PMBA - HIST. DO BRASIL E BAIANA - Pantoja

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HISTÓRIA

POLÍCIA MILITAR DA BAHIA


HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Era a maior e mais poderosa esquadra que saía de


Portugal. Dela faziam parte mil e duzentos homens:
famosos e experientes navegadores e marinheiros
HISTÓRIA desconhecidos. Eram nobres e plebeus, mercadores e
religiosos, degredados e grumetes. Parecia que todos os
portugueses estavam nas embarcações que
enfrentariam, mais uma vez, o Mar Tenebroso, como
era conhecido o Oceano Atlântico.
PROGRAMA: A expedição dava prosseguimento às navegações
HISTÓRIA DO BRASIL: portuguesas. Uma aventura que, no século XV,
distinguira Portugal, por mobilizar muitos homens,
1. A sociedade colonial: economia, cultura, trabalho exigir inúmeros conhecimentos técnicos e requerer
escravo, os bandeirantes e os jesuítas. 2. A infindáveis recursos financeiros. Homens, técnicas e
independência e o nascimento do Estado Brasileiro. 3. A capitais em tão grande quantidade que somente a
organização do Estado Monárquico. 4. A vida Coroa, isto é, o governo do Reino português, possuía
intelectual, política e artística do século XIX. 5. A condições de reunir ou conseguir. Uma aventura que
organização política e econômica do Estado abria a possibilidade de obter riquezas: marfim, terras,
Republicano. 6. A Primeira Guerra Mundial e seus cereais, produtos tintoriais, tecidos de luxo, especiarias
efeitos no Brasil. 7. A Revolução de 1930. 8. O Período e escravos. Uma aventura que também permitia a
Vargas. 9. A Segunda Guerra Mundial e seus efeitos no propagação da fé cristã, convertendo pagãos e
Brasil. 10. Os governos democráticos, os governos combatendo infiéis. Uma aventura marítima que atraía
militares e a Nova República. 11. A cultura do Brasil e, ao mesmo tempo, enchia de medo, tanto os que
Republicano: arte e literatura. 12. História da Bahia: seguiam nos navios, quanto os que permaneciam em
12.1. Independência da Bahia. 12.2. Revolta de terra.
Canudos. 12.3. Revolta dos Malés. 12.4. Conjuração
Baiana. Sabinada. O rei Dom Manuel I, que a seu nome acrescentara o
título de "O Venturoso", confiou o comando da
esquadra a Pedro Álvares Cabral, Alcaide - Mor de
CAPÍTUL0 1 Azurara e Senhor de Belmonte.
A sociedade colonial: economia, cultura, trabalho Dom Manuel esperava concluir tratados comerciais com
escravo, os bandeirantes e os jesuítas o governante de Calicute, Samorim, para ter, com
exclusividade, acesso aos produtos orientais. Sua
intenção era, também, que fossem criadas condições
favoráveis à pregação da religião cristã, por
missionários franciscanos. A missão da frota de Cabral
reafirmava, assim, os dois sentidos orientadores da
aventura das navegações portuguesas: o mercantil e o
religioso. E, ao que parece, Dom Manuel esperava
ainda, com essa expedição, consolidar o monopólio do
Reino sobre a Rota do Cabo, o caminho inteiramente
marítimo até as Índias, aberto por Vasco da Gama, em
1498. Era preciso garantir a posse daquelas terras do
litoral atlântico da América do Sul. Terras que, de
direito, pertenciam a Portugal, desde a assinatura do
Tratado de Tordesilhas, em 1494.
Quarenta e cinco dias após a partida, na tarde de 22 de
abril de 1500, um grande monte "mui alto e redondo"
foi avistado e, logo em seguida, "terra chã com grandes
arvoredos", chamada de Ilha de Vera Cruz pelo Capitão,
Há cinco séculos, no início de março de 1500, partiu de conforme o relato do escrivão Pero Vaz de Caminha ao
Lisboa, a principal cidade do Reino português, uma rei de Portugal.
expedição de treze navios. Ia em direção a Calicute, nas
Índias.

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Em Vera Cruz os portugueses permaneceram alguns Como se o olhar dos europeus fosse intermediado por
dias, entrando em contato com seus habitantes. Em 26 óculos ainda muito carregados de imagens medievais e
de abril, frei Henrique de Coimbra, o chefe dos procurasse confirmar aquilo que eles já sabiam. A
franciscanos, celebrou uma missa observada, à disposição era reconhecê-los, e não para conhecê-los.
distância, por homens "pardos, maneira de
avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem
feitos, andam nus, sem nenhuma cobertura, nem 1.2 O batismo da América
estimam nenhuma coisa cobrir, nem mostrar suas A cada passo da aproximação e da conquista das novas
vergonhas, e estão acerca disso com tanta inocência terras, os portugueses repetiam as atitudes de Adão ao
como têm em mostrar o rosto", na descrição de tomar conhecimento dos animais: conferiam nomes aos
Caminha. lugares. Primeiro monte Pascoal, ao avistarem terras à
Os portugueses não puderam com eles conversar, época da Páscoa. Terra de Vera Cruz e Terra de Santa
porque nem mesmo o judeu Gaspar - o intérprete da Cruz para definir a vinculação das possessões à
frota - conhecia a língua que falavam. Neste momento cristandade. Baía de Todos os Santos, São Vicente, São
de encontro, conhecido pelo nome de Descobrimento, a Sebastião do rio de Janeiro, São Paulo. O batismo da
comunicação entre as culturas europeia e ameríndia nova terra antecedeu o batismo dos nativos. Como na
tornou-se possível, somente, por meio de gestos. Duas Bíblia, nomear era uma forma de exercer o domínio e o
culturas apenas se tocavam, abrindo margem às controle simbólicos daquilo que se nomeia.
interpretações que ressaltavam as diferenças entre elas. Desde o primeiro relato produzido após a chegada de
Assim, quando um dos nativos "fitou o colar do Capitão, Cabral – a conhecida carta de Pero Vaz de Caminha , a
e começou a fazer acenos com a mão em direção a postura dos portugueses era bastante clara. Chocava-se
terra, e depois para o colar", Caminha concluiu que era com a nudez daqueles que “não cobrem suas
"como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra". vergonhas” e mostravam-se surpresos com a
“preguiça”: “não lavram, nem criam. Não há boi, nem
vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha”, nem outro
1.1-VISÕES DOS CONQUISTADORES
animal de criação para a alimentação dos homens. As
A ação missionária tornava claro o choque cultural entre terras, apesar de não se saber da existência de metais e
os brancos e os negros da terra. Os costumes destes pedras preciosas, possuíam “bons ares”, “águas
últimos chocaram os europeus aqui estabelecidos a infindas” e solos férteis, onde tudo poderia ser
partir de Colombo e Cabral. Dependendo do grau de plantado. Apesar disso, Caminha chegou a insinuar a
inquietação, os elementos culturais indígenas eram semelhança com o Paraíso Terrestre: “a inocência desta
definidos como bárbaros, inocentes ou diabólicos. gente é tal que a de Adão não seria menor”. Mas,
ainda segundo o escrivão de Cabral, “o melhor fruto,
Na América espanhola, as populações indígenas, que
que dela se podem tirar me parece que será salvar
inicialmente encantaram os europeus, os viram
esta gente. E esta deve ser a principal semente que
endurecer em suas atitudes. Começaram a ser vistos
Vossa Alteza em ela deve lançar”.
com um misto de desprezo e curiosidade divertida, e
imaginados como um povo que cultuava objetos A conquista do Novo Mundo foi interpretada como o
estranhos, polígamos insaciáveis e de alimentação acontecimento mais importante desde a encarnação de
exótica (farinha de mandioca, batata-doce e milho). Um Cristo. Para muitos, a história estava chegando ao seu
povo desprovido de bom senso e sem noção do valor fim. A descoberta de milhões de homens que
das coisas. habitavam a América e o estabelecimento de contatos
frequentes com a África e a Ásia eram vistos como a
A nudez, as práticas sexuais, a organização comunitária
possibilidade de incorporar todos os povos pagãos ao
e os costumes dos indígenas eram “enquadrados” e
corpo da cristandade. Assim, vivia-se uma época de
catalogados sob-rótulos já conhecidos pelos
preparação para o Juízo Final, de anúncio da palavra de
conquistadores. Enquanto o Novo Mundo, por sua
Deus. A justificativa para a expansão marítima, de
natureza abundante, parecia o Paraíso, sua população
alargamento das fronteiras da verdadeira fé e de
era considerada bárbara, sujeita a todo tipo de pecado,
catequese universal, ficava portanto confirmada.
vício e tentação. Mesmo assim, os indígenas dividiram
as opiniões dos conquistadores, e sua inocência foi Muitos navegadores, a começar por Colombo,
diretamente associada à inocência paradisíaca. imaginavam-se como auxiliares de Deus na obra da
Redenção. A conversão de todos os povos, que haveria
de antecipar o Fim dos Tempos, segundo os livros

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bíblicos, foi levada adiante pela cruz e pela espada. Aos situação era precária e dependia da disposição do
ingênuos, àqueles considerados apenas ignorantes da indígena de se submeter ao trabalho.
verdade cristã, foram apresentados os símbolos e os
Nem todas as tribos recebiam os lusitanos de forma
dogmas da religião dos europeus. Aos pagãos, a todos
pacífica. Muitas promoveram sucessivos ataques aos
os que cultuavam outros deuses e recusavam-se a
núcleos portugueses ou fugiram do litoral para o
abandonar suas crenças, ficou reservado o combate
interior do continente, de forma a escapar dos
pelas armas. Uma nova cruzada estava em curso,
conquistadores. Estudos indicam que, em 1539, cerca
dirigida principalmente pelos ibéricos, e tinha como
de 12 mil tupis deixaram a região litorânea em direção
metas combater os infiéis (muçulmanos e judeus),
ao Peru, em busca da Terra sem Mal. Após a travessia
converter os indígenas e purificar os pecadores (negros
do interior da América, vitimados por enfermidades e
africanos.)
fome, sobreviveram apenas trezentos.
Diante da responsabilidade e da urgência da missão
Para os lusitanos, a guerra tornou-se uma excelente
evangélica, os padres e monges mostravam-se
alternativa para o problema da mão de obra: os
impacientes. No México, alguns religiosos chegaram a
prisioneiros indígenas eram transformados em
batizar milhares de índios num só dia. De tanto erguer a
escravos. A chamada guerra justa legitimava a
vasilha de onde derramavam água sobre as cabeças dos
escravidão de todos os que se mantivessem hostis aos
nativos, os religiosos mal conseguiam erguer seus
portugueses ou impedissem a propagação da doutrina
braços ao final do dia, tamanha era a dor que sentiam.
cristã.
Batizados à força e sem prévia catequese, os índios não
se comportaram como era esperado pelos seus
conversores. Resultado: muitos foram espancados para 1.4-Em nome da fé, do rei e da lei
abandonar seus costumes contrários à religião cristã.
Com o início da crise do comércio com o Oriente, o
tratamento dispensado às terras americanas passou a
1.3-Os conflitos com os nativos e a escravidão ser outro. Para garantir a defesa do território, dar
sustentação ao escambo do pau-brasil e empreender a
descoberta de metais e pedras preciosas, o governo
português iniciou sua política de povoamento. Era
necessário tornar mais lucrativos os domínios
Atlânticos.
Em 1532, Martim Afonso de Sousa fundou a vila de São
Vicente, a primeira na América portuguesa, numa
região próxima aos domínios castelhanos do sul do
continente, procurando inibir suas incursões nos
territórios lusos e, ao mesmo tempo, ameaçar o
controle espanhol sobre a região do Prata. Mudas de
cana-de-açúcar e colonos com experiência no seu
cultivo e na produção do açúcar foram trazidos para a
América pelo capitão-mor.
portaldoprofessor.mec.gov.br 1
Em 1534, a Coroa portuguesa resolveu lançar mão de
um sistema denominado capitanias hereditárias,
À medida que os europeus se apropriavam das terras do visando atrair investimentos privados. Nesse sistema,
continente, intensificavam-se os conflitos com os particulares recebiam grandes extensões de terras,
ameríndios. Para os conquistadores, o trabalho manual sendo encarregados de promover o povoamento,
devia ser realizado pelos nativos. Nas terras hoje realizar a exploração econômica e exercer o governo, o
pertencentes ao Brasil, os portugueses trocavam comando militar e os poderes de justiça.
roupas, chapéus, ferramentas e outros objetos pela
O sistema de capitanias não garantiu aos portugueses o
realização de determinadas tarefas, numa relação
domínio das novas terras. Conflitos com tribos
denominada escambo. Através deste os portugueses
indígenas e certo desinteresse demonstrado por alguns
carrearam toneladas de pau-brasil, árvore da qual se
donatários, que sequer vieram conhecer suas
extraía um pó avermelhado utilizado em tintura. Tal
capitanias, provocaram o fracasso da experiência
colonizadora. Mas a principal dificuldade estava em

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estabelecer uma atividade economia estável que O povoamento português só deslanchou com a
sustentasse a ocupação e o povoamento. Por mais que vinculação das novas terras aos circuitos do comércio
o trabalho eventual de derrubada das árvores de pau- mundial. Para tanto, não bastava à extração do pau-
brasil estivesse integrado à vida dos nativos, em pouco brasil. Era necessário encontrar pelo menos mais um
tempo o recebimento de bugigangas europeias deixou produto desejado pelos europeus e que pudesse ser
de despertar seu interesse. extraído ou cultivado na província americana. O açúcar
foi a solução e tornou-se o principal meio de
Apenas as capitanias de Pernambuco e São Vicente
viabilização econômica da Colônia, gerando altíssimos
tiveram desempenho satisfatório, devido à
lucros para a Metrópole portuguesa ao longo de toda a
implementação mais sistemática do cultivo da cana-de-
colonização.
açúcar, o que já apontava a solução para o controle
efetivo das novas possessões. Já implementada pelos lusitanos nos arquipélagos dos
Açores e de Cabo Verde e na Ilha da Madeira, a lavoura
Em razão dos insucessos do sistema de exploração
canavieira em larga escala foi desenvolvida em
adotado e por considerar excessivo o poder dos
latifúndios (grandes propriedades) com a utilização de
donatários, a Coroa decidiu criar, em 1548, o governo-
mão-de-obra escrava. A tendência dessas unidades
geral, numa tentativa de centralizar a política de
produtivas era a monocultura de exportação, ou seja, a
exploração dos domínios americanos. O governador-
produção de um único gênero, no caso o açúcar,
geral, escolhido e nomeado diretamente pelo rei, era
voltada para a venda no mercado mundial. Produção
incumbido da defesa militar interna e externa, da
em larga escala, latifúndio, trabalho escravo e
Justiça, da arrecadação dos tributos devidos à Coroa, do
monocultura formaram os quatro elementos básicos de
estímulo às atividades econômicas e à fundação de vilas
uma estrutura econômica dominante nas Américas
e povoações.
durante o período colonial: a plantation.
Os governadores-gerais tiveram dificuldades para impor
sua autoridade, devido às resistências dos capitães
donatários e dos fazendeiros e à extensão do território 1.5-ESCRAVIDÃO E ALIANÇA
a ser administrado. Nas vilas e cidades coloniais foram
Os indígenas fascinaram os portugueses desde que
criadas as câmaras municipais, encarregadas das
Caminha descreveu as “vergonhas tão altas e tão
funções administrativas, judiciais, policiais e financeiras
cerradinhas" das índias, excitando-os a dar "aos
locais. Nas eleições de seus ocupantes só podiam
selvagens grandes somas de prazer de que eles nunca
participar os chamados “homens bons”, ou seja,
tinham tido sequer notícias'”. Mas logo as relações
homens de posses, fazendeiros, clérigos, funcionários
entre colonizados e colonizadores tomaram outro
do Império e nobres. Excluíam-se, portanto, mulheres,
rumo.
escravos, pobres, judeus, estrangeiros e pessoas que
desenvolvessem trabalhos manuais. Com elevado grau O índio era o escravo à mão. Bastava captura-lo. E, para
de autonomia, as câmaras eram o principal espaço de os portugueses, o trabalho escravo foi fundamental: o
expressão dos interesses dos poderosos dos municípios. Regimento dado ao primeiro governador-geral do Brasil
obrigava-o a "reduzir o gentio à fé católica". Na prática,
À medida que se ampliavam os negócios na América,
isso significava conquistar o índio - se necessário
devido ao desenvolvimento da lavoura açucareira, a
escravizando-o - para explorar a colônia. Enquanto não
ocupação lusitana progredia. A produção de açúcar
se organizou a escravidão negra, o índio foi importante
atraiu portugueses que vieram formar os primeiros
como aliado ou escravo.
núcleos populacionais com a fundação de vilas e da
cidade de Salvador, primeira capital e sede do governo Quando uma coisa entrava em choque com outra, e os
até 1763. colonizadores mais ambiciosos ultrapassavam os limites
aceitos pela Coroa, as punições podiam ser rigorosas.
Bartolomeu Barreiros de Athayde, enviado pelo
A civilização do açúcar governador do Pará ao Rio Amazonas com o propósito
de descobrir minas, voltou trazendo 300 índios
Povoar era fundamental para Portugal manter seus
escravos. Foi condenado porque "tinha tão
domínios americanos e resistir às incursões
indignamente violado as leis atacando sem a menor
estrangeiras. Mas para povoar era necessário
provocação os índios para escravizá-los, que acarretou
apresentar uma alternativa de enriquecimento e de
sobre si um processo criminal, cujas consequências o
poder que não fosse possível na Metrópole.
levaram à sepultura; implicado no crime também o

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governador, teve o seu quinhão de desgraça", informa 1.6-O engenho de açúcar


Robert Southey, em sua História do Brasil.
O engenho era verdadeiramente uma “máquina e
Registros desse tipo induziram alguns historiadores a fábrica incrível”, como observou o padre Fernão Cardim
entender que a Coroa zelava pelos índios. Mas, nos ao final do século XVI, combinando atividades agrícolas
primeiros trinta anos, o Brasil recebeu pouca atenção. O e manufatureiras. Nessa agroindústria desenvolvia-se
processo de colonização começou pela ocupação da todo o processo de produção do açúcar, do plantio da
terra e escravização dos índios. Pera Vaz de Gandavo, cana à embalagem do produto final.
no Tratado da terra do Brasil, diz sobre os colonos
A partir de 1530 a produção açucareira espalhou-se por
portugueses:
todo o litoral da América portuguesa, principalmente
"a primeira coisa que pretendem alcançar são escravos nas capitanias de Pernambuco e Bahia. O Nordeste
para lhes fazerem e granjearem suas roças e fazendas, brasileiro oferecia um conjunto de condições favoráveis
porque sem eles não se podem sustentar a terra; e uma para o desenvolvimento dessa lavoura: clima quente,
das coisas porque o Brasil não floresce muito mais é solo de massapê e maior proximidade do continente
pelos escravos que se levantaram e fugiram para suas europeu em relação às demais capitanias do Sul.
terras e fogem cada dia: e se estes índios não fossem
Segundo o cronista Pero de Magalhães Gandavo, em
tão fugitivos e mutáveis, não tivera comparação a
1570 havia cerca de 60 engenhos na América
riqueza do Brasil".
portuguesa, 55 deles em capitanias do Nordeste. Nos
O aprisionamento e a fuga de índios – enfim, a relatos de Fernão Cardim, em 1583, o número subia
escravização – levaram à destribalização e à ruptura de para 115, dos quais 106 estavam distribuídos pelas
seus costumes, condenando várias nações indígenas a capitanias de Pernambuco, Bahia, Ilhéus e Porto
um processo degenerativo que acabou por liquidá-las. Seguro.
Os índios não praticavam a escravidão: eles assimilavam
Os lucros fabulosos e as facilidades encontradas
à comunidade os prisioneiros que não eram executados.
permitiram ao açúcar brasileiro dominar o mercado
Com a escravidão, os portugueses introduziram entre os
mundial, ao menos até as primeiras décadas do século
índios o hábito de trocar os prisioneiros de guerra por
XVII. No entanto, grande parte das lucrativas atividades
mercadorias, transformando algumas tribos em bandos
açucareiras não estiveram restritas às mãos dos
militares que passaram a viver da caça aos inimigos.
portugueses. O refinamento do produto, sua
A escravidão indígena, no entanto, só interessava aos distribuição e até mesmo o financiamento de engenhos
primeiros colonos. Contra ela ficaram os jesuítas e, a foram realizados por holandeses.
Coroa, direta ou indiretamente envolvidos no tráfico
A produção açucareira foi implantada na América em
negreiro, e os próprios traficantes, que não queriam
associação direta com o trabalho escravo. A produção
concorrência.
em larga escala e o “serviço insofrível”, como qualificou
Dessa oposição nasceram as falsas explicações sobre a Fernão Cardim, exigia um número imenso de
índole dos índios, usadas como argumento contra a sua trabalhadores submetidos a uma situação de
escravização. Os jesuítas diziam que eles eram exploração quase ilimitada. Como já foi mencionado, a
indolentes, não resistiam às doenças e sentiam maioria dos colonos portugueses que vinha ao Novo
saudades da selva, quando, na verdade, morriam em Mundo não se dispunha às desonrosas atividades
consequência dos maus-tratos. Essas falsidades manuais e desejavam, de imediato, obter terras e
alimentaram o preconceito contra o caráter dos índios e escravos para seu sustento. Mesmo assim, nos
serviram de justificativa para a importação de negros, trabalhos mais especializados, que requeriam técnicas
lucrativa para a Coroa, para a Igreja e para os apuradas, utilizavam-se trabalhadores livres e artesãos.
traficantes. Assim, o preconceito inicial contra a As tarefas mais rudes e árduas foram, desde o início,
capacidade de trabalho indígena transferiu-se para o destinadas aos escravos.
próprio índio, entendido como um "ser inferior. Para
Até o final do século XVI, a escravidão indígena foi
“protegê-los”, os jesuítas confinaram os seus índios em
amplamente empregada nos engenhos de açúcar. Nos
“reduções”, submetendo-os a um processo de
séculos seguintes, ela continuou sendo utilizada nas
desaculturação, impondo-lhes uma religião e punindo-
capitanias do Sul e nas regiões do Grão-Pará e
os com castigos corporais sempre que resistiam.
Maranhão, como solução para a necessidade de braços
nas lavouras.

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Gradativamente, os engenhos foram introduzindo desenvolveu-se nas capitanias do Espírito Santo, de São
negros africanos escravizados, que acabaram por se Vicente e de Santo Amaro, destinando-se mais ao
tornar a mão-de-obra característica da produção contrabando que se realizava com a América espanhola
açucareira. Além da resistência dos indígenas, que se através da região do Prata. A aguardente produzida nos
deslocavam com suas tribos para o sertão, fugiam das engenhos do Nordeste servia para o comércio de
fazendas ou promoviam ataques aos portugueses, escravos africanos que se intensificava ao final desse
destaca-se o motivo fundamental dessa mudança: a século.
lucratividade do tráfico negreiro. Transportados e
comercializados pelos portugueses, os escravos
africanos geravam altíssimos lucros para a Metrópole, o EXPLORAR, CASTIGAR, MATAR.
que o cativeiro indígena estava longe de oferecer. Os Haja açoites, haja correntes e grilhões, tudo há seu
negócios do açúcar, intimamente associados à tempo e com regra e moderação devida; e vereis como
escravidão africana, eram as “minas de ouro” da em breve tempo Fica domada a rebeldia dos servos;
colonização portuguesa. Articulavam-se, assim, num porque as prisões e açoites, mais que qualquer outro
mesmo sistema produtivo, as possessões portuguesas gênero de Castigos lhes abatem o orgulho e quebram os
dos dois lados do Atlântico. Como afirma o historiador brios.(Padre Jorge Benci, A economia cristã dos
Fernando Novais: “Paradoxalmente, é a partir do tráfico senhores no governo dos escravos, 1700.).
negreiro que se pode entender a escravidão africana
colonial, e não o contrário”.
O trabalho nos engenhos colocava lado a lado escravos 1.7-PESOS & MEDIDAS
africanos, escravos indígenas e trabalhadores livres. Os Os negros eram pesados e medidos. Eram "peças da
mestres e outros artesãos coordenavam as principais África", chamados de “sopros de vida" e "fôlegos vivos".
etapas do processo de fabricação do açúcar. A A forma de comercializá-los denuncia o processo
qualidade do produto dependia da perícia desses desumanizador: não se vendia um, dois, cinquenta
profissionais. No entanto, com o passar do tempo, negros – vendiam-se “peças”. Uma peça não significava
algumas funções especializadas começaram a ser um escravo como uma tonelada não representava mil
também realizadas por escravos. Difundindo a
escravidão para essas tarefas, os senhores deixavam de
arcar com os salários dos artesãos ao mesmo tempo em
que controlavam mais diretamente a produção do
açúcar, uma vez que detinham sobre os escravos muito
mais poder de mando. Contudo, tal substituição
acarretou uma diminuição da qualidade do produto,
atestada por cronistas do período colonial. A lógica do
escravismo impunha o domínio do senhor de engenho
sobre todo o processo produtivo. Dentro dessa lógica, a
perda da qualidade era preferível à perda da
autoridade.
quilos de negros.
A partir de 1660, uma “peça significava 1,75 metro de
Outras atividades econômicas negro no padrão de medidas atual. Assim, cinco negros
Apesar da tendência à monocultura de exportação, no entre 30 e 35 anos, somando 8,34 metros,
interior das propriedades canavieiras desenvolveu-se a representavam não cinco escravos, mas 4,76 peças.
agricultura de subsistência e a fabricação de utensílios Dois negros de 1,60 metro eram apenas 1,8 peça. O
e instrumentos de trabalho, como canoas, carroças, valor do negro media-se pelos músculos, pela idade,
selas, arreios e roupas rústicas. Outras atividades pelos dentes, pelo sexo, pela saúde, pelo aspecto geral.
complementares à produção açucareira, como a Por isso, o padrão de “peça” podia variar de 1,85 a 1,60
pecuária e as lavouras de fumo e algodão, também metro, dependendo do estado do lote. Na prática, as
foram desenvolvidas nessas unidades. coisas tornavam-se mais simples. Era comum dois
negros mais idosos ou duas crianças de 4 a 8 anos
A economia colonial no século XVI assentava-se nas
valerem uma peça. Três negros de 9 a 18 anos (os
capitanias do Nordeste. No Sul, o transporte para a
“molecões) valiam duas peças.
Europa encarecia o açúcar, cuja produção mesmo assim

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Até 1718, a Coroa deteve o monopólio do comercio Já não havia, como nos primeiros tempos, até duas
negreiro no Brasil. Depois, quando concedia licença a camadas de negros superpondo-se nos porões
terceiros, tabelava o preço das peças, lucrando até duas abafados. Mas as doenças continuaram, e os
vezes sobre o custo. A procura crescente de escravos moribundos ainda eram jogados no mar.
criou a concorrência: holandeses, franceses, ingleses e
Alguns capitães dos tumbeiros, mais cuidadosos,
espanhóis entraram no mercado brasileiro. Os
obrigavam de vez em quando os negros a subir ao
comboieiros - comerciantes que levavam os escravos
convés para se exercitarem ao sol. Famintos e sem
para o interior, vendendo-os ou entregando-os aos
energia, eles se deitavam sugando o ar puro, mas sem
fazendeiros – aumentavam mais o preço. Os altos juros
condições de praticar nenhum exercício. Então os
nas transações a prazo endividavam cronicamente os
marinheiros os chicoteavam, obrigando-os a uma
compradores.
"dança" que os ajudava a desentorpecer. Depois
Esses dados foram importantes, a partir dos estudos de voltavam ao porão abafado, onde continuavam a
Lúcio Azevedo (1855-1933), em Portugal, e de Pandiá morrer.
Calógeras (1870-1934), no Brasil, para investigar
Nos navios, o espaço era "economizado" para os
quantos negros entraram no país (o pouco rigor dos
africanos. Também se reduzia o "supérfluo":
primeiros historiadores exagerou o seu número). Mas
geralmente, o alimento que os negros consumiriam na
também registram a transformação ideológica do negro
travessia da costa africana à costa brasileira. A ração de
em mercadoria, reduzido à condição de objeto de lucro,
água era de um copo a cada três dias, quantidade que
desumanizado e manipulado desde o começo do tráfico.
os capitães dos tumbeiros comprovaram ser suficiente
para o escravo não morrer de sede. Para os 120 dias de
travessia dos primeiros tempos de tráfico, cada negro
1.8-CONDIÇÕES DE TRANSPORTE
recebia quarenta copos de água. Todas essas restrições
A crônica da época é rica sobre o transporte negreiro. visavam ganhar espaço eliminando-se tonéis de água.
No começo do tráfico, predominavam navios pequenos Muitos negros não suportavam o regime: era os 20%
e mal construídos, com a pior marujada portuguesa. (ou 50%, em algumas ocasiões) despejados nos mares –
Viajando em condições precária de higiene e mas os restantes compensavam. A relação entre o
alimentação, os africanos contraíam moléstias que logo espaço ganho com a redução dos tonéis de água e os
se transformavam em epidemias. Autores da época negros que morriam de sede favorecia os comerciantes.
contam que os negros, amontoados nos porões infectos
A maioria dos negros era capturada nas guerras tribais.
– onde não entrava luz -, tinham de defecar no lugar em
Os traficantes aproveitaram até conflitos religiosos,
que estivessem: no geral, era impossível mover-se.
como as guerras santas – as jihads contra os negros não
Viajavam durante os 120 dias das primeiras travessias e
muçulmanos. Os africanos capturados eram vendidos
os 20 ou 30 das últimas (século XVI ao XIX), sentados ou
aos portugueses, holandeses, espanhóis, ingleses e
deitados em cima de fezes, urina e vômitos.
franceses. Essa mercadoria custava pouco na fonte e
A falta de comida fresca trazia o escorbuto – chamado tinha um alto preço no Brasil. Daí a possibilidade de um
mal-de-Luanda -, que atingia também os marinheiros. trato rudimentar no seu transporte.
Muitos africanos ficavam tuberculosos, especialmente
Mas, com a vigorosa repressão ao tráfico que os
as crianças de 6 a 16 anos. Os doentes eram jogados no
ingleses começaram a praticar no século XIX, era
mar, ainda vivos, para não contaminarem o resto da
necessário perder cada vez menos negros, para
“carga. Compensava-se a perda com a superlotação dos
compensar os confiscos de carga e muitas vezes até dos
navios – os sobreviventes possibilitavam lucros que
navios.
superavam os prejuízos. Os abusos foram tantos que a
Coroa interveio em março de 1684, determinou normas
de transporte para evitar a excessiva lotação nos
1.9 O TRABALHO NAS MINAS
tumbeiros.
A partir do começo do século Xvlll, de cada 20 escravos
Com o tempo, o tráfico se tornou mais organizado e os
empregados na mineração, apenas três sobreviviam.
navios melhoraram. Concluiu-se que, em vez de perder
Nesse período, de cada 20 africanos trazidos ao Brasil,
metade dos negros com a superlotação, era mais
apenas três não seguiam para as minas. Isto é: dos que
racional transportar menos africanos e perder em tomo
entravam no Brasil, 85% iam para a mineração; dos que
de 20% da carga. Mesmo assim, as melhorias das
trabalhavam nas minas, 85% morriam. Se chegassem
condições de transporte não significaram alívio para os
três mil africanos, 2.550 iriam para as minas, e destes
cativos. Eles tiveram apenas um pouco mais de espaço.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
morreriam 2.167. Ou seja, a mineração matava 85% de furtavam ouro e diamantes, os negros foram
seus escravos, que representavam mais de 70% dos que submetidos a uma dura vigilância.
chegavam ao Brasil. Seiscentos mil negros morreram
Após o trabalho, os escravos eram revistados pelos
nas minas. No ciclo da mineração, a maior causa de
feitores e fiscais. O melhor meio de esconder pequenas
mortalidade era o trabalho. Quem trabalhava, morria. E
pedras era introduzi-las no ânus. Quando os fiscais
trabalho era "coisa de negro".
desconfiavam, os suspeitos recebiam clisteres de
No entanto, na mineração houve certa mobilidade pimenta malagueta para expelir as pedras. Essa
devido à peculiar organização de trabalho adotada. "lavagem dolorosa e humilhante, aplicada com uma
Primeiro, o negro não representou a totalidade da brutalidade fácil de imaginar, não raro provocava graves
mão-de-obra: houve brancos trabalhando ao seu lado, danos ao negro.
autônomos ou assalariados. Alguns negros, embora
O simples fato de os escravos morrerem em grande
escravos, mineraram por conta própria, pagando uma
número nas minas já nos faz pensar nas condições de
taxa ao patrão. Isso gerou uma disposição de luta social
trabalho que enfrentaram. As condições de vida –
(a possibilidade de ganhar dinheiro e alforriar-se) e
implicando aí o risco de morte - eram bem piores do
implicou também – justamente porque a alforria não
que nos canaviais e engenhos. Os garimpeiros
agradava ao senhor um endurecimento repressivo.
trabalhavam em minas mal concebidas, sem sistemas
Apesar das evidências dessa situação, não faltam de renovação de ar, sem quaisquer cuidados
análises "otimistas", como a de Edison Carneiro, em O elementares com a segurança das galerias. Muitos
negro nas Minas Gerais: escravos morreram sufocados ou soterrados. Tinham de
carregar grandes pesos - os sistemas mecânicos eram
"A lenda do Chico - Rei, o rei negro de Vila Rica, ilustra,
raríssimos na primitiva mineração brasileira -' e as
pelo menos, o sem-número de ocasiões, que tinham os
hérnias e pneumonias foram constantes, como acentua
escravos, de amealhar boa soma de dinheiro com que
o barão Guilherme Luís Von Eschwege (1777-1855),
escapar às agruras de sua sorte. Pela primeira vez no
mineralogista alemão que trabalhou no Brasil. Ele conta
Brasil, o negro foi explorado, em grande número, como
que, em Minas Gerais, num único acidente pereceram
negro de aluguel e, em proporção menor, como negro
cerca de 200 negros.
de ganho, cada vez mais autônomo, mais independente
do senhor, mais responsável pessoalmente pelo seu
trabalho e pelo seu comportamento. Tão geral foi esta
1.10 OS JESUITAS e a Ocupação do Vale Amazônico
ascensão social do negro em Minas Gerais que a
passagem de escravo a cidadão se operou suavemente, As missões e os fortes desempenharam papéis
sem choques nem episódios marcantes, depois de importantes no Vale do Amazonas quanto à expansão
encerrado o ciclo da mineração". territorial e a consequente colonização. Contribuíram
para fixar marcos da penetração portuguesa naquele
território disputado por outros povos.
Interpretação tão simplista quanto irreal.
Sempre de sentinela nas lonjuras do Vale estavam os
A presença de brancos trabalhando na mineração fortes, instalados ao longo do século XVII: eram
confunde alguns historiadores, que veem nisso a unidades pequenas, com poucos homens e escassas
predominância do trabalho livre e um sinal de relações peças de artilharia. Isto, entretanto, não era empecilho
cordiais entre senhor e escravo, como; se fosse possível para que enfrentassem os ataques frequentes de
haver cordialidade num regime escravocrata. As mortes, estrangeiros ou de nativos.
as torturas, os castigos e a própria sociedade, que às
Em 1669 ergueu-se o forte de São José do Rio Negro,
vezes mudava as formas de trabalho mas não os modos
evitando que espanhóis descessem pelo Rio Amazonas.
de produção, indicam o oposto.
Os fortes do Paru e Macapá, fundados em 1685,
Nas minas, os escravos furtaram bastante. Furtavam visavam impedir a passagem dos franceses da Guiana.
pedras preciosas e ouro em pó. O furto, porém, quase
As ordens religiosas chegaram em épocas diferentes à
sempre serviu para comprar alimentos e não para obter
região. Por exemplo: os carmelitas, em 1627, e os
a alforria, como julgaram apressadamente alguns
jesuítas, em 1636. Deparavam-se, porém, com os
historiadores. Tabaco e bebidas eram comercializados
mesmos obstáculos como a competição entre os
clandestinamente nos garimpos com o que os negros
colonos e entre as próprias ordens religiosas pelo
surrupiavam. A venda de aguardente não desapareceu
"direito de administrar o indígena", visto tanto como
nem quando os alambiques foram proibidos. E, porque
mão-de-obra quanto como fiel servo de Deus.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

A disputa acirrada entre as ordens exigiu a intervenção cercados pelo silêncio cortado pelo zumbido dos insetos
governamental e pelo canto das aves. Assim, pouco a pouco, estes
aventureiros divisavam, no lusco-fusco da floresta
Na tentativa de resolver esta contenda, que envolvia
equatorial, um vale repleto de diferentes espécies
também a ocupação do Vale Amazônico, inúmeras
animais e vegetais vivendo em equilíbrio.
Cartas Régias fixaram as áreas de atuação das ordens.
Os franciscanos de Santo Antônio receberam as missões Pelos cursos d'água - "estradas líquidas", segundo o
do Cabo do Norte, Marajó e Norte do Rio Amazonas; à historiador Caio Prado Júnior -, vias de comunicação
Companhia de Jesus couberam as dos Rios Tocantins, natural, iam sendo coletadas especiarias diversas,
Xingu, Tapajós e Madeira; os franciscanos ficaram com aproveitadas e utilizadas no comércio: plantas
as da Piedade e do Baixo Amazonas, tendo como centro alimentícias e aromáticas como cravo, canela,
Gurupá; os mercedários com as do Urubu, Anibá, castanha dita do Maranhão, salsaparrilha, cacau etc.
Uatumã e trechos do Baixo Amazonas; e os carmelitas Também eram extraídas madeiras valiosas e produtos
com as dos Rios Negro, Branco e Solimões. de origem animal, desconhecidos, como uma espécie
de óleo utilizado na alimentação e na iluminação,
Nos anos finais do século XVII as missões religiosas
obtido dos ovos da tartaruga, ou o "manacuru" (peixe-
cobriam grande parte do espaço que viria a constituir a
boi), exportado salgado e seco.
atual região amazônica brasileira.
Aos olhos dos colonizadores, o Vale Amazônico
O papel do indígena na ocupação do Vale do Amazonas
apresentava-se com possibilidades incalculáveis,
era de extrema importância. Não se dava um passo sem
inclusive dando a impressão de que seus produtos
ele, pois conhecia o território, sabendo se movimentar
podiam substituir as especiarias das Colônias perdidas
naquela área desconhecida pelo europeu.
no Oriente.
Os nativos eram os guias pela floresta ou pelos rios.
A colonização que ali se impôs, portanto, fundamentou-
Canoeiros, conduziam as embarcações nas longas
se nas atividades extrativas, compondo um sistema
expedições fortemente escoltadas, em meio a milhares
original e peculiar que constituiu e marcou a vida
de quilômetros, pelos cursos emaranhados d'água.
econômica da região.
Eram também caçadores, identificando a variada fauna,
e coletores das "drogas do sertão", pois conheciam
como ninguém a flora local.
1.11 RESISTÊNCIA ESCRAVA
A coleta se organizou no Vale sob a coordenação dos
Comunidades quilombolas.
missionários. Os padres, que monopolizavam o trabalho
indígena, usavam um artifício para que os nativos Já se sabe da existência no Estado do Pará de 240
extraíssem elementos da flora em grande quantidade. comunidades quilombolas. Acredita-se que muitas
Alegavam que, além das partes destinadas aos adultos, outras ainda serão identificadas.
aos velhos e às crianças, deveriam extrair outra, À primeira vista pode causar estranheza a existência de
destinada a Tupã. Esta fração - "Tupã baê" - acumulada número tão significativo de comunidades descendentes
nos depósitos das missões, era, posteriormente, de quilombos no Pará em função da ideia bastante
exportada para a Europa onde seria comercializada com difundida de que na Amazônia a escravidão não teve
grande lucro. tanta importância.
Conduzido pelos nativos, o "homem branco" penetrava Embora o emprego da mão-de-obra negra na Amazônia
pelo coração pulsante da mata espessa, formada por não tenha alcançado as mesmas cifras que em outras
imenso e heterogêneo verde, onde não bastava querer regiões do país, teve uma grande importância para a
para efetivamente ocupar. Era uma tarefa complexa, economia local. Nas várias regiões do atual Estado do
em meio a terrenos submetidos a chuvas constantes Pará, os escravos negros foram utilizados como mão-
que provocavam um aumento no nível das águas que, de-obra nas atividades agrícolas e extrativistas, nos
por sua vez, arrastavam e deslocavam grandes porções trabalhos domésticos e nas construções urbanas.
de terra próximas aos cursos dos rios. Por conta disto, a
exploração detinha-se no que a floresta oferecia e A história da escravidão no Pará foi marcada pela
possibilitava espontaneamente. resistência de negros e índios que buscaram a sua
liberdade por meio da fuga, da construção dos
O isolamento de alguma canoa significava extremo quilombos e da participação na Cabanagem. Parte
risco; por isto, iam em grupos pelos igarapés, sob a copa dessa história é contada neste site..
de árvores gigantes, geralmente de folhas largas,

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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Zumbi nasceu em Palmares, em 1655. Era neto da em local público até sua total decomposição. Palmares
princesa Aqualtune, filha de um importante rei do resistiu ainda por mais de 30 anos antes de sucumbir
Congo. Ainda bebê, Zumbi foi aprisionado pela definitivamente. Em homenagem a Zumbi, a data de
expedição de Brás da Rocha Cardoso e entregue ao sua morte foi escolhida como Dia Nacional da
padre Antônio Melo, em Porto Calvo. Recebeu o nome Consciência Negra.
de Francisco e uma educação formal. Aos 10 anos, já FREITAS, Décio. Palmares, a guerra dos escravos. Porto
sabia latim e português e, aos 12, tornou-se coroinha. A Alegre: Movimento,1973. SANTOS, Joel Rufino dos.
inteligência do menino recebia elogios do padre, Zumbi. São Paulo: Moderna, 1985.
segundo relatam registros existentes.
Com 15 anos, Francisco fugiu de volta a Palmares,
1.12 Os bandeirantes
adotando o nome de Zumbi e passando a fazer parte da
Família Real, pois foi adotado pelo então rei Ganga Os bandeirantes despovoavam o sertão, mas a
Zumba. A nação palmarina começou a se formar por historiografia oficial os apresenta como
volta de 1597, com Aqualtune. Rapidamente a “desbravadores”. Em 1911, na Sorbonne, em Paris,
comunidade cresceu, porque era constantemente Oliveira Lima deu uma desculpa “sociológica” para a
alimentada pela chegada de negros fugidos, de índios e violência bandeirante: “É verdade que os audaciosos
de brancos pobres. Palmares chegou a ter 30 mil tiravam sua vingança sobre os índios –, reduzidos à
habitantes e, com sua organização e consequente escravidão aos milhares e trazidos para a costa, a fim de
fortalecimento, passou a ser visto como uma ameaça trabalharem nas plantações. Chamava-se a isso
perigosa ao poder colonial. Além de praticarem uma resgates. Somente os missionários resgatavam almas,
agricultura considerada avançada para os padrões da trazendo ao seu credo seres sem cultura.
época, desenvolveram uma atividade metalúrgica Os bandeirantes resgatavam corpos, salvavam aqueles
organizada para sua defesa e subsistência e chegaram a que eles pretendiam que fossem prisioneiros de tribos
estabelecer comércio com localidades próximas. inimigas e voltados aos festins do canibalismo. A
Entre 1596 e 1716, os palmarinos resistiram a 66 sociologia nos ensina, com efeito, que a escravidão é
expedições coloniais, tanto de portugueses como de um progresso sobre o sacrifício humano”.
holandeses. Foi a maior e mais longa expressão Os bandeirantes tinham excelente mercado para suas
contestatória da escravidão em todo o mundo. De todos capturas. O escravo índio custava 80% menos que o
os líderes da resistência negra, dois se tornaram negro e por ser mais barato, “gastava-se” mais
conhecidos: Ganga Zumba e Zumbi. Zumbi, porém, foi o rapidamente. Maltratados, os índios morriam em tão
líder mais famoso da confederação de quilombos de grande número que em 1586, não havia alimento em
Palmares, que se estendia pelos territórios atuais de São Paulo “por causa dos morados não terem escravaria
Alagoas e Pernambuco. com que plantar e beneficiar suas fazendas”. Em 1580,
Ganga Zumba, cansado de muitas guerras, assinou um uma epidemia disentérica matou milhares de índios,
acordo de paz com os portugueses, em 1678. Isso além de “dois mil peças de escravos (negros)”.
desagradou uma parte significativa dos quilombolas, Índios morriam aos milhares de sífilis, tuberculose,
que viam a transferência para Cucaú como uma forma disenteria. Enquanto isso, os bandeirantes trabalhavam
de controlar a comunidade, além de não resolver o avidamente: entravam pelos sertões, seqüestravam
problema da escravidão. Foi nesse momento que Zumbi mais índios, traziam-nos e os vendiam com grande
rompeu com Ganga Zumba, sendo aclamado Grande lucro. Eram mais barateiros e rápidos que os traficantes
Chefe por aqueles que ficaram em Palmares. de negros.
Durante um ataque em 1694, Zumbi caiu ferido em um A igreja católica no Brasil defendeu os índios
desfiladeiro, o que gerou o mito de que o herói se capciosamente. Em 1537, o papa Paulo III (1468-1549),
suicidara para evitar a escravização. No entanto, em pela bula Ventas Ipsa, proibiu a escravização dos
1695, Zumbi voltou a comandar ataques, mostrando indígenas – a não ser pelas guerras justas – sob pena de
que estava vivo. excomunhão. Mas decorreram cem anos antes que a
Depois de 17 anos de combates, Zumbi foi traído por proibição começasse a funcionar de fato no Brasil. Os
um de seus principais comandantes, Antônio Soares, e jesuítas deram a impressão de proteger os índios ao
assassinado durante expedição de Domingos Jorge denunciar – com exagero, quando lhes convinha – os
Velho, em 20 de novembro de 1695. A cabeça de Zumbi abusos dos escravistas. Os padres tutelavam os índios
foi decepada e levada para Recife, onde foi pendurada para “reduzi-los” à fé católica. Depois foram contra a

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

sua escravidão quando os senhores de engenho Velho mandou cortar a cabeça de 200 índios que se
puderam adquirir negros africanos. recusaram a lutar contra os quilombos.
A razão mais forte para o fim do escravismo indígena, "As aldeias de índios estão forçadas a entregar certa
depois da resistência dos índios, foi a sua condenação quantidade de seus membros aptos para realizar
pela Igreja e a expansão da agricultura da cana-de- trabalhos (...), durante um prazo determinado. Esses
açúcar, gerando capitais que compraram negros índios são compensados com certa quantidade de
africanos a partir do final do século XVI. dinheiro e destinados aos mais variados tipos de
serviços."
O índio foi escravizado por 221 anos, de 1534 a 1755.
Ao se decretar o fim da escravidão indígena, pelas leis
de 1755 e 1758, promulgadas pelo marquês de Pombal,
CAPÍTULO 2:
a indústria açucareira continuava em expansão – havia,
portanto, dinheiro para a compra de negros africanos. A independência e o nascimento do Estado Brasileiro
Os esforços dos jesuítas e da Coroa, que tentavam
acabar com o apresamento de índios por meio de
denúncias e regulamentações das guerras justas em
1587, 1595, 1609, 1611, 1647, 1649, 1652, 1653 e 1680, 2.1 CAMINHOS E FRONTEIRAS
pouco puderam fazer enquanto não houve capitais
suficientes para a compra de africanos. Foi o esplendor Anhanguera, Fernão Dias, Raposo Tavares, Domingos
do açúcar que afinal consolidou o comércio de negros. Jorge Velho, Borba Gato, Paes de Barros, Cardoso de
Almeida, Cunha Gago, Amaral Gurgel, Bandeirantes.
Quase cem anos depois de proibida a escravidão Quem já circulou pelas rodovias, avenidas, praças e ruas
indígena, em 1846, Caxias (1803-1880) afirmou que “é do estado de São Paulo e de sua capital com certeza
uma grande desumanidade o deixarmos vagar por esses está habituado a esses nomes. Os mais conhecidos são
desertos ínvios sem os socorros da Religião e da facilmente associados a uma espécie de imagem
civilização esses restos dos primeiros habitantes de heroica de desbravadores do sertão brasileiro, de
nosso país, que tão úteis podiam ser, como muitos deles alargadores das fronteiras do território nacional, de
nos têm sido, enquanto que à custa de tantos perigos e responsáveis pela grandeza de nosso país e incansáveis
desprezos vamos buscar braços africanos que nos líderes de expedições em busca de metais e pedras
ajudem”. preciosas.
São restos. Não poderiam ser aproveitados sequer De fato, desde o século XVI, colonos e aventureiros
como escravos. Estavam em extinção. O fato é que eles dirigiam-se em expedições rumo ao interior do
foram praticamente exterminados em poucos anos – continente em busca de riquezas minerais. As
um comprovado genocídio. constantes informações das minas da América
O padre Antônio Vieira (1608-1697) relatou muitos espanhola alimentavam os sonhos dos luso-brasileiros
crimes contra os índios. Tiranias, diz ele, que “excedem de encontrar a montanha do Eldorado e de serras
muito às que se fizeram na África: em espaço de resplandecentes, cobertas de ouro, prata, diamantes,
quarenta anos se mataram e se destruíram por esta rubis, esmeraldas e outras pedras preciosas.
costa e sertões mais de dois milhões de índios e mais de No entanto, passaram-se quase dois séculos para que as
quinhentas povoações, como grandes cidades, e disto áreas mineradoras fossem descobertas pelos
nunca se viu castigo”. conquistadores, ligados diretamente à história da vila
Os bandeirantes, não raro atuando como polícia do de São Paulo. Nesse período, a ação dos bandeirantes
sistema, partiram contra os quilombos e forçaram os teve sempre no horizonte a busca dessas riquezas. Mas
índios a acompanhá-los. Os índios não se solidarizavam seu papel na estruturação da Colônia foi muito mais
com os negros. Aliavam-se aos portugueses e, como complexo. O caráter heroico com que impregnaram a
registra frei Vicente do Salvador (1584-1639) em sua imagem desses aventureiros e as homenagens que se
História do Brasil, foram os primeiros capitães-do-mato prestam a eles ainda nos dias de hoje dificultam a
e um dos fatores da derrota dos quilombos, guiando as compreensão do funcionamento da sociedade colonial.
tropas e servindo como soldados. Quase sempre
aderiam aos portugueses por mercenarismo ou espírito
guerreiro próprio de algumas culturas indígenas. Mas as
tribos que se negaram a colaborar com os colonizadores
foram exterminadas. O bandeirante Domingos Jorge

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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2.2 A idade de ouro no Brasil Não demorou para que o ouro de aluvião, ou seja,
aquele encontrado nos leitos dos rios, se esgotasse.
“A sede insaciável do ouro estimulou tantos a deixarem
Para extraí-lo, mineradores com poucos recursos
suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos
precisavam apenas de um pouco de sorte e de rústicos
como são os das minas, que dificultosamente se poderá
instrumentos com as bateias, bacias feitas de madeira
dar conta do número de pessoas que atualmente lá
ou metal. Chamados de faiscadores, esses garimpeiros
estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos
perambulavam pela região, tentando suprir sua
anos por largo tempo, e as correram todas, dizem que
modesta sobrevivência. Os poderosos dispunham de
mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e
vasta mão-de-obra escrava, máquinas hidráulicas para
outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras
lavagem do cascalho e obras de represamento de rios.
em negociar, vendendo e comprando o que se há mister
E os escravos continuavam a ser “as mãos e os pés de
não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos
seus senhores”.
portos do mar.
Descobertas por paulistas, as minas foram, no início, um
Cada ano, vêm nas frotas quantidade de portugueses e
empreendimento desses moradores da capitania de São
de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades,
Vicente. O abastecimento dos garimpos fazia-se pelos
vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos,
caminhos abertos a partir das vilas vicentinas. A
pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se
produção paulista, anteriormente ligada ao consumo
servem. A mistura é de toda a condição de pessoas
local, ampliou-se para atender aos mineiros. Os
homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos,
tropeiros vindos do Sul pousavam na vila de Sorocaba,
nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de
ponto de encontro dos comerciantes e local de venda
diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil
de animais, de onde se dirigiam para as minas.
convento nem casa.”
Em poucos anos, brotaram vilas e cidades na região
André João Antonil, Cultura e opulência no Brasil por
mineradora. O ambiente urbano ali contrastava com o
suas drogas e minas, p.167
das atividades açucareiras: os grandes mineradores
O jesuíta Antonil retratou bem, no início do século XVIII, ostentavam seu poder e riqueza nas cidades. Luxo,
o que as notícias das descobertas de ouro e pedras joias e escravos eram expostos como insígnias de
preciosas no interior da Colônia provocaram na América poder.
portuguesa. A corrida para a região das minas envolveu
milhares de pessoas de todas as capitanias. Vilas e
pequenos povoados ficaram praticamente desabitados. 2.4 A sociedade dos mineradores e o comércio
Cerca de 600 mil portugueses deixaram a Metrópole interno
para se aventurarem no interior do Brasil. A febre do
O mundo da sociedade mineradora era marcado pela
ouro contaminou a população colonial. Com alguns
instabilidade. A descoberta de uma região repleta de
séculos de atraso, os sonhos de riqueza dos
riquezas atraía aventureiros, mas, esgotada a extração
conquistadores estavam se realizando.
de minérios ali, eles se dirigiam a outras partes, em
busca do enriquecimento.
2.3 As regras da exploração A descoberta dos metais fez os preços dos gêneros de
subsistência e dos escravos subirem assustadoramente.
Desde 1702 a Metrópole procurou regulamentar a
A riqueza extraída da terra atraiu mercadorias
distribuição das áreas a serem exploradas. Cada jazida
europeias de luxo. O padrão social dos grupos
era dividida em lotes, denominados datas. O
dominantes era altíssimo e tudo custava muito caro.
descobridor da jazida tinha direito a duas datas e uma
Muitos endividavam-se para sustentar sua posição
era destinada à Coroa. As outras eram sorteadas entre
social sem ter conseguido obter a riqueza suficiente.
os interessados. Aqueles que possuíssem pelo menos
Jogos de azar, prostituição, rivalidades e diversas
doze escravos podiam receber uma inteira. Os demais
práticas ilegais conturbavam o ambiente dessa
tinham de se contentar com lotes menores,
sociedade.
proporcionais ao número de escravos que possuíssem.
Para fazer valerem as regras, impedir o contrabando e A pequena vila de São Sebastião do Rio de Janeiro
recolher os impostos devidos, a Coroa montou seu tornou-se porta de entrada de mercadorias estrangeiras
aparelho administrativo e fiscal, deslocando tropas de para a região mineradora. Em 1763, devido a seu
soldados da Metrópole para a região das minas. desenvolvimento urbano e a proximidade maior com a
capitania das Minas Gerais, tornou-se sede do governo

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

do Estado do Brasil. A Colônia, que nos primeiros Portugal consentia na isenção de barreiras
séculos tivera uma estrutura econômica voltada alfandegárias para os artigos de lã ingleses em troca de
principalmente para o mercado externo, vivia agora uma taxação menor desta em relação aos vinhos
uma realidade mais complexa. Novos interesses portugueses.
surgiam e os conflitos passaram a ser mais constantes.
Apesar de fortalecer um setor da burguesia lusitana, o
tratado selou a sorte dos grupos manufatureiros
portugueses. Carentes de recursos técnicos e de
2.5 A economia do império colonial português
capitais, os comerciantes e produtores de tecidos
Com a entrada do ouro e dos diamantes do Brasil a sofriam agora a concorrência direta da manufatura
economia portuguesa viveu algumas décadas de inglesa. Assim, além de não realizar seu
prosperidade. A aristocracia lusitana entregava-se aos desenvolvimento industrial, Portugal abria a fenda de
prazeres do consumo de artigos de luxo e da escoamento do ouro brasileiro para a economia inglesa.
ostentação. Grandes obras foram erguidas em Portugal,
2.7 UM DESPOTISMO DE APARÊNCIA ILUMINISTA
como o Palácio-Convento de Mafra, de 1.300
dependências, entre salas, quartos e celas conventuais, Uma monarquia esclarecida era o sonho de muitos
que levou mais de trinta anos para ser construído e iluministas: monarcas fortes, que colocassem em
contou com mais de 50 mil trabalhadores para sua prática reformas racionais, eliminaram os controles
conclusão. Os gastos da Coroa e da aristocracia mercantilistas sobre o comércio, permitiram o
geravam um crescente déficit na balança comercial, intercâmbio de ideias e poriam fim à censura aos livros.
equilibrada graças ao ouro brasileiro.
De fato, alguns monarcas do século XVIII instituíram
A Metrópole exercia um controle cada vez maior sobre reformas específicas na educação e no comércio, e
as colônias. Os caminhos das minas eram intensamente combateram o poder do clero. Alguns Estados
vigiados. Apenas aqueles que obtivessem autorização europeus economicamente atrasados, como a Prússia, a
direta da Coroa podiam dedicar-se à procura de Áustria e a Rússia, procuraram agir rapidamente para
diariamente. O comércio e o deslocamento das pessoas alcançar o grau de desenvolvimento da Inglaterra e da
eram controlados. A Coroa procurava impedir, com França.
práticas violentas, o escoamento ilegal das pedras e
Na Prússia, por exemplo, Frederico II, o Grande (1740-
garantir a cobrança da tributação devida.
1786), iniciou uma política de tolerância religiosa que
O aperfeiçoamento do aparelho administrativo colonial, atraiu refugiados protestantes franceses e dissidentes
acompanhado de uma série de medidas fiscais, intelectuais, como Voltaire. Recebendo esses
realizava-se numa conjuntura de aumento acentuado refugiados, Frederico deu a Berlim ma reputação de
do preço dos escravos africanos – para o qual contribuiu centro de cultura iluminista. Mas, por trás dessa
a mineração – e de deslocamento de recursos, mão-de- reputação, havia a realidade do militarismo prussiano e
obra e colonos para a região das minas. Apesar das da servidão de seus camponeses. Voltaire, que foi
oscilações do preço do açúcar no mercado mundial e da usado por Frederico para ganhar reputação de amante
concorrência antilhana, a atividade canavieira ainda do conhecimento, acabou voltando para sua terra,
mantinha sua importância, ao lado do tabaco, no Norte desiludido com esse “despotismo esclarecido ou
e Nordeste. iluminado”.
O problema da mão-de-obra e a cobrança de tributos A expressão despotismo esclarecido, portanto, designa
acabaram por gerar descontentamento e revoltas, que uma estratégia de governo que permitia a Estados
opunham os colonos às autoridades metropolitanas. atrasados se desenvolverem e a seus governantes
propagandearem seus feitos. A ideia desses
governantes era glorificar o Estado e ampliar seus
2.6 A Inglaterra e a economia portuguesa poderes. Se, por um lado, suas reformas
Se, de um lado, a Coroa apertava os laços do controle administrativas, fiscais e militares, com base em rígidas
sobre a Colônia, de outro, abria brechas para a intensa regulamentações, garantiam o enriquecimento do país,
participação de outros Estados europeus em seu através da construção de estradas e canais, da criação
império. A Inglaterra foi a maior beneficiada, com de indústrias, por outro, não alteravam a estrutura
vários acordos que acabaram por vincular a economia arcaica da sociedade. Os camponeses permaneciam na
portuguesa aos interesses britânicos. O mais célebre de servidão ou próximo dela, a burguesia continuava
todos foi o Tratado de Methuen, de 1703, pelo qual excluída do poder, a urbanização pouco se desenvolvia,
enquanto a nobreza ampliava seus privilégios. A adesão

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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à filosofia iluminista não passava de uma aparência. Em ameríndios, de outro, impediam a plena integração
Portugal, o grande representante desse despotismo foi destes na economia colonial.
o Marquês de Pombal.
Além disso, após o Tratado de Madri, em 1750, a região
dos Sete Povos das Missões passara a pertencer aos
domínios lusitanos. Nos anos seguintes, tropas
2.8 As reformas pombalinas
portuguesas e espanholas enfrentaram os indígenas,
Com amplos poderes, Pombal empreendeu uma série que foram auxiliados por jesuítas descontentes com os
de reformas, combinando os princípios mercantilistas termos do tratado. O conflito, conhecido como guerras
com orientações de caráter iluminista. guaraníticas, terminou em 1757, com a destruição das
No Brasil, os mineradores da capitania de Minas tinham missões da região. Os jesuítas foram então acusados de
de pagar uma quota mínima de 100 arrobas de ouro terem interesses particulares na América, contrários
anualmente. Se a quinta parte da produção não aos da Coroa portuguesa. Ainda em 1757, Pombal
atingisse tal volume, os demais moradores deveriam decretou o fim da escravidão dos índios no Maranhão e
arcar com a derrama, ou seja, uma outra taxação que no Grão-Pará, estendendo a medida para o Estado do
deveria completar as 100 arrobas fixadas pelo poder Brasil no ano seguinte. A administração das aldeias
metropolitano e seria cobrada de acordo com as posses passou às autoridades civis. Em 1759, por alvará régio,
de cada habitante. a Sociedade de Jesus foi extinta em Portugal, teve seus
bens confiscados e seus membros expulsos de todos os
Pombal procurou estimular e fortalecer as atividades domínios lusitanos. O império português deixou, assim,
econômicas de setores da burguesia manufatureira e apenas de ser justificado por suas atribuições divinas.
mercantil portuguesa e limitar ao máximo o volume de Não era mais o império de Deus pelos portugueses.
importações da Inglaterra. Novas companhias de
comércio foram criadas na América: Grão-Pará e Apesar de todas essas iniciativas, a modernização
Maranhão, em 1755, e Pernambuco e Paraíba, em 1m pombalina foi capaz de alterar profundamente a sorte
1759. No Norte, a cultura do algodão foi estimulada de seu império. Além das dificuldades internas, o
para atender as manufaturas têxteis inglesas que sistema econômico mundial apresentava mudanças
começavam a desenvolver-se. consideráveis na segunda metade do século XVIII. A
longa transição do feudalismo para o capitalismo estava
Impopulares na Colônia, as novas orientações político- se encerrando em algumas partes da Europa, sobretudo
econômicas provocaram reações também na na Inglaterra, onde a sociedade industrial já começava a
Metrópole. Tratava-se de uma luta política que se despontar. Por isso, mesmo tentando diminuir a
desenrolava no interior do absolutismo português. Para participação dos britânicos no império luso, as ações de
enfrentar a ideologia aristocrática, apegada a seus Pombal não tinham como deter o avanço do Estado que
privilégios e parasitária em relação às atividades possuía a economia mais dinâmica da época, liderada
mercantis e industriais, Pombal realizou reformas no por um poderoso setor têxtil, capaz de lhe assegurar a
ensino e, principalmente, combateu a influência dos hegemonia internacional por mais de cem anos.
jesuítas na sociedade portuguesa. Novos letrados,
denominados pejorativamente pelos grupos Em Portugal, o poder pombalino não resistia à morte do
conservadores de estrangeirados, porque estariam rei d. José I em 1777. Com o reinado de d. Maria I,
influenciados pelas ideias francesas, cercaram a nova conhecida anos mais tarde como Maria, a Louca,
administração. Eram, sem dúvida, indícios de novos setores conservadores promoveram a viradeira,
tempos em Portugal. movimento político que destituiu o primeiro-ministro e
alterou várias de suas medidas político-econômicas

2.9 A extinção da Companhia de Jesus


2.10 CONSPIRAÇÕES E REVOLTAS NA AMÉRICA
Pombal voltou-se contra a Companhia de Jesus, cuja
influência no ensino, na sociedade e na política da Potência hegemônica na Europa, a Inglaterra era a
sociedade portuguesa era imensa na segunda metade vanguarda das transformações industriais e ditava as
do século XVIII. Na América, os jesuítas controlavam novas regras em nome da liberdade de comércio. Ao
vastas áreas e as atividades econômicas de milhares de mesmo tempo, os Estados ibéricos ressentiam-se de
índios em suas missões religiosas. Se, de um lado, eles suas manufaturas medíocres, incapazes de concorrer
eram importantes para impedir o massacre dos com a produção britânica.

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Através de guerras, contrabando e acordos


diplomáticos, a Inglaterra conseguia ampliar seu
comércio com outras metrópoles e respectivas colônias,
submetendo-as a uma dependência estrutural, ou seja,
reservando-lhes o papel de fornecedoras de gêneros
agrícolas e matérias-primas, e de consumidoras de
produtos industriais. Assim, as estruturas agrárias dos
demais Estados e respectivas colônias articulavam-se às
estruturas industriais da potência inglesa, numa nítida
relação de dependência econômica. No limite, a
Inglaterra procuraria estimular a independência das
colônias para consolidá-las como mercados Figura 1 A revolução dos ricos
consumidores, livres das restrições comerciais do pacto A revolução dos ricos
colonial.
Uma denúncia ao visconde de Barbacena, em 1789,
Com a Revolução Industrial, o Antigo Sistema Colonial,
trouxe à tona a Inconfidência Mineira – inicialmente
baseado na exclusividade de trocas mercantis entre
rotulada como movimento de aversão à cobrança alta
colônia e metrópole, surgia como obstáculo para a
de impostos em Minas
expansão do capitalismo.
Foi de uma denúncia feita ao visconde de Barbacena,
Portugal dependia da parceria inglesa para defender
governador de Minas Gerais em 1789, que veio à tona a
seu combalido império ultramarino e tornou-se uma das
Inconfidência Mineira, um movimento de contestação
principais áreas de influência britânica. Dessa forma, as ao governo que administrava a capitania. A acusação,
bases do sistema colonial português foram feita pelo coronel Joaquim Silvério dos Reis, dizia que
gradativamente solapadas até se romperem alguns indivíduos pretendiam organizar um motim
completamente no início do século XIX. contra a derrama – uma cobrança sobre cada cidadão
Testemunhos de viajantes, rumores, notícias e livros da região para completar a quantia mínima de cem
eram agora os pregadores dos princípios liberais, que os arrobas anuais de ouro. Naquele ano, Minas devia aos
antigos poderosos não tardaram a nomear de cofres públicos cerca de 538 arrobas, ou o equivalente a
diabólicos. As incendiárias ideias satânicas, no quase oito toneladas de ouro.
entanto, representavam para muitos o fim das tiranias
Os revoltosos contavam com o temor da cobrança do
cometidas em nome de Deus e o começo de uma nova
quinto atrasado para obter apoio popular. Os sediciosos
época da História. Uma época de questionamentos e alimentavam o desejo de se ver livres das cobranças dos
revoluções. tributos e impostos feitas por Portugal, o que lhes
Nas capitanias de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e garantiria liberdade comercial. Outro motivo de revolta
Pernambuco, o descontentamentos dos colonos era o ódio generalizado aos apadrinhados – pessoas
culminou na contestação do poder metropolitano. que vinham para Minas Gerais, sob a proteção do
Instabilidade das atividades mineradoras, a crescente governador, para administrar cargos públicos – que se
fiscalização e tributação por parte da Coroa portuguesa, aproveitavam de sua posição para se apossar de terras
o desenvolvimento de novos interesses econômicos e rendas dos mineiros.
ligados ao abastecimento interno das regiões
Para diminuir o prejuízo e preservar suas riquezas, os
americanas e as notícias acerca da independência dos
principais fazendeiros, exploradores de ouro e
Estados Unidos e da Revolução Francesa tornaram mais diamantes, criadores de gado, militares, contratadores,
tensa e complexa a vida colonial. Ao contrário de magistrados e eclesiásticos resolveram aderir ao
outros movimentos e rebeliões ocorridos nos séculos movimento. Os inconfidentes, como o poeta Cláudio
anteriores (Revolta de Beckman, Guerra dos Emboaba,
Manuel da Costa, o ouvidor Tomás Antônio Gonzaga e o
Guerra dos Mascates, Revolta de Filipe dos Santos, sem
ouvidor e proprietário de terras Inácio José de
contar os inúmeros conflitos envolvendo os jesuítas), a
Alvarenga Peixoto, eram quase todos escravistas e
Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração do Rio de
constituíam a elite letrada da época. O processo
Janeiro (1794) e a Revolta dos Alfaiates (1798) punham
instaurado também condenou cinco religiosos: o
em causa a subordinação da Colônia ao poder da Coroa
cônego Luís Vieira da Silva, proprietário de uma das
portuguesa, ampliando o horizonte político das revoltas melhores bibliotecas do Brasil, e os padres Carlos
coloniais. Correia de Toledo, José Lopes de Oliveira, Manuel

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Rodrigues da Costa e José da Silva e Oliveira Rolim. Enriquecidos pelas atividades mineradoras no início do
Ainda foram considerados culpados o tenente-coronel século XVIII, os habitantes de Minas Gerais viam-se
Francisco de Paula Freire de Andrada, comandante do agora às voltas com a queda da extração de ouro e
Regimento de Cavalaria e a mais alta patente envolvida pedras preciosas, e as constantes ameaças. Nessa
na Inconfidência, o sargento-mor Luís Vaz de Toledo situação, o confronto era inevitável.
Piza, o comerciante e contratador Domingos de Abreu
Paralelamente, muitos jovens, filhos da aristocracia
Vieira, o cirurgião Salvador Carvalho do Amaral Gurgel,
local foram enviados às universidades européias, onde
os doutores Domingos Vidal de Barbosa Lage e José
tomaram contato com as perigosas ideias ilustradas e
Álvares Maciel e os latifundiários José Aires Gomes e
liberais. Alguns deles retornaram trazendo informações
Francisco Antônio de Oliveira Lopes, entre outros.
sobre a recém-criada república norte-americana.
Onze pessoas foram condenadas à morte, mas dez
Em 1788 a Coroa nomeou Luís Antônio Furtado de
tiveram a pena modificada e foram degredados para a
Mendonça, visconde de Barbacena, para o governo de
África – os réus religiosos ficaram presos em Lisboa. O
Minas Gerais. O novo governador recebeu ordens
alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes,
expressas de estabelecer a derrama: a cobrança das
considerado líder do movimento, foi enforcado, e teve a
100 arrobas anuais devidas à Metrópole, que recairia
cabeça decepada e o corpo esquartejado no Rio de
sobre todos os habitantes da capitania. O anúncio de
Janeiro, em 21 de abril de 1792.
novas medidas acirrou os ânimos e aprofundou a
André Figueiredo Rodrigues é professor das Faculdades insatisfação. Grande parte da elite econômica e
Guarulhos, do Centro Universitário Anhanguera de São intelectual mineira figurava entre os devedores da
Paulo e autor de "A fortuna dos inconfidentes: caminhos Coroa ou estava sendo perseguida por suas vinculações
e descaminhos de bens de conjurados mineiros (1760- com o contrabando praticado na região. Outros setores
1850)" (Globo, 2010) da sociedade também seriam atingidos pelo tributo.
Aproveitando-se desse clima, proprietários de terras e
de minas, letrados e membros da administração
2.11 A Inconfidência Mineira
envolveram-se numa conspiração que pretendia
TEXTO AUXILIAR assassinar o governador e tornar Minas Gerais uma
...” Que estava plenamente provado o crime de lesa- república independente. Além disso, cogitava-se criar
majestade (...) a que premeditadamente concorriam de uma universidade em Vila Rica (seria a primeira nas
se subtraírem da sujeição em que nasceram e que como terras americanas colonizadas por Portugal),
vassalos deviam ter a dita senhora (Dona Maria I), para desenvolver a manufatura (limitada até então pelo
constituírem uma República, por meio de uma formal pacto colonial), libertar os escravos da capitania
rebelião, pela qual assentaram de assassinar ou depor nascidos no Brasil, perdoar as dívidas atrasadas,
General e Ministros, a quem a mesma senhora tinha transferir a capital de Vila Rica para São João Del-Rei e
dado jurisdição e poder de reger e governar os povos da criar uma guarda nacional composta por cidadãos.
Capitania (...) Portanto condenam o réu Joaquim José da Os planos começaram a ser elaborados em uma
Silva Xavier, por alcunha Tiradentes, Alferes que foi da reunião, em dezembro de 1788, na casa de Francisco de
tropa paga da Capitania de Minas, a que com baraço e Paulo Freire de Andrade, comandante militar da
pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da capitania. Os revoltosos marcaram o início da rebelião
forca e nela morra morte natural, para sempre. E que para fevereiro de 1789, quando imaginavam que seria
depois de morto, lhe seja cortada a cabeça e levada a cobrada a derrama. No entanto, nesse entretempo,
Vila Rica, onde em lugar mais público dela, seja pregada diante da insatisfação geral, o governador adiou a
em um poste alto, até que o tempo a consuma e o seu derrama, que foi oficialmente comunicada em 14 de
corpo será dividido em quatro quartos e pregados em março de 1789. Alívio para grande parte dos mineiros,
postas pelo caminho de Minas...” que desse modo escaparam à pesada tributação. Ainda
CASTRO, Therezinha de. História documental do Brasil. assim, um grupo de endividados teria de honrar seus
Rio de Janeiro: Record, 1968, p. 123-124. compromissos. Eram os contratadores, homens que
compravam da Coroa o direito de cobrar alguns
impostos (o dízimo da Igreja e os tributos de
Muito mais que uma luta entre o bem e o mal, a importação) por determinado tempo. Entre esses
Inconfidência Mineira foi a primeira tentativa de figurava Joaquim Silvério dos Reis que, ao saber do
rompimento dos laços com a Metrópole portuguesa. adiamento da derrama, procurou uma outra forma de
aliviar seus débitos. Denunciando seus companheiros

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

no dia 15 de março de 1789, ele esperava ter suas provocou a interrupção temporária do fornecimento de
dívidas perdoadas. algodão produzido no Sul dos Estados Unidos para a
Inglaterra, favorecendo os plantadores luso-brasileiros.
O cultivo da cana-de-açúcar, após décadas de
A devassa
problemas, experimentou uma conjuntura favorável até
O visconde de Barbacena comunicou os fatos do vice- 1830. Sua produção foi ampliada na região do Rio de
rei, Luís de Vasconcelos e Sousa, no Rio de Janeiro, que Janeiro e teve seu vigor retomado em Pernambuco e
instituiu uma devassa para apurá-los. Imediatamente Bahia. Além disso, a lavoura de algodão avançava na
foi preso um dos conspiradores, Joaquim José da Silva capitania pernambucana, enquanto o fumo trazia mais
Xavier, conhecido por Tiradentes, que, além de alferes, prosperidade aos grandes proprietários baianos.
era um espécie de dentista da região. O mais entusiasta Nessas capitanias, no entanto, artesãos e pequenos
propagandista da independência não pertencia à elite comerciantes, cujas atividades econômicas eram limitas
colonial. Em seguida, ocorreram novas prisões e pela sociedade escravista colonial, ressentiam-se da
interrogatórios. Os prisioneiros negaram seu falta de perspectivas de participação política.
envolvimento na conspiração e muitos delataram seus Opulência e miséria continuavam a compor as
companheiros. A 4 de julho, o poeta Cláudio Manuel da características fundamentais da vida colonial.
Costa foi encontrado morto em sua cela. Suicídio,
segundo a versão das autoridades.
2.12 A Revolta dos Alfaiates
Em janeiro de 1790, Tiradentes resolveu assumir
sozinho a iniciativa da rebelião, apresentando-se como Os cuidados exagerados da Coroa com relação a
único líder do movimento. Evidentemente, não era movimentos separatistas não impediram que em 1798 a
verdade. Para a Metrópole, interessava caracterizar o Bahia fosse sacudida por uma verdadeira revolução. A
movimento como insignificante, chefiado por um Revolta dos Alfaiates, como ficou conhecida, iniciou-se
simples alferes inculto. Para a aristocracia mineira, a partir de um núcleo de letrados e oficiais que se
Tiradentes era um excelente bode expiatório, que reunia numa sociedade secreta denominada Cavaleiros
retirava dos poderosos a responsabilidade da da Luz. Os militares Hermógenes Pantoja e José Gomes
conspiração. A hierárquica estrutura do império de Oliveira, o letrado José da Silva Lisboa, o padre
português produziria então um primeiro acordo de Agostinho Gomes, o farmacêutico Ladislau Figueiredo
elites que seria uma das marcas da posterior história Melo, o médico Cipriano Barata, o professor Moniz
brasileira. Por iniciativa da rainha de Portugal, D. Maria Barreto e o senhor de engenho Inácio de Siqueira
I, conhecida como Maria, a Louca, o suposto líder do Bulcão entusiasmados com a leitura de obras da
movimento foi condenado à morte por enforcamento e ilustração, pretendiam proclamar a independência da
teve seu corpo esquartejado e exposto para intimidar a Bahia e adotar o regime republicano.
população. Numa extraordinária festa barroca, em 21
Como forma de realizar seus planos, dedicaram-se a
de abril de 1792, Tiradentes foi executado no Rio de
propagandear suas ideias a outros setores da sociedade
Janeiro. Traidor da monarquia portuguesa, que
baiana: pequenos artesãos, modestos comerciantes,
desejava separar as mãos e os pés coloniais da cabeça
militares de baixo escalão e homens livres pobres. Em
metropolitana, teve em seu corpo a aplicação de uma
virtude do descontentamento daqueles que não
pena exemplar. Para os demais envolvidos, pena de
podiam desfrutar das riquezas produzidas na Colônia e
degredo na África. A Metrópole bania os demônios
que não tinham perspectiva de ascensão social, a
coloniais para o outro lado do Atlântico, pois o sistema
propaganda surtiu efeito. Com frequência, começaram
colonial já não funcionava mais com o purgatório dos
a ocorrer agitações nas ruas de Salvador e, com o
brancos.
tempo, a direção do movimento foi passando da elite
branca para as mãos da população mulata. Liderada
pelos soldados Lucas Dantas e Luís Gonzaga das
Opulência e miséria
Virgens, pelos alfaiates Manuel Faustino dos Santos Lira
A crise vivida nas regiões mineradoras contrastava com e João de Deus, e pelos ourives Luís Pires, à revolta
a situação econômica de outras partes da América tornou-se mais radical.
portuguesa. No Estado do Grão-Pará e Maranhão, a
Em agosto de 1798 panfletos manuscritos foram
produção algodoeira era estimulada pelas necessidades
distribuídos em Salvador em nome do “supremo
crescentes de matéria-prima da indústria têxtil inglesa.
tribunal da democracia baiana”. Neles encontrava-se o
Além disso, a guerra de independência norte-americana
programa político do movimento: independência,

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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república, liberdade de comércio entre as nações, Ao final do século XIX, um representante da nobreza
separação entre Igreja e Estado, e igualdade de direitos italiana produzia uma sentença, evidentemente com
independentemente das diferenças raciais. relação à Itália, mas comparável em astúcia. “É preciso
mudar para que as coisa permaneçam do mesmo
A nítida inspiração nas medidas adotadas na França pós-
modo”.
1791, período em que as investidas dos revolucionários
franceses tornaram-se mais radicais, levou os baianos a Pode-se dizer que a elite branca, proprietária de terras
questionarem a escravidão. Em alguns manifestos e de escravos, possuía um traça característico: a
falava-se na libertação de mulatos e negros, e no fim da extraordinária capacidade de se manter no poder,
escravatura. A satânica ideia de liberdade ameaçava o efetuar algumas mudanças e afastar os grupos sociais
império de Deus por Portugal. subalternos do processo político. Talvez esse
aprendizado tenha se iniciado exatamente ao final do
A circulação dos panfletos chamou a atenção das
século XVIII. A Revolta dos Alfaiates despertou na elite
autoridades da capitania. As suspeitas, que inicialmente
a preocupação com a participação do povo “ignorante e
recaíram sobre o mulato Domingos da Silva Lisboa, um
rude” da sociedade colonial. Afinal de contas, para essa
escriba profissional, logo levaram ao soldado Luís
elite, o poder e a política eram privilégios fundamentais
Gonzaga da Virgens que, sob tortura, foi instigado a
para distingui-los dos demais.
delatar seus companheiros. Os alfaiates João de Deus e
Manuel Faustino decidiram, então libertar Luís Gonzaga O risco de se repetirem no Brasil os acontecimentos do
e iniciar a revolução. No entanto, antes que pudessem Haiti também tornou os colonos poderosos mais
deflagrar a revolta, muitos de seus participantes foram precavidos. Reformas seriam sempre preferíveis a
presos e indiciados numa devassa que envolveu 33 revoluções. Romper os laços com a Metrópole
pessoas: 22 mulatos, 10 brancos e 1 negro. implicava riscos de uma radicalização que poderia levar
ao questionamento da escravidão ou a uma
As punições
democratização do poder. A subordinação à Coroa
Ao contrário da Inconfidência Mineira e da suposta restringia os lucros dos negócios coloniais, mas garantia
Conjuração do Rio de Janeiro, esta não era uma a preservação das estruturas sociais que favoreciam a
conspiração de elite. A maior parte dos prisioneiros era elite tropical.
composta por escravos, artesãos e soldados.
Por outro lado, para Portugal tornara-se vital a
Terminado o processo, as penas seguiram a lógica da
manutenção de suas possessões na América. Com a
sociedade escravista colonial e as punições foram
economia atrelada aos interesses ingleses, a elite
estabelecidas de acordo com a condição social dos
portuguesa conseguia respirar, graças aos rentáveis
envolvidos. Em 1799, foram enforcados, esquartejados
negócios coloniais e ao tráfico de escravos. Nesse
e tiveram as partes de seus corpos expostas os soldados
contexto, acordos entre as elites dos dois lados do
Luís Gonzaga e Lucas Dantas, e os alfaiates João de Deus
Atlântico não eram impossíveis. Afinal, tratava-se de
e Manuel Faustino. O ourives Luís Pires, condenado à
garantir os privilégios sociais e políticos contra os
mesma pena, conseguiu fugir. Dois escravos e cinco
grupos subalternos das colônias e da Metrópole.
mulatos foram chicoteados em praça pública e depois
remetidos à África, banidos das possessões
portuguesas. Apenas quatro integrantes da sociedade
2.13 TRANSFERÊNCIA DA CORTE PARA O BRASIL
secreta Cavaleiros da Luz foram presos. Apesar de
punidas, as pessoas “de mor-qualidade” mereciam a
consideração dos representantes da Coroa portuguesa.
Não seria, então, muito arriscado abandonar uma
monarquia tão “generosa” e “distinta” e se envolver em
aventuras políticas com “arraia miúda”?

O Haiti não é aqui


Algumas décadas após as revoltas coloniais do final do
século XVIII, Joaquim Nabuco, um dos membros mais
destacados da elite brasileira, afirmava> “O problema
das revoluções é que sem os revolucionários não é
possível fazê-las e com eles não é possível governar”.
http://www.infoescola.com/historia/bloqu 1

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Desde o final do século XVIII, alguns letrados do império mais capaz de responder a agressões da França, da
português retomavam uma ideia, esboçada no século Inglaterra e da Espanha e de defender seus domínios
anterior, sobre a mudança da sede da Coroa para a mais ricos.
América. Devido à importância econômica das colônias
americanas e à insegurança reinante na Europa, eles
defendiam uma profunda reforma na estrutura política O que parecia uma proposta de difícil execução
do império, que culminaria com esse deslocamento começou a tornar-se realidade em novembro de 1807,
geográfico do poder monárquico. quando 36 navios deixaram Lisboa transportando
milhares de nobres, funcionários, soldados e toda a
Com o objetivo de deter o processo revolucionário
família real, incluindo a rainha, d. Maria, a louca, e o
francês, que poderiam alastrar-se por toda a Europa,
príncipe d. João, que assumira a regência em 1792
diversos Estados monárquicos (Grã-Bretanha, Espanha,
devido à doença da mãe. Não se tratava de uma imensa
Portugal, Áustria, Holanda, Prússia, Nápoles, Suécia,
excursão em direção às exóticas terras tropicais. A sede
Rússia e principados italianos) envolveram-se em
da monarquia portuguesa estava de mudança para o
guerras contra a França entre 1792 e 1809. Durante
Rio de Janeiro. Apressadamente haviam sido
esse período, a situação política da república francesa
embarcados todo o tesouro real, metade das moedas
tornou-se extremamente instável. A radicalização
em circulação no reino, móveis, roupas e demais
popular, verificada entre 179–94 foram substituídas por
objetos de valor. E até mesmo a biblioteca real, com
governos conservadores, entre 1794 e 1799, até
cerca de 60 mil livros, animais de criação e alimentos
culminar na ascensão de Napoleão Bonaparte,
foram levados para o porto de Lisboa. Uma multidão
imperador francês a partir de 1804. General de grande
indignada assistia ao espetáculo. Seus governantes
prestígio, Napoleão consolidou várias das propostas
fugiam dos exércitos franceses, que estavam às portas
revolucionárias (liberdades individuais, igualdade
da capital portuguesa.
jurídica, propriedade privada, matrimônio civil) ao
mesmo tempo em que organizava uma nova
aristocracia com antigos títulos de nobreza. Após A interiorização da metrópole
diversas vitórias militares, que resultaram na anexação
e controle de grande parte da Europa, o imperador Escoltada por seus aliados ingleses, a corte portuguesa
francês proclamou, em 1806, o Bloqueio Continental, desembarcou no Rio de Janeiro, em 22 de janeiro de
pelo qual todas as nações européias foram proibidas de 1808. A cidade adquiriu o estatuto de capital de todo o
manter qualquer relação mercantil com a Inglaterra. O império lusitano. Com a metrópole ocupada pelas
objetivo era fechar os mercados aos produtos tropas de Napoleão, tornou-se inevitável a abertura dos
industriais ingleses, provocando a desorganização portos brasileiros a outras nações, ou seja, a livre
econômica do Estado rival e sua submissão aos entrada de produtos estrangeiros para a numerosa
interesses franceses. Pressionado pela Inglaterra e pela corte portuguesa instalada na América. Com esse
França, o reino português inclinou-se para os antigos decreto do príncipe d. João, em 28 de janeiro de 1808,
parceiros britânicos. Na Espanha, mesmo com a adesão rompia-se o monopólio metropolitano, cerne do pacto
ao bloqueio, o trono passou a ser ocupado por José colonial. O Brasil, sede da monarquia, praticamente
Bonaparte, irmão do imperador francês. O poderio da deixava de ser colônia e passava a negociar diretamente
França alcançava seu auge. com as nações amigas de Portugal, evidentemente uma
forma pouco sutil de se referir à Inglaterra. Em 1815, o
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro dos negócios do Brasil foi elevado à condição de Reino Unido de
ultramar, propusera em 1798 uma política de Portugal e Algarve, formalizando seu novo estatuto
reconciliação imperial, após as conspirações de Minas, político.
do Rio de Janeiro e da Bahia. O ilustrado conselheiro da
Coroa defendia o estabelecimento de uma federação de Ainda em 1808, centenas de comerciantes ingleses
províncias, incluindo as possessões coloniais, de forma instalaram-se no Rio de Janeiro, interessados no
que todas gozassem das “mesmas honras e privilégios”, promissor comércio brasileiro. Em 1810, mediante o
“afim de que o português nascido nas quatro partes do Tratado de Navegação e Comércio, as mercadorias
mundo se julgue somente português”. Em 1803, importadas da Inglaterra receberam um tratamento
consultado sobre a situação européia, d. Rodrigo especial: pagavam 15% de imposto, contra os 16%
acrescentava: “Portugal não é a melhor parte da cobrados aos comerciantes lusitanos e os 24% aos
monarquia, nem a mais essencial”. Isso significava que demais países. Diante do protesto de seus súditos, a
um poderoso império sediado na América do Sul seria Coroa encontrou uma solução: igualou em 15% o
imposto aplicado sobre os produtos de ingleses e

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
portugueses. O Brasil tornava-se o principal mercado deputados portugueses, os representantes das elites
para a poderosa indústria da Inglaterra. regionais da América, os funcionários e membros da
Corte Real. Em jogo estava à questão: quem conseguiria
exercer a hegemonia política nesse vasto império? De
fora, muito atenta, a poderosa Inglaterra participava
como uma espécie de curinga, que poderia decidir a
partida para qualquer dos participantes. Por outro lado,
os “perigosos” setores populares brasileiros, compostos
por artesãos, pequenos comerciantes, mulatos, homens
livres pobres e escravos, alimentavam que o temor de
que a trama política desembocasse numa péssima
irremediável cartada.
Para a maioria dos deputados portugueses reunidos em
Lisboa, tratava-se de controlar o poder real através da
monarquia constitucional e de reconduzir seus
domínios americanos à condição de colônia. Os
revoltosos não podiam proclamar a república,
simplesmente porque perderiam o controle das
riquezas brasileiras. Em função disso, passaram a exigir
o retorno de d. João VI a Portugal. Tentavam submetê-
http://www.not1.xpg.com.br/periodo-joanino-vinda-da- lo às regras constitucionais e transformá-lo num
familia-real-ao-brasilindependencia-fatores/ símbolo de unidade imperial, sem poderes de fato e a
serviço dos deputados encarregados de elaborar as leis
e de exercer o poder Executivo de todo o império.
2.14 A Revolução do Porto Alguns, mais conciliadores, até admitiam a possibilidade
de manter o Brasil como Reino Unido de Portugal,
Três anos depois, uma nova movimentação expôs a
desde que fosse assegurada a hegemonia portuguesa
instabilidade portuguesa. Em agosto de 1820, na cidade
no império.
do Porto, militares pronunciaram-se publicamente
contra a ausência do rei e sua Corte de Portugal e a
preponderância inglesa nos negócios do império. Até
A elite colonial e a revolução
mesmo o Conselho que governava o reino durante a
ausência era presidido por um marechal inglês, que se A elite colonial vivia uma situação mais complexa. Não
tornara comandante do Exército nacional após a havia nela unidade de interesses, a não ser em torno de
expulsão dos franceses. Em razão disso, o movimento duas questões fundamentais: manter o Brasil como
obteve rápida aceitação. Reino Unido a Portugal, garantindo assim a manutenção
dos privilégios que recebeu a partir de 1808, e afastar o
Seguiram-se deslocamentos de tropas e ajuntamentos
risco de radicalizações populares que pudessem levar à
populares em diversas localidades, entre elas Lisboa. A
perda de seu poder socioeconômico. Liberdade de
economia de Portugal encontrava-se arruinada, não só
comércio com outros países, mas principalmente com a
pela guerra contra a França, mas, principalmente,
Inglaterra, era a palavra de ordem que articulava os
porque sua maior fonte de renda, o comércio colonial,
cerca de setenta representantes brasileiros escolhidos
havia sido drasticamente reduzida com a abertura dos
para participar das Cortes de Lisboa. O medo de
portos brasileiros. Os revoltosos assumiram o governo e
levantes de negros e mulatos, que transformassem o
convocaram eleições para as Cortes, organismo
Brasil num novo Haiti, era o único sentimento de
parlamentar que deveria elaborar uma Constituição e
unidade coletiva. Não havia entusiasmo nacional, até
pôr fim a séculos de absolutismo monárquico. A onda
porque ainda não havia uma nação brasileira. Na
revolucionária chegava finalmente a Portugal com a
verdade, cada deputado representava sua província ou
Revolução Liberal do Porto. A burguesia portuguesa
região, como afirmava com clareza o representante
tentava assumir o controle do reino e do império
paulista Antônio Feijó: “Não somos deputados do Brasil
lusitanos.
porque cada província se governa hoje
A revolução expunha a complexa realidade do império independentemente.”
luso-brasileiro. Na mesa do jogo político revolucionário
havia três grandes grupos de participantes: os

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

As divergências eram muitas. A elite do Centro-sul, que número de deputados brasileiros e portugueses nas
se articulara em torno da Corte de d. João VI, defendia a Cortes (dos cerca de 200 parlamentares, 130 eram da
criação de uma monarquia dual, com o revezamento da Metrópole) e um governo executivo para o Reino do
sede do império entre Lisboa e Rio de Janeiro, como foi Brasil com autonomia em relação a Lisboa. Na verdade,
sustentado pelo paulista José Bonifácio de Andrada e eles pretendiam uma federação de dois reinos
Silva. Para os baianos, a sede deveria ser Salvador, independentes, Brasil e Portugal, com a supremacia
antiga capital do estado do Brasil. Para as províncias do político-econômica para o primeiro.
Norte, Maranhão e Grão-Pará, era preferível o controle
A possibilidade de manter a ex-colônia unida a Portugal
de Lisboa à subordinação ao Rio de Janeiro.
tornava-se cada vez mais difícil. Separação e
independência eram palavras pronunciadas com maior
frequência nos debates parlamentares. Parte dos
Os interesses da realeza
deputados brasileiros recusou-se assinar e a jurar a
Para os membros da Corte instalada no Rio, o objetivo Constituição elaborada em Portugal e regressavam ao
era resistir a quaisquer tentativas de diminuição do Brasil. A ruptura já fora realizada.
poder absolutista. Estabelecido na parte mais rica do
Enquanto os debates se arrastavam em Lisboa, uma
império, o monarca d. João VI tentava ganhar tempo e
composição política surpreendente selou o destino do
desgastar a Revolução Liberal. Até o final de janeiro de
império colonial português e determinou a
1821, o monarca praticamente ignorou as ofensivas de
emancipação política do Brasil. Proprietários de terra e
Lisboa. No seu entender a Metrópole, agora secundária
traficantes de escravos optaram por fazer a
e marginal em termos político-econômicos, acabaria por
independência, única forma de impedir a recolonização.
recuar, mesmo com toda a agitação revolucionária.
Para tanto tiveram em d. Pedro um importante aliado.
No entanto, movimentações populares na Bahia, em O príncipe Regente e a burocracia portuguesa que
fevereiro de 1821, e no Rio de Janeiro, em abril do permanecera no Brasil aderiram à emancipação como
mesmo ano, mostraram que o Brasil estava vulnerável forma de resistir aos novos ventos liberais que
às ideias revolucionárias e que sua atitude corria riscos. sopravam na Metrópole. De comum entre os dois
Era necessário lançar uma nova cartada: controlar as grupos havia a consciência de que preservar a ordem
Cortes e manter uma última base do absolutismo no escravista e a hegemonia política da elite do Centro-sul
Brasil que, com pulso firme, enfrentaria as requeria o fortalecimento do governo sediado no Rio de
radicalizações e ao mesmo tempo faria frente aos Janeiro.
revolucionários da Metrópole. O retorno a Portugal
Tanto para a elite colonial como para a burocracia
tornava-se inevitável, mas não constituía uma derrota
articulada em torno de d. Pedro, reformas eram
completa. No dia 26 de abril, d. João VI deixava o Rio de
preferíveis a revoluções. A transferência da Corte e o
Janeiro, legando a seu filho, d. Pedro, a regência do
enraizamento do Estado português no Centro-sul
Brasil.
permitiram à elite colonial conquistar as reformas
Após a chegada de d. João VI, as Cortes de Lisboa almejadas sem precisar arriscar-se com a luta armada.
passaram a exigir o retorno de d. Pedro a Portugal e o Esse era o requisito fundamental para evitar a
fim de sua regência. O Brasil deveria ser governado por mobilização dos demais setores sociais. Mobilização
comissões de representantes eleitas nas suas várias perigosa, como ensinara a Revolta dos Alfaiates, pois
regiões, denominadas juntas provisórias, subordinadas trazia consigo reivindicações que as classes dominantes
diretamente às Cortes de Lisboa. Procurava-se atrair a não estavam dispostas a atender. Era esse arranjo que a
elite colonial para uma composição política com os Revolução do Porto colocava em perigo e que só a
líderes da revolução portuguesa, ao mesmo tempo em Independência poderia preservar. O enraizamento da
que se tentava enfraquecer o poder do Príncipe Corte na Colônia permitiu que o movimento pela
Regente. A independência emancipação permanecesse restrito aos grupos
A partir de agosto de 1821, começaram a desembarcar dominantes e que o governo do Rio de Janeiro se
em Lisboa os representantes das províncias brasileiras. tornasse a base a partir da qual se estabeleceria um
Pouco a pouco, as divergências foram se manifestando Estado Um mês antes do 7 de setembro, Evaristo da
até intensificarem-se com a chegada da ruidosa Veiga já divulgava sua música Brava gente, que se
bancada paulista, que logo se articulou a outros tornaria o Hino da Independência brasileira e que
deputados mais exaltados, como os baianos Agostinho emocionava os patriotas. Tempos depois, portugueses
Gomes, Cipriano Barata e Lino Coutinho. Os paulistas, divertiam-se com uma paródia que ridicularizava os
além da monarquia dual, defendiam a igualdade do brasileiros: descendentes de macacos, trocaram a

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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bandeira da Cruz de Cristo por uma bandeira com os constitucional, em que pudessem interferir
ramos de tabaco. politicamente. O confronto inicial ocorreu na
Assembleia Constituinte, reunida em maio de 1823 e
A rivalidade entre brasileiros e portugueses não ficou
dissolvida em novembro do mesmo ano por ordem de
restrita a competições poéticas de qualidade duvidosa.
d. Pedro I, antes mesmo de concluídos os trabalhos. Foi
Nas províncias do Grão-Pará, do Maranhão, da Bahia e
um duro golpe contra as pretensões dos representantes
Cisplatina, grupos fiéis ao governo lusitano resistiram à
de todas as províncias brasileiras. No ano seguinte, o
ideia de integrar o nascente Império do Brasil. A região
imperador impunha a primeira Constituição ao Brasil,
amazônica permaneceu ligada a Portugal até agosto de
na qual, além dos poderes Executivo, Legislativo e
1823. Em todos os casos, o reconhecimento do novo
Judiciário, esta presente o Poder Moderador. Por esse
Estado só foi obtido graças a ações militares,
instrumento o monarca controlava as demais
Numa questão, no entanto, os portugueses levavam instituições: nomeava e demitia livremente seus
nítida vantagem sobre seus adversários. A definição ministros e presidentes das províncias, podia dissolver a
dos habitantes do Brasil, que aceitaram d. Pedro I como Câmara dos Deputados, escolhia senadores e juízes, e
seu rei, era no mínimo embaraçosa. O próprio monarca interferia nas atribuições da Justiça. A centralização
era português, como grande parte de seus funcionários político-administrativa completava-se com a
mais próximos. Por aderirem à causa da pátria, subordinação das províncias ao governo central,
quaisquer portugueses deveriam ser considerados portanto sem autonomia.
brasileiros? Ou seriam brasileiros apenas aqueles que
A Constituição consagrava o princípio da exclusão dos
haviam nascido no Brasil? E então o novo Estado teria
grupos subalternos das instâncias decisórias. Assim não
de conceder direitos políticos a índios, negros e
tinham direitos políticos os escravos, os índios, as
mulatos? E seria permitida a escravização de
mulheres e os menores de 25 anos. Restavam os
brasileiros?
homens divididos em cidadãos ativos, que podiam votar
A definição do brasileiro oferecia ainda algumas outras e se candidatar aos cargos eletivos (de vereador,
dificuldades. Por vários séculos, havia baianos, deputado e senador) e cidadão não ativos, que não
cearenses, mineiros, pernambucanos, paulistas e várias tinham o direito de voto nem podiam candidatar-se. O
outras denominações, de acordo com as divisões principal critério para a participação política era a renda
políticas da América portuguesa. O brasileiro era uma anual de cada cidadão. Para votar era preciso
personagem recente, cuja significação não dependia comprovar uma renda de 100 mil-réis; para se
apenas de uma apurada reflexão intelectual. O candidatar a deputado, de 400 mil, e para senador, de
problema era político. A nação não existia, seria criada 800 mil. Não bastava ter nascido no Brasil para ser
a partir das definições jurídicas e imposições sociais de brasileiro. No lugar de uma identidade nacional, a
seus dirigentes. cidadania afirmava a identidade da elite brasileira.
Mesmo assim, o Primeiro Reinado (1822-1831) foi
CAPÍTULO 3 marcado pelas lutas entre as elites regionais e os
partidários de d. Pedro I. Pode-se dizer que havia dois
As definições do Estado nacional grandes partidos no Brasil: o partido brasileiro e o
I REINADO partido português. O primeiro dividia-se entre aqueles
que desejavam maior autonomia política para as
Organizar as bases jurídicas do Brasil era a tarefa a ser províncias – em geral liderados por representantes do
enfrentada pelos grupos que encaminharam a Norte e Nordeste e do Rio Grande do Sul – e aqueles
Independência. Dessa organização surgiria, como que insistiam num maior controle por parte do governo
produto, a definição do cidadão brasileiro, a delimitação central, de maneira a garantir a unidade territorial e a
de território nacional e as regras que deveriam orientar supremacia do Centro-Sul sobre as demais regiões
o convívio social. Todas essas questões diziam respeito brasileiras. O segundo, além das medidas
à construção e afirmação do Estado nacional, processo centralizadoras, não afastava a hipótese de uma
que só estaria concluído em torno de 1850. reunificação do império luso-brasileiro.

As divergências entre d. Pedro e a elite do Centro-Sul Em 1824, favorecendo o anseio do partido português,
não tardaram a se revelar. O jovem monarca pretendia estourou em Portugal um movimento antiliberal, que
fundar na América um novo império absolutista, restabelecia o absolutismo e derrotava a Revolução do
enquanto os proprietários e comerciantes brasileiros Porto. Dois anos depois, faleceu d. João VI, e seu filho
desejavam o estabelecimento de uma monarquia primogênito, o monarca do Brasil, foi aclamado

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

imperador. Pressões portuguesas e brasileiras • CONCORRÊNCIA NORTE-AMERICANA


impediram a coroação de d. Pedro, que abdicou do
• BAIXA TAXA ALFANDEGÁRIA E ALTA TARIFA PARA
trono em favor de sua filha, d. Maria, de apenas 5 anos.
EMPRÉSTIMOS.
Antes desse gesto, o monarca ainda teve forças para
outorgar uma Constituição a Portugal,
significativamente muito semelhante àquela imposta ao
FATORES EXTERNOS:
Brasil, com o Poder Moderador exercendo o controle
sobre os demais poderes. • 1 – QUESTÃO CISPLATINA
PARA FIXAR / A ABDICAÇÃO DE D. PEDRO I • 2 - LUTA SUCESSÓRIA EM PORTUGAL
FATORES INTERNOS:
1 – CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR: A ABDICAÇÃO
• HISTÓRICO REVOLUCIONÁRIO PERNAMBUCANO • 12 DE MARÇO DE 1831 – NOITE DAS GARRAFADAS
• CRISE DO SETOR AÇUCAREIRO • MINISTÉRIO DOS BRASILEIROS
• SEDIMENTAÇÃO DAS IDEIAS LIBERAIS, COMO A • 5 DE ABRIL MINISTÉRIO DOS MARQUESES.
REPÚBLICA, O FEDERALISMO E O FIM DA ESCRAVIDÃO.
• 7 DE ABRIL DE 1831 ABDICAÇÃO
• A JUNTA DEMOCRÁTICA E INDEPENDENTE QUE QUEM GOVERNARÁ O BRASIL?
GOVERNAVA A PROVÍNCIA FOI DESTITUIDA. JOSÉ
BOFIFÁCIO ACHAVA DEMOCRÁTICA E AUTÔNOMO O
GOVERNO DA JUNTA, QUE A SUBSTITUIU POR OUTRA CAPÍTULO 4: PERÍODO REGENCIAL
DE CARÁTER CONSERVADOR.
• A NOMEAÇÃO DA NOVA JUNTA NÃO FOI ACEITA A saída de Dom Pedro I do governo imperial
PELA POLPULAÇÃO, SENDO ASSIM O ANTIGO representou uma nova fase para a história política
GOVERNADOR, PAIS DE ANDRADE FOI MANTIDO NO brasileira. Não tendo condições mínimas para assumir o
CARGO. trono, Dom Pedro II deveria aguardar a sua maioridade
• CIPRIANO BARATA E FREI CANECA APROVEITANDO até alcançar a idade exigida para tornar-se rei. Nesse
DO ESTADO AGITADO DA PROVÍNCIA PASSARAM A meio tempo, os agentes políticos daquela época
EXIGIR O FEDERALISMOE A REPÚBLICA. disputaram o poder entre si no chamado Período
Regencial, que vai de 1831 até 1840.
• 2 DE JULHO PAIS DE ANDRADE PROCLAMAVA A
CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR. Sendo fruto da Constituição de 1824, os grupos
políticos existentes ficavam restritos aos grandes
• CEARÁ, RIO GRANDE DO NORTE, PARAÍBA, proprietários de terra, comerciantes e algumas
ALAGOAS E SERGIPE E PERNAMBUCO ADOTARAM A pequenas parcelas das classes médias urbanas. Em
REPÚBLICA E O FIM DA ESCRAVIDÃO, ESTA ÚLTIMA meio às reuniões e debates que aconteceriam para a
MEDIDA AFASTOU O GRANDES PROPRIETÁRIOS. organização da ordem regencial, temos o aparecimento
• PARA REPRIMIR O MOVIMENTO D. PEDRO PEDIU de três grupos políticos mais importantes: os liberais
EMPRESTADO UM MILHÃO DE LIBRAS DOS INGLESES, moderados, os liberais exaltados e os conservadores.
EM SEGUIDA CONTRATOU MERCENÁRIO PARA Os moderados representavam os setores mais
REPRIMI-LA. conservadores que defendiam irrestritamente o poder
• FREI CANECA E OUTROS FORAM EXECUTADOS monárquico e a manutenção da estrutura política
AUMENTANDO ASSIM A INSATISFAÇÃO AO GOVERNO centralizada.
ABSOLUTISTA DE D. PEDRO I. Já os exaltados acreditavam que a ordem política
deveria ser revisada no sentido de dar maior autonomia
às províncias. Alguns outros integrantes desse mesmo
2 – CRISE ECONÔMICA: grupo chegavam a cogitar a adoção do sistema
• DÍVIDAS ANTERIORES (PORTUGUESA) republicano.

• DOMÍNIO ECONÔMICO INGLÊS. Os restauradores, que acreditavam no retorno de Dom


Pedro I ao poder.
• O AÇÚCAR DE BETERRABA.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
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Com a morte de Dom Pedro I, o cenário político reduziu- mestiços, brancos pobres e indígenas destribalizados
se às agitações dos moderados e exaltados. Mesmo habitavam palafitas sobre os rios e igarapés e eram
sendo transitória, a regência acabou sendo marcada por chamados de cabanos.
vários levantes e rebeliões que evidenciavam a precária
Com a Revolução Liberal do Porto, o governo do Grão-
hegemonia do Estado brasileiro.
Pará obedecia a Lisboa e não ao governo do Rio de
No ano de 1834, tentando aplacar o grande volume de Janeiro. Proclamada a independência, a junta de
revoltas, os liberais conseguiram aprovar o Ato governo permaneceu fiel ao governo de Lisboa. Alguns
Adicional de 1834, que concedia maiores liberdades às liberais radicais como o cônego Batista Campos,
províncias. mobilizaram a população para lutar pela independência.
A junta ficou isolada em Belém, o que facilitou o
Outra medida importante foi o estabelecimento da
domínio pelo mercenário Greenfell, a serviço do
Guarda Nacional, novo destacamento militar que
império. Vencida a junta portuguesa, o povo apoiado
deveria manter a ordem vigente. Sendo controlada e
por parte das tropas exigiu a formação de um governo
integrada por membros da elite, a Guarda Nacional
popular. Greenfell recusou-se e apoiado por parte das
acabou tendo seu poder de fogo monitorado por
tropas exigiu a formação de um governo popular.
grandes proprietários de terra que legitimavam o
Greenfell recusou-se e passou a perseguir aqueles que
desmando e a exclusão social, política e econômica que
haviam lutado para tornar independentes de Portugal e
marcaram tal contexto.
do governo do Rio de Janeiro. Portugueses e
Entre as maiores revoltas da regência podemos destacar partidários da independência foram massacrados pelo
a Cabanagem (PA), a Balaiada (MA), a Revolta dos Malês almirante inglês.
e a Sabinada (BA), e a Guerra dos Farrapos (RS/SC).
Com a partida de Greenfell, o poder em Belém ficou nas
Na maioria dos casos, todos estes eventos denunciavam mãos de políticos conservadores ligados aos
a insatisfação geral para com o desmando e a miséria comerciantes portugueses. Para as massas populares
que tomavam a nação. Vale destacar entre esses do Pará, a independência não alterou em nada a
eventos a participação exclusiva dos escravos na situação. A miséria e as péssimas condições de vida
Revolta dos Malês e o papel das elites locais na eram as mesmas do período anterior à independência.
organização da Guerra dos Farrapos. Em todo o Primeiro Reinado, o Pará foi marcado por
A forte instabilidade do período regencial acabou uma série de levantes populares no interior e em
instigando o desenvolvimento de dois outros Belém. Esses movimentos opunham-se às autoridades
importantes eventos. O primeiro deles foi a aprovação locais e ao poder central. Com o início da regência, as
da Lei Interpretativa do Ato Adicional, de maio de 1840, agitações que atingiram todo o país foram mais
que retirava a autonomia concedida às províncias. Dois intensas no Grão-Pará.
meses depois, os exaltados conseguiram se aproveitar O presidente da província. Lobo de Sousa, tomou várias
dos vários conflitos para que o Golpe da Maioridade medidas repressivas contra os setores populares.
antecedesse a chegada de Dom Pedro II ao poder, Prendia insurretos e fazia recrutamento militar
colocando um fim à Regência. intensivo para as forças armadas, mandando pessoas
incômodas para regiões distantes nas fronteiras. Na
capital e no interior, entre as camadas populares rurais
REVOLTAS DO PERÍODO REGENCIAL e urbanas, preparava-se um levante armado contra o
Cabanagem (1834-1840) governador. Na madrugada de 7 de janeiro de 1834, os
revoltosos tomaram o poder em Belém e fuzilaram o
Ao iniciar-se o século XIX, A Amazônia estava dividida presidente da província e outros membros do governo.
entre duas capitanias: a do Grão-Pará, com sede em
Belém, e a do Rio Negro, subordinada àquela e com Os cabanos formaram um governo chefiado pelo
sede em Barcelos (AM). A capitania do Grão-Pará era a grande proprietário rural Clemente Malcher, que jurou
mais desenvolvida. Sua economia baseava-se no lealdade ao império, dizendo que ficaria no poder
extrativismo das drogas do sertão e de madeira. Alguns apenas até a maioridade do imperador.
latifúndios no interior que produziam cacau e arroz Logo começaram as divergências entre o governador e
utilizavam basicamente a mão-de-obra de indígenas os cabanos mais radicais, que queriam reformas sociais,
aldeados. O número de escravos negros era pequeno. tais como: fim da escravidão; melhoria de condições de
Os comerciantes portugueses controlavam o comércio e vida das camadas populares; distribuição de terras.
a economia local. Uma grande população miserável de Como grande proprietário, Malcher não podia aceitar o

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

extremismo do ex-parceiros. O governador chegou O Rio Grande, por sua forma específica de ocupação
mesmo a pedir ajuda à esquadra do império para conter baseada na apropriação militar da terra e por ser uma
as agitações dos radicais. Os cabanos radicalizaram. zona de fronteira, tinha uma forte presença política dos
Depuseram e executaram o governador, a 19 de militares. Por isso, o Partido Liberal Moderado, que
fevereiro de 1834. O novo presidente da província dominava a regência, era muito fraco no Sul. Os dois
passou a ser Francisco Vinagre. A radicalização dos partidos fortes eram o Liberal Exaltado e o Restaurador.
cabanos assustou as classes dominantes da região, Devido a sua peculiar situação de grandes proprietários,
principalmente os grandes comerciantes de Belém, que senhores de terras, gado e escravos, e militares
pediram ajuda ao governo central. As novas tropas envolvidos nas guerras platinas, os estancieiros do Rio
enviadas á província derrotaram os revoltosos na capital Grande gozavam de certa autonomia, permitida pelo
e os obrigaram a se retirar para o interior, onde poder central desde os tempos coloniais. Tinham
conseguiram levantar as massas rurais e marchar para a tropas particulares, formadas pelos peões gaúchos.
capital, retomando o poder. “Gaúcho”, na época, era um termo de conotação
pejorativa. Referia-se ao mameluco, mestiço de branco
O jovem líder radical Eduardo Angelim assumiu o
e índio, que vivia, como se dizia, sem ordem, sem
governo e proclamou a república, separando-a do resto
destino, sem moral social, e prestava serviço aos
do império. Em abril de 1836, novas tropas do governo
estancieiros.
central desembarcaram em Belém. Derrotados na
capital, os cabanos retiraram-se para o interior, onde Os presidentes de província, nomeados pelo governo
não puderam oferecer resistência às tropas do governo, central, eram pessoas desconhecidas, sem ligações e
infinitamente superiores. Os cabanos foram amigos na região. Escolhiam uma facção da oligarquia
massacrados, mas até 1840 ainda se manifestavam local para se aliar e nomeavam seus partidários para os
esporadicamente na região, em movimentos isolados e cargos públicos, esquecendo-se das outras facções, o
sem importância. A partir de então, com o fim da que gerava ressentimentos.
regência, e com a repressão aos revoltosos, a região foi
O Ato Adicional de 1834, ao aumentar a autonomia das
totalmente “pacificada”.
províncias, não resolveu os conflitos entre as
A Cabanagem foi a mais importante revolta do império, oligarquias do Sul e o governo central. Quando se
pois foi a única em que as camadas populares reuniu a primeira assembléia provincial, o presidente da
conseguiram tomar o poder e mantê-lo de forma província acusou o estancieiro e militar Bento
estável por algum período. Não foi apenas uma revolta Gonçalves de ter ideias republicanas e ligações com
política contra os governos impostos pelo poder central, caudilhos (grandes proprietários e chefes militares)
mas uma verdadeira revolução social, na qual as platinos. Bento Gonçalves era realmente estancieiro no
camadas populares ousaram levantar-se contra as Uruguai e no Rio Grande do Sul. Era um usurpador de
classes dominantes regionais. terras e contrabandista de gado, o que não significava
desmerecimento, pois todos os homens da sua classe
social utilizavam-se dessas práticas. Boa parte dos
Revolução Farroupilha (1835-1845) estancieiros gaúchos tinham interesses econômicos no
O governo regencial dava mais atenção às províncias do Uruguai.
Sudeste, onde estava se desenvolvendo a economia Depois do incidente entre Bento Gonçalves e o
cafeeira, e abandonava as regiões de economia presidente da província, a 20 de setembro de 1835, as
marginal, como o Rio Grande do sul, onde se tropas dos estancieiros invadiram Porto Alegre e
desenvolviam os criatórios de gado. A província estava depuseram o presidente. Não se tratava de separação,
abandonada administrativamente pelos presidentes pois os interesses dos grandes proprietários sulistas não
nomeados pelo governo central, pagava altas taxas e permitiam tal posição. Eles dependiam do mercado
impostos sobre a sua principal riqueza, o charque. O interno brasileiro para a colocação do seu charque.
charque não tinha proteção alfandegária contra a Queriam a possibilidade de nomear o presidente
concorrência do produto platino nos mercados do provincial e o atendimento de interesses econômicos
Sudeste. O governo regencial, com o intuito de pelo governo regencial. Caso contrário, poderiam optar
baratear a alimentação dos escravos pertencentes aos pela separação. O governo de Feijó levou a repressão
fazendeiros do café no Sudeste, preferia a importação em banho-maria, procurando acertar suas diferenças
do charque platino, mais barato que o rio-grandense. O com o Sul. Bento Gonçalves, derrotado em uma
produto do Rio Grande do Sul ficava sem colocação no batalha, foi preso na Bahia. Durante sua prisão, foi
mercado interno brasileiro. nomeado presidente da nova república rio-grandense.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
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Com o apoio da Maçonaria e, como diziam as más o presidente de sua província, a garantia de suas
línguas, também com o apoio do regente Feijó, fugiu da propriedades e bens, e a possibilidade, se quisessem, de
prisão. ocupar no exército imperial os mesmos cargos que
ocupavam no exército revoltoso. O governo imperial
O novo regente conservador Araújo Lima começou a
também pagaria todas as despesas da república rio-
intensificar a repressão. De 1835 a 1839 houve um
grandense, daria proteção alfandegária ao charque do
avanço das tropas farroupilhas. David Canabarro e o
Sul e reconheceria a liberdade dos escravos que haviam
mercenário e corsário italiano Garibaldi, que lutava em
lutado na revolta. No dia 28 de fevereiro de 1845, os
troca de participação nas presas de guerra (objetos
farroupilhas, bastante desgastados, assinaram sua
tomados aos adversários), ao lado dos farroupilhas,
rendição.
tomaram Santa Catarina e fundaram a República
Juliana.
A conquista de Santa Catarina estava relacionada com Sabinada (1837-1838)
as necessidades da economia charqueadora gaúcha.
Do final do século XVIII até depois da independência, a
Tendo perdido os mercados do Sudeste, precisava
Bahia foi palco de uma série de insurreições escravas,
dominá-los em Santa Catarina e, talvez, em outras
lideradas pelos muçulmanos hauçás. Essas insurreições
regiões.
assustavam os aristocratas de Salvador e do Recôncavo,
A Revolução Farroupilha foi organizada e dirigida pelas e se estenderam até 1835, no período regencial,
classes dominantes do Sul, composta de grandes quando ocorreu a chamada Revolta dos Malês, na qual
proprietários rurais criadores de gado, charqueadores e lutaram mais de 1500 negros.
comerciantes. As massas de peões gaúchos que
A resistência portuguesa à independência foi muito
participavam das tropas lutavam porque pertenciam às
forte na Bahia. Os comerciantes portugueses eram
tropas privadas dos grandes proprietários rurais. Não
numerosos em Salvador, e o general Madeira de Melo,
se falava em reforma agrária, em transformações sociais
comandante português, havia recebido apoio de tropas
ou no fim da sociedade latifundiária e escravocrata.
vindas de Portugal e mesmo de tropas expulsas do Rio
Os homens que lideraram a revolta eram liberais. de Janeiro. Os senhores de engenho receavam iniciar
Fundaram repúblicas federalistas, com grande uma luta contra os portugueses, temendo uma
autonomia municipal e a divisão dos poderes. insurreição de escravos. Os liberais radicais formaram
Defendiam as liberdades individuais, falavam em um exército popular, indisciplinado, anarquizado, para
soberania dos povos, em garantir a vida, a liberdade e a lutar contra os portugueses. O governo do Rio de
propriedade dos cidadãos. Mas eram considerados Janeiro enviou o mercenário Labatut para liderar o
cidadãos apenas os homens livres e proprietários. O exército brasileiro. As disputas entre Labatut e os
movimento era elitista, pois manteve-se o voto senhores de engenho, além das reprimendas e
censitário e legitimou-se a escravidão. Mesmo quando rivalidades entre o oficial francês e os oficiais
libertaram alguns escravos, os revolucionários o fizeram brasileiros, enfraqueciam o exército brasileiro. Labatut
por necessidades bélicas, ou seja, para que os cativos fuzilava soldados e oficiais brasileiros e prometia
pudessem servir como soldados. liberdade aos escravos que lutassem contra os
portugueses, o que aumentava os temores dos
Livres das outras revoltas regionais, as tropas do
aristocratas baianos. A violência e as atrocidades do
Segundo Reinado (1840-1889) puderam lançar-se
general Madeira de Melo acendiam o antilusitanismo
contra os farroupilhas. As tropas eram comandadas
dos baianos.
pelo futuro Duque de Caxias, que tinha parentes
envolvidos na revolta. Não havia diferenças profundas Com a expulsão dos portugueses, os líderes da Bahia
entre os farrapos e as forças do império. Tratava-se entraram em conflito com Labatut, que foi retirado do
apenas de uma luta de oligarquias regionais e comando na Bahia. Também se opuseram às novas
periféricas contra imposições e dominações das autoridades nomeadas pelo governo do Rio de Janeiro,
oligarquias centrais. Depois de dez anos de lutas, ainda muitas de nacionalidade portuguesa. Na Bahia, uma
era possível o acordo, pois não se tratava de miseráveis série de rebeliões nativistas e federalistas ocorreram
e “bárbaros” cabanos. Era uma luta entre homens de concomitantemente com as insurreições de escravos de
bens, necessários ao império – que se preparava para a Salvador e do Recôncavo. A primeira metade do século
guerra contra Rosas, o unificador da Argentina. XIX na Bahia foi assolada por uma série de agitações,
que tinham como participantes diversos setores sociais.
Caxias propôs anistia e liberdade para todos os
revoltosos. Ofereceu ainda o direito de eles escolherem

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Em 1837, vários setores sociais baianos reclamavam que formada de escravos negros, negros libertos e mestiços
a província estava empobrecida, humilhada e era dominada e humilhada pela elite branca – dividida
sacrificada pelo governo do Rio de Janeiro, que, em partidários de Portugal e republicanos. Quase não
segundo os insatisfeitos, consumia os seus recursos e os havia defensores do império de dom Pedro I.
gastava mal. Tropas baianas estavam sendo enviadas
As elites da província dividiam-se em duas tendências
para o Sul, a fim de combater a Revolução Farroupilha.
políticas. Os liberais exaltados eram conhecidos como
Líderes liberais se opunham a isso e pregavam a defesa
“bem-te-vis”, nome de seu jornal. Os conservadores
dos farrapos. Falava-se em separar a Bahia do resto do
eram conhecidos como “cabanos”, nome pejorativo no
império e criar uma república federativa como a dos
Maranhão. Os dois grupos disputavam pelas armas o
Estados Unidos da América. A Maçonaria e os militares
poder na província. Os soldados dos dois
preparavam uma insurreição que iria eclodir no dia em
agrupamentos políticos eram as massas populares. Os
que as tropas fossem removidas para o Rio Grande do
vencedores dedicavam-se a perseguir os adversários
Sul.
com violência e humilhações. Os crimes políticos
A motivação da revolta baiana foi a mesma de todas as ficavam impunes e davam origem a outros crimes.
revoltas regenciais: a luta das províncias contra o
Aproveitando-se da instabilidade política, milhares de
governo central e a negação da autoridade central e dos
negros escravos fugiam e aquilombavam-se, dedicando-
presidentes impostos aos governos provinciais. Houve
se ao saque das fazendas. Os negros e mulatos livres,
também motivações especificamente baianas, como a
chamados de “sertanejos”, ocupavam-se das funções
exploração que pequenos déspotas rurais impunham às
mais humildes: boiadeiros, trabalhadores agrícolas,
camadas médias e aos setores populares.
barqueiros. Em o grosso da tropa nas lutas pela
A 7 de setembro de 1837 teve início a Sabinada. A independência e, depois nos combates entre as facções
denominação deriva do nome do seu líder, o cirurgião políticas. Esses grupo expressava seu
Francisco Sabino da Rocha Vieira. Os revoltosos descontentamento de uma forma primária, dedicando-
proclamaram uma república provisória que duraria até a se a atos de vandalismo. As guerras e guerrilhas de que
maioridade de dom Pedro II. Não tinham a intenção de haviam participado serviram-lhes de escola para
separar-se do império brasileiro. qualquer ato de desespero ou ajuste de contas.
A repressão do governo regencial contou com o apoio No dia 13 de dezembro de 1838, o mulato Raimundo
dos grandes proprietários rurais. O povo da capital, em Rodrigues e alguns companheiros atacaram a cadeia da
armas, resistiu tenazmente às tropas enviadas pelo vila de Manga. O objetivo era libertar o irmão de
governo central. Salvador tornou-se uma imensa Rodrigues, acusado de assassinato.
fogueira e as tropas imperiais avançavam passando
Deixados livres pelo mulato, os soldados aderiram aos
sobre cadáveres. Mais de 2.000 pessoas morreram;
atacantes. Por todos os lugares que a coluna passava
mais de 3.000 foram presas e os seis principais líderes
em sua fuga das autoridades provinciais, havia novas
foram condenados à morte. Mais tarde, a pena foi
adesões de mulatos e negros sertanejos e negros
comutada em degredo no interior do país.
aquilombados. Era uma explosão de velhas queixas,
amarguras, ressentimentos, desencantos e dificuldades,
até então contidos. O mulato Francisco dos Anjos
Balaiada (1838-1841)
Ferreira, artesão que fabricava balaios e que acabou
Na época da independência, a economia maranhense por dar nome ao movimento, aderiu à revolta para
era controlada pelos portugueses ou pessoas a eles vingar o estupro de sua filha por um capitão branco. A
ligadas, já que era comum o casamento entre partir do momento em que se integrou ao movimento,
portugueses e membros das elites locais. A junta de Francisco dos Anjos jurou vingança a todos os que não
governo que estava no poder manteve-se fiel a Lisboa. fossem de sua cor e condição social. Nenhum dos
Os liberais radicais formaram tropas favoráveis à participantes era politizado e nenhuma das facções
independência, mas, devido à força dos interesses reais, políticas estava por trás do movimento. Eram os grupos
o Maranhão só foi incorporado ao império com a ajuda humildes da província que haviam pego em armas.
de tropas do governo central, lideradas pelo mercenário Praticaram inúmeras atrocidades, como eliminar todos
Greenfell. os brancos de algumas vilas. O outro lado respondia
Após a independência, nada mudou no Maranhão. A com igual violência.
economia continuou dominada pelos portugueses e O movimento crescia rapidamente. Em pouco tempo,
seus aliados. A imensa população trabalhadora dominava toda a parte ocidental da província. Depois

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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de inúmeros saques e atrocidades, os balaios Desde 1834, propostas de antecipação da maioridade já
compreenderam que havia chegado a hora de definir haviam sido enunciadas, procurando alterar a legislação
seus objetivos políticos. Organizaram um conselho segundo a qual somente aos 18 anos D. Pedro II estaria
militar e uma junta provisória de governo na cidade de apto a governar. Nos bastidores, estava uma reação à
Caxias. Enviaram embaixadores para tratar da paz com hegemonia dos políticos identificados com o Partido
as autoridades provinciais e, para pôr fim à luta, fizeram Conservador no governo imperial, que reviram diversas
uma série de exigências: anistia para todos os rebeldes, medidas implementadas pelos liberais, provocando
julgamento dos presos segundo a lei, revogação da lei uma articulação desse grupo alijado do poder para
que organizara a Guarda Nacional, manutenção dos retomar cargos, prestígio e posições.
postos militares pelos revoltosos, pagamento dos soldos
A manobra para colocar d. Pedro II no trono foi a
das tropas rebeldes, expulsão dos portugueses natos e
solução encontrada, e contou com a contribuição vinda
restrição dos direitos dos naturalizados.
dos bastidores da Corte, de um grupo que ficaria
Não houve acordo, e a luta prosseguiu com conhecido como "facção áulica". Nas atas do Clube da
ferocidade. No parlamento do império, discutia-se o Maioridade já se mencionava a necessidade da ajuda de
que estava ocorrendo na província. O governo "alguém do alto, próximo ao imperador': Esse alguém
regencial percebia a gravidade da situação. Não se era Aureliano de Sousa Coutinho (1800-1855), singular
tratava apenas das costumeiras lutas entre facções das personalidade política, que não demonstrava nenhuma
elites; era um movimento social, de camadas populares, vinculação partidária.
que ameaçava as elites. O combate não poderia ser
Os áulicos, que apoiaram a Maioridade, reuniam-se no
deixado apenas a cargo das autoridades provinciais.
Clube da Joana, residência do mordomo-mor Paulo
Tropas do governo central foram enviadas, sob o
Barbosa. Aureliano, líder do grupo, era muito íntimo de
comando de Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque
d. Pedro II e havia sido o responsável pelo afastamento
de Caxias. Muitos líderes balaios foram presos ou
de José Bonifácio da tutoria, em 1833, colocando no
mortos. Os balaios pareciam ter sido exterminados,
Paço apenas pessoas de sua confiança: como tutor frei
mas eles continuaram resistindo nos sertões até 1840.
Pedro Santa Maria e como camareira sua irmã Maria
A anistia ampla concedida por ocasião da maioridade de
Verna Magalhães Coutinho. Os relatos deixados sobre
dom Pedro II acabou com o movimento. Essa luta, que
os áulicos não deixam dúvidas quanto à sua importância
era a das mais humildes camadas da população,
para o sucesso do golpe.
assustou as autoridades do governo central e contribuiu
para apressar o regresso conservador que já estava em .Julio Bentivoglioé professor na Universidade Federal de
marcha. Goiás (LFG-Cmnpus de Catalão) e autor da tese de
doutorado em História Económica O império das
circunstâncias: o Código Comercial e a política
Capítulo 5: A organização do Estado Monárquico econômica brasileira (1840-1860), defendida na USP em
2002.
II REINADO

5.1O CAFÉ É O PROGRESSO


Mauá e o início da Modernização no Brasil
O GOLPE DA MAIORIDADE
Em 22 de julho de 1840, Antônio Carlos de
Andrada e Silva, irmão de José Bonifácio, liberal e Em meados do século XIX o Brasil apresentava alguns
presidente do recém-fundado Clube da Maioridade, foi avanços sócio-econômicos, como o movimento
até o Paço perguntar ao jovem imperador, de apenas 14 abolicionista e o crescimento de atividades urbanas,
anos, se ele desejava assumir o governo. D. Pedro 11 destacando-se as atividades do Barão de Mauá.
respondeu: "Quero já". A vontade manifesta do jovem
INTRODUÇÃO
monarca, habilmente urdida por influentes súditos a
favor da maioridade, chamados maioristas, juntava-se a Em meados do século XIX, enquanto os países
manifestações de apoio de senadores, deputados e capitalistas desenvolvidos viviam o contexto da
encontrava eco na imprensa e na população do Rio de Segunda Revolução Industrial, o Brasil apresentava
Janeiro. Alimentava-se em um sentimento comum, de alguns avanços sócio-econômicos, responsáveis pela
que somente a subida de D.Pedro II ao trono poria fim à transição da monarquia para república. O processo
crise que assolava o Império.

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

abolicionista e o crescimento de atividades urbanas, companhias de navegação a vapor no Amazonas e no


tornavam o regime monárquico cada vez mais obsoleto. Rio Grande do Sul.
O café, base de nossa economia, ao mesmo tempo em Seu pioneirismo, também esteve presente na fundação
que preservava aspectos do passado colonial de uma companhia de gás para iluminação das ruas do
(latifúndio, monocultura e escravismo), tornava nossa Rio de Janeiro, e no setor de comunicação, com a
realidade mais dinâmica, estimulando a construção de introdução do primeiro cabo de telégrafo submarino
ferrovias e portos, além de criar condições favoráveis entre o Brasil e a Europa. Destaca-se por fim, o Banco
para o crescimento outros empreendimentos como Mauá, Mac Gregor & Cia. com filiais nos Estados
bancos, atividades ligadas ao comércio interno e uma Unidos, França e Inglaterra.
série de iniciativas empresariais. A aprovação da tarifa
Alves Branco, que majorou as taxas alfandegárias, e da
lei Eusébio de Queirós, que em 1850 aboliu o tráfico OS OBSTÁCULOS E A FALÊNCIA
negreiro liberando capitais para outras atividades, Apesar de um início que parecia promissor, a “era
estimularam ainda mais os negócios urbanos no Brasil, Mauá” não conseguiu durar muito tempo. Suas
que já contava com 62 empresas industriais, 14 bancos, iniciativas modernizadoras, encontravam um forte
8 estradas de ferro, 3 caixas econômicas, além de revés na manutenção da estrutura colonial agro-
companhias de navegação a vapor, seguros, gás e exportadora e escravista e na concorrência com
transporte urbano. Nesse verdadeiro surto de empreendimentos estrangeiros, principalmente
desenvolvimento, destaca-se a figura de Irineu ingleses. Esses, inescrupulosos pelo lucro, não mediam
Evangelista de Souza, o Barão e Visconde de Mauá, esforços, praticando as mais violentas sabotagens
principal representante do incipiente empresariado contra o empresário brasileiro, como o incêndio
brasileiro, que atuou nos mais diversos setores da provocado que destruiu a Ponta de Areia em 1857.
economia urbana. Outro fator que contribuiu para impedir a consolidação
das iniciativas de Mauá, foi a reformulação da tarifa
Alves Branco pela tarifa Silva Ferraz em 1860, que
5.2EMPRESÁRIO MAUÁ
reduziu as tarifas alfandegárias para máquinas,
Nascido em Arroio Grande (Rio Grande do Sul) em 1813, ferramentas e ferragens, favorecendo os interesses do
pobre e órfão de pai, Mauá viajou com um tio para o capital estrangeiro.
Rio de Janeiro, onde conseguiu seu primeiro emprego
Para os setores mais conservadores do governo, o
como caixeiro de um estabelecimento comercial. Suas
vanguardismo empresarial de Mauá associado ao seu
iniciativas começam a se destacar nos anos 40, após a
posicionamento liberal e abolicionista, era visto como
volta de uma viagem à Inglaterra, o país masi
uma ameaça. Sua posição contrária à Guerra do
industrializado do mundo. Já em 1946, Mauá adquire
Paraguai (1864-1870), criou mais inimizades no
um estabelecimento industrial na Ponta de Areia (Rio de
governo. Abandonado pelo próprio imperador, Mauá
Janeiro), onde foram desenvolvidas várias atividades,
vê-se obrigado cada vez mais a se associar com os
como tubos para encanamentos d’água, caldeiras para
empresários britânicos, resultando na falência ou venda
máquinas a vapor, guindastes, prensas, engenhos de
de suas empresas por preços reduzidos.
açúcar, além da construção naval que era o carro chefe
desse complexo. Em apenas um ano de funcionamento,
a Ponta de Areia já contava com cerca de mil operários. 5.3 .TRANSIÇÃO PARA REPÚBLICA
No setor dos serviços públicos, não foram poucas as Não resta dúvida de que a manutenção de
iniciativas de Mauá. Em 1854 era inaugurada a primeira características coloniais, com base no latifúndio
estrada de ferro brasileira. Com seus vagões puxados monocultor escravista, representavam um sério
pela locomotiva Baronesa, fazia um trajeto de 18 Km, obstáculo para o progresso urbano-industrial. O
entre a serra de Petrópolis e o Rio de Janeiro. crescimento do processo abolicionista e o
Juntamente com capitalistas ingleses, o barão também fortalecimento da nova oligarquia não-escravista do
participou da construção da segunda e terceira oeste paulista, trabalhavam em detrimento do regime
ferrovias, a Recife and São Francisco Railway Company e monárquico e dos interesses a oligarquia escravista.
a Dom Pedro II, mais conhecida como Central do Brasil,
além de ter conseguido os empréstimos necessários O antagonismo do novo (urbano-industrial e
para construção da São Paulo Railway, a Santos-Jundiaí. abolicionista) com o arcaico (agro-exportador e
Ainda na área de transportes, Mauá organizou escravista), associado a outras questões estruturais,

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
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como as restrições que a igreja e o exército passam a No entanto, a dívida reduzia os rendimentos dos imi-
fazer ao centralismo monárquico, determinam a grantes, que logo se revoltaram na fazenda de Ibicaba,
passagem da monarquia para república, através de um entre 1856 e 1857, protestando contra as formas de
golpe de Estado, articulado pela aristocracia rural e pelo cálculo de suas dívidas e o valor de seus rendimentos. O
exército no dia 15 de novembro de 1889. líder dos imigrantes, Thomas Davatz, acabaria expulso
juntamente com outros trabalhadores livres.
Para finalizar esse momento histórico, vale destacar o
apoio (meramente circunstancial) da oligarquia O fracasso do sistema de parceria decorria princi-
tradicional escravista ao movimento republicano. Essa palmente do padrão escravista nas relações de trabalho
aparente contradição, deve-se ao fato do regime no Brasil. As dívidas contraídas eram o principal meio de
monárquico ter abolido a escravidão sem indenização que os fazendeiros dispunham para obrigar seus
para os proprietários de escravos, que percebendo a trabalhadores a executarem suas tarefas. No entanto,
inevitável morte da monarquia, ingressaram de maneira ao contrário do que ocorria na Europa, na época, e no
oportunista no movimento republicano, visando Bra sil de hoje, os proprietários não poderiam
participar do novo governo e garantir seus privilégios de simplesmente despedir um trabalhador que
classe. Nesse sentido, não por acaso, a primeira fase da considerassem inconveniente ou preguiçoso e trocá-lo
república no Brasil (República Velha) é historicamente por outro disponível no mercado. Não havia uma
dividida em “República da Espada” e “República das reserva de mão-de-obra livre no país que se dispusesse
Oligarquias. a executar as "tarefas de negros escravos". O
investimento inicial nos imigrantes, que se dispunham a
Em 1847, o senador liberal Nicolau de CamposVergueiro
atravessar o Atlântico e a se dedicar aos trabalhos
dava início a uma experiência de substituição de
manuais, deveria ser recuperado através da
escravos por homens livres. Custeando a viagem de
produtividade dos próprios imigrantes. O cumprimento
imigrantes alemães e suíços para suas fazendas em São
dos contratos, que acarretava uma limitação da liber-
Paulo, Vergueiro introduzia o contrato de parceria,
dade desses trabalhadores, e a dificuldade de saldar as
através do qual os trabalhadores tornavam-se "sócios"
dívidas os desmotivava. Ao contrário do que faziam com
da produção cafeeira de suas propriedades. Aparente-
os escravos, os fazendeiros não podiam usar a força e a
mente o negócio era vantajoso para os trabalhadores:
violência para obrigá-los a trabalhar.
tinham a viagem marítima e o transporte de Santos até
a fazenda financiados; recebiam mantimentos e
instrumentos para o trabalho, um número determinado
5.4 A transição para o trabalho livre
de pés de café para o plantio, acompanhamento e
colheita, um pequeno pedaço de terra para o cultivo de Em 1850, ao mesmo tempo em que ocorriam as ex-
géneros alimentícios e uma casa rústica para sua periências de parceria, o Estado nacional anunciava
moradia; em troca, deviam dar ao proprietário metade duas medidas de forte impacto: o fim do tráfico
da produção de seus pés de café e não podiam deixar a negreiro e a Lei de Terras.
fazenda até reembolsar todos os gastos assumidos pelo O fim do tráfico não representou o encerramento da
fazendeiro. escravidão: navios negreiros continuaram a descar
Na verdade, o trabalhador já iniciava sua jornada no regar, clandestinamente, contingentes de escravos em
Brasil completamente endividado. Durante quatro portos brasileiros, ainda que em escala bem mais re-
anostempo médio para a primeira colheita de um pé de duzida; o comércio interno de cativos acabou sendo
café desde o seu plantio — o imigrante aumentava seu incentivado e um grande número deles vinha das pro-
débito, sobre o qual eram cobrados juros, podendo con- víncias do Nordeste para trabalhar nas rentáveis fa-
tar apenas com a sua plantação de géneros alimentícios. zendas de café do Centro-Sul. A venda de escravos
passou a ser uma alternativa para algumas regiões bra-
Apesar de imitada por alguns fazendeiros de São Paulo,
sileiras economicamente enfraquecidas.
a experiência de Vergueiro não trouxe os resultados
esperados. Mesmo assim, em 1855, havia cerca de A Lei de Terras proibia a ocupação e a doação de terras.
3.500 imigrantes trabalhando em 30 fazendas da pro- Estas só poderiam ser adquiridas por compra. Com isso,
víncia. Na maioria das vezes o trabalho livre coexistia os imigrantes que viessem ao Brasil pobres em sua
com a escravidão, embora os fazendeiros tenham esta- esmagadora maioria, os ex-escravos e os homens livres
belecido desde o início uma certa divisão técnica das brasileiros não teriam acesso à base da agricultura e,
tarefas. O preparo do solo para a plantação de novos portanto, seriam forçados a trabalhar nas propriedades
pés de café e de alimentos para o consumo da fazenda já existentes.
continuava a ser realizado por escravos.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

• As duas medidas estavam intimamente interligadas e sua terra natal devastada por uma profunda crise
deixavam explícito que a abolição da escravatura seria económica e dirigiam-se esperançosos para as fazendas
lenta e gradual. Através da Lei de Terras, os fazendeiros de café. Na década seguinte, apesar de muitos já
tinham uma contrapartida para essa previsível abolição: estarem desiludidos com as condições de trabalho no
a concentração da propriedade fundiária era garantida Brasil, o fluxo de italianos não parou de crescer.
para aqueles que já dispusessem de terras e capital, Desembarcados em Santos, eram levados até as
apesar das vastas extensões territoriais não ocupadas hospedarias dos imigrantes em São Paulo, nos bairros
no Brasil. do Bom Retiro e Brás, para depois serem encaminhados
para o interior, onde se dedicariam à produção cafeeira.
Mesmo com o abastecimento interno de escravos, o fim
do tráfico provocou uma relativa escassez de mão-de- No mesmo ano de 1871, a elite dirigente continuou na
obra, o que acabou por incentivar a busca de métodos implementação de seu projeto gradual de abolição,
de produção que dispensassem o maior número procurando uma forma menos agressiva aos proprietá-
possível de trabalhadores. As rudimentares técnicas rios que ainda não haviam substituído os escravos de
rotineiras usualmente adotadas na agricultura, possíveis suas fazendas. A Lei do Ventre Livre ditava que todos os
graças à abundância de escravos, foram sendo filhos de escravas nascidos a partir de então seriam
progressivamente substituídas pela mecanização. livres, tendo o proprietário as opções de entregá-los ao
Inicialmente importadas, as poucas máquinas que governo em troca de uma indenização ou de mante-los
faziam o descaroçamento, a classificação e o trabalhando até completarem 21 anos.
ensacamento do café passaram a ser produzidas no
Em 1885, uma nova lei revelava a timidez do projeto
Brasil e generalizaram-se no Oeste Paulista. Por se
abolicionista. Pela Lei dos Sexagenários, todo escravo
tratar de uma agricultura em expansão, quando da
que chegasse aos 65 anos de idade adquiriria sua liber-
extinção do tráfico os cafeicultores dessa região de São
dade. Devido aos maus-tratos e aos exaustivos traba-
Paulo dispunham de capital para a aquisição desses
lhos, poucos conseguiam chegar a idade tão avançada e
caros maquinários. No Vale do Paraíba, ao contrário, o
mesmo aqueles que pudessem se beneficiar da medida
esgotamento do solo dava início ao declínio da
teriam poucas possibilidades de sobrevivência na socie-
produção, o que viria impedir sua modernização local.
dade brasileira. Apesar de tudo, a escravidão tinha seus
Suspenso o tráfico e garantidas as limitações para a anos contados.
posse de terras, a elite dirigente do Estado nacional ini-
Ao mesmo tempo em que o governo procurava não
ciava sua tentativa de branquear a população e
descontentar a maioria dos proprietários, crescia no
aproximá-la dos padrões europeus. Para os fazendeiros,
Brasil a campanha abolicionista. Iniciada nas grandes ci
era necessário garantir um fluxo imigratório contínuo e
dades por membros mais ilustrados da sociedade brasi-
intenso que não dependesse de iniciativas isoladas dos
leira, a mobilização organizou clubes, associações e jor-
proprietários paulistas, ou seja, que o Estado nacional
nais com o intuito de alertar a população para a
arcasse com os custos do transporte dos imigrantes e
necessidade de modernização das relações de trabalho
despejasse no Brasil um enorme contingente de
no país e contou com a liderança de mulatos, como o
trabalhadores livres. Sem dívidas para desmotivá-los e
farmacêutico José do Patrocínio e o engenheiro André
sem investimentos por parte dos proprietários, os
Rebouças.
imigrantes que não se adequassem aos padrões de
trabalho vigentes no Brasil poderiam ser demitidos e Os abolicionistas passaram a chamar a atenção para o
substituídos por outros. A disciplina e o controle dos exemplo dos Estados Unidos, onde fora abolida em
trabalhadores seriam assegurados pelas restrições à 1863 a escravatura. Da mesma forma, criticavam as tí-
ocupação de terras e pela oferta de mão-de-obra livre. midas leis governamentais que adiavam a resolução so-
A lucratividade seria garantida pelos baixos salários, bre o cativeiro dos negros. Para o deputado Joaquim
decorrentes do alto número de trabalhadores Nabuco, um dos principais líderes do movimento, era
disponíveis. O Estado nacional assumiria, mais uma vez, urgente implementar um projeto que não só trouxesse
sua vocação de agenciador de mão-de-obra. Fora fun- a liberdade para os cativos como também permitisse
damental até 1850 para a manutenção da escravidão no integrá-los como cidadãos na sociedade brasileira.
Brasil e seria também o avalista da abolição da Na década de 1880, grupos mais radicais, descontentes
escravatura e da sua substituição pelo trabalho livre. com as medidas parlamentares, passaram a organizar
A partir de 1871, o poder provincial de São Paulo passou associações que auxiliavam a fuga de escravos.
a destinar recursos para a entrada de imigrantes na Estudantes, advogados, comerciantes e ex-escravos or-
região,a maioria composta por italianos que deixavam ganizaram-se num grupo abolicionista denominado

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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"Caifazes", que incitava e promovia fugas de escravos desta forma degradante de exploração. Por isso
de fazendas em São Paulo. Retirados do cativeiro, a DENUNCIE, escravidão é crime!
maior parte se dirigia ao quilombo do Jabaquara, em
TRABALHO ESCRAVO, VAMOS ABOLIR DE VEZ ESSA
Santos, que chegou a reunir cerca de dez mil pessoas.
VERGONHA! Antonio Pantoja
Além das fugas, tomaram-se cada vez mais frequentes
as insurreições, os assassinatos, os atentados e as sa-
botagens no decorrer da década de 1880, evidenciando 5.5 A Máquina Enferrujou
a irreversível desestruturação do regime escravista. A A gente pode comparar o Estado imperial brasileiro a
rebeldia tomou conta das senzalas e levou muitos uma máquina de governar. Esta máquina fazia duas
proprietários a tentar estabelecer acordos com seus coisas principais administrava o país e mantinha a
escravos. ordem. E o que era essa tal ordem? Era a ordem dos
A agitação abolicionista crescia na mesma medida da escravocratas, claro, suas propriedades, seus escravos,
entrada dos imigrantes no país. Cerca de 90% dos seu domínio. Principalmente os escravocratas donos de
trabalhadores estrangeiros eram italianos, mas havia cafezais do vale do rio Paraíba, que cobriam um bom
também alemães, suíços, eslavos e espanhóis. O Brasil, pedaço do Rio de Janeiro e uma parte de São Paulo.
na forma, começava a buscar uma aparência europeia. Acontece que desde a segunda metade do século XIX,
Na verdade, como nos séculos coloniais, continuava a quando acabou o tráfico de escravos africanos, que o
buscar a maior parte de sua mão-de-obra fora das Brasil dava os primeiros passos para fortes mudanças.
fronteiras do país. O trabalhador ainda seria, por muito Para começar, as transformações eram econômicas: o
tempo, um estrangeiro sem direito à terra. trabalho livre começava a substituir o trabalho escravo.
“ O decreto da Assembléia Geral Legislativa imperial Mas não era só isso. Um novo grupo de fazendeiros
transformado em lei pela princesa Isabel, no dia 13 de começava a se impor principalmente os do Oeste
maio de 1888, tem uma importância muito maior do paulista, região que cresceu muito a partir de 1870. Por
que o seu tamanho. Com apenas dois artigos curtos e causa do café, a província de São Paulo foi toda cortada
diretos , acabou, de uma penada, com um regime de pelas ferrovias. E para os homens da época, o trem era
trabalho infame, o regime escravocrata, que há mais a última palavra em tecnologia, o sinônimo da
de três séculos envergonhava a nação. modernidade.
A Lei Áurea, como ficou conhecida, não deixou de Modernidade. Já falamos dela, lembra? Pois era cada
provocar polêmicas, que a bem dizer duram até hoje. vez mais citada. As cidades cresciam, ganhavam
Deu liberdade aos afrodescendentes, mas não lhes esgotos, luz, telefone. Intelectuais, pessoas da classe
garantiu alguns direitos fundamentais, como o direito a média, fazendeiros paulistas, quase todos começaram a
terra e à moradia, condenando amplas camadas achar que modernidade na política era a mesma coisa
populares à exclusão social - problema que só se que República.
agravaria com o passar do tempo. Isso não ofusca, de Agora nós podemos ligar as coisas: a máquina de
todo modo, o impacto da Lei Áurea. O que ficou governar imperial parecia estar velha, enferrujada,
faltando foi uma legislação complementar, que não cheia de defeitos. Tinha sido feita para um Brasil de
veio, conferindo aos ex-escravos condições para o aristocratas escravistas. Agora, o Brasil do trabalho
exercício de uma verdadeira cidadania.Nossa História nº livre, das ferrovias, das cidades que cresciam, queria
1 nov de 2003, pg 8 uma nova máquina de governo, mais dinâmica, mais
Hoje, poderíamos estar envolvidos nos preparativos ágil, adequada às mudanças. Para muitos brasileiros, o
para comemorar os 118 anos de publicação da Lei Brasil só poderia conhecer a modernidade e o progresso
Áurea, porém, o número de escravos nas ruas e no se fosse uma república.
campo ultrapassam os 25000, e de tão presentes nos
noticiários se tornaram banais. Nos serviços
domésticos encontramos crianças menores de idade O Rompimento Liberal
trabalhando acima da hora permitida pela lei e que em O ano de 1868 assinala uma grave crise política no
vez de salário, recebem castigos corporais. Império. Tudo começou com os ataques que uma parte
Uma vez que tomamos conhecimento de maus tratos, da imprensa fazia ao comando de Caxias na Guerra do
de exploração infantil ou escravidão domiciliar, e não Paraguai. Alegavam que o velho general (e político do
nos sensibilizamos ou denunciamos fazemos parte partido conservador) não tinha mais o pulso firme do
passado. O primeiro-ministro liberal Zacarias de

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Vasconcellos, seguindo a vontade de D. Pedro II, habitação, a saúde pública. Refletiam a crescente
manteve Caxias no posto. Mas os ataques continuaram autonomia das cidades. A vida na cidade passava a ter
e Caxias pediu demissão do cargo no Conselho de regras de funcionamento cada vez mais diferentes da
Estado e no comando da guerra. Em carta a um amigo, vida no campo. Mais um ponto para a modernidade!
o soldado alegava não ter recebido apoio do ministro da
Essas revoltas urbanas vinham com uma exigência nova
guerra.
no Brasil: a do direito de cidadania. Ou seja, o cidadão
O primeiro-ministro Zacarias sentia-se entre dois fogos: (especialmente o morador da cidade) tem de ser
o imperador de um lado (querendo Caxias) e os respeitado pelo Estado. Ideia muito defendida pelos
companheiros liberais do outro (contra o conservador republicanos radicais, que a todo momento lembravam
Caxias). Resolveu então arrumar um pretexto para a Revolução Francesa de 1789. pegou? Revoltas
pedir demissão. Saiu e não indicou sucessor. No seu urbanas, cidadania e república também davam as mãos.
lugar, um ministro conservador: o visconde de Itaboraí.
Para alguns republicanos, a queda da monarquia
Caxias permaneceria no comando.
deveria ser semelhante à Revolução Francesa, com a
Ora, os liberais eram maioria no Parlamento e igualdade baseada na liberdade e nos direitos para
consideraram um absurdo o novo ministro ser um todos os cidadãos. Eram chamados de jacobinos,
conservador. Alguns, mais irritados, concluíram que o porque sonhavam com aquele momento radical da
jeito era acabar com a monarquia. Revolução Francesa de 1789, quando o partido
jacobino, liderado por Robespierre, tomava várias
No Rio de Janeiro, em 1870, foi lançado o Manifesto
medidas a favor do povo. Muitos estudantes e
Republicano. Três anos depois em Itu (São Paulo),
profissionais liberais (médicos, jornalistas, advogados,
realizou-se a convenção do PRP – Partido Republicano
professores) aderiram a esses ideais. Tomavam vinho
Paulista. Estava plantada a semente.
beaujaulais, visitavam a casa de uma francesinha
A República estava por vir. Não por simples disputa amorosa e cantavam a Marselhesa pelas ruas.
entre partidos, mas como resultado de profundas Lembrando os tempos em que os jacobinos
mudanças econômicas e sociais que estavam ocorrendo guilhotinaram o tirânico rei Luís XVI, queriam fuzilar o
no Brasil. Conde D’Eu, que além de marido da princesa Isabel era
nascido na França.

5.6 Republicanos e Ideal de Cidadania Conseguiriam isso? Não. A República seria implantada
para favorecer apenas os grandes proprietários de
A República teve muito a ver com o que estava terras. Estranha mudança: uma república sem povo.
acontecendo na capital do império, o Rio de Janeiro. Pois era o ideal dos fazendeiros. Eles se inspiravam no
Para termos uma ideia do espírito popular no final do liberalismo americano, pálida cópia do modelo político
século XIX, basta lembrar da Revolta do Vintém. O dos EUA. Defendiam que o público era a soma dos
governo, com seus figurões acostumados a passear nos interesses privados, ou seja, que a melhor coisa para a
próprios tílbures (carruagens), não viu problema algum sociedade seria o vale-tudo do cada um por si, sem que
em decretar o aumento das passagens dos bondes, lá o Estado interviesse para atrapalhar. Uma espécie de
no final de 1879. A população carioca pobre foi para a joguinho econômico-social interessante para quem
rua protestar. A polícia não ficou a pé: veio rápido, a tinha as melhores cartas, ou seja, para os ricos. Daí era
cavalo, descendo o cacete. A massa, então, se um passo para o darwinismo-social) de Spencer, que
defendeu, arrancando trilhos, derrubando veículos e dizia que nesse joguinho de vale-tudo individualista, a
fazendo barricadas (montes de entulhos, caixas, natureza determinaria a vitória dos mais fortes. Ideias
pedaços de muro, móveis que bloqueiam a passagem defendidas com unhas, dentes, garras e patas enormes
das tropas pela rua). Finalmente, o Exército interveio: o por Alberto Sales, o grande teórico liberal dos
problema do transporte era resolvido transportando os fazendeiros paulistas.
pobres para o cemitério.
Perceba um aspecto importante, amigo leitor: as
revoltas urbanas se tornavam cada vez mais Agora, vamos ao texto:
significativas e o que elas envolviam eram questões Havia no Brasil pelo menos três correntes que
específicas da cidade. Ou seja, não tinham diretamente disputavam a definiçào da natureza do novo regime: o
a ver com o latifúndio e o grande comércio ligado à liberalismo à americana, o jacobinismo à francesa e o
agroexportação, mas sim com os problemas urbanos positivismo. As três correntes combateram-se
típicos, como o transporte de bondes, a falta d’água, a intensamente nos anos iniciais da República, até a

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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vitória da primeira delas, por volta da virada do século. CAPÍTULO 6:
(...) No caso do jacobinismo [relembrando os radicais
A organização política e econômica do Estado
jacobinos, liderados por Ropespierre, na Revolução
Republicano
Francesa de 1 7891, por exemplo, havia a idealização da
democracia clássica, a utopia da democracia direta, do
governo por intermédio da participação direta de todos 6.1 A REPÚBLICA DAS OLIGARQUIAS
os cidadãos. No caso do liberalismo, a utopia era outra,
era a de uma sociedade composta por indivíduos
autônomos, cujos interesses eram compatibilizados pela Com a proclamação e a consolidação do regime
mão invisível do mercado. Nessa versão, cabia ao republicano no Brasil, a centralização política dos
governo interferir o menos possível na vida dos tempos da monarquia deu lugar a um sistema
cidadãos. O positivismo possuía ingredientes utópicos federativo, almejado pelas elites oligárquicas,
ainda mais salientes. A República era vista dentro de sobretudo as de São Paulo. Contudo essa
uma perspectiva mais ampla, que postulava uma futura transformação não atendeu às necessidades e aos
idade de ouro em que os seres humanos se realizariam desejos da grande massa brasileira, que, em alguns
plenamente no seio de uma humanidade mitificada. (...) casos, nem sequer tinha conhecimento da existência da
[A posição liberal lera a dos proprietários rurais, República no Brasil.
especialmente a dos proprietários paulistas. ( ) Para A Constituição de 1891 acabou com o caráter censitário
esses homens, a República ideal era sem dúvida o da participação política, mas ainda assim essa
modelo americano. Convinha-lhes a definição participação era limitada, pois somente os alfabetizados
individualista do pacto social. Ela evitava o apelo à podiam votar e a grande maioria das pessoas de baixa
ampla participação popular tanto na implantação como renda não tinha acesso à formação escolar.
no governo) da República. Mais ainda, ao definir o
público como a soma dos interesses individuais, ela lhes Dificultando ainda mais a participação política das
fornecia a justificativa para seus interesses particulares. camadas populares, o voto era descoberto, ou seja, era
A versão final do século XIX da postura liberal era o público, o que facilitava a manipulação das eleições em
darwinismo social, absorvido no Brasil por intermédio favor dos interesses das oligarquias. Essas oligarquias
de Spencer, o inspirador do principal teórico paulista da se mantinham no poder obrigando a população a votar
República, Alberto .Sales. em seus protegidos, parentes e aliados.

Convinha-lhes também a ênfase americana na O primeiro presidente civil do Brasil, Prudente de


organização do poder, não apenas por estar na tradição Moraes (1894-1898), caracterizou-se por firmar no
do pas, mas principalmente pela preocupação com a poder a oligarquia cafeeira paulista, grupo político que
ordem social e política (...) Convinha-lhes, de modo dominaria o cenário brasileiro até 1930.
especial, a solução federalista americana (...) talvez o Conjuntamente com os pecuaristas de Minas Gerais, os
aspecto mais importante que buscavam no novo cafeicultores controlaram a política republicana
regime. (...) durante, praticamente, toda a Primeira República
(1894-1930).
O modelo americano, em boa parte vitorioso na
constituição de 1891 [a primeira da República], se Coube, contudo, ao presidente Campos Sales (1898-
atendia aos interesses dos proprietários rurais, tinha 1902), a consolidação da política das oligarquias – a
sentido profundamente distinto daquele que teve nos chamada Política do Café-com-leite, pela alternância na
Estados Unidos. (...) No Brasil] a sociedade Presidência da República de políticos de São Paulo
caracterizava-se por desigualdades profundas e pela (café) e de Minas Gerais (leite). Também com Campos
concentração do poder. Nessas circunstâncias, o Sales, a economia republicana organizou-se em torno
liberalismo adquiria um caráter de consagração da da agro exportação do café e do saneamento
desigualdade, de sanção da lei do mais forte. Açoplado econômico, necessário desde a crise do Encilhamento
ao presidencialismo, o darwínismo republicano tinha do governo provisório de Deodoro.
em mãos os instrumentos ideológicos e políticos para
estabelecer um regime profundamente autoritário. (...)“
(Carvalho, José Murilo de. A formação das Almas - O
imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. pp. 9-26.)

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

A-O funcionamento político O coronel, ou chefe político local, possuía o seu curral
eleitoral formado por eleitores de sua inteira confiança
e que votavam, obrigatoriamente, nos candidatos
indicados por eles.
Através de capangas e de seu poderio econômico, o
coronel garantia a maioria necessária à eleição de
candidatos de confiança do sistema, aí incluídos o
presidente (governador) do Estado, e o próprio
presidente da República.
Ainda sobre o coronelismo, o historiador Edgar Carone
considera que “socialmente, o coronel exerce uma série
de funções que o fazem temido e obedecido (...). Aos
agregados, ele dispensa favores: dá-lhes terras, tira-os
da cadeia e ajuda-os quando doente; em compensação,
exige fidelidade, serviços, permanência infinita em suas
Denuncia ao voto de cabresto; (charge de Stoeni, terras, participação nos grupos armados, etc. Aos
Revista Careta Rj, 1927) familiares e amigos ele distribui empregos públicos,
Conforme foi observado, coube a Campos Sales o empresta dinheiro, obtém crédito, protege-os das
estabelecimento do processo político da República autoridades policiais e jurídicas, ajuda-os a fugir dos
Oligárquica. Ele criou a Política dos Governadores, a fim compromissos fiscais do Estado, etc. É o juiz pois,
de acabar com as contradições entre o Legislativo e o obrigatoriamente, é houvido a respeito de questões de
Executivo. Em resumo, essa política era um acordo terras e até de casos de fugas de moças solteiras.”
entre o governo central e os poderes regionais, segundo
o qual o presidente respeitaria as decisões dos partidos
que controlavam o poder em cada estado, desde que os C. O CONTROLE DAS ELEIÇÕES:
governantes cuidassem de mandar para o Congresso Uma das grandes reivindicações que motivou o fim do
nacional deputados que acatassem as decisões da Império foi o desejo da descentralização política.
Presidência. Essa troca de favores fortalecia o poder
dos governadores de estado e o do presidente da Com a República, estes interesses foram concretizados.
República. Era o predomínio do Poder Executivo em Cada Estado da Federação teria suas leis, sua força
todos os níveis, assim como a afirmação do poder das policial, seu poder judiciário e seu sistema eleitoral.
oligarquias locais através das famílias aristocráticas que Apesar do fim do voto censitário, poucos brasileiros
impetravam um continuísmo político quase impossível participavam das eleições. Os analfabetos, mendigos,
de ser quebrado. Ainda hoje se observam, no Brasil, soldados, frades e mulheres não tinham o direito ao
resquícios dessa prática política. voto. Além disso, o voto não era obrigatório. Os que
Com o voto aberto, ficava muito mais fácil exercer um tomavam parte na votação acabavam se tornando
controle sobre o processo eleitoral garantindo a eleição massa de manobra da disputa entre os chefes políticos
dos aliados políticos das aristocracias. A forma de locais: os patriarcas (coronéis).
domínio local é chamada de coronelismo. O O controle que os coronéis exerciam sobre as eleições
coronelismo era um sistema de “câmbio eleitoral”. O se realizava, principalmente, através de dois
coronel garantia proteção e favores (destacadamente mecanismos:
econômicos) e em troca exigia um voto controlado que
assegurava o continuísmo político – era o denominado o voto de bico de pena: este consistia no fato no fato de
voto de cabresto. que a lista de eleitores era feita no Município,
obedecendo aos interesses dos chefes políticos locais
(coronéis). Muitas vezes os eleitores da oposição
B-CORONELISMO: encontravam dificuldades em serem incluídos na lista
de votantes. Muitas listas eram compostas incluindo
O coronelismo pode ser definido como um fenômeno analfabetos ou mesmo pessoas já mortas. Assim, uma
político-social característico da “República Velha”, mesma pessoa assinava vários nomes de eleitores
possibilitando, através da manipulação e controle das favorecendo o fazendeiro mais importantes da região.
eleições, o controle da política nacional por parte das
oligarquias agrárias.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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o voto de cabresto: este consistia no fato de que os origem. Em geral, tornava-se um “fora-da-lei” como
eleitores que realmente votavam estavam vinculados a resposta às injustiças e perseguições que sofria. Por isso
um coronel, como por um cabresto. Isto, porque os era objeto de admiração pela comunidade, que não
capatazes e capangas do coronel levavam os eleitores raro engrandecia seus feitos de coragem e valentia. O
até a boca da urna, ameaçando dar uma surra de cacete cangaceiro é um misto de bandido e herói.
e até matar aquele que pretendesse votar em outro
Os principais grupos de cangaceiros: O primeiro
candidato.
cangaceiro célebre é Jesuino Brilhante Melo Calado, cai
no cangaço numa vendeta em 1871. Mas, é a seca de
1877 que difunde o Cangaço: vários grupos atacam
6.2 O CANGAÇO COMO CONTESTAÇÃO SOCIAL À
fazendas e feiras. Para o jornal O Cearense, “os pobres
REPÚBLICA:
declararam uma guerra sem mercê contra os ricos”.
. Origem do Cangaço: Assim como Canudos e Afora Brilhante, surgem os bandos dos Viriatos,
Contestado, o movimento social do Cangaço constituiu- Quirinos, Calangros, etc. A seca de 1915 encontra os
se em função das precárias condições dos camponeses sertanejos armados pela guerra do Cariri, os
brasileiros, provocadas pela concentração fundiária. cangaceiros passam de 5 mil. Antônio Silvino, chefe de
Porém, a origem do movimento ainda deve ser bando em 1898, é o governador do sertão. Por 18 anos
relacionada a pecuária e ao deslocamento do centro zomba da polícia de PE, PB, RN e CE.
dinâmico da economia para o sul do Brasil. Com a crise
Lampião, o rei do Cangaço: Virgulino Ferreira da Silva é
da economia açucareira do Nordeste destacou-se a
vaqueiro e almocreve em Vila Bela, Pajeú, PE. A família
pecuária, que assumiu a condição de atividade
se envolve na vendeta dos Pereiras e Nogueiras-
predominante na região. No sertão, onde predominava
Carvalhos. Virgulino fascina o sertão, é debatido no
a pecuária, consolidou-se uma forma peculiar de
parlamento, noticiado no exterior, passa de vingador a
relação entre os grandes proprietários e seus vaqueiros.
justiceiro intuitivo. Sempre bem armado e municiado,
Entre eles estabeleceram-se laços de compadrio, cuja
ocultas material e dinheiro na caatinga, usa despistes,
base era a relação de fidelidade do vaqueiro ao
fintas, negaças, tocaias, complexas manobras militares.
fazendeiro, com este dando proteção em troca de
Cria imensa rede de coiteiros e olheiros, sistema de
disponibilidade daquele em defender, de armas na mão,
sentinela e vigilância, inclusive contra envenenamento.
os interesses de seu patrão. Os conflitos eram
Vários inimigos atestam seu gênio militar, por isso é
constantes, devido à imprecisão dos limites entre as
convocado para combater a Coluna Prestes, mas pouco
fazendas e as rivalidades políticas, transformadas em
combate a coluna; após 3 escaramuças sem mortes,
verdadeiras guerras entre as poderosas famílias. Cada
volta ao Cangaço. Os governos de PE – PB – AL – BA –
uma destas fazia-se cercar de jagunços e cabras,
RN – SE – CE revidam com o convênio dos sete estados,
formando verdadeiros exércitos particulares. No final
conjugando a ação das volantes. Ainda assim o bando
do século passado, depois da grande seca de 1877-
de Lampião só foi destruído, em 1938, em pleno Estado
1879, a economia da região entrou em crise,
Novo.
provocando a dispensa de jagunços e cabras. Com o
agravamento da miséria e da violência, começaram a O continuísmo que se estabeleceu na vida política
surgir os primeiros bandos armados independentes do nacional estava longe de gerar uma estabilidade à
controle dos grandes fazendeiros. Essa é a origem do República. Em 1910, o país foi sacudido pela Campanha
Cangaço. O cangaceiro vem do povo, muito jovem Civilista de Rui Barbosa. Pinheiro Machado, líder da
choca-se com o coronel local ou a polícia em questões oligarquia gaúcha, lançou como candidato à Presidência
de terra, honra, justiça, vinga-se e cai no cangaço. É o militar Hermes da Fonseca, uma vez que os políticos
típico do semi-árido nordestino, onde latifúndio, seca, do Café-com-leite não haviam chegado a um acordo
caatinga inóspita, um rígido código de honra e vendetas quanto ao próximo ocupante da Presidência. Parte da
se aliam para gestar esse “rebelde primitivo”, como oligarquia paulista apoiou Rui Barbosa em oposição ao
afirma E. Hobsbawm. candidato militar. Defrontavam-se então civis e
militares: era o civilismo versus o militarismo. Observe
A caracterização do movimento: O Cangaço é
que esse antagonismo é recorrente na história da
considerado uma manifestação de banditismo social,
República brasileira.
que apareceu em muitas regiões do mundo com
características semelhantes às do Nordeste brasileiro A vitória, em 1910, foi do militarismo. Ao tomar posse,
(Sicília, Ucrânia, América espanhola), como reação do Hermes da Fonseca implementou a política das
tradicionalismo rural ao avanço do capitalismo. O salvações, uma ação de repressão e perseguição
bandido social difere do bandido comum por sua políticas aos estados que não apoiaram a sua

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

candidatura. O bloco oligárquico mostrava sua fissuras, atentava contra os valores tradicionais da moralidade,
revelando que em sua composição interior não era tão da família, da religião e da ordem. Havia também
homogêneo quanto se imaginava. Sua unidade, aqueles que o achavam apenas um esperto charlatão,
todavia, se consolidava frente ao inimigo comum. hábil em truques de ilusionismo, vistos como milagres
pelos sertanejos crédulos. No entanto, a imagem que
dele prevaleceu isso não quer dizer que seja a
6.3 AS QUESTÕES RURAIS verdadeira — foi a criada pelo escritor Euclides da
Já observamos que o continuísmo político característico Cunha, no seu livro Os sertões-
da República Velha esteve longe de suprir as E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos
necessidades da grande massa da população brasileira. crescidos até os ombros, barba inculta e longa; face
Durante o período, a exclusão social gerada pelo regime escaveirada, olhar fulgurante; monstruoso, dentro de
propiciou o surgimento de revoltas, demonstrando o um hábito azul de brim americano; abordoado ao
descontentamento das camadas populares para com as clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos
oligarquias dominantes. peregrinos [...] Aparecia por aqueles lugares sem
No campo, a exclusão era sentida de forma muito destino fixo, errante. Nada referia sobre o passado.
aguda, devido à herança colonial de concentração da Praticava em frases breves e raros monossílabos.
terra nas camadas privilegiadas; por consequência Andava sem rumo certo, de um pouso para outro,
dessa concentração, a elite agrária mantinha sua indiferente à vida e aos perigos, alimentando-se mal e
dominação opressora sobre o campesinato. No ocasionalmente, dormindo ao relento à beira dos
Nordeste brasileiro, o coronelismo, a fome gerada pelas caminhos, numa penitência demorada e rude...(Os
constantes secas e a miséria da população foram os sertões— Campanha de Canudos, p. 122-3.)
ingredientes de diversas revoltas rurais. É interessante notar que Euclides da Cunha foi cobrir a
Campanha de Canudos como repórter do jornal O
Estado de S. Paulo, imbuído da ideia de que ali ocorria
6.4 A Revolta de Canudos (1895-1897) um movimento contra a República. A visão desses
Sete anos após a proclamação da República, ainda se acontecimentos em suas reportagens na ocasião da luta
temia que o regime pudesse soçobrar. Desde 1889, não foi a mesma que, anos mais tarde, defendeu em
lutas políticas, como a Revolta da Armada, a Revolução sua famosa obra. Em Os sertões, já não acreditava na
Federalista e outras de caráter local, demonstravam que importância do caráter anti-republicano do profeta e
o Brasil estava longe de atingir um consenso em torno dos moradores de Canudos. Nesse livro desenvolveu
do novo Estado republicano. uma teoria sobre o descompasso entre as culturas do
litoral e do interior, > salientando o atavismo mental e
O grande conflito que teve como cenário o sertão social imperante no sertão, isto é, um modo primitivo
baiano em 1896, conhecido como Campanha de de pensar e conceber a vida gerado por "raças retró-
Canudos, é um exemplo do acúmulo das tensões sociais gradas". António Conselheiro seria, assim, um triste
e políticas geradas nas contradições econômicas entre a resultado dessa situação. No entanto, essa postura
sociedade urbana do litoral e a sertaneja naquele teórica não o impediu de ter sido o maior denunciante
momento. Universos culturais diferentes geraram do massacre perpetrado contra a população de Ca-
incompreensões que desaguaram em confrontos nudos pelas forças policiais e militares republicanas.
sangrentos. As incertezas do momento nacional fizeram
com que fossem atribuídos aos sertanejos, liderados por Mas quem era António Conselheiro? António Vicente
Antônio Conselheiro, intuitos subversivos vinculados às Mendes Maciel, alcunhado de António Conselheiro, era
manobras políticas de grupos monarquistas, alijados do cearense, membro da família Maciel, conhecida por ser
poder pela ditadura do marechal Floriano Peixoto. inimiga da família Araújo. Parece ter começado sua
pregação religiosa no interior do Nordeste por volta de
A figura de António Conselheiro seduziu escritores de 1868. Era comum, nessa época, a figura de romeiros,
sua época, que criaram versões muito diferentes a seu missionários e rezadores que esmolavam nos pequenos
respeito. Uns o apresentavam como um sertanejo povoados. Nada diferente desses místicos, Conselheiro
louco, um andarilho dos sertões do Ceará, de apegava-se à fé e às práticas da religião católica. A
Pernambuco e da Bahia que, dizendo-se um enviado de aonde chegava consertava os muros de cemitérios e
Deus, tinha conseguido grande número de seguidores restaurava capelas. Promovia novenas, procissões, e
fanáticos devido à ignorância e à superstição da fazia sermões exortando o povo a desprezar os bens
população rural. Outros o viam como um criminoso que materiais em benefício dos bens espirituais. Com o

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tempo foram-lhe atribuídas curas extraordinárias, au- era dirigir grupos de oração e vigiar pelos bons
mentando o número de pessoas que o seguiam em sua costumes.
peregrinação. Depois de se estabelecer por pouco
As famílias sertanejas que para lá se dirigiam, a maioria
tempo em alguns arraiais, instalou-se numa fazenda
expulsa de seus lugares de origem pela seca ou pelos
abandonada de nome Canudos, às margens do rio Vaza-
fazendeiros, sentiam-se amparadas pelo paternal
Barris, no interior da Bahia. Esse local logo passou a ser
Conselheiro.
povoado por sertanejos sem trabalho, formando-se ali
um arraial que passou a ser denominado Belo Monte ou Em Canudos encontravam-se, igualmente, foragidos da
Canudos. lei ou fugitivos da vingança de famílias rivais. No sertão
desavenças por questões consideradas ofensivas à
A socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz descreveu a
honra familiar eram comuns. Nesses casos, muitas
organização político-social de Canudos nos seguintes
vezes chegava-se até a assassinatos mútuos, perpetra-
termos:
dos durante gerações. Os executantes dessas mortes
Uma hierarquia interna existia no grupo, cujo vértice rugiam de seu povoado, internavam-se no sertão e, às
era António Conselheiro; ponto mais elevado da escala vezes, integravam grupos armados de cangaceiros.
social era o chefe, o pastor, o pai. "Meu Pai", tal a
denominação que lhe davam os componentes do grupo
quando lhe falavam diretamente; "Nosso Pai", quando a
ele se referiam.
[...] No comando da guerra estava João Abade,
indivíduo de instrução maior do que o comum na zona,
braço direito do Conselheiro e "executor supremo" de
suas ordens, que foi praticamente assumindo a chefia, à
medida que o Conselheiro, enfraquecido e velho, se
concentrava cada vez mais nas tarefas religiosas.
Recebia o título de "comandante da rua" ou de "chefe Arraial de Canudos, em 1897, ilustrarão publicada no
do povo" e tinha sob seu mando vários chefes de jornal O Estado de S. Paulo.
destacamento ou chefes secundários. Alguns desses marginalizados passavam a pertencer à
A chefia econômica e civil da vida em grupo coubera aos guarda pessoal de fazendeiros e outros se tornavam
irmãos Vilanova. António Vilanova exercia "uma espécie trabalhadores em fazendas afastadas. Quando
de juizado de paz", anotando casamentos e zelando chamados, formavam um grupo armado para punir os
pela ordem interna do povoado. inimigos do patrão. Eram denominados jagunços. No
entanto, sertanejos como os demais, conservavam-se
[...] Os doze chefes mais importantes destes setores — sensíveis a tudo o que se relacionasse com sua cultura
guerra, economia, vida civil, vida religiosa — formavam e, especialmente, com sua crença religiosa.
uma espécie de conselho do messias e eram chamados
seus "apóstolos". Além destes, havia ainda uma guarda Canudos não viveu isolado de outros lugarejos do
especial, denominada Companhia do Bom Jesus, ou sertão. Tinha com estes relações comerciais e mesmo
Guarda Católica, ou Santa Companhia, que usava políticas. Os fazendeiros da região recorriam aos
uniforme para se distinguir dos outros adeptos. canudenses para trabalhos temporários, uma vez que o
arraial fornecia mão-de-obra abundante e barata.
[...] Na verdade, todo aquele que ingressava em
Canudos era obrigado a entregar uma parte do que Com o tempo modificaram-se essas relações, e
possuía — um terço, ao que parece— ao Conselheiro, pequenos conflitos entre as localidades passaram a ser
para a constituição do fundo comum do grupo. Além da frequentes. A razão disso foi o crescimento de Canudos,
Santa Companhia, que vivia em parte destes recursos, que desorganizava a vida nas fazendas vizinhas. Estas se
em parte do que obtinha nas plantações e nos saques, viam abandonadas por seus trabalhadores que, atraídos
todos os desvalidos eram alimentados por eles. pela esperança de uma vida melhor em Canudos, para
lá se mudavam. Também as relações de troca ou
(O messianismo no Brasil e no mundo, p. 2)0-4.) comércio de alimentos tomaram-se difíceis, tendo sido
O povoado era regido por leis morais e por práticas registradas pequenas ocorrências nas delegacias
religiosas obrigatórias, onde se combatia o roubo, o circunvizinhas. Igualmente foram realizados inquéritos
homicídio, o adultério a prostituição e a concubinagem. por roubo de gado, nos quais os acusados eram
Havia muitas beatas e beatos cuja principal atividade

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

canudenses e os reclamantes fazendeiros inimigos do Essas invectivas faziam com que os ânimos dos militares
Conselheiro. partidários da ditadura ficassem mais exaltados,
inconformados que estavam com o término do governo
Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz, o
do marechal Floriano Peixoto, a quem prestavam
Conselheiro tinha também a posição de chefe eleitoral.
irrestrita admiração. Pediam ao governo, em passeatas,
Como os fiéis votavam em quem ele indicasse, recebia
a imediata repressão aos monarquistas.
visitas de políticos locais que lhe solicitavam apoio.
Assim, direta ou indiretamente, ele interferia nas lutas No primeiro choque entre forças policiais e canudenses,
dos grupos políticos da região, o que o levava a cultivar os mal armados sertanejos saíram-se vencedores.
poderosos inimigos. Alarmado com o sucedido, o governador da Bahia, Luís
Viana, pediu auxílio ao governo federal, temendo ser
Da mesma forma, as relações do Conselheiro com a
prejudicado pelas acusações que lhe eram dirigidas de
Igreja Católica Apostólica Romana tornaram-se
ser conivente com os monarquistas.
paulatinamente tensas. De início era bem-visto pelos
vigários dos arraiais, pois nunca havia celebrado missas Nessa ocasião, o presidente Prudente de Morais, por
ou conferido sacramentos. Canudos era apontado razões de saúde, estava licenciado, e o governo estava
como exemplo de povoado ordeiro, conservador e nas mãos do vice-presidente Manuel Vitorino Pereira
piedoso. O Conselheiro jamais tinha se declarado (10/11/1896 a 3/3/1897), seu maior inimigo político.
Messias (Filho de Deus, salvador dos homens) e sempre Isso seria um grande complicador da situação. Manuel
acolhia bem os sacerdotes. As discordâncias surgiram Vitorino, florianista simpático aos militares, ordenou
por duas razões. Se por um lado António Conselheiro que se organizasse uma expedição repressiva a
começou a criticar duramente os padres "heréticos e Canudos. Forças federais e policiais, somando 543
maçons", que aceitaram a instituição do casamento civil homens, foram enviadas ao lugar, mas viram-se
e a laicização dos cemitérios, práticas entronizadas pelo obrigadas pelos jagunços do Conselheiro a se retirar.
regime republicano, por outro as diretrizes do
Os jornais de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo
catolicismo romano tomaram-se intolerantes com as
alardearam o desastre, atribuindo-o ao crescimento do
práticas religiosas espontâneas.
movimento armado monarquista em todo o país. Os
Durante o Império não foi dada grande importância aos boatos cresceram e com eles o número das passeatas
choques entre Canudos e seus inimigos civis e populares encabeçadas por estudantes republicanos e
religiosos. No entanto, em 1896, uma acusação de militares. Prudente de Morais era responsabilizado
roubo de material de construção envolvendo os ca- publicamente por não ter reprimido os grupos
nudenses tomou-se o estopim de uma campanha militar monarquistas no início do seu governo.
sem precedentes na história do Brasil, voltada contra
Nesse clima de denúncias e exaltação, Manuel Vitorino
uma população sertaneja.
entregou ao coronel do exército Moreira César o
Boatos chegavam aos jornais de toda parte do país. comando de mil homens, incluindo esquadrões de
Muitos acreditaram que atrás de António Conselheiro cavalaria e artilharia, com o objetivo de exterminar a
existia uma ampla organização para restaurar a resistência canudense. Novo insucesso. Em 21 de
Monarquia. Falava-se de um plano sinistro alimentado fevereiro de 1897, as forças oficiais foram vencidas
por significativas contribuições financeiras de pelos sertanejos, tendo Moreira César morrido em
monarquistas exilados e mesmo de governos combate.
estrangeiros. Os revolucionários pretenderiam
A reação da imprensa republicana e do Clube Militar
desenvolver sua ação a partir de duas frentes: uma no
tornou-se raivosa e incontrolada. Vários atentados
sertão da Bahia e outra no Rio Grande do Sul, com
foram cometidos contra monarquistas e jornais de sua
remanescentes da Revolução Federalista (1893-1895).
propriedade. Na capital da República foi assassinado o
As forças rebeldes se encontrariam no Rio de Janeiro,
destacado monarquista Gentil de Castro, proprietário
deporiam o governo e restaurariam a Monarquia.
dos jornais Liberdade e Gazeta da Tarde.
Diversos jornais do país veiculavam essas notícias como
se fossem verdadeiras. Leitores e articulistas alegavam Manuel Vitorino organizava com grande estardalhaço
que o Conselheiro pregava abertamente contra a nova expedição contra Canudos, sob o comando do
República, fato comprovado posteriormente quando general Artur Oscar, quando o presidente Prudente de
algumas de suas prédicas registradas por escrito foram Morais, inesperadamente, embora em condições
achadas. A palavra de ordem era salvar a República e precárias de saúde, reassumiu suas funções, temendo
combater o Conselheiro. um golpe militar contra o seu governo. O presidente
não interferiu na organização das forças militares desta

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
nova expedição, integrada por seis mil homens, mas 6.5 A GUERRA DOS PELUDOS E PELADOS
substituiu o ministro da Guerra por uma pessoa de sua
O Contestado (1912-1916)
confiança, o marechal Machado Bittencourt.
Logo ao entrar em combate, Artur Oscar enfrentou
fortes reveses, levando o governo a enviar-lhe reforços.
A resistência de Canudos estava no fim. Seus últimos
momentos foram descritos por José Maria Bello, em
1940, no antigo estilo historiográfico:
Investido pelas forças regulares, bombardeado pela
artilharia de campanha, Canudos não pode subsistir por
muito tempo. Os jagunços defendem o arraial casa a
casa, palmo a palmo, numa resistência que, muito mais
ainda do que heroica, tinha de fantástica. Sucessivas Fonte:www.historiabrasileira.com
ondas de assalto fracassam ante os tiros dos sertanejos
Nossos caboclos do mato são fáceis de fanatizar e, se
famintos, sedentos e esfarrapados. No dia 5 de outubro
for exato o que se houve é necessário ação enérgica". A
de 1897, caem, enfim, os derradeiros redutos dos
advertência feita ao governador do estado de Santa
casebres fumegantes. Nenhum lamento nenhum grito,
Catarina, Vidal Ramos, em 1912, é do coronel Rubens,
nenhum sinal de vida humana. Morrera havia muito
de Campos Novos. Ele considerava perigoso para o
António Conselheiro; estavam mortas igualmente as
poder local o ajuntamento de sertanejos pobres em
principais figuras do seu "Estado-Maior". Desapareciam,
torno do curandeiro José Maria, misturando misticismo
então, os últimos combatentes. Era um cemitério a
e ideias monárquicas. E a "ação enérgica" já estava a
estranha cidadela. As tropas legais— exemplo único
caminho: uma coluna de trinta praças do Regimento de
na história, diz enfaticamente Euclides da Cunha— não
Segurança estadual se dirigia ao povoado catarinense
faziam prisioneiros. Os combatentes agonizantes que
de Taquaruçu.
acaso ainda restavam, morriam no incêndio com que
alguns vitoriosos supunham fazer para sempre Quando o Regimento mandado pelo governo chegou a
esquecida a mancha de Canudos... As tropas da Curitibanos, município ao qual pertencia Taquaruçu,
República, exército e polícia haviam perdido em um ano José Maria evitou o confronto e, junto sobre Irani, o
de campanha cerca de cinco mil homens... Regimento foi destroçado, e o coronel João Gualberto e
o curandeiro morreram no combate.
(. História da República, p. 207.)
Mais de um ano depois, Teodora, uma menina de 11
As perdas significativas das forças legais foram
anos, começou a relatar seus sonhos com José Maria e
atribuídas à má organização dos serviços de retaguarda,
as novas ordens: que todos voltassem a Taquaruçu para
à ignorância da topografia e ao desconhecimento das
aguardar seu retorno junto ao exército "encantado" de
táticas de guerrilha usadas pelos sertanejos.
São Sebastião. Teodora era neta de Eusébio Ferreira dos
Santos, chefe de grande família, lavrador da região de
São Sebastião das Perdizes, e um dos que havia
convidado José Maria a participar da festa de Bom Jesus
em Taquaruçu tradicional evento anual que reunia
grande número de sertanejos das regiões vizinhas.
Querubina, esposa de Eusébio, também era muito
influente.
Segundo o lavrador-patriarca, José Maria só se
apresentaria a meninas virgens ou meninos-deuses que
tinham "pureza". Construiu-se, a partir de dezembro de
1913, um "quadro santo" e uma "nova Jerusalém",
como dizia Eusébio. Eles formulavam um projeto
próprio de vida em sociedade - a "cidade santa":
povoados formados por sertanejos que buscavam uma
nova vida a partir dos ensinamentos de "São João
Maria" e José Maria.

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Sem dúvida, o discurso religioso sertanejo, com fortes tinha voz de comando" e distribuía postos a chefias
características messiânicas - a espera de um "Salvador" - intermediárias como os "comandantes de reza", "de
era agregador na região. A tradição religiosa popular no formas" e "de abastecimento". Sob sua liderança, uma
planalto consolidou-se a partir da década de 1840, com grande coluna do exército, reforçada pela polícia
as constantes andanças de um pregador leigo, João catarinense, foi derrotada na entrada do povoado em
Maria. Chamado de "São João Maria" pelos caboclos, março de 1914. Em abril, uma epidemia de tifo forçou
ele recomendava uma vida de austeridade, justiça e os dois mil habitantes a se transferirem para Bom
profetizava o futuro. Um regime de justiça e bem-estar. Sossego, onde Maria Rosa perdeu sua influência.
Para a imprensa do litoral e as autoridades militares, no
A partir dali, o movimento rebelde ganhou impulso e
entanto, o movimento era visto como uma "reedição do
passou a conquistar adeptos entre a população do
fanatismo de Canudos", algo que precisava ser
planalto, norte - catarinense, formando redutos na
energicamente extirpado, e uma afronta consciente aos
região do Timbó, de Canoinhas, Três Barras, Colônia
coronéis.
Vieira e Rio Negro. Elias António de Moraes, o novo
Duas semanas após o reinicio do povoado de patriarca, passou então a estimular como líderes das
Taquaruçu, que já contava com mais de trezentos ha- "cidades santas" os que já possuíam experiência em
bitantes, Teodora desistiu da liderança e foi sucedida combates, veteranos da Revolução Federalista (1893-
por Manoel, seu tio, de 17 anos. A chefia de Manoel, 95) ou da Guerra do Paraguai (1864-70), chamados
apoiada por Querubina, teve curta duração: Em menos "comandantes de brigas".
de dez dias foi deposto e surrado pelos habitantes, por
Major da Guarda Nacional e membro do Partido
ter afirmado que José Maria ordenara que ele dormisse
Republicano Catarinense, Elias tinha sido juiz de paz em
com duas virgens. A autoridade religiosa do menino-
Perdizes, mas era homem de poucas posses, levado ao
vidente não foi forte suficiente para se impor aos rígidos
movimento por sua esposa Adúlcia, amiga de
costumes caboclos.
Querubina. Como os sertanejos já dominavam uma
Mas ainda sob as ordens de Manoel foi criada a guarda extensa região, o velho Moraes incentivou Chiquinho
dos "Pares de França" ou "Pares de São Sebastião", um Alonso a assumir o comando geral dos pelados.
grupo armado de elite, inspirado em leituras públicas da
Francisco Alonso era "Par de Franças", com experiência
"História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França".
militar por ter lutado junto ao federalista rio-grandense
Consta que um caixeiro-viajante lia trechos da obra aos
Demétrio Ramos. Em quatro meses de sua chefia, os
sertanejos de Taqua-ruçu, durante a festa de Bom Jesus.
rebeldes conquistaram mais seguidores e ocuparam
No Natal de 1913, coube a Joaquim, 11 anos, outro várias vilas, como Papanduva, Itaiópolis e Curitibanos.
neto de Eusébio, a defesa vitoriosa ao primeiro ataque Até Lages, importante cidade na política de Santa
das forças oficiais a Taquaruçu. Nesta época, cresce a Catarina, foi ameaçada. Chiquinho Alonso morreu em
população e Joaquim "prevê" que o local não suportaria novembro de 1914 no ataque à estação de Rio das
uma segunda investida dos peludos — como chamavam Antas, da Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande.
as forças do governo, enquanto se autodenominavam
Um mês antes de sua morte, o movimento alcançaria
pelados. E ordena a transferência da população para
sua máxima expansão: 16 mil quilômetros quadrados,
Caraguatá, mais ao norte, em janeiro de 1914. Um mês
controlando uma região com cerca de 80 mil
depois, Taquaruçu foi arrasado pela artilharia do
moradores. A maior "cidade santa", chamada Santa
exército.
Maria, teve uma população estimada em 25 mil
Os sertanejos enfrentavam as forças oficiais com armas habitantes, com 5.500 casas e 24 igrejas. Cálculos do
precárias: espingardas de caça, antigas carabinas exército consideravam oito mil rebeldes em armas.
Winchester e facões de aço ou de madeira de guamirim
Nesta altura, o movimento reunia um conjunto variado
- utilizados na coleta da erva-mate. Determinados
de chefias, que usavam o discurso rebelde para
atiradores, chamados de clavineiros, emboscavam
objetivos diferentes. Em Canoinhas, os principais chefes
forças oficiais com tiros de precisão lá do alto das copas
insistiam, além de lutar por "José Maria" e pela
das araucárias e imbuías, mas o combate preferido
"monarquia", no "cumprimento da sentença de A
pelos caboclos era o "entrevero", isto é, a peleja corpo a
aparição pública de José Maria é rápida. Segundo relato
corpo com arma branca.
de frei Rogério Neuhaus, franciscano alemão que atuou
Em Caraguatá, quem chefiava era a virgem Maria Rosa, no planalto catarinense entre 1890 e 1930, José Maria
de 15 anos, que montava cavalo branco e vestia-se na era um antigo praça da polícia do Paraná, chamado
mesma cor. Como afirmavam seus moradores, "ela

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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Miguel Lucena de Boa ventura, que havia adquirido uma segunda investida dos peludos — como chamavam
indiretamente o prestígio de João Maria. as forças do governo, enquanto se autodenominavam
pelados. E ordena a transferência da população para
José Maria apresentou-se em Campos Novos no início
Caraguatá, mais ao norte, em janeiro de 1914. Um mês
de 1912 e, como era um curandeiro eficaz, receitando
depois, Taquaruçu foi arrasado pela artilharia do
remédios à base de chás, reuniu ao seu redor doentes e
exército.
familiares, antigos federalistas, marginalizados da
política local, além de muitos posseiros, expulsos das Os sertanejos enfrentavam as forças oficiais com armas
terras que ocupavam pela Estrada de Ferro São Paulo - precárias: espingardas de caça, antigas carabinas
Rio Grande: a concessão para a sua construção, ad- Winchester e facões de aço ou de madeira de guamirim
quirida pela empresa norte-americana Brasil Railway, - utilizados na coleta da erva-mate. Determinados
incluía a autorização para a posse de até 15 quilômetros atiradores, chamados de clavineiros, emboscavam
de território desocupado em cada margem do leito da forças oficiais com tiros de precisão lá do alto das copas
estrada. das araucárias e imbuías, mas o combate preferido
pelos caboclos era o "entrevero", isto é, a peleja corpo
Os moradores de Taquaruçu reuniam-se duas vezes por
a corpo com arma branca.
dia. A população ficava perfilada na praça central para
rezar, dar "vivas" a José Maria, à liberdade e à Em Caraguatá, quem chefiava era a virgem Maria Rosa,
monarquia, além de ouvir os comandantes e tratar da de 15 anos, que montava cavalo branco e vestia-se na
distribuição de tarefas. Enquanto José Maria não mesma cor. Como afirmavam seus moradores, "ela
voltasse, todos, considerados "irmãos", deveriam tinha voz de comando" e distribuía postos a chefias
auxiliar na subsistência do grupo. intermediárias como os "comandantes de reza", "de
formas" e "de abastecimento". Sob sua liderança, uma
Eles idealizavam o passado, defendendo um regime
grande coluna do exército, reforçada pela polícia
oposto ao dos coronéis do Partido Republicano, mas
catarinense, foi derrotada na entrada do povoado em
não lutavam pelo retorno da família Bragança ao trono
março de 1914. Em abril, uma epidemia de tifo forçou
brasileiro. Louvavam uma "monarquia celeste" com
os dois mil habitantes a se transferirem para Bom
José Maria como rei e, na prática, queriam um regime
Sossego, onde Maria Rosa perdeu sua influência.
de justiça e bem-estar. Para a imprensa do litoral e as
autoridades militares, no entanto, o movimento era A partir dali, o movimento rebelde ganhou impulso e
visto como uma "reedição do fanatismo de Canudos", passou a conquistar adeptos entre a população do
algo que precisava ser energicamente extirpado, e uma planalto, norte - catarinense, formando redutos na
afronta consciente aos coronéis. região do Timbó, de Canoinhas, Três Barras, Colônia
Vieira e Rio Negro. Elias António de Moraes, o novo
Duas semanas após o reinicio do povoado de
patriarca, passou então a estimular como líderes das
Taquaruçu, que já contava com mais de trezentos ha-
"cidades santas" os que já possuíam experiência em
bitantes, Teodora desistiu da liderança e foi sucedida
combates, veteranos da Revolução Federalista (1893-
por Manoel, seu tio, de 17 anos. A chefia de Manoel,
95) ou da Guerra do Paraguai (1864-70), chamados
apoiada por Querubina, teve curta duração:
"comandantes de brigas".
Em menos de dez dias foi deposto e surrado pelos
Major da Guarda Nacional e membro do Partido
habitantes, por ter afirmado que José Maria ordenara
Republicano Catarinense, Elias tinha sido juiz de paz em
que ele dormisse com duas virgens. A autoridade
Perdizes, mas era homem de poucas posses, levado ao
religiosa do menino-vidente não foi forte suficiente para
movimento por sua esposa Adúlcia, amiga de
se impor aos rígidos costumes caboclos.
Querubina. Como os sertanejos já dominavam uma
Mas ainda sob as ordens de Manoel foi criada a guarda extensa região, o velho Moraes incentivou Chiquinho
dos "Pares de França" ou "Pares de São Sebastião", um Alonso a assumir o comando geral dos pelados.
grupo armado de elite, inspirado em leituras públicas da
Francisco Alonso era "Par de Franças", com experiência
"História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França".
militar por ter lutado junto ao federalista rio-grandense
Consta que um caixeiro-viajante lia trechos da obra aos
Demétrio Ramos. Em quatro meses de sua chefia, os
sertanejos de Taqua-ruçu, durante a festa de Bom Jesus.
rebeldes conquistaram mais seguidores e ocuparam
No Natal de 1913, coube a Joaquim, 11 anos, outro várias vilas, como Papanduva, Itaiópolis e Curitibanos.
neto de Eusébio, a defesa vitoriosa ao primeiro ataque Até Lages, importante cidade na política de Santa
das forças oficiais a Taquaruçu. Nesta época, cresce a Catarina, foi ameaçada. Chiquinho Alonso morreu em
população e Joaquim "prevê" que o local não suportaria

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

novembro de 1914 no ataque à estação de Rio das No Brasil a situação não foi diferente. Os operários
Antas, da Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande. brasileiros reivindicavam melhores condições de
trabalho; diminuição da jornada, que chegava a ser de
Um mês antes de sua morte, o movimento alcançaria
dezesseis horas por dia; melhores salários; descanso
sua máxima expansão: 16 mil quilômetros quadrados,
semanal remunerado; férias anuais remuneradas; fim
controlando uma região com cerca de 80 mil
da exploração do trabalho feminino e infantil.
moradores. A maior "cidade santa", chamada Santa
Maria, teve uma população estimada em 25 mil
habitantes, com 5.500 casas e 24 igrejas. Cálculos do
exército consideravam oito mil rebeldes em armas.
Nesta altura, o movimento reunia um conjunto variado
de chefias, que usavam o discurso rebelde para
objetivos diferentes. Em Canoinhas, os principais chefes
insistiam, além de lutar por "José Maria" e pela
"monarquia", no "cumprimento da sentença de limites"
em favor dos catarinenses. Em Curitibanos, a Guerra
Santa, para muitos, era uma forma de vingar afrontas
feitas pelo coronel Francisco de Albuquerque, chefe
local. Em Lages, o conflito traduzia a retomada da luta
de federalistas contra os republicanos. Teresa Carini discursa para os operários durante a greve
Elias de Moraes apoiou então para comandante o jovem de 1917
Adeodato Ramos, também "Par de França". Ele liderou Fonte:Rhagel estúdio/Arquivo do Estado de São Paulo.
de novembro de 1914 a dezembro de A' 1915, período
bem difícil da guerra: cerco por parte de mais de 8 mil Naquele ano explodiu uma das maiores greves
homens do exército, dificuldades de abastecimento, operárias que São Paulo viveu. A Greve de 1917, sob o
fome, doenças e desagregação dos laços comunitários. comando anarquista, paralisou, inicialmente, seis mil
operários. Temendo a generalização do conflito, o
Entre maio e dezembro de 1915, na fase mais violenta, governador de São Paulo ordenou que a ação policial
conhecida como a do "açougue", a maior parte do contra os grevistas fosse mais enérgica. No dia 9 de
exército retirou-se e a repressão passou a ser feita por junho, um operário foi morto pela polícia. Esse fato
exímios conhecedores dos caminhos ou vaqueanos provocou a generalização do conflito e resultou na
civis, a serviço dos coronéis da Guarda Nacional, que paralisação de mais de setenta mil trabalhadores. A
caçavam os caboclos no mato como bicho. Em greve durou até o dia 15 de julho, quando, após uma
dezembro de 1915, São Pedro, último reduto, foi negociação que resultou no atendimento de algumas
tomado pelas forças oficiais. das sua reivindicações, os operários voltaram ao
Ainda hoje não há números precisos quanto aos mortos. trabalho.
O exército estimou em três mil, dos dois lados. De A greve, os comícios e as concentrações operárias eram
acordo com muitos cronistas da época, a maior parte considerados casos de polícia e, portanto,
das pessoas morreu de doenças e de fome, durante o violentamente reprimidos pelas autoridades. Isso
cerco final. Considerando-se as diferentes fontes, de gerou uma forte oposição da ala operária em relação à
1912 a 1916, mais de 10 mil pessoas teriam perdido a manutenção da ordem oligárquica. Buscando a
vida na Guerra do Contestado organização das lutas trabalhistas, o movimento
operário articulou-se em torno dos ideais anarquistas,
socialistas e anarco-sindicalistas. O anarco-sindicalismo
6.6 O movimento operário era uma corrente anarquista organizada no movimento
Com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) em curso, operário que defendia a luta internacional dos
o Brasil viveu um surto industrial de substituição de trabalhadores, independente do controle do Estado,
importações, o que ocasionou um aumento da dos patrões e dos partidos políticos, tendo como núcleo
concentração urbana e o fortalecimento do operariado. de organização os sindicatos. Seu principal instrumento
de luta era a greve geral. A grande maioria dos
Em 1917, a vitória da Revolução Russa e as dificuldades
operários era de origem européia, trazendo, portanto,
econômicas oriundas da Primeira Guerra Mundial
os ideais das lutas proletárias daquele continente.
acenderam o movimento operário em todo o mundo.

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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Apesar da contínua repressão, o movimento operário políticos, a criação da Confederação Geral do Trabalho,
deu origem a várias entidades de defesa dos direitos as greves de 1929, fizeram balançar todo o temário da
dos trabalhadores, como sindicatos, partidos políticos (o revolução, obrigando as forças políticas a redefinirem
PCB – Partido Comunista do Brasil, fundado em 1922) e suas posições com relação ao proletariado.
entidades sociais. Também surgiu uma vasta literatura
operária veiculada na imprensa de origem proletária. A
organização operária do começo do século XX foi 6.7 O TENENTISMO
desarticulada no governo de Getúlio Vargas, que, O movimento tenentista, realizado pelos militares de
através da criação dos sindicatos ligados ao Estado, baixa patente, os tenentes, foi a forma mais organizada
eliminou as lideranças operárias autênticas. de reação ao domínio oligárquico.
Proposta do B.O.C.: esta agremiação surgiu em São Os tenentes, oriundos em sua maioria da classe média
Paulo, como partido eleitoral da classe operária, logo tinham consciência e formação comum. Para eles, o
nos primeiros meses de 1928, nesse sentido, contando exército, além de ser o guardião da ordem nacional,
com uma classe operária numerosa, o B.O.C. não só deveria ser o purificador do regime, que não atendia às
poderia organizá-la em torno de seu programa através reais necessidades da população.
da incorporação das suas reivindicações, como também
poderia mobilizá-la como força política parlamentar As reivindicações tenentistas eram identificadas com as
nova para oposição ao partido republicano. Entretanto, aspirações da classe média urbana e, em alguns pontos,
diferentemente do partido democrático, o B.O.C. com os interesses do operariado. Dentre outras
penetrava na luta parlamentar não para assumir uma reivindicações, os tenentes queriam:
revolução que passasse ao lago dessa atividade política, o estabelecimento da verdade eleitoral através do voto
aproveitando o espaço aberto pelo partido secreto, com o fim das fraudes e do voto de cabresto;
democrático, B.O.C. entrava na luta política propondo
uma revolução que não dissociava as formas de luta, protecionismo alfandegário, incentivando a produção
procurando definir uma direção política para o da indústria nacional e acabando com os privilégios dos
movimento de oposição ao partido republicano, capaz cafeicultores;
de fazer convergir num só lugar as propostas dos A primeira tentativa de levante armado ocorreu em
“revolucionários” e do partido democrático, isto é, o 1922, no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro. O
lugar definido pela revolução democrático-burguesa. movimento se estruturou como reação à prisão do
Em 1928 estava definida a estratégia do B.O.C., definida marechal Hermes da Fonseca, que era uma das mais
como a luta por uma revolução democrático-burguesa e importantes lideranças militares. No dia 5 de julho de
antimperialista levada a cabo, fundamentalmente, pelo 1922, os rebeldes concentrados no Forte de
proletariado e pelo campesinato. Essa proposta de Copacabana abriram fogo contra as unidades militares
revolução encontrava, em 1928, no Brasil, um campo que apoiavam o presidente Epitácio Pessoa. Mas as
propício para as suas articulações. Definida desde o forças leais ao governo federal mostraram-se mais forte
princípio como uma revolução agrária, podia se articular e o levante foi sufocado. Diante do fracasso, dezoito
com o movimento de oposição ao partido republicano, amotinados (os 18 do Forte) saíram caminhando
num eixo de aliança que se dava no espaço genético de armados pelas ruas de Copacabana na direção de cerca
uma luta anti-oligarquica. de trezentos soldados legalistas. No caminho
receberam a adesão de um civil. Otávio Correia. No
Mas, ainda em 1928, o B.O.C, reconhecido pelos outros confronto morreram nove pessoas: oito soldados
agentes políticos como o porta voz do proletariado, rebelados e o civil que os acompanhava.
passaria a desenvolver uma prática política que
distanciava daquela proposta de revolução A derrota em 1922 serviu para estimular a
democrático-burguesa. Justamente por transgredir as intenção dos militares de tomar o poder. Foi
regras do jogo político, o B.O.C., indo além da mera organizado, então, o movimento conhecido como
atividade parlamentar e de luta eleitoral, tornou-se Revolução Tenentista de 1924. O centro das operações
progressivamente um elemento incômodo tanto para o era a cidade de São Paulo e o comando ficou nas mãos
governo do partido republicano como para as várias do general reformado Isidoro Dias Lopes. Os tenentes
tendências políticas da oposição. Esses momentos de invadiram a capital paulista no dia 5 de julho,
transgressão as normas do jogo político, tais como a acreditando que teriam o apoio dos operários,
arregimentação do operariado em torno do sindicato, a igualmente descontentes com a política do governo
defesa intermitentes das leis sociais e dos direitos federal. Não foi o que aconteceu. Assustada com a

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

rebelião militar, a população de São Paulo abandonou Os movimentos artísticos cubismo e futurismo surgiram
suas casas e os tenentes não tiveram o apoio esperado. na Europa, na primeira década do século XX. O
cubismo, criado pelo pintor espanhol Picasso (1881-
As forças leais ao presidente da República sitiaram a
1973) e pelo pintor francês Braque (1881-1963), teve
cidade e, no dia 27 de julho, seis mil soldados
seu principal período de formação entre 1907 e 1914.
abandonaram São Paulo, saindo em marcha em direção
O movimento caracterizou-se por romper radicalmente
ao Rio Paraná. Essa marcha ficou conhecida como
com a ideia de arte como imitação da natureza. O
Coluna Paulista.
futurismo, que foi fundado em 1909 pelo poeta italiano
Para não serem capturados, os soldados seguiram em Marinetti (1876-1944), glorificava o mundo moderno,
marcha por vários meses até se encontrarem com a as máquinas, a velocidade.
Coluna Gaúcha, oriunda do sul, comandada por Luís
Encerradas as atividades que marcaram a Semana da
Carlos Prestes. A Coluna Prestes formou-se da união
Arte, o movimento se manteve ativo. Obras
dessas colunas. A partir do dia 11 de abril de 1925, a
importantes do modernismo – como o livro
Coluna Prestes começou uma marcha pelo interior do
Macunaíma, escrito por Mário de Andrade – foram
país que duraria quase dois anos, percorrendo
produzidas posteriormente. Nesse sentido podemos
aproximadamente 25 mil quilômetros e com o objetivo
dizer que a agitação provocada em fevereiro de 1922
de difundir seus ideais e levantar a população contra o
foi apenas o primeiro passo para a renovação das artes
governo oligárquico. A Coluna contava com cerca de
no Brasil.
1.500 participantes e percorreu vários estados brasileiro
do Sul, do Nordeste e do Centro-Oeste. Divergências ideológicas dividiram os modernistas em
duas facções: o Grupo Pau-Brasil, que defendia valores
Em 1927, frustados por não terem conseguido a adesão
como a simplicidade e a busca das raízes da cultura
da população brasileira à sua causa, os remanescentes
brasileira, e o Verde-Amarelismo, de caráter
da Coluna (um grupo de 600 soldados,
nacionalista e conservador, que acabou derivando no
aproximadamente) refugiaram-se na Bolívia e deram
Integralismo, uma doutrina política identificada com o
por encerrada a sua marcha revolucionária.
fascismo.
Em 1928, Oswald de Andrade lançou o Movimento
6.8 A SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922 Antropofágico, uma crítica radical à civilização ocidental
A agitação urbana que marcou o início do século XX no e também aos rumos incertos tomados pelo
Brasil teve sua expressão artística mais eloquente no modernismo. O nome do movimento se originou da
movimento literário e artístico conhecido como Semana ideia de que era preciso fazer uma “devoração cultural
de Arte Moderna de 1922. das técnicas importadas”.

A Semana foi pensada e executada por um grupo de Oswald de Andrade e seu Movimento Antropofágico
intelectuais e artistas que tiveram contato com os tiveram a função histórica de sacudir o pensamento
artistas europeus do começo do século XX, dos quais cultural brasileiro, até então excessivamente preso aos
receberam influências do cubismo e do futurismo. De valores europeus.
volta ao Brasil, os jovens intelectuais buscaram quebrar Mas o modernismo foi um movimento cultural nascido
o tradicionalismo que imperava em nossa produção dentro das classes ricas, trazido da Europa pelos filhos
artística e experimentar as novas ideias trazidas da da aristocracia fundiária que continuavam indo à
Europa. O caráter natural da arte moderna foi um Europa para estudar. Para as classes pobres aqueles
grande choque para os que entendiam a arte segundo acontecimentos possivelmente não tiveram nenhum
os padrões do formalismo acadêmico. significado. Enquanto os intelectuais escandalizavam a
Entre os participantes da Semana de 22 estavam os elite conservadora, alguns compositores populares
escritores Menotti del Picchia, Mário de Andrade, criavam um dos maiores ícones de nossa cultura – o
Oswald de Andrade, Graça Aranha e Ronald de samba. Em 1915 foi registrada a primeira gravação de
Carvalho; os pintores Di Cavalcanti, Aita malfati, Yan de um disco com esse tipo de música. O pioneiro foi o
Almeida Prado, John Grz e Zina Aita; os escultores Vítor compositor Ernesto dos Santos, o Donga, e o samba
Brecheret e Wilheim Haarbeg; os compositores Heitor tem o nome de Pelo telefone.
Villa-Lobos e Ernani Braga. A continuidade do
movimento agregou ao Grupo de 22 outros nomes de
expressão na arte e na literatura, como Tarsila do
Amaral e Patrícia Galvão (Pagu).

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
CAPÍTULO 7 A REVOLUÇÃO DE 30 regra dos núcleos ‘tradicionais’, o elo mais fraco do
sistema é constituído pelo Exército e, no seu interior,
pelos ‘tenentes’.
Na década de vinte, o tenentismo é o centro
ALIANÇA
LIBERAL
mais importante de ataque ao predomínio da burguesia
cafeeira, revelando traços específicos, que não podem
RIO GRANDE DO SUL POLÍTICOS DISSIDENTES PARTIDO DEMOCRÁTICO ser reduzidos simplesmente ao protesto das classes
MINAS GERAIS PARAÍBA "TENENTES" médias. Se a sua contestação tem um conteúdo
VOTO SECRETO PROPOSTAS INCENTIVOS: moderado, expresso em um tímido programa
VOTO FEMININO
políticas
POLICULTURA modernizador, a tática posta em prática é radical, e
"DIREITOS INDÚSTRIA &
TRABALHISTAS" & COMÉRCIO altera as regras do jogo, com a tentativa aberta de
econômicas
assumir o poder pelo caminho das armas. Sob este
aspecto, embora inicialmente isolado, o movimento
tenentista está muito à frente de todas as oposições
Organograma informativo sobre a aliança regionais, ao iniciar a luta, em julho de 1922.
liberal;Antonio Pantoja 2008
O agravamento das tensões no curso da década
“A Revolução de 1930 põe fim à hegemonia da de vinte, as peripécias eleitorais das eleições de 1930, a
burguesia do café, desenlace inscrito na própria forma crise econômica propiciam a criação de uma frente
de inserção do Brasil, no sistema capitalista difusa, em março/outubro de 1930, que traduz a
internacional. Sem ser um produto mecânico da ambiguidade da resposta à dominação da classe
dependência externa, o episódio revolucionário hegemônica: em equilíbrio instável, contando com o
expressa a necessidade de reajustar a estrutura do país, apoio das classes médias de todos os centros urbanos,
cujo funcionamento, voltado essencialmente para um reúnem-se o setor militar, agora ampliado com alguns
único gênero de exportação, se torna cada vez mais quadros superiores, e as classes dominantes regionais.
precário.
Vitoriosa a revolução, abre-se uma espécie de vazio de
A oposição ao predomínio da burguesia cafeeira não poder, por força do colapso político da burguesia do
provém, entretanto, de um setor industrial, café e da incapacidade das demais frações de classe
supostamente interessado em expandir o mercado para assumi-lo, em caráter exclusivo. O Estado de
interno. Pelo contrário, dadas as características da compromisso é a resposta para esta situação. Embora
formação social do país, na sua metrópole interna há os limites da ação do Estado sejam ampliados para além
uma complementaridade básica entre interesses da consciência e das intenções de seus agentes, sob o
agrários e industriais, temperada pela limitadas fricções. impacto da crise econômica, o novo governo representa
Ao momento de reajuste do sistema, por isso mesmo, mais uma transação no interior das classes dominantes,
não corresponde o Ascenso ao poder do setor tão bem expressa na intocabilidade sagrada das
industrial, seja de modo direto, seja sob a forma da relações sociais no campo.
‘revolução de alto’, promovida pelo Estado.
Mais o reajuste, obtido após um doloroso processo de
A burguesia cafeeira se constitui ao longo da Primeira gestação – marcado pela Revolução de 1932, a Ação
República como única classe nacional, no sentido de Integralista, a liquidação do tenentismo como
que só ela reúne condições para articular formas de movimento autônomo, a Aliança Nacional Libertadora e
ajustamento e integrar assim o país, na medida de seus a tentativa insurrecional de 1935 – significa uma
interesses. Em face dela, não emerge nenhuma classe guinada importante no processo histórico brasileiro. A
ou fração com semelhante força, capaz de oferecer uma mudança entre o poder estatal e a classe operária é a
alternativa econômica e política viável. A disputa, no condição do populismo; a perda do comando político
interior das classes dominantes, tem a forma de um pelo centro dominante, associada à nova forma de
embate regional, mitigado pelos próprios limites da estado, possibilita, a longo prazo, o desenvolvimento
contestação. industrial, no marco do compromisso; as Forças
Armadas tornam-se um fator decisivo como
Tendo-se em vista a passividade da massa rural,
sustentáculo de um Estado que ganha maior
quebrada somente por explosões importantes, mas
autonomia, em relação ao conjunto da sociedade.
desprovidas de conteúdo político (Canudos,
Contestado), os limites de intervenção do proletariado, Na descontinuidade de outubro – 1930, o Brasil começa
a heterogeneidade das classes médias, dependentes em a trilhar enfim o caminho da maioridade política.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Paradoxalmente, na mesma época em que tanto se B - Congresso Nacional e oligarquias


insistia nos caminhos originais autenticamente
Por outro lado, era visível a intenção de Vargas de não
brasileiros, para a solução dos problemas nacionais,
se tornar refém dos grupos regionais. Assim, o
iniciava-se o processo de efetiva constituição das
Presidente de imediato dissolveu o Congresso Nacional,
classes dominadas, abriam-se os caminhos nem sempre
espaço privilegiado de representação das elites
lineares da polarização de classes e as grandes
brasileiras, concentrado os poderes no Executivo
correntes ideológicas que dividem o mundo
federal. A mesma medida foi aplicada aos estados e
contemporâneo penetravam no país”.
municípios. A representação legislativa, com as
eleições controladas pela máquina oligárquica, foi
desativada de 1930 a 1933. Além disso, a autonomia
A - A REPÚBLICA POPULISTA
regional foi reduzida em relação à possibilidade de
Apesar da rápida vitória, logo no início do governo contrair empréstimos no exterior – que dependiam
provisório de Getúlio Vargas (1930-1934) as agora de aprovação do governo central – e efetivos não
divergências entre os grupos no poder eram evidentes. podiam mais exceder os do Exército nem contar com
Com uma ponta de arrependimento e muita aviões e peças de artilharia.
insegurança, os representantes das oligarquias regionais
Empossado em três de novembro de 1930, Vargas
viam chegar interventores, geralmente tenentes,
assumiu o compromisso de convocar uma Assembléia
nomeados pelo Presidente, para dirigirem seus estados
Constituinte, a fim de elabora uma nova constituição
com poderes ditatoriais. No Norte-Nordeste, havia até
para o Brasil. No entanto, os “tenentes”, organizados
um vice-rei, como ironicamente era chamado o
no Clube 3 de Outubro, procuravam prolongar o
“tenente” Juarez Távora, responsável pela supervisão
governo provisório, com o objetivo de enfraquecer o
política de toda a região. A cúpula do Exército também
poder regional no Brasil e consolidar suas posições
estava apreensiva com o poder excessivo que os
políticas. Através de Getúlio Vargas, os tenentes viam a
tenentes – por eles combatidos durante a década de
possibilidade de estabelecer um Estado forte e
1920 – agora exerciam em todo o país. À frente de
centralizado no Brasil. Um velho projeto acalentado
todos estava Vargas, mas naqueles primeiros meses
desde o final do século passado por grande parte do
ninguém sabia ao certo quem ocupava de fato o poder.
Exército.
O clima de instabilidade política decorria da
Os descontentamentos logo se transformaram em clara
incapacidade dos principais atores sociais (oligarquias
oposição. As oligarquias regionais exigiam o
regionais, classes médias, militares e trabalhadores) de
restabelecimento do jogo parlamentar. Antigos aliados
exercer, com isso, sua hegemonia sobre os demais. No
ergueram-se contra o governo e exigiram a convocação
núcleo do governo provisório, Vargas, os tenentes e
da Constituinte e o fim do governo provisório. A maior
representantes das várias oligarquias tinham interesses
parte dos estados Norte-Nordeste, Minas Gerais e até
contraditórios, muitas vezes conflitantes. Ao redor do
mesmo o Rio Grande do Sul, terra de Vargas, voltaram-
poder, as Forças Armadas espreitavam os
se contra o Presidente. Mas o principal foco de
acontecimentos com cautela. Longe dos gabinetes, o
oposição residia em São Paulo.
ruidoso movimento operário continuava a apresentar
suas reivindicações reformistas e planos A chamada Revolução Constitucionalista de 1932,
revolucionários. derrotada em menos de três meses, era indicativa das
dificuldades políticas daquele momento. Apesar de
As oligarquias regionais sentiam-se duplamente
contar com simpatias entre oligarquias de várias partes
ameaçadas. De um lado, devido à presença de
do país, os paulistas ficaram isolados. Nenhum grupo
interventores, que muitas vezes aproximavam-se
de arriscou nem viu perspectivas de sucesso na
perigosamente dos operários e trabalhadores rurais,
destituição de Vargas e numa nova aliança com São
com propostas de apelo popular. Medidas, como
Paulo. Por outro lado, apesar de derrotados, os
redução do preço de aluguéis, melhorias nos serviços de
paulistas obtiveram concessões do governo federal, que
saúde, organização de sindicatos e expropriação das
visava com isso diminuir sua oposição a Getúlio, como a
terras dos fazendeiros comprometidos com o antigo
nomeação de Armando de Sales Oliveira, ligado ao
governos, punham em confronto interventores e
Partido Democrático (PD), como interventor e a criação
oligarcas.
da Universidade de São Paulo, em 1934. Os tenentes,
por sua vez, desgastados em termos políticos, tenderam
a se desarticular, engajando-se, individualmente, em
grupos à esquerda e à direita. Mais uma vez, vale

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
insistir, nenhuma força sociopolítica tinha condições de Pra poder me reabilitar
impor-se ao Brasil de forma hegemônica. A solução foi
Pois esta vida não está sopa
uma espécie de pacto político ou compromisso entre os
vários grupos dominantes. Enquanto isso, Vargas E eu pergunto: com que roupa,
ganhava terreno. Com que roupa eu vou
As oligarquias, sem condições de afastar Vargas e os Ao samba que você me convidou?
militares que o cercavam, fossem das Forças Armadas
ou do tenentismo, acabaram por aceitar sua direção. (Noel Rosa, Com que roupa, 1931.)
Ao mesmo tempo, a maioria dos tenentes era cooptada
pelo jogo político dos grupos regionais, enfraquecendo
as propostas reformadoras para o mundo rural. “A Constituição é como as virgens. Foi feita para ser
Começava a se delinear o compromisso entre o governo violada.” Essa frase. Atribuída a Getúlio Vargas, teria
central e as oligarquias regionais: fortalecimento do sido proferida alguns anos depois da elaboração da
Executivo, direção política de Vargas e manutenção das Constituição de 1934. Naquela altura, a deselegância e
relações sociais no campo, ou seja, do latifúndio, da o desprezo pelos princípios liberais e democráticos não
exploração da mão-de-obra livre e do mandonismo da eram particularidades de Vargas. Na Alemanha, desde
burguesia rural brasileira. 1933, Adolf Hitler governava com mãos de ferro,
exterminando seus opositores políticos, perseguindo os
judeus e estabelecendo a ditadura nazista. Na Europa
C - Constituinte presenciava-se a escalada de regimes autoritários,
inspirados nas ideias fascistas: Hungria, Polônia, Áustria,
Nas eleições para a Constituinte, realizadas em maio de Romênia, em breve também Portugal e Espanha.
1933, o governo estabeleceu um conjunto de regras que
aperfeiçoava o processo eleitoral ao mesmo tempo em Na União Soviética, implantara-se a ditadura do
que enfraquecia o poder oligárquico. O proletariado como o recurso para consolidar a
estabelecimento do voto secreto diminuía a ocorrência revolução e estabelecer a sociedade comunista.
de fraudes e a corrupção eleitoras. Por outro lado, a Voltada inicialmente contra os representantes das
extensão do direito de voto para as mulheres ampliava classes dominantes russas, logo a ditadura passou a
o eleitorado. Por fim, a instituição da bancada classista, perseguir outras tendências do movimento operário,
eleita através dos sindicatos de patrões e empregados, como os anarquistas e socialistas. Em 1924, com a
e composta por 40 delegados, diminuía a influência dos morte de Lênin, o principal dirigente da Revolução, o
outros 214 representantes eleitos em seus estados e, poder foi conquistado por Stálin, que empreendeu uma
em sua maioria, defensores de interesses oligárquicos. sistemática política de afastamento e eliminação de
seus adversários políticos, inclusive importantes
Ao final dos trabalhos, em julho de 1934, a Assembléia lideranças revolucionárias, como Leon Trotsky,
Constituinte escolheu Getúlio Vargas para governar o assassinado no México em 1940 por um agente da
Brasil até 1938. O país ganhava o mais avançado texto polícia secreta russa. O berço do sonho socialista, talvez
constitucional de sua história até então, que estabelecia a maior e mais bela construção utópica da cultura
direitos trabalhistas, garantias individuais e apresentava ocidental, transformava-se numa ditadura que
uma forte inclinação nacionalista quanto aos seus glorificava seu líder máximo, Josef Stálin.
recursos minerais. O presidente conseguia enquadrar
as oligarquias no novo arranjo político e assumia um
novo mandato com uma nova Constituição. E. Integralistas e comunistas
No Brasil, diversos grupos de direito organizaram-se,
D. A Moldura Autoritária em 1932, na Ação Integralista Brasileira (AIB), liderada
por Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale. A
AIB, que chegou a ter um contingente de mais de 600
Eu hoje vou mudar minha conduta, mil adeptos, possuía um projeto de Estado totalitário,
onde não se verificaria a separação e a independência
Eu vou pra luta
de poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Como
Pois eu quero me aprumar. razão suprema da sociedade e da nação, os interesses
do Estado deveriam prevalecer sobre os direitos e
Vou tratar você com força bruta,
interesses particulares de seus membros. Estabelecia-

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

se, assim, uma concepção corporativista, pela qual a O discurso pelas liberdades democráticas da ANL
sociedade, tida como um corpo, deveria ser dirigida por encobria, contudo, um plano revolucionário
um líder supremo, no caso o fundador do movimento, o estabelecido em Moscou por Prestes e pela
jornalista e escritor Plínio Salgado. Nacionalistas Internacional Comunista. Junto com o Cavaleiro da
ardorosos, os integralistas saudavam-se mutuamente Esperança, vieram dólares e militares da Internacional,
erguendo o braço direito e gritando Anauê, expressão entre os quais o alemão Artur Ernst Ewert, o argentino
tupi que quer dizer “você é meu parente”. Rodolfo Ghioldi, o norte-americano Victor Baron, o
Uniformizados com camisas verdes e calças pretas, russo Pavel Stuchevsky e a alemã Olga Benário, que se
tinham como símbolo a letra grega sigma, para tornaria a companheira de Prestes. O objetivo era
expressar a ideia de integridade, e o lema “Deus, Pátria destituir Vargas e estabelecer um governo
e Família”. revolucionário e popular no Brasil, alinhado com a
União Soviética.
A perspectiva autoritária dos integralistas tornava-os
opositores do liberalismo econômico e da democracia Em 5 de julho de 1935, no aniversário do levante do
burguesa. Seus principais adversários eram os Forte de Copacabana, Prestes, num inflamado discurso,
socialistas e os judeus, estes últimos tidos como conclamava os presentes à derrubada do governo.
estrangeiros e apátridas. Entre os seus adeptos Como represália, ainda nesse mesmo mês Vargas
figuravam intelectuais (alguns do movimento decretou a ilegalidade da ANL e as centenas de sedes
modernista), católicos, militares, empresários, do movimento espalhadas pelo Brasil foram fechadas
representantes das classes médias e operários. pela polícia.
Os dirigentes do PCB decidiram, então, quatro meses
depois, em novembro, pôr em prática o plano de
insurreição armada. A chamada Intentona Comunista
foi facilmente derrotada pelo governo, o que acabou
por fortalecer ainda mais o poder de Vargas. Logo após
o levante, o Presidente solicitou ao Congresso Nacional
a aprovação do estado de sítio, que suspendia as
garantias individuais, facilitava a prisão dos revoltosos e
permitia intervir em estados da União. Muito
semelhante às revoltas tenentistas, a Intentona
comunista restringiu-se a uns poucos batalhões em
Natal, no Recife e no Rio de Janeiro. Após as prisões de
seus participantes e dirigente, Prestes e Olga Benário
foram capturados em março de 1936, no bairro carioca
Em março de 1934, Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da do Méier. Sob uma feroz repressão, milhares de
Esperança, tornava-se o principal nome do PCB. pessoas foram presas e centenas brutalmente
Juntamente com alguns “tenentes” de esquerda, torturadas.
Prestes lançava, no ano seguinte, a Aliança Nacional
Libertadora (ANL). Tratava-se de uma frente popular,
constituída a partir do PCB, que procurava atrair os F. O Plano Cohen
setores democráticos e antifascistas da sociedade em
torno de um programa de reformas políticas e sociais, O “perigo vermelho” ofereceu a Vargas justificativa que
que compreendia a suspensão do pagamento da dívida o auxiliaram a permanecer no poder até 1945, e a
externa, a reforma agrária, a nacionalização das morte de soldados e oficiais do Exército no combate à
empresas e a defesa das liberdades individuais. Intentona seria explorada durante décadas para
alimentar o sentimento anticomunista entre os
As rivalidades entre integralistas e aliancistas militares. Em meados de 1936, com a prisão de todo o
incendiaram o país. Grandes comícios da ANL comando do levante comunista, não havia mais motivos
aglutinavam milhares de trabalhadores e para a manutenção do estado de sítio. Para tornar mais
representantes das classes médias. Os integralistas complexa a situação, a cada novo pedido de
desfilavam seus estandartes em disciplinadas marchas prorrogação dos poderes extraordinários do Presidente,
militarizadas. Os confrontos tornaram-se cada vez mas maiores eram as resistências do Congresso Nacional,
freqüentes. principalmente dos parlamentares articulados em torno
do paulista Armando de Sales Oliveira (PD), que

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
pretendia disputar as eleições presidenciais marcadas parlamentar, anticomunismo, fim das liberdades
para maio de 1938. Assim, em junho de 1937, o individuais, centralização político-administrativa,
Congresso acabou por negar um novo pedido de censura à imprensa e repressão política davam as cores
Getúlio. As oligarquias temiam um golpe de Vargas. do painel político autoritário que delineava a figura de
Vargas como chefe supremo do país. Os integralistas,
Nesse momento, três candidaturas já haviam sido
defensores de um regime totalitário e corporativista,
apresentadas. Além da de Sales Oliveira, a do
auxiliaram Getúlio na perseguição aos comunistas e
paraibano José Américo de Almeida, ex-ministro de
Vargas, e a de Plínio Salgado, líder dos integralistas.
Mesmo assim, tudo indicava que Getúlio Vargas não
estava disposto a deixar o poder.
Em setembro de 1937, o país era surpreendido por uma
grave denúncia: o PCB preparava uma nova insurreição
comunista, liderada por um agente internacional
denominado Cohen. Além do assalto ao poder, os
revolucionários tramavam o assassinato de centenas de
personalidades públicas e atentados a igrejas e prédios
do governo. Um documento interceptado por militares
atestava o plano. Na verdade, tratava-se de uma farsa
montada pelo capitão do Exército (e militante
integralista) Olímpio Mourão Filho e utilizada como
justificativa para ações enérgicas do governo federal.
Diante da “denúncia”, Vargas solicitou ao Congresso a aplaudiram entusiasticamente o golpe de Estado.
decretação do estado de guerra que lhe concederia
O fortalecimento do Executivo preencheu o “vazio de
mais poderes que os anteriores estados de sítio. Apesar
poder” verificado desde 1930. Diante da incapacidade
de algumas resistências, em 1º de outubro os
de qualquer grupo social de exercer sua hegemonia
parlamentares deram ao Presidente os poderes extra-
sobre o conjunto da sociedade, o Estado acabou se
ordinários.
transformando no principal agente político da nação.
“Quem não for contra o comunismo é comunista”. Esse Os interesses divergentes e conflitantes que opunham
era o lema das perseguições e intimidações políticas, os diversos setores oligárquicos, as classes médias, os
que se caracterizaram por intervenções nos estados, militares e a classe trabalhadora passaram a ser
prisões e criação de campos de concentração militares arbitrados autoritariamente pelo Presidente.
para os militares comunistas e simpatizantes. Tais
O Estado, por meio de dura repressão e de intensa
medidas conseguiram imobilizar as oposições, já caladas
propaganda, confundia-se com a figura paternalista de
pela censura aos órgãos de imprensa.
seu Presidente. Como pai “severo, mas justo”, Vargas
consolidaria o regime autoritário através do apoio do
7.1 O Estado Novo Exército e de um crescente e inigualável prestígio junto
às massas populares.
No dia 10 de novembro daquele ano, o Congresso
Nacional foi fechado. Violava-se a Constituição e, em
seu lugar, Vargas impunha à nação uma nova, elaborada 3. A Moldura Operária
pelo jurista Francisco Campos, que eliminava a
“Quem trabalha é que tem razão
autonomia dos estados, extinguia o Poder Legislativo
em todos os níveis (das câmaras municipais ao Eu digo isso e não tenho medo de errar
Congresso Nacional) e fortalecia o Poder Executivo.
O bonde São Januário
A ditadura de Getúlio Vargas inspirava-se no fascismo
Leva mais um operário
europeu. A Constituição de 1937 baseava-se nos
fundamentos legais do regime fascista polonês e por Sou eu que vou trabalhar”
isso ficou conhecida como a “Polaca”. O Estado Novo,
como foi denominado o novo sistema político, fazia
uma clara alusão à ditadura que Antônio de Oliveira
Salazar exercia em Portugal. Crítica à democracia

52
POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Durante a República Oligárquica (1889-1930), a política foi anunciada à nação como uma doação do Presidente
era exercida e definida, principalmente, nos gabinetes e aos trabalhadores, “concedendo” jornada de trabalho
câmaras legislativas, estaduais e federais, e nos currais de oito horas diárias, férias remuneradas, descanso
eleitorais pelo Brasil afora. A chamada Revolução de semanal, proibição do trabalho de menores de 14 anos
1930 ampliou o espaço e o ambiente do exercício do e licença para as mulheres gestantes. A “concessão”
jogo político. Aos gabinetes e currais somaram-se as tinha um sentido muito claro: apagar da memória
praças e ruas das grandes cidades brasileiras. As coletiva a importância da organização operária e de
manifestações de apoio popular a Vargas, iniciadas suas lutas, e dar ênfase à atenção de Getúlio Vargas
durante a campanha eleitoral e intensificadas desde os para com a classe trabalhadora.
primeiros dias de seu governo, tornaram-se um
ingrediente constante do seu modo de fazer política.
B.O Corporativismo
Os gabinetes, no entanto, eram pequenos para
acomodar as massas populares. Vargas consolidaria um O enquadramento do operariado não se fazia apenas
novo estilo de atuação, no qual a figura do Presidente pela regulamentação das conquistas trabalhistas. Em
estaria mais próxima da população de seu país. Alguns, 1931, o governo federal estabeleceu que os sindicatos,
mais afortunados, conseguiram até um aperto de mãos para funcionar e reclamar seus direitos ao Ministério do
ou um autógrafo. Outros iriam espichar-se em meio à Trabalho, deveriam contar entre seus associados 2/3 de
multidão para enxergar aquele presidente de pequena brasileiros natos. Foi um duro golpe na militância
estatura. Por quinze anos seguidos, de 1930 a 1945, a anarquista, em grande parte constituída de imigrantes e
maioria conseguiria ouvir sua voz aguda e penetrante, muito mais impetuosa que os hierarquizados
que assim iniciava seus discursos: “Trabalhadores do comunistas. Mas foi também resposta a uma alteração
Brasil”. que começava a se processar no Brasil, dada pela
ampliação do número de operários nascidos no país,
Num país onde as questões sociais eram tratadas como
descendentes de imigrantes ou vindos de outras regiões
caso de polícia, em que as reivindicações dos
brasileiras.
trabalhadores eram concebidas como desordem e
baderna, as atitudes de Vargas indicavam uma nítida Em 1935, foi aprovada a Lei de Segurança Nacional
mudança de rumos. A classe operária passava a figurar (LSN), que definia os crimes contra a ordem social:
nos discursos de parte da pomposa elite brasileira. greves de funcionários públicos, propaganda subversiva
e incentivo às rivalidades e conflitos entre os grupos
sociais. Em lugar da luta de classes, proibida por lei,
A. Os Direitos Trabalhistas Vargas impunha a conciliação social, que na realidade
significava a subordinação do operariado aos interesses
Desde o início de seu governo, Getúlio procurou fixar
da burguesia e do Estado nacional. Conciliação entre as
uma imagem paternalista junto aos operários, uma
classe, valorização do trabalho, disciplina, ordem e
espécie de “pai dos pobres”. Ao final de1930, era
nacionalismo compunha os elementos da ideologia
criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, a
trabalhista que começava a ser gestada no Brasil, sob
cargo do gaúcho Lindolfo Collor, com o objetivo de
forte influência do corporativismo fascista.
impulsionar a industrialização e de “atender” a
determinadas reivindicações da classe trabalhadora. Na Com o golpe de 1937 e a instauração da ditadura do
verdade, o Poder Executivo chamava para si a tarefa de Estado Novo, consolidou-se a ideologia trabalhista e
“arbitrar” os conflitos entre a classe operária e a completou-se o controle sobre as atividades sindicais.
burguesia industrial. Além de prender diversos dirigentes anarquistas,
socialistas e comunistas, o governo fez dos sindicatos
Como vimos, o movimento operário mostrou-se
meros departamentos do Ministério do Trabalho, com
particularmente ruidoso nas primeiras décadas do
funções assistenciais e recreativas. Em vez de greves e
século XX. Nesses momentos, apesar de contar com a
manifestações, os sindicatos organizavam festas,
ação repressiva dos diversos governos, a nascente
grêmios esportivos e colônias de férias para seus
burguesia industrial brasileira inquietava-se diante das
associados. Em lugar das combativas lideranças de
mobilizações do proletariado. Ao contê-las, o Estado
outrora, proliferaram os pelegos, representantes
enquadrava tanto a classe operária quanto a burguesia.
operários que defendiam os interesses dos patrões em
A regulamentação de direitos trabalhistas, consagrada vez das reivindicações dos trabalhadores.
na Constituição de 1934, fruto de inúmeras lutas e
contestações operária desde a República Oligárquica,

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
O controle sobre o movimento operário teve como grande parte da população brasileira, acostumada, até
desfecho a criação do salário mínimo e da então, a ser completamente ignorada por sua elite
obrigatoriedade do imposto sindical, em 1940, e a dirigente. O conteúdo das mensagens alterava-se ao
elaboração de um código de direito trabalhista sabor dos acontecimentos, mas um sentido era fixado:
denominado Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), esse Presidente importava-se como povo.
em 1943, baseado na Carta del Lavoro, legislação da
Em grandes comícios e desfiles, os trabalhadores
Itália fascista. Graças a uma intensa propaganda, o
carregavam bandeiras brasileiras e estandartes com o
trabalhismo ganhou os corações e as mentes da
retrato de Vargas. Através da cerimônia cívica,
população brasileira.
ritualizava-se o compromisso entre o Presidente, “pai
da nação” e os trabalhadores, seus “filhos mais pobres”.
Nessa “comunhão” emergia o Estado, um verdadeiro
C, Legitimação e propaganda
corpo místico onde não deveria haver disputas entre
seus órgãos e membros. Acima dos indivíduos e
interesses de classes, deveriam prevalecer os interesses
nacionais e a vontade de seu líder.
Essas inovações das práticas políticas devem ser
creditadas tanto à sensibilidade pessoal de Getúlio
quanto às condições gerais que cercaram o Brasil pós-
1930. O “vazio de pode” e a instabilidade verificada nos
primeiros anos desse período foram solucionados com
o crescente fortalecimento do Presidente. As massas
populares eram convocadas para o jogo político,
legitimado e fortalecendo o poder de Getúlio Vargas.
Clientes de suas doações e benefícios, elas eram
controladas a partir de duras medidas repressivas e
pelo prestígio do Presidente, que imobilizava suas
iniciativas autônomas.
A legitimação do regime era buscada através da ideia de
que entre o Presidente e as massas trabalhadoras não A legitimação junto às massas conferia poder e
deveria haver nenhuma intermediação. Assim, por estabilidade ao Estado Novo. O golpe de 1937 marcou
exemplo, a relação direta e “próxima” entre Vargas e o o fim da transição do Estado Oligárquico, característico
povo justificava o fechamento do Poder Legislativo e a das primeiras décadas da República (1889 a 1930), para
ofensiva contra os poderes oligárquicos. Em 1939, com o Estado Populista, que dominaria a vida da nação de
o objetivo de garantir tal proximidade, foi criado o 1930 até 1964. O enfraquecimento do poder político
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), das oligarquias registrara-se simultaneamente à
responsável por controlar os meios de comunicação e crescente incorporação da classe trabalhadora ao jogo
promover a propaganda do regime, o que incluía político e à ampliação do Poder Executivo. O Poder
censura a todas as manifestações cívicas e concursos Legislativo, espaço privilegiado da expressão
musicais, estímulo à produção de filmes nacionais e o oligárquica, permaneceu fechado provisoriamente de
aproveitamento sistemático do programa Hora do 1930 a 1933, funcionou sob medidas de exceção
Brasil, que desde 1934 era irradiado para todo o país (estado de sítio e estado de guerra) de 1935 a 1937 e
por todas as emissoras de rádio entre 19 e 20 horas. ficou completamente desativado durante o Estado
Novo até 1945.
Além de notícias políticas e de informações, a Hora do
Brasil transmitia músicas dos cantores mais populares Numa significativa cerimônia cívica, em dezembro de
da época, como Francisco Alves e Carmem Miranda, e 1937 o Presidente assistiu à queima e destruição das
discursos de Getúlio Vargas e do ministro do Trabalho. bandeiras estaduais e ao hasteamento do pavilhão
O programa representava o reconhecimento da nacional no Rio de Janeiro. Foi uma espécie de ritual
existência da classe trabalhadora e de suas questões fúnebre do Estado Oligárquico, que dava lugar ao
sociais. Quase todas as noites, através das ondas do Estado Populista. Como uma bandeira nacional, o
rádio, Vargas penetrava os lares brasileiros. No país retrato de Vargas, carregado em desfiles e pregado nas
marcado pelo “você sabe com quem está falando?”, isso repartições públicas, representava o próprio Estado
era inovador. A voz do Presidente era conhecida por brasileiro. Mas esse era agora um novo Estado.

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

D. O RETRATO DO VELHO interna das lideranças políticas brasileiras impediam o


alinhamento direto com qualquer das duas potências.
A economia brasileira caracterizou-se, até a década de
1930, por um modelo agroexportador, que vendia Em setembro de 1939, com a invasão da Polônia pelas
matérias-primas e gêneros tropicais e comprava grande tropas alemãs, tinha início a Segunda Guerra Mundial.
parte dos produtos industrializados da Inglaterra, De um lado, Alemanha, Itália e em breve o Japão,
Estados Unidos, Alemanha e outros países europeus. denominadas forças do Eixo. De outro, os Aliados:
Apesar do crescimento industrial verificado a partir do França, Inglaterra e mais tarde Estados Unidos e União
final do século XIX, o carro-chefe da economia nacional Soviética. Era hora de definições para o governo
continuava a ser a agricultura, liderada pela produção brasileiro. Em 1942, alegando o torpedeamento de
cafeeira. navios brasileiros pelos alemães, Vargas declarou
guerra às forças do Eixo.
A crise de 1929, e a conseqüente retração do mercado
externo, obrigou o governo brasileiro a voltar-se para o A agressão alemã não foi gratuita, como pode parecer à
interior, estimulando novas atividades produtivas que primeira vista. Após quase três anos de negociações, o
pudessem substituir, gradativamente, as importações. Brasil chegara a um importante acordo com os Estados
Mas foi a partir de 1937, com o Estado Novo, que foram Unidos, que emprestaram 20 milhões de dólares para a
dados os passos decisivos para a implantação do construção de uma usina siderúrgica no país. Em troca,
modelo de substituição de importações. Ou seja, os americanos ganharam o direito de estabelecer bases
através de uma deliberada intervenção econômica, o militares, utilizar portos, aeroportos, meios de
Estado restringiu a importação de bens de consumo comunicação e estradas de ferro e de rodagem no
não-duráveis (alimentos, bebidas) e estimulou a Brasil, em caso de necessidade militar. Em abril de
importação de bens de produção (máquinas, 1941 Vargas anunciou o início da construção da
equipamentos) e bens de consumo duráveis Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em Volta
(automóveis, caminhões). Redonda, Rio de Janeiro. No mês seguinte, os norte-
americanos já estavam na guerra. Em janeiro de 1942 o
Não eram tempos para o liberalismo econômico,
governo brasileiro rompeu as relações diplomáticas
defensor da livre concorrência. No mundo inteiro, as
com o Eixo. O Brasil já tinha feito a sua escolha. E
trocas decaíam em virtude da crise econômica
ganhara com ela. Quando os alemães atacaram as
provocada pelo crash de 1929 e pela tendência
embarcações brasileiras, o país, na prática, não estava
monopolista do capitalismo mundial. As tarifas
mais numa posição de neutralidade.
protecionistas e as disputas por mercados
consumidores de produtos industrializados e Para os norte-americanos, a América Latina fazia parte
fornecedores de matérias-primas logo desembocariam do círculo de segurança de sua fronteiras. Não se
num novo conflito, uma espécie de continuação da esperava o envio de tropas brasileiras para a Europa.
Primeira Guerra Mundial. A guerra comercial Bastava estabelecer bases de ação militar e impedir que
antecedeu a guerra militar. os alemães tivessem livre trânsito pelo hemisfério Sul.
Antes de entrar na guerra, os Estados Unidos
Agente da industrialização, o Estado Populista
garantiram sua retaguarda com uma ampla ofensiva
direcionou seus investimentos para garantir a
política, cultural e econômica que, além do Brasil,
montagem de uma infra-estrutura que permitisse a
também se dirigiu à Argentina e ao México. Foi a
expansão do capitalismo nacional ao mesmo tempo em
política de boa vizinhança, implantada oficialmente a
que socorria o setor cafeeiro com a compra e queima da
partir de 1940.
produção excedente. A economia, tal qual a política,
movia-se segundo a mesma lógica de compromissos Afora a CSN, o governo brasileiro criou, em 1942, a
que marcava o novo regime Companhia Vale do Rio Dose, para a extração de
minérios em Minas Gerais, e a Fábrica Nacional de
Motores (FNM), no Rio de Janeiro. Com essas empresas
E. O BRASIL NA II GUERRA MUNDIAL buscava abastecer o mercado interno com matérias-
O governo brasileiro soube tirar proveito da tensa primas, bens intermediários (barras de aço, motores,
situação internacional ao final da década de 1930. chassis, peças e engrenagens) e bens de produção
Desenvolvendo uma política pragmática, o Brasil (máquinas e equipamentos industriais) necessários à
manteve estreitas relações diplomáticas e econômicas produção de outros bens e à diversificação industrial. O
tanto com os Estados Unidos quanto com a Alemanha. impulso à industrialização e à modernização do país
A indefinição do quadro internacional e a divisão realizavam-se sob o signo do autoritarismo e do

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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pragmatismo diplomático. Mas a ambiguidade de (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O PSD
Vargas teria seu preço. reunia representantes oligárquicos próximos a Getúlio e
membros da burocracia do Estado Novo. Oficialmente,
seu candidato era o general Dutra. O PTB tinha uma
F. O Fim do Estado Novo feição marcadamente urbana, agrupando dirigentes
A participação do Brasil na guerra, ao lado das forças sindicais e representantes do Ministério do Trabalho.
antifascistas, expôs as contradições do regime Getúlio Vargas foi escolhido presidente dos dois
brasileiro. Apesar da forte influência fascista, o Brasil partidos. Não era coincidência.
lutava contra os Estados autoritários europeus, ao lado Em abril de 1945, Luís Carlos Prestes foi anistiado pelo
de países democráticos e da Rússia comunista. A Força governo e deixou a prisão junto com centenas de outros
Expedicionária Brasileira (FEB), com cerca de 25 mil presos políticos. No mesmo mês, o governo brasileiro
homens, combateu de 1944 a 1945. Curiosamente, o estabeleceu relações diplomáticas com a União
envio dos contigentes militares ocorreu por iniciativa do Soviética. Naquele ano o Partido Comunista do Brasil
governo brasileiro, contra a vontade de norte- (PCB) passou a funcionar legalmente.
americanos e ingleses.
No entanto a transição democrática ainda era incerta.
A guerra era o último esteio do regime autoritário. Com Desde o início das manifestações contra a ditadura, em
o avanço das forças aliadas a partir de 1943, Vargas 1943, ocorreram diversos conflitos entre cidadãos e
comprometeu-se a convocar eleições gerais ao final dos forças policiais, e prisões de lideranças políticas.
conflitos militares. Pelo rádio, milhões de brasileiros Mesmo assim, Getúlio Vargas prometia a democracia e
acompanhavam os noticiários das frentes de batalha. A afirmava que não concorreria à presidência, nas
resistência heroica de Stalingrado (atual Volgogrado), o eleições agora marcadas para dezembro de 1945. Mas
desembarque na Normandia, a campanha da Itália e, sua declarações eram recebidas com muita
finalmente, a tomada de Berlim pelos soviéticos. Uma desconfiança. “Lembrai-vos de 37.” Esse era o slogan
verdadeira aula de Geografia. E de Política. da forte campanha oposicionista da UDN. Como
A direção do processo de democratização do país seria naquela ocasião, temia-se um golpe de Getúlio. A
alvo de intensas disputas. O enfraquecimento do oposição tentaria antecipar-se ao ditador.
prestígio pessoal de Vargas e a iminente reabertura do
Poder Legislativo indicavam uma nova correlação de
G. Queremismo
forças políticas. O Estado Populista teria de se adaptar
à democracia representativa e os compromissos entre Em meio às inseguranças que cercavam os preparativos
os diversos grupos sociais teriam de ser atualizados. para as eleições, num comício no estádio do Pacaembu
em São Paulo, Prestes surpreendeu a nação com um
Com o poder adquirido ao longo do Estado Novo e o
discurso em que defendia a permanência de Getúlio
prestígio da guerra, alguns militares não aceitariam
Vargas na presidência até a elaboração de uma nova
mais a posição de coadjuvantes do processo política
Constituição para o Brasil. “Constituinte com Getúlio”,
nacional. Desde 1930 as Forças Armadas ganharam
passou a ser o lema dos comunistas recém-libertados
coesão, recursos e efetivos militares. Nos anos da
das prisões do Estado Novo. Na verdade, diante de seu
Segunda Guerra, muitos oficiais haviam se
relativo enfraquecimento junto aos grupos no poder
impressionado com a organização e o poder do Exército
(Exército e oligarquias) e ao fortalecimento da oposição,
norte-americano e já demonstravam seu
Vargas aproximava-se do movimento popular.
descontentamento em apoiar uma ditadura
Novamente tentava equilibrar-se no poder.
personalista como a de Getúlio Vargas. Entre o final de
1944 e o início de 1945, dois militares lançaram suas “Queremos Getúlio.” Em pouco tempo, um amplo
candidaturas à presidência da República: o major- movimento de massas passou a exigir a permanência
brigadeiro Eduardo Gomes e o general Eurico Gaspar de Vargas na condução da transição democrática. Seus
Dutra. participantes foram denominados queremistas. Temia-
se que, sob a influência das oligarquias e sob as
As forças políticas passaram a organizar seus partidos.
pressões norte-americanas, os grupos mais
Opositores oligárquicos, liberais, intelectuais e
conservadores controlassem o poder. O PCB, apesar
dissidentes do Estado Novo agruparam-se na União
das perseguições sofridas, seguia as orientações de
Democrática Nacional (UDN), em torno da candidatura
Moscou para apoiar os governos que haviam lutado
de Eduardo Gomes. Do interior do governo Vargas
contra os regimes nazi-fascistas. Na avaliação de seus
surgiram dois partidos: o Partido Social Democrático
dirigentes, uma Constituinte com Getúlio traria mais

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

avanços para a classe trabalhadora. A ambiguidade do intermediação dos líderes populistas. Timoneiros que
ditador era contagiante. Enquanto flertava com os diziam conhecer os problemas das classes subalternas e
comunistas, Vargas conduzia o processo eleitoral de prometiam solucioná-los, os líderes populistas eram
maneira a interferir em seus resultados. obrigados a vencer verdadeiras tempestades sociais,
decorrentes do acúmulo dos interesses divergentes
Um ato político-administrativo serviu de pretexto para a
represados por tantas décadas. Muitos naufragaram.
articulação que envolveu todos os que temiam a
permanência da República. A continuidade com o período anterior é evidente. No
plano político, o populismo apresentava-se
Em 29 de outubro de 1945, o ex-tenente João Alberto
democrático, repleto de partidos e lideranças
comunicou seu remanejamento da chefia da Polícia
carismáticas, capazes de arrastar multidões a seus
para a Prefeitura do Distrito Federal. Não se tratava de
comícios e pronunciamentos. A ausência de um setor
uma promoção. Desde agosto desse mesmo ano, ele
hegemônico era compensada, mais uma vez, pelo papel
tentava impedir, sem sucesso, a realização de comícios
de árbitro que compensava, mais uma vez, pelo papel
queremistas e reunia-se, com frequência, com militares
de árbitro que o Estado tinha de desempenhar. No
de alta-patente interessados no afastamento de Vargas
entanto, com o voto, a população podia influir na
da presidência da República. Para o seu lugar, Getúlio
composição das elites e nos destinos do país. Em
nomeou seu irmão Benjamim Vargas, que nem sequer
termos econômicos buscava-se o desenvolvimento
chegou a exercer a estratégica função na capital do país.
nacional através da industrialização, orientada pelo
Horas depois do comunicado, liderados pelo general
modelo econômico de substituição de importações. Do
Góis Monteiro, colaborador de Vargas desde 1930 e seu
ponto de vista social, a crescente participação das
ministro da Guerra na ocasião, os chefes das Forças
classes trabalhadoras, a urbanização e as crises
Armadas depuseram o Presidente.
periódicas ampliaram a demanda social e as
José Linhares, presidente do Supremo Tribunal assumiu reivindicações trabalhistas. No conjunto, a sociedade
a presidência da República em caráter provisório. brasileira experimentou um período de imensa
Manteve o calendário eleitoral e, assim, em 2 de politização e mobilização, ainda sob a tutela do Estado.
dezembro de 1945, pouco mais de 6 milhões de
A Constituição aprovada em setembro de 1946 garantia
brasileiros participaram da tão esperada eleição, que
a independência dos poderes (Executivo, Legislativo e
resultou na vitória de Eurico Gaspar Dutra.
Judiciário), restringia o direito de voto aos alfabetizados
Apesar de deposto, e recolhido à sua fazenda de São maiores de 18 anos, mantinha o imposto sindical
Borja, no Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas seria ainda obrigatório, reconhecia o direito de greve e estipulava o
por muito tempo o divisor de águas da política mandato do presidente em cinco anos sem direito a
brasileira. reeleição. Em linhas gerais, era bastante semelhante à
Constituição de 1934, também orientada pelos
princípios liberais e democráticos.
CAPÍTULO 8: REPÚBLICA POPULISTA
A democracia recém-instaurada seria refém de ameaças
8.1 EURICO GASPAR DUTRA de golpe por parte dos setores mais reacionários do
Durante a democracia populista, de outubro de 1945 a jogo político nacional. Uma espécie de recurso que
março de 1964, o Brasil teve quatro eleições visava compensar eventuais perdas eleitorais e
presidenciais e dez presidentes, dos quais três foram concessões aos grupos populares.
depostos, dois eram vice-presidentes, quatro Apesar de ter ampla maioria parlamentar e caráter
assumiram interinamente, um renunciou e outro nitidamente conservador, o governo Dutra (1946-1951)
suicidou-se no exercício do poder. Apenas dois foi marcado pela instabilidade social e por altas taxas de
completaram seus mandatos, apesar das corriqueiras crescimento econômico. Além da repressão aos
ameaças de golpes de Estado. Destes últimos, apenas comunistas, ocorreram intervenções em sindicatos e
um era civil. prisões de lideranças operárias. As greves e
Nesse oceano de instabilidade, os governantes manifestações dos trabalhadores eram provocadas
populistas tiveram de navegar aproveitando-se ou pelas perdas salariais decorrentes da inflação do
desviando-se das correntezas das pressões sociais dos período pós-guerra. Em lugar de elevar os salários,
grupos dominantes e dos setores populares. A Dutra promoveu uma liberalização da economia,
incorporação das massas urbanas ao processo político, permitindo a ampla entrada de produtos norte-
agora também através do voto, realizava-se pela americanos no mercado brasileiro. Através da livre-

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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concorrência, os economistas do governo acreditavam
que ocorreria uma redução geral nos preços praticados.
8.2 Getúlio Vargas – II GOVERNO
O alto índice de importações provocou uma enorme
Eleito com 48,7 % dos votos, Vargas teve sua posse
evasão de recursos acumulados na Segunda guerra,
contestada pela UDN, que alegava ser necessário uma
obrigando o governo a rever sua política econômica
votação superior a 50 %. Grande parte do PSD
liberal. Em 1947, foi estabelecido um sistema de
abandonara a candidatura de Cristiano Machado e
controle de importações e valorização da moeda
aderira a Vargas. Importantes jornais, como O Estado
nacional, com o objetivo de estimular a produção para o
de S. Paulo, O Globo e Tribuna da Imprensa,
mercado interno. No mesmo ano era anunciada a
estampavam advertências e intimidações contra o novo
elaboração do Plano SALTE, que previa a implantação
presidente. Apesar das ameaças golpistas, Vargas
de recursos públicos nas áreas de Saúde, Alimentação,
tomou posse em janeiro de 1951. O velho voltava ao
Transporte e Energia. Por falta de investimentos, o
poder, dessa vez, nos braços dos eleitores. Prometera à
plano foi um estrondoso fracasso. Ao mesmo tempo
nação que a classe trabalhadora subiria com ele as
em que os indicadores sociais eram negativos,
escadas do Palácio do Catete.
principalmente devido às perdas salariais, a economia
brasileira prosperava, registrando um crescimento O governo Vargas (1951-1954) pode ser dividido em
médio de 8% ao ano entre 1948 e 1951. duas fases. Na primeira, de 1951 a 1953, procurou
estabilizar a economia, detendo a inflação e
O primeiro governo brasileiro do pós-guerra consolidou
equilibrando as finanças públicas. Com um ministério
o alinhamento do país com os Estados Unidos.
conservador, com nítida maioria do PSD e até um
Aceitando a liderança internacional dos norte-
representante da UDN, permitiu o aumento das
americanos, Dutra rompeu relações diplomáticas com a
importações como tentativa de diminuir as taxas
União Soviética em 1947 e participou da onda
inflacionárias que registraram 12% em 1951, 13% em
anticomunista que se alastrava pela América Latina.
1952, 21% em1953. Apesar disso, o PIB (Produto
Interno Bruto) continuou seu crescimento, que foi de
4,9% no ano de 1951 e de 7,3% em 1952.
Sucessão Presidencial
A adoção da receita liberal, que previa a diminuição da
Do ponto de vista político o governo Dutra foi
intervenção do Estado na economia, o corte de gastos
melancólico. Já ao final de 1946, Vargas retirou o apoio
públicos e a maior participação do capital estrangeiro
concedido ao Presidente e ocupou-se no fortalecimento
no mercado nacional, foi, no entanto, passageira. Além
do PTB, com vistas à sucessão presidencial. A partir da
da inflação, o país esteve às voltas com um gigantesco
metade do mandato, a agenda política foi atropelada
déficit de US$286 milhões, em sua balança de
pela sucessão. Vargas lançou-se candidato pelo PTB, o
pagamentos em 1953, que provocou o esgotamento de
terceiro partido do país em número de parlamentares,
suas reservas financeiras e atrasos na quitação de suas
em aliança com o Partido Social Progressista (PSP), do
dívidas. Em resumo, o Brasil precisava encontrar meios
governador Ademar de Barros. Para a aliança ficara
de atrair capitais estrangeiros e conter a fuga de divisas.
combinado que, um vez eleito, Vargas apoiaria Ademar
Em janeiro de 1952, o governo baixou um decreto que
para sua sucessão. Era a união dos dois maiores líderes
limitava em 10% a remessa de lucros que as empresas
populistas daquela época. O “pai dos pobres”, símbolo
estrangeiras obtinham em suas atividades no país.
da nação durante o Estado Novo, e o “tocador de
obras”, popularizado pela máxima “aos amigos tudo, Ainda nesse período, dois acontecimentos
aos inimigos a lei” e autodefinido pela expressão “rouba internacionais afetaram a economia brasileira. Em 1951
mas faz”. Era uma dupla e tanto. os Estados Unidos envolveram-se na Guerra da Coréia,
procurando deter o avanço comunista no continente
O presidente Dutra recusou-se a apoiar Getúlio Vargas e
asiático. Apesar das insistentes pressões diplomáticas,
lançou a inexpressiva candidatura do mineiro Cristiano
o Brasil manteve uma posição de relativa autonomia,
Machado, pelo PSD. Pela UDN concorria novamente o
recusando-se a enviar tropas para a região. No início de
brigadeiro Eduardo Gomes. Maldosamente dizia-se que
1953 o general Eisenhower assumiu a presidência dos
o brigadeiro tinha um ar tão solene que parecia ter
Estados Unidos. Representante do conservador Partido
nascido mais para estátua que para candidato à
Republicano, sua eleição acompanhava o acirramento
presidência. A UDN relutava em participar das
da Guerra Fria e trouxe alterações no tratamento
estratégias populistas. Em meio à campanha, o
dispensado ao governo Vargas. Alegando necessidade
Brigadeiro declarou ser favorável à extinção do salário
de contenção de gastos, o governo norte-americano
mínimo. Não era popular.

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

cortava uma série de financiamentos que deveriam ser A. A Crise Política


realizados no Brasil. De certa forma era uma retaliação
Pressionado à direita pelos setores conservadores e à
pela não-participação brasileira na Guerra da Coréia.
esquerda pelo movimento operário, Vargas procurava
A partir desse momento ocorreu uma virada impor-se como árbitro dos conflitos sociais e conciliar
nacionalista no país. O programa de desenvolvimento forças opostas e contraditórias, como já havia feito por
nacional, tão alardeado durante a campanha eleitoral, ocasião do Estado Novo. No entanto, com a
seria implementado nessa segunda fase do governo democracia instaurada e sem a censura, a situação era
Vargas, que estava começando. A política econômica mais complexa. Quando reprimia a ação de grevistas,
visava claramente a defesa das riquezas nacionais e Vargas perdia apoios no interior do movimento
investimentos em setores estratégicos, principalmente operário e fornecia argumentos aos comunistas, que o
energia e siderurgia. Ao mesmo tempo, falava-se em acusavam de ser um representante da burguesia e um
combater a inflação através de medidas rigorosas instrumento do imperialismo norte-americano. Quando
contra especuladores e grupos empresariais que tentava atender parcialmente às reivindicações dos
monopolizavam determinados setores da economia. trabalhadores, provocava a ira dos udenistas e dos
setores mais conservadores das Forças Armadas.
A política nacionalista, apesar de apontar para a
independência e a soberania nacionais, via-se limitada A delicada situação exigia medidas drásticas. Vargas,
pela conjuntura internacional. Ao contrário dos tempos que havia recorrido às massas urbanas para se eleger,
da Segunda Guerra, não havia grandes margens de alterou, então, o perfil político de seu ministério.
manobra nas negociações com os Estados Unidos, e um Nomeou, para a pasta do Trabalho, João Goulart, jovem
rompimento com a principal potência capitalista seria político do PTB e fazendeiro do Rio Grande do Sul, que
uma aventura leviana. Por outro lado, para financiar o logo se destacou como habilidoso negociador com a
desenvolvimento do país era necessário atrair capitais classe operária. Para a oposição, no entanto, Jango,
estrangeiros. como era conhecido, encarnava o radicalismo
subversivo. Permitindo a ação sindical dos comunistas
Mesmo assim, o governo manteve o crédito a setores
e dialogando com o movimento operário, Jango firmou-
empresariais e passou a investir fortemente em infra-
se como um líder muito próximo da classe
estrutura e energia, visando acelerar a industrialização
trabalhadora. Seus adversários acusavam-no de querer
do país. Em 1953, criou a Petrobrás, empresa que
organizar uma república sindicalista no país, atraindo o
deteria o monopólio do refino e da exploração de
proletariado com medidas demagógicas.
petróleo, fundamental, no entender dos nacionalistas,
para a soberania do Brasil. Esses gastos públicos, No início de 1954, Jango foi encarregado de estabelecer
somados ao aumento da circulação monetária no país, um reajuste para o salário mínimo. Em meio a greves
mantiveram elevados os índices inflacionários. operárias e manifestos de militares descontentes com
os soldos, o ministro anunciou um aumento de 100%,
Ainda no mesmo ano, Vargas promoveu um verdadeiro
justificando: “Não são os salários que elevam o custo de
confisco nos lucros dos exportadores de café,
vida; pelo contrário, a alta do custo de vida é que exige
recolhendo uma parte de suas receitas para financiar
salários mais altos”. Foi destituído no mesmo dia.
outros setores da economia. Os cafeicultores
mostraram-se desapontados. Apesar de tantos anos de Apesar dos protestos da oposição, Vargas manteve o
política de valorização do café, de investimentos e de aumento do salário mínimo, anunciando-o à classe
compra e queima de estoques excedentes, trabalhadora em 1º de maio de 1954:
acostumaram-se a socializar apenas as perdas, jamais os
“Como cidadãos a vossa vontade pesará nas urnas.
lucros. Uma política de elevação dos preços do café no
Como classe, podeis imprimir ao vosso sufrágio a força
mercado externo, num contexto de aumento da
decisória do número. Constituís a maioria. Hoje estais
procura do produto, provocou fortes reações nos
com o Governo. Amanhã sereis o governo.”
Estados Unidos, tornando ainda mais difíceis as relações
entre os dois países. Parecia que a classe operária subia as escadarias do
Catete nos braços do presidente. Era o inverso. Vargas
Enquanto isso, as greves operárias tornavam-se cada
estava descendo.
vez mais frequentes em função das profundas perdas
salariais. A classe trabalhadora olhava desconfiada para A essa altura a oposição a Getúlio era feroz. E ampla.
as escadarias do Palácio do Catete. E os comunistas Comunistas, militares anticomunistas, UDN, industriais,
mantinham-se na oposição. banqueiros, a maior parte da imprensa e,
evidentemente, o governo norte-americano. A direita,

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liderada por Carlos Lacerda, propunha a destituição de morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo
Vargas, a reforma das instituições políticas e o combate no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na
ao populismo. Denunciava, seguidamente, casos de História
favorecimento, empreguismo e corrupção. Segundo o
líder udenista, o governo estava naufragando num
verdadeiro mar de lama. B. TERRA EM TRANSE
O elevado tom das críticas udenistas precipitou a
tempestade. Na madrugada de 5 de agosto de 1954, Populismo Bossa-Nova
Rio de Janeiro. Mas o tiro atingiu e matou Rubens Vaz,
major da Aeronáutica que o acompanhava. A oposição Bossa nova mesmo é ser presidente.
tinha agora uma vítima, um crime, a revolta militar e Desta terra descoberta por Cabral.
toda a atenção do país voltada para os bombásticos
pronunciamentos de Carlos Lacerda. Faltava descobrir Para tanto basta ser, tão simplesmente, simpático ,
o criminoso. risonho ,original.

Por iniciativa da Aeronáutica, foi montado o esquema O suicídio de Getúlio Vargas prolongou a República
de investigação na base aérea do Galeão, no Rio de Populista por mais dez anos. A comoção popular não
Janeiro. A República do Galeão, como ficou conhecida a foi suficiente para eliminar as intenções golpistas da
base durante o episódio, tornou-se o poder paralelo do UDN, mas pôde amortecê-la. As pressões populares
país durante alguns dias. Preso o pistoleiro, logo atingiriam níveis altíssimos e obrigariam os líderes
chegou-se ao mandante do crime: Gregório Fortunato, populistas a realizar manobras cada vez mais arrojadas.
fiel servidor de Vargas, chefe da guarda presidencial, João Café Filho, o vice-presidente, assumiu o poder em
conhecido como o Anjo negro. agosto de 1954 afirmando defender a continuidade dos
Diante da gravidade da situação, 27 generais assinaram compromissos com os humildes, de que falara Vargas
um manifesto à nação, exigindo a renúncia do em sua carta-testamento. Na verdade, o representante
Presidente. Nas rua a indignação tomava conta do do PSP havia rompido com o Presidente e engrossara o
semblante da população. Na imprensa os ataques coro dos que exigiam sua renúncia. A maioria de
contra Getúlio eram incessantes. Nunca antes o mar udenistas em seu ministério não deixava dúvidas
das pressões populistas havia sido tão revolto. Mar quanto à sua filiação ideológica.
tormentoso. A agenda política pautava-se agora nas eleições
No momento de menor prestígio popular, no momento presidenciais, marcadas para outubro de 1955.
ínfimo de sua trajetória política, desacreditado pela Agrupados, os herdeiros do getulismo lançaram a
imensa maioria da nação brasileira, acuado pela ação da candidatura de Juscelino Kubitschek, governador de
oposição e abandonado por inúmeros de seus Minas Gerais pelo PSD, à presidência da República,
companheiros e seguidores, Vargas conseguiu reverter tendo como vice o ex-ministro do Trabalho João
a situação. Com um tiro no próprio peito, o Presidente Goulart, do PTB. A UDN indicou o general Juarez Távora.
deixava o governo, mas se mantinha vivo no poder. Ademar de Barros, pelo PSP, e Plínio Salgado, pelo PRP,
completavam o quando dos candidatos.
Anunciada sua morte, multidões de trabalhadores em
fúria tomaram as ruas das principais cidades brasileiras. A composição PSD-PTB era praticamente imbatível.
As sedes dos jornais, das emissoras e dos partidos Reunia as massas urbanas e representantes das
oposicionistas foram depredadas. Queimaram-se oligarquias regionais. Agrupava as classes médias,
bandeiras norte-americanas. Exemplares do jornal setores da burguesia (industrial, agrária e comercial) e
Última Hora, francamente getulista, circulavam de mão sindicalistas. Formava uma “frente nacional” que tinha
em mão. Pelo rádio, repetia-se incessantemente o texto como programa a expansão da indústria brasileira,
da carta-testamento encontrada ao lado do corpo do reunindo os dois conceitos-chave do período,
Presidente. A dramaticidade do suicídio e a derradeira nacionalismo e desenvolvimento.
cena do grande espetáculo do líder populista resumiam- Mesmo assim, as eleições de 1955 foram as mais
se claramente no seu último parágrafo: disputas de todo o período populista. Juscelino
“Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a alcançou 36% dos votos, contra 30% de Távora, 26% de
espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O Ademar e 8% de Plínio Salgado. A UDN praticamente
ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. mantinha os mesmo índices da eleição de 1950.
Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha Ademar e Plínio fizeram a diferença.

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

8.4 Juscelino Kubitschek e na produção cultural e artística, que criticava as


influências estrangeiras, o período JK foi também
O governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961)
marcado pela assimilação e imitação de
coincidiu com um período de otimismo e euforia jamais
comportamentos norte americanos introduzidos numa
visto na história brasileira. Apoiado em uma visão de
avalancha no país. A juventude transviada de James
modernidade industrializante, o novo presidente
Dean, Chuck Berry, Elvis Presley e Jerry Lee Lewis, que
prometia cinquenta anos de desenvolvimento em seus
ouvia rock’n’roll, apostava corridas de automóvel,
cinco anos de mandato. Escadas rolantes, elevadores
sonhava com Marilyn Monroe, usava blue jeans e
com música ambiente, televisores, rádios de pilha,
jaquetas de couro, odiava política, consumia álcool e
lambretas, automóveis formavam os símbolos de uma
envolvia-se com frequência em brigas de turmas,
geração inebriada com o conforto da vida moderna.
invadia com seus símbolos nas ruas, praças e avenidas
Novas molduras, propiciadas pela tecnologia, do nosso país tropical.
enquadravam as ruidosas massas urbanas. Majestosos
Havia, sobretudo nas cidades, um precário equilíbrio de
cinemas exibiam as produções hollywoodianas e filmes
valores morais. As mulheres – cobertas por anáguas,
das duas grandes companhias do país, a Atlântida e a
combinações, cintas, vestidos, sutiãs com enchimento –
Vera Cruz. Grandes estádios abrigavam milhares de
dividiam-se entre as sérias e as sem-vergonha. As
torcedores num das fases mais entusiásticas do futebol
primeiras, esposas que em geral casavam-se virgens,
brasileiro. Largas avenidas tornavam-se passarelas de
cuidavam da educação dos filhos e das roupas dos
desfiles de carnaval, de manifestações e comemorações
maridos. As segundas, dançarinas e vedetes, que
públicas, ao mesmo tempo em que constituíam espaço
ofereciam tratamento de luxo aos seus seletos
de diferenciação do coletivo, que circulava a pé, de
convidados: roupas íntimas pretas, perfume francês,
ônibus ou bonde, e do individual, dos automóveis “do
champanhe Moët Chandon e abajur lilás, como fazia a
chuá”1 e das “bárbaras”.
célebre vedete Angelita Martinez, tida como amante do
Acima de todas as possíveis molduras, emergia na vida vice-presidente João Goulart e do jogador de futebol
cotidiana a pequena tela da televisão, que enquadrava Mané Garrincha. Entre as amantes e as sérias, havia as
as massas no interior de suas casas e no núcleo familiar. separadas e desquitadas, que povoavam as fantasias
Com programação ao vivo, shows de calouros, dos conquistadores e eram motivo de vergonha e
concursos de misses, provas de conhecimentos e, constrangimentos para as famílias de bem.
principalmente, novelas, a televisão alterou o
A rígida moras não resistia ao carnaval. Nos recatados
comportamento de milhares de brasileiros e tornou-se
bailes de salão, a classe média alta apartava-se do
o bem de consumo mais cobiçado do país. Diante da
convívio com os grupos subalternos, mas ouvia as
telinha mágica, a massa permanecia público.
marchas e sambas produzidos nos morros cariocas,
Por conta de todas essas transformações mas também permitindo-se roupas e rebolados mais ousados,
pelas condições políticas, pode-se considerar a segunda máscaras e farto consumo de lança-perfume. Nas ruas,
metade da década de 1950 como o auge do regime sem as molduras dos salões, a massa ruidosa subvertia
populista. Apesar de algumas escaramuças militares e por alguns dias a hierarquia social, ocupando o espaço
da mobilização dos trabalhadores urbanos e rurais, o público sem pudores. Ao pé dos morros e nas vielas, a
governo de Juscelino conseguiu conviver com setores malandragem de terno e navalha vivia seu carnaval o
antagônicos, amortecer os setores golpistas e suportar ano inteiro.
as pressões populares. Os militares foram agraciados
Numa época em que se presumia que as aparências não
com atenção especial. Tiveram suas reivindicações
enganavam, mulher honesta não podia fumar em
particulares atendidas e assumiram importantes postos
público, usar calça comprida ou entrar num cinema
no governo. O movimento sindical manteve-se sob o
desacompanhada; o homem era obrigado a demonstrar
controle do governo. E a aliança PSD-PTB significou
sua valentia e proteger as damas de quaisquer
uma afinada parceria.
grosserias; os filhos deviam manter-se respeitosos aos
Apesar da euforia e da fina sintonia política, o pais, mesmo diante de suas maiores arbitrariedades; o
entusiasmo modernizador encobria uma séria de uso de uma camisa lilás ou rosa por um homem não
contrastes e ambigüidades. Época de afirmação dos deixava dúvidas: tratava-se de um “mandraque”2.
valores nacionais, concretizada nas vitórias esportivas –
principalmente a Copa do Mundo de Futebol de 1958 –

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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Tempos de maniqueísmo, de inconciliáveis oposições, quase 30% da renda nacional, enquanto os 50% mais
de afirmação do bem contra o mal. Também nos pobres possuíam apenas 15%.
comportamentos cotidianos vivia-se a Guerra Fria.
Numa época de verdadeira euforia econômica, com
A. Nacional-desenvolvimentismo enorme crescimento da economia nacional, as
disparidades sociais e regionais passavam facilmente
Através do Plano de Metas, o governo apontava as
despercebidas. Com a crise projetada para o próximo
áreas prioritárias para o investimento estatal: energia,
governo, tais desigualdades emergiriram com todo o
transporte, alimentação, indústria de base e educação.
seu radicalismo e exigiriam reformas estruturais na
Dando continuidade à política econômica do governo
sociedade brasileira. A previsão era de novas
Vargas, procurava estimular a industrialização através
tempestades no oceano populista.
da associação com o capital estrangeiro.
A política econômica de JK, denominada nacional-
desenvolvimentismo, era semelhante à bossa nova. 8.5 JÂNIO QUADROS
Esse novo ritmo musical, surgido na década de 1950 no
Em 1960, pela primeira vez desde o estabelecimento da
Brasil, combinava a música nacional e o jazz norte-
democracia populista, o resultado das eleições
americano. A política nacional-desenvolvimentista
presidenciais não favoreceu o arranjo que orquestrou a
representava uma variação melódica dentro do modelo
política brasileira desde o final do Estado Novo.
de substituição de importações, visando superar um de
Integrado a coligação que conseguiu levar Jânio
seus aspectos mais problemáticos: a obtenção de
Quadros à vitória, a UDN quebrou a hegemonia da
investimentos estrangeiros no país. Nesse período
aliança PSD-PTB ao derrotar o candidato governista
diversas empresas multinacionais instalaram-se no
Teixeira Lott. Também pela primeira vez um presidente
Brasil: indústrias automobilísticas, farmacêuticas,
recebia a faixa presidencial em Brasília, a nova capital.
petroquímicas e eletro-eletrônicas. A economia
diversificou-se e a produção industrial atingiu o As eleições de 1960 marcaram uma espécie de inversão
extraordinário índice de 80% de crescimento entre 1956 de papéis entre a UDN e a aliança PSD-PTB. Enquanto
e 1961. Era, na verdade, um desenvolvimentismo os udenistas – tradicionalmente avessos à incorporação
associado. das massas populares ao jogo político – apoiavam um
político personalista, que se dizia acima dos partidos e
Além do capital externo, JK utilizou largamente a
campeão da moralidade pública, o PSD lançava um
expansão da base monetária para financiar déficits do
militar, identificado com as posições nacionalistas e
orçamento, bancar aumentos salariais e estimular as
constitucionais, mas sem os apelos carismáticos dos
atividades produtivas. Como resultado o governo
líderes populistas. Extremamente popular e
deixou para seus sucessores uma pesada taxa
temperamental, Jânio aceitou encabeçar a aliança
inflacionária de cerca de 30% em 1961 e a elevada
conservadora prometendo, antes de sua posse, deixar a
dívida externa de US$ 3,1 bilhões. Em 1959, diante das
direita indignada e a esquerda perplexa. Conseguiu.
pressões para que fossem adotadas medidas de
contenção de gastos públicos, o governo JK rompia as Apesar da derrota, a aliança PSD-PTB conseguiu eleger
negociações da dívida externa com o Fundo Monetário João Goulart para a vice-presidência da República. De
Internacional (FMI). acordo com as regras eleitorais vigentes, era possível
votar no candidato à presidência de uma chapa e a vice
Com a bossa nova, o governo JK era elitista. Favoreceu
de outra. As eleições de 1960 consagraram o voto Jan-
os setores empresariais ligados direta ou indiretamente
Jan. Era um sinal da divisão e da confusão que
ao capital transnacional. Estimulou também o consumo
começavam a tomar conta do panorama político
de bens duráveis na classe média, simbolizado na
nacional. Nenhum dos grupos sociais dominantes, fosse
capacidade de aquisição de um automóvel, de
a elite conservadora, fosse a elite nacionalista, era
preferência Volkswagen, e a ampliação numérica desse
capaz de sustentar a política de reformas estruturais de
grupo social, empregado nas diversas funções de
que o país necessitava.
gerência e direção das novas indústrias instaladas.
No entanto a divisão da renda nacional aprofundou a
desigualdade social. Os mais ricos haviam ampliado A crise econômica
seus rendimentos. Os mais pobres participavam de Ao mesmo tempo, ocorria um crescimento das pressões
uma parcela menor da riqueza nacional. É certo que a sociais e novas formas de organização popular
classe média ampliou sua participação na riqueza disseminavam-se pelas cidades e pelo mundo rural. As
nacional. Mas, em 1960, 1% da população detinha

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

tensões verificadas ao longo da década de 1950 Legislativo criavam obstáculos para a constituição de
evidenciavam uma profunda crise, que não decorria das uma base parlamentar governista. Por outro lado, tal
ações dos governos que se sucederam: tratava-se do situação fazia com que as pressões populares e as
gradativo esgotamento do regime e do modelo demandas sociais transbordassem os limites
econômico de substituição de importações. As institucionais.
tentativas golpistas que procuraram impedir a posse de
Jânio Quadros era a expressão do realinhamento
Vargas e de Juscelino Kubitschek, e a crise de 1954
ideológico. Eleito com 48% dos votos, desprezou o
expuseram a precariedade do equilíbrio institucinal.
peso do Parlamento, criticando a instituição em
Acentuou-se o enfrentamento das forças sociais, em
diversas ocasiões. Nomeou um ministério de perfil
virtude da ampliação das pressões populares sobre o
conservador e procurou saídas para a crise econômica
Estado, colocando em xeque o compromisso político-
que provocaram perdas no poder aquisitivo dos
social que lhe dava sustentação.
salários. Com tais medidas, caminhou rapidamente para
A forte aceleração econômica, calcada na expansão da o isolamento político.
indústria de bens de consumo duráveis, promovida pelo
Sue personalismo parecia incontrolável. Impôs
governo JK, havia deixado como herança o
proibições moralizantes ao lança-perfume, ao uso de
descompasso entre o crescimento industrial e a
biquínis e às brigas de galo. Eleito por uma coligação
produção agrícola. O rápido aumento da população
conservadora, contrariava-a com sua política externa.
urbana e de sua demanda, além da desorganização de
Carlos Lacerda, o maior tribuno udenista e articulador
determinadas áreas agrícolas, acabou por redundar em
de sua condidatura, vociferava contra a esquerdização
seguidas crises de abastecimento e inquietações sociais
do país e contra supostas tramas golpistas organizadas
generalizadas.
pelo presidente. A UDN arrependia-se de sua incursão
Por outro lado, o financiamento do Plano de Metas populista.
ampliou o endividamento externo e o déficit
orçamentário da União, coberto por emissões
monetárias que ocasionaram elevados índices de A Crise Política
inflação. O crescimento desigual dos diversos setores Do ponto de vista econômico, Jânio lançou mão de
da economia e das várias regiões consolidou o processo medidas liberais (desvalorização da moeda e corte nos
de concentração de renda, estimulando a onda de gastos públicos) para tentar conter a inflação e honrar
reivindicações sociais. os serviços da dívida externa. Ao mesmo tempo,
prometeu estabelecer uma lei de remessa de lucros que
limitasse a saída do capital estrangeiro investido e
Rearticulação Político-Ideológica
demonstrou apoio a ideia de uma reforma agrária no
Interligada à crise econômica desenvolveu-se um país. Ele cumpria o que prometera. A direita estava
realinhamento político que pôs em xeque o equilíbrio indignada e a esquerda, perplexa.
populista. Gradativamente, os dois maiores partidos
Completamente isolado em apenas sete meses de
conservadores (PSD e UDN) foram perdendo terreno
governo, o Presidente lançou uma cartada decisiva com
para o PTB. Isso acabou provocando uma rearticulação
a criação do que previa ser um verdadeiro impasse
ideológica, favorecida, ainda mais, pelas subdivisões
político. O vice-presidente João Goulart fora enviado à
existentes nesses partidos.
China comunista, em missão diplomática. Na ausência
Assim, na segunda metade da década de 1950, surgiu a deste, em 25 de agosto de 1961, numa sexta-feira, dia
Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), que procurava tradicionalmente marcado pela pequena presença de
ser a expressão dos chamados “progressistas” do PTB, parlamentares em Brasília, Jânio surpreendeu a nação
do PSB e dos setores minoritários da UDN e do PSD. No com o encaminhamento de um pedido de renúncia ao
campo conservador, nos primeiros meses de1961, foi Congresso Nacional.
constituída a Ação Democrática Parlamenta (ADP),
Sua intenção era criar um fato político com a solicitação
apoiada sobre a maioria do PSD, da UDN, do PSP e de
da renúncia que, em virtude da falta de quorum
outros pequenos partidos.
parlamentar, não poderia ser votada e seria
Deslocada em termos parlamentares, a aliança PSD-PTB intensamente explorada pela imprensa durante o final
mantinha-se vital para as eleições executivas, de semana. Acreditava que o povo sairia às ruas para
principalmente as presidenciais. No entanto a reação clamar por sua permanência no cargo e que os militares
conservadora e o realinhamento ideológico do não se oporiam a uma saída golpista, como alternativa a

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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entregar o poder ao temido João Goulart. Com o apoio país. A inflação chegou a 54% em 1962. As tensões
popular, talvez tentasse estabelecer uma ditadura no sociais cresciam. Os governos parlamentaristas não
país. conseguiram impor-se à nação. O projetado plebiscito
foi antecipado para janeiro de 1963 e 82% da população
Naquela sexta-feira tudo saiu errado para o Presidente.
aprovaram o retorno do presidencialismo.
Havia quorum no Congresso, que aceitou seu pedido de
renúncia, e as massas não esboçaram nenhuma reação. A partir daí, Jango retomou o controle e a
De fato, setores militares vetaram a posse de Jango. responsabilidade pelos destinos nacionais e procurou
Abria-se uma nova luta política no país. Mas Jânio implementar o Plano Trienal e reduzir as desigualdades
Quadros já era carta fora do baralho. Ranieri Mazzilli, regionais. Elaborado no início de 1963 pelo economista
presidente da Câmara dos Deputados, assumiu Celso Furtado, o plano pretendia deter a inflação sem
interinamente a presidência da República. diminuir o crescimento econômico. Para tal projeto,
além do corte de gastos públicos e das contenções
temporárias de salários, previa-se a adoção de reformas
8.6 João Goulart de base (estruturas agrária, tributária, administrativa,
A UDN, mais uma vez, voltou à carga, procurando bancária, eleitoral e educacional) que pudessem
impedir a todo custo a posse de Jango. O vice- dinamizar a economia nacional.
presidente, ainda na China, foi ameaçado de prisão caso Durante a campanha pelo presidencialismo, João
retornasse ao Brasil. No entanto, significativas Goulart prometeu tornar-se o presidente das reformas
manifestações populares ocorreram no Sul e nos sociais. Mas em seis meses de governo houve aumento
estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia pelo da inflação e queda do desenvolvimento econômico.
cumprimento da Constituição. No Rio Grande do Sul, Pressões do empresariado e do movimento operário
Leonel Brizola, então governador, liderou o Movimento inviabilizaram o Plano Trienal. As reformas estruturais
de Resistência Democrática e “rede de legalidade”, não saíram do papel.
obtendo o apoio do III Exército. Havia greves. Havia
O Presidente passou a ser caracterizado como indeciso
multidões. E havia armas. Era necessário negociar ou
e vacilante pela esquerda, que exigia dele uma
então o país experimentaria uma guerra civil.
definição política em torno das Reformas de Base,
A adoção do sistema parlamentarista de governo foi a indispensáveis para o sucesso do plano econômico.
solução encontrada para o impasse. Goulart assumiria a Mais do que os resultados sociais provenientes das
presidência, mas a chefia do Executivo passava a ser reformas, estava em jogo a alteração das forças
exercida por um primeiro-ministro, indicado pelo políticas. Com a implementação da reforma agrária,
presidente e aprovado pelo Congresso. Em 1965, já ao com a revisão da representatividade dos estados no
final do mandato de Jango, seria realizado um plebiscito Parlamento e a concessão do direito de voto aos
popular sobre a manutenção do regime analfabetos, bem como a ampliação dos beneficiários
parlamentarista. Com menos poderes que os do ensino público e a extensão dos direitos trabalhistas
presidentes anteriores, Jango recebeu a faixa ao campo, emergiria no Brasil uma nova e complexa
presidencial no dia 7 de setembro de 1961. realidade social.
A presidência de Jango (1961-1964), nascida e O poder do ainda presente coronelismo seria atingido
assombrada pela ameaça golpista, e mitigada em seus em cheio pela incorporação das clientelas rurais ao jogo
primeiros dezesseis meses pela adoção do político e pelo acesso aos benefícios sociais sem a
parlamentarismo, marcou o rompimento do frágil intermediação dos chefes locais. As reformas de base
equilíbrio político populista. A radicalização das buscavam estabelecer uma nova hegemonia calcada
pressões populares transbordaria do setor urbano e nas camadas subalternas em aliança com os setores
chegaria até o mundo rural, ameaçando romper o considerados reformistas das classes médias e do
compromisso populista de manutenção das estruturas empresariado.
sociais do campo. Os militares, por uma série de
Em outubro de 1963, Jango enviou ao Congresso um
fatores, passariam da divisão registrada desde 1945 à
anteprojeto de reforma constitucional que possibilitaria
coesão que possibilitaria o golpe de Estado.
o início das discussões acerca das propaladas reformas.
Os gabinetes parlamentares dos primeiros-ministros, A UDN e o PSD assumiram um posicionamento
Tancredo Neves e Brochado da Rocha (ambos do PSD), contrário a qualquer alteração na Constituição
não foram capazes de solucionar a crise econômica e o brasileira. Todos os esforços no sentido de realizar a
processo de radicalização político-social em curso no reforma agrária foram impedidos pela maioria

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conservadora e pela intensa mobilização dos Mobilização Popular (FMP), que procurava congregar a
proprietários rurais. A autoridade do Presidente era UNE, a FPN, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT),
posta em questão tanto pela direita quanto pela as Ligas Camponesas e os setores da esquerda católica,
esquerda. Os primeiros denunciavam a esquerdização como a Juventude Operária Católica (JOC) e a Juventude
do país e a desordem provocada pelo governo e pelas Universitária Católica (JUC).
forças subversivas. A esquerda reclamava da omissão
À direita surgiu uma série de movimentos cujos
de Goulart em relação a algumas questões concretas
objetivos eram frear o avanço das reivindicações
que poderiam ser decididas sem passar pelos labirintos
populares, financiar agrupamentos e políticos de
parlamentares. Manifestações e greves tomavam as
feições anticomunistas e destituir Jango da presidência,
grandes cidades brasileiras.
fosse através do recurso legal do impeachment, fosse
Isolado, Jango solicitou a apreciação do pedido de através de um golpe de estado. O Instituto Brasileiro de
estado de sítio ao Congresso em outubro de 1963. Ação Democrática (Ibad) e o Instituto de Pesquisas e
Direita e esquerda tendiam a recusá-lo, por receio de Estudos Sociais (Ipes) desempenharam papéis
uma investida contra suas principais lideranças. O fundamentais no financiamento de campanhas políticas
Presidente retirou seu pedido três dias depois. A crise parlamentares, executivas e sindicais, e de órgãos de
política se agigantou. imprensa e institutos de pesquisa e estudos que
forneciam orientação ideológica e política aos
empresários e latifundiários.
A. A Mobilização Popular
Os governadores Magalhães Pinto e Carlos Lacerda
Apesar da negativa em conceder o estado de sítio, a (UDN), Ildo Meneghetti (PSD) e Ademar de Barros (PSP)
esquerda procurava vincular-se a Jango. Ofereceu-lhe conspiravam abertamente contra Jango. O clima era de
apoio em troca da nomeação de Brizola como ministro confronto. Configurava-se, mais uma vez, um processo
da Fazendo e exigiu, através de manifestações, medidas de radicalizações ideológicas.
mais arrojadas para conter a crise econômica e a
Nos primeiros meses de 1964 o Presidente iniciou uma
ameaça de golpe por parte da direita.
clara aproximação com a esquerda. Não reprimira
Em nenhum momento da história brasileira as pressões movimentos grevistas e ocupações de terras,
populares foram tão intensas. A política deixava de ser regulamentara a Lei de Remessa de Lucros ao exterior e
privilégio do jogo parlamentar e absorvia as propunha então a formação de uma frente política que
universidades, as escolas, as fábricas, os quartéis e as congregasse desde o PSD até o PCB e capaz de
áreas rurais. O Brasil assistia a uma intensa mobilização implementar as polêmicas reformas através de revisão
sindical, que redundava num número crescente de constitucional. A essa altura o PSD, apesar de não
greves de caráter político. Contando muitas vezes com apoiar as tentativas udenistas de impeachment do
o apoio tácito de setores militares, tais movimentos Presidente, já se distanciara de qualquer articulação
acabaram por incendiar as camadas subalternas das governamental.
Forças Armadas.
Sem apoio parlamentar, Jango recorreria às massas
No campo ocorria a formação de diversos sindicatos, populares como forma de pressão sobre deputados e
cujas direções eram disputadas por grupos católicos de senadores. No dia 13 de março, uma sexta-feira, o
direita e esquerda, e pelo PCB, ainda na último ato da democracia populista pareceu sintonizar,
clandestinidade, reclamando a reforma agrária e o como em nenhum outro momento da nossa história, as
cumprimento das leis trabalhistas aprovadas no início reivindicações populares e o chefe da nação. De forma
de 1963. Mas o movimento dos trabalhadores rurais entusiástica e radical o Presidente anunciou no Rio de
tinha nas temidas Ligas Camponesas o seu braço mais Janeiro, num comício realizado na estação ferroviária
radical. Organizadas por Francisco Julião, em Central do Brasil, perante uma ruidosa multidão, o
Pernambuco e na Paraíba, entre 1955 e 1964, como decreto de encampação das terras às margens de
forma de resistência dos pequenos agricultores e rodovias e ferrovias para a realização da reforma
trabalhadores, as Ligas recorriam muitas vezes às armas agrária e prometeu uma série de outras medidas de
contra os desmandos de latifundiários e defendiam uma impacto: tabelamento de aluguéis e uma Constituinte.
reforma agrária radical. Foi o Comício das Reformas.
Por outro lado, estudantes divididos em diversos Procurando mobilizar as forças de esquerda e nelas
agrupamentos de esquerda defendiam uma aliança apoiar-se, Jango lançou a definitiva cartada do regime
operário-estudantil-camponesa. Foi criada a Frente de populista. A incorporação das massas ao jogo político

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chegou ao seu clímax e tinha de garantir as profundas O movimento que se tornou nacionalmente conhecido
reformas sociais e institucionais, extrapolando o próprio como Ligas Camponesas iniciou-se, de fato, no engenho
Poder Legislativo. Mas a ação do Presidente mobilizou Galiléia, em Vitória de Santo Antão, nos limites da
também a oposição, levando à composição entre a UDN região do Agreste com a Zona da Mata de Pernambuco.
e o PSD, na defesa de seus privilégios sociais, e à A propriedade congregava 140 famílias de foreiros nos
gradativa coesão militar em resposta às manifestações quinhentos hectares de terra do engenho que estava de
populares. Menos de uma semana após o comício das "fogo morto". O movimento foi criado no dia 1º. de
reformas, setores conservadores organizaram uma janeiro de 1955 e autodenominou-se Sociedade
estrondosa manifestação contra o governo federal, Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco
reunindo, em São Paulo, mais de 250 mil pessoas na (SAPPP). Coube a setores conservadores, na imprensa e
Marcha da Família com Deus pela Liberdade. na Assembléia, batizar a sociedade de "liga", temerosos
de que ela fosse a reedição de outras ligas que, em
As conspirações iniciadas nos primórdios do governo
período recente (1945-1947), haviam proliferado
Jango foram precipitadas pelo levante dos marinheiros
abertamente na periferia do Recife e nas cidades
de 25 de março, cujos revoltosos foram anistiados pelo
satélites, sob a influencia do Partido Comunista
Presidente. As fortes reações no meio militar à quebra
Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil (PCB). De
da disciplina e ao desrespeito à hierarquia foram
fato, o movimento de Galiléia parece ter recebido
decisivas para a deflagração do movimento golpista. A
influencia desses antigos núcleos, geograficamente
hesitação de oficiais e políticos de centro ia sendo
próximos, sobretudo através de José dos Prazeres,
vencida pelo clima de radicalização política.
dirigente da antiga Liga de Iputinga, nos arredores de
Em 31 de março, o general Mourão Filho, de Minas Recife.
Gerais, iniciou o deslocamento de tropas para o estado
Existem muitas versões sobre a criação da Liga de
da Guanabara. Em outras regiões do país seguiram-se
Galiléia. A mais conhecida, e a mais lendária, atribui à
movimentações de destacamentos militares contra o
entidade o objetivo de arrecadar recursos para enterrar
governo. Sem resistência popular ou militar, Jango foi
os mortos, até então depositados em vala comum. Esta
deposto. No dia seguinte milhares de pessoas saíram às
versão, divulgada por Antônio Calado em suas célebres
ruas para saudar os revoltosos. Era o fim da República
reportagens no Correio da Manhã (setembro de 1959),
Populista. A UDN, finalmente chegava ao poder.
tiveram enorme repercussão pública. Outra versão,
mais completa, nos diz que a sociedade recém-criada
B. LIGAS CAMPONESAS tinha finalidades assistenciais mais amplas e que
escolhera como presidente de honra o próprio dono do
Francisco Julião (à esq), advogado e líder das ¨Ligas engenho, Oscar de Arruda Beltrão. O objetivo do grupo
Camponesas¨ aplaudido na Associação Brasileira de era gerar recursos comuns para a assistência
Imprensa - ABI. Em abril de 1961. (Arquivo Nacional) educacional e de saúde, e para comprar adubos, com a
As Ligas Camponesas foram associações de finalidade de melhorar a produção.
trabalhadores rurais criadas inicialmente no estado de A criação da Liga de Galiléia provocou a reação do filho
Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no estado do do proprietário do engenho, temeroso, como era
Rio.de Janeiro, Goiás e em outras regiões do Brasil, que natural, de que a consolidação de um núcleo de
exerceram intensa atividade no período que se produção camponesa pudesse sustar a utilização mais
estendeu de 1955 até a queda de João Goulart em rentável da pecuária nas terras esgotadas do engenho.
1964. Nesta e em outras propriedades, para deslocar a mão-
Formação de-obra já sem utilidade imediata, e para tornar a terra
mais lucrativa, lançou-se mão então do aumento
As ligas assim conhecidas foram precedidas de alguns generalizado no preço do foro, o que teve como
movimentos de natureza idêntica que, em virtude de consequência imediata a luta comum contra o aumento
seu isolamento, não tiveram a mesma repercussão da renda da terra e contra as ameaças mais diretas de
social e política. Este seria o caso, por exemplo, do expulsão.
conflito de Porecatu, no norte do Paraná (1950-1951), e
do movimento de Formoso (1953-1954), que, no Para defendê-los na Justiça, os representantes da
entanto, influíram de maneira durável nas respectivas SAPPP procuraram Francisco Julião Arruda de Paula,
áreas de origem. advogado em Recife, que se havia notabilizado por uma
original declaração de princípios em defesa dos
trabalhadores rurais, a "Carta aos foreiros de

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Pernambuco", de 1945. Julião aceitou defendê-los, Atuação


assim como a muitos outros. A pendência se prolongou
De um modo geral, as associações criadas tinham
até 1959, quando foi aprovada a proposta de
caráter civil, voluntário, e por isso mesmo dependiam
desapropriação do engenho, encaminhada à Assembleia
de um estatuto e de seu registro em cartório. Para
Legislativa pelo governador Cid Sampaio com base num
constituir legalmente uma liga, bastava aprovar um
antigo projeto de Julião. A questão deu notoriedade aos
estatuto, registrá-lo na cidade mais próxima e lá instalar
camponeses de Galiléia e, ainda mais, transformou o
a sua sede. Como disse um jornalista da Paraíba, "a liga
primeiro núcleo das Ligas Camponesas no símbolo da
começa na feira, vai para o tabelião e ganha o mundo".
reforma agrária que os trabalhadores rurais almejavam.
Essa vitória localizada do movimento teve porém As finalidades das Ligas eram prioritariamente
consequências contraditórias, pois se, por um lado, ela assistenciais, sobretudo jurídicas e médicas, e ainda de
conseguiu apaziguar os ânimos e alimentar a esperança autodefesa, nos casos graves de ameaças a quaisquer
de acomodação através de soluções legais, por outro, de seus membros. As mais comuns eram aquelas que,
estimulou as lideranças a prosseguirem na mobilização contrariando o Código Civil, obrigavam à expulsão sem
em favor de uma reforma agrária radical que atendesse indenização pelas benfeitorias realizadas, e nesse
às reivindicações camponesas em seu conjunto. sentido específico a ação das Ligas parece ter sido
bastante eficaz. As lideranças pretendiam também, a
Nesse mesmo período, numerosos núcleos das Ligas
médio e longo prazos, fortalecer .a consciência dos
foram criados em Pernambuco. Até 1961, 25 núcleos
direitos comuns, que compreendiam a recusa em
foram instalados no estado, com predominância visível
aceitar contratos lesivos, tais como o cumprimento do
da Zona da Mata e do Agreste sobre o Sertão. Dentre
"cambão" (dia de trabalho gratuito para aqueles que
esses núcleos destacavam-se os de Pau d'Alho, São
cultivavam a terra alheia) e outras prestações de tipo
Lourenço da Mata, Escada, Goiana e Vitória de Santo
"feudal".
Antão.
A expansão e o crescimento de associações voluntárias
A partir de 1959 as Ligas Camponesas se expandiram
como as Ligas ou associações do tipo da União de
também rapidamente em outros estados, como a
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB)
Paraíba, estado do Rio (Campos) e Paraná, aumentando
se explica em função das dificuldades político-
o impacto político do movimento. Dentre esses núcleos,
burocráticas que durante muitos anos impediram a
o mais importante foi o de Sapé, na Paraíba, o mais
criação e o reconhecimento oficial dos sindicatos rurais.
expressivo e o maior de todos. A expansão da Liga de
De fato, embora o Decreto-Lei nº. 7.038, promulgado
Sapé se acelerou a partir de 1962, quando foi
por Getúlio Vargas em novembro de 1944 como
assassinado seu principal líder, João Pedro Teixeira, a
extensão da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
mando do proprietário local. Pouco depois esse núcleo
previsse a sindicalização rural, só a partir de 1962 é que
congregaria cerca de dez mil membros, enquanto
os sindicatos começariam a ser efetivamente
outros núcleos iriam se espalhar pelos municípios
reconhecidos, como proposta alternativa (e mais
limítrofes.
institucionalizada) às Ligas Camponesas, identificadas
Entre 1960 e 1961, as Ligas organizaram comitês com a liderança de Francisco Julião.
regionais em cerca de dez estados da Federação. Em
As Ligas falavam em nome de uma ampla e diversificada
1962 criou-se o jornal A Liga, porta-voz do movimento,
categoria de trabalhadores que incluía foreiros,
que pretendia ter uma difusão nacional, mas que na
meeiros, arrendatários e pequenos proprietários, que
realidade permaneceu ligado a um número reduzido de
produziam uma cultura de subsistência e
leitores, que eram os próprios militantes do
comercializavam os excedentes produzidos em terra
movimento. Também nesse ano fez-se uma tentativa de
própria ou em terra alheia. Nesse sentido, convém
constituir um partido político que se chamou
lembrar que a utilização do termo "camponês" parece
Movimento Revolucionário Tiradentes. O que ocorreu,
ter sido fator de auto-identificação e de unidade para
no entanto, é que enquanto as reivindicações
designar categoria tão ampla em oposição a um
camponesas pela terra, advogadas pelas Ligas,
adversário comum, politicamente denominado pelas
ganhavam corpo, as pretensões políticas da cúpula do
lideranças como "o latifúndio improdutivo e
movimento se esvaziavam diante de um movimento
decadente". Sendo as camadas representadas
sindical organizado e mais ligado à Igreja e ao Estado.
basicamente dependentes da produção direta em terra
cedida, alugada ou própria (minifúndios), podemos
compreender porque se aglutinaram em torno de
reivindicações ligadas à posse e ao usufruto imediato da

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
terra. O processo de politização global ocorrido nesse pena de perder o controle sobre seus próprios
período, sobretudo a partir de 1960, facilmente associados - as reivindicações básicas de luta pela terra
converteu demandas individuais ou localizadas pela às quais esses mesmos sindicatos eram inicialmente
posse da terra, tais como o Código Civil o previa, em pouco sensíveis.
reivindicações mais abrangentes, estimuladas pelas
Por outro lado, os sindicatos - organizações
lideranças, de reforma agrária radical.
substancialmente mais poderosas - diversificaram a
A mudança parece ter ocorrido, de fato, a partir do I plataforma das Ligas, acentuando a necessidade de
Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do estender ao trabalhador rural os benefícios sociais já
Brasil, realizado em Belo Horizonte em novembro de usufruídos pelos trabalhadores urbanos e de fazer
1961, onde o grupo de Julião e das Ligas Camponesas se aplicar o recém-aprovado Estatuto do Trabalhador
confrontou com outro, mais moderado, sob influência Rural (1963) ao campo.
comunista, e sob liderança da ULTAB. Nessa ocasião,
Cabe destacar no movimento a importância das
Julião recusou alianças e entendimentos mais
lideranças intermediárias, que constituíram o seu cerne.
duradouros com João Goulart, então presidente da
Em Galiléia, Zezé da Galiléia, João Virgínio e José
República, que havia comparecido ao congresso. O
Francisco; em Sapé, João Pedro Teixeira, Pedro
resultado desse confronto foi a vitória formal de Julião e
Fazendeiro, Elizabeth Teixeira e João Severino Gomes
de seus seguidores, que advogavam então uma
foram alguns dos mártires do movimento e os que
"reforma agrária na lei ou na marra". Essa vitória,
alimentaram a sua mística. Tinham em geral um nível
porém, foi politicamente enganosa, pois a partir daí o
educacional mínimo, eram pequenos proprietários ou
Estado reforçaria a ação sindical em detrimento da
exerciam, intermitentemente ou não, atividades
liderança das Ligas.
artesanais, o que lhes permitia a autonomia de ação
Podemos, por isso mesmo, definir as Ligas como um indispensável ao exercício da própria liderança.
movimento autônomo, avesso à colaboração com o
No plano nacional o maior destaque coube à liderança
Estado. Esta posição, assumida em Belo Horizonte,
de Francisco Julião, que aglutinou o movimento em
confirmou-se por ocasião do plebiscito que restituiu
torno de seu nome e de sua figura, reunindo
plenos poderes ao presidente João Goulart (janeiro de
estudantes, idealistas, visionários, alguns intelectuais,
1963), e diante do qual, em posição extremamente
além de nomes como os de Clodomir de Morais,
minoritária, as Ligas pregaram - ou melhor, Julião
advogado, deputado, ex-militante comunista e um dos
pregou - a abstenção. O mesmo ocorreria durante o
organizadores de um malogrado movimento de
governo de Miguel Arrais em Pernambuco (1963-1964) -
guerrilha sediado em Dianópolis, em Goiás (1963).
abertamente aliado das populações camponesas -,
diante do qual algumas facções mais radicais das Ligas - Julião foi eleito deputado federal por Pernambuco, após
já fora do controle das próprias lideranças - não ter sido deputado estadual naquele mesmo estado. Foi
hesitaram em criar confrontos radicais, de difícil nesse momento que as Ligas Camponesas chegaram ao
solução, que levaram inclusive à prisão de alguns ápice de seu prestígio político. A partir de 1962 essa
membros. influência decaiu, embora Francisco Julião mantivesse o
prestígio do movimento. Essa notoriedade se deveu em
A recusa a colaborar com o Estado teve, portanto,
grande parte às repercussões internacionais das Ligas.
conseqüências imediatas, concedendo às organizações
De fato, a Revolução Cubana alertou os políticos e a
sindicais mais oficializadas maior poder de controle
opinião pública dos EUA para os perigos de outros focos
sobre o movimento camponês do período. A partir daí,
revolucionários semelhantes, e o temor recaiu sobre o
redefiniu-se o papel das Ligas, que passaram muitas
Nordeste brasileiro, a mais extensa e povoada zona de
vezes a expressar os interesses mais autônomos da base
pobreza do mundo ocidental.
camponesa que representavam, em detrimento de uma
liderança populista ligada a camadas e interesses As Ligas Camponesas foram como que um grito de
políticos externos ao campesinato enquanto classe: alerta e de protesto que atraiu para Pernambuco a
estudantes, intelectuais, jornalistas, militantes de atenção do mundo e para seus núcleos mais expressivos
partidos políticos de origem urbana etc. Enquanto isso, visitas ilustres, como Robert Kennedy, Arthur
a liderança intermediária, e de origem camponesa, Schlesinger Jr., Sargent Shriver, Jean-Paul Sartre e Iuri
manifestou muitas vezes sinais mais evidentes de Gagarin, entre outros. A televisão e a imprensa, em
autonomia. Nesses casos, ora coexistiam, ora eram diversos países do mundo, transformaram Julião e as
absorvidas pelas organizações sindicais, mas, ao serem Ligas em símbolo do Terceiro Mundo emergente. Nessa
incorporadas, induziam os sindicatos a adotar - sob época, as aproximações de Julião com Cuba foram

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

notórias, especialmente após viagem que realizou maioria dos jornais de todo o país saudava a vitória do
àquele país em 1960, acompanhando Jânio Quadros, e movimento “democrático”.
em 1961, seguido por uma centena de militantes.
Às forças sociais que efetuaram a ruptura constitucional
Criadas em uma conjuntura favorável de liberalização cabia agora a tarefa de reorganizar o país.
política, que coincidiu com o governo Kubitschek, as Praticamente consensual era a necessidade de um
Ligas seriam marcadas pelo período de ascensão do Poder Executivo forte, que desmobilizasse e
populismo. De fato, a existência mesma do movimento desarticulasse as diversas organizações populares, e
parece estar ligada às ideologias desenvolvimentistas, impedisse a ação de seus principais dirigente. Por outro
de integração nacional e de expansão da cidadania. lado, caberia formar o novo governo a partir das
Nesse sentido, as reivindicações camponesas ecoavam alianças entre os representantes da UDN e do PSD, das
como parte de um único e amplo projeto. principais lideranças militares e dos diversos setores do
empresariado.
A desagregação do movimento, em 1964, eliminou as
organizações mas não desarticulou suas reivindicações No seio das Forças Armadas, unidas contra o
básicas, que seriam incorporadas pelos sindicatos rurais comunismo e a esquerdização da República, restavam
no período seguinte (1965-1983). Convém notar que ainda os setores “reformista” ou “nacionalistas”, cuja
esses sindicatos rurais têm sido particularmente ativos adesão ao golpe contra João Goulart fora obtida graças
nas antigas zonas de influência das Ligas. às seguidas insubordinações hierárquicas relevadas pelo
Presidente. Gradativamente esse grupo foi afastado do
centro das decisões e alguns de seus representantes
8.7 GOVERNOS MILITARES passaram à oposição ao regime. Os militares
Na mitologia greco-romana, os deuses foram criados distinguiam-se ainda em dois outros agrupamentos: a
pelo Universo. O Céu (Urano) unido à Terra (Géia) chamada “Sorbonne” ou os moderados, como eram
produzia filhos que, tão logo nasciam, eram devolvidos conhecidos os ideólogos da Escola Superior de Guerra
ao seio materno. Em nome da liberdade, Saturno, o (ESG), que forneceriam as bases doutrinárias para a
filho caçula, revoltou-se contra o pai. Castrou-o, intervenção político-social, e os representantes da
libertou seus irmãos e, logo em seguida, tomou seu “linha dura”, que comandavam as principais unidades
lugar e passou a governar o mundo. No entanto, com militares. Durante os vinte anos de ditadura, esses dois
receio de perder o poder, aprisionou seus irmãos nas grupos disputaram o controle político do país e
trevas e passou a devorar seus filhos assim que vinham compuseram o núcleo do poder. A hegemonia política,
à luz. tão instável durante a República Populista, seria
exercida pelos militares.
No Brasil, a aliança entre os setores civil e militar pôs
fim ao populismo. Em nome da liberdade, da ordem,
dos valores cristãos e, principalmente, da segurança A. A Institucionalização do Regime
nacional, o presidente Goulart foi deposto. Um novo
Em nove de abril, o Comando Supremo da Revolução,
governo viria a se formar a partir dessa aliança. No
uma junta militar que assumiu de fato o poder,
entanto, como na mitologia grega, o golpe de 1964
promulgou um conjunto de regras políticas
também devoraria seus filhos. E muitos de seus pais.
denominado Ato Institucional nº (AI-1). Seu principal
Refugiado no Rio Grande do Sul e depois asilado no autor foi o jurista Francisco Campos, cuja experiência
Uruguai, Jango recusou-se a tentar uma resistência em leis autoritárias remontava à década de 1930,
armada ao movimento militar. Em dois de abril de quando elaborava a Constituição de 1937.
1964, a presidência da República foi declarada vaga e
O Ato Institucional fortalecia o Poder Executivo e
novamente empossado, interinamente, Ranieri Mazzilli,
concedia ao presidente poderes para suspender direitos
presidente da Câmara dos Deputados.
políticos, cassar mandatos e exonerar funcionários
A intervenção militar era anunciada como passageira e públicos. As garantias constitucionais eram
saneadora dos “desmandos provocados pela infiltração interrompidas por seis meses.
esquerdista no país”. Tratava-se, segundo seus atores,
Antecipando as disposições da Constituição, que previa
de uma verdadeira missão salvacionista, na qual as
eleições pelo Congresso Nacional trinta dias após a
Forças Armadas assumiam uma função tuteladora da
declaração de vacância dos cargos de presidente e vice-
sociedade, como haviam ensaiado à época da crise do
presidente, os deputados e senadores escolheram o
regime monárquico e, de 30 e o golpe de 1937, e
general Humberto de Alencar Castelo Branco como
diversas vezes durante o regime populista. Confiante, a

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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presidente do Brasil, tendo como vice o político do PSD que prometera a normalidade democrática adotava,
mineiro, José Maria Alkmin. cada vez mais, medidas arbitrárias que consolidavam e
aprofundavam a ditadura.
O governo de Castelo Branco deveria durar cerca de
dois anos, tempo que ainda restava ao mandato de Em fevereiro de 1966 foi baixado o Ato Institucional nº
Goulart, quando então o Brasil retornaria à 3 (AI-3), que tornou indiretas as eleições para os
“normalidade” democrática. A eleição presidencial governos estaduais e suspendeu as eleições para
estava marcada para outubro de 1965. Os principais prefeitos de capitais e de municípios considerados de
postulantes à sucessão eram Carlos Lacerda e segurança nacional, cuja escolha tornou-se privilégio
Magalhães Pinto, da UDN, Juscelino Kubitschek, do PSD, dos governadores. No mesmo ano a reorganização do
e Ademar de Barros, do PSP. No entanto, pressões de sistema partidário deu origem ao bipartidarismo. Os
udenistas e da linha dura levaram o novo governo a partidários do governo articularam-se na Aliança
incluir o ex-presidente mineiro na lista das cassações Renovadora Nacional (Arena) e a oposição organizou-se
políticas, acusado de corrupção em junho de 1964. no Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Sob
Com isso, grande parte do PSD passou à oposição. constantes ameaças e intimidações, a oposição política
teve seu espaço cada vez mais reduzido. Ironicamente
Um mês depois foi aprovada uma emenda
a Arena ficou conhecida como o partido do sim, senhor
constitucional adiando a eleição presidencial para o
e o MDB como o agrupamento do acho que sim. A
final de 1966 e prorrogando o mandato de Castelo até
contestação ao regime não se daria no Parlamento.
março de 1967. A anunciada normalidade democrática
começa a ser protelada.
Dessa vez as medidas autoritárias atingiam em cheio as C .Frente Ampla
pretensões do irrequieto e temido líder udenista Carlos
“No fundo, chegamos à conclusão de que fizemos a
Lacerda, que passou a criticá-las publicamente. Em seu
revolução contra nós mesmos.” Essa lamentosa frase de
currículo constavam tentativas de golpe e
Ademar de Barros sintetizava o ânimo de alguns
desestabilização contra todos os últimos governantes
conspiradores civis com os rumos do governo militar.
brasileiros eleitos desde 1950. Magalhães Pinto e
Após duras críticas ao regime, Ademar chegou a exigir a
Ademar de Barros também viam ameaçados seus
renúncia do presidente Castelo Branco em um
projetos de ocupar a presidência.
manifesto à nação. Em junho de 1966 teve seus direitos
As divergências entre os líderes golpistas tornaram-se políticos cassados por dez anos.
mais agudas a partir de 1965. Em outubro, as eleições
Muito mais agitado, Carlos Lacerda não se limitou a
demonstraram certa desaprovação popular ao governo,
discursos e artigos nos jornais contra a ditadura que
que apoiou ostensivamente os candidatos da UDN. A
ajudara a instaurar. Procurando organizar um terceiro
oposição venceu na Guanabara, em Minas Gerais, em
partido político que viabilizasse suas pretensões
Santa Catarina e no Mato Grosso. Setores militares da
presidenciais, ele recorreu até mesmo aos ex-
linha dura ameaçaram destituir Castelo Branco – que
presidentes exilados Jango e Juscelino, seus antigos
havia anunciado respeitar o resultado das eleições – e
inimigos, para formar a Frente Ampla. Aproveitando-se
estabelecer um verdadeiro “governo revolucionário”.
do descontentamento geral e com a gradativa perda de
Exigiam do presidente o veto à posse dos governadores
espaço político, o ex-governador da Guanabara tentava
eleitos da Guanabara e de Minas Gerais. Nem mesmo o
uma cartada desesperada. Passou a adotar um discurso
acordo firmado entre os eleitos e o governo federal –
nacionalista e exigia o retorno do país à democracia.
acalmou os setores mais reacionários das Forças
Desde 1965, intensificou seus ataques a líderes do
Armadas.
golpe militar.
Sob forte tensão política, no dia 27 de outubro, foi
No entanto, além de contraditória, a aliança entre as
lançado o Ato Institucional nº 2 (AI-2), que aboliu os
velhas raposas do período democrático populista se
partidos existentes, transformou em indiretas as
mostrou ineficaz. Brizola e Jânio negaram-se a
eleições para a presidência da República, interveio na
participar, e Goulart e Juscelino ficaram reticentes em
composição do Supremo Tribunal Federal e retomou a
apoiar seu antigo desafeto. A Frente Ampla foi posta na
prática de expurgos e cassações. Abriu-se uma
ilegalidade em 1968. Ao final do mesmo ano, Lacerda
crise política no interior do regime. Pressionado pela
foi preso e teve seus direitos políticos cassados. O
extrema direita, Castelo Branco não dispunha de
bipartidarismo iria durar até 1980. Os tempos eram
resultados eleitorais que pudessem neutralizar e
outros. E bem duros.
equilibrar o jogo político. Contraditoriamente o militar

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Radical. Hoje a palavra pode significar uma manobra D. Sucessão Presidencial


arrojada sobre um skate ou uma prancha de surfe. Uma
Em 1967 a linha dura chegou ao poder. A
ousada forma de vestir ou um difícil passo de dança.
sucessão de Castelo Branco foi decidida pelo alto
Até mesmo um refrigerante de sabor exótico e cor
comando das Forças Armadas. Desde 1964 o general
surpreendente. Na década de 1960 os significados
Artur da Costa e Silva vinha angariando simpatias para
eram outros.
sua candidatura. Em maio de 1966, a convenção da
O mundo vivia uma intensa efervescência política e Arena simplesmente ratificou o nome do general. O
cultural. Em meio à Guerra Fria os norte-americanos MDB não lançou candidato, em protesto contra as
assumiam o papel de defensores do capitalismo seguidas mudanças das regras eleitorais, intimidações,
internacional, realizando intervenções militares na cassações e impugnações de candidatos da oposição,
República Dominicana (com apoio de tropas brasileiras) que resultaram na ampla maioria parlamentar de
e no Vietnã. Na China o líder comunista Mao Tsé-tung governistas. Para vice-presidente foi escolhido o
consolidava-se no poder com sua revolução cultural. udenista Pedro Aleixo.
Em Cuba o regime socialista de Fidel Castro desafiava os
Poucos dias antes de deixar o governo, Castelo Branco
Estados Unidos. Na Bolívia, em 1967, a morte de Che
lançou o decreto que instituía a Lei de Segurança
Guevara firmava-o como modelo do herói
Nacional, pela qual toda ação considerada
revolucionário. Na América Latina proliferavam as
desestabilizadora do regime – entenda-se greves,
ditaduras patrocinadas pelos norte-americanos.
manifestações, pronunciamentos e articulações
No Brasil, apesar das crescentes medidas repressivas e políticas – passou a ser alvo de severas punições. Na
das dificuldades políticas estabelecidas para a oposição, prática todos aqueles que fossem enquadrados nessa
crescia o sentimento contrário à ditadura. Incursões lei teriam seus direitos civis suspensos.
armadas a partir do Rio Grande do Sul e atentado à
Em sete de dezembro de 1966, através do Ato
bomba – um deles visando um dos líderes da linha dura,
Institucional nº 4 (AI-4), os deputados e senadores
o general Costa e Silva – foram frequentes em 1965. No
foram convocados para a eleição do novo presidente e
ano seguinte, apesar da repressão, os estudantes
para a elaboração de uma nova Constituição para o
voltaram a se manifestar em todo o país e procuraram
país. A Constituinte foi convocada com prazo definido
reorganizar a UNE, posta na ilegalidade desde 1964. A
para terminar seus trabalhos e funcionou sob forte
esquerda estudantil voltou a protestar.
pressão militar. Em 21 de janeiro de 1967, foi aprovada
Além disso, a insatisfação popular era alimentada pelos uma nova Constituição, que procurava legitimar o
insuficientes resultados econômicos obtidos pelo Estado autoritário e manter o Poder Legislativo coagido
governo. Herdeiro de uma grave crise econômica, pela repressão. Reorganizava-se, assim, a legislação do
Castelo encarregou os economistas Roberto Campos e novo governo que, entre os anos de 1964 e 1966
Octávio Bulhões de implementar medidas que estabeleceu quatro atos institucionais, 36 atos
resolvessem o déficit público e contivessem a taxa complementares, 312 decretos-leis e 3.746 atos
inflacionária. Através do Programa de Ação Econômica punitivos. Na nova Carta, toda essa legislação era agora
do Governo (PAEG), os salários foram comprimidos, disposta de modo a conferir “legalidade” ao regime. O
reduziram-se os gastos públicos, cortaram-se subsídios, autoritarismo virava lei. Mas o pior ainda estaria por
ampliou-se a arrecadação de impostos e procurou-se vir.
conceder facilidades ao capital estrangeiro, revogando a
E. Manifestações de protesto
Lei de Remessa de Lucros regulamentada por João
Goulart. Apesar da redução da inflação de quase 100% As restrições políticas impostas pelo regime
ao ano, em 1964, para cerca de 35%, em 1965, e 40%, desencadearam uma imensa onda de protestos em
em 1966, a taxa permanecia elevada e em alguns todo o país. Além da vacilante Frente Ampla e do
setores específicos (eletricidade, combustíveis e trigo) limitado MDB, ganhou força no cenário político o
ocorreu aumento de preços, provocando o movimento estudantil, em sintonia com a rebeldia dos
descontentamento dos assalariados. O terreno estava jovens norte-americanos e europeus nos inquietos anos
propício a contestações. 60. Articulando reivindicações específicas aos grandes
temas nacionais, os estudantes organizaram grandes
manifestações exigindo o fim da ditadura militar. Como
suporte, difundia-se uma cultura engajada, que
propunha transformações radicais na sociedade
brasileira através da aliança entre intelectuais,

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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estudantes, camponeses e operários. No horizonte brasileiro poderia ser preso e perder seus direitos
dessas propostas estava o socialismo. políticos por ordem do Poder Executivo.
Os confrontos com policiais tornaram-se frequentes, Todos os veículos de comunicação passaram à vigilância
aumentando o clima de radicalização política. Policiais e militar, que operava a censura prévia de qualquer
grupos paramilitares invadiam universidades, teatros e matéria de teor oposicionista ou que desse publicidade
centros culturais, realizando prisões e espancamentos a manifestações de contestação ao regime. O Poder
de professores, estudantes, artistas e intelectuais. De Judiciário passou, por uma série de mecanismos, à
um lado, bombas de gás lacrimo gênio, cavalaria, órbita do Executivo. Ocorreram centenas de prisões,
cassetetes, espadas e tiros. De outro, lenços e garrafas cassações políticas e expurgos no serviço público, além
com água ou amoníaco (para suportar o efeito do gás), de aposentadorias compulsórias nas universidades.
bolinhas de gude e rolhas (para derrubar os soldados de Foram suprimidas as garantias básicas do Estado de
seus cavalos), coquetéis molotov, faixas contra a direito, como o mandado de segurança para prisões e
ditadura e palavras de ordem que revelavam as disputas buscas e o habeas corpus para crimes políticos. Nos
pela hegemonia do movimento: “só o povo organizado meses seguintes, novos atos institucionais procuraram
derruba a ditadura” contra “só o povo armado derruba "legalizar" a atribuição de poderes discricionários ao
a ditadura”. Como em outras partes do mundo, muitas Executivo.
bandeiras dos Estados Unidos, queimadas em público,
O AI-5 marcava o início de uma nova fase da República
num ritual que pretendia destruir simbolicamente o
Militar. Consolidavam-se a institucionalização da
poder da maior potência capitalista da época.
ditadura e o Estado de Segurança Nacional - o primeiro
O clima de efervescência política levou parlamentares a de muitos a se estabelecerem na América Latina –, que
condenarem as ações repressivas contra a população identificava, como seus inimigos internos,
civil e a denunciar a prática de tortura por parte dos determinados setores da sociedade, tidos como agentes
agentes policiais. Diante disso, o governo passou a exigir do comunismo internacional. Disseminada pelos
a suspensão das imunidades parlamentares dos autores Estados Unidos, logo após a Segunda Guerra, e
de pronunciamentos críticos às ações policiais e o seu desenvolvida no Brasil pela Escola Superior de Guerra
enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Em (ESG), a partir de 1949, a ideologia de segurança
especial tinham em mira o deputado Márcio Moreira nacional tornara-se peça-chave da propaganda e das
Alves, do MDB, que se pronunciara contra a ação das ações militares ocidentais contra o "expansionismo
Forças Armadas na repressão aos estudantes. O vermelho". A formação de lideranças civis e militares
governo exigia o direito de processar o deputado. Para tinha como pressuposto a incapacidade governamental
tanto, era necessária a aprovação do Congresso das elites civis e, consequentemente, previa a
Nacional. atribuição aos militares da missão de salvar o país da
infiltração comunista.
A essa altura, as arbitrariedades cometidas em nome do
regime haviam aberto dissidências nas bases Ampliando o conceito de guerra para o cotidiano da
governistas. Para surpresa geral, os deputados negaram política e submetendo esta última aos desígnios
o pedido do Executivo, impondo-lhe uma fragorosa geopolíticos do Brasil – país ocidental, capitalista,
derrota em 12 de dezembro de 1968. Era a hora da cristão –, obtinha-se uma perigosa identificação entre a
verdade. Os governantes poderiam ceder às nação e o Estado, tido como sua representação política.
manifestações e protestos e restabelecer a democracia Assim, as discordâncias oposicionistas eram
no país. Ou então aprofundar a ditadura. identificadas como crimes contra o Estado, cujos
objetivos visavam desestabilizar o regime e subjugar a
soberania nacional. A espessa e negra cortina
F. O AI 5 autoritária cobriria o Brasil por mais de uma década.
Na noite de 13 de dezembro de 1968, menos de 24
horas após a corajosa sessão parlamentar, foi
G- NAVALHA NA CARNE
anunciado à nação o Ato Institucional nº 5 (AI-5) e um
novo Ato Suplementar que fechava o Congresso "[. ] que várias vezes seguidas procederam à imersão da
indefinidamente. Pelo AI-5, cuja vigência só expiraria cabeça do interrogatório, a boca aberta, num tambor
por decreto do Executivo – o que só viria a ocorrer dez de gasolina cheio d'água, conhecida essa modalidade
anos depois –, ficavam suspensos todos os direitos civis como “banho chinês” [... ]
e constitucionais. Nesse período, qualquer cidadão

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

[...] que, inclusive, ameaçaram de tortura seus dois confronto militar. Muitos grupos de esquerda,
filhos; que torturaram seu marido também; que seu compostos em sua maioria por estudantes e
marido foi obrigado a assistir a todas as torturas que intelectuais, passaram a organizar a luta armada como
fizeram consigo; que também sua irmã foi obrigada a instrumento de oposição à ditadura. Entusiasmados
assistir à suas torturas; [... ] com os sucessos revolucionários chinês e cubano,
grupos guerrilheiros desejavam estabelecer uma
[...] sofreu violências sexuais nó presença e na ausência
república socialista no Brasil. Audaciosas operações
do marido; [... ]
político-militares, como assaltos a bancos, treinamentos
[...] a interroganda quer ainda declarar que durante a de tropas, fugas de presos políticos, ataques a quartéis
primeira fase do interrogatório foram colocadas baratas militares e roubos de armamentos e explosivos,
sobre o seu corpo, e introduzida uma no seu anus." alimentaram o sonho dos revolucionários brasileiros.
Depoimentos de vítimas da repressão militar,
Apud Brasil: nunca mais, p. 39-48. H- A repressão
Um grande aparato repressivo foi montado para
"Nossos acusadores reclamam com frequência de combater a oposição armada. Ligado diretamente ao
nossos interrogatórios. A1egam que presos inocentes Conselho de Segurança Nacional, o poderoso Serviço
eram mantidos horas sob tensão, sem dormir, sendo Nacional de Informações (SNI) subordinava todas as
interrogados. Reclamam, também, de nossas ‘invasões secretarias estaduais de Segurança e seus respectivos
de lares’, sem mandados judiciais. É necessário explicar Departamentos de Ordem Política e Social – DOPS),
porém, que não se consegue combater o terrorismo além de coordenar os serviços secretos e centros de
amparado nas leis normais, eficientes para um cidadão operações das três Armas.
comum. Os terroristas não eram cidadãos comuns." Uma dialética nefasta impunha-se: o endurecimento do
Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra regime fortalecia a opção da resistência armada; esta
fortalecia os setores mais identificados com a ideologia
Rompendo o silêncio, p. 157. de segurança nacional, que tinha nesse confronto
A tortura degrada tanto aqueles que são submetidos a campo fértil para sua expansão. Paradoxalmente, com
ela quanto os que a cometem. De um lado ou de outro, Costa e Silva, a linha dura implementou e levou às
o elemento sombrio e indigno do ser humano aflora. À últimas consequências a doutrina desenvolvida pelo
mercê das atrocidades, sem direitos civis que o possam grupo da. "Sorbonne". Os militares assumiam o controle
amparar, o homem submetido à tortura vê-se completo da sociedade.
desumanizado. No Exército foram criados dois organismos de
A manutenção de sua dignidade custa-lhe, muitas vezes, operações especiais: o Destacamento de Operações e
sua sanidade mental. Ou sua vida. O torturador, por Informações (DOI) e o Centro de Operações de Defesa
mais cruel e sádico que possa parecer, não escapa da Interna (Codi). Vinculando as ações das polícias e do
bestialização que procura impor às suas vítimas. Pior. Exército, e financiadas por industriais brasileiros e
Sua dignidade não pode ser mantida nem pela loucura multinacionais, foram organizadas em São Paulo ações
nem através da morte. A memória da barbárie é o de varredura de militantes de esquerda, denominadas
tormento de seus atos. O ofício do historiador não é Operação Bandeirantes (Oban). Em diversas delegacias,
vingativo nem cruel, mas não deve omitir a crueldade. quartéis militares e mesmo em fazendas particulares de
membros da repressão, os representantes da esquerda
O Estado de Segurança Nacional institucionalizou a tinham de responder a intensos interrogatórios e
tortura, que passou a integrar o cotidiano da luta sofriam sessões de torturas.
política no país. Suprimidas as garantias e os direitos
civis dos cidadãos, estes se tomaram vulneráveis às Os presos eram submetidos a choques elétricos, pau-
violências praticadas pelo Estado em nome da defesa da de-arara, estupros, afogamentos, queimaduras, lesões
nação. Transgressor dos direitos humanos, o regime físicas e psicológicas de toda a espécie. A humilhação e
militar permitiu que a nação devorasse seus filhos. a degradação eram acompanhadas por sofisticadas
técnicas de tortura e especialistas no ramo. Médicos
O endurecimento do regime militar com o AI-5 ajudavam os torturadores a manter vivos os seus
provocou uma profunda alteração na política brasileira. prisioneiros. Torturadores renomados eram designados
Eliminada a possibilidade da oposição legal e da para cuidar de presos que pudessem revelar
resistência civil, começou a ganhar corpo a opção do importantes informações.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
Em plena guerra subversiva - uma das expressões caras Jornais que tinham suas matérias censuradas passaram
à ESG - o poder militar viveu mais uma crise,. O a publicar trechos de poesias, O Estado de S. Paulo
presidente Costa e Silva, acometido de graves estampava estrofes de Os lusíadas e o Jornal da Tarde,
problemas de saúde, teve de ser afastado do cargo. No receitas de bolos. Era uma forma de lembrar aos
lugar de permitir a posse do vice-presidente civil Pedro leitores que haviam sido censurados pela repressão.
Aleixo, o Alto Comando das Forças Armadas passou o Compositores elaboravam letras para canções repletas
governo do Brasil a uma Junta de Ministros A4ilitares de duplos-sentidos, que pudessem confundir os
em agosto de 1969. censores. Chico Buarque, cansado de ter suas músicas
proibidas, criou um novo nome - Julinho da Adelaide - a
Em Outubro do mesmo ano, num clima de forte divisão
quem atribuiu a autoria de três de suas canções: Acorda
nas Forças Armadas, foi indicado para a Presidência da
amor; Jorge Maravilha e Milagre brasileiro. Irônico, o
República o general Emílio Garrastazu Médici. Setores
compositor fez Julinho dar uma entrevista ao jornal
militares ligados ao grupo da "Sorbonne" temiam que o
Última Hora em setembro de 1974. No ano seguinte,
aparato repressivo se tomasse incontrolável.
Julinho já havia "morrido", mais uma vez por obra de
As audaciosas ações dos guerrilheiros, principalmente seu criador.
do ex-campeão do Exército Carlos Lamarca e de Carlos
Mas foram as lideranças progressistas da Igreja católica,
Marighela, deputado constituinte pelo PCB em 1945,
através de suas pastorais, que exerceram o principal
não foram suficientes para vencer a ditadura. Divididas
papel de resistência nesses anos tão difíceis. "Voz
em inúmeros grupúsculos, isoladas politicamente e
daqueles que não tinham voz", ela colocou advogados à
submetidas a uma intensa repressão militar, em pouco
disposição das famílias dos presos políticos. O objetivo
tempo as organizações guerrilheiras passaram à
inicial era encontrar os prisioneiros e garantir-lhes
defensiva.
assistência jurídica. O cardeal-arcebispo de São Paulo,
Sequestros de embaixadores tomaram-se a forma d. Paulo Evaristo Arns, fez duras críticas aos militares,
desesperada de libertar companheiros aprisionados condenou publicamente as torturas praticadas e
pela repressão. Em 1969, poucos dias após o
Denunciou os assassinatos cometidos. Membros da
afastamento de Costa e Silva, militantes do Movimento
Igreja deram abrigo a militantes de esquerda e
Revolucionário 8 de outubro (MR-8) e da Aliança
ajudaram a organizar fugas para fora do país.
Libertadora Nacional (ALN) sequestraram o embaixador
Juntamente com lideres protestantes e judaicos, o clero
norte-americano Charles Burke Erick. Em 1970 foram
católico desafiava a hierarquia militar. *
sequestrados os embaixadores da Suíça e da Alemanha
Ocidental e o cônsul do Japão. A cada uma dessas ações
guerrilheiras, grupos de militantes eram retirados dos
J- O milagre brasileiro
locais de tortura e banidos do país. No entanto, para
cada militante libertado, muitos eram presos ou mortos. "Sem desenvolvimento não há segurança." A máxima
Marighela morreu em novembro de 1969. Lamarca, em do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert
setembro de 1971. Ao final de 1973, as organizações de MacNamara, foi levada ao pé da letra pelas autoridades
esquerda haviam sido completamente derrotadas. O brasileiras. Na doutrina elaborada pela ESG, a
sonho havia acabado. segurança nacional completava-se com o
desenvolvimento econômico. A integração das regiões
Norte e Centro-Oeste ao Sudeste, é o estabelecimento
I - A resistência de um complexo industrial-militar deveriam sustentar a
defesa nacional a partir da ocupação de vastas áreas
Apesar de amordaçada pela censura, a sociedade
despovoadas. O crescimento econômico afastaria o
brasileira encontrou meios para resistir à onda de
risco da sedução subversiva e deveria ser financiado
violências que dominava o pais. As reações eram
pela associação de capitais do Estado, multinacionais e
pequenas se comparadas com outros momentos de
da iniciativa privada de grandes empresários nacionais.
mobilização, mas nem por isso menos importantes.
Com a repressão sobre os estudantes, intelectuais e Os primeiros arranjos econômicos do regime militar
operários, com as cassações e perseguições aos valeram-se do fortalecimento do Executivo. O grau de
parlamentares de oposição e coesão dos grupos econômicos dominantes em torno
dos novos dirigentes permitiu a adoção de uma política
Com o declínio dos grupos guerrilheiros, era necessária
de equilíbrio fiscal que reduziu o déficit público e a
muita habilidade para enfrentar a ditadura.
inflação, que passou de 100'Jb ao ano, em 1964, para
20'Jb, em 1969. A liberação de crédito para as grandes

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

empresas e isenções aos setores exportadores política, com o progressivo desbaratamento da


promoveram a formação de grandes conglomerados oposição armada, com o silenciamento da oposição
financeiros-industriais que diversificaram suas legal e o controle absoluto dos meios de comunicação,
atividades, sob o custeio e a égide do capital financeiro. o Brasil viveu a euforia do "milagre econômico". Os
índices de crescimento na ordem de 10% ao ano, a
Conjuntamente a repressão aos trabalhadores
ampliação do poder de compra da classe média e as
(cassações políticas, intervenções nos sindicatos, com
inúmeras obras de “integração nacional” fizeram os
prisões e intimidações dos principais líderes, fim da
brasileiros acreditar num destino glorioso a eles
estabilidade no emprego, eliminação do direito de
reservado.
greve, etc.) determinou uma nova correlação de forças
na sociedade, absolutamente diversa da do período Em 1970 a seleção de futebol concretizava, nos campos
anterior. Assim foi possível implementar uma política mexicanos, as esperanças de noventa milhões de
que, além brasileiros. A alegria pelo tricampeonato foi aproveitada
pelo regime como mais uma de suas conquistas. Uma
do achatamento salarial dos trabalhadores de menor
intensa guerra de propaganda inundou o país com seus
qualificação, alterou qualitativamente as relações de
slogans ufanistas: “Este é um país que vai pra frente”;
trabalho no país, gerando maior subordinação à
“Ninguém segura este país”; “Brasil ame-o ou deixe-o”.
disciplina das empresas e menor atenção às
A seleção tornava-se o regime de chuteiras e este,
necessidades e direitos do trabalhador. A ditadura fazia
sinônimo da própria nação.
o Brasil crescer. Na marra. "Sem desenvolvimento não
há segurança." .
A partir de 1968, a economia brasileira integrou uma L- A ESPERANÇA EQUILIBRISTA
nova divisão internacional do trabalho. A expansão
Enceradeiras, ventiladores, ferros elétricos, geladeiras,
industrial brasileira passou a ser dominada pelo capital
batedeiras, torradeiras, aspiradores de pó, ares-
multinacional, aumentando a tendência à
condicionados, aparelhos de som, televisores. A julgar
desnacionalização, presente desde o governo de
pela enxurrada de eletrodomésticos que invadia as
Juscelino Kubitschek. Incentivos a exportadores de
casas da classe média e os sonhos de consumo da
manufaturados alteraram a composição da pauta de
sociedade brasileira, o país não deixava nada a dever
exportações. Ao contrário do desenvolvimento vivido
aos ricos e invejados primos norte-americanos. A
nos anos da democracia populista, as prioridades
felicidade era traduzida por um carrinho de
industriais passaram a ser ditadas pelas necessidades do
supermercado lotado e o aumento crescente nas contas
mercado mundial, e não mais pelo mercado interno.
de eletricidade.
Assim o grande capital dirigia-se ao Brasil atraído pelos
baixos custos dos fatores de produção, principalmente Os mais felizes e afortunados ostentavam a
da mão-de-obra, e pelos incentivos concedidos às concretização do "sonho da casa própria'', com jardim,
exportações. garagem, cachorros, gatos, papagaios, crianças e - por
que não? - pinguins de geladeira. Os fuscas já haviam se
A queda da inflação e os índices de crescimento do PIB -
tomado carros populares. Chique era ter um Opala, um
acima de 10ib ao ano - foram suficientes para que os
Mustang, um Dodge Charger, um Puma, um Mavericks.
propagandistas do regime apontassem a existência de
um milagre econômico brasileiro semelhante ao que Todos participavam da aldeia global. Criada em 1965, a
teria ocorrido na Alemanha e no Japão no pós-guerra. O Rede Globo de Televisão conseguia alcançar a liderança
capital externo anuía de maneira nunca vista na história de audiência ao final da década de 1960, com suas
do país e a indústria batia recordes de prosperidade. As novelas, programas humorísticos, programas de
taxas de crescimento econômico eram mantidas auditório e documentários. Mas o campeão de
também pela expansão da linha de crédito ao audiência era o Jornal Nacional. Seguindo à risca as
consumidor - privilegiando a classe média, ávida por orientações da censura e veiculando matérias sempre
bens de consumo duráveis - e pelo estímulo à poupança favoráveis ao regime militar, tomou-se a principal fonte
interna, corrigida pela correção monetária das taxas de de informações num país iletrado e censurado.
juros. Dirigido por tecnoburocratas civis e militares, o Com a prisão e o exílio de muitos de seus maiores
Brasil era anunciado pelas campanhas oficiais como um intelectuais e artistas, e com a ofensiva da televisão, o
iminente integrante do Primeiro Mundo. país ficou irremediavelmente menos crítico e reflexivo.
O governo Médici marcou definitivamente a República Ouviam-se cada vez mais músicas norte-americanas, de
Militar e a história do país. No auge da repressão cujas letras a imensa maioria mal conseguia

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
compreender o título. Na esteira da Jovem Guarda, vigente. A esquerda armada, derrotada ao final de
tendência musical iniciada na década de 1960, 1973, começava a rever sua estratégia foguista e
intérpretes de ínfimas qualidades musicais elaboravam buscava saídas políticas para o seu isolamento. Ao
versões de sucessos internacionais ou criavam suas mesmo tempo, a situação econômica e a intensa
baladas românticas para delírio das multidões. O regime propaganda oficial ampliavam a aceitação do regime,
patrocinava grupos musicais e duplas de cantores, como que atingia o ponto máximo.
Dom e Ravel, responsáveis por uma das mais difundidas
A essa altura, o MDB pôs em prática uma estratégia que
composições do período : "Eu te amo meu Brasil, eu te
se revelaria extremamente engenhosa. Aproveitando as
amo/Meu coração é verde, amarelo, branco, azul
pequenas brechas concedidas pela ditadura, lançou a
anil/Eu te amo/ Ninguém segura a juventude do Brasil".
anticandidatura de Ulysses Guimarães à presidência.
Mas nem tudo era superficialidade. Adolescentes e pré- Anticandidatura porque de antemão anunciava a
adolescentes de classe média colecionavam selos, impossibilidade da vitória diante de tal sistema
figurinhas, jogos de futebol de botão, garrafas de eleitoral. Assim, em lugar de simplesmente disputar as
cerveja e embalagens de cigarros importados, plásticos eleições, o MDB aproveitava-se delas para denunciar as
e adesivos de marcas de automóveis e até tampinhas de arbitrariedades do poder militar, organizando centenas
garrafas. de manifestações públicas que romperam, de certo
modo, o silêncio imposto pela censura. O carro-chefe
Esse ambiente de claro declínio cultural e político ajuda
de sua pregação era a restauração das liberdades
a explicar o fracasso da luta armada como alternativa
democráticas e a defesa dos direitos humanos. Com
contra a ditadura. Os guerrilheiros isolaram-se da
isso, o partido iniciou sua ofensiva política, procurando
sociedade, buscando afirmar-se como a vanguarda do
tomar-se um veículo efetivo para os descontentes com
processo revolucionário. A sociedade queria e se
o regime.
dispunha, no máximo, a acompanhar a Jovem Guarda.
Por enquanto.
M - A crise do "milagre"
L- O auge da ditadura O general Ernesto Geisel, candidato da Arena, venceu
facilmente ò representante da oposição em janeiro de
O governo Médici paralisou a oposição. Como seus
1974. Ligado à "Sorbonne", o novo presidente iniciou o
antecessores militares, prometeu restabelecer a
processo de flexibilização do regime através de sua
democracia no Brasil. Mas, ao contrário, foi responsável
política de distensão, que previa uma série de
pela ampliação da censura e da repressão política. Em
alterações parciais (abrandamento da censura e de
sua única entrevista coletiva à imprensa, o general
medidas repressivas, e negociações com setores
revelava sua visão particular sobre a democracia:
oposicionistas). Seu objetivo era atenuar as tensões
"A democracia plena é um ideal que, se em algum lugar decorrentes do exercício do poder sob regras tão
já se realizou, não foi certamente no Brasil. Pelo menos autoritárias e alargar a base de sustentação do governo
eu, que tomei parte na primeira revolução, em 1930, à através da cooperação de setores da oposição.
procura desse ideal, ainda não o vivi. Entre nós, não se Pretendia implementar uma "democracia relativa", na
pode, pois, falar, com propriedade, em retorno à qual era reservado ao Estado o poder de lançar mão de
democracia plena". medidas de emergência para suspender direitos
Mas o efeito devastador de Médici, que inquietava individuais diante de contestações organizadas. Ao
amargamente os oposicionistas, residia em sua mesmo tempo, permitia-se certa participação da
popularidade. Nas eleições parlamentares de 1970 e nas oposição nas decisões políticas. Mantinha-se a
municipais de 1972, a Arena, o partido governista, orientação do mago da Escola Superior de Guerra, o
obteve vitórias estrondosas. A oposição legal não general Golbery do Couto e Silva, para quem a
conseguia transpor o cerco da repressão política e repressão ilimitada punha em risco a segurança
chegou a discutir seriamente sua dissolução como nacional. Apesar de todos os limites, o diálogo era
forma de protesto e desmascaramento do autoritarismo iniciado.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Em 1974, os primeiros sinais da crise do "milagre aumento do preço do petróleo atingiram em cheio a
brasileiro" ampliaram a voz da oposição consentida. economia nacional.
Desde 1973 a inflação voltara a subir e seus efeitos
aumentavam em decorrência da correção monetária.
Mantida a política de contenção salarial, a aceleração N. O crescimento da oposição
inflacionária provocou queda na capacidade de Os resultados desse desgaste puderam ser aferidos com
consumo da sociedade e atingiu a classe média. Com as eleições parlamentares de 1974, que garantiram à
medidas de limitação ao crédito, o governo conseguiu oposição a vitória na maior parte do país. O grande
controlar a inflação à custa de uma recessão de vendas desempenho do MDB - o partido obteve 54% dos votos
e sacrificando uma das características centrais do válidos - levou ao Senado nomes como Paulo Brossard
modelo econômico: a coexistência de crédito (RS), Orestes Quércia (SP), Saturnino Braga (RJ) e Itamar
abundante, do controle de preços e da correção Franco (MG). Aproveitando-se das regras eleitorais, os
monetária. Assim, o combate à inflação voltou a ter candidatos emedebistas utilizaram com desenvoltura os
maior prioridade que o crescimento acelerado. meios de comunicação e estabeleceram um intenso
debate político no país. Os setores oposicionistas da
sociedade brasileira começavam a apoiar o partido da
oposição consentida pelos militares.
As eleições de 1974 provocaram reações nos círculos
militares. De uma forma mais contundente, a repressão
política virou-se para o PCB, organização que não se
lançara à luta armada, mas que fornecera grande parte
dos guerrilheiros e líderes para outros agrupamentos de
esquerda. Envolvidos na campanha emedebista, vários
de seus militantes e dirigentes foram presos e
engrossaram as listas de "desaparecidos".
De outra parte, o acesso ao rádio e à televisão tornou-
se limitado pela Lei Falcão, de maneira a expurgar o
Um outro problema da economia brasileira em 1973 debate político do jogo eleitoral. A partir de 1976, data
dizia respeito à entrada excessiva de capitais do decreto-lei e de acordo com ele, os candidatos não
estrangeiros. Atraído pela taxa de juros, o imenso fluxo poderiam mais aparecer ao vivo nesses meios de
de capitais tendia a alargar o volume monetário em comunicação e deveriam se restringir a apresentar seu
circulação, o que poderia acelerar a inflação e ampliar currículo para apreciação dos eleitores. Um ano depois
exageradamente as reservas cambiais. A solução foi novas alterações evidenciaram o receio do crescimento
limitar os ingressos de capital no país. da oposição: após fechar o Congresso Nacional, Geisel
Tal situação alterou-se radicalmente no ano seguinte. A lançou o Pacote de Abril, que, entre outras medidas,
primeira crise do petróleo elevou o preço do produto no instituiu a eleição indireta para 1/3 do Senado, ampliou
mercado mundial e afetou a balança comercial o número de deputados dos estados das regiões Norte
brasileira, que teve um déficit de US$5 bilhões. Novas e Nordeste e alterou as regras das eleições para
medidas foram tomadas, dessa vez no intuito de governadores estaduais.
estimular a entrada de capitais externos. Contando com esse reforço para as eleições
A essa altura o Brasil importava cerca de 80% do parlamentares de novembro de 1978, o governo
petróleo de que necessitava. Fruto da política manteve a maioria e, consequentemente, o controle
desenvolvimentista e das medidas de incentivo tomadas político do Congresso Nacional. Apesar de receber mais
durante a ditadura militar, a indústria automobilística de 50% dos votos, o MDB constituía pouco mais de 1/3
brasileira apresentou os maiores índices de crescimento do Senado. O partido da oposição venceu em todo o Sul
durante os anos do milagre econômico, ao mesmo e Sudeste, onde se destacaram nomes como Pedro
tempo em que a malha ferroviária e outros meios de Simon (RS), José Richa (PR), Franco Montoro (SP),
transporte–foram sucateados. Transportes, veículos e Nelson Carneiro (RJ) e Tancredo Neves (MG).
indústrias necessitavam da matéria-prima cujo preço no Apesar de sua "derrota", as eleições de 1978 marcaram
mercado mundial era controlado pela Organização dos a consolidação do MDB como frente de oposição. Isso
Países Exportadores de Petróleo (Opep). Os efeitos do se deu porque o partido conseguiu estreitar seus laços

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
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com os movimentos de resistência civil, o que lhe Veloso, Milton Nascimento, Edu Lobo e Geraldo Vandré.
conferiu bases sociais mais sólidas. Por outro lado, tais Como se o tempo tivesse parado, seus valores culturais
movimentos puderam amplia sua atuação, tendo o eram ainda muito semelhantes àqueles esposados pela
MDB como seu instrumento político para a geração dos anos 60. De certo modo, não só acreditava
democratização do país. Entidades como a Ordem dos naqueles que tinham mais de trinta anos como até
Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de tentava imitar os seus gestos e palavras. No entanto
Imprensa (ABI) e a Igreja católica atuaram não pretendia levar adiante a construção da sociedade
conjuntamente no sentido de combater o autoritarismo socialista como vanguarda do proletariado e do
e a censura. campesinato.

O. A volta dos estudantes P. Sucessão presidencial


"Pelas liberdades democráticas"; "Em defesa do ensino A abertura deveria ser lenta, gradual e segura, de
público e gratuito"; "Anistia a todos os presos e exilados acordo com o general Geisel. No entanto, com o
políticos"; "Pelo fim da censura"; "Abaixo a ditadura". aumento da crise econômica e a intensificação das
Em 1977, cabeludos, barbudos e inconformados, jovens, manifestações políticas contrárias à ditadura, o controle
traziam novamente suas palavras de ordem para as ruas da transição esteve por um fio.
em várias cidades do país. Uma nova geração de
A inflação anual chegou próximo dos 40fb entre 1974-l
estudantes retomava a prática política de contestação.
978 e o ritmo de crescimento do PIB diminuiu para
Na memória, antigas palavras de ordem, lembranças de
cerca de 7fb ao ano nesse mesmo período. As
líderes mortos e exilados, e criticas à luta armada. A
constantes dificuldades da balança de pagamentos
derrubada da ditadura deveria ser construída a partir da
foram superadas à custa das reservas cambiais, e novos
aliança com todos os setores democráticos. A ação
empréstimos externos foram tomados para tentar
deveria ser política, não militar. Nesse sentido, o MDB
evitar uma recessão. Afinal o maior trunfo da ditadura
constituía o campo estratégico privilegiado para essa
era o crescimento econômico. Não havia espaço para a
aglutinação das forças oposicionistas.
crise na propaganda oficial. Assim o rápido aumento da
Passeatas-relâmpago, greves nas universidades, cartas dívida externa foi considerado o preço temporário a ser
abertas à população e confrontos com a polícia. Apesar pago pelo financiamento desse ajuste ao longo do
de proibidas, as manifestações cresciam a cada semana. tempo. Com tais medidas, a dívida externa total saltou
Nas escolas e universidades apareciam novas lideranças de pouco mais de US$12 bilhões, em 1973, para cerca
que comandavam os protestos e disputavam a direção de US$50 bilhões, em 1979.
movimento estudantil, dividido em inúmeras pequenas
Aparentemente as iniciativas de Geisel conseguiram
organizações.
equilibrar a balança de pagamentos e o crescimento
A essa altura, a maior parte dos jovens brasileiros econômico manteve-se em torno de 7f% ao ano. Porém
mantinha-se alheia aos questionamentos políticos. tais medidas tomaram a economia brasileira vulnerável
Formada durante a ditadura, essa nova geração não às instabilidades do mercado mundial. Ao final da
desenvolveu uma cultura própria e particular. década de 1970, uma nova crise do petróleo e a
Amortecida pela sociedade de consumo e pelo elevação da taxa de juros no mercado financeiro
autoritarismo, ela nutria desprezo pela prática política. internacional aumentaram nossas dificuldades
Filhos do silêncio imposto pelo regime autoritário, econômicas. Em 1980 a inflação chegou a 113 BI, e a
muitos viram alguns de seus professores dívida externa chegou a USS 8O bilhões, em 1983, e 90
"desaparecerem" das escolas e universidades. Livros, bilhões, em 1984.
jornais, filmes e músicas que contestassem a ditadura
Pouco a pouco, as tensões sociais abafadas durante os
ou o imperialismo norte-americano eram artigos de
anos de maior repressão política começaram a emergir.
luxo, especiarias traficadas em segredo pelos pátios
Em 1978 uma surpreendente e ruidosa greve de
escolares.
metalúrgicos, na região paulista do ABC (municípios de
Para romper com a massificação e a superficialidade dos Santo André, São Bernardo e São Caetano), abalou o
anos 70, parte da juventude retomou símbolos e país. O movimento operário também voltou à cena
reproduziu comportamentos dos jovens da década política, apesar da repressiva legislação trabalhista e
anterior. Acreditava no socialismo, desfilava suas dos mecanismos de exclusão política da classe
roupas hippies e suas camisetas estampadas com o trabalhadora. Reivindicando uma reposição salarial de
rosto de Che Guevara, ouvia Chico Buarque, Caetano 34'%, cerca de 80 mil trabalhadores desafiaram as

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

restrições legais da ditadura e obtiveram uma anos da ditadura. A maior restrição ficou por conta dos
significativa vitória. Além das repercussões em outras condenados pelos chamados "crimes de sangue"
categorias profissionais que também passaram a cometidos pelos guerrilheiros opositores ao regime. Por
organizar-se, as greves incorporaram setores do outro lado, a lei incluía o perdão incondicional aos
operariado no processo de luta pela democratização do integrantes dos órgãos de repressão envolvidos em
país que, ao final do governo Geisel, parecia iminente. torturas e assassinatos de presos políticos.
Ao mesmo tempo em que a política palaciana permitia Entre 1979 e 1980 retomaram ao país nomes que
certo espaço para a oposição se organizar – um dos pareciam saídos dai páginas da História para a maior
últimos atos de Geisel foi a revogação do AI-5 em parte dos jovens estudantes e sindicalistas: Leonel
dezembro de 1978 -, setores ligados diretamente à linha Brizola, Jânio Quadros, José Serra, Celso Furtado, Darci
dura e ao aparato repressivo respondiam Ribeiro, Miguel Arraes; José Dirceu, Fernando Gabeira,
implacavelmente às reivindicações sociais e às pressões Luís Carlos Prestes, João Amazonas e tantos outros. Três
políticas. As denúncias de tortura e o assassinato de nomes ilustres da República Populista não sobreviveram
Herzog e de Fiel Filho acabaram por levar o presidente para desfrutar da anistia: Juscelino Kubitschek, João
Geisel a sérias dissensões com esses setores. Em Goulart e Carlos Lacerda.
outubro de 1977 as divergências levaram à demissão do
O retorno dos exilados e a restituição de seus direitos
ministro do Exército, o general Sylvio Frota,
políticos fortaleceram a oposição. Velhas lideranças
representante da linha dura e postulante à Presidência
passaram a estabelecer contatos com os novos
da República.
dirigentes sindicais, intelectuais, estudantes e políticos
A sucessão de Geisel expunha as fragilidades do regime. do MDB. Caberia agora pressionar por uma transição
Em meio ao crescimento dos movimentos sociais e ao mais rápida que estabelecesse, enfim, o regime
fortalecimento da oposição, os militares se democrático. O novo sindicalismo
encontravam seriamente divididos. Descartada a
Em 1979, logo no início do governo Figueiredo, uma
candidatura de Sylvio Frota, a indicação do candidato
nova onda grevista tomou conta do ABC. Uma rápida
governista foi controlada por Geisel, que acabou por
ação repressiva acarretou a intervenção nos sindicatos
articular o nome do presidente do SNI, general João
e a cassação de seus líderes. Imediatamente organizou-
Baptista de Oliveira Figueiredo, tendo como vice o ex-
se em torno dos operários um forte movimento de
governador mineiro Aureliano Chaves. Pela oposição,
resistência civil, contando com a participação de muitos
que procurava tirar proveito dessas divisões, foi lançado
dos setores que lutavam pela redemocratização do país.
candidato o general Euler Bentes Monteiro, militar da
reserva, que representava os setores liberais e Destituídos de seus sindicatos, os operários obtiveram o
nacionalistas das Forças Armadas, tendo como apoio da Igreja católica, que cedeu a catedral de São
companheiro de chapa o senador do MDB gaúcho Paulo Bernardo do Campo para sede do movimento grevista.
Brossard. Em outubro de 1978, a chapa governista foi Políticos do MDB, estudantes, intelectuais e jornalistas
escolhida pelo Colégio Eleitoral. Em março de 1979, o tomaram parte em várias assembleias que excederam o
novo presidente assumia o posto, prometendo fazer do número de 100 mil participantes. Por todo o país uma
Brasil uma democracia. grande rede de solidariedade arrecadou fundos e
alimentos para as famílias dos trabalhadores.

Q. O CREPÚSCULO DOS DEUSES


O governo Figueiredo deu continuidade à distensão
ensaiada por Geisel. O último presidente militar pôs em
prática a política da "abertura", concedendo a anistia
política e permitindo a reorganização político-partidária.
Os setores mais organizados da sociedade
reivindicavam uma anistia ampla, geral e irrestrita, ou
seja, a libertação de todos os presos políticos, a volta de
todos os exilados e a restituição dos direitos políticos a
todos os cassados. Procurando manter o ritmo
gradualista da liberalização do regime, Figueiredo
sancionou, em agosto de 1979, a Lei da Anistia, que
beneficiou mais de 4 mil pessoas penalizadas durante os O REGISTRO DO PT; HISTORIA VIVA 2006 1

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
Amadurecido pelas vitórias de 1978, o movimento R. O pluripartidarismo
grevista agora dirigia suas baterias contra a estrutura
Para o regime militar, o bipartidarismo tinha cumprido
sindical vigente. Afora as reivindicações salariais, os
seu papel. Fortalecera o partido governista, impusera à
metalúrgicos estabeleceram a negociação direta com os
oposição uma convivência forçada sob uma mesma
patrões. Além disso, na prática, viram reconhecida a
organização partidária e limitara a discussão político-
representatividade de suas comissões de fábrica e de
ideológica à concordância ou não com o regime. No
suas novas lideranças sindicais, entre as quais
entanto o crescente fortalecimento do MDB poderia
despontava o nome de Luís Inácio da Silva, o Lula.
provocar a perda do controle sobre a transição
Mais uma vez a onda grevista não se circunscreveu ao democrática. Em próximas eleições, previam-se vitórias
ABC. Por todo o país, centenas de outras categorias - da oposição que, unida em um só partido, conseguia
incluindo setores assalariados da classe média, como aglutinar todos os descontentes com a ditadura a partir
médicos, professores e funcionários públicos – também de um único programa: a restauração da democracia.
estabeleciam uma nova forma de atuação sindical e
Assim, sob esse programa mínimo, liberais, socialistas,
desafiavam o regime militar com seus movimentos
comunistas, democratas-cristãos, socialdemocratas e
reivindicatórios. Começava a esboçar-se um novo
outros agrupamentos ideológicos deixavam de lado
sindicalismo,
suas divergências e punham-se a combater o regime
contestador das práticas das lideranças "pelegas", que militar. Para os grupos militares empenhados na
serviam ao regime militar, e diverso daquele existente liberalização, tomava-se necessário dividir a oposição e
no país durante a República Populista, atrelado ao expor suas diferenças. O arranjo bipartidário teria de
Estado. Esse era um dado novo na política nacional. ser descartado. Em dezembro de 1979 foram extintos a
Arena e o MDB.
Em 1980, um novo movimento grevista tomou conta do
ABC. Dessa vez a reação do governo foi mais violenta. Apesar de constituir um passo decisivo para a abertura
Intervindo nos sindicatos e prendendo seus diretores - política, ao expressar mais claramente os interesses
que seriam enquadrados na Lei de Segurança Nacional -, atuantes na sociedade brasileira, a permissão para o
o governo deu mostras de que os militares ainda surgimento de novos partidos tinha como objetivo
controlavam o país. Após 41 dias os trabalhadores enfraquecer a oposição, acentuando suas diferenças
encerraram a greve sem alcançar suas reivindicações. ideológicas e estimulando as disputas eleitorais.
Em fevereiro de 1981, os principais dirigentes
Outros seis partidos puderam ser organizados, em
metalúrgicos foram julgados e condenados por um
respeito às severas exigências estabelecidas. Como
tribunal militar. Nesse ano os metalúrgicos do ABC não
herdeiro direto da Arena formou-se o Partido
tiveram forças para organizar uma nova greve.
Democrático Social (PDS). A maior parte dos
Apesar de derrotados, os líderes sindicais conseguiram oposicionistas preferiu abrigar-se sob uma mesma
angariar apoios importantes no Brasil e no exterior. A legenda, o Partido do Movimento Democrático
essa altura uma parcela considerável do novo Brasileiro (PMDB). Os trabalhistas do período populista
movimento estudantil, que conseguira reestruturar suas dividiram-se em duas agremiações: o Partido
entidades e atuava em conjunto com as outras forças Trabalhista Brasileiro (PTB), dirigido por Ivete Vargas,
do campo democrático - setores da imprensa, a Igreja sobrinha de Getúlio Vargas, e o Partido Democrático
progressista, políticos do MDB, entidades da sociedade Trabalhista (PDT), sob a liderança de Leonel Brizola.
civil e sindicalistas -, começava a ser atraída pela Setores conservadores da oposição e dissidentes de
atuação de Lula e dos demais dirigentes do ABC. centro do governo formaram o Partido Popular (PP),
que procurava tornar-se o interlocutor para a transição
A movimentação operária serviu como divisor de águas
democrática. Reunindo os principais líderes do novo
para o processo de abertura política. Em primeiro lugar,
sindicalismo, grupos da esquerda estudantil dos anos 60
porque as demandas sociais decorrentes da crise
e 70 e setores ligados aos movimentos de base da Igreja
econômica da segunda metade da década de 1970
católica, surgia o Partido dos Trabalhadores (PT).
aceleraram as medidas de liberalização política. Em
segundo lugar, porque se definiram os limites da
abertura. Enquanto governava com as elites, o regime
S. Eleições de 1982
procurava manter a repressão sobre a classe
trabalhadora. Para o pacto da transição democrática, a O período anterior às eleições de 1982 foi marcado pela
classe operária não estava convidada. Mas impunha-se apreensão. Em setembro de 1980 o governo fizera
de forma surpreendente. aprovar no Congresso a prorrogação, por dois anos, dos

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

mandatos dos prefeitos e vereadores, adiando as A conta do "milagre"


eleições previstas. Em novembro do mesmo ano um
A década de 1980 iniciava-se sob o signo de uma
novo "pacote eleitoral" alterara as regras do jogo
violenta recessão. O pagamento dos juros da dívida
político, proibindo as coligações partidárias. O objetivo
externa consumia mais da metade das divisas obtidas
era impedir as oposições de fazerem articulações
com as exportações. Em 1981 o PIB brasileiro
políticas nos estados e dividi-las ainda mais, para
apresentou uma variação negativa. Os índices de
fortalecer o PDS. A vinculação dos votos, em todos os
desemprego foram alarmantes. Nova crise na balança
níveis, tomava nulos os votos dados a candidatos de
de pagamentos e a perda da credibilidade da política
partidos diferentes. Procurava-se conservar a maioria
governamental apontavam a necessidade da
governista no Colégio Eleitoral, que elegeria
renegociação da dívida externa. Se o Brasil havia se
indiretamente o presidente da República em janeiro de
aproveitado de uma conjuntura internacional que lhe
1985.
favorecera o crescimento entre 1968-1973, passava
As novas medidas eleitorais tiveram como resultado o agora a sofrer com a recessão mundial, que contraía o
restabelecimento da bipolarização governo-oposição. O crédito e limitava as atividades comerciais. Logo após as
recém-criado Partido Popular deliberou pela sua eleições de 1982, o governo brasileiro recorreu ao FMI
incorporação ao PMDB, que procurou apresentar- se (Fundo Monetário Internacional) para renegociar sua
como a alternativa oposicionista viável. Os demais dívida, após receber empréstimos de emergência para
partidos (PT, PTB e PDT) perderam apoios devido à não deixar de pagar os serviços previstos para aquele
necessidade de fortalecer o principal partido de ano.
oposição. As eleições de 1982 repetiriam o caráter
A monitoração do FMI iniciou-se em janeiro de 1983 e
plebiscitário dos pleitos anteriores, em que só havia
acabou por acentuar a tendência recessiva da economia
apenas dois partidos, o MDB e a Arena.
brasileira, em virtude da contenção salarial, da
Mas não foram apenas os novos casuísmos eleitorais limitação da base monetária e de outras iniciativas
que turvaram a cena política nacional. Desde 1976 "ortodoxas", que reduziram drasticamente a taxa de
vinham ocorrendo sequestros de religiosos e investimentos. Simultaneamente à variação negativa do
oposicionistas, atentados a centros de pesquisa e PIB houve aumento da inflação, que dobrou em relação
jornais identificados com a oposição, o que evidenciava a 1982.
a ação de grupos paramilitares e extremistas de direita
Até o final do regime militar, as medidas econômicas
descontentes com a flexibilização do regime. Nos anos
visaram, fundamentalmente, obter financiamentos que
de 1980 e 1981 diversas bancas de jornal foram
cobrissem os rombos da balança de pagamentos e os
incendiadas e destruídas por bombas pelo fato de
juros da dívida expandir o volume de exportações e
venderem jornais de esquerda. Uma carta-bomba foi
conter o volume de importações. Em 24 meses o
enviada à sede da OAB matando a secretária do
governo emitiu sete cartas de intenções para o FMI sem
presidente da entidade. Um dos mais destacados
lograr cumprir nenhuma das metas nelas fixadas, o que
juristas brasileiros, Dalmo Dallari, foi vítima de um
revela o descontrole da economia brasileira no período.
violento sequestro. Outros oposicionistas também
Foi um fim melancólico para o regime que prometera
sofreram atentados em suas residências ou escritórios.
colocar o país no Primeiro Mundo.
O objetivo era intimidar.
Mesmo assim, as medidas ortodoxas implementadas
Ainda sob clima de incerteza, em novembro de 1982, os
pelo último governo militar conseguiram promover o
novos partidos políticos se enfrentaram numa das mais
ajuste externo da economia brasileira, obtendo um
importantes eleições da história do país. Os casuísmos e
surpreendente superávit de US$ I3 bilhões em 1984. No
a manutenção da Lei Falcão garantiram ao PDS uma
entanto o mesmo não ocorreu com a inflação, que,
ampla maioria no Senado e o maior número de
apesar da recessão e do desemprego, chegou a mais de
governos estaduais. Na Câmara dos Deputados, graças
200% no ano de 1983 e a 250% em 1984.
ao alinhamento da pequena bancada do PTB, o governo
conseguiu manter 52% de apoio. O PMDB venceu as
eleições em alguns dos principais estados: SP, MG, PR, Diretas já!
GO. o PDT obteve uma importante vitória com a eleição
de Leonel Brizola no Rio de Janeiro. A partir de então, o principal objetivo das oposições
passou a ser o restabelecimento das eleições diretas
para a Presidência da República. O movimento
denominado "Diretas Já1", que começou reunindo

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
poucos milhares de pessoas nas principais cidades José Sarney subiu a rampa do Palácio do Planalto e
brasileiras, ganhou a simpatia da maior parte do país, recebeu a faixa presidencial. Significativo. Durante a
assumindo proporções gigantescas. Em 1984, milhões ditadura, o ex-presidente do PDS, ex-governador e ex-
de brasileiros saíram às ruas exigindo o fim da ditadura senador da Arena aprendera bem o percurso, realizado
militar, na maior mobilização popular de nossa história. diversas vezes em busca dos gabinetes do poder militar.
Era acompanhado por antigos colaboradores do regime,
Ainda assim o governo manteve-se irredutível quanto à
como, Antônio Carlos Magalhães e Marco Maciel, e
manutenção do Colégio Eleitoral como forma de
pelos principais representantes da oposição, como
escolha do sucessor de Figueiredo. Mas, diante do apelo
Ulysses Guimarães e Franco Montoro.
popular, ofereceu à oposição a possibilidade de um
acordo envolvendo as eleições presidenciais em 1988. Em 21 de abril, data da morte de Tiradentes, moda o
mineiro Tancredo Neves, logo transformado em ídolo
Através de uma emenda constitucional, os
pelo PMDB e em santo milagreiro pela crença popular.
oposicionistas tentaram estabelecer eleições diretas
Milhões de pessoas saíram às ruas para acompanhar o
para 1985, forçando o Congresso Nacional a atender às
cortejo fúnebre em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e
reivindicações das grandes manifestações. No entanto,
São João del Rei. Em muitas faixas empunhadas pelos
em 25 de abril de 1984, durante a votação da emenda
manifestantes lia-se a frase: "Nós não vamos nos
Dante de Oliveira, na Câmara dos Deputados, a maior
dispersar".
pane do PDS posicionou-se contra a iniciativa da
oposição. Nas ruas, além da tristeza e da decepção, uma Sem respaldo popular, cercado de desconfianças dos
nova palavra de ordem: "O povo não esquece, acabou o oposicionistas e conduzindo uma coalizão política
PDS". extremamente heterogênea, num contexto de
acentuada crise econômica, o governo Sarney pautou-
A derrota parlamentar foi contornada com um acordo
se pelo imobilismo e pelo fisiologismo. A oposição
entre o PMDB e setores dissidentes do partido
petista e pedetista não perdoava: "O povo não esquece,
governista. A composição, denominada Aliança
Sarney é PDS" e "Sarney não dá, diretas já".
Democrática, levou ao Colégio Eleitoral a chapa
encabeçada pelo governador licenciado de Minas Por outro lado, o estabelecimento de uma ordem
gerais, Tancredo Neves, do PMDB, tendo como vice o democrática impunha a elaboração de uma nova Carta
senador pelo Maranhão e ex-presidente do PDS, José Constitucional em substituição à legislação do regime
Sarney. Pelo governo disputaram a eleição indireta os autoritário. Para tanto, foram delegados poderes
deputados federais Paulo Maluf e Flávio Marcílio, constituintes ao Congresso Nacional, renovado pelas
ambos do PDS, sendo derrotados por mais de 70% dos eleições de 1986. Em 1985, uma complacente legislação
votos em janeiro de 1985. havia permitido a livre criação partidária, que tirou da
clandestinidade o PCB e o Partido Comunista do Brasil
A vitória do PMDB no Colégio Eleitoral não alterou o
(PCdoB) e propiciou o surgimento de um grande
ritmo da transição democrática, que permaneceu lenta
número de legendas, muitas de reduzida expressão
e gradual, como fora concebida pelo general Golbery do
política.
Couto e Silva. A aliança com a dissidência do PDS, esta
autodenominada Frente Liberal, permitiu que ativos
colaboradores do regime militar permanecessem nos
A) O Plano Cruzado e a Constituinte
bastidores do poder, autoproclamando-se “guardiães da
democracia”. Para conter a corrida inflacionária, em fevereiro de
1986 foi implementado o Plano Cruzado, que
estabelecia o congelamento dos preços e promovia
9. JOSÉ SARNEY uma reforma monetária. Inflação zero e aumento real
de salários de cerca de 8'Jb foram decisivos para que o
Comparada a outros regimes latino-americanos, o Brasil
plano obtivesse a aprovação da população brasileira
não teve a ditadura mais sangrenta. No entanto o
que, entre lágrimas de economistas e discursos de
autoritarismo ficou alojado nas estruturas sociais e
consumidores contra remarcações indevidas, virou
políticas do país. A remoção do entulho autoritário foi
"fiscal do Sarney". No entanto, por motivações político-
tarefa do primeiro governo civil e até hoje não foi
eleitorais, a flexibilização do congelamento foi adiada
completamente concluída.
ao máximo, o que contribuiu para o fracasso do plano já
Em 15 de março de 1985, data da posse do novo no final de 1986.
presidente, o país foi informado que Tancredo Neves
fora internado às pressas em um hospital de Brasília.

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

O primeiro semestre de 1987 assistiu ao retomo da crise posicionamento da maior parte do PMDB pelo mandato
econômica e financeira. Em fevereiro, o pais anunciou a de cinco anos para José Sarney, o que adiava as
suspensão do pagamento dos juros da divida externa. A esperadas eleições diretas à presidência para 1989, e o
volta da inflação e as medidas amargas de contenção do alinhamento do partido com os setores mais
consumo rapidamente atingiram a popularidade de conservadores do Congresso motivaram tal ruptura.
Sarney e da Nova República- Acossado pela opinião
pública, o Presidente buscou apoio político para seu
governo nos setores mais conservadores do Congresso 10. Collor
Nacional. Isso trouxe consequências nefastas para as O desgaste do PMDB perante a opinião pública ficou
novas tentativas de ajustes econômicos que ainda iriam evidente em novembro de 1989, quando finalmente
ser implementadas (Plano Bresser, de junho de 1987, e foram realizadas as primeiras eleições presidenciais em
Plano Verão, de janeiro de 1989). quase trinta anos. Responsabilizado pela instabilidade
Quaisquer iniciativas de contenção dos gastos públicos política do governo e pela grave crise econômica que o
esbarrariam nas necessidades pragmáticas de país atravessava, o candidato peemedebista Ulysses
sustentação política, que ficaram celebrizadas pelo Guimarães, um dos mais importantes líderes da
slogan "É dando que se recebe" proferido com oposição durante os anos da ditadura, recebeu uma
convicção por um deputado de São Paulo. O governo votação inexpressiva, amargando o sétimo lugar no
passou então a administrar as taxas inflacionárias, sem primeiro turno eleitoral.
promover ajustes estruturais na economia do país. A Dois candidatos conseguiram canalizar as expectativas
permanência da inflação e da recessão, o desequilíbrio por mudanças no país: o jovem ex-governador de
fiscal e as indefinições a respeito da política de Alagoas, Fernando Collor de Mello, e o líder operário,
renegociação da dívida externa foram extremamente Luís Inácio Lula da Silva, principal dirigente das greves
negativas para o regime democrático que procurava se de 1978 a 1980 no ABC.
firmar. Democracia e crise econômica caminharam
juntas, numa década em que se acentuaram os graves Collor lançou-se por uma coligação partidária
problemas sociais brasileiros. praticamente inexpressiva, capitaneada pelo recém-
fundado Partido da Renovação Nacional (PRN). Ex-
Reforçado pelo Plano Cruzado, que controlara a inflação integrante do PDS, eleito governador pelo PMDB em
e parecera ter resolvido alguns dos mais graves 1986, Collor recebeu inestimável apoio da Rede Globo
problemas nacionais, o PMDB saíra vitorioso das umas de Televisão, que, além de garantir-lhe a necessária
em 1986. Com a maioria absoluta dos parlamentares e exposição na mídia, promoveu uma intensa campanha
com a quase totalidade dos governadores, o antigo contra seus adversários. Lula conseguiu reunir a maior
partido oposicionista tinha em suas mãos o destino parte da esquerda (PT, PSB e PCdoB), animada pelos
político do Brasil. No entanto, dividido em termos sucessos obtidos nas eleições municipais de 1988.
ideológicos e inchado pelo ingresso de políticos recém-
saídos do PDS, o PMDB estava controlado por No segundo turno das eleições, o Brasil viveu uma
conservadores. impressionante polarização ideológica entre grupos de
direita e esquerda. Ao lado de Collor ficaram os
Na Constituinte, tal divisão impediu a implementação remanescentes do regime militar, os conservadores do
de um projeto peemedebista. Setores conservadores PMDB e a imensa maioria do empresariado e
articularam-se numa grande frente denominada proprietários de terras. Com Lula, além do PT, do PSB e
Centrão, aglutinando parlamentares do Partido da do PCdoB, fecharam o PDT, o PCB, o PSDB e
Frente Liberal (PFL), do PMDB, do PDS e do PTB. Em representantes dos movimentos populares e de direitos
minoria, a bancada progressista era composta por civis.
membros do PMDB, do PT, do PDT, do Partido Socialista
Brasileiro (PSB), do PCB e do PCdoB. O PMDB, o maior Apresentando-se como o "caçador de marajás" - alusão
partido do Brasil, estava dividido. a funcionários públicos de altos salários - e
representante dos "descamisados", Collor conseguiu
Em 1988 o país ganhou sua nova Constituição e o PMDB vencer as primeiras eleições diretas no Brasil em quase
sofreu sua mais importante baixa, quando um grupo de trinta anos. O último presidente eleito havia sido Jânio,
parlamentares de centro-esquerda, liderado pelos que prometera deixar a direita indignada e a esquerda
senadores Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso e perplexa.
José Richa, e pelo ex-governador de São Paulo André
Franco Montoro, deixou o partido para formar o Partido Collor procurou encarnar a modernidade e a esperança
da Social Democracia Brasileira (PSDB). O de justiça social. Em março de 1990, o jovem Presidente

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA
- LEI 5.810/94
implementava o Plano Collor. Entre outras medidas, principal cargo dessa república que pode ironicamente
estabeleceu o confisco por 18 meses de recursos ser considerada vice presidencialista.
depositados em contas bancárias e em cadernetas de
poupança, e o congelamento de preços. O líder
comunista Fidel Castro, que viera assistir à posse de
Collor, não se conteve ao saber das medidas: "Nem em
Cuba fizemos isso".
Mas, no Brasil, os grupos dominantes não só permitiram
como até apoiaram as investidas de Collor sobre suas
próprias contas bancárias. A expropriação feita por um
membro das elites era preferível ao "risco" de uma
expropriação realizada por um líder operário. Em
compensação, Collor iniciou um amplo programa de
privatização de empresas estatais e abertura da
economia brasileira ao capital internacional. A elite
poderia, a partir de então, desfilar pelo país em carros
importados, deixando de lado as "carroças" nacionais.
Em 1992, com enredo digno de um dramalhão
mexicano, o irmão do Presidente concedeu várias
entrevistas à imprensa acusando Fenando Collor de
farsante, corrupto, imoral e usuário de drogas. Num
país onde as fronteiras entre o público e o privado não
são clara mente definidas, as críticas ao comportamento
administrativo do Presidente não eram novas. A
oposição, desde a campanha eleitoral, denunciava a
farsa política montada em tomo do candidato. Após a
posse, denúncias de corrupção envolvendo o governo
inundavam os noticiários quase diariamente. Mesmo A) O Plano Real
assim, a credibilidade de Collor parecia não ser abalada. A montagem do governo Itamar Franco foi produto de
Ou melhor, sua falta de credibilidade era tolerada pela uma série de acordos políticos entre os partidos que
população. estiveram à frente da destituição de Collor. Mais uma
No entanto, quando as denúncias envolveram sua vida vez, o PT optou pela via oposicionista, seguido pelo PSB
particular, a pretensa moralidade brasileira foi atingida. e partidos comunistas. No entanto, uma de suas
A indignação tomou conta do país em 14 de agosto, principais estrelas, a ex-prefeita de São Paulo, Luíza
numa sexta-feira, ocasião em que, diante das câmeras Erundina, aceitou participar como ministra do governo
de TV, visivelmente alterado, Collor pediu que os Itamar. Para solucionar a situação, Erundina licenciou-
brasileiros se vestissem com as cores da bandeira se do PT.
brasileira no domingo, em sinal de apoio ao Presidente. Outros partidos preferiram soluções diferentes. O PFL, o
Desde as primeiras horas do dia 16 de agosto, por todo PMDB, o PSDB e o Partido Progressista Reformador
o país, sem que tivesse havido condições de (PPR) compuseram com Itamar um amplo governo de
planejamento e organização para qualquer ato público, coalizão. Até mesmo o PDT tinha um representante no
milhares de brasileiros saíram às ruas. De preto. governo, o senador Maurício Correia.
Nos dias, seguintes, jovens estudantes pintaram seus Em junho de 1994, o então ministro da Fazenda,
rostos de verde, amarelo e preto, e tomaram as ruas e Fernando Henrique Cardoso, anunciava à nação mais
avenidas das principais cidades do país, exigindo a um plano econômico, denominado Plano Real. A moeda
queda do Presidente e ética na política. Após uma série brasileira foi equiparada ao dólar e teve seu nome
de comícios, negociações e a abertura de uma Comissão alterado para real. Foi anunciado um amplo programa
Parlamentar de Inquérito (CPI), votou-se o de estabilização da economia, que previa a elevação da
impeachment do Presidente. Numa última cartada, . taxa de juros e a redução do déficit público com uma
Collor renunciou à presidência antes de sua cassação. política de privatizações de empresas estatais.
Mesmo assim, teve seus direitos políticos suspensos por
oito anos. O vice-presidente, Itamar Franco, assumiria o

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POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

O sucesso do Plano Real embalou a campanha deu passos decisivos para a integração com os países do
presidencial de 1994. Fernando Henrique Cardoso Mercosul e a abertura de sua economia a empresas
lançou-se candidato numa aliança política entre o PSDB europeias, asiáticas e norte-americanas.
e o PFL. Para vice de sua chapa, foi escolhido o senador
Marco Maciel. A vitória no primeiro turno não deixou
dúvidas sobre a aceitação do Plano Real. Mais uma vez 11. Reeleição de FHC
os candidatos das esquerdas, Lula, pelo PT, e Brizola, Mas o empenho político do governo destinou-se à
pelo PDT, não obtiveram êxito. aprovação de uma emenda constitucional que
Em janeiro de 1995, Fernando Henrique subiu a rampa permitiria a reeleição do presidente da República e dos
do Palácio do Planalto como presidente da República. governadores dos estados. A partir de uma forte
Foi acompanhado por diversos representantes do PFL, ofensiva junto aos grandes partidos nacionais (PMDB,
que já haviam feito o mesmo percurso nos governos PFL, PPB, PSDB e PTB), o governo conseguiu e obteve,
Sarney, Collor e Itamar. Aliás, considerando-se que o em outubro de 1998, uma nova vitória eleitoral. Contra
PFL constituiu-se de uma dissidência do PDS, que era a a chapa FHC-Marco Maciel, apoiada pelo PPB, pelo PTB
continuação da Arena, que por sua vez foi formada e pela maioria do PMDB, a oposição de esquerda lançou
principalmente pela UDN, percebe-se que os efeitos do Lula como candidato à presidência e Brizola como vice.
golpe de 1964 ainda hoje estão presentes na política Pela primeira ver, os dois maiores partidos de oposição
nacional. Os herdeiros de Carlos Lacerda conseguiram saíram unidos desde o início numa disputa eleitoral.
manter-se no poder.
Mesmo abalada por uma impressionante crise cambial
Os primeiros anos do governo FHC foram marcados por em 1998, a sociedade brasileira manteve seu apoio a
estabilidade monetária e queda da inflação. Apesar do FHC, que foi reeleito no primeiro turno. No entanto o
ritmo recessivo da economia, controlada e limitada por resultado das eleições não pode ser considerado
uma excessiva alta dos juros, houve crescimento da totalmente favorável ao governo. Nos estados houve
renda per capita e, principalmente, pela primeira vez importantes vitórias de candidatos da oposição,
em várias décadas, uma «distribuição da renda principalmente as de Olívio Dutra (PT), no Rio Grande
nacional. do Sul, Itamar Franco (PMDB), em Minas Gerais, e
Insuficiente para resolver os desequilíbrios sociais Anthony Garotinho (PDT), no Rio de Janeiro. Em São
brasileiros, a estabilidade do Plano Real conseguiu Paulo a vitória de Mário Covas (PSDB) só foi possível
atordoar a oposição. Dividido em grupos radicais e graças ao apoio de importantes lideranças da esquerda,
moderados, que estabelecem uma duríssima disputa realizando uma aproximação de setores do PSDB com
pelo controle do partido, o PT oscilou entre denunciar setores do PT e do PSB.
os efeitos recessivos do programa econômico do Além disso, as eleições estaduais ativaram as lutas
governo e a vulnerabilidade diante do capital internas na base governista, excessivamente ampla e
estrangeiro e apresentar alternativas político- heterogênea. Para garantir a governabilidade do país,
econômicas para o país. O PDT reduziu seu espaço de FHC permitiu que o Legislativo Federal fosse controlado
intervenção na mesma medida da perda da pelos dois maiores partidos brasileiros, o PMDB e o PFL,
popularidade de Leonel Brizola, abalada pelas enquanto comanda o Executivo Federal com uma
surpreendentes alianças que este promoveu: apoiou equipe composta em sua maioria por velhos
Lula no segundo turno em 1989, apoiou Collor na época companheiros de militância política e amigos pessoais,
do impeachment, aproximou-se do PT a partir de 1995 e muitos dos quais exilados e perseguidos pela ditadura
promoveu a entrada no PDT de diversos políticos que militar. A ambiguidade do governo FHC é sempre
participaram da Arena e do PDS, como Jaime Lerner e justificada pelos seus mais ardorosos defensores pelas
Francisco Rossi. necessidades pragmáticas do exercício do poder.
O primeiro governo FHC estabeleceu como meta uma Desde 1995, o ex-governador da Bahia e senador
ampla série de reformas, com o objetivo de diminuir a Antônio Carlos Magalhães - o ACM, chamado de
participação do Estado na economia e, Toninho Malvadeza por seus críticos e de Toninho
consequentemente, reduzir o déficit público. Uma Ternura por seus aliados e afilhados - tomou-se uma
avassaladora onda de privatizações transferiu para o espécie de eminência parda do governo brasileiro. Sua
setor privado diversas empresas estatais de setores presença, no mesmo campo político de líderes
considerados estratégicos à época do regime populista marcados pela luta contra a ditadura - como por
e da ditadura militar: telecomunicações, eletricidade e exemplo, Franco Montoro, José Serra, Francisco
siderurgia. Nessa mesma perspectiva neoliberal, o Brasil

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Weffort – e propagandistas da modernização da política 1. CONJURAÇÃO BAIANA (1798)
brasileira, soa, pelo menos, contraditória. Parece
mesmo um casamento de conveniência repleto de
traições.
Às ambiguidades e contradições do governo FHC Também conhecida como Revolta dos Alfaiates, a
somam-se as dificuldades do PT e dos demais partidos Conjuração Baiana foi uma revolta social de caráter
de esquerda em ampliar suas alianças e apresentar os popular ocorrida na Bahia em 1798. Teve uma
programas de transformações sociais e econômicas importante influência dos ideais da Revolução Francesa.
necessárias ao país. Enquanto o governo e a oposição Além de ser emancipacionista, defendeu importantes
vivem seus dilemas e limites políticos, a sociedade mudanças sociais e políticas na sociedade.
brasileira apresenta índices alarmantes de desemprego, Quase dez anos depois dos acontecimentos de minas
analfabetismo, desnutrição e violência. Se a esperança é gerais (inconfidência mineira), nascia um novo
equilibrista, como na canção de João Bosco e Aldir movimento revolucionário, na Bahia. Apesar de se
Blanc, resta saber até quando o show pode continuar. situar também no período colonial, a conjuração
mineira era bem diferente da revolta nas minas, por um
motivo bem simples: m minas, o movimento foi
organizado principalmente por intelectuais, ricos
proprietários, gente de elevada posição social.
A conjuração baiana também foi conhecida como
revolta dos alfaiates, além de homens ricos e cultos, o
movimento contou com grande participação popular
como alfaiates, soldados, escravos que, inconformados
com a fome e a miséria, promoviam saques frequentes
a depósitos e carregamento de alimentos. Alguns
homens ricos e cultos que participavam da conjuração
recuaram quando perceberam o caráter
predominantemente popular.
No movimento, destacaram-se os alfaiates João de
Deus do Nascimento e Manuel Faustino dos Santos Lira,
sob chefia militar do tenente Aguilar Pantoja, que
contava com o apoio dos soldados Luís Gonzaga das
Virgens e Lucas Dantas Amorim Torres.
A revolta tinha alguns objetivos que mudariam as
estruturas de poder, tais como:
a) Defendiam a emancipação política do Brasil, ou seja,
o fim do pacto colonial com Portugal;
b) Defendiam a implantação da República;
c) Liberdade comercial no mercado interno e também
com o exterior;
d) Liberdade e igualdade entre as pessoas. Portanto
eram favoráveis à abolição dos privilégios sociais e
também da escravidão;
e) Aumento de salários para os soldados.

Inspirados pelas ideais de liberdade, igualdade e


fraternidade que corriam pela França, os
revolucionários redigiam panfletos. Espalhados pelas
portas das igrejas, nos muros das cidades e em diversos

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lugares públicos, os folhetos faziam propaganda do invasão de um português ao Convento da Lapa e o


movimento e chamavam o povo a participar, ou seja, assassinato da abadessa Sóror Joana Angélica.
aumentava o apelo popular da revolta Posteriormente, o movimento separatista ganhou
forças em outras vilas, como a de São Francisco e
Percebendo o perigo de uma organização popular em
Cachoeira.
grande escala, o rei de Portugal D. Fernando infiltrou
homens de seu exército com os revoltosos e acabou Após outros confrontos que tomaram outras cidades do
surpreendendo-os. O rei conseguiu prender a maioria Recôncavo Baiano e a capital Salvador, com a
dos envolvidos e não hesitou em torturá-los. resistência eficiente dos defensores da independência e
o apoio de tropas sob a liderança do militar britânico
Revoltosos mais pobres, como Faustino e Nascimento,
Thomas Cochrane, as tropas fiéis a Portugal foram
foram condenados imediatamente à morte por
derrotadas em 2 de julho de 1823. Esta data marca o
enforcamento, enquanto que os intelectuais e mais
feriado da denominada Independência da Bahia.
abastados Barata e o professor Francisco Moniz foram
absolvidos pela Coroa.
3. A SABINADA (1837-1838)
2. INDEPENDENCIA DA BAHIA (1822- 1823) A Sabina foi uma das revoltas que ocorreram no Brasil
durante o Período Regencial (1831 a 1840). Aconteceu
A Independência da Bahia foi um movimento que,
em função da instabilidade política que havia no país
iniciado em 19 de fevereiro de 1822 e com desfecho em
(falta de um governo forte) e das condições de vida
2 de julho de 1823, motivado pelo sentimento
precárias da população pobre, que era a maioria
federalista emancipador de seu povo, terminou pela
naquele período.
inserção da então província na unidade nacional
brasileira, durante a Guerra da Independência do Brasil. Em 1837, estourou na Bahia uma rebelião liderada pelo
médico Francisco Sabino alvares da rocha vieira, por
Desde a Conjuração Baiana, em 1798, o sentimento de
isso foi conhecida como Sabinada. A sabinada foi uma
independência em relação a Portugal estava enraizado
rebelião comandada por homens cultos da classe media
na população da Bahia. A Revolução Liberal do Porto, de
de salvador, Não teve a participação de setores
1820, teve uma grande repercussão na Bahia e, em
populares, nem obteve apoio dos fazendeiros.
fevereiro de 1821, explodiu uma conspiração de cunho
constitucionalista em Salvador, contando com a O objetivo da rebelião era proclamar uma republica na
participação de José Pedro de Alcântara, Cipriano bahia, mas não para sempre. A república só duraria
Barata, o capitão João Ribeiro Neves, dentre outros. A enquanto D. Pedro II fosse menor e não pudesse assumir
exemplo de Portugal, os conspiradores liberais queriam o trono. Não havia entre os líderes do movimento a
uma constituição que limitasse o poder real. Nesse vontade efetiva de mudar a situação social dos baianos.
período, as relações entre portugueses e brasileiros Ou seja, os ricos continuariam com seus privilégios.
começaram a se acirrar. Em 11 de fevereiro de 1822,
Inúmeras casas de salvador foram incendiadas, e muitos
um novo grupo do governo, administrado pelo
revoltosos foram queimados vivos. Mais de mil pessoas
Brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo deu motivo para
morreram lutando. Em marco de 1838 a rebelião estava
o início das disputas, pois o novo governador da cidade
totalmente esmagada.
se declarava fiel a Portugal.
Os primeiros conflitos tiveram início em 19 de fevereiro
de 1822, nos arredores do Forte de São Pedro, 4. REVOLTA DOS MALES (1835)
alastrando-se, em pouco tempo, para as imediações da Os malês eram formados por libertos e escravos
cidade de Salvador. Na Bahia, três facções mantinham a africanos, principalmente, os negros de ganho, escravos
luta acesa: os partidários da manutenção do regime que tinham mais liberdade do que os negros das
colonial (composto majoritariamente por portugueses); fazendas para circular pela cidade, o que não os livrava
os constitucionalistas do Brasil, que defendiam uma de serem constantemente alvejados pelo desprezo e
constituição para o país; e os republicanos, que eram pela violência.
adeptos da emancipação política, com a adoção de um
regime republicano. Esses escravos que desempenhavam atividades livres,
como alfaiates, pequenos comerciantes, artesãos e
Na primeira onda de conflitos, as tropas lusitanas carpinteiros, a partir das quais poderiam economizar
invadiram casas, enfrentaram militares nativos e uma pequena parte dos ganhos que seus donos lhes
atacaram civis. O episódio mais marcante ocorreu com a

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deixavam, para comprar sua alforria, dominavam a republicana, de 1891, não buscava empreender
leitura e a escrita em árabe. “Malê” é a corruptela do nenhum tipo de projeto de inclusão social e econômica
termo iorubá imalê, que quer dizer muçulmano. dessa população historicamente marginalizada. Ao
mesmo tempo, a república foi marcada pelo
O levante reuniu cerca de 600 negros (embora outras
predomínio das elites agroexportadoras no poder. Foi a
fontes indiquem 1500) e foi composto por escravos
partir dessa estrutura que observamos o aparecimento
africanos de várias etnias, com protagonismo de nagôs
de uma série de revoltas que tomaram conta do país ao
(também conhecidos como iorubas) e participação de
longo de toda República Velha. Canudos foi revolta com
hauçás ou huassaás.
características messiânicas. Esse messianismo
O mote da revolta era a libertação de todos os escravos desenvolveu-se em áreas rurais pobres, dentro da
africanos de origem mulçumana, a partir da tomada do primeira república do brasil, que acabou por se
governo. O movimento teria sido planejado em constituir como uma reação a miséria e a exploração.
reuniões — possibilitadas pela relativa autonomia de
No governo de Prudente de Morais eclodiu um grande
que dispunham escravos urbanos — em que exercícios
movimento de revolta social entre sertanejos baianos.
de leitura e escrita corânicas dividiam tempo com rezas
O líder desse movimento era Antonio Vicente Mendes
e conspirações.
Maciel, mais conhecido como Antônio Conselheiro. Esse
O plano dos rebeldes se constituiu a partir das homem, senhor de fervorosa religiosidade, foi
experiências de combate que tiveram anteriormente considerado um missionário de Deus pela vasta legião
em África e visava opor-se às práticas herdadas pelo de sertanejos que o seguia, pois, desiludidos com a
Império do sistema colonial português, a saber, a situação de extrema necessidade escutavam
escravidão e a intolerância religiosa. Essa revolta ainda atentamente suas pregações e “conselhos”.
foi resultado do desmando político e da miséria
Conseguindo reunir um grande número de seguidores,
econômica do período regencial. Todavia, de modo
Antônio Conselheiro estabeleceu-se em Canudos, um
pragmático, os revoltosos buscavam inverter a lógica a
velho arraial no sertão baiano. Em pouco tempo,
que estavam submetidos, portanto, tomar o poder,
canudos transformou-se numa das “cidades” mais
impor o islamismo, assassinar e confiscar os bens de
povoadas da Bahia, com uma população com cerca de
brancos e mulatos e escravizar os não-mulçumanos. A
30 mil habitantes. Comandados por Antônio
ideia era conquistar primeiro a cidade de Salvador e de
Conselheiro, a população vivia num sistema
lá seguir partir para a conquista dos engenhos do
comunitário em que as colheitas, o rebanho e qualquer
Recôncavo baiano.
fruto do trabalho era divididos entre os sertanejos. Só
Não obstante, as autoridades também se organizaram havia propriedade privada dos bens de uso pessoal
com rapidez, conseguindo repelir os ataques aos (roupas, moveis e etc.). Também não existia cobranças
quartéis de Salvador, colocando em fuga os revoltosos. de impostos e nem autoridade policial. A prostituição e
Supeita-se que algum integrante tenha delatado o a venda de bebidas alcoólicas eram proibidas.
próprio movimento. Ao procurar sair da cidade, um
grupo de mais de quinhentos revoltosos, entre escravos
e libertos, foi barrado na vizinhança do Quartel de
Cavalaria em Água dos Meninos, onde se deram os
combates decisivos, vencidos pelas forças oficiais, mais
numerosas e bem armadas.
Foram mortos 70 revoltosos e sete homens das tropas
oficiais. Quase 3 centenas de malês foram presos e
julgados. As penas aplicadas variaram de açoites,
trabalhos forçados até a deportação para a África e a
condenação à morte

5. A REVOLTA DE CANUDOS (1893-1897)


Guerra de Canudos. Uma casa em Canudos. [Fonte:
De acordo com diversos estudos, o fim do regime Arquivo Histórico do Museu da República]
monárquico não representou a ascensão de profundas
transformações no cenário social brasileiro. Apesar da
libertação das populações escravas, a constituição

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HISTÓRIA DO BRASIL E DA BAHIA

Os fazendeiros de toda a região passaram a temer o


crescente poder de Antônio Conselheiro e exigiram que
o governo estadual acabasse com o arraial de canudos e
sua singular experiência de vida comunitária.
Como as tropas do governo estadual baiano foram
incompetentes para esmagar o movimento, o governo
federal entrou duramente no conflito. Mesmo assim
várias expedições militares do governo foram
derrotadas, pois desprezavam o poder de luta dos
sertanejos. Finalmente, um poderoso exército de 7 mil
homens foi organizado pelo ministro da guerra, e depois
de sangrentas batalhas, canudos foi completamente
destruído. Era de de outubro de 1897. Mais de 5 mil
casas foram queimadas pelo exército brasileiro e quase
toda a população de canudos foi morta, por defender
sua comunidade.

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