
dade aos aliados como os inimigos, os Indios pacíficos como os revoltosos.
Debaixo do pretexto de novo projeto de sublevação, prendeu vinte e quatro
chefes Tupinambás, e no mesmo dia e hora mandou-os cortar em pedaços
pelo Tapuyas, seus implacáveis adversários, servindo-se assim do ódio, que
entre si nutriam os Brasileiros,2 para subjugar e destruir. (ibidem, p.119-
20)3
Diante das guerras da colonização, Abreu e Lima não subestimou os indí-
genas, nem os africanos. Sobre a história de Palmares, escreveu:
Inimigos, quasi tão formidaveis como os selvagens Janduís, se tinham esta-
belecido desde 1630 no interior da Provincia de Pernambuco. Eram negros
escravos d’esta provincia, e de outras visinhas, que aproveitando o ensejo
favoravel da guerra com os Hollandezes, resolveram recobrar a sua liber-
dade e independencia no meio dos bosques. Quarenta foram os primeiros,
que se refugiaram armados em um grande bosque de palmeiras, donde lhes
veiu o nome de Palmares, ou Republica dos Palmares. A estes primeiros
desertores reuniram-se outros muitos, de sorte que em poucos annos o
seu numero chegou a trinta mil. Em suas excursões causavam estes negros

154 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


grandes estragos, levando a devastação e a morte a todos os estabelecimen-
tos dos colonos, a que podiam alcançar. Taes foram a origem e progressos
d’esta horda negra, que, tornando-se poderosa, pôde resistir aos Hollande-
zes victoriosos, e aos Portuguezes por mais de meio seculo, até que, livre
inteiramente o Brasil, os poderam attacar com forças respeitaveis. (ibidem,
p.133-5)4
Era uma história de guerras. Com ênfase em uma história heroica, às guer-
ras indígenas seguiram-se as guerras contra os franceses, depois holandeses, a
luta dos escravos por liberdade em Palmares, o domínio espanhol, a descoberta
de ouro e diamantes, a “revolução” em Minas, a chegada da família real ao Bra-
sil, a Guerra da Cisplatina, a revolução Pernambucana, a Revolução do Porto, o
governo de D. Pedro I, as Regências e a coroação de D. Pedro II. A História do
Brasil ficava assim dividida em oito períodos históricos, estruturada basicamente
pelas guerras e mudanças políticas e administrativas da nação.
As particularidades dos episódios, a identificação dos feitos e seus autores,
as especificações em notas de rodapé tinham aparentemente como finalidade
reunir os dados e contar a história da nação, sem preocupação mais evidente
com uma leitura mais didática dirigida aos jovens estudantes. Todavia, o título
com a designação de “compêndio” já anunciava seu vínculo com o ensino; no
seu prefácio, o autor noticiava que a obra era para “uso da mocidade brasileira”
(ibidem, p.viii); e ainda, talvez como recurso didático, estavam presentes ilustra-
ções – retratos de personagens históricos. Segundo o autor, não havia a intenção
de escrever uma obra inédita, e declarava:
[...] portanto a minha obra não é uma composição inteiramente original,
mas uma compilação de vários autores, que julguei mais habilitados, pondo
todo o meu esmero em reunir de todos eles o maior número de factos, que
me foi possível, organizando-os depois em série por meio de uma muita
exacta dedução cronológica. (ibidem, p.viii)
Como analisa Arlette Gasparello, o livro de Abreu e Lima, apesar de orien-
tado para estudos escolares, foi uma das primeiras obras de síntese da Histó-
ria do Brasil. E, como tal, foi apresentada ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB). Contudo, foi rejeitada pelo parecer redigido por Francisco
Adolfo Varnhagen. Segundo a autora, como “militar, patriota altivo e orgulhoso
de seus feitos, testemunha e ativo participante nas lutas partidárias da regência,
[Abreu e Lima] não usou meias palavras na apreciação de atitudes e posições
assumidas por pessoas ligadas ao poder e ainda vivas, além de avaliar negativa-
mente os colonos paulistas”. E, assim, “não se ajustava ao projeto da nação que
precisava ser construído” (Gasparello, 2004, p.97).
A versão histórica do livro de Abreu e Lima, mesmo rejeitada pelo IHGB,
foi difundida no material didático adotado no Colégio Pedro II durante alguns
anos, e foi referência para outros autores posteriores que também escreveram
manuais. Assim, sua versão da história brasileira influenciou, de algum modo, a
imaginação de algumas gerações.

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 155


A versão oficial do IHGB da história para ser ensinada nas escolas foi ela-
borada por outro autor de livro didático, do século XIX, Joaquim Manoel de
Macedo (1861), que foi professor do Colégio Pedro II, e que escreveu Lições
de História do Brasil – Compêndio para os alunos do 4º ano, após doze anos de
experiência como docente na instituição. Essa obra tinha como fonte histórica
básica o livro História Geral do Brasil de Francisco Varnhagen. Mais tarde, em
1863, ela teve continuidade, agora destinada ao 7º ano, com os capítulos se-
guintes da história do Brasil, chegando à coroação de D. Pedro I; e quadros cro-
nológicos pontuando datas e eventos de 1823 até 1898. Esse livro foi aprovado
para uso da instrução primária e teve onze edições (Gasparello, 2004, p.77).
No livro Lições de História do Brasil, na edição de 1861, Macedo iniciava
com um capítulo sobre as navegações, que tinha dezesseis páginas. Nele narrava
uma história com detalhe das conquistas, com glorificação dos reis e dos nave-
gadores do século XV, “infante mais vivo e impetuoso… grandiosos projectos….
bella memoria se prendem a todos os brilhantes feitos dos navegantes portur-
guezes… intelligencia esclarecida e da animação calorosa… realização de outra
verdadeiramente admiraveis e estrondosas… herança gloriosa…”. Em uma edi-
ção posterior, de 1898, o mesmo texto passou a ser mais sintético – com quatro
páginas, sem grandes detalhamentos, mas com mais exaltação das realizações
portuguesas: “maravilhou o mundo… admiráveis descobertas… grandeza dos
feitos… dotado de inteligência e vontade… hábeis pilotos… poder de sua von-
tade… inspiração de seu gênio… empenho patriótico… cheio de esperança…
o século décimo sexto ia começar com um esplendor inesperado e ainda mais
precioso e magnifico…”. Assim, era ensinada na escola, por meio de seu livro, a
exaltação dos colonizadores, entendidos como aqueles que foram construtores
e fundadores da nação.
Nos capítulos seguintes do mesmo livro, o texto de Macedo valorizava
as cerimônias com estandarte de partida da expedição de Cabral, a data espe-
cial do avistamento da terra na época da Páscoa, a missa em terra no domingo
seguinte (Pascoela) e a missa oficial com “cruz feita de um grande madeiro foi
levantada no continente com as armas d’el-rei de Portugal”, sendo assistida por
“muitos selvagens que procurarão imitar os Portuguezes em todos os signaes de
externo culto”. Macedo valorizava o vínculo da presença lusa à Igreja Católica
– “Pedr’Alvares Cabral acabava pois de plantar a cruz sagrada, divino signal do
Crhistianismo, e de assentar o padrão das armas portuguezas na terra que elle
chamou de Vera Cruz” (Macedo, 1861, p.28 e 29). Essa sequência de acon-
tecimentos, como marcos do início da história do Brasil, passou a ser também
recorrente nos manuais posteriores do século XIX e XX.
Depois das aventuras dos navegantes, Macedo reforçava a posse sobre a
terra e exaltava suas riquezas naturais – “aspecto magestoso e imponente de suas
florestas e de suas montanhas, e pelos rios caudaes”… “No seo solo correm os
maiores rios do mundo, levantão-se altas e admiraveis serras, dilatão-se exten-

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sos e fertilíssimos valles, e campos desmedidos e fecundos”. Mas, contrapunha
a exuberância da natureza à desvalorização da população indígena (Macedo,
1861, p.56).
No meio porém de toda esta brilhante e opulenta natureza, de toda estas
proporções gigantescas, que tanto excitarão a ambição europeia, cumpre
reconhecer que aos olhos dos descobridores e conquistadores do Brazil o
que e apresentou menos digno de admiração, mais pequeno, mais mesqui-
nho foi o homem que habitava, e assenhoreava esta vasta região. (ibidem,
1861, p.58)
No texto de Macedo, os povos indígenas não conquistavam a posição
de sujeitos históricos. Eram constantemente denominados como “selvagens”,
e descritos como fazendo uso de objetos rudes e atrasados. E descrito com dis-
tanciamento e estranhamento, caracterizados genericamente em alguns aspectos
físicos e culturais.
Todos estes uzos e costumes denuncião um povo na sua infancia, homens
rudes e selvagens, alheios á civilização; mas de nenhum modo apenas um
gráo acima do bruto, e incapazes de alguns nobres e generosos sentimen-
tos. (ibidem, p.65)
Depois de longa exposição depreciativa da população indígena, sem expli-
citar que tinham direito originário ao território e sem detalhar como legitimas
as resistências que fizeram à colonização,5 os capítulos tratavam da construção
patriótica do que seria no futuro o Brasil: capitães donatários, seus direitos e suas
ações administrativas; o primeiro governo geral e “seos esforços para extirpar
a desmoralisação que maculava todas a capitanias” (ibidem, p.116); o esforço
dos padres jesuítas; o segundo governo geral; a invasão dos franceses; o terceiro
governador geral e a derrota sobre os franceses e os “selvagens”; e o domínio
espanhol.
No tomo 2, anexado como continuidade dos capítulos nas edições pos-
teriores das Lições de História do Brasil, como a de 1898,6 Macedo retomava a
colonização do século XVI, a partir de 1581, com o domínio espanhol, combate
aos indígenas – “Mas a desunião do gentio veio logo entregar outra vez e para
sempre a palma da victoria à civilização” (ibidem, p.116) –, e o confronto com
os franceses, ingleses e holandeses. A principal preocupação do texto era enfa-
tizar as ações colonizadoras empreendidas pelos governadores-gerais e demais
administradores portugueses.
Quanto à presença africana no Brasil, o autor destacou o herói negro Hen-
rique Dias no contexto da guerra contra os holandeses, e dedicou um capítulo
ao quilombo dos Palmares. E ao longo da subsequente história brasileira, até a
coroação de D. Pedro I, a população africana foi mencionada apenas na Revolta
de Beckman no Maranhão. E, no índice cronológico, fez destaque para o negro
Cosme, líder da Balaiada; e para a legislação referente ao processo de fim da
escravidão.

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Como é possível constatar em outros manuais didáticos posteriores, a ver-
são da história brasileira de Macedo, de citar apenas pontualmente a presença
dos africanos e afro-brasileiros em contextos heroicos e de revoltas, foi recorren-
te, ao menos até a década de 1940.
Ainda no século XIX, foi publicada a obra Lições da História do Brasil
adaptadas à leitura das escolas, de Antonio Alvares Pereira Coruja (1877),7 que
foi professor no Rio de Janeiro e membro do IHGB. Diferente das obras ante-
riormente descritas aqui, a lição número um tinha como título “O Brasil antes
do descobrimento”.8 Assim, a história começava com as populações que habita-
vam o território entre o Rio Amazonas e a bacia do Prata, denominadas como
“gentios guerreiros”, a “grande raça dos indígenas” e a “grande raça dos Tu-
pis”. Fazia exceção para os Aimorés, considerados descendentes dos “Tapuias”,
designados como bárbaros, que comiam carne humana, selvagens, irracionais,
que não sabiam construir cabanas ou tabas.
A grande raça dos indígenas que dominava o paíz na época da conquista,
comprehendia varias tribus dístinctas com nomes particulares, que forma-
vão como outras tantas nações separadas, fallando em geral uma lingua-
guem mais ou menos semelhante. Encontravao-se na maior parte dellas
quasi os mesmos usos e costumes, manifestando todas uma propensão para
a vida errante e o desejo de perfeita independencia; pelo que não só se
achavão sempre dispostos a repelir as invasões dos vizinhos, como a oppor
resistencia à conquista dos descobridores europeus. (Coruja, 1877, p.8)
Antonio Coruja (1877, p.8) dava um tratamento mais respeitoso à deno-
minação dos povos e à descrição dos seus costumes:
No estado de pura natureza não tinhão idéa de um Deus creador; mas os
seus Pagés lhes ensinavão a existencia de um principio bom e outro malfa-
zejo. Deus ou Tupá se lhes_manifestava pelo estrondo do trovão, e tinhao
medo do Anhanga ou Jurupari, que assim denominavão o espirito maligno,
ou diabo.
Ao longo do livro, Antonio Coruja assinalava os embates entre portu-
gueses e indígenas, mas em alguns contextos posicionava-se contra as cruelda-
des dos colonizadores e a escravização. E, em diferentes passagens, pontuava as
legislações que estabeleciam ou aboliam o estado de escravidão imposto pelos
governantes,9 indo além do que os autores citados anteriormente descreviam.
Sua versão da história pode, assim, também ter contribuído para disseminar,
entre seus alunos e leitores, outras interpretações aos embates estabelecidos no
período da colonização.
Não podendo porém sujeitar o chefe Jurupari, teve que abandonar a sua
empresa retirando-se para Jaguaribe, onde cativando e vendendo os indios
prisioneiros, e usando de barbaridades com os próprios que o ajudarão, foi
por elles abandonado. Iguaes perfídias forão exercidas contra os Pitaguares
mandados de Pernambuco a defender a capitania da Bahia, ameaçada então
pelos Aimorés.

158 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


Estes e outros actos de deshumanidade praticados pelos colonos do Bra-
sil para com os indigenas, e que em parte já tinhão sido prevenidos por
leis protectoras não só d’El-Rei D. Sebastião em 1570, como de Filippe
I em 1587 e 1595 de novo obrigarão a Corte de Hespanha a revogar as
leis tendentes à escravidão dos índios, promulgando outras a favor de sua
liberdade. Mas estas leis enfraquecídas pela distancia e pela odiosidade do
poder donde emanavão, erão quasi sempre neutralisadas em sua execução.
(ibidem, p.52)
Os livros do final do século XIX e início do XX, no tratamento dado aos
indígenas, eram semelhantes ao apresentarem o capítulo sobre populações da
terra depois dos capítulos da chegada dos europeus e seus procedimentos iniciais
de administração colonial. Mas, variavam no modo de caracterizar quem eram
esses habitantes. Alguns recorriam aos estudos de Karl Friedrich Von Martius,10
classificando-os pela língua falada e descrevendo alguns de seus costumes. Ou-
tros recorriam à classificação adotada por Carlos Von Steiner, e outros ainda aos
documentos de viajantes, apresentando a diversidade de povos e muitos detalhes
de seus hábitos. Outros ainda descreviam costumes gerais para todos os povos,
como sendo eles pertencentes a um único grupo étnico. E a maioria permane-
ceu qualificando-os como selvagens e inferiores aos europeus.
No final do século XIX, contudo, começaram a aparecer novas versões.
Passou a predominar nos manuais didáticos uma história narrada a partir dos
processos civilizatórios, que influenciavam as interpretações dadas à história bra-
sileira. Na perspectiva dessa história da civilização, os povos eram classificados
por seus domínios técnicos, que lhes conferiam um lugar na escalada evolutiva.
Nesse panorama, permaneciam valores atribuídos aos indígenas como “selva-
gens” e sua caracterização pela perspectiva da “raça”. José de Sá Benevides,
no seu livro Resumo de História do Brasil, de 1911, explicava aos seus alunos
leitores:
Relativamente ao período de civilização em que se achavam, na época da
chegada dos portugueses, pode-se afirmar que era o da pedra polida, pois
[os indígenas] faziam uso do fogo, e conheciam a arte cerâmica. Entre-
tanto, ignoravam completamente os processos de fusão dos metaes. As
armas, os instrumentos e utensílios de que se serviam, são todos outros
tantos testemunhos em favor do período da pedra polida. (Benevides,
1911, p.12)
No livro História do Brasil (Edição das escolas primárias), de João Ribeiro,
datado de 1917, o terceiro capítulo recebia o título “Índios selvagens”, e o autor
descrevia-os como tendo “ínfima civilização”.
A terra então descoberta era habitada por uma gente da mais infima civili-
zação; vivia da caça e pesca, não conhecia outras armas de industria ou de
guerra senão o arco e a clava e andava em completa nudez. Entregues á
natureza, não conheciam Deus nem lei, pois não era conhecel-os possuir o
terror da superstição e o dos mais fortes. (Ribeiro, 1917, p.13)

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 159


João Ribeiro, todavia, analisando o contato entre portugueses e indígenas,
atribuía responsabilidades aos dois povos pelos conflitos desencadeados no pro-
cesso de colonização. Escreveu:
Portuguezes e indios praticavam-se mutuamente crueldades, porque não
se entendiam e nem se podiam entender, attentos os differentes gráos de
civilização. O índio tinha o sentimento da propriedade collectiva (da tribu),
mas não o tinha da « propriedade privada»; os indios não julgavam fazer
mal roubando; e assim muitos crimes que o eram para os christãos, pal’a
elles nada significavam. Por outra parte, qualquer ultrage feito a um índio
por um só portuguez, d’elle eram considerados responsaveis todos os por-
tuguezes onde os encontravam, o que fazia parecer má fé, traição ou fero-
cidade gratuita da parte dos selvagens. Os civilizados entretanto ainda hoje,
na guerra, responsabilizam povos inteiros pelos erros ou crimes de poucos
indivíduos. (Ribeiro, 1917, p.15 e 16)
Os primeiros manuais de história do Brasil eram extensos. Mas, no iní-
cio de século XX, grande parte deles foi sendo reduzida. Em 1910, José de Sá
Benevides, professor da Escola Normal de São Paulo, publicou um livro que
resumia os acontecimentos, mas se estendia em questões controversas: France-
ses ou espanhóis foram os verdadeiros descobridores do Brasil? A descoberta do
Brasil foi obra do mero acaso? Quando, como e de onde vieram tais habitantes
da América? Se não fosse o catolicismo o Brasil seria o grande bloco de conti-
nente? Se não fosse o catolicismo teria sido possível fundir uma nacionalidade
homogênea – o índio, o português e o africano? Duvidas de que a raça branca,
e os seus cruzamentos, adquiriram nessas atrozes correrias, nesses costumes de
rapina humana, instintos que fariam do brasileiro o igual do caçador de escravos
sudanês? (Benevides, 1910, p.6, 10, 56 e 57).
Diante das incertezas, Benevides optou por se basear nos estudos de Mar-
tius, que poderiam ser temporariamente aceitos, para apresentar a população
indígena, como classificada em oito línguas ou povos: “Tupys, os Gês ou Krans,
os Goytacazes, os Crens ou Guerens, os Grucks ou Côcos, os Parexis ou Parecis,
os Guaycurús ou Lengoas e os Aruaks” (Benevides, 1910, p.22). E integrada
história indígena estava a história dos jesuítas. Sua presença no Brasil perma-
neceu ao longo dos dois séculos valorizada nos manuais didáticos. Benevides,
como outros autores, defendia os jesuítas como tendo sido fundamentais para
consolidar principalmente a moral entre a população do Brasil e civiliza-la. Es-
creveu em seu livro:
Mas, com a expulsão dos Jesuítas, a civilização recuou centenas de léguas
dos centros do Brasil. As povoações do Paraná e do Rio Grande caíram
em ruinas; os índios volveram a vida selvagem; as aldeias do Amazonas
despovoaram-se, e, até hoje, reinam a solidão e o deserto, onde havia já a
sociabilidade humana. (ibidem, p.95)
João Ribeiro também avaliava a ação jesuítica em seu manual como de
valiosa importância, reforçando no imaginário histórico brasileiro a aliança entre

160 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


o Estado e a Igreja Católica, mesmo depois da consolidação da República laica
no Brasil.
A acção dos padres jesuitas, que logo no primeiro seculo diligenciaram
civilizar os indios, não os tornou mais christãos do que o podiam ser; mas
conservou-os agremiados, sem exigir maior trabalho que o que podiam dar
e sobre tudo cm muitos casos poupou-lhes a degradação, os horrores da
crueldade, das doenças e da morte ao contacto dos conquistadores, a cujo
captiveiro preferiam muitas vezes o suicídio. (Ribeiro, 1917, p.15 e 16)
João Ribeiro, em sua obra História do Brasil para o Ensino Superior, na
quinta edição de 1914, tratou de modo diferenciado a questão da escravidão
indígena e africana. Em seu texto claro e direto, sem se perder na enumeração de
acontecimentos, tratou da questão indígena em um item denominado “escravi-
dão vermelha”, denunciando e se posicionando diante das situações de violência
do conquistador português, que criava artifícios para burlar a legislação e lucrar
com a escravidão. Avaliando os confrontos entre índios e colonos, ele acreditava,
porém, na boa vontade dos jesuítas, que conquistaram a função de aldear, tute-
lar, cristianizar e alocar os índios como mão de obra. Lamentou, assim, em seu
texto, a decisão de Pombal de expulsá-los do Brasil em 1759.
Em relação à escravidão africana, João Ribeiro foi uma exceção. Abordou
essa questão especificamente, enquanto autores de sua época apenas citavam
raros episódios da presença negra no Brasil. E diante da escravidão e do tráfico
condenou o “infame comércio”. E com detalhes descreveu as conquistas, os
entrepostos portugueses na África e as nações a quem pertenciam aqueles que
eram escravizados e embarcados. E concluía:
Taes eram as fontes da escravatura. Mas o que excede ao poder de qualquer
imaginação é a narrativa hedionda d’esse commercio, os crimes e as atroci-
dades que nelle se commettiam […]
São os Tumbeiros que de presidio a presidio levam o bando de escravos, que
por sordidez vão nús, e marcados a ferro em brasa com o carimbo, para o
caso de fuga; ajoujam-os pelo pescoço com a pesada cadeia, o libambo, em
caso de rebeldia. Muitos dos miseraveis, famelicos e cançados, succumbem
na dolorosa marcha e principalmente porque a allegação da molestia para o
tumbeiro é sempre signal de manha ou mentira.
Afinal, são embarcados. A corôa portugueza cobra por cada cabeça a siza de
dezaseis cruzados e meio. No navio amontoam-se quatrocentos, quinhen-
tos no porão. De dia sobem á coberta para o banho e para dançar, de cada
vez uma porção de negros, e logo depois descem ao porão escuro, onde são
guardados e vigiados. […]
Chegam afinal ao Brasil, em cujos portos descem e acampam no oitão dos
trapiches, de tangas, semi-nús ou esfarrapados e alguns agonizantes. Se não
em viagem, ás vezes ahi o mal de Loanda, o sarampão ou as bexigas os
devastam. Ahi são vendidos segundo a figura e a compleição, para os enge-
nhos ou para a cidade. (Ribeiro, 1914, p.248 e 251)

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 161


Os vínculos do Brasil com a África por meio da escravidão e as condições
impostas aos africanos e seus descendentes nesse contexto precisaram esperar
longas décadas para serem em parte retomados por outros atores de manuais
didáticos, principalmente aqueles que foram sendo publicados com fundamen-
tação marxista a partir da década de 1980.
Na década de 1940,11 os estudos dos povos indígenas no Brasil passaram
novamente por mudanças na abordagem. Em vez de serem inseridos em um ca-
pítulo após os estudos das navegações e conquista das terras pelos portugueses,
passaram a fazer parte de um capítulo sobre a “formação étnica”, que incluía a
apresentação dos brancos, dos indígenas e dos negros. Nessa abordagem, esta-
vam autores como Joaquim Silva (1942), Basílio de Magalhães (1945) e Duílio
Ramos (1961). Igualmente, estava proposto no programa de História de 1960,
do estado de São Paulo, para a Escola Normal: “III. O povoador português; IV.
O indígena; V. O elemento africano; e VI. A etnia brasileira como resultante de
contatos raciais e culturais, miscigenação e aculturação” (Ramos, 1961).
No livro de História do Brasil de Basílio Magalhães, o autor dedicava su-
bitens do capítulo para dissertar a respeito de cada elemento que compunha
a população. No caso do “elemento branco”, ele salientava a diversidade de
europeus que estiveram no Brasil colonial, mas destacava a importância dos ibé-
ricos por contribuírem para a permanência do catolicismo, expulsando invasores
protestantes (franceses e holandeses). Em segundo lugar, o Brasil teve a felici-
dade desses primeiros colonizadores se encontrarem num período de adiantado
desenvolvimento intelectual e econômico. Enfim, afirmava que os brasileiros de-
veriam ter orgulho de descenderem dos portugueses por todas suas qualidades.
E acrescentava a ideia de que no Brasil não foi construído qualquer preconceito
de raça por conta da presença lusa.
Da missão histórica de Portugal, – a de revelar a imensidão do planeta hu-
mano para a civilização e para a cultura, – e da sua capacidade colonizadora,
é incontestavelmente o Brasil o mais belo florão.
E o brasileiro deve orgulhar-se de trazer nas veias o nobre sangue dos heróis
do pequeno reino de Afonso Henriques, porque recebeu deles todo um admi-
rável conjunto de predicados físicos, intelecluais e morais. A robustez e a co-
-ragem, a afetividade, a índole hospitaleira, o espirito de solidariedade benefi-
cente, a fé religiosa, a tendencia constante para a poesia e a arte, – tudo isso nos
veiu em grande parte de elemento português. (Magalhães, 1945, p.82 e 83)
Dedicando um longo capítulo aos indígenas, Magalhães apresentava as
hipóteses da origem dos povos da América e os debates classificatórios quanto
às diferenças entre os povos, optando pelas diferenças linguísticas, como fez
Martius no século XIX. Com esse critério, apresentava os tupi-guarani, os gês,
os aruacs e os caraíbas. Na sequência, introduzia informações etnográficas a res-
peito de suas organizações políticas, sociais, econômicas e culturais. Esse modo
de dividir, para estudar, diferentes dimensões da vida em sociedade permaneceu
enquanto estrutura para os estudos históricos em manuais didáticos posteriores.

162 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


O capítulo seguinte de Magalhães era dedicado ao elemento negro que,
nesse enfoque, passou a ser estudado em um texto específico, a ele dedicado,
como parte da população brasileira, em vez de só ser mencionado em certos
episódios, como herói ou líder de rebelião. O autor, então, justificava a vinda do
africano para o Brasil em função da não adaptação do indígena ao trabalho e por
conta das pressões dos jesuítas pela liberdade dos índios. Para o autor, além de
tudo, o elemento negro era “mais sóbrio e mais submisso”. Apresentava, então,
o vínculo da escravidão africana com as economias agrícolas, a constituição das
companhias de comércio que monopolizaram o tráfico de escravos e as origens
dos diferentes povos que aqui chegaram. Acrescentava ainda as características
étnicas desses grupos, qualificando-os pelo grau de civilização em que se encon-
travam. Afirmava que os bantos estavam mais atrasados do que os sudaneses,
que receberam alguma influência do islamismo. E que esses “mais adiantados”
foram aqueles que promoveram rebeliões, organizaram quilombos e lutaram
pela liberdade.
De modo geral, desconsiderando a difícil realidade da diáspora, o grande
sofrimento da escravidão, confundindo o negro com o sistema escravista, o au-
tor culpou-o pelos péssimos comportamentos desenvolvidos pelos brancos:
Fator preponderante da nossa economia até 1888 o elemento negro não
deixou de concorrer para a indolência e até para a dissolução moral dos
seus escravizadores. Assim, bem considerada ao seu aspecto psicológico e
amplo, a escravidão moderna foi mais funesta aos brancos do que aos pre-
tos, porquanto estes formaram para os seus descendentes livres, nas plagas
edênicas do Novo-Mundo, um berço e uma civilização, como provavel-
mente jamais teriam nas míseras cubatas e nos adustos rincões da África.
(Magalhães, 1945, p.108)
É importante salientar que Basílio de Magalhães se fundamentou em es-
tudos bibliográficos específicos para descrever os aspectos históricos e culturais
dos africanos. Em seu texto e notas de rodapé, indicava a consulta aos trabalhos
de Artur Ramos, Nina Rodrigues e Oliveira Martins.
No final do capítulo da formação étnica havia, ainda, uma quarta parte
nomeada de “Etnia brasileira”. Nela, Magalhães defendia a ideia de que o bra-
sileiro descendia dos três elementos – de três raças –, e que estava em processo
crescente de embranquecimento.
Nessa mesma abordagem da formação étnica da população brasileira era
o livro História do Brasil de Joaquim Silva, datado de 1942. A diferença em
relação ao enfoque dado por Basílio de Magalhães era no sentido de acrescentar
na apresentação de cada grupo étnico um subitem especificando a influência de
cada um dos elementos na cultura brasileira – vocabulário, alimentação, festas…
Já na versão de Duílio Ramos, nos anos de 1960, eram citados trabalhos de Sér-
gio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro; e o enfoque era mais
de valorização cultural e das resistências à colonização.

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 163


Somente não receberam passivamente os efeitos da colonização. Na de-
fesa de sua terra e de sua gente foram inimigos duros. Defenderam o que
era seu, sua segurança e sua liberdade com unhas e dentes. Foram dois os
processos que usaram: a concentração de esforços para a expulsão dos por-
tuguêses e a fuga para outros pontos quando se lhes afigurou essa a melhor
medida.
A “Confederação dos Tamoios”, bem conhecida pela participação que no
movimento contrário tiveram Nóbrega e Anchieta, foi o trabalho de maior
relêvo que os selvagens realizaram no primeiro empenho. Nessa ocasião
formaram uma superestrutura tribal para opor a mais séria resistência aos
invasores brancos. Mas os lusitanos estavam mais bem organizados e arma-
dos. Por isso venceram.
A segunda forma de defesa a que recorreram, foi a fuga para outros pontos,
para terras mais fracas, onde não podiam viver tão bem como nas que dei-
xavam. (Ramos, 1961, p.44)
O texto de Duílio Ramos, referente ao “elemento africano”, reforçava
contribuições relacionadas ao trabalho e atitudes amigáveis. Dizia, entre outras
informações: “Exibia pelo menos três pensamentos claros – agir com suavidade,
dedicar-se ao trabalho e não ser mesquinho”. E continuava: “Amava os animais.
Deles contava lindas histórias que faziam o encanto dos meninos brancos. Ama-
va a música até à paixão”. E ainda: “à dureza de coração dos senhores respon-
diam os escravos com o trato ameno, a mísera condição servil, com a dedicação
ao trabalho, cantando suas canções prediletas de suave lirismo” (Ramos, 1961,
p.46).
Os livros didáticos assinalavam mudanças no modo de apresentar aos es-
tudantes os povos indígenas e africanos. Se décadas anteriores eles estavam à
margem da história, sendo o orgulho histórico a atuação dos europeus, agora
apareciam nesse outro contexto como úteis e dando sua contribuição ao desen-
volvimento da nação. Ainda não emergiam como protagonistas. Mas, alguns de
seus elementos culturais eram eleitos como heranças a serem valorizadas.
O programa de História do Brasil, instituído pela portaria ministerial
n.724 de 4.7.1951, para o primeiro ano ginasial, especificava na segunda unida-
de o estudo dos indígenas – “O Íncola – usos e costumes – principais nações e
tribos – o selvagem brasileiro e seus contatos com os europeus”. A menção aos
africanos e seus descendentes estava no programa do quarto ano, em um capí-
tulo com o título “Formação Étnica”, dividido entre branco, selvícola, negro e
catequese. Seguindo esse programa, Alcindo Muniz de Souza, no seu manual
didático para a primeira série ginasial, avançava, em parte, no trato da questão
indígena, apresentando o decreto que instituiu o Serviço de Proteção aos índios
de 1910.
A legislação educacional da década de 1960 estabeleceu a liberdade de
currículo, sendo possível identificar nos materiais didáticos a permanência dos
temas e enfoques anteriores. Mas, na década de 1970, com a Lei 5692/71,

164 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


durante o regime militar, foram implantados os Estudos Sociais, permanecendo
a disciplina de História apenas para os últimos anos do Primeiro Grau. Nessas
duas décadas e nas seguintes, mudanças na historiografia e suas repercussões no
ensino favoreceram certa revisão das abordagens para a história indígena e afro-
-brasileira, que podem ser explorados em outros estudos.
Ensino de História Geral
A História da Pátria compartilhava com História Geral e História Univer-
sal os estudos históricos ao longo do Império. A legislação dessa época estabele-
cia incialmente, um programa que incluía estudo da História da Antiguidade, da
Idade Média e da Idade Moderna. Por volta da década de 1870, os programas
passaram a nomear essa história como História Universal. Seus conteúdos eram
descritos nos livros didáticos escritos por professores que lecionaram em escolas,
como o compêndio Justiniano José da Rocha, que ministrou aulas no Colégio
Pedro II. Nesses conteúdos, a história da humanidade era entendida a partir de
uma perspectiva cristã, tendo como referência a Bíblia católica.
Para nós, que felizmente somos catholicos, não haveria tanta dificuldade.
Temos nos nossos livros sagrados, naqueles que a fé nos diz escriptos sob
a inspiração da verdade eterna, guias infalliveis, se os soubéssemos seguir.
[…] Historia antiga, começando nos primeiros dias da creação até a divisão
definitiva do império romano entre os filhos de Theodosio (395).
[…] Os tempos primitivos do mundo e da humanidade não podem com
certeza ser conhecidos senão por quem quiser aproveitar a luz da verdade
derramada pela Bíblia. Apagar essa luz para lançar-se no meio de inda-
gações e de conjecturas é por orgulho fatal acceitar o erro, engolphar-se
em uma multiplicidade de duvidas, de obscuridades, por entre as quaes é
infallivel o naufrágio. O Gênesis nos ensina que a principio Deus creou o
mundo, tirou-o do nada por efeito de sua omnipotento vontade. (Rocha,
1860, p.IV-V, 1)
No final do século XIX e início do XX, a História Geral passou por mu-
danças. Alguns autores de manuais e em alguns programas escolares passaram a
nomeá-la de História da Civilização, com orientações fundamentadas no pensa-
mento científico positivista, e associando civilização e cristianismo. Nessa linha
de estudos históricos escolares, predominava a ideia de que a história tendia a ser
progressiva e que a humanidade estava dividida em raças, e, por sua vez, defendia
a opinião de que a raça branca era superior e construtora da civilização. Nesse
caso, as populações da África e da América eram inferiorizadas ou desapareciam
do cenário histórico quando não contribuíssem ou fossem aliadas dos europeus.
História é o registro da vida do mundo civilizado. As gentes selvagens não
teem história. A Prehistória abrange o estado anterior à organização social
e à documentação política. […]
Uma vez descoberta a América e colonizada pelos Europeus, não cessou a
barbárie dos indígenas, apenas atenuada pela catechese religiosa […].
[…] a raça negra, localizada no continente africano, é ainda hoje refratária a

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 165


uma civilização regular e progressiva. Pode apresentar espécimes individua-
es de desenvolvimento intellectual, mas não oferece exemplo algum collec-
tivo. Suas tribos nunca chegaram a constituir nações seguindo seu próprio
impulso, sua mola interior. (Lima, 1921, p.1 e 16)
Nos programas escolares, o ensino de história passou a ser oficialmente
identificado com História da Civilização em 1931. Nesse novo contexto, teori-
camente, os conteúdos deveriam tender a se distanciar das versões bíblicas, pois
a prioridade passou a ser, segundo a portaria do Ministério da Educação e Saú-
de Pública, “a formação da consciência social do aluno”, através da “educação
política, baseada na clara compreensão das necessidades da ordem coletiva e no
conhecimento das origens, dos caracteres e das estruturas das atuais instituições
políticas e administrativas”. Nas listas dos temas, propostos oficialmente, havia a
preocupação em distinguir os aspectos políticos, socioeconômicos, religiosos e
culturais, com ênfase na ideia de “evolução”. E a orientação era priorizar a His-
tória do Brasil e da América. Contudo, predominava a história europeia. Havia,
ainda, a recomendação de estudos dos grandes vultos, desbravadores, libertá-
rios, caudilhos e heróis. E era evidente uma quebra na sequência cronológica,
pois o estudo da história geral, do Brasil e das Américas não compartilhavam nas
séries os mesmos recortes temporais.
Assim, com a reforma do ensino secundário, sob a responsabilidade de
Francisco Campos, História do Brasil e História Universal foram substituídas
pela História da Civilização, indicada para os cinco anos do curso fundamental e
para os dois anos do curso complementar. Isso significava que História do Brasil
deixava de ser disciplina autônoma. E, na portaria ministerial, que estabelecia
os programas, havia a orientação de considerar a História do Brasil e a História
da América como histórias integradas. As indicações dos temas por séries esta-
beleciam dois recortes históricos, com lista de conteúdos que dessem conta da
história europeia e outra parte específica para o Brasil e a América.
No livro de Joaquim Silva, História da Civilização, para o segundo ano
ginasial, cujos temas estavam de acordo com os pontos do programa oficial e
também com o programa do Colégio Pedro II, os capítulos seguiam a reforma
implantada em 1931. Até o capítulo XLI tratava da origem do homem até a
história dos antigos romanos. A partir do capítulo XLII, os temas intercalavam
história da América e história do Brasil. No capítulo que tratava dos povos indí-
genas brasileiros, é possível identificar mudança na interpretação de até então. O
autor classificava-os como de “civilização muito rudimentar” e os localizava na
“idade neolítica” por não conhecerem os metais. Para o autor, existia até os mais
ou menos civilizados: “os índios das tribos mais civilizadas tinham tabas ou al-
deias formadas por ocas ou ranchos em torno dum pátio, a ocara” (Silva, 1933,
p.237). As diferenças entre os povos existiam por conta do local temporal que
ocupavam na escala evolutiva das civilizações, estruturadas em periodizações
que ascendiam, tendo como exemplo máximo o europeu contemporâneo. Os
diferentes grupos indígenas eram hierarquizados, assim, por grau civilizatório.

166 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


É preciso assinalar que as diversas épocas da pré-história não foram simul-
tâneas para todos os povos da terra. Os gregos ainda estavam na idade do
bronze e os habitantes do norte da Europa na da pedra e já os egípcios se
organizavam em nações e conheciam o uso do ferro. Os índios de nosso
Brasil estavam na época neolítica ao tempo de seu descobrimento, e até o
começo do século passado ainda se achavam nessa idade os selvagens da
Austrália. (Silva, 1933, p.16)
Nessa mesma linha de pensamento, no livro História do Brasil de Joaquim
Silva, apresentava a “civilização” do negro, no capítulo dedicado à formação
étnica do Brasil, como mais desenvolvidos que os indígenas por já chegarem
aqui conhecendo alguns metais, habituados à vida sedentária e por facilmente
aprenderem o uso de utensílios e ferramentas (Silva, 1942, p.102).
Para alguns autores, como Joaquim Silva, as questões da raça e da religião
cristã permaneciam junto com o critério civilizatório.
A história não se preocupa com a raça preta nos tempos antigos, pois não
chegou a civilizar-se por si mesma. A raça amarela, dos povos do oriente
e do norte asiático, teve na China uma grande civilização que por muitos
séculos ficou estacionária, mas ora se renova.
A raça branca, mais importante por sua civilização, compreende três ramos,
cuja denominação deriva de Sem, Cam e Jafet, filhos do patriarca bíblico
Noé: o semítico, o camítico e o jafético. (Silva, 1933, p.18)
Em alguns desses manuais, que incluíam também História do Brasil e da
América, o papel da Igreja Católica era muito valorizado na constituição da mo-
ral e da civilização brasileira, principalmente da ação dos jesuítas junto aos indíge-
nas. No manual de História da Civilização de Arrobas e Vidal, o texto destacava:
Se não fora o jesuíta, escreve Eduardo Prado, os portuguezes ou teriam
destruído todos os índios, ou estes teriam destruído todos os primeiros
estabelecimentos portuguezes, retardando por um ou dois séculos, quem
sabe, o povoamento e a civilização do Brasil. (Arrobas e Vidal, 1935, p.132)
Com a Reforma Capanema de 1942, e com as portarias dos anos seguin-
tes, foram instituídas no ginásio as disciplinas de História Geral e História do
Brasil, voltando essa segunda a ser autônoma. Na distribuição dos conteúdos,
houve o retorno à ordem cronológica. E, entre as décadas de 1950 e 1960, ficou
estabelecida a disciplina independente de História da América para o segundo
ano ginasial, tendo sido publicados muitos livros didáticos, com certa predomi-
nância de conteúdos da história norte-americana. Mas a mudança mais contun-
dente ocorreu na década de 1970, com a lei 5.682/71, implantando os Estudos
Sociais. A disciplina de História permaneceu nos currículos para os anos finais
do Primeiro Grau, retornando para todos os anos só a partir da década de 1980.
Demandas para ampliação dos conteúdos de História atualmente
Algumas das solicitações recentes, para os conteúdos de ensino de His-
tória, dizem respeito ao valor dado aos protagonistas das transformações histó-

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 167


ricas; outras questionam a preocupação em identificar as desigualdades, sejam
elas sociais, políticas, econômicas, desencadeando preconceitos, discriminações,
sejam impedimentos de usufruto comum do poder; e outras ainda referem-se ao
tratamento dado à história ensinada como homogênea, no sentido de não apre-
sentar debates ou divergências, sem explicitar possíveis controvérsias. Perpassam
essas diferentes questões as demandas dos movimentos sociais que, legalmente,
nas suas lutas por direito e melhores condições de vida, conseguiram estabelecer
a obrigatoriedade de serem incluídos como atuantes e valorizados nos processos
das transformações históricas. E, em reconhecimento a esse direito, tem sido
importante rever e reavaliar os silêncios, as abordagens e os valores impingidos
à imaginação de gerações, pelos enfoques históricos disseminados pela historio-
grafia e no ensino de história, durante mais de dois séculos, justificando a desi-
gualdade e a exploração por parte de elites e seus referenciais de superioridade.
Há algumas décadas, questionamentos importantes têm instigado reflexões
a respeito das escolhas da ordenação do tempo histórico nas situações de ensino.
Há críticas à apresentação única do tempo linear, influenciando os estudantes no
entendimento da trajetória incondicional dos acontecimentos, impossibilitando
reflexões que favorecem entender a história como construção, escolha, embates,
conflitos e negociações. Associada a essa concepção de linearidade, há as críticas
de os conteúdos serem encadeados em processos, que também impõem predo-
minantemente análises macro, estruturais, logicamente encadeadas, que impos-
sibilitam focar recortes temáticos particulares ou desviantes. Nessa linha crítica,
nas últimas décadas, foram sendo tecidas propostas para romper com estruturas
temporais únicas; valorizar a finalidade do ensino de possibilitar reflexões das
relações do presente com o passado, favorecer entendimento de cotidianos e
conjunturas e vislumbrar a possibilidade de cada indivíduo se projetar como
sujeito histórico, capaz de analisar e atuar nos acontecimentos contemporâneos.
A crítica ao tempo único e linear também está associada à preocupação
da permanência do recorte espacial, onde os acontecimentos históricos se de-
senrolam. Há a crítica ao “eurocentrismo”. A história do mundo sendo traçada
pelos acontecimentos europeus (“brancos” em algumas versões), restando aos
outros continentes viverem as consequências dos fatos lá desencadeados. A pre-
dominância de uma centralidade espacial, como o principal palco da história,
desdobra-se também nos outros cenários. No Brasil, por exemplo, a coloniza-
ção portuguesa e seu modelo de sociedade, predominantemente desenvolvida
no litoral, permanecem como temas principais dos estudos históricos escolares.
Os estudantes pouco estudam histórias de regiões com pouca participação na
economia rentável voltada para o pacto colonial, desencadeando pouco conhe-
cimento a respeito de outros modos de vida, como no caso da história das po-
pulações indígenas habitantes do interior do continente.
No século XXI, a concepção de conteúdos escolares também tem sido
ampliada para incluir uma diversidade de saberes decorrentes do campo da didá-

168 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


tica. Novas exigências solicitam dos docentes que organizem, para situações de
ensino, conteúdos que contemplem procedimentos de leitura, pesquisa, com-
paração, análise, reflexões críticas, confrontação de pontos de vista, distinções e
relações temporais, análises e confrontação de diferentes tipos de fontes docu-
mentais… E que também trabalhem conteúdos referentes a valores, consideran-
do que essa também é uma das finalidades da educação escolar.
Ao mesmo tempo, políticas educacionais públicas têm implantado sis-
temas de avaliação institucionais, algumas vezes divulgando antecipadamente
quais conteúdos devem ser utilizados como referência nos itens das provas. Essa
antecipação tem induzido professores e escolas a adotarem esses programas, in-
dependentemente se possuem ou não outros currículos oficiais.
Outro problema dos sistemas de avaliação é gerar índices educacionais,
para compor indicadores econômicos de desenvolvimento e orientadores de po-
líticas de investimento de capitais nos países. Essa política de avaliação e coleta
de índices tem reduzido os conteúdos escolares, inclusive o que se ensina e o
que se aprende de História, em “competências” e “habilidades”, que não são
nada além do que indicadores de apreensão de determinada racionalidade, com
finalidades que escapam ao compromisso com a formação de gerações para re-
fletirem e se posicionarem criticamente diante da realidade social e econômica.
As políticas de avaliação de livros didáticos, desde o século XIX, ora in-
dicando manuais, ora qualificando aqueles que podem ser adquirido por verba
pública, é outro fator que tem influído nos conteúdos ensinados de História.
Parâmetros estabelecidos nesses processos avaliativos tornam-se referência para
as editoras e autores lançarem ou manterem as vendas de suas mercadorias.
Nesse sentido, critérios de avaliação cerceiam ou incentivam conteúdos a serem
abordados nos manuais.
Como há fortes vínculos da educação com as questões das sociedades con-
temporâneas, os conteúdos de história na escola também têm agregado algu-
mas de suas problemáticas. É o caso, por exemplo, das relacionadas ao meio
ambiente, à qualidade da alimentação e uso e acesso à informatização. Nesse
último tema, a realidade da tecnologia da comunicação tem envolvido também
os estudos históricos escolares no reforço de uso de ferramentas de informática;
no acesso aos ambientes digitais; na verificação de veracidade das fontes de in-
formação e no reconhecimento de autorias; e no desenvolvimento de reflexões
acerca dos limites morais e éticos de seu uso.

Notas
1 Assim, como hoje em dia tem sido propostas diferentes finalidades para as disciplinas,
Annie Brutter (2005 p.11), estudando a história da disciplina escolar, comenta como
no século XVII, na Europa, os estudos humanísticos assumiam diferentes finalidades:
“os estudos humanistas pretendiam conciliar em uma mesma visão três finalidades que
nos acostumamos a separar claramente: uma finalidade prática de domínio da lingua-

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 169


gem, uma finalidade cognitiva de aquisição de conhecimentos, uma finalidade religio-
sa de acesso à ciência e à virtude. São esses três objetivos que encontramos simultanea-
mente presentes no programa de estudos, inteiramente constituído de textos vindos
da Antiguidade, como nos procedimentos de ensino: tratava-se, antes de mais nada,
de levar os alunos a exprimirem-se através de inúmeros exercícios, orais ou escritos”.
2 Referência às populações indígenas.
3 Como comparação, é importante destacar que os mesmo episódios foram qualificados
de maneiras distintas pelos autores de manuais. É o caso, por exemplo, da ação contra
os indígenas impetrada por Bento Maciel Parente. No livro História do Brasil de Ba-
sílio de Magalhães (1945, p.54), esse militar foi citado como herói por ter limpado de
índios bravos a maior parte das margens do Amazonas, recebendo em recompensa a
doação da Capitania Cabo-do-Norte.
4 Mais adiante no livro, nas páginas 217 até 219, há descrições a respeito de Palmares
e repressão ao povoado. E, em nota, nas páginas 142 e 143, o autor teceu elogios ao
herói negro Henrique Dias que atuou ao lado dos portugueses na guerra contra os
Holandeses. No segundo volume ainda, comenta a rebelião de escravos no Maranhão,
em 1838 (A Balaiada), comandada por Cosme, na página 126 (v.2).
5 Havia algumas menções aos ataques indígenas, mas sempre de modo pejorativo: “o
gentio se mostrava insolente e altanado, e atrevia-se por vezes a apresentar-se para
combater, embora soffresse constantes derrotas e fosse perseguido e castigado” (Ma-
cedo, 1861, p.121).
6 Nesta edição, com tomo I e II integrados, há mudanças nos textos dos capítulos, que
aparecem mais curtos e os acontecimentos apresentados de modo mais sintético.
7 O autor era do Rio Grande do Sul, foi professor no Rio de Janeiro e o livro Lições
de História do Brasil foi editado primeiro em 1855, com reedições em 1857, 1861,
1866, 1869, 1873 e 1877. Para saber mais sobre o autor, consultar Bastos (2006).
8 Anos depois, em 1907, outro professor de história, Capistrano de Abreu, também
inovou escrevendo o capítulo “Antecedentes indígenas”, como sendo o primeiro ca-
pítulo de sua obra Capítulos de História Colonial, voltada para os estudos históricos e
não didáticos.
9 As menções desse autor em relação aos africanos e seus descendentes só foram feitas
aos mesmos heróis e revoltas como do Quilombo dos Palmares.
10 Martius (1843/1956): “tendo para a forma do homem convergido de um modo
particular três raças, a saber: a de cor de cobro ou americana, a branca ou Caucasiana,
e enfim a preta ou etiópica. Do encontro, da mescla, das relações mutuas e mudanças
dessas três raças, formou-se a actual população, cuja historia por isso mesmo tem um
cunho muito particular”.
11 Em 1942, foi instituída a Reforma do Ensino Gustavo Capanema que reorganizou o
ensino secundário, que ficou com quatro anos de ensino ginasial e dois ou três anos de
curso colegial. Nesse último, o curso poderia propiciar formação clássica ou científica,
com a finalidade de preparação para o ensino superior.

170 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


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resumo – A partir da consideração de que hoje em dia são muitas as solicitações do


que os estudantes devem aprender no ensino de História na escola para dar conta das
problemáticas contemporâneas, este artigo procura questionar quais foram as preocu-
pações de outras épocas no ensino de História, fazendo o recorte de determinados
temas, como a história dos povos indígena e afro-brasileiros. A intenção é apresentar,
a partir de fontes disponíveis, sem esgotá-las, como a legislação e os livros didáticos,
quais conteúdos estavam sendo ensinados, quais mudanças e permanência ocorreram
em longa temporalidade, sem a pretensão de explorar, nesse momento, os contextos dos
fundamentos de tais escolhas.

172 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018


palavras-chave: Ensino de História, Livro didático, História indígena, História afro-
-brasileira.
abstract – Based on the consideration that there are many requests today for what stu-
dents should learn in the teaching of History at school to deal with contemporary pro-
blems, this article seeks to question what were the concerns of other ages with regard to
the teaching of History, including topics such as the history of indigenous peoples and
Afro-Brazilians. The intention is to present, from available sources, without exhausting
them, such as legislation and textbooks, what contents were taught, what changed and
remained the same over time, without the pretension of exploring, at this moment, the
contexts of the bases for such choices.
keywords: History teaching, Textbook, Indigenous history, Afro-Brazilian history.

Antonia Terra de Calazans Fernandes é professora do Departamento de História da Fa-


culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-
USP). @ – antoniacalazans@gmail.com
Recebido em 15.5.2018 e aceito em 18.6.2018.
I
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, São Paulo, Brasil.

ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018 173


174 ESTUDOS AVANÇADOS 32 (93), 2018
ESTUDOS RBEP
Docência em História: implicações
das novas disposições curriculares
do ensino médio
Nilton Mullet Pereira
Fernando Seffner
Carmem Zeli Gil
Carla Meinerz

Resumo

Trata-se de um exercício de escrita inédito, resultado de reflexões


realizadas pelo grupo de professores da área de ensino de História sobre
o tema do ensino médio. A preocupação central é compreender o processo
de mudanças no ensino médio propostas pelo Ministério da Educação
(MEC) e pelos governos estaduais, na perspectiva do ensino de História.
Abordamos quatro enfoques conceituais e teóricos: o primeiro refere-se
à própria compreensão dos processos de mudanças propostos e sua
relação com o ensino de História; o segundo refere-se à centralidade da
pesquisa, que assume um caráter de operador estratégico do princípio
da interdisciplinaridade e da contextualidade; o terceiro consiste na
compreensão do papel dos agentes principais do ensino médio, que são os
jovens e as culturas juvenis; o quarto diz respeito ao tema da memória e do
patrimônio, uma vez que o ensino de História consiste em um movimento
de criação/recriação da memória histórica.

Palavras-chave: ensino médio; ensino de História; pesquisa.

152 Rev. bras. Estud. pedagog. (online), Brasília, v. 95, n. 239, p. 152-174, jan./abr. 2014.
Docência em História:
implicações das novas disposições curriculares do ensino médio

Abstract
Teaching history: implications of the new curricular provisions for
high school

The article is an unprecedented exercise in writing, a result of


reflections made by a group of professors in the area of history teaching,
on the topic of high school. The central concern is to understand the
process of change in high school, proposed by the Ministry of Education
(MEC) and state governments, in the perspective of teaching history. Thus,
we discuss four conceptual and theoretical approaches: the first refers to
the understanding itself of the processes of change proposed and their
relation to the teaching of history; the second refers to the centrality of
the research, which takes on a role as strategic operator of the principles
of interdisciplinarity and contextuality; the third consists in understanding
the role of the major agents of high school, i.e. the youngsters and their
cultures; and the fourth relates to the theme of memory and heritage,
since the teaching of history consists of an action of creation/recreation
of historical memory.

Keywords: high school; teaching of history; research.

Introdução

As novas disposições curriculares para o ensino médio no Brasil têm


implicações profundas no ensino de História. A proposição oficial sugere
um currículo organizado por áreas de conhecimento, com base em dois
princípios fundamentais: a interdisciplinaridade e a contextualidade. De
um lado, supõe-se uma integração entre as diferentes disciplinas para
constituir uma zona de comunicação entre elas; por outro, presume-se
o conhecimento enraizado na experiência social de estudantes em idade
de inserção no mercado de trabalho e na vida política da cidade. Ambas
exigem ampla reflexão por parte dos professores de História, bem como
dos outros docentes envolvidos com o ensino médio.
Neste artigo, procuramos, primeiramente, problematizar as novas
políticas para o ensino médio, criando uma leitura crítica, que possa
avaliar as potencialidades da proposição para o ensino de História. Em
um segundo momento, tomamos os princípios da interdisciplinaridade e
da contextualidade para pensar a pesquisa como estratégia para o ensino
de História e para o ensino médio de modo geral. Em terceiro lugar,
resgatamos o tema das culturas juvenis e da juventude como categoria
social para compreender o papel da docência em História nos tempos
atuais. Finalmente, enfatizamos o aspecto do patrimônio no ensino de
História para debater a questão da área das humanidades e os princípios

Rev. bras. Estud. pedagog. (online), Brasília, v. 95, n. 239, p. 152-174, jan./abr. 2014. 153
Nilton Mullet Pereira
Fernando Seffner
Carmem Zeli Gil
Carla Meinerz

do novo ensino médio, sob a ótica da relevância social e política dos bens
materiais e imateriais que constituem o caldo cultural no qual a juventude
está imersa.

Políticas públicas para o ensino médio


1
As informações acerca da
As propostas que buscam traçar objetivos, conteúdos, estrutura e matrícula no nível médio
modos de financiamento do ensino médio formam atualmente um campo de ensino estão disponíveis
em numerosas pesquisas.
de discussão dos mais controversos, no qual se cruzam argumentos Entretanto, os dados tornam-
se desatualizados muito
por vezes mutuamente excludentes, envolvendo posições políticas, rapidamente, pois são
pedagógicas, partidárias, sindicais, culturais e econômicas complexas e objetos de estatísticas anuais.
Recomendamos a consulta direta
antagônicas. Sem dúvida, podemos afirmar que o ensino médio é a “bola na fonte, em http://portal.inep.
gov.br/basica-censo-escolar-
da vez” no debate educacional contemporâneo. Todos dão palpites, tudo matricula (último acesso em 15
reverbera fortemente na mídia, a sensação de crise está instalada e, no de abril de 2013), para verificar,
por município, por região ou para
dizer de muitos atores, o futuro do Brasil depende do modo como se vai o País, as séries estatísticas que
encaminhar a gestão desse nível de ensino, o que eleva a temperatura comprovam essa afirmação.
2
Um ótimo panorama da
da troca de ideias. Para isso colabora o fato de que, nos demais níveis expansão e localização da rede
de ensino, os grandes debates já produziram acordos e pactos nacionais, de escolas técnicas federais no
País pode ser visto em http://
dando relevo à polêmica referente ao ensino médio. Na educação infantil, redefederal.mec.gov.br/index.
php?option=com_content&
nas séries iniciais, no ensino fundamental estruturado em disciplinas, nos view=article&id=52&Itemid=2
programas de educação de jovens e adultos ou na educação no campo e (último acesso em 15 de abril de
2013). Na base de artigos www.
mesmo no ensino superior, atualmente, debate-se sobre questões muito scielo.br podem ser encontrados
localizadas, pois o consenso em relação a suas macropolíticas já foi numerosos textos que analisam
esse crescimento.
atingido, o que não se verifica no caso do ensino médio, em relação ao 3
Sobre a ampliação geral do
qual parece que há tudo por fazer. ensino médio, ver proposições
em Goulart; Sampaio; Nespoli,
Diversos outros fatores expandem a polêmica. A maior parte das 2006.
vagas de ensino médio é ofertada pelas redes estaduais de ensino.1 Nessa 4
Apenas para exemplificar,
recomendamos a visita ao sítio
medida, nos últimos anos os partidos políticos e as coalizões partidárias web do Instituto Unibanco, já
com tradição na área e enfoque
que governam os Estados aplicaram distintos desenhos curriculares em no ensino médio, disponível
suas redes escolares e buscam mostrar que tal ou qual alternativa “é a em http://www.unibanco.com.
br/int/hom/index.asp. Mas os
melhor”, produzindo uma nítida partidarização no debate (Zibas, 2005). interessados em saber mais
O crescimento econômico brasileiro e a inserção mais vigorosa do País no podem seguir visitando sítios
como o da Fundação Telefônica em
cenário internacional exigiram mão de obra especializada, tanto em nível http://www.fundacaotelefonica.
org.br/linhas-de-atuacao/
universitário, quanto em nível técnico médio, com evidentes impactos educacao-e-aprendizagem/ ou
na caracterização do ensino médio. A União ampliou consideravelmente do Projeto Pescar em http://
site.projetopescar.org.br/ e
seu investimento, aumentando a rede de escolas técnicas federais,2 o as conexões entre programas
públicos e empresas, como é o
que tornou visível uma estrutura curricular que associa o ensino médio caso do Todos pela Educação, em
regular ao ensino técnico em escolas de turno integral.3 As necessidades http://www.gerdau.com.br/meio-
ambiente-e-sociedade/faca-sua-
de formação de mão de obra técnica atraíram empresários, banqueiros e parte-todos-pela-educacao.aspx
fundações mantidas por conglomerados industriais e financeiros – algumas (último acesso em 15 de abril
de 2013)
das quais sustentam programas de financiamento para escolas públicas 5
Grande quantidade de
de ensino médio4 – para os debates sobre os rumos do ensino médio. pesquisas, artigos de jornal e
documentos governamentais
A universalização do ensino fundamental5 (com quase cem por cento tratam do tema. Os dados,
sempre atualizados, podem ser
dos alunos em idade escolar, em todas as regiões brasileiras, matriculados obtidos em http://portal.inep.
e frequentando a escola), já atingida há pelo menos uma década e hoje gov.br/basica-censo-escolar-
matricula (último acesso em 15
quase consolidada, vem trazendo seus impactos sobre o acesso ao de abril de 2013).

154 Rev. bras. Estud. pedagog. (online), Brasília, v. 95, n. 239, p. 152-174, jan./abr. 2014.
Docência em História:
implicações das novas disposições curriculares do ensino médio

ensino médio, pois amplia o número de jovens em condições de seguir


os estudos. O regime de cotas sociais para ingresso no ensino superior –
que contabiliza o tempo de estudo do aluno nas redes públicas de ensino,
notadamente no ensino médio – também pressiona o debate. Setores de
classe média tradicional, com vistas a facilitar o ingresso de seus filhos
nas universidades federais, por meio das cotas nos exames vestibulares
de ingresso, buscam vaga em escola pública. Na mão contrária, a
ascensão econômica das classes C e D nos últimos dez anos ocasionou
visível crescimento de escolas privadas de ensino médio de baixo custo,
situadas em municípios na periferia das grandes cidades, que buscam
encantar os filhos dessas famílias recentemente enriquecidas, ofertando
um ensino de qualidade duvidosa, mas com a marca do “ensino privado”,
tido como melhor que o ensino público e um bem de consumo desejado
pelas famílias pobres. A situação armou-se de tal modo que tem um
componente humorístico, pois famílias de classe média tradicional, que
antes frequentavam a escola privada de ensino médio, agora procuram
boas escolas públicas, para com isso beneficiar seus filhos no regime
de cotas de acesso ao ensino superior federal, aproveitando a folga
financeira do não pagamento da escola para investir em cursos de línguas,
computação, aulas de reforço etc., ao passo que famílias pobres, antes
frequentadoras exclusivas do ensino público, agora matriculam seus filhos
em escolas privadas que surgiram para disputar essa fatia de mercado,
destinando parte dos novos ganhos para a educação.
Outro elemento sobre esse nível de ensino é a exposição do Brasil
no cenário internacional, em particular nas grandes enquetes que
confrontam o desempenho e o rendimento educacional entre países.
Tradicionalmente, o Brasil tinha tímida participação nos principais
levantamentos sobre o assunto. Participava e recebia os resultados, que
eram sempre catastróficos, com pouca repercussão na sociedade brasileira,
resignada a ver a péssima classificação em termos comparativos. Mas a
situação se modificou muito nas recentes décadas. O País estruturou um
conjunto de avaliações educacionais de forte efeito e passou a divulgar
dados cada vez mais apurados, bem como a participar das respeitadas
pesquisas mundiais.6 A mudança de partidos políticos no governo central
não afetou essa diretriz e os exames nacionais em todos os níveis de
ensino só fizeram crescer em importância nos últimos anos, ganhando
espaço importante na mídia. Entre as chamadas avaliações de grande
impacto está obviamente o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),
que mais promove discussão, envolvendo manifestações de empresários
6
A p e n a s p a r a i l u s t r a r, o e políticos diversos, ao lado dos tradicionais opinantes, como professores,
Brasil participa atualmente do
Programme for International acadêmicos, gestores, afora os veículos de informação.7 Vale dizer que
Student Assessment (PISA),
de estudos latino-americanos são realizadas, a cada ano, várias avaliações educacionais no País (Prova
e do Mercosul e de outras Brasil, Provinha Brasil, Enade etc.), mas é aquela do ensino médio que
pesquisas que envolvem países
em desenvolvimento, como os capitaliza as atenções. Se apresentarmos a um brasileiro, medianamente
componentes do Brics.
informado, siglas como Enade, Aneb, Anresc, Saeb, ele não saberá do que
7
Veja em Melo (2012) uma
análise crítica do Enem. se trata e não irá estabelecer a conexão com os sistemas nacionais de

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Fernando Seffner
Carmem Zeli Gil
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avaliação do rendimento escolar, mas se falarmos em Enem, certamente


o sujeito saberá do significado.
A participação do Brasil nessas avaliações internacionais deriva,
em parte, do fato de que as iniciativas em educação estão cada vez
mais vinculadas ao debate sobre o desenvolvimento estratégico do
País, com base na reiterada afirmação de que vivemos numa sociedade
do conhecimento, expressão vaga que serve a muitos propósitos, mas
impacta positivamente no valor da educação enquanto um componente
importante para o futuro. As propostas educacionais têm seu tom político
turbinado nesses tempos e o País passa a ser medido também em termos
de desempenho educacional. As pesquisas servem, então, para qualificar
práticas, criticar governos, governantes e partidos políticos, causando
maior repercussão no País. Atualmente, boa parte da discussão em
educação combina argumentos pedagógicos com política educacional.
Muitos exemplos permitem comprovar que a educação é elemento
de destaque brasileiro no cenário internacional. A imprensa divulga
regularmente a posição e os índices do País. O mais famoso deles, o
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mostra que o Brasil melhora
sua posição a cada ano, embora de modo lento e em velocidade inferior
a outros países em desenvolvimento. O desempenho educacional do País
é sempre um fator a diminuir o crescimento, e quando os resultados são
publicados a polêmica reacende. Contudo, a divulgação dos dados em
março de 2013 não apenas colocou novamente os avanços em educação
no centro dos debates, como fez o Brasil questionar pela primeira vez em
sua história os números utilizados pelo Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (Pnud), encarregado da produção desse indicador.8
Além de empresários, educadores, gestores públicos, pesquisadores,
diretores de fundações, associações de classe, professores, juízes, as
discussões sobre o ensino médio passaram a envolver no Brasil os atores
que representam segmentos das Nações Unidas, como PNUD, Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Fundo
das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
A polêmica que envolve o ensino médio não é relativa aos modos
de acesso, como no caso do ensino superior, mas refere-se às propostas,
às visões de mundo e de pertencimento a distintas filiações em termos
pedagógicos e políticos. Os debates acerca do ensino médio têm ajudado
a produzir conhecimentos sobre a situação geral da educação no País.
As questões são candentes e os frutos da discussão dizem respeito aos
rumos da educação nacional. Certamente ainda estamos longe de esgotar
o leque de possibilidades para o desenho curricular do ensino médio
quando se considera que os alunos, principais interessados, têm sido
pouco consultados.
Longe de estabelecer solução para os impasses, investimos no
mapeamento da situação conflagrada, apresentando propostas específicas 8
Dados atualizados sobre o
IDH e os relatórios e atlas de
para a disciplina de História. O ensino médio é portador de algumas desenvolvimento humano podem
tensões difíceis de equacionar. Elas aparecem constantemente quando se ser encontrados em http://www.
pnud.org.br/Default.aspx (último
busca traçar diretrizes de longo alcance. A primeira delas é que se trata acesso em 15 de abril de 2013).

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Docência em História:
implicações das novas disposições curriculares do ensino médio

de um nível intermediário no qual alunos oriundos do ensino fundamental


estão a caminho do ensino superior. Simultaneamente, é nível final de
estudos, que encerra ou interrompe por anos a carreira escolar, para
grande parcela da população sem condições, interesse ou disposição para
cursar uma faculdade.
Desse quase “transtorno bipolar” do ensino médio derivam outras
complicações. A principal delas concerne a “preparar para o vestibular”
ou “aprender alguma profissão”, entre o propedêutico e o técnico. Mesmo
aquelas escolas públicas que estruturam o ensino médio para atender as
duas demandas paralelamente (por exemplo, com aulas pela manhã do
ensino médio regular e aulas à tarde para a formação técnica em alguma
profissão) apresentam problemas. Algumas delas passaram a atrair alunos
oriundos da classe média, que optam por cursos técnicos vinculados à
carreira desejada no ensino superior. Com isso, a vaga originalmente
destinada a um aluno de classe pobre, para formar um técnico com boa
chance de empregabilidade e ascensão social, passa para o aluno da classe
média, que utiliza a escola como trampolim para a universidade, sem que
se forme o trabalhador de que o País precisa.
O ensino médio se divide entre formar o cidadão, formar o profissional
técnico e formar o bom candidato ao ingresso no ensino superior. Sempre
é possível tentar equilibrar as três direções no mesmo desenho curricular,
mas isso não é fácil. Se levarmos em conta que é etapa conclusiva para
muitos alunos, podemos acentuar a formação cidadã, colocando em
discussão temas relativos à produção social das culturas juvenis (que
permitam ao jovem entender-se como produto social e histórico de seu
tempo), à inserção dos jovens no mundo da política, ao estudo dos rumos
culturais e tecnológicos do mundo contemporâneo, à compreensão dos
grandes fenômenos globais. Se assumirmos que a prioridade é formar um
bom candidato ao ingresso no ensino superior, podemos investir no estudo
mais denso das disciplinas (no caso da História, seria o momento de o
aluno saber não apenas o que aconteceu, mas como se produz o discurso
histórico, abordando tópicos de Teoria da História, de Historiografia, em
conexões com a Sociologia, a Filosofia e a Geografia).
Em outras palavras, para que os alunos se reconheçam inseridos em
determinadas culturas juvenis, podemos articular o estudo de questões
de gênero e sexualidade, raça, etnia, pertencimento religioso, gosto
musical, classe econômica, ordem familiar, origem regional, enfim,
submeter os pertencimentos sociais e culturais dos próprios alunos a um
exame analítico com ferramentas das Ciências Sociais. É difícil conciliar
um programa escolar que atenda essa diretriz com aquele que segue os
planos de preparação para o ingresso no ensino superior. Se definido que é
premente formar um bom técnico, não apenas o conhecimento específico
da carreira será necessário, mas também a compreensão das grandes
questões que afetam o mundo do trabalho na contemporaneidade, em
particular a flexibilização, a precarização, a terceirização, o êxodo para
outros países, as dificuldades do primeiro emprego, o desaparecimento

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das tradicionais carreiras etc. Novamente, no desenho da disciplina de


História há dificuldades em aliar diferentes propósitos e diretivas.
Entre os desafios já instalados no ensino médio constam as altas
taxas de reprovação e evasão, que são muito intricadas de reverter haja
vista que fatores plurais concorrem para essa situação e a solução de
cada um deles nem sempre aponta para o mesmo formato curricular. Os
alunos abandonam esse nível ou não se habilitam nele porque aquilo que
se ensina no nível médio não é atraente? A resposta é ensinar coisas que
façam sentido em suas vidas de forma mais imediata. Entram os temas
ligados às culturas juvenis, saem temáticas atadas a estudos clássicos e
a prosseguimento em nível posterior. Temos professores formados para
fazer isso? Certamente não e vai demorar para termos. Os alunos desistem
porque não aguentam mais estudar tudo de forma obrigatória? Então, a
resolução é ofertar parte da carga horária em disciplinas eletivas, nas quais
cada um esboce uma porção de seu percurso de estudos? Como ficarão
o exame de ingresso ao ensino superior ou o Enem, se alguns candidatos
vão fazer escolhas distintas de outros? Há professores preparados para
oferecer matérias eletivas? Por exemplo, quem iria lecionar uma disciplina
que articule Cinema e História? Temos recursos nas escolas para boas
projeções de filmes? Ou vamos querer que, na era da televisão digital e do
cinema tridimensional, os alunos fiquem espremidos numa sala abafada,
sentados em cadeiras duras, assistindo a longa metragem num aparelho
pequeno, equilibrado de modo precário em cima de uma estante, com
som vindo de caixas diminutas?
Os alunos abandonam o ensino médio porque não há frequência
obrigatória por lei, como é o caso do ensino fundamental, em que a
ausência na escola implica acionar o conselho tutelar e punir os pais?
Parece simples resolver, bastando legislar e impor o ensino de doze anos,
como preceituam as agências das Nações Unidas e acatam países ditos
civilizados e desenvolvidos, inclusive vizinhos do Mercosul. Como ficam
aqueles que param de estudar porque as famílias precisam do rendimento
financeiro do seu trabalho para complementar a arrecadação conjunta?
Vamos encaminhar todos ao ensino noturno e fingir que alguém que
trabalha o dia todo e estuda à noite poderá chegar ao fim do ano letivo
com produtividade similar ao que cursa durante o dia? Simplório seria
estender para o ensino médio a Bolsa Escola, já testada e aprovada no nível
fundamental. Ocorre que muitos alunos começam a trabalhar não tanto
para ajudar no orçamento familiar, mas para ter algum dinheiro próprio,
que possa alimentar seus sonhos de consumo, em particular, na produção
das identidades juvenis e na inserção em determinadas culturas jovens,
todas elas movidas a apelos de aquisição de bens materiais (celular, roupas,
bonés, ingresso para shows e festas, tablets, tênis e calçados, aparelhos
de som, equipamentos digitais e mais um oceano de coisas impulsionadas
pelo mercado). Singelo, ao invés de dar a bolsa para a família, podemos
entregá-la ao próprio aluno. Ao contrário do cartão da Caixa Econômica
Federal, que é repassado para mãe de estudante no ensino fundamental,
forneceremos crédito ao jovem aluno e ele poderá gastar no que quiser

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Docência em História:
implicações das novas disposições curriculares do ensino médio

o dinheiro público ali destinado, desde que se mantenha estudando e


frequentando a escola. Sem esforço, imaginamos a polêmica que se
instalaria na mídia acerca disso. Não faltarão acusações de que os alunos
irão despender em drogas, festas e bailes funk, roupas sexualmente
provocantes, lanches tipo fast food, extravagâncias. Outros poderão dizer
que o financiamento dado aos alunos pode lhes ensinar o valor do dinheiro
e da organização monetária. A experiência do microcrédito no Brasil e no
mundo mostra que os mais pobres são mais ajuizados no gasto do dinheiro
público e mais preocupados com o pagamento das dívidas contraídas.
No meio de tantas tensões, nossas proposições, que vêm a seguir
neste texto, podem parecer um “curativo” posto sobre uma perna
gangrenada. Acreditamos que parte da solução para esses impasses vem
do raciocínio das disciplinas, dos modos de ensino aplicados em sala de
aula. No nosso caso, contribuímos com reflexões extraídas do ensino
de História, das práticas cotidianas e dos conhecimentos acumulados
em pesquisas e acompanhamentos de estágios por muitos anos. Não se
trata de esperar que os gestores e intelectuais façam o delineamento das
macropolíticas, para depois pensar o que vamos fazer em nossa sala de
aula.9 Podemos desde já avançar em proposições para o trabalho docente
em História.

Pesquisa e docência em História

O ensino médio é um nível de escolarização no qual os estudantes


podem ter um profundo envolvimento com o seu mundo, ou seja, com o
espaço político da cidade (Pereira; Seffner, 2008). Em quaisquer dos turnos,
da manhã à noite, o professor de História do ensino médio se depara com
jovens inseridos no mundo do trabalho e no mundo da política. Tudo se
passa como se, nesse momento, o indivíduo se dispusesse numa situação
social que lhe obriga a atuar não apenas como aprendiz, mas como agente
nas interações sociais.
Por essa razão, pensar o ensino nesse nível é voltar-se à pesquisa. Os
princípios que regem o novo ensino médio, ainda que resgatem disposições
bastante conhecidas dos estudos e das discussões educacionais, parecem
estar perfeitamente adequados a um operador estratégico que é a
pesquisa. Tanto a interdisciplinaridade quanto a contextualidade exigem,
cada um a seu modo, que os estudantes desenvolvam a pesquisa como
instrumento pedagógico por excelência. A Resolução CNE/CEB nº 2/2012
estabelece claramente o trabalho e a pesquisa como “princípios educativos
e pedagógicos, respectivamente”.10
Professores de História certamente têm presente em suas lembranças
9
Recomendamos a leitura de a prática da pesquisa no âmbito dessa disciplina. A rigor, nossa memória
Moehlecke (2012) e Kuenzer se prolonga a períodos de um devir-aluno, nos quais se propunha pesquisa
(2010) sobre as tensões citadas.
10
Resolução CNE/CEB 2/2012.
sobre determinado tema: “pesquise sobre as causas da Revolução
Diário Oficial da União, Brasília, Francesa”. A resposta a essa solicitação não era outra senão um extenso
31 de janeiro de 2012, Seção
1, p. 20. texto escrito à caneta, que preenchia meia dúzia de páginas de folha

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de papel almaço. Ainda hoje se verifica a tão enfadonha proposta de


investigação que leva o estudante a recolher páginas da wikipedia,
imprimir e depositar sobre a mesa do professor. Por muito tempo a
pesquisa nas aulas de História foi isso: uma bela capa e um longo texto
copiado do livro didático ou retirado da internet. Então, seria o caso de
perguntar, afinal de contas, em que consiste a pesquisa no ensino médio,
na aula de História?
Ora, já afirmamos que o ensino médio é um nível de escolaridade em
que os estudantes já dispõem de instrumentos que os tornam capazes de
interagir na sociedade, na vida pública e no chamado mundo do trabalho.
Além disso, o estudante do ensino médio insere-se no mundo da leitura
e da escrita, que não é simplesmente dos códigos e dos símbolos que
compõem o seu universo social, mas uma leitura conceitual do mundo,
do seu mundo e do mundo dos outros; uma escrita conceitual da vida – da
sua e das alheias. Eis que se introduzem na esfera do ensino de História na
escola média seus elementos vitais: escrita e leitura conceitual do mundo.
Nesse sentido, pode-se muito bem ter como um operador estratégico
a pesquisa que carregue como efeito a escrita e a leitura, como se escrever
e ler fosse um belo e inusitado encontro com a vida, sua atualidade e a
névoa que a circunda.
Se efetivamente a pesquisa não pode ser reduzida à dissertação ou
à transcrição de um texto, em que consiste isso que chamamos de um
operador estratégico? Em primeiro lugar, no problema. O problema é
que os problemas são velhos. O problema é que nos deixamos tocar por
problemas já prontos, feitos, moldados, cansados, exageradamente fixados
no nosso cotidiano – um lugar-comum dos lugares-comuns. Assim, por
anos, temos buscado soluções. Uma pesquisa, na escola básica e na aula de
História, não consiste em uma resposta, um problema que é exterior a sua
própria resolução. Digamos que pesquisar consiste em criar problemas,
de modo que, ao invés de vasculhar soluções, tenhamos coragem de criar
problemas para tornar mais surpreendente nossa sala de aula de História.
Quando vamos fechar a porta para os problemas já formados? Fechar
a porta para a cópia da Wikipedia, para a pergunta sobre as causas da
Guerra dos Farrapos e para toda a sorte de questões que falam tão pouco
ao coração – que tão pouco nos fazem ter sensações, que sempre entram
pelo lado avesso da intuição. São esses problemas já criados que enfadam
a aula de História no ensino médio e tão pouco tocam a vida.
O problema hoje é não dar soluções, mas criar novos problemas. Eis
a linha, a força dos problemas incriados, à espera de um novo encontro
para aparecer e se colocar no interstício do nosso mal fadado cotidiano,
nosso lugar de conforto e comunhão. Deixar-se desconcertar por forças
ainda não catalogadas e codificadas no universo de uma aula de História
é o que os novos problemas nos prometem.
Criar problemas tem a ver com esquecimento, uma vez que se nega a
própria história, se contrapõe solenemente à memória. Abandona o lugar-
comum da ordem, despede-se de pleno da gramática cotidiana da escola
(das causas, das identificações, das consequências, dos principais líderes),

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Docência em História:
implicações das novas disposições curriculares do ensino médio

conjunto de regras que constroem uma memória que leva estudantes todos
os dias a “repetir o repetitório”, andar sobre o “já-dito”, sem desconfiar
do tom seco e amorfo dessa gramática.
Pesquisar é, no ensino médio e na aula de História, criar problemas,
colocar problemas, como resultado de um encontro inaudito entre o
conteúdo proposto pelo professor e as necessidades da vida de cada
estudante. Um problema forma-se, constitui-se e aparece quando
um encontro ocorre entre vida e história escrita. É claro que pensar o
conteúdo na sua relação com a vida e com a expansão da vida tem a ver
com o princípio da contextualidade, mas não se trata de simplesmente
aproximar o contexto, as agruras, as questões do cotidiano do conteúdo
de História, mas de fazer o conteúdo da disciplina debater com esse
cotidiano, problematizá-lo, desacomodá-lo e deixar o estudante andar
por caminhos ainda não trilhados por ele. Expandir a vida é, desse modo,
abandonar um pouco o próprio cotidiano. A História pode bem se prestar
a criar problemas para que isso aconteça, uma vez que é na diferença
e não na semelhança que ela nutre os programas, os currículos, e é ao
debater com o estranho que o estudante pode, por fim, criar problemas,
pesquisar, transfigurar-se.
Propor a pesquisa no ensino médio, em História, é ensinar a criar
problemas, a perguntar para uma fonte, uma imagem, uma música, uma
charge, um poema, um fragmento, uma crônica. As perguntas feitas não
decorrem de respostas, mas de forças que habitam o vazio em torno de
cada acontecimento ou de cada documento. Pesquisar torna-se uma arte,
uma arte de criar problemas, de fazer perguntas e de improvisar respostas.
É como perguntar “como é possível supor que tantos tenham aceitado
e seguido as ideias de Hitler?” ou “como pôde uma mulher liderar um
movimento messiânico numa colônia alemã, no sul do Brasil?”; ou, ainda,
“como pôde ser o nazismo um fenômeno da sociedade liberal, uma vez que
se tratava de um regime totalitário?”. Puras perguntas, que de sua pureza
podem sugerir problemas que se desdobram sobre suas respostas, jamais
encontradas em um longo texto copiado do livro didático ou “baixado” da
Wikipedia. Com maior ou menor complexidade, perguntar torna-se uma
arte, uma arte de fabular o passado, de criar um jogo que brinca com as
hipóteses levantadas e afirmadas pelos historiadores. Aqui a ciência tem
o seu limite, a própria escrita da História tem o seu limite. É na sala de
aula que a escrita da História encontra seu limite, e a fabulação é o modo
como professores da disciplina ruminam as afirmações e as hipóteses
criadas no âmbito da pesquisa histórica. A sala de aula é o lugar de
fabricação de disposições que permitem uma entrada no passado, uma
imersão no tempo, uma verdadeira viagem em direção à imaginação,
quebrando regras, desafiando a cronologia dos acontecimentos, expondo
a fragilidade de suas causas. Aprender com a pesquisa tornou-se uma
fabulação, na medida em que chegar à verdade se dá pelos caminhos do
jogo e da imaginação, pela ousadia de duvidar das afirmações da ciência,
problematizá-las, ou seja, colocá-las na forma de problemas.

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Há também o conceito. Pergunta-se o que se faz quando se ensina


História no ensino médio e a resposta, por regra, é a suposição de um
aprofundamento nas reflexões feitas no ensino fundamental. Mas cremos
que, no ensino médio, tal imersão não se mostra pela quantidade maior
de informações ou pela complexidade do próprio objeto de ensino, mas
pela introdução da força dos conceitos na aula de História. A entrada dos
conceitos é triunfal, flamejante e sempre produtora de aprendizagens
novas, pois o conceito é criação, não apenas definição, mas armadura. O
instrumental estoico para a vida. Os conceitos tornam-se instrumentos
da própria vida, para um movimento de expansão da vida.
Digamos que no ensino médio se aprende. Melhor, cria-se na medida
em que se aprendem os conceitos históricos. É o tempo das interações
sociais no qual a juventude se encontra com os domínios políticos e
produtivos da cidade. Para tal, os conceitos históricos se apresentam como
operadores e como lugares de criação da vida. Armar-se de conceitos, de
logos, para enfrentar o mundo do político e o mundo do trabalho. Nesse
sentido, a pesquisa é o lugar da aprendizagem e da criação dos conceitos.
Tendo por fundamento a pergunta “como pôde ser o nazismo um fenômeno
da sociedade liberal, uma vez que se tratava de um regime totalitário?”, é
possível fabular sobre os conceitos de liberalismo, totalitarismo, nazismo.
E assim a pesquisa é um operador estratégico para aprender e para criar,
num processo que é inteiramente da cena escolar, o conceito.
A pesquisa no ensino médio, como resposta às exigências desse
tempo da juventude, opera com a pergunta-problema e com o conceito,
no sentido de, por meio de um movimento de fabulação, no limite da
ciência histórica – já que ela se mostra incapaz de ensinar o conceito na
sala de aula da escola básica –, levar a efeito um processo de recriação
dos conceitos históricos, necessários para constituir a armadura de
enfrentamento da vida – sina da juventude. Pesquisar é mais do que
aprender conceitos, consiste em movimentar os conceitos para dar conta
de uma dada realidade. É assim que o ensino médio se revela como o
espaço por excelência no qual se permite que os estudantes recriem
conceitos e se coloquem a movimentá-los por meio de uma atividade de
pesquisa.
O articulador estratégico que é a pesquisa, no ensino médio,
apresenta-se como a construção de um problema que possibilita a
movimentação dos conceitos históricos. Pesquisar é operar com os
conceitos: uma vez que se criaram e se recriaram os conceitos de
liberalismo e de nazismo, nesse processo fabulatório que é a aula de
História pode-se, ao responder a pergunta “como é possível supor que
o nazismo seja um fenômeno da sociedade liberal?”, operar com os
conceitos para responder a pergunta. O interessante desse processo é
que a própria aprendizagem desses conceitos permite a operação. A
sala de aula torna-se um espaço de experimentação, segundo o qual se
provocam acontecimentos, se elaboram problemas, se criam conceitos e
se fabula para ensinar História. Podemos pensar em uma aula de História
que se proponha a pesquisar as relações entre o Ocidente e o Oriente,

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Docência em História:
implicações das novas disposições curriculares do ensino médio

de modo que se provoque a pergunta: “o que é um oriental?” ou “como


o Ocidente criou a ideia de Oriente?”. Trata-se de propor a pesquisa que
crie a pergunta e situar na ordem da resposta a construção do conceito.
Nesse caso, temos o conceito de Oriente no centro do problema; dar conta
desse conceito implica compreender como criamos, no Ocidente, uma
definição de Oriente. Um projeto de pesquisa desse tipo pode muito bem
propor a análise de fragmentos de filmes que possam ser disparadores
para a construção do conceito, a fim de dar conta do problema. Duas
imagens mostram-se interessantes nesse caso: o diálogo entre Leônidas
e Xerxes, no filme 30011 e a entrega do Oscar pela primeira-dama dos
Estados Unidos ao diretor Ben Affleck, do filme Argo.12 Duas imagens que
permitem problematizar as relações Ocidente e Oriente e pensar sobre o
modo como, no Ocidente, temos criado uma ideia de oriental.
O exemplo que mostramos acima, que inclui a utilização do recurso
audiovisual, constitui um problema e propõe movimentar um conceito.
Tal prática, que pode ser na forma de um projeto ou parte do cotidiano da
sala de aula de História, é o que cria ferramentas para o jovem poder ler e
escrever o seu mundo e o mundo dos outros, a sua vida e a vida dos outros.

Estudar História com os jovens que estão no ensino médio

Estudar História pode proporcionar múltiplas experimentações,


dentre as quais destacamos a possibilidade de desenvolver um olhar
complexo para as questões vividas por diferentes homens e mulheres,
habitantes de outros tempos e espaços, para seus modos de agir, sentir e
pensar. Esse olhar carrega a perspectiva de nossos próprios anseios e faz
do encontro com a pluralidade uma das paixões que a História desperta,
contendo o potencial da criação de problemas interessantes para a
pesquisa na educação escolar. Da mesma forma, o ensino de História na
contemporaneidade agrega uma diversidade de ações e sentidos, que se
baseia na interação entre diferentes atores sociais que nele se envolvem,
constituindo-se numa polifonia de vozes advindas de educadores,
estudantes, comunidades, gestores públicos e intelectuais, entre outros.
Para os jovens que estão no ensino médio, a História pode igualmente
proporcionar o confronto com a multiplicidade de experiências juvenis no
Brasil, marcada pela diversidade cultural e pela desigualdade. Propomos
pensar o ensino de História na perspectiva de seus jovens alunos,
tematizando quem são esses meninos e meninas que chegam nessa etapa
da escolarização, qual sua cultura, seus sonhos e suas interrogações.
Mudamos o centro da reflexão, passando da educação escolar para os
sujeitos jovens, reconhecendo que o ensino de História também deve ser
reconsiderado, tendo por base os desafios que a juventude nos coloca.
A maioria dos estudos fundamentados na Sociologia e na Antropologia
11
300, dirigido por Zack Snyder,
2006, Warner Bros., EUA. atenta para o fato de não podermos mais falar em juventude sem abordar
12
Argo, dirigido por Ben Affleck, a questão da diversidade. A incongruência de construir uma definição
2012, Warner Bros., EUA. Oscar
de melhor filme em 2013. homogênea dessa categoria vem sendo apontada por muitos autores

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brasileiros no campo da educação, entre eles Sposito (2001) e Dayrell


(2001), que inovaram ao vislumbrar o jovem para além da condição de
aluno. A compilação desses estudos, feita por Marília Sposito (2001),
demonstra que, por algum tempo, privilegiou-se a pesquisa do jovem
na condição de aluno, restringindo-se a ação investigativa ao interior da
escola. Numa nova apresentação, crescem os estudos focados nos jovens
em seus processos de socialização e sociabilidades, baseando-se no mundo
da cultura, da formação de grupos artísticos, religiosos, políticos, da
associação por intermédio de gangues ou tribos, enfim, das mais diversas
identificações, manifestas em diferentes formas de viver a juventude.
O debate em torno das temáticas das culturas juvenis e da juventude
como categoria social é fundamental para a compreensão do papel da
docência em História nos tempos atuais. Provoca a olhar e escutar os
jovens em suas questões, compreendendo-os como pessoas que estão
às voltas com a vida, representantes de uma forma de viver a juventude
em tempos e espaços que lhes são próprios, incita a pensar que não são
sujeitos que apenas experimentam uma fase da vida que irá passar, mas
vivenciam conosco, de forma peculiar, seus processos indissociáveis de
constituição histórica, individual e social. A relação que estabelecemos
com nossos jovens alunos é pautada pelos nossos próprios aprendizados
e interrogações em relação às tensões da vida e aos conhecimentos aí
produzidos.
Fabbrini e Melucci (2004), em suas pesquisas com jovens de Milão
(Itália), abordam a juventude como um momento em que os aprendizados
e as experimentações, especialmente aqueles relativos às possibilidades de
mudanças, incidem de forma importante nos processos vitais seguintes.
Para os autores, a transformação contínua e a capacidade de enfrentá-la
é um recurso exigido de cada adulto para mover-se na experiência social,
baseado no que se viveu na juventude.
A mudança e a possibilidade de pensá-la são características
fundamentais para compreender a juventude como categoria social e, ao
mesmo tempo, podem ser elementos potencializadores do encontro com
as múltiplas experimentações dos estudos da História na escola. O corpo,
a ética, a estética, o pensamento, as relações sociais são elementos em
transformação na juventude, pois nessa fase é socialmente desejado que
se comece a responder: quem sou eu? quem devo ser? quem posso ser?
Tais questões são propulsoras de sonhos e projetos de futuro, igualmente
atravessadas pelos contextos socioculturais em que cada sujeito se insere,
pelas demandas familiares, de trabalho e de escolarização. São exigências
que colocam os jovens no mundo da política e das relações sociais mais
complexas. Surge o deslocamento da análise que antes tratava a juventude
como problema e agora a situa como sintoma social e principal vítima da
sociedade em que se desenvolve. Alguns dados lançados pelas pesquisas
constitutivas do Mapa da Violência no Brasil/2012 evidenciam a crescente
vitimização dos jovens brasileiros. São eles que morrem em maior
quantidade por acidentes de trânsito ou assassinados. A desigualdade
socioeconômica, que caracteriza nosso País, constrói cenários em que os

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implicações das novas disposições curriculares do ensino médio

jovens empobrecidos, no campo e na cidade, vivenciam formas frágeis e


insuficientes de inclusão.
Com base nessa breve reflexão sobre a juventude como categoria
social e as culturas juvenis, podemos redimensionar os desafios do ensino
médio em nosso País, que tem difícil relação com os projetos de futuro
dos jovens brasileiros.
Enfrentamos alguns dilemas na educação em geral e no ensino
médio, em específico, pautadas por uma crise da função social da escola
na contemporaneidade. Destacamos o fato de que muitos jovens não
estão tendo acesso a essa etapa da escolarização em nosso País. Segundo
estudos divulgados pelo Ministério da Educação em 2008, no documento
“Reestruturação e Expansão do Ensino médio no Brasil”, produzido pelo
Grupo de Trabalho Interministerial instituído pela Portaria nº 1.189
de 5 de dezembro de 2007 e pela Portaria nº 386 de 25 de março de
2008, atualmente mais de 50% dos jovens de 15 a 17 anos não estão
matriculados na educação básica e milhões de jovens com mais de 18 anos
e adultos não concluíram o ensino médio, configurando uma grande dívida
da sociedade com parte de sua população. A análise dos dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE (2011) reforça que a
passagem dos anos não alterou tal situação, indicando que apenas 51,6%
dos garotos entre 15 e 17 anos frequentavam o ensino médio naquele
ano. Tais jovens apresentaram uma taxa de escolarização de 83,7%, um
pouco maior se comparada a 2001 (81%) quando somente 36,9% dessa
faixa etária estava no ensino médio, revelando alta defasagem idade/série.
Os jovens que ainda permanecem no ensino médio vivem uma
situação precária em relação à permanência e à aprendizagem, incorrendo
em evasão, especialmente nas escolas públicas, e apresentam dificuldades
em conectar-se com as proposições da educação escolar. Tais questões
resultam da própria falta de clareza acerca do papel dessa etapa da
escolarização e da importância do nível médio, seguinte ao ensino
fundamental, e de sua relação com o mercado de trabalho, com o ensino
superior e com a formação pensada em termos mais amplos, relacionada
às noções de autonomia e cidadania. Esse mesmo estudo propõe uma
reestruturação do modelo pedagógico que colabore na superação do
dualismo entre o ensino propedêutico e o ensino profissional.
Diante disso, o Ministério da Educação, por meio da Resolução CNE/
CEB nº 2, de 30 de janeiro de 2012, definiu as diretrizes curriculares
nacionais para o ensino médio. Salientamos o artigo quinto do capítulo
dois, que estabelece como base legal e conceitual de oferta e organização
do ensino médio o “reconhecimento e aceitação da diversidade e da
realidade concreta dos sujeitos do processo educativo, das formas de
produção, dos processos de trabalho e das culturas a eles subjacentes”.
Embora o texto, em geral, pouco utilize o conceito de juventude, vemos
aqui uma brecha para que se prossiga a provocação que aqui iniciamos
em relação ao tema da juventude e do ensino de História no ensino
médio. Ela está conectada com o princípio da contextualidade, dentro
da argumentação anterior que reconhece a necessidade de o conteúdo

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de História debater com o cotidiano, problematizá-lo, desacomodá-lo,


deixando o estudante andar por caminhos ainda não trilhados.
Numa sociedade marcada pela desigualdade socioeconômica, as
perspectivas e os projetos futuros tornam-se marcadamente construídos
em trajetórias individuais de seus jovens, credores de uma dívida social
imensa, impelidos a responder às perguntas da juventude: “quem são?
o que querem ser? o que podem ser?” Provas de vestibulares, exames
nacionais, fichas de emprego, apelos da contravenção, são parte do
conjunto de problemas a serem enfrentados pela juventude brasileira. Por
vezes, tais exigências sociais afastam o jovem das proposições curriculares
da escola. É o caso do sujeito que evade da escola em função de demandas
de trabalho ou, ainda, do estudante que se interessa apenas pelos ditames
de concursos e provas que lhe são exigidos para a continuidade dos estudos
e a construção de um percurso profissional. Como estudar História com
esses jovens? As possíveis respostas não serão construídas sem o debate
aberto e a participação de seus protagonistas: jovens/estudantes e adultos/
professores. Isso implica desacomodar-se.
O ensino de História pode proporcionar o desenvolvimento de um
olhar complexo, com as indagações e o aparato conceitual específico
dessa área. Trata-se de mirar a humanidade e suas questões presentes
e passadas. Fazer parte do grupo de especializações que chamamos de
Ciências Humanas é o primeiro elemento que podemos destacar na
proposição das diretrizes curriculares nacionais para o ensino médio. É
preciso atentar, porém, para que essa proposta mantenha o espaço e o
princípio de cada área nos momentos em que nos desafiamos a praticá-la
em nossos cotidianos educativos. Os anseios e devaneios da juventude,
vividos na pluralidade contemporânea de experimentações e criações das
culturas juvenis, podem tornar-se um problema interessante de pesquisa
no campo das Ciências Humanas em geral e da História, em específico.
Isso possibilita a criação de perguntas, por exemplo, sobre como viviam
jovens em outros tempos e espaços, quais eram seus fazeres e saberes,
seus conceitos e preconceitos.
Outro elemento que ressaltamos está conectado ao combate às
diversas formas de intolerância, de racismo e de xenofobia que se
tornaram pauta de muitas agendas políticas dentro e fora de nosso País,
com repercussões no campo educacional e no ensino de História. A Lei
nº 10.639/03, modificada pela Lei nº 11.645/08, incluiu a obrigatoriedade
do ensino de História e cultura afro-brasileira, africana e indígena no
currículo escolar, promovendo uma formação sobre as relações étnico-
raciais na educação básica. Os desafios em contemplar e experimentar
essas temáticas no cotidiano escolar estão relacionados com a perspectiva
de inserção dos jovens no âmbito da política e das relações sociais próprias
ao mundo adulto, exigindo novamente uma busca de compreensão
da sociedade em que se situam, aqui destacadamente marcada pela
multiculturalidade e pela desigualdade. Reincidimos em falar do ensino
de História como propulsor de olhares que carregam a perspectiva de
nossas próprias questões, despertando uma paixão pelo encontro com a

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pluralidade. São olhares instrumentalizados pela pesquisa e orientados


por docentes instigados em proposições criativas de ensino.
Quando reconhecemos o sujeito jovem em sua pluralidade também
podemos reconhecer que não apenas ensinamos para ele, mas estudamos
com ele, interrogamo-nos e encaramos, de forma conjunta, a perplexidade
diante das questões históricas e sociais.

O patrimônio e a pesquisa na aula de História

O ensino de História já serviu a muitos propósitos, desde um


conhecimento usado pelos governantes para configurar uma visão do
passado que pudesse fortalecer sentimentos patrióticos até um saber
útil para exibir em conversas, evidenciando a virtude intelectual de uma
boa memória. Hoje, na esteira de diferentes concepções e abordagens,
buscamos construir outros jeitos de ensinar História, problematizando-a
como conhecimento pronto e cheio de ideias conclusivas. Nessa
perspectiva, novos tópicos ou releituras de temas clássicos entram
em cena no currículo escolar. Um deles é o patrimônio. Polêmico por
servir a “muitos senhores”, é um assunto que tem potencialidade para
promover situações de pesquisas no ensino médio, colocando os jovens
em contato com as manifestações, realizações e representações do Brasil
e de outros países. Também possibilita tramar questões em investigações
sobre a memória nacional, como as práticas culturais de povos de outros
continentes. Ensino de História e pesquisa: o que tudo isso tem a ver
com patrimônio?
Em 2009, o Ministério da Educação apresentou o programa Ensino
Médio Inovador, pretendendo superar a dualidade histórica desse nível
de ensino ao incorporar o caráter propedêutico e de preparação para
o trabalho. A intenção foi a articulação interdisciplinar, por áreas de
conhecimento, com atividades integradoras definidas com base em
quatro grandes temas: trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Tratava-se
de incentivar a construção de um currículo organizado não apenas em
torno de disciplinas, mas também de situações, tempos e espaços diversos
favoráveis à iniciativa, à autonomia e à atuação social dos jovens. Na
mesma linha, em maio de 2011 foi aprovado o Parecer CNE/CEB nº 5/2011,
que estabeleceu novas diretri­zes curriculares especificamente para o
ensino médio, apontando que:

(...) a organização cur­ricular do ensino médio deve oferecer tempos e


espaços próprios para estudos e atividades que permitam itinerários
formativos opcionais diversificados, a fim de melhor responder à
heterogeneidade e pluralidade de condições, múltiplos interes­ses e
aspirações dos estudantes, com suas especificidades etárias, sociais e
culturais, bem como sua fase de desenvolvimento. (Parecer CNE/CEB
nº 5/2011 – Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino médio).

Indica-se a necessidade de ampliar o diálogo com os pertencimentos


e estranhamentos dos jovens do ensino médio, orientando as estratégias

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de aulas de História para leituras plurais do passado. O patrimônio e a


memória constituem bons temas para o debate e a reflexão sobre o passado
quando se entende a memória como campo de lutas políticas e culturais.
São assuntos provocativos para a pesquisa nas aulas de História, campo
de possibilidades para ensiná-la tomando como inspiração métodos e
técnicas do fazer histórico: formular hipóteses, classificar fontes históricas,
iniciar o aluno na explicação histórica. Assim, ensinar História passa a ser
ensinar a fazer história, de modo que os alunos aprendam como se produz
o conhecimento histórico e que o passado pode ser analisado segundo
muitos pontos de vista (Meneses, 2000).
A pesquisa em História poderá também colocar os jovens em
contato com o patrimônio documental, experiência que se anuncia como
profícua pela curiosidade que provoca nos alunos. As observações de
Corso (s.d.),após vivenciar com seus alunos uma experiência no Arquivo
Público do Rio Grande do Sul, são interessantes para pensar as questões
aqui apresentadas:
No momento em que os alunos entram no prédio do arquivo que
abriga milhões de documentos, acontece o primeiro estranhamento.
O prédio que foi especificamente planejado para comportar tamanha
documentação chama bastante atenção dos alunos. São os documentos
assim tão importantes que necessitem ser guardados em um
determinado lugar, com tantos cuidados?

O contato dos jovens com o patrimônio documental é importante


para que compreendam a complexidade da construção do conhecimento
histórico. Um aluno em uma das oficinas do Arquivo Público do Rio Grande
do Sul disse: “agora eu sei como é feito um livro de História”. Aproximar
o ensino da História dos procedimentos do historiador torna a pesquisa
imprescindível e, quem sabe, uma possibilidade de envolver os jovens
com a potência dessa disciplina: compreender o presente.
Para pensar o patrimônio no currículo escolar, recomendado por
pareceres e resoluções, imaginamos o movimento de fios que compõem
uma trama tecida. O patrimônio dado como saberes, formas de expressão,
celebrações, lugares e produtos materiais frutos da criação de homens e
mulheres em tempos e espaços diferentes pode também constituir um
dos fios que puxa outros e forma sentidos para o presente e o passado.
Na configuração de que o patrimônio vai muito além do artístico, dos
objetos e dos prédios, valorizando também a relação da sociedade com a
sua cultura, é fundamental compreendê-lo como parte da vida cotidiana.
Para Canclini (1994), o patrimônio cultural é o que um conjunto social
considera como sua cultura e o que o diferencia de outros grupos. Mais do
que monumentos históricos, edificações, objetos e outros bens materiais,
envolve também a experiência condensada em saberes e fazeres, os modos
de usar e os espaços físicos. Tudo isso sintetiza a forma como determinados
grupos sociais concebem a vida e o mundo. O patrimônio possibilita que
o professor foque também espaços e práticas importantes para os jovens
estudantes do ensino médio. E isso não significa transformar as aulas de
História em palco de reconhecimento e pertencimento. Ao contrário, pode

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sim provocar a curiosidade pelo estranhamento de diferentes concepções


de patrimônio que pautam os critérios de seleções dos países orientais,
por exemplo. No Japão, a permanência dos objetos é menos importante
do que o conhecimento para produzi-los. Hartog (2006) comenta sobre
o santuário d’Ise, reconstruído de forma idêntica a cada 20 anos, o que
evidencia uma lógica que não busca a manutenção da visibilidade desses
monumentos religiosos, mas o saber ou a técnica de produção dos templos
de madeira.
É necessário instigar o jovem a elaborar hipóteses sobre o que os
bens significam para quem os admira hoje. Isso não redunda em ignorar
o sentido construído historicamente para determinados patrimônios.
Existem obras singulares que sintetizam os desafios enfrentados pela
sociedade que os elaborou: fortes motivos para serem preservadas,
debatidas e acessadas por todos.
Cabe à História debater a memória, investigar o contexto das
escolhas e seleções dos bens protegidos pelas políticas patrimoniais e,
principalmente, o porquê de alguns serem destruídos. Quem participa
dessas escolhas? Quem está representado nas indicações? Quem está
ausente? Quais as diferentes identidades em face do patrimônio? Por
que certos objetos são favoritos e definidos como mais relevantes do que
outros para a construção de uma imagem oficial da Nação?
Ouro Preto foi a primeira cidade a receber o reconhecimento de
patrimônio brasileiro, numa referência não só à arte barroca, mas também
ao palco da construção da imagem de Tiradentes como “herói” nacional.
Não por acaso o nome de Tiradentes é o primeiro inscrito no livro de
aço (Livro dos Heróis da Pátria) em que estão elencados os nomes de
personagens históricos que, por determinação legal, foram elevados à
condição de heróis nacionais. O livro encontra-se hoje no Panteão da
Liberdade e da Democracia Tancredo Neves (Panteão da Pátria), localizado
em Brasília.
O patrimônio era visto como uma pedagogia pública para ensinar
aos brasileiros sobre seu passado e, igualmente, instituí-lo. Os bens
patrimoniais deveriam ser preservados e cultuados como objetos que
materializavam o passado, tal a vinculação entre patrimônio e nação. Mas
o patrimônio não é somente o edificado ou o “de pedra e cal”. É necessário
compreendê-lo de forma mais ampla, presente nas ruas, nas praças, nas
escolas, em nossas casas, nas práticas culturais dos jovens que circulam
pelas escolas todos os dias. O professor insere-se nessa questão tanto
possibilitando uma abordagem crítica do patrimônio quanto trabalhando
com os patrimônios não consagrados pelas políticas públicas, ou seja,
com as referências culturais dos jovens estudantes ou de outros povos.
Com esse propósito, entendemos que a sala de aula é espaço para
efetivar situações de aprendizagens que instiguem os alunos a observar,
identificar e pesquisar os múltiplos sentidos do patrimônio cultural
brasileiro. Para isso, podemos nos basear nas categorias que o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)/Ministério da Cultura
(MinC) utiliza em seus trabalhos de identificação e reconhecimento do
patrimônio brasileiro:

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• Os lugares: feira, casa, praça, parque, rua, cachoeira, lagoa, rio,


sítio arqueológico, centro da cidade, construção antiga, igreja etc.
• As celebrações: festas dos santos padroeiros, festividades dos
terreiros de candomblé, comemorações das datas históricas ou
relacionadas à agricultura, festas que marcam rituais de alguns
povos indígenas etc.
• As formas de expressão: música, dança, teatro, literatura, causos,
pinturas, esculturas, cantigas de trabalho, línguas indígenas,
dialetos, sotaques etc.
• Os saberes: receita de uma comida, técnica especial para produzir
algo ou tocar um instrumento musical, um jeito de quebrar coco,
fazer queijo e farinha, garimpar, construir uma casa de taipa ou
madeira, cultivar a mandioca etc.

Esse conjunto foi levado em conta pelas políticas públicas a partir


do Decreto nº 3.551/200013, que confere reconhecimento às expressões
culturais por muito tempo ignoradas. O entendimento plural do conceito
de patrimônio incita a pensá-lo para além dos bens consagrados pelas
políticas de preservação, uma vez que a história de uma cidade, por
exemplo, é feita por seus bens materiais e naturais, mas, principalmente,
pela vida que acontece, seja em bairros operários, em áreas nobres ou nas
vilas, sendo fundamental a ideia de que o patrimônio existe nos museus,
nos centros culturais, na cultura produzida por determinados grupos
ou, como se considera recentemente, nos conhecimentos e tradições de
grupos indígenas e afro-brasileiros.
As diferentes expressões da cultura juvenil podem ser estudadas
como um patrimônio não consagrado, parte da vida dos grupos juvenis que
circulam pelas escolas. A própria Unesco tem considerado os jovens como
sujeitos de ações patrimoniais. O Fórum Juvenil do Patrimônio Mundial e
o Fórum Juvenil Ibero-Americano do Patrimônio Mundial são espaços que
legitimam os jovens como atores políticos e sociais, capazes de influenciar, 13
O Decreto nº 3.551/2000
por meio da participação, importantes processos de transformação no instituiu o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial
cenário das políticas públicas de cultura. Destaca-se o documentário em quatro livros: I – Livro de
Registro dos Saberes, inscritos
Sou Jovem, meu patrimônio é o Mundo,14 resultado do Fórum Juvenil do conhecimentos e modos de
Patrimônio Mundial de 2010. fazer enraizados no cotidiano
das comunidades; II – Livro de
De maneira mais ampla, para além do nacional, pensamos no Registro das Celebrações, inscritos
patrimônio genético que acentua não somente a conservação dos recursos rituais e festas que marcam a
vivência coletiva do trabalho, da
do planeta, mas os modos de vida e os conhecimentos tradicionais de religiosidade, do entretenimento
e de outras práticas da vida
populações que são alvo da biopirataria que alimenta o mercado mundial social; III – Livro de Registro
de produtos biotecnológicos. É uma soma de questões interdisciplinares das For mas de Expressão,
inscritas manifestações literárias,
para discutir a manipulação de material genético; a tensão entre o musicais, plásticas, cênicas e
lúdicas; IV – Livro de Registro
uso coletivo dos conhecimentos tradicionais e seu uso na indústria dos Lugares, inscritos mercados,
farmacêutica e de cosméticos; os processos de clonagem; a titularidade da feiras, santuários, praças e demais
espaços onde se concentram e
propriedade genética e as questões éticas, políticas e religiosas; a relação reproduzem práticas culturais
que se estabelece entre grupos indígenas e grandes empresas que tentam coletivas. Em 2012, o Brasil
contava com 25 bens registrados
patentear conhecimento tradicional de uso coletivo; as lutas do MST e da nesses livros.
Via Campesina contra as empresas transnacionais que modificam produtos 14
Disponível no Youtube.

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agrícolas e sementes a fim de gerar dependência externa em pequenos


agricultores, entre tantos outros temas.
Em caráter provisório, é possível afirmar que há desafios que se
impõem todos os dias aos educadores que atuam com os jovens nas escolas
de ensino médio, dos quais se destaca aprender a lidar com a diversidade
e provisoriedade que nos cerca. Não é fácil, sabemos! Nessa perspectiva,
como ensinar História aos jovens? Ficamos com as palavras de Mário
Chagas (2004, p.144): “interessa pensar a educação como alguma coisa
que não se faz sem se ter em conta um determinado patrimônio cultural
e determinados aspectos da memória social (...)”. Uma educação aberta
à criação.

Considerações finais

O ensino de História, mais uma vez, é colocado em xeque, na medida


em que as mudanças propostas e a nova realidade social e cultural, na
qual está inscrito o ensino médio, exigem da docência uma tomada de
decisão em relação ao que se revela como fundamental na organização do
currículo e na seleção dos conteúdos para esse nível de ensino. O professor
de História deve pensar o seu exercício profissional no interior de uma
discussão que não pode deixar de levar em conta a pesquisa como prática
superior de aprendizagem conceitual; o tema da juventude e dos seus
modos de vida como elementos diferenciadores das relações dos jovens
com a escola, com a própria história e com a questão do patrimônio, este
pensado como lugar de aprendizagem sobre a vida das comunidades e a
compreensão da história local.
Reafirmamos que o ensino de História pode ser pensado no interior
das novas disposições curriculares como aglutinador de outras disciplinas,
sobretudo a Geografia e as Ciências Sociais, no sentido de promover a
pesquisa como o recorte que põe conceitos em movimento e leva os
estudantes não apenas a acumularem conhecimentos históricos, mas
a utilizarem uma porção de conceitos para compreender a história
do passado e o seu próprio mundo. A construção dessa possibilidade
pedagógica não pode deixar de se ater à especificidade de uma juventude
que desafia os modos tradicionais de aprender em história e, ao mesmo
tempo, precisa de conceitos para refinar sua visão de mundo.

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Nilton Mullet Pereira, doutor em Educação pela Universidade Federal


do Rio Grande do Sul (UFRGS), é professor do Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
niltonmp.pead@gmail.com

Fernando Seffner, doutor em Educação pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (UFRGS), é professor do Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
fernandoseffner@gmail.com

Carmem Zeli Gil, doutora em Educação pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (UFRGS), é professora da área de Ensino de História da
Faculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
carmemz.gil@gmail.com

Carla Meinerz, doutora em Educação pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (UFRGS), é professora da área de Ensino de História da
Faculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
carlameinerz@gmail.com

Recebido em 27 de junho de 2013.


Aprovado em 3 de dezembro de 2013.

174 Rev. bras. Estud. pedagog. (online), Brasília, v. 95, n. 239, p. 152-174, jan./abr. 2014.
DOSSIÊ – Bases Nacionais e o Ensino de História embates, desafios e
possibilidades na/entre a Educação Básica e a formação de professores
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.77041

Vitória da tradição ou resistência da


inovação: o Ensino de História entre a
BNCC, o PNLD e a Escola
Victory of tradition or resistance of
innovation: the teaching of history between
the BNCC, the PNLD and the School

Sandra Regina Ferreira de Oliveira*


Flávia Eloisa Caimi**

RESUMO
Assentadas na premissa de que entre o currículo prescrito, o currículo
editado e o currículo em ação ocorrem aproximações e distanciamentos
cujos contornos escapam a quaisquer formas de controle prévio, debruçamo-
nos, neste estudo, sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o
Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e os contextos
escolares em que se efetivam tais políticas curriculares. A abordagem se
caracteriza como pesquisa bibliográfica e documental, em que se focaliza
especificamente o componente curricular História nos Anos Finais do Ensino
Fundamental. Os resultados permitem concluir que a versão homologada da
BNCC guarda estreitas relações com a tradição historiográfica que privilegia
uma abordagem cronológica, linear, quadripartite/tripartite e eurocêntrica.
Ao adotar como um dos procedimentos básicos a identificação dos eventos
considerados importantes na história do ocidente, obstaculiza-se o acesso
a outras estratégias de seleção e organização do conhecimento histórico.
O PNLD, por sua vez, parece assumir o papel de guardião do currículo
prescrito na BNCC, zelando pela oferta de livros e materiais didáticos
que tendem a impor aos professores e estudantes uma matriz de referência

*
Universidade Estadual de Londrina. Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: sandraoliveira.uel@
gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-9777-4461
**
Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: caimi@
upf.br - https://orcid.org/0000-0001-5509-6060

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descontextualizada da realidade da escola, reduzindo possibilidades de


construções coletivas frente às singularidades locais e regionais. Contudo, é
no currículo em ação, no cotidiano da escola, nas práticas de seus principais
atores, que reside o impulso da criação, da inovação e da resistência.
Palavras-chave: BNCC. PNLD. Escola. História. Currículo.

ABSTRACT
Based on the premise that between the prescribed curriculum, the edited
curriculum and the curriculum in action occur approximations and distances
whose contours escape any form of prior control, we focus, in this study, on
the Base Nacional Comum Curricular [National Common Curriculum Base]
(BNCC), the Programa Nacional do Livro e do Material Didático [National
Book and Teaching Material Program] (PNLD) and the school contexts in
which such curricular policies are carried out. The approach is characterized
as bibliographic and documentary research, in which it focuses specifically
on the curricular component History in the Final Years of Elementary School.
The results allow us to conclude that the homologated version of BNCC has
close relations with the historiographical tradition that favors a chronological,
linear, quadripartite/tripartite and eurocentric approach. By adopting as one
of the basic procedures the identification of events considered important in
the history of the west, it impedes access to other strategies of selection and
organization of historical knowledge. The PNLD, in turn, seems to assume
the role of guardian of the curriculum prescribed at BNCC, ensuring the
supply of books and teaching materials that tend to impose on teachers and
students a reference matrix decontextualized of the school reality, reducing
possibilities for collective constructions in the face of local and regional
singularities. However, it is in the curriculum in action, in the daily life of the
school, in the practices of its main actors, that lies the impulse of creation,
innovation and resistance.
Keywords: BNCC. PNLD. School. History. Curriculum.

Introdução

Em 20 de dezembro de 2017, por meio da Resolução CNE/CP nº 2, a Base


Nacional Comum Curricular (BNCC) foi homologada no Brasil. Conforme
divulgado no portal do Ministério da Educação (MEC), ela deve “ser respeitada
obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da
Educação Básica” (BRASIL, 2017a). Ali também é anunciado que caberá ao

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Conselho Nacional de Educação realizar as tratativas para a sua implementação


e se disponibiliza nove documentos que compõem o processo, “desde a chegada
da BNCC ao Conselho Nacional de Educação até a publicação da Resolução”
(BRASIL, 2017a).
No ano seguinte à Resolução, o MEC veiculou propaganda (BRASIL,
2018a) na grande mídia nacional, mostrando crianças das cinco regiões
brasileiras que, a partir de seus lares, se preparam e se dirigem à escola. No
texto, narrado em concomitância com as imagens, afirma-se:

O Brasil terá, pela primeira vez, uma Base Nacional Comum Curricular!
O documento é democrático e respeita as diferenças. Com a Base, todos
os estudantes do país, de escolas públicas ou particulares, terão os mesmos
direitos de aprendizagem. [A aula começa e o/a professor/a fala] Hoje a
aula é sobre cidadania. [O narrador prossegue] Isso é bom. Se a base da
educação é a mesma, as oportunidades também serão (BRASIL, 2018a).

Nessa propaganda, em pouco mais de 30 segundos, o Ministério da


Educação expõe, claramente, o quão distante está da escola real. No conjunto
da obra, as imagens, os personagens e o texto remetem às representações
sobre escolas, alunos, famílias, professores, sala de aula, conteúdo, currículo,
aprendizagem, transporte escolar, que retratam as concepções nas quais, em
síntese, alicerça a ideia de obrigatoriedade da BNCC, em sua versão final. Tal
documento se apresenta para a sociedade como a régua homogeneizadora, com
poderes de equalizar as profundas diferenças que assolam o Brasil. A forma como
a BNCC foi relatada via mídia, com o objetivo de transmitir uma mensagem
para a população leiga, é um campo a parte a ser estudado, cujos resultados
desvelam concepções e enriquecem o pensar sobre a escola pública brasileira
(BRESSANIN, 2018).
O que a publicidade do MEC (BRASIL, 2018a) não revela é que a
construção da BNCC foi travada em meio a uma arena conflagrada, o que é
salutar, visto que um dos poucos consensos possíveis no âmbito da literatura
especializada é o conceito de currículo como um campo de constante disputa.
No entanto, compreender o currículo nessa perspectiva, em se tratando do Brasil
pós-2016, é temática que se amplia para além do âmbito educacional e, nesse
sentido, a história de construção da BNCC é marcada por sutis rupturas diante do
Estado democrático. A aprovação do documento em 2017, de forma aligeirada,
sem a parte correspondente ao Ensino Médio, e sem considerar solicitações de
diversos setores para ampliação do debate, retrata que no decorrer dos anos a

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concepção do que deveria ser uma base nacional comum foi se distanciando
do previsto na Constituição Federal (BRASIL, 1988), na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), no Plano Nacional de Educação
(BRASIL, 2014) e nas Diretrizes Curriculares Nacionais, culminando com a
elaboração de um documento curricular prescritivo, definidor de conteúdos
a serem ensinados e competências a serem desenvolvidas, ainda que o MEC
entenda e defenda que a BNCC não é currículo (AGUIAR, 2018).
Podemos afirmar, na esteira do anunciado por Alice Casimiro Lopes
(2018), quão significativo foi o volume de documentos que normatizaram
a questão curricular no Brasil nas últimas décadas. Ao retomar a história da
construção de cada um deles, deparamo-nos com cenários de intensas lutas,
acompanhadas de constantes acordos, e assim prosseguíamos escrevendo a
história da educação escolar brasileira. Ocorre que, após 2016, a sociedade
democrática que supúnhamos ser, um berço para lutas-acordos-lutas-acordos, foi
alterada radicalmente com a destituição da presidenta eleita. O que se desenhou
no país, a partir de então, é uma luta sem possibilidade de acordos, pois estamos
a operar com grupos que se definem detentores de verdades absolutas em torno
de vários assuntos, inclusive sobre o que é uma escola, como e o que deve ser
ensinado nesse lugar.
É a partir desse contexto que tecemos a abordagem sobre a Base Nacional
Comum Curricular, com recorte definido para o componente curricular História
destinado aos Anos Finais do Ensino Fundamental. Objetivamos abordar as
especificidades que identificamos na BNCC a partir do conceito de currículo
(prescrito, editado e em ação) em estreita relação com o Programa Nacional do
Livro e do Material Didático (PNLD). A escolha pelo PNLD se justifica pelo fato
de que essa política pública atravessou a elaboração dos documentos curriculares
citados e deles recebeu aportes que definiram e redefiniram os diversos editais
que normatizaram a produção dos livros didáticos no país nas últimas décadas.
O livro didático também pode ser compreendido como uma orientação
curricular, uma vez que nele se materializam as prescrições curriculares, como
afirmam Franco, Silva Junior e Guimarães (2018, p. 1028):

O primeiro edital do PNLD da “era da Base” foi publicado em julho


de 2017, ou seja, antes da homologação da BNCC que ocorreu em 20
dezembro de 2017, constrangendo autores e editores a (re)elaborarem,
adaptarem as coleções, de acordo com um Documento de política pública
em processo de elaboração e discussão.

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Ainda, segundo os autores,

[...] a BNCC cumpre um papel radical de regulação externa, pois determina


o que será ensinado (os conteúdos), como será ensinado (as metodologias),
quando (a ordenação do tempo escolar), o que e como será avaliado, enfim
o que deve e pode ser ensinado e aprendido (FRANCO; SILVA JUNIOR;
GUIMARÃES, 2018, p. 1032).

A abordagem metodológica adotada nesta pesquisa recai sobre estudos


bibliográficos e análise de documentos, em especial a BNCC da área de História
para os Anos Finais do Ensino Fundamental, o Edital PNLD 2020 e o Guia de
Livros Didáticos PNLD 2020, do componente curricular História.
A estrutura do artigo se constitui de quatro seções, além desta primeira em
que é apresentada a introdução. Na segunda seção explicitamos o conceito de
currículo prescrito e, tomando por referência o documento da BNCC da área de
História para os Anos Finais do Ensino Fundamental, destacamos as principais
proposições e intentamos apontar o que é novo em relação à tradição pedagógica
e historiográfica. Na terceira seção, tendo por eixo o conceito de currículo editado,
estabelecemos uma análise cotejada entre o constante na BNCC e no PNLD,
tomando o Edital e o Guia de Livros Didáticos do PNLD 2020 – Área de História,
como documentos base. Na sequência, constituindo a quarta seção, discorremos
sobre o currículo em ação, dispondo-nos a compreender quais perspectivas
podem ser anunciadas para a concretização da proposta da BNCC no cotidiano
das escolas. Finalizamos a abordagem com a quinta seção, intitulada Indignações
finais, na qual expomos preocupações com as políticas públicas atuais que, em
nosso entendimento, dilapidam os poucos avanços que a sociedade brasileira
conseguiu conquistar, a duras penas, com relação à escola pública. Por outro
lado, também usamos o fio da esperança para tecer o amanhã, pois aprendemos
com Paulo Freire (2011, p. 11) que “nas situações-limite, mais além das quais
se acha o ‘inédito viável’, às vezes perceptível, às vezes, não, se encontra razões
de ser para ambas as posições: a esperançosa e a desesperançosa”.

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Caminhos do currículo prescrito: um olhar para a BNCC

Em seus estudos, Sacristán (2013a) anuncia uma visão processual de


currículo que contempla três planos principais: os fins, objetivos ou motivos; as
ações e atividades; e os resultados ou efeitos reais do projeto educacional. Tais
planos se desdobram em diversas dimensões, como currículo oficial/prescrito,
currículo interpretado, currículo realizado, currículo recepcionado, currículo
avaliado. Ainda se pode falar em currículo editado (BENITO, 2016), currículo
nulo (MEZA; CEPEDA, 2001), currículo oculto (SILVA, 2010).
Dentre essas inúmeras formas de conceber e abordar o tema do currículo, nesta
seção nos deteremos no documento denominado Base Nacional Comum Curricular,
entendido como expressão de um projeto de educação para a nação brasileira, com
função normativa e reguladora. Como texto curricular visível (SACRISTÁN,
2013a), este projeto tem sido denominado de currículo idealizado, currículo
explicitamente almejado, currículo oficial, currículo formal, currículo prescrito.
A BNCC brasileira consiste em um documento de 600 páginas, estruturado em
cinco partes, assim nomeadas (BRASIL, 2017b): Introdução, Estrutura da BNCC,
Etapa da Educação Infantil, Etapa do Ensino Fundamental, Etapa do Ensino Médio.
Nosso foco de estudo recai sobre os itens (4.4.2.) História; Competências específicas
de História para o Ensino Fundamental (BRASIL, 2017b, p. 397-402); (4.4.2.2.)
História no Ensino Fundamental – Anos Finais: unidades temáticas, objetos de
conhecimento e habilidades (BRASIL, 2017b, p. 416-433).
Neste corpus, buscamos destacar as principais proposições relativas aos
saberes históricos selecionados e às operações cognitivas ensejadas, no esforço de
apontar o que pode ser caracterizado como inovação, em relação aos pressupostos
historiográficos e pedagógicos vigentes no campo do Ensino de História. Aqui
nos valemos da premissa trazida por Sacristán (2013b, p. 27), quando afirma que
todo o texto curricular, embora traduzido, interpretado, assumido ou subvertido
pelos leitores, “é importante, à medida que difunde os códigos sobre o que deve
ser a cultura nas escolas, tornando-os públicos”. Vejamos, então, que códigos
são anunciados para a história escolar nos Anos Finais do Ensino Fundamental.
Primeiramente, no horizonte de um ideário positivo, identificamos os
pressupostos teórico-metodológicos que orientam a proposta dos objetos de
conhecimento e das habilidades. Ainda que não sejam nomeados dessa forma no
texto curricular, encontramos os seguintes pressupostos de formação histórica:
(1) a relação passado-presente é orientadora da dinâmica do ensino-aprendizagem,
privilegiando-se um passado que dialogue com o tempo atual (BRASIL, 2017b,
p. 397); (2) a História é entendida como construção e disputa pelo sentido, “ela
é a correlação de forças, de enfrentamentos e da batalha para a produção de

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sentidos e significados, que são constantemente reinterpretados por diferentes


grupos sociais e suas demandas” (BRASIL, 2017b, p. 397); (3) sobre a narrativa
histórica, defende-se que um objeto só se torna documento quando um narrador
lhe confere sentido e, através dele, expressa a dinâmica da vida das sociedades
(BRASIL, 2017b, p. 397); (4) o tratamento da História se faz com diferentes fontes
e tipos de documentos, pois “os registros e vestígios deixados pelos indivíduos
[...] carregam em si mesmos a experiência humana” (BRASIL, 2017b, p. 398);
(5) a dinâmica do estudo da história é concebida em círculos concêntricos – Eu,
Outro, Nós –, iniciando pelo sujeito, ampliando-se para o outro (diferente ou
semelhante), seguindo para outros povos e, finalmente, para o mundo (BRASIL,
2017b, p. 398); (6) a capacidade de comunicação, diálogo e argumentação
constitui ferramenta para lidar respeitosamente com a pluralidade, para enfrentar
problemas, tensões e conflitos, para superar contradições do mundo vivido
(BRASIL, 2017b, p. 398); (7) o trabalho com a história pode levar estudantes
e professores a desenvolver “atitude historiadora” e a produzir conhecimento
em âmbito escolar (BRASIL, 2017b, p. 398); (8) as operações cognitivas para
estimular o pensamento histórico compreendem “os processos de identificação,
comparação, contextualização, interpretação e análise de um objeto” (BRASIL,
2017b, p. 399); (9) a pluralidade e a diversidade cultural figuram especialmente
nas abordagens relacionadas à história dos povos indígenas originários e
africanos (BRASIL, 2017b, p. 401).
A efetivação destes pressupostos de formação histórica dos estudantes
ocorreria mediante três procedimentos básicos: (a) pela identificação dos
eventos considerados importantes na história do Ocidente, ordenados de forma
cronológica e localizados no espaço geográfico; (b) pela seleção, compreensão
e reflexão sobre os significados da produção, circulação e utilização de
documentos (materiais ou imateriais); (c) pela interpretação de diferentes
versões de um mesmo fenômeno, com vistas à elaboração de proposições
próprias (BRASIL, 2017b, p. 417).
O que se pode depreender até aqui é que esta terceira versão da BNCC guarda
estreitas relações com a tradição historiográfica que privilegia uma abordagem
cronológica, linear, justaposta, do passado para o presente, quadripartite/tripartite,
eurocêntrica. Ainda que anuncie que a relação passado-presente é orientadora
do estudo, ao adotar como um dos procedimentos básicos a identificação dos
eventos considerados importantes na história do ocidente, de forma cronológica
e linear, acaba por restringir outras possibilidades de seleção e organização
do conhecimento histórico, fortalecendo uma perspectiva eurocentrada. Esta
normativa fica mais clara quando se estende o olhar para as unidades temáticas
e objetos de conhecimento, que se resumem a uma tábua de conteúdos muito
assemelhada ao sumário de livros didáticos de décadas anteriores.

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Nesta versão da BNCC prevalece a ambição de estudar toda a história, das


cavernas ao terceiro milênio, ou das origens do homem à era digital, parafraseando
o título de conhecidas coleções didáticas. Não se visualiza nenhuma operação
de recorte e seleção dos conteúdos, que abra espaço para outras possibilidades
temáticas e interpretativas. Isso é exposto textualmente no documento curricular,
quando se anuncia a perspectiva cronológica como forma privilegiada de
registro de memória e a “seleção dos eventos históricos consolidados na cultura
historiográfica contemporânea” (BRASIL, 2017b, p. 416).
O tratamento da chamada “diversidade cultural” se desenvolve na mesma
direção, priorizando abordagens etnocêntricas, heteronormativas, do homem
branco. Não obstante o cumprimento da legislação relativa à educação para
as relações étnico-raciais, notadamente as Leis 10.639/2003 (BRASIL, 2003)
e 11.645/2008 (BRASIL, 2008), o texto curricular anuncia claramente o lugar
de apêndice que os povos indígenas, africanos e afrodescendentes ocupam no
curso da história ocidental:

A relevância da história desses grupos humanos reside na possibilidade de


os estudantes compreenderem o papel das alteridades presentes na sociedade
brasileira, comprometerem-se com elas e, ainda, perceberem que existem
outros referenciais de produção, circulação e transmissão de conhecimentos,
que podem se entrecruzar com aqueles considerados consagrados nos
espaços formais de produção de saber (BRASIL, 2017b, p. 401).

Se são “outros referenciais” que se entrecruzam com os “consagrados”,


trata-se de uma abordagem que não é a principal.
No que respeita às discussões de gênero, essas compõem o chamado
currículo nulo, ou seja, estão ausentes da proposta curricular da História. Ao
fazer a busca pelo descritor “gênero”, visualiza-se mais de 400 ocorrências ao
longo das 600 páginas da BNCC. Todavia, essas ocorrências tratam de gêneros
textuais, discursivos, literários, artísticos, orais, escritos, digitais, epistolares,
jornalísticos, narrativos, secundários, multissemióticos, hipermidiáticos,
normativos, narrativos, musicais, dentre outros. Na proposta de História para os
Anos Finais do Ensino Fundamental consta apenas duas menções à temática da
mulher na história, uma no sexto ano, apontando “O papel da mulher na Grécia
e em Roma, e no período medieval” (BRASIL, 2017b, p. 420) e outra no nono
ano, que propõe o estudo do “Anarquismo e protagonismo feminino” (BRASIL,
2017b, p. 428). Referências às populações LGBTQIA+ ou proposições de

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combate à violência de gênero também estão praticamente ausentes na proposta


de História, localizando-se apenas uma menção no 9º ano, ao apresentar a
habilidade EF09HI26 (BRASIL, 2017b, p. 431).
Na estruturação da BNCC, propõe-se uma correlação direta entre os objetos
de conhecimento e as habilidades a serem desenvolvidas, por meio de códigos.
Sabe-se que esta proposição cumpre a função de respaldar o currículo editado
(livro didático) e o currículo avaliado (testes padronizados, Enem etc.). A cada
objeto de conhecimento corresponde uma habilidade, de modo que no 6º ano
constam 19 habilidades, no 7º ano 17, no 8º ano são 27 habilidades e no 9º ano
são 36. Buscamos analisar quais operações cognitivas essas 99 habilidades
requerem dos estudantes, ao longo dos quatro anos que compõem os Anos
Finais do Ensino Fundamental.

TABELA 1 – HABILIDADES REQUERIDAS DOS ESTUDANTES NOS ANOS


FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL1
HABILIDADES 6º ano 7 º ano 8 º ano 9 º ano TOTAL
Identificar 7 5 13 13 38
Analisar 1 4 2 5 12
Descrever 3 3 5 11
Discutir 1 1 2 6 10
Caracterizar 2 2 2 2 8
Relacionar - - 1 4 5
Explicar 1 1 1 - 3
Conhecer 1 - 2 - 3
Comparar - 1 - 1 2
Reconhecer - - 1 - 1
Conceituar 1 - - - 1
Diferenciar 1 - - - 1
Associar 1 - - - 1
Estabelecer relações causais - - 1 - 1
Formular questionamentos - - 1 - 1
Aplicar - - 1 - 1
TOTAL 19 17 27 36 99
FONTE: Elaboração das autoras a partir da BNCC (BRASIL, 2017b).

1 Necessário esclarecer que nos detivemos no primeiro verbo de cada habilidade,


desconsiderando as situações em que dois verbos são indicados na mesma habilidade, como
identificar e analisar, ou descrever e discutir, por exemplo.

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Note-se que as habilidades predominantemente requeridas dos estudantes


são aquelas que propiciam operações cognitivas de menor complexidade, como
identificar, descrever, caracterizar, que totalizam 57 dentre os 99 requerimentos.
Além dessas, comparecem habilidades um tanto genéricas, como discutir,
conhecer, reconhecer (14 ocorrências). Habilidades que exigem operações de
pensamento mais sofisticadas, como analisar, relacionar, explicar, comparar,
conceituar, diferenciar, associar, estabelecer relações causais, formular
questionamentos e aplicar, têm reduzida presença no conjunto das habilidades,
compondo apenas 28 ocorrências, menos de um terço do total. Encerramos esta
seção afirmando nosso entendimento de que a proposta curricular prescrita na
BNCC se configura naquilo que Sacristán (2013b, p. 27) denomina um texto
regressivo, que “sequer diz aos ‘leitores’ algo sobre uma ‘terra prometida’, mas
se limita a reafirmar a tradição ‘tradicional’ – a expressão é válida, pois também
há tradições de progresso”. A questão agora é verificar que efeitos este texto
regressivo pode ter no currículo editado e no currículo em ação, tarefa a que
nos dedicaremos nas duas seções subsequentes.

Caminhos do currículo editado: um olhar para o PNLD

Por muitas décadas, até a homologação da BNCC, o livro didático ocupou


o lugar de currículo editado, na ausência de um currículo oficial nacional. De
acordo com Benito (2016, p. 45, tradução nossa), o livro didático, ainda que não
configure todo o programa escolar, é uma forma de materialização do currículo
editado, “a versão impressa da vulgata em que se traduz o currículo normativo
e a proposta de conhecimentos e ações que orientam a prática de ensino em um
grande número de escolas”.
Mediante esta acepção, focalizaremos nosso olhar em dois documentos
basilares do Programa Nacional do Livro Didático e do Material Didático – o
Edital de Convocação do PNLD 2018, Anos Finais do Ensino Fundamental
(BRASIL, 2018b) e o Guia de Livros Didáticos PNLD 2020: História
(BRASIL, 2019) –, no intuito de analisar como o currículo prescrito na BNCC
é operado no âmbito do PNLD, ensejando assim o currículo editado no Livro
Didático de História.
No Edital do PNLD 2020 (BRASIL, 2018b) consta cerca de 30
menções à Base Nacional Comum Curricular, evidenciando a expectativa
de total alinhamento entre os documentos. Em inúmeros excertos do Edital
fica estabelecido que o livro didático será avaliado em consonância com as

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competências e habilidades definidas na BNCC, e que serão excluídas as obras


didáticas que, dentre outros critérios, não apresentarem uma “abordagem capaz de
contribuir para o alcance dos objetos de conhecimento e respectivas habilidades
dispostos na BNCC” (BRASIL, 2018b, p. 39). É determinado, ainda, que “as
obras devem zelar, particularmente, pela presença e pela forma de abordagem
dos objetos de conhecimento alinhados às habilidades de cada componente
curricular ali presentes” (BRASIL, 2018b, p. 42). Ressalva-se, textualmente, que
as unidades temáticas da Base não devem necessariamente servir como critério
para a elaboração da obra, entretanto, paradoxalmente, obriga-se a “contemplar
todos os objetos de conhecimento e habilidades constantes na BNCC” (BRASIL,
2018b, p. 42). Na mesma direção, as orientações anunciadas no início de cada
volume do Livro do Aluno e no Manual do Professor devem, dentre outros,
“explicitar a correspondência do conteúdo com os objetos de conhecimento e
habilidades da BNCC” (BRASIL, 2018b, p. 43).
No Guia de Livros Didáticos do PNLD 2020 – História (BRASIL, 2019),
referente aos Anos Finais do Ensino Fundamental, localizamos 136 menções ao
documento da BNCC. Longo trecho do Guia é ocupado com a reprodução do
Edital, ressaltando essa estreita vinculação entre a BNCC e o PNLD. Enfatiza-
se veementemente que serão excluídas as obras que não contemplarem todos
os objetos de conhecimento e que não contribuírem adequadamente para o
desenvolvimento de todas as competências gerais e específicas constantes
na BNCC. Também é elucidativa desta vinculação a reprodução da ficha de
avaliação, que contém 47 páginas e apresenta um extenso checklist cujo sentido
é verificar a compatibilidade entre a BNCC e a coleção didática inscrita para
avaliação. Neste empreendimento, cada item, cada unidade temática, cada
legislação, cada objeto de conhecimento e respectivo código de habilidade
constante no texto da Base, é contrastado com os livros didáticos avaliados.
O que se conclui desta íntima relação estabelecida entre o currículo
prescrito e o currículo editado é a preparação de um terreno fértil para o
currículo avaliado, especialmente no contexto da avaliação em larga escala.
O poder regulador desta política curricular vai muito além do propósito de
estabelecer um projeto de educação nacional, na medida em que se mostra
gerencialista, homogeneizante e servil aos processos avaliativos externos.
Os materiais didáticos, dessa forma, promovem uma espécie de ponte
entre o currículo prescrito e o currículo avaliado, que tendem a impor aos
professores e estudantes uma matriz de referência descontextualizada da
realidade da escola, reduzindo possibilidades de construções coletivas frente
às singularidades locais e regionais, às culturas, identidades, subjetividades
e demandas comunitárias (HYPOLITO, 2010).

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OLIVEIRA, S. R. F. de; CAIMI, F. E. Vitória da tradição ou resistência da inovação...

No texto do Guia de Livros Didáticos do PNLD 2020 consta observações


em que os avaliadores sinalizam, de forma sutil ou explícita, os limites da
vinculação entre as duas políticas curriculares. Com relação à ênfase nos
objetos de conhecimento (conteúdos), ressalva-se que estes só ganham sentido
se provocarem reflexões com o tempo presente e contribuírem para tomadas
de decisões autônomas, justas e éticas (BRASIL, 2019). Ainda, convidam o
professor a “interferir na cronologia e nos fatos históricos selecionados na
coleção, de acordo com o que lhe parecer adequado e necessário, mantendo-se
em consonância com a proposta da BNCC” (BRASIL, 2019, p. 6). Sobre o
predomínio de habilidades de menor complexidade, como a identificação e a
descrição, enfaticamente presentes nas atividades e nas propostas avaliativas
das coleções, alertam o professor sobre a necessidade de extrapolar os limites
da memorização de informações e alargar os marcos tradicionais da disciplina
(BRASIL, 2019). Os avaliadores denunciam também a acanhada presença,
nas coleções, das “habilidades de discutir conceitos, comparar e diferenciar,
confrontar diferentes interpretações históricas, avaliar impactos de um processo
ou acontecimento histórico” (BRASIL, 2019, p. 26).
A noção de tempo, por sua vez, resumida à dimensão cíclica e linear no
texto curricular, precisa ser enfrentada pelo docente como categoria complexa,
experiência social e cultural que tem sua centralidade no sujeito (BRASIL, 2019).
Nessa direção, alertam o professor sobre as concepções quadripartite/tripartite
que orientam a história europeia/brasileira, respectivamente, e o seu caráter
marcadamente eurocêntrico, características preponderantes nas coleções didáticas
do PNLD 2020 (BRASIL, 2019). Nos temas relativos à história e cultura dos
povos indígenas, africanos e afro-brasileiros, os avaliadores asseveram que as
obras aprovadas “não conseguiram avançar no tratamento destas temáticas para
além do que aquelas aprovadas em editais anteriores avançaram, impulsionadas
pelas exigências das Leis nº 10.639, de 2003, e nº 11.645, de 2008” (BRASIL,
2019, p. 23). Da mesma forma, quanto às temáticas de gênero, constatam o
protagonismo masculino na abordagem dos processos históricos e o silenciamento
das relações homoafetivas e seu significado ao longo da história (BRASIL, 2019).
Quando se analisa os dois documentos na mesma perspectiva, como
realizado até aqui, não causa estranheza o fato de as coleções didáticas se
manterem dentro dos parâmetros da tradição historiográfica e da cultura
manualística que as vêm caracterizando há décadas, como currículo editado.
Não é desta BNCC que se poderá esperar rupturas com os cânones disciplinares
quase seculares, pois, como sinaliza Sacristán, no texto regressivo não há nem
mesmo uma “carga utópica” (SACRISTÁN, 2013b, p. 24), nem sequer “uma
terra prometida” (SACRISTÁN, 2013b, p. 27). Diante disso, o que podemos
esperar do currículo em ação? Acreditando que o professor é um “mediador

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OLIVEIRA, S. R. F. de; CAIMI, F. E. Vitória da tradição ou resistência da inovação...

decisivo” (ACOSTA, 2013, p. 189) entre o currículo prescrito e o currículo real,


como ele pode interpretar as partituras denominadas BNCC e Livro Didático?

Caminhos do currículo em ação: um olhar para professores e


estudantes na sala de aula

Compreendemos currículo em ação, na esteira de Sacristán (1998,


2013a), como o que se efetiva do proposto, do interpretado, do executado na
prática. Reconhecendo as propostas como pontos de partida, o autor destaca
que é na ação, na prática, que o estabelecido nos documentos se torna realidade,
se reveste de significado e assume um valor, por vezes, diferente do que o
almejado pelos propositores.
Quais seriam as ações, os movimentos em sala de aula, caso a proposta
para o Ensino de História nos Anos Finais do Ensino Fundamental se efetive?
A considerar as ações apresentadas na Tabela 1, infere-se que a movimentação
desejada aponta para professores e estudantes como sujeitos receptores de saberes
e executores de ações cognitivamente pautadas na identificação, descrição e
análise de algo já dado. O estabelecimento de relações causais e a formulação
de questionamentos, por exemplo, são habilidades contempladas uma única vez.
Esse é um ponto importante para se pensar as prioridades a partir das quais a
BNCC, em sua terceira versão, foi elaborada. Para avançar nas hipóteses sobre
o que podemos esperar do currículo em ação, em especial na área de História, e
como o professor constituirá o seu fazer pedagógico sob a regência, ou não, da
BNCC e do livro didático, convém, em poucas linhas, traçar um breve retrato
acerca da situação na qual se encontravam os livros didáticos de História em
2016 e quais reverberações eram identificadas no cotidiano escolar.
Em que pese todas as críticas ao PNLD, dentre as quais a que remete
à padronização de um formato de livro e de um saber a ser ensinado, é fato
a mudança identificada nos livros didáticos de História na direção de uma
sociedade mais plural, justa e includente. Também é fato a mudança nas
atividades propostas que, com o passar dos anos, aproximaram o estudante de
um papel mais protagonista na busca de saber, principalmente no trabalho de
seleção e análise de fontes. O diálogo com o entorno, como as questões presentes
no cotidiano, foi amplamente demandado por meio dos Editais e, ainda que
com limitações, se fizeram presentes nos livros didáticos. Ano após ano, aos
capítulos dos livros que em sua maioria apresentam a História aos estudantes a

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partir de vertentes quadripartite/tripartite e sem questionamentos, somaram-se


“textos complementares”, “projetos” e outras propostas que apontam para uma
abordagem mais investigativa e questionadora da História.
Em ação no país, até 2016, também estavam as políticas públicas de
incentivo à educação, sinalizando para horizontes promissores advindos do
investimento dos recursos do pré-sal na formação de professores, nas escolas
públicas, na produção de material didático, enfim, em todos os aspectos que
são a base para uma educação de qualidade. Nas escolas, o que se concretizava
como currículo em ação no campo da História era fortemente definido por meio
dos conteúdos apresentados nos livros didáticos que eram escolhidos pelos
professores em meio a um leque significativo de opções. Os problemas sempre
foram muitos, os questionamentos, embates e disputas em torno dos conteúdos
também. No tocante às avaliações em larga escala, especialmente com relação
ao Programme for International Student Assessment [Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes] (PISA)2, os resultados dos estudantes não avançavam
na velocidade desejada por aqueles que compreendem a melhoria da qualidade
da educação sob o viés comparativo entre os países.
Em 2014, um grupo de professores convidados pelo MEC elaborou um
documento que recebeu o título de “Direitos de Aprendizagem” com objetivo
de atender à construção de uma proposta nacional de educação. Macedo
(2019, p. 47) reconhece que “a opção por um currículo guiado por direitos de
aprendizagem [...] foi uma demanda de movimentos acadêmicos e sociais com
vistas a distanciar a proposta da linguagem da testagem”.
Ocorre que, em meio aos acordos políticos que se sucederam após a eleição
presidencial de 2014, estabeleceu-se uma direta relação entre a base nacional
comum e as políticas de avaliação em larga escala. Após 2016 identifica-se
maior aproximação e estabelecimento de parcerias com setores privados que
já estavam em ação nas escolas, com variados projetos que, em sua maioria,
operam com a lógica de oferecer propostas e materiais prontos para que os
professores e alunos sigam os roteiros nos quais encontram-se pré-definidos os
pontos de partida e os pontos de chegada quanto à construção do conhecimento,
os chamados sistemas estruturados de ensino.

2 Trata-se de um estudo comparativo internacional realizado trienalmente pela Organização


para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com vistas a oferecer informações sobre
o desempenho de estudantes na faixa etária dos 15 anos. Tendo o Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) como órgão responsável pelo planejamento e a
operacionalização da avaliação no Brasil, o estudo avalia três domínios – leitura, matemática e
ciências – em todas as edições ou ciclos, além de avaliar os denominados “domínios inovadores”,
como Resolução de Problemas, Letramento Financeiro e Competência Global.

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Portanto, a ação do professor antes da promulgação da BNCC era


desempenhada com certa autonomia quanto à escolha dos livros didáticos; à
rotina de organização dos conteúdos a serem ensinados; às propostas advindas
de parcerias firmadas com fundações privadas, em paralelo com a efetivação das
orientações curriculares dos estados e municípios; às proposições remanescentes
dos Parâmetros Curriculares Nacionais, dentre outros. Isso tudo evidencia que o
currículo em ação não se vinculava a uma única origem formal. Nesse amálgama
de situações, os professores decidiam “em meio a normas de funcionamento,
políticas curriculares, órgão de governo, tradição” (ACOSTA, 2013, p. 190). Não
obstante o MEC anunciar que a BNCC não é uma proposta curricular de caráter
obrigatório, isso pode ser facilmente contestado, por exemplo, ao se verificar a
rigidez imposta no Edital do PNLD 2020, como vimos anteriormente, quanto ao
cumprimento integral de suas temáticas, objetos de conhecimento e habilidades.
Ao tratar do conceito de currículo em ação, o documento da BNCC
remete à flexibilização que pode ocorrer nas escolas quando estas colocarem
em desenvolvimento a Parte Diversificada que é garantida nas Diretrizes
Curriculares Nacionais. No entanto, conforme alerta Macedo (2018), a
concepção apresentada na BNCC se afasta consideravelmente das vertentes
que compreendem o currículo em ação como o vivido no cotidiano das escolas.
Segundo esta autora, na proposta da BNCC,

[...] o currículo em ação é uma releitura do currículo formal que ocorre


por ocasião de sua implementação. [...] a complementaridade entre
currículo prescrito e currículo em ação é da ordem da aplicação, a Base
será implementada como currículo em ação (MACEDO, 2018, p. 30).

Retomando a reflexão sobre o que se concretizava no país em termos


do currículo em ação na área de História para os Anos Finais do Ensino
Fundamental, anteriormente à BNCC, estávamos em pleno movimento de
questionamento sobre questões como: o que pode ser considerado um clássico
do conhecimento? O que é eleito e quem elege o que se define por patrimônio
da humanidade? Que critérios de seleção devem ser acionados, diante da
vastidão de conhecimentos acumulados? Tais questões remetem à abordagem
do que considerar significativo para ser erigido à categoria de conhecimento a
ser ensinado na escola, o denominado “conteúdo escolar”, uma ínfima parte do
conhecimento produzido coletivamente.

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As escolhas feitas, décadas após décadas, sobre o que ensinar e como


ensinar História na escola, e até mesmo sobre a concepção de escola, é produto
de um processo seletivo constantemente retroalimentado. A esse movimento
Forquin (1992, 1993) intitula “cultura escolar”, reconhecendo que o estudo
de qualquer aspecto relacionado à escola precisa considerar os habitus que
impedem o percebimento de uma visão de educação escolar formulada a partir
da imposição de grupos que asseguram e legitimam determinados saberes em
detrimento de saberes de outros grupos.
A valorização da cultura escolar também é destacada por Acosta (2013)
quando da produção de documentos curriculares, ainda que em outros termos.
Para esse autor, a tarefa das autoridades educacionais, dos gestores e dos editores,
no processo de construção de propostas de socialização de conhecimentos
para todos, o que, em último caso, pretende-se que esteja organizado em um
currículo, “é reproduzir e não produzir conhecimento” e atuar “em conjunto
como agentes reconceitualizantes” (ACOSTA, 2013, p. 190). No entanto, tal
papel só pode ser desempenhado se o professor for entendido como principal
agente mediador na construção de saberes em sala de aula. Nessa direção,
Acosta (2013, p. 190) adverte que, sem ter a escola como ponto de partida, por
meio de acordos políticos, pode-se alterar consideravelmente a interpretação da
realidade escolar e “a forma e a organização do conhecimento”.
O que se ensina e se aprende na escola são escolhas equilibradas entre o
que a sociedade preservou e o que ela destruiu para poder se preservar. Assim,
a contradição está presente em todas as ações educativas porque estas se situam
entre a necessidade de resolver, de forma possível, a equação entre o legitimar
determinados saberes, que constituem e explicam a sociedade na qual se vive,
e legitimar o extermínio de outros saberes por essa mesma sociedade, no caso,
saberes que podem não ser perceptíveis como importantes em uma primeira
leitura. A primeira versão da BNCC reconhecia a importância de se considerar
outras tantas histórias que não vinham sendo eleitas como conteúdo escolar e
reinterpretava os resultados das pesquisas no campo do Ensino de História e
no campo historiográfico que recontavam, a partir de outras vozes, processos
canônicos de nossa história.
Acosta (2013, p. 191) entende que “os professores fazem política por
baixo ou, em outras palavras, rompem com a linha política imposta de cima,
ainda que dentro de certos limites”. Os limites são identificados, dentre outros,
na tradição escolar que mantém várias práticas, mas que também tem espaço
para inovações. Nessa perspectiva, a compreensão do que venha a ser a
escola comporta diferentes interpretações sobre o que é importante ser alçado
à categoria de “conteúdo escolar”, pois se compreende que se trata de uma
instituição de ensino e aprendizagem de saberes – de todos os tipos e não só

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OLIVEIRA, S. R. F. de; CAIMI, F. E. Vitória da tradição ou resistência da inovação...

os denominados escolares –, na qual o conflito entre o velho e o novo se faz


constantemente presente, caracterizando o espaço escolar também como espaço
de luta pelo poder.
Na ação, entendemos que o proposto na BNCC e que se concretiza nos
livros didáticos por imposição, não abre espaço para esse jogo entre tradição e
inovação, pois é por demais tradicional. Sacristán (2013c, p. 262) colabora para
explicitarmos nossa hipótese, nestes termos:

Quando se diz que o currículo é “tradicional” em um sentido depreciativo,


não o fazemos pretendendo lançar por terra a tradição cultural ou os
conteúdos, mas para reclamar o poder, selecionar outros conteúdos e
desenvolvê-los como formas de ensinar alternativas às tradicionalistas.

A BNCC não concede espaço para o exercício do poder de escolha


aos professores e tal questão pode ser compreendida no contexto da guinada
que estamos a assistir em direção a uma sociedade na qual a liberdade não é
reconhecida como condição basilar da democracia. Na versão homologada
da BNCC, a remoção de todos os conteúdos entendidos como polêmicos ou
sensíveis, é representativo de uma ideia de escola pautada na reprodução de
saberes e formadora de sujeitos sabedores daquilo que lhes foi permitido saber
e não atores interrogantes sobre a própria existência.

Um currículo composto de temas polêmicos com implicações importantes


sobre a vida ou a sociedade, sobre o qual podemos ter opiniões distintas
e propostas que estimulem a indagação, não é o mesmo que um currículo
no qual partimos de conteúdos não problemáticos para aprendê-los de
uma maneira não tão viva (SACRISTÁN, 2013c, p. 263).

Estamos a tratar de poder e a escola é uma instituição viva. Finalizamos


a escrita desse texto em meio a uma pandemia que mantém as escolas fechadas
há mais de seis meses no Brasil. E, guardando as devidas proporções, sempre
necessárias quando se fala de um país de dimensões continentais como o Brasil,
o desafio é a reinvenção na forma de ensinar e sobre o que ensinar. Em algumas
cidades identifica-se o protagonismo dos professores na construção e condução
de propostas que visam à permanência da escola na vida dos alunos na tentativa
de manter o vínculo (OLIVEIRA, 2020). Tomamos conhecimento de um

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município que não aderiu à proposta de História da BNCC, pois considerou que
o programa elaborado em parceria com a universidade local e com uma ampla
equipe de professores é mais adequado ao que se almeja ensinar aos jovens e
às crianças daquele lugar.
O que podemos aprender com essas histórias? Muito, mas acreditamos
que se aliar à rica diversidade que se apresenta nas escolas sobre o currículo
em ação, ou sobre os saberes eleitos para comporem a categoria de conteúdo
escolar, é um caminho muito mais seguro para consolidar os cenários de uma
educação de qualidade.

Indignações finais

Voltemos à propaganda governamental de divulgação da BNCC aludida


no início do artigo e imaginemos o prosseguimento da cena em diferentes
escolas brasileiras. Por um lado, tem-se o tema da aula – Cidadania – definido
pelo currículo prescrito e tem-se uma aula com procedimentos rigorosamente
padronizados a partir da interpretação de tal currículo, representados por meio
da exposição oral, da postura docente, da escrita no quadro, sobre os quais se
ambiciona uniformidade de norte a sul, leste a oeste do país. Por outro lado,
existem as crianças e adolescentes na condição de alunos, mas a propaganda se
encerra antes da sua participação na cena escolar. O que viria depois? Segundo
Acosta (2013, p. 191), “nem o professor, nem os estudantes podem prever com
alguma certeza exatamente o que vai acontecer a seguir”. Todavia, na relação
imposta entre currículo prescrito e editado, o que se concretizará como currículo
em ação estará sempre relacionado com as concepções elaboradas sobre como
um sujeito aprende. No caso da propaganda em debate, a partir do momento
em que o primeiro estudante contribuir com sua leitura de mundo e formular
ideias sobre o que compreende por cidadania, são incontáveis os roteiros que
podem ser traçados para o prosseguimento da cena. A tentativa de garantir um
único roteiro para todo o país estaria calcada no silenciamento da diversidade
que os estudantes trazem para dentro da escola, o que ensejaria a construção de
uma narrativa única sobre os conteúdos a serem ensinados.
O perigo de uma aposta em narrativas únicas acerca dos conteúdos
escolares é que estas são assentadas em certezas sobre o futuro. Ao prescrever
os conteúdos, os procedimentos e definir as competências a serem desenvolvidas
a partir de tal currículo, elege-se conhecimentos que são, no contexto de sua
formulação, os que se entende como mais adequados no preparo das gerações

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para o amanhã. Entretanto, é fundamental ter em consideração o senso da


imprevisibilidade que acompanha o ser humano em todas as sociedades.
Podemos nos preparar para um futuro, mas se vamos vivê-lo da forma como
planejamos é uma história que se constrói somente no presente.
Assim, qualquer currículo precisa ser compreendido como em movimento,
em constante construção. É um risco propor um currículo gerado de um
entendimento de escola baseado em uma ou duas funções formativas, pois não
se define qual a função do ser humano, para que ele serve ou irá servir, em que
irá atuar. Tais respostas são edificadas bloco a bloco no processo de existência
que denominamos vida e a escola tem fundamental importância nessa trajetória.
Então, concluiríamos que é impossível ter uma base nacional comum que sinalize
o que ensinar nas escolas?
Continuamos com a compreensão de que a construção de uma base comum
para a área de História seria importante. Ao ler o proposto nas versões anteriores
da BNCC, desde o documento “Direitos de Aprendizagem”, proposições que
foram completamente desidratadas e substituídas na versão final, identificamos
em tais documentos uma proposta com movimentos. Arriscou-se eleger como
conteúdo escolar as histórias do Brasil narradas a partir de dentro; definiu-se que
o indagar sobre as fontes, sobre a realidade, seria um caminho mais promissor
para a construção de saberes históricos; apostou-se no protagonismo discente
e docente quanto à seleção e organização dos saberes dentro de cada escola.
Os envolvidos na construção de tais versões, por compreenderem que ensinar
História na escola se efetiva em um amálgama de saberes diversos, indicaram o
que é importante para uma base nacional, mas também consideraram o espaço
da invenção (ACOSTA, 2013).
A Base que entendíamos importante não dialoga com a finalizada na BNCC.
A indignação com a qual finalizamos esse artigo se refere, principalmente, ao
ocorrido com o documento da área de História e tudo o que pode vir a acontecer
(ou não acontecer) se a proposta ali apresentada se efetivar nas escolas. No
entanto, apostamos, como sempre fizemos, na ação docente que, com coragem
e ousadia, mantém aceso o poder questionador do ser humano, principalmente
das crianças e jovens na condição de alunos, os quais, quando escutados,
nos apontam caminhos valiosos para a reinvenção da escola, em que pese as
condições adversas pelas quais estamos a passar. Apostamos também que as
pesquisas no campo do ensino de História avancem na direção de compreender as
lógicas de tantas reinvenções com as quais nos deparamos no cotidiano escolar,
pois, segundo Bonafé e Rodríguez (2013, p. 218), “há pouca preocupação em
pesquisar as práticas alternativas a esses recursos hegemônicos”. Acreditamos,
por fim, alicerçadas na força esperançosa de Paulo Freire (2011), que assim
transformaremos o que ainda é inédito em viável.

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Texto recebido em 04/10/2020.


Texto aprovado em 09/02/2021.

Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons.

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O ENSINO DE HISTÓRIA E A BNCC: LIVROS


DIDÁTICOS SOB UMA ANÁLISE COMPARATIVA
Paulo Augusto Tamanini(*)
Vanusa Maria Gomes Noronha (**)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A BNCC preconiza segundo Marchelli (2017), uma perspectiva de mudança na preparação


inicial dos docentes realizadas nos cursos de licenciatura, nos cursos de formação pedagógica,
dentre outros, para a formação continuada após o ingresso na carreira.

Segundo Nóvoa (1991), as políticas reformadoras do Ensino têm aprofundado o fosso que
separa professores das situações concretas mais emergentes, alimentando perspectivas sociais que
não permitem uma crítica intelectual sobre o papel do professor. A subordinação ao estado tende a
prolongar-se através de uma assistência científico-curricular verificando a instauração de novos
controles, mais sutis, sobre a profissão docente.

Nesse sentido, são necessárias a compreensão do professor sobre os efeitos dessas políticas
reformadoras e captar qual sua relação com a educação de qualidade que se almeja. Portanto, é
fundamental uma formação que possibilite ao docente uma ação-reflexiva sobre sua prática, tendo
em vista que o papel do professor não é de mero transmissor de conteúdos programados, mas um
facilitador da construção desse conhecimento e a partir das experiências dos alunos. Por
consequência, outro desafio que se posta ao professor em sala de aula é de ter um olhar mais
cuidadoso sobre seus alunos, na perspectiva de uma construção de saberes pautada na troca de
experiências entre os discentes e os conteúdos formatados por um currículo.

Isto porque, espera-se que os conhecimentos e práticas pedagógicas sejam pensados e


planejados em contextos concretos que levem a uma maior autonomia e compromisso do professor
com os contextos socioculturais, onde a Escola se insere.

(*)
Doutor em História pelo Programa de Pós-graduação em História (CAPES/UFSC), com estágio pós-doutoral pelo
Programa de Pós-graduação de História (PNPD/CAPES/UFPR). Coordenador do Grupo de Pesquisa Imagens e Ensino
(CNPq/UFERSA). Professor permanente do Programa de Pós -graduação em Ensino (UERN/UFERSA/IFRN). E-mail:
paulo@tamanini.com.br. ORCID: <http://orcid.org/0000-0001-6963-2952>.
(**)
Membro do Grupo de Pesquisa Imagens e Ensino (CNPq/UFERSA). Aluna especial no Programa de Pós-graduação
em Ensino (UERN); Especialista em Psicopedagogia e Graduada em Pedagogia-UERN. Professora do Ensino Básico da
Rede Pública da Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Norte. E-mail: vanusa.noronha@yahoo.com.br.
ORCID: <https://orcid.org/0000-0001-5113-8518>.

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Lopes e Macedo (2011) afirmam que o currículo é definido como as experiências de


aprendizagem, planejadas e guiadas, e os resultados não desejados, formulados através da
reconstrução sistemática do conhecimento e da experiência, sob os auspícios da escola, para o
crescimento contínuo e deliberado da competência pessoal e social do aluno.

Nessas discussões podemos e devemos refletir sobre os avanços da educação no Brasil,


apesar de ter um longo caminho a percorrer principalmente se comparado a outros países mais
desenvolvidos. Essas mudanças também se deram na questão do livro didático, principalmente com
o Decreto 9.099, de 18 de julho de 2017, que altera consideravelmente os processos de avaliação e
seleção dos livros didáticos no Brasil, realizada pela escola e com base no Programa Nacional do
Livro e do Material Didático (PNLD).

Segundo Bittencourt (2009), a proximidade com o uso do livro didático facilita sua
identificação e estabelece distinções entre ele e os demais livros. Porém, não é um objeto cultural de
fácil definição, por se tratar de uma obra bastante complexa, que tem como característica a
interferência de vários sujeitos em sua produção e consumos.

No ensino de História não é diferente, pois o professor precisa ter embasamento teórico e
pedagógico para saber diferenciar reformas curriculares nos projetos políticos pedagógicos e nas
propostas de ensino. Para Schmidt e Cainelli (2010), um dos principais significados apontados para
a aprendizagem histórica é transformar informações em conhecimento, apropriando-se das ideias
históricas de forma cada vez mais complexa, no sentido da construção de uma literacia histórica, ou
seja, de seu próprio processo de alfabetização significativa.

Como se pode perceber, assumir o livro didático sem questionar o que nele está exposto
implica em não compreender o processo político e social que este apresenta. Para atingir nosso
objetivo, de investigar os conteúdos de História após a BNCC, sancionada em 2017 para a
Educação Infantil e Fundamental e em 2018 para o Ensino Médio, fizemos uma análise
comparativa, em um corpus composto por dois capítulos de livros didáticos de história do 5° ano,
sendo um anterior a BNCC e o outro de acordo com as normas estabelecidas pela nova proposta
curricular. De acordo com, o propósito do nosso trabalho, fizemos um recorte temático para
desenvolver nossa análise, e investigando os dois exemplares, percebemos que o tema “escravidão”
é recorrente em ambos, sendo este o primeiro critério de seleção do corpus, e portanto,
trabalharemos apenas o tema escravidão, sendo um capítulo de cada livro.

Os demais critérios de análise são: a estrutura do conteúdo e respeito às diversidades,


culturais e regionais, sugerida pelos órgãos normativos. Verificou-se que, no primeiro exemplar,

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anterior a BNCC, datado de 2015, a história da escravidão é marcada por uma versão tradicional e
superficial, com textos resumidos, com algumas representações em desenhos e fotografias.
Apresenta textos complementares e sugestões de atividades nos procedimentos metodológicos no
final do livro.

O segundo exemplar, amparado pelo novo currículo da BNCC 2017, traz um pequeno
resumo na borda, com orientações didáticas, e apontam recursos que auxiliam o professor em seu
planejamento e na construção de atividades, com imagens e textos resumidos, mas com indicações
de leituras complementares.

Para efeito de organização, dividimos o artigo em quatro subseções, além destas


considerações iniciais que agora são lidas: o item 2 traz a concepção de Currículo que nos ampara;
no 3, abordamos o uso do livro didático e sua relação com o ensino de história; no 4, trazemos a
metodologia da pesquisa e discussões, seguindo para considerações finais.

CURRÍCULO NA PERSPECTIVA DA BNCC

Lopes e Macedo (2011) promovem discussões sobre estudos curriculares, mas não
pretendem pontuar uma conceituação única para currículo. As autoras afirmam que há uma ideia
comum a tudo que se tem chamado de currículo, que é a ideia de organização, prévia ou não, de
experiências/situações de aprendizagem realizada por docentes/redes de ensino de forma a levar a
cabo um processo educativo.

Avançando na temática, as autoras afirmam que o ensino precisa ser planejado e que esse
planejamento envolve a seleção de determinadas atividades/ experiências ou conteúdos e sua
organização ao longo do tempo de escolarização. Mas como definir o que é útil? Útil para quê?
Quais as experiências ou os conteúdos mais úteis? Como podem ser ordenados temporalmente? Por
onde começar? Não tem sido fácil responder a tais questões e as muitas perspectivas assumidas ao
longo do tempo têm criado diferentes teorias curriculares. As referidas autoras tratam de duas
dessas teorias: o eficientismo social e o progressivismo.

Ainda que o eficientismo seja um movimento com muitas nuanças, pode-se resumi-lo pela
defesa de um currículo científico, explicitamente associado à administração escolar e baseado em
conceitos como eficácia e economia. Em 1918, Bobbit defende um currículo cuja função é preparar
o aluno para a vida economicamente ativa a partir de dois conjuntos de atividades que devem ser
igualmente consideradas pela escola – o que chama currículo direto e as experiências indiretas.

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Rivalizando com o eficientismo no controle da elaboração de currículos “oficiais”, o


progressivismo conta com mecanismos de controle social bem menos coercitivos. O nome mais
conhecido dessa corrente é o de John Dewey, cujos princípios de elaboração curricular residem
sobre os conceitos de inteligência social e mudança. Ele advoga que o foco do currículo é a
experiência direta da criança como forma de superar o hiato que parece haver entre a escola e o
interesse dos alunos. Nesse sentido, o progressivismo se constitui como um processo contínuo e não
como uma preparação para a vida adulta.

Em 1949, a teoria curricular produzia a mais duradoura resposta às questões sobre seleção e
organização de experiências ou conteúdos educativos. Com uma abordagem eclética, Ralph Tyler
se propunha a articular abordagens técnicas, como as eficientistas, com o pensamento
progressivista. Ainda que sua apropriação do progressivismo tenha sido caracterizada como
instrumental e que seu pensamento estivesse muito mais próximo do eficienticismo, sem dar conta
da tensão entre criança e mundo adulto que caracteriza o pensamento de Dewey, a racionalidade
proposta por Tyler se impunha, quase sem contestação, por mais de 20 anos, no Brasil e nos EUA.

Sobre hegemonia, ideologia e poder, Lopes e Macedo (2011) relatam as críticas sobre o
tema currículo no decorrer da história, começando por uma das críticas mais incisivas da escola e
do currículo como aparato de controle social, parte do que se convencionou chamar de teorias da
correspondência ou da reprodução, produzidas, principalmente, nos anos de 1970. Trata-se de
teorias marxistas que defendem a correspondência entre a base econômica e a superestrutura, indo
de perspectivas mecanicistas, em que a correspondência é total e exata, a concepções em que a
dialética entre economia e cultura se faz mais visível.

Althusser se destaca nesse período, apontando para o duplo caráter de atuação da escola na
manutenção da estrutura social: diretamente, atua como elemento auxiliar do modo de produção,
como formadora de mão de obra, indiretamente contribui para difundir diferenciadamente a
ideologia, que funciona como mecanismo de cooptação das diferentes classes.

Na trajetória das críticas ao papel reprodutivo da escola, a sociologia britânica dos anos de
1970 explicita um conjunto de preocupações que se direcionam mais fortemente para questões que
podemos chamar de curriculares. É, no entanto, com a publicação de Ideologia e currículo, por
Michael Apple em 1979, que as análises reprodutivistas passam a tratar especificamente do
currículo com enorme popularidade na área. No Brasil, o trabalho de Apple ganha notoriedade nos
anos 1980, tendo sido seus livros traduzidos poucos anos depois de publicados. Vivíamos, então, o
processo de abertura política depois de 15 anos de ditadura militar, marcada, no campo da

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educação, pela valorização do tecnicismo e, no currículo, por abordagens derivadas da


racionalidade tyleriana.

No intuito de responder várias questões curriculares, Apple reformula o conceito de


currículo oculto, definido por Philip Jacjson, nos anos 1960, para dar conta das relações de poder
que permeiam o currículo. O currículo oculto subjaz a muitas manifestações curriculares. Ao
optarem por modelos sistêmicos para a definição do que e do como ensinar, tais perspectivas
assumem o fazer curricular como questão técnica, científica, ocultando a dimensão ideológica
presente nessa seleção.

Na esteira do pensamento das autoras, sobre o que acontece nas escolas, relatam as críticas
ao conceito restrito de currículo. Teóricos de matriz fenomenológica argumentam em favor de um
currículo aberto à experiência dos sujeitos e defendem uma definição de currículo para além do
saber socialmente prescrito a ser dominado pelos estudantes. Propõem que a ideia de um documento
pré-estabelecido seja substituída por uma concepção que englobe atividades capazes de permitir ao
aluno compreender seu próprio mundo-de-vida. Em certa medida, essas preocupações também se
fazem presentes no pensamento crítico, no qual, no entanto, a ênfase no social despreza o
individual. Para os teóricos de matriz fenomenológica, essa ênfase torna o pensamento crítico
desmobilizante, na medida em que enreda o indivíduo numa estrutura social da qual ele não pode
sair.

Paulo Freire é, sem dúvida, uma das importantes influências para as concepções de currículo
focadas na compreensão do mundo-da-vida dos indivíduos que convivem no espaço da escola.
Ainda que influenciado pelo marxismo, Freire constrói uma teoria eclética para a qual muito
colaboram a fenomenologia e o existencialismo.

Lopes e Macedo (2011) relatam ainda sobre o pós-estruturalismo nos estudos curriculares,
que apontam para outra definição de currículo. Os primeiros estudos pós-estruturais do currículo
datam de fins dos anos 1970, no entanto, apenas na década seguinte eles se tornaram mais
numerosos. No Brasil, até meados de 1990, não havia praticamente nenhuma menção ao pós-
estruturalismo nos estudos curriculares, o que viria a se intensificar fortemente no início deste
século, especialmente com os textos e traduções produzidos por Tomaz Tadeu da Silva.

Contrapondo-se ao estruturalismo, o pós-estruturalismo critica o fato dele não perceber que


a própria ideia de estrutura estaria ela mesma marcada pela linguagem. Nesse sentido, ela não pode
ser entendida como realidade, como o fundamento que subjaz aos fenômenos, sob pena de retomar
a ingenuidade criticada nas posturas realistas. Além disso, o estruturalismo deixaria de levar em

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conta a construção sócio histórica das estruturas, ao negligenciar o diacrônico, e teria dificuldade de
entender a passagem de um sistema de relações (estrutura) a outro.

O entendimento de currículo, como prática de significação, como criação ou enunciação de


sentidos, torna inócua distinções como currículo formal, vivido, oculto. Qualquer manifestação do
currículo, qualquer episódio curricular, é a mesma coisa: a produção de sentidos. Seja escrito,
falado, velado, o currículo é um texto que tenta direcionar o “leitor”, mas que o faz apenas
parcialmente.

As formas de interação entre as culturas se expandiram com o desenvolvimento da


tecnologia, devido à rapidez com que as informações são divulgadas nos meios de comunicação e
nas mídias sociais, exigindo cada vez mais do aluno, um posicionamento crítico nas situações
diversas do seu cotidiano. Mas não podemos quantificar até que ponto o avanço da tecnologia recria
significados impostos pela hegemonia e até onde privilegia a criticidade.

De acordo com Silva (2018), as representações e ideologias estão presentes em todas as


manifestações comunicativas. Em diferentes campos, sejam temas sociais, políticos ou das
religiões:
[...] as novas interpretações, propiciarão a criação de outras representações,
caracterizados especialmente pelas resistências e heroísmo desses sujeitos. Desse
modo, a produção imagética, mais precisamente, as representações da cultura negra
nos livros didáticos são essenciais para despertar o interesse de professores e
estudantes para construir novos saberes e atitudes. Partindo dessa abordagem, é
importante os professores problematizarem a leitura e a percepção das imagens. A
concepção da historiografia tradicional de relegar os afrodescendentes somente à mão
de obra escrava deve ser reinterpretada, buscando compreender que esses sujeitos têm
suas raízes culturais e formas de resistência. (p.34).

Desse modo, as atribuições e significados presentes nos eventos comunicativos, imprimem


na realidade o que pensamos, defendemos ou rejeitamos, seja nas mais diferentes questões, das
simples às complexas, utilizamos o nosso posicionamento crítico e nossas interpretações sobre as
representações e ideologias. As questões sobre afrodescendentes, assim como as culturais, sofrem
influência no livro didático tendo em vista que, a hegemonia política interfere também, nas escolhas
dos conteúdos de história, ocultando questões relacionadas à cultura que não sejam da ideologia
dominante, consideradas como menos importante e sem necessidade de apresentação no livro
didático.

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Após esse arrazoado teórico sobre “currículo”, discorreremos sobre a utilização do livro
didático na seção seguinte.

O LIVRO DIDÁTICO E SUA RELAÇÃO COM O ENSINO DE HISTÓRIA

Segundo Stray (1993, p.77-78), o livro didático é definido, como um produto cultural
composto, híbrido, que se encontra no “cruzamento da cultura, da pedagogia, da produção editorial
e da sociedade”. No âmbito escolar atual, o livro didático concorre com outros artefatos, tais como
quadros, mapas, enciclopédias, audiovisuais, softwares didáticos, CD-Rom, Internet. Entretanto,
ainda persiste e ocupa um papel central como artefato de fácil manuseio e acessibilidade.

O caminho percorrido pelos livros didáticos até as escolas brasileiras teve início em 1929,
com a fundação de um órgão específico para legislar sobre políticas do livro didático: o Instituto
Nacional do Livro (INL) com o intuito de promover a efetivação do livro didático nacional, nas
escolas. Porém, somente em 1934, no governo do presidente Getúlio Vargas, o INL recebeu suas
primeiras atribuições, como a de editar obras literárias para a formação cultural da população, a de
elaborar uma enciclopédia e um dicionário nacionais e a de expandir o número de bibliotecas
públicas.

Somente em 1938, o livro didático voltou ao destaque das discussões, quando foi instituída
por meio do Decreto-Lei 1.006, de 30/12/38, a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) que
estabelecia a primeira política de legislação para tratar da produção, do controle e da circulação
dessas obras. Esta comissão possuía mais a função de controle político-ideológico do que
propriamente uma função didática (FREITAG et al., 1989).

Após questionamentos sobre a legitimidade desta comissão, em 1945, o Estado consolidou a


legislação sobre as condições de produção, importação e utilização do livro didático, restringindo ao
professor a escolha do livro a ser utilizado pelos alunos, conforme definido no art. 5º do Decreto-lei
8.460, de 26/12/45.

Em 1966, foi realizado um acordo entre o Ministério da Educação (MEC) e a Agência


Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) que permitiu a criação da
Comissão do Livro Técnico e Livro Didático (COLTED). Esta comissão tinha como objetivo
coordenar as ações referentes à produção, edição e distribuição do livro didático. Sobre este acordo
houve diversas críticas por parte de educadores brasileiros, pois ao MEC e ao SNEL (Sindicato
Nacional de Editores de Livros) caberiam apenas responsabilidades de execução e aos órgãos
técnicos da USAID todo o controle.

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Com a extinção da COLTED, em 1971, e o término do convênio MEC/USAID, o INL


passou a desenvolver o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF),
assumindo as atribuições administrativas e de gerenciamento dos recursos financeiros. Em 1976, o
INL foi extinto e a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME) tornou-se responsável pela
execução do PLIDEF. Por meio do decreto nº 77.107, de 4/2/76 o governo iniciou a compra dos
livros com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e com as
contribuições dos estados. Porém, os recursos não foram suficientes para atender a todos os alunos
do ensino fundamental da rede pública, e a solução encontrada foi excluir do programa a grande
maioria das escolas municipais.

Outras mudanças continuaram no ano de 1983 quando, em substituição à FENAME, foi


criada a Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), que incorporou vários programas de
assistência do governo, incluindo o PLIDEF. Das inúmeras formas experimentadas pelos
governantes (no período de 1929 a 1996) para levar o livro didático às escolas, somente com a
extinção da FAE, em 1997, e com a transferência integral da política de execução do PNLD para o
FNDE, é que se iniciou uma produção e distribuição contínua e massiva de livros didáticos.

O Decreto 9.099, de 18 de julho de 2017, reuniu as ações de aquisição e distribuição de


livros didáticos e literários, anteriormente contempladas pelo Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD) e pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Com essa mudança, o Programa
Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD também teve seu escopo ampliado. Foram
incluídos outros materiais de apoio à prática educativa, tais como os softwares e jogos educacionais,
materiais de reforço e correção de fluxo, materiais de formação e materiais destinados à gestão
escolar, entre outros. Desde o ano letivo de 2019, os livros dos anos iniciais – de 1º ao 5º ano-
passaram a ser considerados propriedades do aluno, não precisando ser devolvidos.

O PNLD preocupa-se com o ensino fundamental público, abrangendo também as classes de


alfabetização infantil, e promovendo a gratuidade dos livros. No programa cada aluno tem
assegurado o direito de receber um exemplar das disciplinas de língua portuguesa, matemática,
ciências, história e geografia, que serão estudadas durante o ano letivo. Aos estudantes do primeiro
ano é destinada também uma cartilha de alfabetização.
A complexidade do livro didático fornece condições para entender os debates e as
críticas de que ele tem sido alvo, tanto no interior da escola, entre educadores, alunos
e pais de alunos, como nas discussões acaloradas ocorridas nos encontros ou
resultantes de artigos de jornais e revistas envolvendo autores, autoridades políticas e
intelectuais de diversas procedências. (BITTENCOURT, 2009, p. 302)

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Diante desse breve resgate, da história do livro didático, nos interessa aqui tratar das
mudanças ocorridas no contexto atual sugerido pela nova base, no que se refere a questões de
decisões políticas e mercadológicas, e ao que se tem de novo, quando se trata da organização
conteudista sugerida pela BNCC para o desenvolvimento de habilidades e competências dos alunos.
Assim, com o objetivo de investigar se essa mudança curricular trouxe alguma contribuição
significativa para os conteúdos de história, analisaremos na próxima seção dois capítulos de livros
sobre o tema escravidão.

DESCRIÇÃO DO CORPUS E ANÁLISE

O corpus coletado para análise foi selecionado de livros de História que fazem parte do
projeto ÁPIS, sendo um exemplar de 2015 e o outro de 2017; ambos do Ensino Fundamental. Por
conseguinte, os livros que escolhemos fazem parte de uma coleção que vai do 1º ao 5º ano sendo
que a análise está voltada para o 5º ano. Para efeitos de compreensão, vamos chamar de exemplar 1
o livro (antes da BNCC) e exemplar 2 o livro (com orientações da BNCC), ambos da Editora Ática,
conforme imagem abaixo. Nosso objetivo é investigar se a mudança curricular (BNCC) trouxe
alguma contribuição significativa para os conteúdos de ensino de história, por isso justificamos a
escolha desse corpus.

Os livros estão estruturados em unidades que são subdivididas em capítulos, tendo o


exemplar 1 (240 páginas) e o exemplar 2 (176 páginas). Fizemos um recorte temático, analisando 2
capítulos apenas, sendo 1 de cada exemplar, a partir do nosso primeiro critério de análise: 1)
Recorrência do tema nos dois livros. Dentro desse critério selecionamos o tema escravidão,
recorrente em ambos exemplares.

Figura 1 . Capa (SIMIELLI, 2015, 5º Ano) Figura 2. Capa (CHARLIER, 2017, 5º Ano)

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Para contemplar o critério de análise (ou seja, os Parâmetros sugeridos pelos órgãos
normativos sobre a estrutura, conteúdo e respeito às diversidades, culturais e regionais), observamos
inicialmente a estrutura e o conteúdo dos capítulos, e percebemos algumas fragilidades. O exemplar
1 apresenta uma capa com cores frias e pouco atrativa para a faixa etária de 10 anos ao qual é
destinada. Já no exemplar 2, visualizamos na capa, a presença de cores vivas, mais cativantes e
interessantes ao público alvo.

Observamos que entre os dois exemplares, os textos e figuras sobre o tema escravidão estão
dispostos de forma resumida, impossibilitando ao aluno ter uma visão aprofundada ou detalhada
sobre a escravidão no Brasil, como por exemplo, os motivos, as consequências e a relação desse
acontecimento com os dias atuais. As imagens e textos complementares não dão conta dessas
questões, pois são abordadas de forma compacta e só faz relação com a atualidade no final do
capítulo. Vejamos:

Figura 4. Orientações dos parâmetros sugeridos pela BNCC sobre respeito e diversidade
Fonte: (CHARLIER, 2017, 5º ano, p. 79).

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Na página 57 do exemplar 1, vemos duas figuras que apresentavam o cotidiano dos


escravos. A primeira faz referência aos escravos que vendiam arruda nas ruas do Rio de Janeiro,
representada na aquarela de Debret (1835). A segunda retrata Augusto Leal com sua ama de leite
fotografada por J. F. Vilela, em 1860. É interessante notar que as duas figuras trazem um texto que
não aprofunda o conhecimento do que ali está representado como características, adornos,
vestimentas etc.

O conjunto das cenas não faz um resgate detalhado do momento histórico e das implicações
sociais da época. O que está por trás da fala: “amamentavam com seu próprio leite os bebês de seus
donos”? O que essa foto quer mostrar? A “valorização da ama de leite porque alimentava a
criança”? Ela era considerada da família por conviver com seus donos? O texto não informa aos
alunos tais detalhes, precisando o professor buscar em fontes alternativas tais conteúdos.

Em relação à diversidade, à cultura e especificidades temáticas, percebemos que o tema é


tratado apenas no exemplar 2 quando aborda o respeito às diferenças no contexto da colonização
portuguesa na América, no auge da escravidão. Explana ainda que desde essa época muitos direitos
foram reconhecidos e adquiridos. Tal abordagem contempla as orientações didáticas sugeridas pela
BNCC, sobre as habilidades EF05HI04 e EF05HI05 1 .

Entretanto, as próprias orientações didáticas informam que o professor não deve simplificar
o processo abolicionista para os alunos, pois os interesses eram variados e alguns defendiam a
escravidão por motivos econômicos. Mas não detalha os motivos desse cuidado! Diante das
perguntas “A quem interessava a continuação da escravidão? A quem interessava a libertação dos
escravos?” caberia ao professor apoiado em outras fontes, junto com os alunos, elucidar as questões
surgidas em sala de aula. A reflexão, a criticidade e a escuta das respostas tornam-se então,
elementos paradidáticos, material de auxílio que enriquece o andamento da aula.

1
(EF05HI04) Associar a noção de cidadania com os princípios de respeito à diversidade e à pluralidade.
(EF05HI05) Associar o conceito de cidadania à conquista de direitos dos povos e das sociedades, compreendendo -o
como conquista histórica.

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Figura 5. Orientações dos parâmetros sugeridos pela BNCC sobre respeito e diversidade

Fonte: (CHARLIER, 2017, 5º Ano, p. 84).

O final do capítulo contempla o tema do respeito às diversidades culturais e regionais.


Ensina acerca da necessidade de falar acerca do preconceito racial no Brasil que vai além da cor da
pele. Sugere como orientações didáticas duas atividades: uma, que discorre sobre as violências
cotidianas trazidas pelo racismo e, outra, que apresenta alguns símbolos que aludem à cultura
africana, fazendo relação com a figura de Zumbi dos Palmares.

Mais uma vez, neste caso, o professor precisaria recorrer a outros suportes para adensar o
conteúdo historiográfico e fazer com que os alunos exercitem a criticidade e se incomodem com as
frases prontas, temas fechados que não permitem reflexões mais apuradas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho apresentamos algumas discussões sobre currículo e livro didático de História,
buscando relacionar no contexto da prática a implementação das diretrizes da base curricular. Nosso
objetivo foi investigar o quanto as diretrizes estipuladas pela BNCC contribuíram para que os
alunos de história exercessem seu pensamento crítico e fossem capacitados de refletir sobre como
os conteúdos oferecidos eram explanados. Após estudar os capítulos anteriormente selecionados,
verificamos que os conteúdos transmitiam informações mais gerais acerca de temas, sem se
preocupar com a possibilidade de oferecer aos discentes reflexões mais densas.

Outrossim, observamos que o capítulo apresentava também pontos importantes, porque se


servia de temáticas bastante atuais, tais como o respeito à diversidade; por outro lado, o que
julgamos ser fragilidades, o mesmo capítulo apresentava uma visão resumida dos temas, sem
relatar as implicações disso, no cotidiano. Desta forma, um aspecto que se pretende aprofundar em
análises futuras, poderia ser algumas ponderações acerca da prática docente, a partir das vozes dos
próprios professores. Afinal, professores e alunos são sujeitos, agem e sentem na carne o quanto os
conteúdos dos livros didáticos, de fato, espelham as realidades, refletem sobre as situações atuais,
ainda que a disciplina seja História.

Sintetizamos este trabalho afirmando que são perceptíveis mudanças significativas na


comparação dos livros e, independente da implantação da BNCC, julgamos mais importante que, os
docentes iniciem uma reflexão sobre as funções que possuem dentro e fora do universo escolar.
Dessa forma, a sistematização do saber não ficará a cargo apenas de uma reforma curricular ou do
livro didático, mas também e em conjunto com o professor e o aluno. Neste aspecto, observamos
que as parcerias, o pensar em conjunto, o trabalhar de forma interdisciplinar e comungante facilitam
que, no contexto da prática, o Ensino de História possa estar aberto às demandas e conjunturas do
seu tempo e lugar, sem que isso perca a sua identidade de disciplinar escolar voltada aos
acontecimentos do passado.

Apesar de a análise ter sido feita através de um pequeno recorte de dois livros didáticos,
podemos apontar ações que precisariam ser repensadas, como por exemplo, a utilização do livro
didático em sala aula, por professores e alunos, como única fonte de material didático. É consensual
que o livro ainda ocupe um lugar importante no processo de ensino e aprendizagem, mas ele não é o
único. A pesquisa, o contato e criação de novos saberes com outras fontes desenvolvem também as
competências para que o aluno se torne um sujeito relacional, aberto a novos olhares e percepções,

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crítico e ao mesmo tempo complacente com as fragilidades alheias. Desta forma, a revolta daria
lugar ao renascimento de outras possibilidades, prepararia o cidadão-aluno a ser um empreendedor
educacional que usaria das suscetibilidades elemento de recriação e fomentador de propostas que
melhore o Currículo escolar. Da mesma forma, o professor torna-se mais que um mediador de as
informações, mas um cooperador e estimulador de novos talentos da arte de ensinar. Portanto, e
nesta perspectiva, os protagonistas do ensino, para além do livro, são também os alunos e o
professor que são os primeiros a se depararem com o desafio de se exercitar a cidadania e querer
um mundo mais democrático, justo, inclusivo, solidário, em paz e ecologicamente viável.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
FREITAG, Bárbara et al. O livro didático em questão. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997.
LOPES, A. C.; MACEDO, E. Currículo. In: ALICE, Casimiro Lopes; MACEDO, Elizabeth. Teorias de Currículo.
São Paulo: Cortez, 2011.
MARCHELLY, Paulo Sergio. Políticas de Currículo, formação docente e as propostas da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). In: LOPES, Alice Casimiro; OLIVEIRA, Marcia Betania de. (Org.). Políticas de Currículo:
Pesquisas e articulações discursivas. Curitiba: CRV, 2017.
NÓVOA, Antonio. A formação contínua entre a pessoa-professor e a organização escola. vol. 4. Lisboa: Inovação,
1991.
SILVA, E. D. R.; TAMANINI, P. A.; MARIANO, T. de S. Da representação aos estereótipos: o Nordeste e os negros
escravizados nos livros de história. In: TAMANINI, P. A. (Org.). O ensino em perspectivas: múltiplas abordagens,
outros enfoques e a interdisciplinaridade no ofício docente. Curitiba: CRV, 2018.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar história. 1.ed. São Paulo: Scipione, 2009.
STRAY, Chris. QuiaNominor Leo: Vers une sociologiehistoriquedumanuel. In: CHOPPIN, Alain. (Org.). Histoire de
l'éducation, n° 58 (numérospécial). Manuelsscolaires, Étatsetsociétés. XIXe-XXesiècles, Ed. INRP, 1993.

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RESUMO
As mudanças propostas para o currículo de História trazem à pauta discussões sobre o que se deve ou não
ser ensinado na escola, em conformidade com as demandas e contextos. Na tentativa de buscar meios que
auxiliem o processo de aprendizagem, o livro didático de História é ainda um dos muitos recursos facilitadores
e mais utilizados pelo professor. Apesar de frequentes críticas sobre a sua produção e a sua distribuição, o
livro não perde seu lugar eficiente como ferramenta que aproxima os alunos dos saberes formais acerca de
um passado e a sua relação com o presente. Assim, o desafio da prática pedagógica de associar as demandas
curriculares do ensino formal com os contextos da prática passa pelo crivo e seleção de alguns conteúdos e
diretrizes da BNCC, sancionada em 2017 para a Educação Infantil e Fundamental e, em 2018, para o Ensino
Médio. Este artigo apoia-se nas discussões de Lopes e Macedo (2011) e Bittencourt (2009) para discutir a
influência do BNCC nos Livros Didáticos de História e como as suas diretrizes repercutem na prática escolar.
Para atingir nosso objetivo, fizemos uma análise comparativa sobre como o tema da escravidão é retratado
em dois períodos distintos. Os critérios para análise foram: 1) Recorrência do tema nos dois livros e 2)
Parâmetros sugeridos pelos órgãos normativos sobre a estrutura, conteúdo e respeito às diversidades,
culturais e regionais. Nosso trabalho justifica-se pela necessidade de identificar as mudanças curriculares na
busca de oferecer reflexões e discussões concernentes à aplicabilidade da BNCC na ação d ocente e nos
recursos pedagógicos. Observando a estruturação, conteúdos, atividades e ilustrações nos livros didáticos,
anteriores e posteriores a perspectiva da nova base, espera-se como resultados identificar o impacto dessa
possível efetivação curricular no ensino de história.
Palavras-chave: Currículo. Ensino de história. Livro Didático.

THE TEACHING OF HISTORY AND THE PERSPECTIVE OF BNCC: A


COMPARATIVE ANALYSIS IN TEXTBOOKS

ABSTRACT
The proposed changes to the History curriculum bring discussions about what should or should not be taught
in school, in accordance with the demands and contexts. In an attempt to find ways to help the learning
process, the textbook is still one of the most important resources used by the teacher. Despite frequent
criticisms of production and distribution, the textbook has not lost its effective place as a tool that brings
students closer to formal knowledge of past history in relation to the present. In this way, the challenge of the
pedagogical practice of associating the curricular demands with the formal education goes through the sieve
and selection of some contents and guidelines of the National Curricular Common Base (BNCC in Portuguese),
sanctioned for Elementary and Middle School in 2017 and for High School in 2018. T his article is based on the
discussions of Lopes and Macedo (2011) and Bittencourt (2009) to discuss the influence of the BNCC in the
textbooks of History and how this influence has repercussions on pedagogical practice. To achieve our goal,
we have made a comparative analysis of how the theme of slavery is portrayed in two distinct periods. The
criteria for analysis were: 1) Recurrence of the theme in the two textbooks and 2) Parameters suggested by
the normative institutions on the structure, content and respect to cultural and regional diversities. This article
is justified by the need to identify the curricular changes in the search to offer reflections and discussions
regarding the applicability of the BNCC in the educational action and in the pedagogic al resources. Observing
the structuring, contents, activities and illustrations in textbooks, before and after the new curricular basis, it
is expected as results to identify the impact of the possible use of these curricular guidelines in the teaching
of History.
Keywords: Curriculum. Teaching of History. Textbook.

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LA ENSEÑANZA DE LA HISTORIA Y LA PERSPECTIVA DE LA BNCC: UN ANÁLISIS


COMPARATIVO EN LOS LIBROS DE TEXTO

RESUMÉN
Los cambios propuestos para el currículo de Historia traen a la pauta discusiones sobre lo que se debe o no
ser enseñado en la escuela, de acuerdo con las demandas y contextos. En el intento de buscar medios que
auxilien el proceso de aprendizaje, el libro didáctico de Historia es todavía uno de los muchos recursos
facilitadores y más utilizados por el profesor. A pesar de frecuentes críticas sobre producción y distribución, el
libro no pierde su lugar eficiente como herramienta que aproxima a los alumnos de los saberes formales de
un pasado en relación al presente. Así, el desafío de la práctica pedagógica, de asociar las demandas
curriculares a la enseñanza formal pasa por el cribado y selección de algunos contenidos y directrices de la
BNCC, sancionada en 2017 para la Educación infantil y Enseñanza primaria y en 2018, para la Enseñanza
secundaria. Este artículo se apoya en las discusiones de Lopes y Macedo (2011) y Bittencourt (2009) para
discutir la influencia de la BNCC en los Libros Didácticos de Historia y cómo repercute en la práctica
pedagógica. Para alcanzar nuestro objetivo, hicimos un análisis comparativo sobre cómo el tema de la
esclavitud es retratado en dos períodos distintos. Los criterios para el análisis fueron: 1) Recurrencia del tema
en los dos libros y 2) Parámetros sugeridos por los órganos normativos sobre la estruct ura, contenido y
respeto a las diversidades, culturales y regionales. Nuestro trabajo se justifica por la necesidad de identificar
los cambios curriculares en la búsqueda de ofrecer reflexiones y discusiones concernientes a la aplicabilidad
de la BNCC en la acción docente y en los recursos pedagógicos. Por medio de la observación de la estructura,
contenidos, actividades e ilustraciones en los libros didácticos, anteriores y posteriores a la perspectiva de la
nueva base, se espera como resultados, identificar el impacto de esa posible efectividad curricular en la
enseñanza de la asignatura de historia.
Palabras clave: Currículo. Enseñanza de historia. Libro Didáctico.

Submetido em: 22 de dezembro de 2018


Aprovado em: 20 de maio de 2019

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A ABORDAGEM DA TEMÁTICA INDÍGENA E DA HISTÓRIA DA


ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS: EXEMPLOS DE OFICINAS
NA FORMAÇÃO DOCENTE

Ingrid Silva de Oliveira Leite1

Resumo: Os livros didáticos são o meio mais utilizado pelos professores de História, mesmo
com o uso crescente da internet. As leis 10.639 e 11.645 tornaram obrigatório o ensino da
História da África, da cultura afro-brasileira e da temática indígena, mas tais assuntos ainda não
são tão explorados e problematizados nos livros didáticos, embora já se encontrem modificações
importantes. Nos cursos de licenciatura em História, a África e os indígenas são estudados em
um ou dois semestres, o que acreditamos ser pouco tempo para professores em formação. Uma
saída seria a prática de oficinas utilizando os livros didáticos para refletir sobre a abordagem da
História da África, da diversidade da experiência do negro no Brasil e da temática indígena.
Este artigo objetiva refletir sobre as representações dessas temáticas em livros didáticos a partir
de oficinas e a elaboração de aulas em cursos de licenciatura em História no Rio de Janeiro e
Minas Gerais.
Palavras-chave: Oficinas. Ensino de História. África. Indígenas.

THE APPROACH TO INDIGENOUS THEMES AND AFRICAN HISTORY IN


TEXTBOOKS: AN EXPERIENCE IN TEACHER EDUCATION

Abstract: Textbooks are the most used by history teachers, even with the increasing use of the
internet. Laws 10,639 and 11,645 established the mandatory teaching of the history of Africa,
Afro-Brazilian culture and indigenous themes, but such subjects are still not as demonstrated
and problematized in textbooks, although important changes have already been found. In 157
History degree courses, Africa and the natives of Brazil are studied in one or two semesters,
which we believe is a short time for teachers in training. One way out would be the practice of
workshops using textbooks to reflect on the approach to African history, the historical diversity
of black people in Brazil and the indigenous theme. This article aims to demonstrate workshops
with textbooks and preparation of classes in History degree courses in Rio de Janeiro and Minas
Gerais.
Keywords: Workshops. History Teaching. Africa. Indigenous people.

L'APPROCHE DES THÈMES INDIGÈNES ET DE L'HISTOIRE AFRICAINE


DANS LES LIVRES DIDATIQUES : UNE EXPÉRIENCE DANS LA
FORMATION DES ENSEIGNANTS

Resumé: Les livres didatiques sont le plus utilisé par les professeurs d'histoire, même avec
l'utilisation croissante d'Internet. Les lois 10639 et 11645 ont rendu obligatoire l'enseignement
de l'histoire africaine, de la culture afro-brésilienne et des thèmes autochtones, mais ces sujets
ne sont toujours pas comme démontré et problématisé dans les livres didatiques, bien que des

1
Professora adjunta de História da África, Educação e Relações Étnico-raciais da Universidade Federal
São João del Rei (UFSJ). É professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em História da UFSJ
e coordenadora da área de História do PIBID na mesma instituição. Possui experiência em temas
referentes às sociedades africanas e à presença política, militar e religiosa de europeus no continente
africano durante os séculos XVII e XVIII. Possui graduação e licenciatura em História pela UFRJ (2007),
especialização em História da África e do Negro no Brasil pela UCAM e mestrado em história no
Programa de Pós-graduação em História da UFRRJ (2011). Seus estudos de doutorado foram realizados
no Programa de Pós-graduação em História da UFF (2015). Realizou atividades de pós-doutorado no
Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, na área de História da África.

Revista Escritas do Tempo – v. 2, n. 5, jul-out/2020 – p. 157-174


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changements importants aient déjà été trouvés. Dans les cours de licence d'histoire, l'Afrique et
les natifs du Brésil sont étudiés en un ou deux semestres, ce qui nous semble être un court laps
de temps pour les enseignants en formation. Une façon de sortir de cette limite serait la pratique
d'ateliers utilisant des livres didatiques pour réfléchir sur l'approche de l'histoire africaine, la
diversité de l'expérience des Noirs au Brésil et le thème indigène. Cet article vise à démontrer
ateliers avec des manuels et la préparation de cours dans des cours de licence d'histoire à Rio de
Janeiro et Minas Gerais.
Mots-Clés: Ateliers. Enseignement de l'histoire. Afrique. Indigène.

EL ENFOQUE DE LOS TEMAS INDÍGENAS Y LA HISTORIA AFRICANA EN


LOS LIBROS DIDÁCTICOS: UNA EXPERIENCIA EN LA FORMACIÓN DEL
PROFESORADO

Resumen: Los libros didácticos son el medio más utilizado por los profesores de historia,
incluso con el uso cada vez mayor de Internet. Las leyes 10.639 y 11.645 hicieron obligatoria la
enseñanza de la historia africana, la cultura afrobrasileña y los temas indígenas, pero tales temas
aún no se demuestran y problematizan en los libros didácticos, aunque ya se han encontrado
cambios importantes. En los cursos de licenciatura de Historia, África y los nativos de Brasil se
estudian en uno o dos semestres, lo que creemos que es poco tiempo para los profesores en
formación. Una forma de salir de este límite sería la práctica de talleres utilizando libros
didácticos para reflexionar sobre el enfoque de la historia africana, la diversidad de la
experiencia negra en Brasil y el tema indígena. Este artículo tiene como objetivo demostrar
talleres con libros didácticos y preparación de clases en cursos de licenciatura en Historia en Río
de Janeiro y Minas Gerais.
Palabras clave: Cursos. Enseñanza de la historia. África. Pueblos indígenas.

A formação de professores e as leis 10.639 e 11.645 158

A formação de professores é um momento no qual se pode experimentar


diversas possibilidades. Estar em formação implica um investimento pessoal, livre e
criativo sobre os percursos e projetos próprios, com vista à construção de uma
identidade pessoal e profissional (NÓVOA, 1991). Logo, a formação docente não se
resume a uma etapa da vida escolar, mas se processa ao longo da vida profissional dos
sujeitos, se desenvolvendo no cotidiano, em tempos e espaços educativos diversos, uma
vez que o saber docente é plural. O docente é um profissional que implica um domínio
de saberes que são frutos de elaboração pessoal, decorrentes de um quadro de
referências social e culturalmente construídos.
Vivemos em uma sociedade que requer o enfrentamento de práticas
discriminatórias e preconceituosas. Por isso, o professor deve educar para a diversidade
e respeito às diferenças. Os professores são insubstituíveis não só para as possibilidades
de aprendizagens, mas também na elaboração de processos de inclusão que respondam
aos desafios da diversidade e no desenvolvimento de metodologias adequadas para uso
das novas tecnologias.

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Ao analisar a formação nos cursos superiores de História, Selva Guimarães


Fonseca (2003) afirma que os espaços de licenciatura devem possibilitar a articulação
das atividades de ensino, pesquisa, extensão e das práticas pedagógicas. É na graduação
que os saberes docentes são organizados como estruturantes da formação do professor e
tal processo é dinâmico e ativo.
Formação e prática não são atividades distintas para os professores. Além disso,
o inacabamento é a marca desse movimento. Por isso é muito importante que os cursos
de licenciatura em História ofereçam mais momentos de reflexão sobre a prática
docente e que os recursos disponíveis estejam relacionados às realidades discentes, de
modo que os licenciandos se identifiquem e se interessem pela disciplina de História.
Nesse sentido, cabe lembrar que apesar do uso crescente da internet, o livro didático
ainda é a ferramenta mais utilizada pelo professor de História no Brasil.
Em 2003 foi criada a lei 10.639 e, no ano seguinte, o Conselho Nacional de
Educação aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Desse
modo, foi definido o conteúdo programático a ser ensinado. Em 2008, a lei 11.645
alterou novamente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira e incluiu a
obrigatoriedade da temática indígena2. 159

Segundo o historiador Anderson Oliva (2003), a África e suas múltiplas


experiências históricas não foram apresentadas durante grande parte das trajetórias de
vida e formações escolares de grande parte da população brasileira, a não ser por meio
de informações que estavam recheadas de equívocos e simplificações. O autor atenta
para o silêncio, o desconhecimento e as poucas experiências positivas referentes aos
espaços africanos nas coleções de livros didáticos brasileiros. Apenas um número muito
pequeno de manuais possui capítulos específicos sobre a temática. Por vezes, a África
aparece apenas como um figurante que passa despercebido em cena, sendo mencionada
como um apêndice misterioso e pouco interessante de outros assuntos (OLIVA, 2003, p.
429).

2
Neste artigo, optou-se apenas por demonstrar autores que abordam questões para os livros didáticos de
História. Contudo, há outros estudos importantes que analisam a representação dos negros nos livros
didáticos de outras disciplinas. Para o caso de Língua Portuguesa, cf. SILVA, 2011. Para o caso da
Geografia, cf. COSTA, R.L. S da; DUTRA, D. F. A lei 10639/2003 e o ensino de geografia:
representação dos negros e África nos livros didáticos. In: 10º Encontro nacional de Prática de Ensino em
Geografia, 30 de agosto a 02 se setembro de 2009. Porto Alegre. Para o caso da Matemática, cf.
OLIVEIRA, 2016.

Revista Escritas do Tempo – v. 2, n. 5, jul-out/2020 – p. 157-174


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A professora e historiadora Mônica Lima aponta para a necessidade de criar


referências nas escolas ao abordar pessoas negras que se destacaram, como João
Candido, André Rebouças e outros. Além disso, ela enfatiza a importância de trabalhar
conteúdos históricos fazendo relações com o espaço africano, como a questão de o
processo de hominização de nossa espécie ter ocorrido na África, ou sublinhar a
existência de civilizações poderosas na antiguidade como o Egito e Kush. Dessa
maneira, a história estimularia nos alunos a criação de uma imagem positiva da África e
dos africanos, trabalhando sua autoestima e fabricando uma maior identificação com
esses grupos (LIMA, 2006, p. 73).
A autora ainda demonstra alguns temas que devem ser problematizados em sala
de aula, como a ideia de que os indígenas não teriam se adaptado ao trabalho forçado e
o escravo africano seria mais apto a este tipo de atividade3. Os jesuítas defendiam essa
teoria apoiados por uma bula papal e um decreto real, que determinavam a captura
apenas dos nativos que se rebelassem ou tivessem comportamento antirreligioso e
protegia os recolhidos nas missões4. Os jesuítas possuíam milhares de escravos nos
diversos colégios, seminários e residências, ou seja, pode-se inferir sobre o interesse
jesuíta em referendar a escravidão africana.
Outro tema recorrente e que deve ser problematizado é a ideia disseminada de 160

levar a “civilização” e a “salvação” para os africanos. Os povos do continente até hoje


percebem reflexos desta atitude dita “civilizatória”, desenvolvida pelos europeus,
primeiramente, entre os séculos XVI e XIX, através do tráfico negreiro e,
posteriormente, desorganizando as sociedades, devastando a natureza, apossando-se das
riquezas e desestruturando as culturas (LIMA, 2006, p. 95).
A historiadora Mônica Lima salienta que é preciso abordar no ensino de História
a diversidade das experiências históricas das pessoas que foram escravizadas. Deve-se
destacar não apenas as fugas e revoltas, mas o modo como se organizavam em
irmandades religiosas, os movimentos sociais e artísticos, em centros de cultura, lazer e
educação, numa demonstração inequívoca de insatisfação com a sua condição de vida.
Certamente, o preconceito e a discriminação que envolvem a população negra no
Brasil foram reforçados durante muito tempo no processo de ensino-aprendizagem de
História. Isto se explicita na ausência da História da África nos currículos e livros

3
Esse é um ponto fulcral para o debate. Afinal de contas, existiria algum grupo ou alguém que se
“adapte” mais facilmente a algum tipo de trabalho forçado? O professor em sala de aula precisa levantar
esse tipo de questão junto aos alunos.
4
A chamada “guerra justa”.

Revista Escritas do Tempo – v. 2, n. 5, jul-out/2020 – p. 157-174


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didáticos durante tanto tempo e na valorização dada ao estudo da história geral, tendo
por paradigma a história europeia. Por isso, é preciso sempre reavaliar a história
ensinada e aprendida no Brasil, tirando do ostracismo aqueles que tiveram sua
participação na construção desse país subvertida e/ou silenciada.
Marina de Mello e Souza também sugere abordagens sobre a história da África.
A presença de exploradores europeus no continente africano é um tema interessante
para ser trabalhado em sala de aula, por exemplo. É possível abordar questões
metodológicas e de crítica documental relativas ao uso desses textos como fontes. O
fator aventura pode captar a atenção de um adolescente ao demonstrar e problematizar
os casos de Henry Stanley, Mungo Park, Richard Francis Burton, John Hanning Speke e
James Augustus Grant5. Até mesmo uma produção bibliográfica anterior pode ser
trabalhada, como a de exploradores e geógrafos europeus, eruditos árabes ou africanos
islamizados6.
Além de abordar a história da África pelo viés das narrativas escritas, pode-se
também estudar o continente utilizando as informações de natureza geográfica, as trocas
culturais que permeavam as transações comerciais, a importância dos rios e a
localização de grupos, por exemplo:
161
Ensinar História da África e aspectos da cultura afro-brasileira nas escolas
parece ser um bom caminho para nos livrarmos de preconceitos historicamente
constituídos e que ajudam a impedir que a população negra tenha igualdade de
oportunidades diante da parcela mais branca, ou mais clara, dos brasileiros. Isso
não tem nada a ver com estimular antagonismos entre as raças, num país
composto de pessoas de ascendências variadas, ou seja, mestiças. Mas sim com
valorizar o que há de africano, e consequentemente de negro, em todos nós,
assim como devemos valorizar o que há de europeu, de oriental e de indígena.
(SOUZA, 2008, p. 75)

Assim como a História da África, a temática indígena vem recebendo uma maior
visibilidade no ensino de História. Desde 1990, os estudos históricos na academia
deram novas dimensões para a agência das populações indígenas na história do Brasil,
especialmente considerando o seu papel a partir da ocupação colonial portuguesa.

5
Tais nomes se referem a europeus que produziram textos sobre regiões do continente africano entre os
séculos XVIII e XIX.
6
Importante também evidenciar o método de escrita utilizados por esses autores, que relatavam o que
viram, ouviram e pesquisaram em documentos que tiveram acesso, como Al-Bakri, Al-Masudi, Ibn
Matuta, Ibn Kaldun, As-Saadi e Yuhanna al-Asad. Isso também contribui para tornar possível uma série
de materiais sobre uma África medieval, ao invés de uma compreensão do medievo permeada da presença
da fé católica e do feudalismo europeu, que aparecem de forma predominante nos livros didáticos.

Revista Escritas do Tempo – v. 2, n. 5, jul-out/2020 – p. 157-174


DOI: 10.47694/issn.2674-7758.v2.i5.2020.157174

Pensar o indígena nas relações sociais, culturais e econômicas em todo o contexto


colonial concedeu-lhe novo papel na história (MONTEIRO, 1994).
Contudo, de acordo com vários autores que já se dedicaram a estudar as
representações dos indígenas no livro didático, percebe-se que o ensino da temática não
tem visibilidade. As análises de livros didáticos da primeira metade do século XX
identificaram que as visões sobre tais povos estavam marcadas pelas noções da
literatura romântica do século XIX, que mostram o indígena idealizado, representado a
um só tempo como herói e vítima, fadado ao extermínio. Eles eram vistos como
representantes do passado, só aparecendo como primeiros habitantes do Brasil
(ZAMBONI; BERGAMASCHI, 2009, p. 56).
Os saberes selecionados oficialmente nas escolas desconsideram muitas vezes a
pluralidade dos povos indígenas, hoje presentes na nação brasileira com centenas de
etnias. Muitas vezes a imagem que construímos sobre os indígenas ocorre na infância e
permanece por toda vida, pois são escassos os contatos com a temática ao longo da vida
escolar. Essa visão deformada decorre da nossa história ser contada até hoje a partir da
visão do colonizador, embora já se verifique uma pequena mudança em alguns casos.
Geralmente, quando os alunos do ensino básico são convidados a realizar
desenhos sobre os indígenas, eles aparecem nus, pintados e em contato com a natureza. 162

De acordo com essas representações, é evidente que a situação social contemporânea


desses grupos não é abordada. (BERGAMASCHI; GOMES, 2012, p. 56). Considerando
o conteúdo de História, a temática indígena ainda é tratada com muita ambiguidade e
persiste uma visão que se aproxima da ideia de “homens ingênuos” e “vitimizados”.
Em agosto de 2017, foram elaborados questionários para identificar as formas da
aplicabilidade da temática indígena com os não índios nas escolas da rede pública
estadual no município de Macapá, no Amapá, e como estas escolas estavam
desenvolvendo seus conteúdos para abarcar a lei 11.645/2008. O estudo revelou que a
maior parte dos professores reclamava da falta de materiais didáticos a respeito, além de
se revelam mal informados sobre o assunto. A pesquisa também indicou que a temática
indígena era abordada apenas em datas comemorativas (MIRANDA; PASTANA;
FERRO, 2017, p. 10).
No ano de 2014, foi realizada análise de uma das coleções de livros de história
mais utilizada no Brasil (distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático), que
concluiu que os povos indígenas possuem três formas de visibilidade na coleção. A
primeira delas é fugaz, composta de menções passageiras, nas quais não são

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aprofundadas as informações. A segunda delas é quando os grupos indígenas aparecem


enquanto objeto da ação colonizadora (escravizados por uns, aldeados por outros). Não
são enfatizadas as respostas dos indígenas para essas ações, sublinhando uma visão de
que eram passivos, submissos e manipulados. Por fim, em poucos momentos da coleção
busca-se construir conhecimentos sobre eles, dando destaque e aprofundamento nas
informações. Mesmo possuindo referências bibliográficas atuais, a narrativa dos livros
analisados é construída a partir de escolhas que negligenciaram informações que
possibilitariam uma maior visibilidade aos povos indígenas, promovendo, portanto, um
silenciamento sobre o papel desses povos na história do país (GANDRA; NOBRE,
2014, p. 55).

Os livros didáticos

De acordo com Selva Guimarães Fonseca, a maior parte dos especialistas estão
de acordo que o livro didático é a ferramenta mais importante no ensino de História
(FONSECA, 2003). O livro didático é o segundo gênero mais lido pelos brasileiros,
ficando atrás apenas na Bíblia. Desde a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), o governo federal legisla sobre o livro didático, além de gerenciar
sua circulação. Pensar o ensino de História e os materiais didáticos implica refletir sobre 163

as relações entre o mercado (toda cadeia produtiva do livro), o Estado, a universidade,


as escolas e os currículos e em ação nas aulas de História.
Pressupondo que os livros didáticos devem ser pensados como objetos culturais
complexos, devemos compreendê-lo também como um documento histórico. Nesse
sentido, deve-se atentar para a sua criação, produção editorial, comercialização,
circulação, apropriação, utilização e leitura. Alain Choppin (2004, p. 554) defende que é
muito complexo analisar esse tipo de material, pois eles assumem múltiplas funções das
quais nós, enquanto pesquisadores, selecionamos as que mais se identificam com os
nossos objetivos. Analisar criticamente os conteúdos dos livros didáticos e relacioná-los
às discussões historiográficas e às demandas sociais, pensar seu suporte material, seus
usos e desusos por professores e alunos, são algumas das maneiras possíveis de
pesquisa.
O livro didático não merece ser visto como uma cópia mal cortada de conteúdos
acadêmicos. Tampouco associar a utilização desse suporte a uma falta de competência
dos professores. O livro didático como objeto pedagógico foi peça fundamental no lento
e constante processo de construção curricular e formação de uma tradição escolar, para

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o conjunto de práticas e representações que marcaram o processo de escolarização


moderna. Na escola existe uma tradição pedagógica que direciona o trabalho com os
conteúdos que fazem parte da grade curricular por meio de uma série de dispositivos e
normas que caracterizam a forma escolar de ensino para uma massa de estudantes.
De acordo com Erinaldo Cavalcanti (2018), o livro didático exerce grande
influência no exercício da docência. O autor é um dos defensores da experiência com
livros didáticos durante a formação docente, pois o livro não se resume ao texto
(CAVALCANTI, 2018, p. 2). Além disso, o autor salienta que é o trabalho dos
diagramadores, revisores e designers gráficos que oferece a primeira leitura para o
público ao qual se destina, uma vez que a primeira interpretação da obra dependerá da
leitura visual. A dinâmica da fabricação desse produto passou por significativas
mudanças nos últimos anos, que sinalizam e representam projetos políticos em
constantes disputas. Disputas que direcionam a composição dos livros na medida em
que interferem na seleção dos conteúdos, da composição da narrativa, nas abordagens
apresentadas, nas fontes utilizadas e na materialidade do próprio produto.
Um elemento importante a ser considerado na composição dos livros didáticos
são as imagens que os compõem. Na intenção de tornar o conteúdo histórico mais
atrativo, as ilustrações são usadas em grande quantidade. As imagens, como fragmentos 164

do todo, não podem ser percebidas desarticuladas do universo social em que estiveram
inseridas quando produzidas (COSTA, 2005). Warley Costa defende a necessidade de
observação e problematização do que elas nos dizem a respeito das culturas em que
foram produzidas e suas finalidades ao serem criadas: “Elas foram produzidas para
ilustrar determinado texto, para ornamentar determinada peça de arte ou para registrar o
presente vivido para a posteridade? São realistas?” (COSTA, 2005, p. 148).
Sem o devido questionamento por parte dos professores em sala de aula,
problemas graves podem ocorrer. Costa afirma que nos livros didáticos de História que
analisou observou grande quantidade de imagens que informavam sobre as condições de
vida dos cativos, reforçando a trajetória de vida sofrida, de permanente dor. Para a
autora, o manual didático se configura como instrumento de divulgação de uma
memória que com suas gravuras e fotografias passam a constituir importantes acervos
selecionados de acordo com sua significação para diferentes grupos. Com a intenção de
observar as imagens que existiam sobre o tema escravidão, Costa revela que as
denúncias necessárias demonstradas pelas imagens são importantes, mas relegam ao
escravo o papel de agente absolutamente passivo: “Sem movimento próprio, sem

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nenhuma possibilidade de autonomia, ele se transformaria num ser desprovido de


qualquer ação humana” (COSTA, 2005, p. 154). Desse modo, ignorar aspectos da
cultura, das relações sociais e afetivas que se estabeleciam na sua vivência cotidiana é
silenciar. É preciso considerar que, mesmo sob o cativeiro, as pessoas criaram relações
sociais específicas, que precisam ser demonstradas para os alunos nas aulas de história.
Como enfatiza Maria Auxiliadora Schmidt (2011, p. 133) é bastante sintomático
que ainda não tenhamos uma disciplina nos cursos de formação docente que se
encarregue especificamente de trabalhar o livro didático em suas múltiplas dimensões.
Sabemos que o processo de apropriação e as possibilidades de usos dos livros didáticos
dependem de muitas variantes. As práticas de apropriação são múltiplas e dependem da
relação de forças em que são construídas. A formação de professores é o espaço por
excelência onde podemos e devemos experimentar possibilidades e, por extensão,
interpretar as práticas e representações docentes acerca do livro didático de história em
sala de aula.
O livro didático é uma fonte útil para a cultura escolar. Todavia, ele não deve ser
o único material a ser explorado. Submetido à uma leitura crítica, com a ajuda
interpretativa do professor e colocado em diálogo com outras fontes de estudo, ele pode
contribuir de modo significativo para a aprendizagem da História. Ao mesmo tempo, 165

nem tudo está no livro didático: o ensino se dá por múltiplos caminhos, logo a produção
de materiais didáticos, vinculada a realidades específicas de aprendizagem, deve ser
apoiada e valorizada (FONSECA, 2003).
Ainda segundo Selva Guimarães Fonseca, é necessária uma revisão dos modos
de uso dos livros didáticos. A autora defende a complementação dessa ferramenta, como
a diversificação das fontes históricas e o uso de paradidáticos, mídias e linguagens. A
sala de aula não é um mero espaço de reprodução de conteúdo, logo, requer dos
professores uma postura de criticidade diante do que é veiculado. Especialmente porque
a perspectiva curricular da disciplina História ainda é baseada num critério temporal,
linear eurocêntrico, articulada, quando possível, à História do Brasil, da América e da
África. Para a autora, isso se evidencia ainda mais com o uso de apostilas, que
simplificam, fragmentam e reduzem a versões simplificadas e acríticas o conhecimento
histórico. Os livros didáticos são, portanto, representativos para a compreensão da
difusão do saber histórico (FONSECA, 2003).

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Oficinas com livros didáticos na formação de professores de história

Gostaríamos de demonstrar algumas oficinas realizadas em cursos de


licenciatura em História em duas universidades federais do Sudeste brasileiro. Trata-se
de oficinas de análise de livros didáticos e de elaboração de aulas temáticas referentes à
África e à temática indígena. É preciso salientar que as coleções de livros didáticos não
apresentam as mesmas abordagens sobre os temas que nos interessam neste artigo.
Portanto, as visões demonstradas aqui se referem às impressões dos alunos de
licenciatura sobre os livros didáticos utilizados nas oficinas que realizamos7.
Parte das oficinas ocorreu em 2018 na Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) na disciplina optativa “Ensino de história da África e indígena na
educação básica”. O objetivo da disciplina era refletir sobre o ensino de história da
África, africanos e história indígena e seus impactos na educação básica e superior,
além de inferir sobre seus reflexos na produção de material didático e na formação de
professores de história. Já no ano de 2019, as oficinas foram realizadas na disciplina
“Educação e Relações Étnico-raciais”, também optativa, na Universidade Federal de
São João del-Rei (UFSJ). Nesta disciplina, separamos um módulo para analisar as
desigualdades étnico-raciais na sociedade brasileira, relacionando-as aos estudos sobre
166
diversidade na área educacional. Num segundo módulo, o objetivo era refletir sobre
África, indígenas e negros no Brasil, representados nos livros didáticos, e pensar
estratégias de abordagens para os temas, considerando os principais mitos e
dificuldades. Finalmente, num terceiro módulo o objetivo era demonstrar e estimular
estratégias de superação do racismo na educação e, em especial, discutir as políticas de
ação afirmativa e as leis 10.639/2003 e 11.645/2008.
Em ambas as situações, as oficinas foram realizadas em grupos de três a quatro
pessoas. Cada grupo recebia aleatoriamente um livro didático de História do Ensino
Fundamental II (do 6° ao 9° ano) e deveria analisá-lo por cerca de 60 minutos,
respondendo a algumas questões específicas. Em seguida, formávamos uma roda de
conversa e os grupos apresentavam suas impressões. É importante pontuar que, antes
dessa oficina, foram apresentados e debatidos textos que falavam sobre as

7
Foram analisados os seguintes livros didáticos: APOLINÁRIO, 2010. 4 v. (do 6° ano 9° ano); BOULOS
JÚNIOR, 2012. 4 v. (do 6° ano 9° ano); BRAICK, 2001. 4 v. (do 6° ano 9° ano); VAZ; PANAZZO,
2012. 4 v. (do 6° ano 9° ano).

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singularidades dos livros didáticos e as representações da África, dos africanos e


indígenas nessas obras8.
Os alunos de licenciatura demonstraram bastante entusiasmo em trabalhar com
os livros didáticos. Alguns comentavam que havia muito tempo que não tinham contato
com um livro daquele tipo ou que “estavam curiosos” de saber como eram os livros
didáticos de “hoje em dia”. Também ficou evidente o desejo dos alunos de analisarem e
trabalharem os livros didáticos em outras situações e em outras disciplinas. Os alunos
expressaram seu desejo de um maior enfoque à preparação para a prática docente pelas
instituições, embora reconhecessem a importância da preparação para a pesquisa
histórica.
Após opinarem sobre a proposta da atividade, partíamos para o
compartilhamento de suas impressões sobre os livros. Na primeira oficina, as perguntas
que orientavam as análises foram: qual o ano de publicação do livro? Quais são os
autores e suas formações? Qual o público-alvo do livro? Quais imagens representavam a
África ou os africanos? Ou os negros no Brasil? Que tipo de reação elas causavam?
Existe algum texto em referência à imagem? Do que se trata? Na sua visão, como o
aluno entenderia o papel do negro ou africano em questão? De uma maneira positiva ou
negativa? Explique. 167

Em uma outra aula, ocorria outra oficina, com perguntas diferentes, focando na
temática indígena. As perguntas eram: quais capítulos/unidades existem no livro que
abordam a questão indígena no Brasil? Como os indígenas são caracterizados? Seus
comportamentos? Existem imagens? Existe uma contextualização para tais imagens ou
são usadas apenas como ilustração? Você utilizaria esse livro para abordar a questão
indígena ou se sentiria mais seguro produzindo um material próprio?
Percebeu-se que, tanto para a análise da África, africanos e seus descendentes no
Brasil quanto para o caso indígena, houve uma atenção especial às imagens que
existiam nos livros. Esse recorte foi realizado tendo em vista o tempo para a análise (60
minutos cada oficina) e levando em consideração o impacto que elas podem causar no
público-alvo, visto que os alunos do Ensino Fundamental II são mais afetados por elas
do que por grandes textos informativos.
Em ambas as situações, os alunos expressaram que os livros didáticos sempre
apresentariam algum tipo de “problema”, especialmente se comparados às pesquisas

8
Especialmente os textos de Anderson Oliva, Warley Costa, Monica Lima, Gandra e Nobre e Grupioni.
As referências completas dos textos seguem nas referências bibliográficas.

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acadêmicas. Foi interessante notar essa percepção que possuíam sobre o livro didático
não ser uma “vulgarização” do saber acadêmico, mas um saber diferente e que precisa
de uma mediação importante do professor.
Com relação às imagens, os alunos da licenciatura destacaram algumas imagens
que faziam referências à Copa do Mundo de 2010, realizada na África do Sul, e a
figuras como Nelson Mandela. A maior parte das imagens referiam-se a uma história
contemporânea do continente, no caso dos livros do 9° ano. Com relação ao 6° ano,
chamaram a atenção as imagens do Egito e do destaque dado a sua localização no
continente africano, bem como a referência à origem africana da espécie humana.
Nesses casos, as imagens foram entendidas de maneira bastante positiva. O caso do 7°
ano foi o que mais espantou os alunos, ao perceberem as páginas que falavam sobre
Reinos de Gana, Mali, Songhai e a influência dos povos Banto e Iorubá no Brasil.
Muitos diziam não ter visto tal conteúdo em sala de aula e que também teriam
dificuldade de abordar o tema quando se tornassem professores de História por conta da
falta de contato com tais temas.
O caso mais grave apontado pelos alunos ocorria nos livros didáticos do 8° ano.
Eram raras as imagens do continente, exceto por mapas que faziam referência ao tráfico
de pessoas escravizadas. Ou seja, nesse momento, os alunos tiveram a impressão de que 168

a única leitura que teriam da África seria como “mera fonte de escravos”. Além disso,
contestaram o fato de existirem poucas informações sobre a experiência histórica dos
africanos e de seus descendentes no Brasil, dando a entender que todos eles vieram
como escravos e permaneceram como tal até a chegada dos imigrantes europeus e a
chamada “política de embranquecimento”, promovida pelo governo brasileiro. Os
alunos da licenciatura disseram que os negros pareciam “sumir” no livro didático
quando a imigração europeia começou e só reapareceram na Revolta da Chibata (já no
livro de 9º ano). Mesmo assim, não existia um contexto do papel do negro na sociedade
do pós-abolição.
Para o caso indígena, os alunos da licenciatura perceberam certa presença de
imagens sobre os povos nativos nos livros do 6° ano. Nos livros didáticos do 7º ano, as
imagens demonstravam os indígenas apenas como “pano de fundo” da chegada dos
portugueses na América. Nos livros de 8º e 9º ano, eles não apareciam. Apenas em um
livro do 9º ano aparecia a figura de um indígena e um texto referente aos direitos
adquiridos pelo grupo no contexto da criação da Constituição Brasileira de 1988. Ou
seja, foi unânime a impressão de que, nos livros didáticos, os indígenas quase não

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aparecem ou, quando aparecem, são abordados de forma superficial, “presa” ao passado
e sem aprofundamento sobre questões atuais vivenciadas por esses povos.
Após as trocas de informações e debates levantados pelas oficinas, foram
apresentados temas referentes à África, aos africanos e seus descendentes no Brasil e
aos indígenas, que poderiam ser trabalhadas no Ensino Fundamental II e Médio. Cada
aluno sorteou um tema e, ao longo do semestre, deveria elaborar uma aula tendo a
própria turma como ouvinte. Cientes das características e limitações dos livros
didáticos, os alunos foram estimulados a pensar suas abordagens de maneira
problematizada, colaborando para a construção de um saber escolar que fosse além das
informações dos livros didáticos.

Aulas elaboradas para além do livro didático: dois casos

Os alunos de licenciatura em História tiveram orientações em seus planos de


aula e foram incentivados a consultar outras fontes de conhecimento. O livro didático
deveria funcionar apenas como um apoio. O resultado desse processo foi muito
satisfatório. Foram aulas bem dinâmicas e interessantes. Alguns usaram fontes
históricas escritas e materiais, filmes, trechos de obras literárias, games e outros
materiais. Surpreendeu positivamente a valorização que os alunos de licenciatura deram 169

para a questão da oralidade, marcando a sua importância para as sociedades africanas,


as religiões afro-brasileiras e também para pensar os indígenas. Além disso, foram
apresentadas referências de produções musicais contemporâneas indígenas e africanas.
Os alunos demonstraram bastante entusiasmo em ministrar as aulas e contar com o
feedback da própria turma em seguida.
Dentre as aulas, gostaríamos de destacar dois casos: um que ocorreu no Rio de
Janeiro e outro em Minas Gerais. A primeira abordando a história do continente
africano e a segunda, a temática indígena.

Caso 1
Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, um aluno do 7° período da
licenciatura de História teve que escolher um tema de “África contemporânea”, que
deveria ser pensado para um público de 9° ano do Ensino Fundamental II. O licenciando
iniciou sua aula ressaltando a complexidade desse período e que, como cada país
africano teve sua singularidade, ele destacaria apenas um caso como exemplo: o da
guerra civil de Ruanda, em 1994. Depois, ele distribuiu um questionário com perguntas

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rápidas para serem respondidas por cada um que assistia sua aula, alegando que queria
conhecer a todos melhor. A surpresa foi grande quando recebemos o questionário e
percebemos perguntas como: “qual é o seu time?”; “você come carne?”; “você se sente
melhor andando calçado ou descalço em sua casa?”. Especialmente, nos perguntávamos
“o que isso tem a ver com a matéria?”. Depois de 5 minutos, devolvemos os
questionários respondidos e ele rapidamente os analisou. O aluno então declarou que
aqueles que “torciam para o flamengo”, “não comiam carne” e “andavam calçados em
casa” teriam privilégios durante a aula, pois pensavam como ele. Esse grupo foi
separado dos demais, que começaram a “reclamar”, pois não teriam as mesmas
condições. Finalmente, o autor da aula nos revelou que os sentimentos de
descontentamento e rivalidades vividos minimamente ali naquela experiência foram
vivenciados por grupos maiores e de forma muito grave. Então, explicou como as
rivalidades entre Hutus e Tutsis foram agravadas pela Bélgica a partir de 1910 em
Ruanda, pelas classificações feitas sobre a população local9. Em seguida, explicou como
tais rivalidades levaram ao genocídio ocorrido e passou algumas cenas editadas do filme
Hotel Ruanda. A aula foi finalizada apresentando as seguintes perguntas: “como você se
sentiria se fosse um Hutu naquele contexto?”; “como você se sentiria se fosse um Tutsi
naquele contexto?”. 170

Caso 2
Em 2019, na Universidade Federal de São João del-Rei, uma aluna no 6° período
tinha como tema o “Encontro das culturas indígenas e portuguesa” no contexto da
chegada lusitana na América. O público-alvo eram alunos do 7° ano. A aluna da
licenciatura distribuiu fragmentos do texto “O ritual do corpo entre os Sonacirema”, de
autoria de Horace Minner. O artigo é uma crítica ao modo de vida americano,
especialmente no que se refere ao “ritual do corpo”. É uma crítica para a facilidade de
como aceitamos nossas práticas como naturais e repudiamos os costumes de outras
comunidades entendidas como crenças “sem fundamento”. A crítica de Minner revela
que a nossa sociedade conserva o mesmo estilo ritualístico existente em outras
comunidades. Segue um trecho do texto, para uma melhor compreensão:

9
Obviamente as situações e sentimentos vivenciados naquele contexto não podem ser minimizados e
tratados de forma pejorativa. Essa não foi a intenção da atividade proposta. O aluno esclareceu que, por se
tratar de uma aula planejada para o 9° ano do Ensino Fundamental II, a experiência possibilitaria que
aqueles que estivessem na aula se imaginassem no lugar das pessoas durante a explicação das condições
de diferenciação provocadas, levando a um movimento de empatia e um exercício de imaginação
histórica, ou seja, uma forma de construir o conhecimento de forma mais ativa.

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Os Sonaciremas nutrem um misto de horror e fascinação por suas bocas que


chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma
influência sobrenatural nas relações sociais. Assim, o ritual do corpo,
cotidianamente realizado por todos, inclui um rito bucal. O rito consiste na
introdução de um pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma
espécie de creme mágico e, em seguida, na movimentação deste feixe, segundo
uma série de gestos altamente ritualizados. (MINNER, 1976, p. 3)

A crítica contida no texto não foi explicada para a turma inicialmente. A aluna
apenas distribuiu os fragmentos do texto e, em seguida, pediu para que cada aluno da
licenciatura lesse em voz alta o seu fragmento. Ao mesmo tempo, ela escrevia no
quadro as ideias principais de cada trecho. Ao final da leitura de todos, ela perguntou se
a turma tinha ideia de qual sociedade o texto abordava. Como recebeu uma resposta
negativa de todos, ela revelou que se tratava dos “americanos”, que é a palavra
sonacirema ao contrário. Todos ficaram surpresos com a revelação daqueles hábitos
serem comuns ao nosso cotidiano, momento em que ela solicitou que todos, novamente,
lessem os trechos, mas agora com outra visão. Finalmente, ela refletiu sobre o
conhecimento que possuímos dos povos indígenas e, em que medida, os conhecemos
ainda pela lente do outro e não deles próprios, uma vez que as fontes escritas do período
foram criadas pelos europeus, e não pelos nativos. A aluna finalizou a aula abordando a
171
necessidade de valorizarmos a alteridade e criar um senso crítico sobre o que sabemos
sobre os indígenas.

Considerações finais

A obrigatoriedade dos temas estabelecidos pelas leis 10.639 e 11.645 foram


frutos de muita luta política. Mais do que isso, uma luta para dar um novo lugar para a
história de grupos fundamentais para a nossa história, mas que foram subalternizados e
silenciados ao longo do tempo. Contudo, pouco adianta fazer reformas curriculares se
estas não forem ligadas à formação de professores. O currículo é construído, produzido
nas relações de poder e saber, nas práticas, nas escolhas, nas culturas escolares e
acadêmicas. É preciso criar cada vez mais experiências para refletir sobre a prática
docente, especialmente pensando a abordagem dos temas colocados pelas leis de 2003 e
2008. Desse modo, é possível contribuir para a formação de professores que valorizem
o saber escolar e que tenham capacidade de reconhecer os limites dos livros didáticos e
se motivem a ir além, produzindo materiais próprios ou buscando outras fontes de

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conhecimento e formas de abordagem, conforme os dois casos demonstrados neste


artigo.
É fundamental refletir sobre o papel do livro didático na formação dos
professores de História, para que os alunos de licenciatura entendam os diversos usos
que podem ser atribuídos a ele. Não se trata de diminuir seu valor como ferramenta
didática, mas de reconhecer a importância de outras abordagens do conteúdo de história,
identificá-las e refletir sobre seus usos.
As atividades demonstradas neste artigo têm como objetivo promover ideias e
estimular mais exercícios do gênero. Nos dias de hoje, os alunos do ensino básico
possuem muitas informações, que são disponibilizadas por diversos meios. O professor
de História é aquele que demonstra a importância do senso crítico e o respeito às
diferenças. É preciso que os alunos de licenciatura se sintam motivados a pensar o
ensino de História como um meio de promover uma sociedade melhor. A temática
indígena, a história da África e a diversidade da experiência histórica dos negros no
Brasil trabalhadas de maneira responsável no cotidiano da sala de aula são
oportunidades de compreender e refletir sobre as origens do racismo – e suas estruturas
– no país, a persistência da visão folclórica e o preconceito para com determinados
grupos sociais. E, mais do que pensar nas origens, refletir sobre maneiras de combatê- 172

las.

Referências

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174

Artigo recebido em 17 de junho de 2020. Aprovado em 14 de setembro de 2020.

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PASSADO, PRESENTE E FUTURO DOS LIVROS DIDÁTICOS DE


HISTÓRIA FRENTE A UMA BNCC SEM FUTURO1

Sonia Regina Miranda2

Fabiana Rodrigues de Almeida3

Resumo: Nosso objetivo com esse texto é refletir - à luz das pulsões do cenário particular em
que vivemos, marcado por importantes retrocessos no caminho de construção democrática da
sociedade brasileira – sobre as conexões entre a política para os livros didáticos de História e as
proposições curriculares constituídas na esteira das formulações da Base Nacional Comum
Curricular - BNCC. Partimos da compreensão de que tanto a formulação de documentos
curriculares quanto o desenho de livros didáticos envolvem territórios em disputa e batalhas
narrativas, sendo que a análise do tempo presente se impõe, de modo particular, para
compreendermos o que se desponta no cenário da política educacional em suas interfaces diretas
com o ensino de História.
Palavras-chave: Ensino de História. Livros Didáticos. BNCC.

PAST, PRESENT, AND FUTURE OF HISTORY DIDACTIC BOOKS IN FRONT


OF A BNCC WITH NO FUTURE

Abstract: Our objective with this text is to reflect - in the light of the impulses of the particular
scenario in which we live, marked by important setbacks in the path of democratic construction
of Brazilian society - on the connections between the policy for history didactic book and the
curricular propositions constituted in the following the formulations of the National Common
Curricular Base - BNCC. We start from the understanding that both the formulation of
curricular documents and the design of didactic book involves territories in dispute and 10
narrative battles, and the analysis of the present time is particularly necessary to understand
what is emerging in the educational policy scenario in its direct interfaces with the teaching of
history.
Keywords: History teaching. Didactic book. BNCC.

PASSÉ, PRÉSENT ET FUTUR DES LIVRES DIDACTIQUES D'HISTOIRE


DEVANT UNE BNCC SANS AVENIR

Résumé: À la lumière des impulsions du scénario particulier dans lequel nous vivons, marqué
par d’importants revers sur la voie de la construction démocratique de la société brésilienne,
l’objectif de ce texte est réfléchir à propos des liens entre la politique des manuels d’Histoire et
des propositions de curriculum constituées dans les formulations de la Base National Commun

1
Esse artigo é dedicado à memória de Júnia Sales Pereira (1968-2019), que transitou com maestria,
compromisso público e ética republicana por todos esses territórios.
2
A pesquisadora possui Graduação em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1985),
Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1990), Doutorado em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas (2004) sob a supervisão da profa. Dra. Ernesta Zamboni e Pós-
Doutorado em Didática das Ciências Sociais pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha - 2012,),
sob a supervisão do prof. Dr. Joan Pagès. Atualmente é professora titular aposentada da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação
orientando trabalhos em nível de Mestrado e Doutorado.
3
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008) e mestrado em
Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2012). Atualmente é doutoranda em Educação pelo
PPGE/UFJF, pesquisadora colaboradora da Universidade Federal de Juiz de Fora e docente EBTT -
Colégio de Aplicação João XXIII/UFJF, atuando principalmente nos seguintes temas: memória, ensino de
história, livros didáticos, história e saberes docentes.

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Curriculaire (BNCC). Nous partons de la compréhension que la formulation des documents


curriculaires et la conception des manuels scolaires impliquent des territoires contestés et des
batailles narratives, et on prend en compte que l’analyse du temps présent est particulièrement
nécessaire pour comprendre ce qui émerge dans le scénario de politique éducative et ses
interfaces directes avec l’enseignement de l’Histoire.
Mots-clés: Enseignement de l’Histoire. Manuels scolaires. BNCC.

PASADO, PRESENTE Y FUTURO DE LOS LIBROS DIDÁCTICOS DE


HISTORIA FRENTE A UNA BNCC SIN FUTURO

Resumen: El presente texto busca reflexionar – bajo las pulsiones del escenario particular en
el que vivimos, donde percibimos importantes retrocesos en el camino de la construcción
democrática de la sociedad brasileña – sobre las conexiones entre la política para los libros de
texto de Historia y las proposiciones curriculares constituidas en las formulaciones de la Base
Nacional Común Curricular - BNCC. Nuestra apuesta teórica y metodológica busca comprender
que no solamente los documentos curriculares sino también el diseño de libros de texto
involucran territorios en disputa y batallas narrativas. El análisis del momento presente se
impone, de manera particular, para comprender el escenario emergente de la política educativa
en sus interfaces directas con la enseñanza de Historia.
Palabras-clave: Enseñanza de Historia. Libros de texto. BNCC.

Livros e currículos no tempo presente: territórios em disputa

Se existe uma compreensão dotada de razoável grau de intersubjetividade no


ambiente acadêmico particular do campo de pesquisa da Educação, é aquela que admite
que os elementos modeladores da cultura escolar são objetos históricos, construídos em
11
função de disputas narrativas em cenários que nos são deflagrados a partir de
historicidades definidas. Por isso, são elementos continuamente reconstruídos por cada
tempo presente. Esse é o fio da navalha que se impõe não só nas demandas de cada
sociedade a respeito de suas interrogações postas para o passado, mas também na
compreensão de que a experiência humana em cada tempo presente modula os modos
de se conhecer e pesquisar o passado. Portanto, se isso vale para o entendimento da
ciência histórica como um princípio vital, vale também para as determinações que
modelam e movimentam a escola. Ter em conta tal compreensão como um ponto de
partida epistêmico é decisivo para refletirmos sobre as tentativas de modelagem
estabelecidas no movimento temporal e no “aqui e agora,” no qual os conteúdos
escolares se apresentam submetidos ao calor do debate público que incide sobre os
limites e potencialidades da escola. Começamos por essa advertência para situar que
nossa escrita é também válida e feita para nosso tempo presente particular. Nosso
objetivo com esse texto é refletir - à luz das pulsões do cenário particular em que
vivemos, marcado por importantes retrocessos no caminho de construção democrática
da sociedade brasileira – sobre as conexões entre a política para os livros didáticos de

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História e as proposições curriculares constituídas na esteira das formulações da Base


Nacional Comum Curricular - BNCC. Partimos da compreensão de que tanto a
formulação de documentos curriculares quanto o desenho de livros didáticos envolvem
territórios em disputa e batalhas narrativas, sendo que a análise do tempo presente se
impõe, de modo particular, para compreendermos o que se desponta no cenário da
política educacional em suas interfaces diretas com o ensino de História.
Esse cenário descrito por Gaudêncio Frigotto a partir do “risco que vivemos
hoje no Brasil, com indícios claros do clima de desagregação social, de produção do
ódio às diferenças e de preparação de uma atmosfera de perseguição que, no caso da
Alemanha e da Itália, culminou na monstruosidade do nazismo e do fascismo” (2017,
p.17). Falamos aqui de um caso particular situado no script do neogolpismo latino-
americano, conforme expressão de Matheus Araújo e Vanessa Pereira (2018) que
pavimentou ideologicamente um solo estrutural que vem produzindo, desde então,
grandes retrocessos vivenciados pela sociedade brasileira. No caso da problemática
selecionada nesse texto, os retrocessos mesclam aquilo que se encontra explícito no
discurso público e o que se situa no plano sutil evidenciado pela destruição da máquina
pública, sobre a qual se assentaram décadas de construções de engrenagens, programas,
serviços, expertises profissionais, mecanismos de gestão. Decidimos assumir, portanto, 12

para começo de conversa, a hipótese de que existe um elo conectivo entre esses dois
eixos privilegiados por nossa análise, a saber: o eixo da modelagem histórica e movente
das disciplinas escolares e a força dos fatores que impulsionam a definição dos
currículos prescritos em cada tempo. Nos dois casos o lugar dos materiais didáticos
cumpre um papel essencial. Ou seja, há uma relação diretamente proporcional entre o
esforço contemporâneo de consolidação da BNCC e o desmonte da política pública para
os livros didáticos tal como a mesma evoluiu ao longo das suas quase quatro décadas e
vários governos. Nos apoiaremos, nesse momento, sobretudo nos documentos oficiais
do Estado brasileiro acerca do tema, compreendendo-os como indicadores de um
processo mais amplo de desmonte de uma política pública longeva. Comecemos,
portanto, tentando compreender essa conexão entre livros didáticos e propostas
curriculares.
Em um texto datado da última década do século XX, mas que ainda ocupa um
lugar de clássico nos estudos sobre a história das disciplinas escolares, André Chervel
(1990) inaugura um caminho de teorização essencial à reflexão futura sobre os
componentes pedagógicos presentes na configuração das formas disciplinares presentes

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na escola moderna e contemporânea. Segundo ele, as disciplinas escolares são


construções historicamente dadas porque é somente a partir de um determinado
momento histórico - a saber, a construção engendrada a partir da modelagem do sistema
público de Educação a partir da revolução francesa - que se articulam organicamente os
elementos que configuram os componentes de uma disciplina escolar. Chervel nos
adverte para o fato de que a modelagem das disciplinas escolares pressupõe um
processo de longa duração e articula três dimensões centrais. O primeiro elemento, dado
numa ordem cronológica e de produção de sentido na composição de uma matriz para as
disciplinas escolares é a formulação dos conteúdos estabelecidos como ensináveis pela
escola. A esse respeito, Chervel (1990, p. 202) destaca que “para cada uma das
disciplinas, o peso específico desse conteúdo explícito constitui uma variável histórica,
cujo estudo deve ter um papel privilegiado na história das disciplinas escolares”.
Um segundo componente no script norteador de uma disciplina escolar ancora-
se nos exercícios que tornam aquele conteúdo memorável e repetitivo, norteando,
consequentemente, a prática de aferição da aprendizagem realizada. Neste caso, Chervel
(1990, p. 204) enfatiza que “sem o exercício e seu controle não há fixação possível de
uma disciplina”. A formulação de exercícios, portanto, compõe um quadro essencial no
processo de definição, em conjunto com os conteúdos disciplinares, do que o autor 13

define como o núcleo central das disciplinas, que permite às mesmas um quadro de
permanência diante da passagem das gerações.
O terceiro componente de uma disciplina escolar, intrinsecamente associado aos
dois primeiros, remete-se ao desenho dos métodos de ensino. Originalmente, segundo
Chervel, a preocupação com os aspectos relativos ao desenvolvimento da motivação dos
estudantes e à capacidade de memorização e desenvolvimento da retórica já se
encontrava plasmada na tradição jesuítica desde o período medieval. Todavia, a
proposição de métodos capazes de favorecer a aprendizagem relaciona-se ao próprio
desenvolvimento da Pedagogia num sentido mais amplo.
Em uma direção um pouco distinta, porém complementar, Alain Chopin (2004)
advoga que a origem do livro didático como objeto situado entre a literatura religiosa
com dimensão narrativa e exemplar; a literatura técnica, didática ou profissional, que foi
progressivamente se embrenhando na escola e a literatura de lazer, de caráter tanto
moral quanto recreativo, justificaria sua profundidade social desde sua origem até os
dias de hoje. Segundo aquele autor, o livro didático segue sendo depositário de funções
essenciais: a função referencial ou curricular, atinente à dimensão programática que

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orienta a prescrição escolar; a função instrumental, vinculada à construção de


alternativas metodológicas visando a aprendizagem e a função ideológica ou cultural,
vinculada à transmissão de referenciais culturais.
Não é nosso interesse, nesse artigo, avançar na discussão relativa ao desenho
histórico ou ao entendimento mais amplo do campo de estudo das disciplinas escolares.
No entanto, as formulações-chave desenvolvidas tanto por Chervel quanto por Chopin
nos parecem centrais para situarmos nosso eixo de reflexões proposto nesse artigo: o
livro didático deve ser entendido como produto cultural estruturante e é, por isso,
articulador dos três componentes-chave das disciplinas escolares. Ao mesmo tempo, é
um mediador importante para a definição e desenvolvimento curricular, capaz de
fornecer uma visão mais ampla a respeito da relação entre campos de saber, proposições
curriculares, sujeitos e práticas pedagógicas.

Marcos de convergência entre materiais didáticos e prescrições curriculares na


história brasileira: a avaliação das obras didáticas do PNLD e suas
permeabilidades na cena da História ensinada.

Antes de prosseguir, cabe-nos, em primeiro lugar, situar para o público leitor a


historicidade dessa nossa escrita. Esse poderia ser apenas mais um artigo de apenas mais
14
um dossiê sobre livros didáticos de História no Brasil. Todavia, nossa elaboração, bem
como provavelmente o conjunto dos artigos aqui postos, se efetiva em meio aos efeitos
da evidente desconstrução da política nacional para o livro didático expressa na
movimentação técnica, política, ideológica e operacional engendrada na história recente
a partir do Golpe jurídico-parlamentar e midiático de 2016. A qualificação conceitual
daquele golpe foge aos propósitos desse texto. Todavia, não custa destacar que uma
breve incursão por buscadores acadêmicos – baseamo-nos, nesse momento, apenas na
base Scielo - já nos situa frente a uma comunidade acadêmica ampla, espraiada por
veículos de diferentes universidades públicas e diferentes áreas, que se utiliza de
designações similares para o fato de que em 2016 o Brasil sofreu mais um golpe em
uma história tão marcada por experiências ditatoriais e regressivas sob o ponto de vista
de uma construção democrática e cidadã. (ARAÚJO; PEREIRA, 2018; BASTOS, 2017;
NOBRE, 2017; GREIVE, 2017; ALBUQUERQUE; MENESES, 2017; RIOS VERAS,
2018; SILVA FILHO, 2018)
Ainda em 2016, inicia-se no Governo Temer uma escalada de ações de desmonte
da política nacional para o livro didático, fato que se soma às ações recentes do

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Ministério de Educação do governo atual, que frente a uma conjuntura ideológica


pautada por diversas tentativas de revisionismo e negacionismo históricos, tentam
implementar a BNCC como um caminho de organização da ação operacional daquele
Ministério para a educação básica, atrelando-a à política de avaliação em larga escala.
Trata-se de uma ação construída em meio a uma vigorosa guinada conservadora na
sociedade brasileira, instaurada desde o contexto das jornadas de 2013, que
pavimentaram o cenário político que culminou com a eleição de Bolsonaro para
presidência do país em 2018. Dentre outras medidas no tocante à reorganização
estrutural do Estado e da esfera pública, essa guinada conservadora se expressa no
fortalecimento do ideário do movimento Escola sem Partido, agora apropriados pelo
discurso governamental, o que pode ser percebido por via de violenta desqualificação
das Universidades, ataques ao conhecimento científico e aumento do irracionalismo
organizando as ações de um Estado ocupado em suas fileiras por um corpo técnico
constituído progressivamente por militares e lideranças evangélicas comprometidas com
esse ideário conservador, declarações públicas dos dirigentes e corte de bolsas de
pesquisa que visam desmoralizar e neutralizar toda a área de Ciências Humanas,
expansão ostensiva da implantação dos Colégios Militares tanto em redes públicas
quanto privadas, ataques à liberdade acadêmica, censuras à liberdade de expressão e 15

cortes orçamentários drásticos das verbas destinadas à Educação, Ciência, Tecnologia e


Cultura, dentre um vasto cenário de evidencias quanto à fragilidade de nossa
democracia e suas instituições.
Ainda que muitos considerem o Decreto Presidencial n°. 7084/ 2010,
promulgado no Governo Lula, como um marco que instaura o PNLD como uma política
de Estado perene, o momento atual - que confere visibilidade aos efeitos do Decreto
Presidencial n°. 9099 de 2017, revogatório do anterior de 2010, ao qual retornaremos
mais adiante - e as ações subsequentes do Ministério da Educação desde então nos
impõe o desafio de buscar a historicidade dessa política como uma tarefa ética e
metodológica essencial, na medida em que isso nos favorece a compreensão dos efeitos
que a política de avaliação do PNLD produziu sobre o cenário dos livros didáticos e
sobre os currículos de História no Brasil.
Holien Bezerra e Tania de Luca (2006), ao destacarem os marcos que antecedem
a formulação do PNLD em 1985, evidenciam algo que nos parece ser essencial de ser
restituído e reafirmado nesse momento particular em que assistimos um processo de
desmonte de uma política marcada por grande complexidade material, pedagógica,

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financeira e logística: sua longevidade histórica. Como uma política cujas raízes
remontam ao Estado Novo, a formulação de programas voltados à distribuição de livros
para a população brasileira data da criação da Comissão Nacional do Livro Didático,
por meio do Decreto-Lei nº 100638, de 30 de dezembro de 1938, que pela primeira vez
em nossa história estabeleceu condições para produção, importação e utilização do livro
didático. Sem uma relação de continuidade em termos de política e sem suportes
operacionais e financeiros permanentes conferidos por meio de uma política
institucional, a CNLD ganharia um novo contorno em 1966, quando foi criada a
Comissão do Livro Técnico e Livro Didático – COLTED – que, no âmbito dos acordos
MEC/USAID, garantiu a oferta de recursos externos, capazes de promover distribuição
de livros e estabeleceu a garantia, pelo MEC, da distribuição gratuita. Dois novos
marcos, também sob a esteira dos governos militares, viriam em 1971 e 1976, quando a
sociedade assistia, respectivamente, à criação do Instituto Nacional do Livro Didático -
e junto com ele o Programa do Livro Didático para o Ensino fundamental - e,
posteriormente, à criação da FENAME, responsável pelos programas de livro didático e
assistência ao estudante. O tema da assistência ao estudante ganharia força já no
contexto de redemocratização da sociedade brasileira e, em 1983 se daria a criação da
Fundação de Assistência ao Estudante – FAE – com a estruturação de programas de 16

distribuição de livros, merenda e transporte escolar.


No clássico documento do Ministério da Educação, sistematizado por Antônio
Batista Gomes, aparece o destaque quanto ao fato de que “o marco mais significativo
nessa história, que se daria por meio do Decreto Lei n°. 91.542, de 1985, que
estabeleceu e fixou parte das características atuais do PNLD: adoção de livros
reutilizáveis, escolha do livro pelo conjunto de professores, sua distribuição gratuita às
escolas e sua aquisição com recursos do Governo Federal” (2001, p. 11).
Deste ponto em diante, as diversas gestões do Ministério da Educação viriam a
pavimentar um conjunto de ações voltadas à melhoria da qualidade da escola pública,
em que o tema do livro didático ocuparia, progressivamente, um lugar central e
redefiniria por completo o perfil do mercado editorial de livro didático no Brasil ao
longo de mais de três décadas. Sobre esse aspecto cabe-nos indicar que a pesquisa de
Célia Cristina de Figueiredo Cassiano (2008) a respeito da correlação entre esse
mercado e o Estado brasileiro é, sem dúvida, basilar para se compreender a intrincada
teia de implicações entre a conformação dessa política e o mercado de livro didáticos no
Brasil e no Mundo. Seu estudo é importante, quanto ao que nos interessa aqui, para

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demarcar a relação entre a Declaração de Nova Deli, na Índia, que tem o Ministro
Murilio Hingel como um de seus signatários no mundo, e a inauguração de um conjunto
de ações circunscritas na esteira do Plano Decenal de Educação para todos, no interior
do qual a melhoria da qualidade do livro didático era um dos componentes selecionados
para uma ação organizadora por parte do poder público. É, portanto, sob o signo do
Plano Decenal que emerge, por parte do MEC, a decisão de estabelecer medidas
públicas de avaliação, construídas sob critérios validados pela comunidade científica.
Assim, um componente se situa, a nosso ver, como decisivo nesse processo a partir de
1993: a paulatina e crescente parceria entre o MEC e as Universidades Públicas
brasileiras no sentido de engendrar processos de avaliação dos livros didáticos.
Cabe por ênfase em dois momentos emblemáticos na estruturação da Política
nacional para o livro didático: o estabelecimento de um fluxo regular de recursos
voltados especificamente para esse fim a partir de 1993 e, a partir de 1997, o início da
avaliação pedagógica das obras didáticas. Ainda em 1993, o MEC institui a primeira
comissão acadêmica com o objetivo de fixar regras e indicadores para a avaliação,
evocando diferentes pesquisadores de Universidades públicas brasileiras que tiveram a
tarefa de propor critérios que diferenciavam as obras passíveis de serem compradas com
recursos públicos e as obras reprovadas. Tal fato acabou produzindo, em longo prazo, 17

uma vinculação progressiva e de mão dupla entre a política do livro e as comunidades


investigativas alocadas nos cenários acadêmicos, comunidades essas que viriam a se
desenvolver graças ao efeito indutor da política pública que, ao buscar a qualidade
didática e acadêmica dos livros a serem adquiridos com recursos públicos crescentes,
impulsionava e retroalimentava a pesquisa universitária. Para além disso, cabe destacar
que, na esteira da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a consolidação do
PNLD se daria em face de uma aposta na autonomia das escolas quanto à formulação de
seus projetos político-pedagógicos e, consequentemente, de seus desenhos curriculares.
Com isso, o mercado editorial viria, aos poucos, a responder à demanda por
perspectivas diferenciadas e mais abertas em relação à canônica cronologia
eurocêntrica, o que significou uma notável abertura e diversificação no desenho das
coleções didáticas (MIRANDA; LUCA, 2004).
É no interior desse cenário de conexão entre a comunidade disciplinar do Ensino
de História - que se desenvolve fortemente no interior do fomento à pesquisa sobre o
livro didático e sobre o PNLD - e as ações fomentadas pelo Estado atravessadas pelas
tensões e interesses do mercado editorial - que visa o acesso às polpudas e crescentes

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cifras liberadas pelos processos de compra de livros didáticos - que podemos dizer que a
face do livro didático brasileiro se transforma e se conecta, progressivamente, a
contornos singulares envolvendo a discussão sobre currículos e programas de História.
Retomando o script inicial de André Chervel, a partir do qual nos é possível derivar o
livro didático da interseção dos três componentes centrais de uma disciplina escolar,
podemos apontar os efeitos da avaliação das obras didáticas ao longo da história recente
do PNLD, afetando os conteúdos e suas potenciais repercussões para os programas de
História, as metodologias de ensino e o desenho das atividades e exercícios, com fortes
impactos sobre a condição de aprendizagem dos alunos. Tudo isso é tecido pela
dimensão dos usos e apropriações que professores, no exercício de sua autonomia
docente, selecionam a partir dos livros didáticos. Nesse sentido, cabe-nos pontuar
algumas dessas principais modificações que, no momento presente, são desmontadas
por uma política de governo cujo interesse precípuo é buscar a imposição de uma base
curricular definida que seja, sobretudo, asséptica ou notadamente retrógrada sob o ponto
de vista acadêmico e ideológico.
Antes de prosseguirmos na análise das principais modificações que o processo
de avaliação engendrou, é importante apontar, num sentido amplo, as conexões entre as
políticas públicas de avaliação e seus impactos no desenho dos materiais didáticos e nos 18

documentos que propõem a modelagem de currículos. Admite-se hoje em dia, a


despeito de uma vasta amplitude de possibilidades e recortes temáticos, que o livro
didático é um produto cultural de alta complexidade e, enquanto tal, sua análise
pressupõe um cuidadoso trabalho acadêmico de integração de áreas distintas de
conhecimento e pesquisa educacional. Trata-se de uma ferramenta que se destina à
didatização dos conteúdos curriculares fundamentais e que por isso engendra uma
escrita escolar dos conteúdos de referência, em nosso caso, da História. Longe de se
constituir como único elemento de referência para a sala de aula, o livro didático
apresenta-se como instrumento que pode contribuir para promover tanto a formação dos
educandos quanto o suporte pedagógico ao trabalho do professor, mas seu uso em sala
de aula encontra alternativas múltiplas de efetivação.
Décio Gatti (2004, p. 33), dentre outros autores que compreendem a força desse
objeto cultural, destaca que “os livros didáticos são uma fonte importante para a
investigação, descrição e compreensão da História dos processos de ensino das escolas
brasileiras”. Com isso, ora o livro didático se apresenta como um material indutor dos
currículos, ora como expressão das artimanhas do Estado e de imposição ideológica, ora

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como ferramenta aberta ao protagonismo docente. O que queremos destacar com essas
considerações é que na medida em que a política pública em torno do livro didático -
particularmente a partir do momento em que se deflagram processos sistêmicos de
avaliação que vinculam e orientam processos de escolha e compra - se amalgama com o
desenvolvimento das pesquisas acadêmicas a respeito dos livros didáticos, tal
articulação produz impactos em mão dupla e, nesse sentido, tanto se altera a cartografia
das pesquisas sobre o livro didático, como também se modifica a elaboração acadêmica
que orienta a política pública, uma vez que os intelectuais que passaram a atuar em sua
formulação emanam de comunidades disciplinares que assistem ao deslocamento dos
eixos de pesquisa. Os efeitos de tais conexões são profundos, seja para a modelagem de
um perfil de obras didáticas, seja para a abertura sob o ponto de vista da organização
curricular na articulação com os projetos políticos pedagógicos das escolas, seja para o
cenário das problemáticas de pesquisa que emergem, paulatinamente, em consonância
com esse processo de produção de uma escrita didática para a História escolar. Graças à
construção de uma política de avaliação pública de livros, vinculada ao processo de
compra e distribuição das obras didáticas, é possível dizer que o componente avaliativo
repercutiu ao longo das duas últimas décadas, no perfil do livro didático brasileiro que,
nos últimos anos foi o grande catalizador do debate público produzido e amplificado 19

pela mídia brasileira acerca dos conteúdos dos livros didáticos.


A se considerar uma cartografia das pesquisas sobre livro didático em suas
conexões com os currículos escolares nas últimas décadas, por muito tempo o livro
didático foi assumido substantivamente como uma ferramenta de didatização e
imposição ideológica, funcionando, portanto, como uma forja dos currículos prescritos
que, em função dos livros didáticos, se converteria em currículo em ação na escola. Sob
esse cenário, é preciso admitir que em termos metodológicos, seguindo-se a trilha das
proposições ensejadas por Alain Chopin, um primeiro pressuposto é não desconsiderar
durante a análise de conteúdo da obra didática o cenário global que impele à
estandartização e unificação. Kazumi Munakata(2013), em texto clássico relativo à
movimentação na cena acadêmica acerca da pesquisa sobre livros didáticos, nos
apresenta um quadro bastante abrangente acerca de como e porque os temas de pesquisa
vão ganhando contornos diversificados no Brasil. O fato é que uma tendência de análise
acadêmica particularmente hegemônica entre os anos 80 e 90 foi muito significativa
para disparar o processo inicial de engendramento da política de avaliação das obras
didáticas e que, de fato, transformou o perfil das obras didáticas ao longo de

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aproximadamente uma década. Nos referimos diretamente aqui aos efeitos das
pesquisas desenvolvidas a reboque de obras emblemáticas como aquela de Maria de
Lourdes Nosella (1981), por exemplo, que se dedicou a desvendar o discurso presente
nos livros didáticos como uma modalidade de aparelho ideológico a serviço da
construção de projetos de hegemonia e poder. Antes da fixação dessa tendência
analítica, era usual encontrar nas obras didáticas, especialmente naquelas destinadas aos
anos iniciais, imagens e textos que regularmente evocavam sujeitos negros e mulheres
apresentados em condições sistemáticas de inferioridade, matrizes únicas de família
nuclear composta exclusivamente por pai, mãe e filhos, como se não houvesse outras
modalidades de família, proselitismo religioso cristão como único modo de organização
da fé humana, enfim, um sem número de estereótipos em relação à posição dos sujeitos
na sociedade fortemente comprometedoras do desenvolvimento da noção de
historicidade e de sujeito histórico. Como o tema da presença de estereótipos de todo
tipo, além de graves incorreções, era uma marca das obras didáticas oferecidas para a
escola básica àquela altura, a pesquisa acadêmica subsequente que evidenciou essa
problemática acabou elevando esse item a um lugar fundamental no tocante à definição
dos primeiros parâmetros avaliativos, a partir dos quais os processos de avaliação foram
se complexificando e se aprimorando. Desse modo, desde os primeiros editais do PNLD 20

após 1997, até o Edital do PNLD 2017, foram ficando progressivamente mais claros e
complexos os mecanismos de exclusão de obras didáticas que incorressem em
estereótipos e apresentassem erros graves.
O fato é que, ao longo de pouco mais de uma década, o estabelecimento de
medidas rígidas de avaliação no tocante à presença de estereótipos, erros e
desatualizações acabou por provocar uma modificação significativa do perfil das obras
didáticas. A cadeia de autoria articulada pelas Editoras que passam a se organizar em
função do PNLD foi produzindo novos desenhos nas obras didáticas e,
consequentemente, novos perfis de obras no tocante à articulação programática e
abordagens para o Ensino de História.
Sob o ponto de vista dos efeitos dessa ação avaliativa para o campo investigativo
e para sua consequente proposição de orientações para o Ensino de História nas escolas
brasileiras, podemos dizer que o final dos anos 1980 e anos 1990 foram decisivos, no
sentido de provocar uma reflexão pública acerca de novas possibilidades de organização
dos Programas escolares. Ancorados nos avanços metodológicos ocorridos no âmbito da
teoria da História europeia ao longo dos anos 70/80, cuja divulgação viria a se

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aprofundar no Brasil a partir do contexto de redemocratização da sociedade brasileira,


professores, pesquisadores e autores de livros didáticos começaram a esboçar caminhos
no sentido de configurar novas formas de se ensinar História para além da tradicional
cronologia de base eurocêntrica. Tais reflexões resultaram em ampla produção
bibliográfica no âmbito acadêmico, como as de Zamboni (1984), Silva (1984), Cabrini
(1987), Nadai (1988), Galzerani (1988), Fonseca (1993) e Bittencourt (1997). Nesse
contexto começaram a se esboçar no mercado editorial livros pautados numa vertente
temática, como as coleções de autoria de Lima e Pedro (2005), Schmidt (2005, 2008),
Cabrini, Catelli Junior e Montellato (2005, 2008, 2010, 2012), dentre outras. Além de
incorporar as renovações da historiografia, em tais manuais questionava-se a validade
de um ensino com ênfase na transmissão de um vasto conteúdo a respeito do passado,
favorecendo a ideia de que História é sempre seleção e, nesse sentido, seu ensino não
pode se esgotar numa perspectiva de totalidade narrativa que não pauta sua própria
elaboração enquanto ciência.
Tais coleções representaram avanços importantes no sentido de redimensionar o
campo do ensino de História, tornando tal conteúdo disciplinar mais palatável ao
diálogo com o tempo presente, com questões relevantes e pertinentes ao universo de
significação dos estudantes e mais ancorada numa proposta metodológica voltada ao 21

favorecimento da dimensão educativa do procedimento histórico, entendido enquanto


ferramenta de pensamento no contexto de promover uma educação para o
conhecimento. Todavia, tais inovações não tiveram força para se manter no mercado
editorial, considerando-se a pressão indireta provocada pelas escolhas de obras didáticas
no âmbito do PNLD situadas fora desse patamar.

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Observemos o gráfico abaixo:

Gráfico 1: Proporção entre história temática e história cronológica nas obras didáticas
de História – 2005-2017

Fonte: Guias do Livro didático de História 2005, 2008, 2011, 2014, 2017. Ministério da Educação.

O gráfico nos revela coisas muito importantes e nos permite direcionar o olhar
22
para uma pergunta central hoje: o que aconteceu com os livros didáticos de História ao
longo da última década? Dois contextos de expansão dessa tendência metodológica
pautada na História temática são seguidos por dois movimentos de retração e, neste
último processo avaliativo, as coleções com abordagem temática foram retiradas do
mercado. Se em 2005 tínhamos 17% das coleções elaboradas sob essa perspectiva
(MIRANDA; LUCA, 2004), em 2008 esse movimento se amplia, chegando a um
patamar de 24% das coleções. Diante de um cenário de pouca adesão por parte dos
professores, que acabam por escolher coleções elaboradas em torno de uma perspectiva
mais canônica e tradicional quanto ao tratamento do tempo histórico, as editoras iniciam
um movimento de eliminação dessa perspectiva no mercado, inferimos que por decisão
de seus editores. Um ensaio quanto a essa retirada evidencia-se em 2011, quando o
percentual de coleções cai de 24% para apenas 7%. Um novo movimento de expansão e
criação é retomado no programa de 2014, quando novamente se atinge o patamar de
20% das coleções constituídas em torno de recortes temáticos. Uma ruptura brusca
nessa tendência é observada, todavia, com a versão do PNLD 2017, quando todas as
coleções orientadas em torno de uma perspectiva temática simplesmente desaparecem.

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Isso não significa dizer que estamos, com essa análise, preconizando a
abordagem temática como uma alternativa, considerando o PNLD é uma política de
Estado que, até o contexto que antecedeu o Golpe de 2016, não possuía dimensão
prescritiva, mas estamos apontando o fato de que a presença de coleções inspiradas
numa História temática representava a possibilidade de ruptura e favorecia um trabalho
docente mais refletido quanto à dimensão necessária dos recortes de conteúdos e,
sobretudo, mais palatável em relação ao princípio de se favorecer uma ação escolar
pautada mais interdisciplinar, o que depende de seleções pautadas em intencionalidades
didáticas claras e recortes temáticos passíveis de integração de áreas de conhecimento.
No momento em que coleções que ancoram essa possibilidade desaparecem do
mercado, a escolha temática envolvida na ação interdisciplinar passa a ser
exclusivamente dependente do coletivo de professores de uma escola. Aquelas coleções
representavam um contraponto criativo e eivado de potencialidades para o
desenvolvimento do trabalho escolar a partir do fortalecimento da autonomia docente.
Ao serem retiradas do mercado, o que restou fez com que o problema das coleções que
abordam “toda a história” de modo detalhado, descritivo e canônico se sobressaísse de
modo desfavorável ao bom enfrentamento de uma condição de melhoria do ensino de
História na rede escolar, sem contar que se apresentam como instrumentos mais 23

palatáveis diante das políticas de avaliação em larga escala que, progressivamente,


passaram a exercer papel modulador das propostas de ensino. Soma-se a isso o cenário
contraditório envolvendo a produção de coleções didáticas voltadas aos anos iniciais do
ensino fundamental. Se tomarmos por referência o Guia de História para o PNLD 2016,
por exemplo, veremos que 78% das coleções se organizaram com base numa proposta
de eixos temáticos. Isso significa ampliar, por meio das coleções didáticas, o fosso que
separa e diferencia o tratamento da escolarização de crianças daquele conferido ao
segmento dos anos iniciais do ensino fundamental. Afinal de contas, por que
estabelecer, para o processo de escolarização perspectivas tão diferenciadas? Por que
oferecer às crianças a possibilidade de tratamento de um modo de abordagem da
História por meio da abordagem temática e simplesmente retirá-los dos jovens? São
perguntas que nos auxiliam a problematizar os efeitos dessa decisão editorial e, ao fazê-
lo, nos permitem pensar, no âmbito de cada escola, como constituir medidas
pedagógicas que diminuam o impacto dessa cisão.
O principal efeito desse limite estrutural evidenciado no conjunto das obras e
potencializado nesse contexto da última década, no qual desapareceram alternativas

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didáticas organizadas sob outros formatos e agrupamentos de conteúdos, é a dificuldade


de se pautar uma reflexão sistêmica em torno da História do tempo presente, lócus
central no qual se organiza a vida do estudante e suas possibilidades de reflexão acerca
da dinâmica social. Ao se desconsiderar esse tempo no qual se organiza a experiência de
vida, o Ensino de História corre o risco de seguir ancorando-se no estudo
predominantemente voltado ao passado da humanidade.
O fato fundamental a ser destacado, com isso tudo, é o modo pelo qual o PNLD
conseguiu engendrar, no âmbito da política pública e em parceria com o saber e com
pesquisas acadêmicas construídas paralelamente ao desenvolvimento daquela política,
novos desenhos envolvendo as obras didáticas e, com isso, ampliou as possibilidades
quanto às propostas curriculares a serem desenvolvidas nas escolas.
Junia Sales Pereira, que atuou na coordenação da Coordenação Geral de
Materiais da Secretaria da Educação Básica do MEC, em sua última entrevista acerca
da temática, concedida a Flavia Caimmi e Sandra Regina Ferreira de Oliveira no ano de
2018, destacou, em um plano de síntese que cabe aqui ser recuperado, o resultado
longevo desse programa. Segundo ela:

O PNLD é um dos programas mais antigos e estáveis do Ministério da


24
Educação (MEC), vindo a constituir-se como programa de Estado, suplantando
em alguma medida as flutuações políticas e ideológicas de governos. Regido
por editais públicos, o PNLD, tal como o conhecemos contemporaneamente,
expressou, em várias de suas edições, princípios fundamentais voltados à
melhoria da educação pública: a correta difusão de conceitos e conteúdos, a
qualidade editorial das obras, o compromisso com o pluralismo pedagógico, o
alinhamento aos pressupostos do republicanismo (direito ao livro e à leitura,
igualdade de condições e participação e democratização da cultura) e a
centralidade na atuação dos coletivos profissionais docentes na escolha e uso
dos mesmos. (PEREIRA, 2018, p. 159)

Como se processa, então, o trabalho de desmonte dessa política? A temperatura


do debate sobre o Livro Didático no Brasil subiu vertiginosamente pós 2013,
simultaneamente à polarização nacional vivenciada na campanha eleitoral em 2014 e
durante todo o ano de 2015. Entidades não governamentais e representantes de partidos
políticos colocaram em marcha diversas ações questionando e conclamando a
comunidade para lutar contra o que definem como doutrinação ideológica nos livros,
acirrando o estado de vigilância e questionamento aos conteúdos tratados nos manuais.
Convém registrar que as políticas públicas de inclusão e propositivas quanto a
diminuição das diferenças sociais, em marcha no país desde o início da década de 2000,
acarretaram em alterações nos editais do PNLD, principalmente no quesito cidadania.

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Essas alterações reverberam fortemente na área de História e nas formas de estabelecer


relações entre o passado e o presente, ancoradas em questões socialmente vivas nem
sempre enfrentadas pelas obras didáticas mas, de qualquer modo, controversas sobre o
ponto de vista social. Em meio ao debate ideológico e doutrinário em curso, no qual
foram organizados movimentos como o Escola sem Partido, a área de História foi sendo
qualificada como instância máxima de doutrinação e, consequentemente, aquela área
sob a qual se faz necessária ações de censura e interdição. No ano de 2015, o Programa
Escola sem Partido foi encaminhado como Projeto de Lei (nº 867/2015) para ser
incluído nas diretrizes e bases da educação nacional e após tramitação no Congresso
Nacional, foi julgado como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em maio de
2020. Seus princípios norteadores, no entanto, encontram-se fortemente espraiados na
sociedade e ancorados nas ações governamentais, o que torna, ao menos
momentaneamente, nulo o efeito de vitória do julgamento do STF.
É, contudo, a partir do Decreto Presidencial 9099 de julho de 2017 que a
trajetória construída ao longo das duas últimas décadas começa, então, a se desmantelar
no âmbito do Estado brasileiro e novos contornos para a política para o livro didático
começam a se definir. Situado no calor dos debates acerca da interdição do tratamento
de questões controversas e no incremento do alinhamento do governo à agenda 25

ideológica da bancada evangélica e do movimento Escola Sem Partido, o decreto revoga


o anterior de 2010, que instituía o PNLD como política de Estado e remodela as bases
de funcionamento e gestão do PNLD, com destaque para alguns elementos essenciais, a
saber:

• As Universidades são desconectadas da dimensão avaliativa da política. Desse


modo, as áreas de conhecimento estruturadas em torno de comunidades
disciplinares específicas da posição acadêmica e intelectual que construíram em
torno da política pública ao longo de duas décadas são alijadas dessas políticas.
Com isso, perdem-se as referências de conhecimento qualificado nas diversas
áreas;
• O segmento dos livros didáticos é aberto à força amplificada do mercado e dos
grupos empresariais e capital voltado a ações no âmbito da Educação;
• Alude-se explicitamente o atendimento a instituições filantrópicas e
confessionais conveniadas, o que modifica substantivamente o perfil do
programa no tocante à finalidade do financiamento público para a educação
pública;

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• Abre-se o programa à aquisição de materiais didáticos diversos, para além do


livro didático, com especial destaque às apostilas que movimentam um mercado
paralelo de alta rentabilidade para o setor privado;
• A vinculação da avaliação pedagógica dos materiais didáticos no âmbito do
PNLD passa a ser coordenada pelo Ministério da Educação com base em
critérios, quando aplicáveis, sem prejuízo de outros que venham a ser previstos
em edital. As comissões e as equipes de avaliação passam a ser recrutadas a
partir das conveniências do Ministério e de ações diversas, como por exemplo,
um cadastro de potenciais avaliadores realizado, segundo definições
estabelecidas em ofício da CAPES datado de maio de 2020, a partir da busca de
professores e egressos dos Mestrados Profissionalizantes em Rede Nacional, o
que representa criar uma base de professores desprovida de conhecimentos
densos e experiência acerca do processo de avaliação4;
• Flexibilizam-se notadamente medidas voltadas ao desempenho financeiro das
editoras, com ênfase ações de retificação que, historicamente, pautaram medidas
de enfrentamento e resistência no âmbito do MEC e de Comissões Técnicas.

Acima de tudo, o Decreto 9099 vincula as finalidades do ensino fundamental aos


resultados de programas de avaliação em larga escala. Afirma-se, num documento
regulador da ordem pública nacional, aquilo que Alfredo Veiga Netto (2013) qualifica
como delírio avaliatório. A avaliação passa, assim, a objetivar sobretudo a garantia de
26
que os materiais contribuam para o alcance dos objetivos de aprendizagem e
desenvolvimento da educação infantil e para o desenvolvimento das competências e
habilidades envolvidas no processo de aprendizagem nos anos inicias do ensino
fundamental, conforme definições estabelecidas na Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) enviada ao Conselho Nacional de Educação pelo MEC em abril de 2017.
Daí em diante, modifica-se estruturalmente o sentido da Política Nacional para o
Livro Didático, na medida em que se preconiza um livro como instrumento de
aplicabilidade da BNCC. Volta-se ao lugar do livro como mero instrumento didático.
Um retrocesso de décadas. Cabe perguntar, então: para qual BNCC? E o que mediou
sua construção e apresentação em uma conjuntura marcada por tal conservadorismo?

Um golpe em vários níveis e as controvérsias na história de uma base curricular: o


caso brasileiro recente

A discussão sobre a necessidade de uma base nacional comum curricular


(BNCC) no Brasil não é recente. Ela se inicia com a própria elaboração da Constituição
Federal de 1988, quando a educação passa a ser entendida como “direito de todos e

4
Cadastro aberto para interessados em: https://pt.research.net/r/P39XZ2W

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dever do Estado e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,


visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, CF/1988, Art.205). Contudo, todos os
cenários anteriores nos quais o tema de currículo nacional se colocou como demanda
não se comparam a singularidade do tempo presente, cuja discussão é profundamente
atravessada por um contexto de crise institucional e de indefinições quanto à
permanência democrática na sociedade brasileira.
Isso significa dizer que o processo de construção da BNCC, diferentemente dos
demais processos já ocorridos quanto à reflexão curricular no Brasil, ocorreu em um
cenário político particular marcado pela ruptura da institucionalidade democrática que
abriu caminho para todo tipo de arbitrariedades. O que buscamos enfatizar, portanto, é a
natureza singular e de descontinuidade em que a discussão da BNCC se encontra. Se
antes ela se configurava como apenas um componente do Plano Nacional de Educação,
agora ela assume centralidade nas políticas educacionais. Ou seja, a BNCC se
converteu, em tempos recentes, em objeto de fetiche e de solução para todos os
problemas da educação nacional.
Em 2015, o Ministério da Educação tornou públicas as propostas que
constituiriam a Base Nacional Comum Curricular para educação brasileira, 27

estabelecendo a construção de uma base curricular que deveria conter direitos e


objetivos de aprendizagem, unificando 60% dos conteúdos escolares nacionais. Os 40%
restantes garantiriam a autonomia local. Segundo consta na lei 9394/1996 da LDB, a
base teria como princípio nortear os currículos, assim como as propostas pedagógicas
das redes de ensino das Unidades Federativas, da educação infantil, e do ensino
fundamental e médio – este último segmento foi, na prática, sumariamente excluído do
documento final. Em que pese o fato de que o debate mundial em torno do currículo
aponta para a dimensão empírica dos currículos como um território movente, que não se
circunscreve exatamente ao que se define no plano da prescrição ao se converter em
prática social, as formulações das últimas versões da BNCC pareciam não admitir tal
dimensão. A construção da base ignorou o fato de que currículos são construções e se
modelam de acordo com as práticas docentes. Ivor Goodson (2002) pontuou essa
mística em torno do currículo como prescrição, cujo estabelecimento de um parâmetro
universal cria uma sensação de controle por parte dos governos e da comunidade
universitária, desconsiderando as transgressões possíveis e reais da “escolarização como

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prática”. Este se tornou um dos pontos principais de debates entre os educadores que se
colocaram contra e a favor da base.
Antes da organização do CNE para abordagem do tema da BNCC, o MEC,
durante o governo da presidente Dilma, já estava organizando suas ações em torno das
demandas do PNE por uma base para a educação brasileira. Tais discussões se
intensificaram a partir de 2014, quando uma versão preliminar foi apresentada ao
ministro da educação José Henrique Paim e a toda equipe do MEC como ponto de
partida para produção da BNCC. Este documento não se tornou objeto de análise
pública devido ao curto tempo que esteve disponível no site do MEC e logo engavetado,
mas se abre como um material de formação potente ao evocar o contexto preliminar de
produção da base, situando o currículo como artefato histórico e cultural. Ali
levantavam-se reflexões conceituais importantes sobre os significados do direito à
aprendizagem e ao desenvolvimento da educação básica. A organização escolar poderia
ser pensada a partir de muitas lógicas, inclusive não disciplinares. Partindo desse
pressuposto, seria possível pensar em uma organização escolar baseada em eixos
integradores, ou por áreas, por exemplo. Assim, se instaurou, no movimento inicial de
escrita da base, uma abertura sobre paradigmas curriculares em que inclusive outras
lógicas para além do currículo disciplinar pudessem emergir no debate nacional. É 28

importante pensar o apagamento intencional de um documento público que pode


revelar, no mínimo, um processo de silenciamento e controle em torno das produções
inicialmente pensadas para a educação brasileira.
Novos investimentos para a elaboração da BNCC se deram em 2015, motivados
sobretudo através do Movimentos pela Base – que reunia fundações e institutos
mantidos pela iniciativa privada. O MEC, através do novo Ministro da Educação
Renato Janine Ribeiro, convocou cerca de 120 profissionais da área de educação, entre
eles professores da educação básica, pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento
e técnicos das secretarias de educação indicados pelo CONSED e pela União Nacional
de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME). Essa formação com interesses
difusos, resultou no que vamos considerar a “primeira versão” pública da BNCC.
Através da internet, a sociedade teve conhecimento daquilo que se constituiu
como uma proposta “inicial” de educação para as escolas brasileiras. Nos chama
atenção, de sobremaneira, a forma como a seleção de conteúdos apareceu no
documento. Elas assumiram características de descritores, profundamente articulados,
ou preparados para a produção de avaliação em larga escala. Essa concepção de

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currículo irá se consolidar nas versões seguintes, apagando de vez o que havia sido
pensado na “versão preliminar”, cujas aberturas de entendimento sobre o que é currículo
provocavam as escolas a pensar em múltiplas possibilidades pedagógicas. A partir da
“primeira versão”, a base passa a fragilizar o pacto federativo, diminuindo a autonomia
dos entes federados e centralizando a priori uma definição de currículo que será
controlado cada vez mais pelos sistemas nacionais de avaliação.
Após sua publicação, a “primeira versão” foi supostamente aberta à consulta
pública via internet, entre setembro de 2015 e março de 2016. De acordo com o MEC,
houve intensa participação da sociedade, somando mais de 12 milhões de contribuições
ao texto, vindo de diferentes pessoas e instituições. Os participantes eram cadastrados
em três categorias: indivíduos; organizações; redes de ensino. Contudo, há uma mística
em torno dessa participação na medida em que nenhum desses grupos citados tinham a
possibilidade de sugerir uma consideração sobre o conjunto das proposições. Apenas
era possível apontar mudanças pouco significativas, como as de redação dos descritores,
o que por fim representa um falso sentido de participação em nada afetou
substantivamente as versões seguintes. Além dessas participações, a “primeira versão”
também contou com pareceres de especialistas brasileiros e estrangeiros. Todos os
apontamentos dados ao texto da base foram sistematizados por uma equipe de 29

especialistas da Universidade de Brasília (UNB) e da Pontifícia Universidade Católica


do Rio de Janeiro (PUC-RJ), e serviriam supostamente de referência para a elaboração
da “segunda versão” da BNCC.
O debate público disparado a partir da divulgação da “primeira versão” da
BNCC revelou que enfrentar os fundamentos de organização curricular invariavelmente
significa mexer com relações de poder. Não foi por acaso que os aparelhos ideológicos
do Estado, como a mídia, a religião, a família, e o movimento Escola sem Partido se
posicionaram na defesa de uma determinada perspectiva curricular que se constituiu
como discurso hegemônico ao longo do tempo e que recusa qualquer reflexão acerca da
natureza política do currículo escolar.
O processo de construção da base, até sua versão final, se deu não apenas por um
caminho tortuoso, como também foi amplificado por um debate público sem
precedentes, tanto em eventos acadêmicos como em grupos de discussão em redes
sociais criados especialmente para o tema. Não tardou para a BNCC ocupar os editoriais
de todos os grandes jornais de circulação e debates televisivos. Em todos os casos se
tecia todo tipo de críticas e ponderações em torno da proposta curricular. O caso mais

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elucidativo deste cenário de ataque e desqualificação da BNCC, e que reuniria boa parte
dos holofotes projetados nessa querela pública, concentrou-se na área de História.
Desde o início, o documento da “primeira versão” enfrentou uma série de
críticas e contestações, visto que foi publicado, com o aval do então Ministro da
Educação, sem a parte que competia a disciplina de História. Essa fragmentação da base
diz muito sobre a concepção de currículo assumida pelos seus elaboradores, não havia
um projeto unificado e dialógico de currículo. A interdição do documento de História
foi justificada por Renato Janine a partir de dois critérios: primeiro porque a área de
História não estava alinhada às demais áreas e segundo pois haveria uma “falta de
repertório básico”. Para o filósofo, portanto um sujeito externo as discussões
epistemológicas do campo da História e do Ensino de História, era um absurdo deixar
Inconfidência Mineira fora do currículo de História (G1, 2015). Sob este argumento, e
através das mídias nacionais, o ministro desqualificou todo o trabalho realizado por
especialistas de referência do campo do Ensino de História em nome de um paradigma
de currículo e de História.
Não tardou para que a discussão do documento de História catalisasse o debate
público, ocupando grandes espaços em jornais, blogs, redes sociais, seminários,
conferências e grupos de debates em associações dos campos. Sob esse cenário de 30

pressão, tais vozes voltaram-se publicamente contra o aprofundamento da lei


11.645/2008, considerando que a proposta deu ênfase mais que necessária à História
Africana e Indígena e que, portanto, deveria ser vetada visto que “não poderia
descambar para a ideologização”, nas falas de Janine. Como resposta imediata do
governo às polêmicas discussões em torno da base, o Ministério da Educação decidiu
pela suspensão da equipe que trabalhou na construção da “primeira versão” do
documento, ao invés de promover um debate público sobre o currículo de História.
Em um artigo publicado no XXIX Simpósio Nacional de História em 2017,
Margarida Dias e Itamar Freitas, ambos membros da equipe que elaborou a primeira
versão da BNCC de História, narraram estes caminhos percorridos pela equipe de
História entre a publicação das duas versões e o cenário de tensão que enfrentaram no
debate público, com críticas pesadas e de caráter conservador e autoritário. Giovani
Silva (2017), também membro da equipe que elaborou a primeira versão, vai mais
fundo na análise sobre a recusa daquele documento, que ao apostar numa educação
antirracista - em que os jovens brasileiros pudessem ter orgulho de suas origens -
levantaram-se vozes em defesa de um conhecimento da história da Humanidade que, na

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verdade, escamoteia sentidos de uma história linear e eurocêntrica já cristalizados em


muitos currículos e materiais didáticos ao longo de nossos processos de escolarização.
Acreditamos que as maiores fragilidades que couberam desde a “primeira
versão” da base e que não foram sequer repensadas pelas equipes subsequentes se
referem ao excesso de descritores – desconfigurando o mínimo como máximo – e
sobretudo, à manutenção de um currículo de caráter avaliativo, nos moldes do Saeb
(Sistema de Avaliação da Educação Básica). Para que (e a quem) serve esse formato de
currículo? Sua formulação de base era, contudo, potente na medida em que rompia com
o pacto de uma temporalidade eurocêntrica e cronológica, já há muito revista pelo
campo investigativo do ensino de História em termos nacionais e mundiais. Tinha
limitações óbvias, afinal era uma primeira versão posta para discussão, mas era um
documento promissor. Nesse momento, o atravessamento do debate público
impulsionado pelas ações do movimento Escola Sem Partido e, pior do que isso, pela
disputa corporativa no interior das associações profissionais – principalmente da
Associação Nacional de História e Sociedades de História Antiga e Medieval –
amplificou fortemente o debate público de desqualificação daquele documento.
Em face às pressões expressas nas vozes públicas, decorrentes da academia e de
outros grupos de profissionais fora dela, os dirigentes da SEB encomendaram outra 31

versão para a área de História, resultando no desligamento de vários membros que


compunham a equipe da “primeira versão.” Pessoas no espectro de suposta confiança
direta dos gestores da BNCC e da SEB foram escolhidas a dedo com a tarefa de
produzir um documento que dirimisse os incômodos públicos. A ausência efetiva de
especialistas da área de Ensino de História e a produção de uma base com poucos
especialistas também da área de referência resultou em outro formato de documento,
cuja História apresentada restituía, para o programa nacional de História, os cânones
tradicionais daquele conhecimento, em bases fortemente conservadoras. Ou seja, uma
narrativa classicamente eurocêntrica, baseada em uma temporalidade histórica
quadripartite, cronologicamente linear, asséptica, que bem acalmou o debate público em
torno da base de História. Assim, o documento de abril de 2016 retoma o paradigma de
um passado como fato intacto, pronto a ser recuperado em sua totalidade e transposto
didaticamente para os estudantes em sala de aula. Para a comunidade disciplinar que se
dedica ao campo do Ensino de História, o novo documento passou a ser vulgarmente
conhecido como o “golpe da segunda versão”.

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A partir da “segunda versão pós-golpe”, é notório o alinhamento ao então


governo interino de Michel Temer, cuja política educacional passou a assumir
claramente forte viés privatista. Isso significa dizer que a presença do setor empresarial
funcionou como papel indutor na construção e definição final da BNCC e,
consequentemente, se ajustou às orientações do Banco Mundial, cuja Estratégia 2020
propõe “aprendizagem para todos investir nos conhecimentos e competências das
pessoas para promover o desenvolvimento” (ADRIÃO e PERONI, 2018, p.57). Nessa
perspectiva, há uma disputa não apenas pelo conteúdo da educação, como também por
sua transformação em mercadoria, em que unificação curricular reforça o controle
nacional sobre o comércio de insumos didáticos. Ou seja, a educação assumiu a partir
dessa versão o status de mercadoria. Não por acaso se estabeleceu forte diálogo com
agentes privados, como Unibanco, Instituto Ayrton Senna, Movimento Todos pela
Educação, Fundação Roberto Marinho, Itaú, Bradesco, Gerdau, entre outros, que
reforçaram o significante da “qualidade” no ensino, bem como formas de alcançá-la.
Ainda no calor das discussões envolvendo a produção de uma “terceira versão,” a
Associação Nova Escola, financiada pela Fundação Lemann, começou a produzir
materiais e guias didáticos para a implementação da BNCC.
No início de 2017, a “terceira versão” foi publicada, agora com novo Ministro da 32

Educação e novo Secretário de Educação Básica, respectivamente Mendonça Filho e


Rossieli Soares da Silva – ambos alinhados aos ensejos do novo governo. Algumas
equipes de áreas sofrem alterações, mas o documento manteve em relação a “segunda
versão” não apenas seu aspecto pouco problematizador do campo do currículo,
reduzindo ainda mais uma apresentação sobre as decisões de princípios teóricos ao
leitor, como também houve, de maneira geral, uma continuidade quanto às concepções
de educação e currículo defendidas na base.
Em dezembro do mesmo ano, já na transição para o governo recém-eleito Jair
Bolsonaro, foi estabelecida uma “versão final” da BNCC, com praticamente a mesma
equipe da versão anterior e seguindo os mesmos princípios que caracterizaram a
“terceira versão”. O CNE votou o parecer e a resolução que estabeleceu a partir de então
uma Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil e para o ensino
fundamental no Brasil. Embora tais mudanças estejam respaldadas pelo Ministério da
Educação, todo o processo de produção e tomada de decisões se deu em meio a um
cenário de contrarreforma da educação brasileira, com ações de desmontes de
conquistas sociais. Sabe-se que a BNCC será, ao passo que não deveria ser, o ponto de

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referência de onde partirão as demais políticas públicas educacionais que, para além do
currículo, envolvem a formação dos profissionais de educação e os processos
avaliativos de larga escala. Por essa razão, pensar o processo de elaboração da BNCC
envolve pensar o currículo como artefato social (GOODSON, 2002), para assim
entendermos todos os jogos de força que permearam sua formulação. Mais que isso,
recuperar a historicidade e as tensões no interior de sua construção torna-se fundamental
para elucidar os limites e as contradições que pairam sobre a versão final.
É interessante observar que o processo de construção das diferentes versões da
base foi atravessado por censuras de diferentes naturezas. Se a “versão preliminar”
sofreu interdição em nome de um projeto de educação mediado pela avaliação de larga
escala, as versões públicas sofreram repreensões também de caráter ideológico e que
foram acompanhadas por debates também no âmbito dos livros didáticos de História
que, naquele cenário, foram designados como ferramentas privilegiadas a serviço de um
suposto controle ideológico de crianças e jovens. Do mesmo modo que a mídia escrita e
televisa se interpôs ao documento da BNCC, o fez também em relação aos livros que
entraram, então, no espaço de censura, perseguição e desqualificação por parte de um
público amplo, leigo e, sobretudo, exterior à História e à Educação.
É nesse cenário que importa, então, retornarmos o Decreto 9099, que anula o 33

Decreto de 2010 e retira do desenho do PNLD algumas de suas principais


características, a saber: em primeiro lugar o trabalho conjunto e articulado com as
Universidades públicas e a consequente capilaridade dessa parceria sob o ponto de vista
do desenvolvimento dos campos de conhecimento nas diferentes áreas; em segundo
lugar, a garantia, por meio de um programa não prescritivo, da liberdade do programa
quanto às decisões de ordem didático-pedagógica e, sobretudo, programáticas para as
escolas. Ao mesmo tempo, modificam-se os scripts daquilo que se colocava como
central para o PNLD acerca de seu comprometimento com as questões atinentes à
cidadania e aos direitos humanos, elementos a partir dos quais se estabeleciam regras
bastante rigorosas para a exclusão das obras didáticas. Em seu lugar, entram
paulatinamente as competências estabelecidas pela BNCC, vinculadas à medição e
parametrização das avaliações em larga escala. Os livros passam então a assumir o
papel de modulador da aprendizagem, como ferramenta fechada que visa interditar a
autonomia do professor. Felizmente sabemos, contudo, que no fluxo das práticas
sociais, culturais e pedagógicas, forjam-se fazeres e táticas cotidianas que reinventam
scripts, valores e poderes, como nos mostrou Michel de Certeau (1998).

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O edital do PNLD 2022, o primeiro do Governo Bolsonaro proposto para o


sedutor e rentável segmento da Educação Infantil, já dá pistas claras na direção do que
vem pela frente em termos de retrocessos, mais conservadorismo e, porque não dizer,
possibilidades efetivas de doutrinação e proselitismo de ordens variadas. A base legal
historicamente valorizada na estrutura do PNLD - composta pela Constituição Federal,
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, resoluções e pareceres do Conselho Nacional de educação, entre outros -
já não faz mais parte dos elementos que excluem e qualificam as obras didáticas.
Tempos obscuros, por certo. Mas essa é uma outra história.

***

Ainda é cedo para indicar qual será o futuro do PNLD enquanto política pública
voltada ao livro e à leitura no Brasil. Sabemos que na eventual e esperada restituição de
um caminho sério e pautado no respeito republicano às instituições democráticas, muito
terá que ser reconstruído. O estudo da História nos oferece, como alento e esperança, a
clareza de que tudo passa, até os cenários de barbárie. Também é cedo para presumir o
que será da BNCC. Uma coisa é certa: BNCC não é currículo. Currículo é aquilo que os
professores produzem, criam e recriam no cotidiano da escola e da sala de aula e, por 34

isso, apostamos que essa BNCC não tem futuro, uma vez que ela já nasceu
estruturalmente comprometida em seu DNA. É um texto fadado a um fracasso porque é
desconectado de seu tempo histórico. Um texto velho e epistemologicamente defasado,
tributário de um duplo golpe. Contudo, diante de todo o cenário que pautamos até o
momento, tudo nos leva a afirmar que há em curso uma política de desmonte de uma
educação pública laica, democrática e plural no Brasil, para a qual o papel do professor
de História é e sempre será preponderante em uma trincheira de enfrentamento contra
toda forma de irracionalismo. Caminhos de luta e disputas narrativas.
Assim como começamos, terminamos evocando a voz de Júnia Sales, cujo
caminho de busca pela valorização de uma Educação pública laica, de qualidade,
inclusiva e democrática, muito contribuiu para a história recente do PNLD junto à
Coordenação dos Materiais Didáticos da Secretaria de Educação Básica do MEC. Em
sua última entrevista em vida, Júnia destacou o que nos parece ser decisivo para esse
nosso modo de concluir:

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Eu gostaria de abordar a recente vinculação do PNLD à Base


Nacional Comum Curricular (BNCC). Penso que essa é uma operação
que fere frontalmente os princípios do PNLD, marcado, desde sua
origem, pela oferta de perspectivas plurais por meio de obras e
coleções variadas para escolha dos coletivos docentes. Ao atrelar-se o
PNLD à Base Nacional, o MEC reduz o espectro de uso do livro
didático em sala de aula, transformando-o em único e, mais, em
currículo prescrito. Ao transformar o PNLD em via difusora da
BNCC, as autoridades educacionais ferem o programa em sua espinha
dorsal, promovendo a ruptura com a valorização do protagonismo
docente nos usos dos livros. (PEREIRA, 2018, p. 163)

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38

Artigo recebido em 20 de junho de 2020. Aprovado em 28 de julho de 2020.

Revista Escritas do Tempo – v. 2, n. 5, jul-out/2020 – p. 10-38


DOI: 10.47694/issn.2674-7758.v2.i5.2020.117134

LIVROS DIDÁTICOS: AUTORIA EM QUESTÃO

Adriana Soares Ralejo1

Ana Maria Monteiro2

Resumo: A autoria de livros didáticos tem ocupado, em nossa sociedade, um lugar


secundarizado em parte decorrente da desvalorização dos conhecimentos e materiais produzidos
na/para a instituição escolar. Reconhecendo a relevância de pesquisas que buscam compreender
a especificidade e complexidade dessa produção, discutimos, em diálogo com as teorizações
foucaultianas sobre “o que é um autor”, a autoria de livros didáticos em perspectiva de
investigação que a considera uma função discursiva, constituinte de sujeitos em contextos nos
quais saberes e poderes são disputados, negociados, validados. Essa questão é discutida no
âmbito das políticas públicas e do mercado editorial brasileiro, no qual profundas
transformações têm afetado as condições e possibilidades do exercício desta função,
reposicionando sujeitos e suas produções.
Palavras-chave: Livro didático. Autoria. Ensino de história. Currículo. Sujeito.

TEXTBOOKS: AUTHORSHIP IN QUESTION

Abstract: The authorship of textbooks has occupied a secondary place in our society, partly due
to the devaluation of knowledge and materials produced in/for the school institution.
Recognizing the relevance of research that seeks to understand the specificity and complexity of
this production, we discussed, in dialogue with Foucault's theorizations about “what an author
is”, the authorship of didactic books in an investigation perspective that considers it a discursive
function, a constituent of subjects in contexts in which knowledge and powers are disputed,
negotiated, validated. This issue is discussed in the scope of public policies and the Brazilian 117
publishing market, in which profound changes have affected the conditions and possibilities of
exercising this function, repositioning subjects, and their productions.
Keywords: Textbook. Authorship. History teaching. Curriculum. Subject.

MANUELS SCOLAIRES: LA PROPRIÉTÉ INTELLECTUELLE EN


QUESTION

Résumé: L’auteurs des manuels scolaire ont occupé une place secondaire dans notre société, en
partie à cause de la dévaluation des connaissances et des matériaux produits dans / pour
l'établissement scolaire. Reconnaissant la pertinence d'une recherche qui cherche à comprendre
la spécificité et la complexité de cette production, nous avons discuté, en dialogue avec les
théorisations de Foucault sur « Qu'est - ce qu'un auteur», l’auteurs des manuels dans une
perspective d'investigation qui la considère comme une fonction discursive, constituant des
sujets dans des contextes où les connaissances et les pouvoirs sont contestés, négociés, validés.
Cette question est abordée au regard des politiques publiques et du marché brésilien de l'édition,
où de profonds changements ont affecté les conditions d'exercer cette fonction, ayant
repositionné les sujets et leurs productions.
Mots-clés: Manuel scolaire. Propriété intelectuelle. Enseignement de l'histoire. Curriculum.
Sujet.

1
Doutora em Educação (UFRJ). Pesquisadora em ensino de História do GEHPROF/UFRJ.
2
Doutora em Educação (PUC-RIO). Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora CNPq.

Revista Escritas do Tempo – v. 2, n. 5, jul-out/2020 – p. 117-134


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LIBROS DE TEXTO: AUTORÍA EN CUESTIÓN

Resumen. La autoría de los libros de texto ha ocupado un lugar secundario en nuestra sociedad,
en parte debido a la devaluación del conocimiento y de los materiales producidos en/para la
institución escolar. Reconociendo la relevancia de la investigación que busca comprender la
especificidad y complejidad de esta producción, discutimos, en diálogo con las teorizaciones de
Foucault sobre “qué es un autor”, la autoría de los libros de texto en una perspectiva de
investigación que la considera una función discursiva, que constituye sujetos en contextos en
que los conocimientos y poderes son disputados, negociados, validados. Este tema se discute en
el ámbito de las políticas públicas y del mercado editorial brasileño, en que los cambios
profundos han afectado las condiciones y posibilidades de ejercer esta función, reposicionando
temas y sus producciones.
Palabras-clave: Libro de texto. Autor. Enseñanza de historia. Currículo. Sujeto.

Introdução

Tenho o privilégio de não saber quase tudo


(Manoel de Barros)

O que caracteriza um autor de livro didático? Para responder a essa pergunta,


precisamos esmiuçá-la e desenvolvê-la: o que é um autor? Existe um sujeito que o
delimita? O que é e quais são as funções de um livro didático em tempos atuais?
Objetos de estudo valorizados ou prestes a ser descartados como anacrônicos? Qual o
seu impacto para o ensino de História em um cenário de disputas e diálogos com outras 118

formas de saber? Qual a importância de um autor de livros didáticos? Essa autoria é


reconhecida e valorizada academicamente? O que a torna “menor” frente a de um livro
acadêmico?
Esses questionamentos estão relacionados à pesquisa desenvolvida no âmbito do
Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de História e Formação de
Professores/GEHPROF/UFRJ. Nossas discussões e pesquisas articulam referências
sobre currículo entendido como uma produção híbrida cultural3 na qual práticas
docentes expressam opções e processos de mediação realizados na/para atribuição de
sentidos aos saberes ensinados/aprendidos em contexto marcado pela intencionalidade
educativa.

3
Produção híbrida cultural expressa concepção sobre currículo entendido como “produção dos
docentes/agentes culturais em diálogo com seus alunos, em contextos curriculares específicos. Estes
podem estar constituídos em uma sala de aula, uma atividade museal, um texto de livro didático, uma
dinâmica na modalidade EAD, considerados em seus aspectos contingenciais, nos quais circulam
diferentes sentidos e demandas de conhecimento: fluxos oriundos dos conhecimentos científicos que se
articulam com referências culturais dos diferentes sujeitos em diálogo e das instituições onde se efetivam
as mediações/produções/práticas articulatórias/negociações, no movimento constitutivo do “ensino de” no
fazer curricular (MONTEIRO, 2015, p. 166).

Revista Escritas do Tempo – v. 2, n. 5, jul-out/2020 – p. 117-134


DOI: 10.47694/issn.2674-7758.v2.i5.2020.117134

Assim, uma questão que nos é cara é a valorização da prática docente e a busca
da compreensão dos saberes e práticas mobilizados no exercício da atuação profissional.
Entendemos a docência como um ato de ensinar/aprender, mas também de produzir
conhecimentos na especificidade do contexto escolar. A prática docente se constitui em
um espaço-tempo de fronteira cultural (MACEDO, 2006), no qual saberes são
produzidos e mobilizados em contextos sócio-político-culturais, em que opções e
processos de mediação são realizados na busca de atribuição de sentidos ao
conhecimento escolar a ser ensinado.
Nesse sentido, a prática docente/fazer curricular torna-se um dos focos de nossa
investigação na busca da compreensão dos processos de sua constituição e de sua
epistemologia, tendo como pressuposto que o conhecimento histórico escolar é uma
produção curricular, um híbrido cultural no qual se articulam fluxos do conhecimento
científico (GABRIEL e MORAES, 2014), saberes dos alunos e dos professores e
referências culturais mais amplas. Nesta perspectiva de abordagem temos investigado a
relação dos professores com os saberes que ensinam nos diversos contextos possíveis de
sua atuação profissional nos quais possibilidades de exercício da prática docente pode se
manifestar.
As fontes e as análises realizadas, a metodologia empregada e as discussões 119

proporcionadas têm possibilitado a emergência de pesquisas por estudantes dos cursos


de pós-graduação integrantes do grupo de pesquisa. O conjunto dessas teses e
dissertações nos permite compreender que o foco na relação com o saber na prática
docente e na produção do conhecimento escolar em diferentes contextos curriculares
tem possibilitado a formulação de questões que expressam articulações possíveis no
âmbito desse grupo, no qual a pesquisa central representa um eixo troncal que ganha
ramificações por meio das pesquisas a ela vinculadas.
Uma dessas ramificações é representada pela pesquisa sobre o universo de
produção de livros didáticos de História, desenvolvida na forma de tese de doutorado.
Esta investigação teve por objetivo compreender o papel de sujeitos reconhecidos como
autores no jogo entre saberes e poderes, em práticas discursivas orientadas por regras
enunciativas em narrativas didáticas materializadas no formato de livros didáticos. É
com base nesta produção que estabelecemos, neste artigo, uma discussão que focaliza
uma relação entre sujeitos, saberes e currículo.
Em nossas pesquisas em ensino de História, mais especificamente, ao nos
situarmos em um lugar de diálogo com as questões curriculares, estamos na busca da

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compreensão das lutas por significação no âmbito dessa disciplina. Afinal, quem decide
o que ensinar? Documentos oficiais exercem influência sobre as práticas docentes, mas
não de forma hierárquica e, sim, em um ciclo de relações que envolve diferentes sujeitos
(BALL, 2001). Entendendo o currículo como um híbrido cultural, é preciso
compreender os diferentes fluxos de saber e poder mobilizados na produção do
conhecimento histórico escolar. E um dos objetos que exerce grande influência nesse
processo de ensino é o livro didático. Ora desvalorizado, ora julgado como manipulador
de ideologias, mesmo com todas as críticas que esse instrumento de ensino tem
recebido, sua presença ainda é muito forte nos diversos usos que possa ter dentro do
contexto escolar.
E mesmo em um ambiente em que o mundo digital se faz cada vez mais presente
em sala de aula, esse objeto permanece, reconhecido como necessário para professores e
alunos. Em muitos casos, o livro didático é o único material de referência a que uma
criança terá acesso em sua casa. Sua formatação de conteúdos organizados de forma
própria para o ensino, com uma linguagem já didatizada, facilita seu processo de
aprendizagem. Para docentes, se torna material de apoio, guia para os conteúdos a serem
ensinados, objeto de consulta, pesquisa e atualização (MONTEIRO, 2009, p. 177-199).
Podemos nos questionar: por que dessa permanência? O que faz do livro didático um 120

instrumento tão demandado na escola? Um objeto que emerge no cenário escolar no


século XIX ainda não entrou em desuso (passando pelas modificações e adaptações de
acordo com o seu tempo histórico).
Por possuir um papel de portador do conhecimento escolar e de divulgador de
um ideário educacional para a formação do aluno e do professor, este instrumento
viabiliza, de forma mais prática e eficiente, a incorporação de reformas curriculares se
comparado aos próprios programas prescritos. Além disso, tem se mostrado um objeto
de grande eficácia na educação para induzir melhorias considerando o baixo custo de
produção que o material exige (BITTENCOURT, 2008; CASSIANO, 2013; GATTI JR,
2004). Assim, livros didáticos e os programas educacionais têm sido produzidos
concomitantemente, um auxiliando o outro na elaboração de conteúdos
(BITTENCOURT, 2008) e, no caso em pauta, consolidando o conhecimento histórico
escolar (MONTEIRO, 2019).
Ao compreender que os conteúdos prescritos nos livros didáticos são
selecionados, organizados e significados, entendemos que esses materiais não são
objetos que surgem do acaso, mas produtos de seu tempo, que passam por modificações

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de acordo com o contexto no qual estão inseridos (RALEJO, 2018). Seguindo essa linha
de pensamento, citamos os trabalhos de Circe Bittencourt (2004, 2008) e Arlette
Gasparello (2013) que se dedicaram a investigar a trajetória de produção e uso dos
livros didáticos desde o século XIX, analisando implicações político-culturais no
processo de construção de identidades e da ideia de nação. Em estudos sobre esses
objetos de ensino na contemporaneidade, destacamos os trabalhos de Kazumi Munakata
(1997, 2009, 2012, 2016) e Décio Gatti Júnior (2004, 2007) que aprofundam a análise
na busca da compreensão das relações entre autores e editores rompendo com visões
dicotômicas.
Esses trabalhos foram produzidos no contexto do processo de redemocratização
no país, quando o ensino de História se constituía como um problema e se
intensificavam as políticas de controle e qualidade sobre o conhecimento histórico
escolar (RALEJO, 2018). É interessante observar que, dentro de um cenário em que
emergiam as críticas ao livro didático como objetos de caráter ideológico, denunciados
por serem permeados de erros e preconceitos, esses autores se destacam por buscar
compreender seu processo de constituição, contextualizando-os em seu tempo e lugar.
Objetos culturais complexos, além das questões econômicas, reconhecemos hoje que
estão envolvidos em relações de poder relacionadas aos processos de produção, 121

distribuição e consumo desse material (BITTENCOURT, 2008).


Essas pesquisas nos alertam sobre a importância de se compreender o que é um
autor de livro didático e qual o papel que desempenha, objeto ainda pouco investigado.
Afinal, a esse sujeito é atribuída a autoridade de quem realiza escolhas, dialoga com as
demandas externas como as políticas públicas, editores, acadêmicos, professores, pais e
alunos e precisa, dentro desse contexto, escrever algo. Mas escrever não é um ato
simples e a autoria ganha uma complexidade ao observarmos mais de perto a função
que ele desempenha no contexto educacional.
Escolher o que deve ou não ser ensinado é um ato político (GABRIEL,
MORAES, 2014, p. 28). E, pensando nisso, entendemos que a autoria de livros
didáticos carrega consigo a subjetividade de produção e articulações estabelecidas com
demandas que estão fora desse lugar e que acabam constituindo ideias de verdade,
validadas como conhecimento. E como todo discurso, materializado no livro didático,
esta articulação é contingente e variável, se criando de forma específica.
Para então compreender um pouco mais a complexidade envolvida no que é se
constituir um autor de livro didático, apresentamos, neste artigo discussões que temos

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desenvolvido no âmbito do grupo de pesquisa para pensar a autoria como uma função
discursiva, um lugar de produção de significados. A partir das contribuições teóricas de
Michel Foucault (2001, 2012), traçamos novos olhares sobre a autoria em tempos
atuais, estabelecendo relações com os livros didáticos, com o currículo, e com os
saberes mobilizados.

A autoria e sua relação com o sujeito

Quando pensamos no universo de produção de livros didáticos e o papel da


autoria nesse processo, nos questionamos se existe espaço de autonomia em suas
práticas tão fortemente reguladas por instrumentos políticos, econômicos e sociais,
oficiais e não-oficiais. O que vem a ser uma prática autônoma e até onde ela é possível?
Como se constituem os processos de subjetivação no qual autores estão inseridos?
Podemos considerar os escritores como produtores de um tipo de conhecimento escolar?
Existe autoria em suas práticas como formas de resistência?
Com esses questionamentos, nos lançamos primeiramente para a nossa questão
central: o que é ser autor de livro didático e qual é o seu papel na produção curricular?
Na busca pelo significado de “autor”, encontramos nas pesquisas de Foucault (2001)
caminhos para o desenvolvimento desta questão. 122

De onde surge a “vontade de saber” de Foucault em falar sobre o autor? Em


conferência proferida originalmente em 1969 na Societé Française de Philosophie,
intitulada “Qu’est-ce qu’un auteur?”, Foucault usa dessa oportunidade para responder às
críticas recebidas em sua obra “As palavras e as coisas” (1966) quanto ao uso de autores
como referenciais teóricos de forma ambígua. Ao fazer uma reflexão sobre sua prática
de escrita, Foucault busca compreender sobre o funcionamento do discurso e o papel
que representam autor e obra ao individualizar algo maior, os diversos discursos nos
quais estão inseridos. Em um diálogo com Roland Barthes, Foucault reflete sobre a
indiferença por quem fala, o que constituiria no que Barthes (2004) chama de “morte do
autor”.
O que seria essa “morte do autor”? Ao usar essa expressão, Barthes faz alusão ao
empoderamento da escrita que apaga o sujeito-autor ao dar um lugar de poder ao texto
como discurso. Nessa linha teórica, a escrita passa a falar por si, e seus sentidos são
construídos pelo leitor, dispensando a presença de seu “proprietário”. Os desdobramentos

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da escrita, ou seja, os significados que lhe são atribuídos ganha maior destaque no lugar
daquele que escreve4.
Há um segundo sentido sobre essa morte do autor destacada por Foucault. Neste
caso, a morte do autor está ligada ao seu desaparecimento de forma proposital quando
este despista signos de sua individualidade particular para atribuir à sua obra a
consagração da imortalidade. Imortalidade no sentido de caráter de verdade, ou seja,
legitimando seu trabalho como representação do “verdadeiro” conhecimento sem abrir
brechas para que surjam argumentos que possam criticar a procedência das informações
ali presentes. Quando a escrita ganha um empoderamento, ela fala por si. Se ela é
relacionada como um produto, fruto de ideias individuais, esta pode ser criticada pelos
valores de seu tempo e da mão que a escreveu. Assim, o autor faz “papel de morto” no
jogo da escrita e se torna um herói, assim como os heróis gregos que viam a morte
como a consagração para a imortalidade (FOUCAULT, 2001).
Foucault não nega a existência de alguém que escreve, mas considera que a
autoria não está ligada a uma pessoa, mas a uma função da ordem do discurso.

Seria absurdo negar, é claro, a existência do indivíduo que escreve e inventa.


Mas penso que – ao mesmo desde certa época – o indivíduo que se põe a
escrever um texto no horizonte no qual paira uma obra possível retoma por sua 123
conta a função do autor: aquilo que ele escreve e o que não escreve, aquilo que
desenha, mesmo a título de rascunho provisório, como esboço da obra, e o que
deixa, vai cair como conversas cotidianas. Todo este jogo de diferenças é
prescrito pela função do autor, tal como a recebe de sua época ou tal como ele,
por sua vez, a modifica. Pois embora possa modificar a imagem tradicional que
se faz de um autor, será a partir de uma nova posição do autor que recortará, em
tudo que poderia ter dito, em tudo o que diz todos os dias, a todo o momento, o
perfil ainda trêmulo de sua obra. (FOUCAULT, 2012, p. 27-28).

É dessa forma que Foucault passa a considerar a existência de autoria: como


uma função. Um ano depois da conferência realizada em 1969, o filósofo retoma o
assunto da autoria em “A ordem do discurso”. Nesta ocasião, a questão da autoria é
tratada como um procedimento que faz parte do discurso, o que não nega a existência do

4
Foucault (2001) manifesta sua preocupação com a presença/ausência do autor quanto à designação de
suas obras. Porém, ao contrário de Barthes, não acredita que haja realmente uma morte, e sim uma
ausência das marcas autorais ocasionada pelos caminhos da escrita contemporânea. Assim, a noção de
autor foi ressignificada por meio de regras históricas e culturais de seu funcionamento em nossa
sociedade. O historiador Roger Chartier (1994; 2014) tem desenvolvido pesquisas em diálogo com
Foucault também ao problematizar a autoria no contexto de produção de livros e na interferência do
editor. Mas neste trabalho buscamos destacar uma abordagem discursiva, enquanto Chartier destaca uma
perspectiva histórica de livros, autores e editores, bem como a tensão entre a imposição do texto e a
liberdade do leitor. A questão do leitor não é objeto de discussão neste artigo.

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sujeito. Sabemos que existe uma inquietação provocada na linguagem, alguém que em
meio às palavras, rompe, traz seu gênio e sua desordem (FOUCAULT, 2012, p. 27).
Mas não é o indivíduo e suas experiências pessoais que está em jogo, porque
isso muda de acordo com as especificidades temporais e discursivas nas quais está
inserido. O foco de Foucault ao falar de autoria é a função que o indivíduo desempenha.
É o que ele recorta, seleciona, modifica o que pode ser dito ou não em sua obra (ibid). O
autor localiza-se em um lugar fronteiriço porque ao mesmo tempo em que ele é
constituído por discursos, ele os mobiliza e os rompe ao classificar, reagrupar, delimitar,
excluir, opor e relacionar textos uns dos outros. Eis uma das funções do autor:
homogeneizar diferentes discursos que o tocam e dar sentidos a eles:

[...] mas o fato de que vários textos tenham sido colocados sob um mesmo nome
indica que se estabelecia entre eles uma relação de homogeneidade ou de
filiação, ou de autenticação de uns pelos outros, ou de explicação recíproca, ou
de utilização concomitante. Enfim, o nome do autor funciona para caracterizar
um certo modo ele ser do discurso: para um discurso, o fato de haver um nome
de autor, o fato de que se possa dizer "isso foi escrito por tal pessoa", ou "tal
pessoa é o autor disso", indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana,
indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra
imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser
recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um
certo status. (FOUCAULT, 2001, s/n). 124

Autor seria dessa forma, não um indivíduo real, mas a posição de sujeito que une
e delimita diversos tipos de discursos, reduzindo suas diferenças e dando-lhes coerência
e uma homogeneidade (FOUCAULT, 2012, p. 25). O princípio de unidade ou
agrupamento é uma das quatro “função autor” discriminadas por Foucault,
classificações essas que não são universais, mas uma característica do modo de
existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma
sociedade.
Cada discurso funciona de uma forma específica e complexa, mas quem dá sua
coerência é o sujeito considerado como autor devido à função que ele exerce. Ou seja, o
discurso possui marcas de uma existência pertinentes para compreender o momento e o
lugar de sua produção. O autor se torna aquele que cria um aspecto de homogeneidade
diante de uma pluralidade de posições e diversidade de vozes, selecionando-os e
organizando-os de forma lógica. As outras três funções enumeradas por Foucault (2001,
p. 14-18) são:
1. Apropriação: um texto possui um autor quando este pode ser punido ao praticar um
gesto carregado de riscos, estabelecendo uma propriedade ao texto. Entende-se esta

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função como forma de conservar os direitos do autor sobre sua obra através de regras
restritas como contratos e os direitos de copyright.
2. Valor de verdade: um texto é dotado de autoria quando o nome de um sujeito
representa uma referência e uma garantia sobre o que foi escrito. Neste caso, é atribuído
ao autor o valor de autoridade e credibilidade que legitima o conhecimento que está
sendo transmitido e dá credibilidade como valor de verdade. Esse tipo de função surge
na Modernidade, quando textos científicos passam a desafiar o sagrado.
3. Origem: a autoria é uma operação complexa e se constitui de diferentes formas de
acordo com o tempo histórico e com os tipos de discursos que o constituem, mas é
atribuído a esse sujeito um valor de criador, aquele que dá uma razão ao texto. Quando
um texto passa por modificações, como uma atualização ou revisão, ele está sendo
situado em seu momento histórico e confere a possibilidade de transformação mediante
a ação de um sujeito.
Tendo por base essas considerações, podemos dizer que existe autoria no
contexto de produção de livros didáticos atualmente, marcado por complexas disputas
políticas e culturais, nas relações de saber/poder? Se formos considerar, a partir das
ideias foucaultianas, que a autoria é uma função, então podemos dizer que sim. Existe
nesse lugar de autoria um princípio de unidade, pois nesse material estão reunidos 125

diferentes gêneros textuais a fim de construir sentidos sobre o conhecimento histórico


escolar, além de obedecer às normas legais e dialogar com demandas sociais. Em meio a
tantos discursos, diversos e diferentes, e sendo o próprio autor parte desse discurso,
assume-se uma função de homogeneizá-los e produzir sentidos sobre o que deve ser
ensinado.
Há também autoria porque assume-se a função de propriedade5 da obra. Por
mais que saibamos que um livro didático é resultado de diferentes mãos que estiveram
presentes no seu processo produtivo, a obra ainda é atribuída a um nome, ou vários, em
caso de coautoria. Esses sujeitos assinam um contrato e ganham direitos autorais como
forma de reconhecimento daquilo que produzem. Quando é o caso de livros que são
frutos de projetos editoriais, a editora passa a ser reconhecida como proprietária da obra,
não somente em termos legais, mas também como reconhecimento do seu público leitor
com o uso do nome da editora como uma marca ou selo de qualidade.

5
Compreendemos o autor como proprietário da obra no sentido que a ele é atribuída responsabilidade
sobre aquele objeto. Compreendemos que no contexto de produção a editora possui também diretos, mas
a primeira referência sobre o livro normalmente é o autor, sendo assim identificado como seu
proprietário.

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Outra relação possível entre a função-autor e os livros didáticos é aquela


decorrente da atribuição de responsabilidade pelas informações presentes na obra.
Qualquer erro ou inconsistência que sejam encontrados no livro, o nome do autor é o
primeiro a ser lembrado como responsável pelo fato. Mas também os conteúdos
presentes na obra são tomados como verdades que representam o conhecimento escolar
a ser ensinado. Assim, mesmo que o texto seja resultado da unidade de diferentes
discursos, o autor do livro é considerado o “criador” daquelas informações, tendo a sua
palavra, dessa forma, um valor de verdade e origem.
Acreditamos que mesmo diante de um cenário de controle de produção de livros
didáticos, obedecendo a regras para se adaptarem ao modelo do que se propõe por
escola e educação, a função autor continua sendo exercida, mas nas mãos de diversos
sujeitos. Assim, ser autor não é uma identidade ligada a uma pessoa, mas uma função
que se constitui no momento da escrita dentro de uma determinada contingência. Nesse
lugar de produção, escolhas são feitas e discursos mobilizados, configurando uma
autonomia relativa.
As dimensões da função-autor são compreendidas discursivamente e estão
imbricadas com os saberes que o autor mobiliza na busca de tornar os conteúdos
compreensíveis pelo público a que se destina. Nesse sentido, ao operar com a teorização 126

de Foucault, entendemos que, como uma função discursiva, podemos problematizar a


autonomia desse autor. O sentido de autonomia aqui trabalhado não faz luz à uma
independência e originalidade, como uma gênese criativa nunca vista antes. Dentro
daquilo que Foucault ressalta sobre a função-autor, podemos considerar que a
autonomia está situada no princípio de unidade ou agrupamento, porque a autoria é o
lugar em que se dá coerência e homogeneidade aos diversos discursos por eles criados,
constituídos pelos sentidos que circulam no contexto sociocultural. No movimento da
produção didática, ao mobilizar outros enunciados, novos sentidos podem ser
produzidos, evidenciando uma autonomia relativa do que é possível de ser dito dentro
da formação discursiva na qual está inserido.

Autoria de livros didáticos: novos olhares

Quando apostamos na potencialidade do conceito de autoria, estamos


interessados em compreender como se estabelecem as relações entre saber e poder,
problematizando o papel daqueles que produzem livros didáticos em práticas
discursivas que definem regras enunciativas em narrativas didáticas. Assim, não

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estamos preocupados com os indivíduos em si, físicos, materiais, independentes e


originais, mas estamos trabalhando com uma ideia de sujeitos inseridos em modos de
subjetivação pelo saber, poder e pelo pensamento sobre si (VEIGA-NETO, 2007).
Ser autor, dentro do campo discursivo, é algo contingente e provisório,
produzido pelas próprias práticas discursivas que os constitui. Pensamos, dessa forma,
que os autores são sujeitos constituídos mediante uma função que exercem dentro
daquele contexto discursivo de produção entendido como um acontecimento. Mas não é
qualquer sujeito que pode exercer a função de autor. De acordo com Foucault (2012),
existe uma especificidade que nomeia sujeitos à essa condição de funcionamento da
ordem do discurso, definindo como um princípio de rarefação, que tem como função:

[...] determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que


o pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo
tenha acesso à eles. Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém
entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for,
de início, qualificado para fazê-lo. (FOUCAULT, 2012, p. 35).

Assim, podemos considerar que um sujeito se torna autor quando inserido dentro
de um determinado contexto, reconhecido pelos seus pares para exercer essa função.
Dito isso, nos questionamos: o que é um autor de livro didático? Que contexto e
127
condições de produção caracterizam aqueles responsáveis por uma produção curricular
de tamanha importância para o processo de ensino e aprendizagem?
Responder essa questão nos leva a uma complexa análise sobre os desafios da
escrita didática na contemporaneidade. Citamos aqui dois aspectos contingenciais dessa
prática: as políticas públicas e o mercado editorial brasileiro. Podemos considerar que
essas duas instituições, mas não somente elas, produzem enunciados que exercem
práticas de poder nesse processo de produção de livros didáticos. Seguindo a concepção
foucaultiana, o significante “poder” não é considerado como uma entidade
materializável, uma racionalidade interna que se manifesta em um lugar específico, mas
são forças, no plural, multidirecionais, difusas e capilares (FONSECA, 2011). O poder,
para Foucault, passa a ser entendido em uma escala da microfísica, operando em
práticas difundidas na sociedade, ações que se manifestam sobre outras ações e que,
dessa forma, alteram o estado de um corpo (VEIGA-NETO, 2007).
Em relação aos impactos das políticas públicas, destacamos como o Programa
Nacional de Livros Didáticos (PNLD) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
têm desempenhado uma relação de poder no processo de escolha e produção desses

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materiais. Apesar de o PNLD consistir em um programa que inicialmente se concentrou


sobre aspectos administrativos e logísticos de compra e distribuição de livros, foi
possível perceber que, aos poucos, essa política começou a se configurar como um
indutor estatal de mudanças nos livros didáticos (ROCHA, 2017), deixando aos poucos
seu caráter assistencialista para servir como instrumento curricular que visa a melhoria
na educação (SAMPAIO, CARVALHO, 2010). A partir de critérios avaliativos
determinados por uma comissão formada por meio de edital, aqueles que produzem os
livros didáticos buscam dialogar com as expectativas do que é um livro didático de
qualidade, determinadas por essa comissão, a fim de que não tenham suas obras
reprovadas e, consequentemente, gerando um prejuízo no número de vendas.
Dessa forma, o PNLD passa a ser um dos principais documentos que orientam as
práticas de autores e editoras, adquirindo uma função curricular ao consolidar as
exigências técnicas e políticas sobre os livros didáticos, adotando um papel pedagógico
e disciplinador (CERRI, FERREIRA, 2007). Mas é preciso ressaltar que a política
curricular implementada pelos editais do PNLD não impede a liberdade de expressão e
a pluralidade teórico-metodológica nos livros didáticos, desde que não fira os direitos
humanos e princípios democráticos estabelecidos em seus editais.
Já a BNCC, documento de caráter normativo implementado em 2017, tem 128

mobilizado todo o cenário educacional a fim de adequação curricular do que seriam os


princípios educativos a serem seguidos em todos os níveis de ensino, por todos os
componentes curriculares, em todo o país. E essa medida certamente impactou também
a produção de livros didáticos que teve que adequar os conteúdos de acordo com as
habilidades estabelecidas no documento. Por ser um movimento relativamente recente,
ainda não nos debruçamos, no momento de produção deste artigo, a investigar os
impactos dessa política no objeto desta pesquisa.
Essas políticas públicas causam impacto no perfil daqueles que escrevem livros
didáticos. Se antes o lugar de autoria vinha sendo ocupado por sujeitos que se
consagraram como referência na área na década de 1990, aos poucos, esse espaço foi
sendo ocupado por profissionais que se caracterizam por apresentar uma preparação
maior para estabelecer um diálogo com as diretrizes curriculares oficiais. As próprias
editoras passaram a contratar como autores, pessoas especializadas em discussões mais
atuais do campo de ensino e que possam produzir livros menos ortodoxos (SAMPAIO,
CARVALHO, 2010).

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O segundo aspecto que se situa na rede de poderes que compõem enunciados


discursivos na produção de livros didáticos é o papel das editoras. Podemos retomar
aqui a contribuição de Munakata (1997) e Gatti Jr (2004) que se voltam para essa
relação entre autores e editores. Os casos analisados por ambos pesquisadores alertam
para um aspecto mercadológico que tem mobilizado uma diversidade de agentes para
além do autor. Poderíamos considerar uma interferência a participação desses outros
sujeitos que tomam decisões nesse processo de produção, distribuição e divulgação da
mercadoria? As editoras ocupariam um lugar de instituição disciplinadora que exerce
seu poder de forma a regular as práticas desempenhadas no lugar de autoria? Sim, esta é
uma possibilidade que vem sendo desenvolvida por esses pesquisadores, mas não é o
olhar que queremos explorar neste artigo.
O campo editorial vem ganhando cada vez mais destaque e protagonismo no
processo de produção de livros didáticos. Pode-se observar, ao longo da trajetória de
produção dos livros didáticos no Brasil, que houve um aumento expressivo no número
de empresas que contratam o trabalho de intelectuais a fim de aprimorá-los e
impulsionar as vendas desses materiais. Se antes as obras didáticas eram reconhecidas,
na comunidade escolar, pelo nome daquele que escreve (por exemplo, “o livro do
Koshiba”), os grandes projetos editoriais vêm ocupando espaço como referência de 129

propostas didáticas. Novos títulos surgiram no mercado, com ampla divulgação de suas
propostas didáticas alardeadas pelo teor de novidade e renovação alcançado nas obras.
Os autores, ou a equipe editorial, são continuamente substituídos, promovendo a
consagração de alguns sujeitos já famosos e permitindo o surgimento de novos nomes
nesse meio (SOUZA, 1996).
Quando nos referimos a autoria, é importante salientar, com base nas
contribuições de Foucault, que não se trata de um sujeito responsabilizado pela escrita
da obra. Essa atribuição de função não se situa somente no papel de uma pessoa, mas de
uma equipe ampla que atua desde o projeto até a impressão do livro em sua versão final.
Estão incluídos aí editores, ilustradores, designers gráficos, revisores, dentre muitos
outros. Todos eles atuam produzindo significados sobre o que deve ser ensinado. Assim,
defendemos que a editora, composta por essa variedade de funcionários, também
constitui parte da autoria porque passa a exercer também a função-autor.
Ainda, analisando o que/quem é o autor de livro didático na atual conjuntura
educacional, gostaríamos de refletir sobre o reconhecimento social desses sujeitos. Sem
dúvida trata-se de um trabalho complexo, com muitas idas e vindas, impeditivos de

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diversas ordens para que, no final, possamos ter um produto de qualidade e atraente para
seu público. Mesmo assim, identificamos pouco reconhecimento no meio acadêmico. Se
analisarmos o perfil desses sujeitos na Plataforma Lattes, por exemplo, há pouca
divulgação de suas atuações como produtores de obras didáticas e, quando o registro é
feito, está listado como produção técnica, e não produção intelectual que, em um
concurso público, possui valor menor se comparada a de artigos e capítulos de livros
científicos. Esta situação é decorrente da concepção que orienta o registro das
produções na Plataforma Lattes e que não reconhece a produção de livros didáticos
como produção intelectual, confirmando uma perspectiva hierarquizante que subestima
o conhecimento escolar. Conforme exposto na introdução deste artigo, defendemos que
esta produção é complexa e apresenta características culturais diferenciadas que
precisam ser consideradas.
Defendemos que é importante reconhecer a atuação desses profissionais na
educação. Gatti Jr (2004) relata que na década de 1990, a produção de livros didáticos
não era uma atividade central na carreira de alguns autores, que mantinham essa
profissão de forma concomitante com a carreira de professores da educação básica ou
do ensino superior. Hoje, já percebemos uma alteração nesse cenário, com um aumento
significativo de escritores que tomaram a produção de livros didáticos uma profissão de 130

dedicação exclusiva, o que indica que houve uma mudança em relação à essa prática.
Tem sido preciso se concentrar mais nas regras de produção, obedecer aos apertados
prazos para revisão e participar da divulgação do livro, percorrendo o país oferecendo
palestras pela editora ou por convites de escolas e associações. Isso tem levado a
estarem menos presentes em sala de aula (MUNAKATA, 2016; GATTI JR, 2004).
Com tantos sujeitos envolvidos no processo produtivo de livros didáticos,
poderíamos afirmar que não existe mais autoria? Não, pelo contrário. Nossa proposta é
trazer outro olhar sobre o que é ser autor. Por isso é importante colocar a autoria em
questão, pois não se trata de uma função representada por um sujeito, mas sim
desempenhada atualmente pelas mãos de muitos. Resgatando a teorização foucaultiana
explorada na primeira parte deste artigo, quando passamos a compreender a autoria não
como uma identidade, mas uma função discursiva, nos desprendemos de materialidades
que ligam o processo criativo a um nome. Se a autoria está ligada às funções discursivas
de unidade, apropriação, valor de verdade e origem, precisamos rever a quem são
atribuídas essas funções.

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É preciso reconhecer quem são esses novos sujeitos que ocupam essa função
para compreender como ela continua sendo desempenhada. Por isso propormos olhar
para a ação das editoras como parte constituinte da autoria, pois ali há também uma
mobilização de saberes e poderes que produzem sentidos e conhecimentos. O resultado
dessa ação ganha a forma de livros didáticos que serão apropriados por professores e
estudantes de todo o país.

Considerações finais

Nas duas últimas décadas, autores brasileiros têm desenvolvido estudos e


pesquisas nas quais os livros didáticos são abordados a partir do reconhecimento de que
são objetos culturais complexos e cuja produção envolve questões econômicas e
políticas em disputas por espaço no mercado editorial e aceitação no âmbito das
políticas educacionais. Mesmo assim, é possível observar que a autoria de livros
didáticos ainda ocupa um lugar secundarizado em relação a outras posições no meio
científico e literário, nas quais reconhecimento e prestígio são atribuídos a sujeitos que
se destacam com suas produções. Em grande parte decorrente da desvalorização da
cultura escolar e dos conhecimentos ali produzidos, vistos como simplificações,
reducionismos e/ou distorções do conhecimento científico, esta situação gera 131

preconceitos e discriminações em relação às práticas e saberes desenvolvidos na


instituição escolar e nos materiais pertinentes, incluindo os livros didáticos.
Em nosso programa de pesquisas (MONTEIRO, 2019) temos investido na
análise e busca da compreensão da produção curricular em diferentes contextos, tendo
como pressuposto que esta se constitui como híbrido cultural que articula diferentes
saberes para atribuição de sentidos aos fenômenos e processos sócio-político-culturais,
produção complexa que tem na relação com o conhecimento científico uma
contribuição referencial mas não exclusiva. Reconhecendo a dimensão produtiva do
currículo, temos investigado, também, a relação dos docentes com os saberes que
ensinam, considerando características específicas da área disciplinar, no caso em pauta,
a História.
Considerando que autores de livros didáticos estabelecem relações com os
saberes em sua produção do conhecimento escolar, e avançando para além das
perspectivas que subordinam esta produção frente ao conhecimento científico, esta
autoria constituiu-se em questão, que teve no diálogo com as teorizações foucaultianas
sobre discurso e arqueologia do saber um instrumento potente para pensar este objeto

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com outras lentes e ferramentas teóricas. A superação de dicotomias e binarismos


paralisantes possibilitou ampliar o espectro da análise e, tendo por base a concepção de
autoria como função discursiva, desenvolvemos argumentação para investigar as
possibilidades heurísticas desta abordagem no contexto contemporâneo no qual as
novas configurações das editoras criam possibilidades produtivas em meio a normas
legais e interesses econômicos no Brasil.
Nesse sentido, entendemos que discutir a autoria não valorizada de livros
didáticos em diálogo com as teorizações foucaultianas, pode se constituir em
contribuição relevante para a compreensão dos processos envolvidos no fazer curricular,
no qual inserimos a produção didática. A relação com os saberes se expressa, de forma
própria, nas seleções e encaminhamentos definidos para esses objetos culturais
complexos. Usos do passado dizem de um presente cuja “invenção” agentes estatais e
privados têm procurado controlar, mas que também se mantêm abertos a múltiplas
leituras e apropriações por autores e leitores, em possibilidades de exercício da prática
de liberdade.

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Artigo recebido em 07 de julho de 2020. Aprovado em 18 de agosto de 2020.

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