Rio 2054 - Jorge Lourenço
Rio 2054 - Jorge Lourenço
Rio 2054 - Jorge Lourenço
TEXTO DE ACORDO COM AS NORMAS DO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA (DECRETO
Lourenço, Jorge
12-14544 CDD-869.93
2013
IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
www.novoseculo.com.br
atendimento@novoseculo.com.br
ISBN: 978-85-7679-898-9
Ao primeiro par de olhos que leu esta obra do início ao fim,
Aos meus pais, que sempre lutaram por mim e pela minha educação.
Às cobaias que me ajudaram, Orlando Camargo, Paulo Henrique, Nélio Vítor, Jefferson
À Editora Novo Século, que tem aberto as portas para vários jovens autores brasileiros.
Palavra do autor
Logo que terminei de escrever Rio 2054, entreguei a amostra original para alguns
amigos e resenhistas que conheci nas redes sociais. Numa conversa que tive com um dos
primeiros leitores, escutei elogios à ambientação e de como a segregação dos Escombros era
assustadora. Esse mesmo leitor disse que estava feliz por saber que ainda estávamos bem
Então, antes mesmo de você começar a leitura e passear pelas ruas do Rio de Janeiro
em 2054, eu lhe pergunto: nós realmente estamos tão longe de um mundo distópico?
Nas próximas páginas deste livro você encontrará empresas assumindo o papel do
Estado e firmas de segurança fazendo incursões cruéis na parte pobre da cidade sem se
importar com a vida de civis. Um território partido onde os ricos tentam se manter longe
dos pobres a todo custo e contam com a ajuda de uma barreira social quase intransponível.
Nos primeiros 24 anos da minha, vivi no Morro do Andaraí, Zona Norte do Rio de
Janeiro. Vi policiais invadindo casas, agredindo moradores que não tinham qualquer ligação
com o crime organizado e apontando fuzis para crianças. Vi gente apelar para o tráfico
porque não acreditava que podia ir longe frequentando uma escola em ruínas, conciliando
Hoje, um quinto da população carioca vive em favelas. Para eles, esta obra de ficção é
perigosamente verdadeira.
Prólogo
A guarita vazia no cais do porto só atiçava a curiosidade de Félix, que coçava a barba
ruça e trincava os dentes amarelados de tanta ansiedade. Segundo um dos seus informantes,
alguém acabara de atacar o grupo de mercenários que dominava aquela região do Rio de
Janeiro. A chuva torrencial dificultava a visibilidade, mas estava claro que havia algo de
errado. Os galpões eram sempre guardados a sete chaves pelos soldados, mas não havia
Com essa chuva, eles devem estar lá dentro. A gente vai estar fodido se alguém ver. Não
Com a arma ainda no coldre, Félix atravessou a rua escura e caminhou lentamente até a
guarita. Sua intenção era parecer o mais inofensivo possível e não despertar a ira dos
mercenários, conhecidos pela fama de pavio curto. Bateu algumas vezes no vidro reflexivo
da janela, mas não obteve resposta. Abriu a porta, deu de cara com um corpo no chão e fez
– Cortaram a garganta dele, olha. – Félix apontou para o ferimento do soldado e, logo
depois, conferiu a submetralhadora ao lado do corpo. – Pente cheio. Alguém entrou aqui
escondido.
começou. Já é quase meia-noite. O que quer que tenha acontecido aí, já acabou.
Matias pegou a arma do soldado para si e os dois correram para a entrada de um dos
alumínio os obrigavam a quase gritar um com o outro para que se fizessem ouvir.
– Félix, não tem nada pra gente aqui. Se havia algo de bom, os caras que atacaram
levaram tudo. Não quero morrer de bobeira. – Matias tremia com a submetralhadora na
mão. Perdera o emprego de segurança numa multinacional há alguns meses e, desde então,
passou a viver no submundo com Félix, um velho faz-tudo do crime organizado. Para
sobreviver, os dois cometiam pequenos assaltos e faziam serviços para as facções do tráfico
de drogas.
– Matias, quanto tempo você acha que a gente vai durar brincando de bandido-mendigo
por aqui? Mais cedo ou mais tarde vão acabar matando a gente. Se for para morrer, prefiro
Mesmo sem concordar, Matias seguiu Félix enquanto ele corria por entre o maquinário
enferrujado por anos de desuso no cais do porto. Algumas quadras à frente, estava o Galpão
12, a base de operações dos mercenários. A cobiça dos dois tinha fundamento. Dois anos
antes, aqueles soldados sem pátria tomaram conta do lugar e acabaram com todos os
mendigos e maltrapilhos que moravam ali. Desde então, fizeram fama no Rio de Janeiro
Precisaram apenas seguir o rastro de soldados mortos para achar o que procuravam.
Não encontraram em nenhum dos corpos qualquer ferimento à bala e os sinais de conflito
– Isso é coisa das gangues, Matias. Eles não usam arma de fogo. – Félix já não fazia
qualquer esforço para não ser visto, certo de que todos estavam mortos.
e o corpo de um soldado partido ao meio bem na entrada. Ali, os sinais de conflito eram
claros. As armas estavam longe dos seus donos, algumas destruídas. Os holofotes do portão
apontavam para um lugar, agora vazio, onde os invasores deveriam estar. Apesar do silêncio,
instante em que todas aquelas mortes aconteceram ainda estivesse vivo. De dentro do
prédio, onde dezenas de contêineres de aço se enfileiravam lado a lado até o teto, não
Até onde Félix lembrava, os depósitos fediam a urina e álcool nos tempos em que os
mendigos e sem-teto dominavam o cais. Agora, tudo estava impecavelmente limpo, exceto
pelos cadáveres.
– Matias, me ajuda a conferir se tem alguma coisa que ainda vale a pena roubar aqui.
O companheiro assentiu e os dois fizeram uma varredura cuidadosa pelo galpão. Nas
fileiras de contêineres, predominava a cor vermelha da China Export e marcas que pouco
queriam dizer para eles – Volvo, Halliburton, Hanjin. Eram apenas heranças de um tempo
Para surpresa dos dois, o material contido neles estava intacto. Chegaram a encontrar
um cadáver num deles, mas todo o espólio dos mercenários estava lá: dezenas de armas,
malas cheias de dinheiro, explosivos, drogas, roupas, veículos e aparelhos eletrônicos. Félix
– Isso tem cara das Luzes – observou Matias, despido de qualquer preocupação. – Eles
devem ter batido de frente com alguma multinacional, aí mandaram apagar todo mundo.
Para os caras das Luzes, isso aqui não é merda nenhuma. É lixo. Mataram os mercenários e
Após a varredura, voltaram à entrada. Félix coçava a grossa barba ruça quando
moreno calejado que liderava o bando de mercenários. Vestia uma roupa camuflada e tinha
ao seu lado um cinto com balas, todas intactas. A arma, um fuzil negro de alto calibre,
“Eu sabia que um dia a sorte ia sorrir pra mim, e não pra esses filhos da puta”, pensou
Félix, deixando escapar um sorriso em seus dentes podres. Seu corpo magro e frágil lhe
aparentava muito mais idade do que realmente tinha. O crack, as noites sem sono debaixo
de viadutos, os tiros que colecionava pelo corpo, tudo ajudava a lhe dar uma aparência bem
pior.
Colocou a mão no bolso e estendeu para Matias a chave da van que tinham deixado do
lado de fora. Chegou a considerar matá-lo para ficar com tudo, mas havia o suficiente ali
para conseguir muito dinheiro e ainda manter um exército particular. Além do mais, seria
– A gente vai ter que fazer umas dez viagens – brincou Matias, sorrindo ao pegar as
chaves do carro. Quando correu para fora do galpão, um estrondo calou os dois. Uma figura
nebulosa caíra do teto do prédio, rachando o concreto do chão. Enrolada numa grossa manta
cinza, a criatura se levantou normalmente, como se a queda de quase trinta metros não
tivesse lhe afetado. Ergueu-se lentamente, revelando quase dois metros e meio de altura.
– Que porra é essa? – berrou Matias, apontando contra a criatura um rifle que acabara
A túnica improvisada de trapos velhos, que mais parecia roubada de algum morador de
rua, balançou com o vento que a tempestade trazia. Fora isso, a criatura não se movia ou
– Quem é...
Antes de Matias terminar a pergunta, uma lâmina retrátil deslizou pelo braço direito do
homem, que percorreu a distância entre os dois com um impulso sobre-humano e saltou
sobre sua vítima. Ele segurou o cano do rifle de Matias com uma mão e, com a lâmina da
Félix disparou a primeira rajada de tiros e, por mais nervoso que estivesse, sabia que
tinha acertado todos. Escutou apenas o som metálico das balas ricocheteando na criatura,
que se levantou e virou para ele. O único reflexo que Félix teve foi o de ativar o lança-
granadas acoplado no rifle. O tiro acertou o homem em cheio, lançando-o a alguns metros
de distância. A explosão também derrubou Félix, que observou incrédulo seu algoz se
levantar. Não titubeou e correu por entre os contêineres, certo de ter avistado uma saída
quando fez a varredura com Matias. Desesperado, teve vontade de chorar quando percebeu
couraça metálica grande o suficiente para que ele se espremesse. Certificou-se de que o
monstro não estava por perto, pulou dentro e estranhou o chão acolchoado com cheiro de
mofo. A fresta de luz que entrava pelo rasgo revelava um pequeno quarto improvisado com
respiração para evitar ser ouvido pelo assassino. Sem fazer barulho, puxou o grosso cobertor
de lã e viu que se tratava de uma adolescente. A moça branca de cabelos escuros o fitava
com um olhar desconfiado, mas não reagiu à sua aproximação. Com medo, o bandido
Quando percebeu que ela estava seminua, vestindo apenas trapos, sequer teve tempo de
reagir. A criatura arrancou a porta do contêiner com um puxão violento e Félix caiu sentado
esboçar reação. Aproveitou o vacilo e tateou o chão em busca do rifle perdido, mas foi
freado por uma dor excruciante. Olhou para baixo e viu que o braço da adolescente lhe
atravessara o torso. Tentou gritar, mas a certeza da morte serviu apenas para emudecê-lo.
Deixou a arma cair e já perdia as forças quando sentiu a menina jogar seu corpo contra
para atacá-la, mas as mãos metálicas do monstro foram mais rápidas do que as dela,
segurando-a pelos pulsos. Foi arrancada do contêiner como um animal indefeso e, exausta,
– Eu estava procurando por você, Lúcia – disse o assassino, com uma voz abafada.
Desconfiada, a menina não baixou a guarda mesmo depois de ele tê-la colocado em
segurança no chão. Acuada, estranhava que alguém lembrasse de um nome que ela mesma
já começava a esquecer.
Lúcia percebeu um filete de sangue gotejando pela mão da criatura, que andava com
– Quem te mandou?
Ele ignorou a pergunta e foi até a entrada do galpão, onde a chuva escoava o sangue
dos soldados mortos direto para o mar revolto. Lúcia voltou até o contêiner e pegou o
cobertor de lã para proteger o corpo do frio antes de segui-lo. Ondas arrebentavam com
violência no limite do cais sob a vigia dos antigos guindastes, gigantes sentinelas de metal
– Você matou todos eles sozinha. Não foi? – perguntou a criatura. Dessa vez, foi ela
quem ficou em silêncio e apertou ainda mais o cobertor contra o corpo. Apesar de estarem
protegidos por uma marquise, o vento ainda lhes presenteava com algumas gotas de chuva
avulsas. – O que você fez é compreensível após todos esses anos de abusos.
Uma lágrima solitária deslizou pelo rosto inexpressivo da garota e logo se misturou à
chuva. Não havia tristeza ou arrependimento. Chorava de ódio, sentimento que guardara
com tanto cuidado nos últimos anos apenas para deixá-lo explodir de uma vez só. Retalhara
homens com as próprias mãos como se fossem lâminas, lançara seus corpos longe com o
simples poder do pensamento. Ceifou a vida de cada um da mesma maneira que ceifaram
– A sensação que eu tenho é de que eu sempre soube. Mas só peguei o jeito há pouco
ainda infestada pelas mortes dos soldados. Só queria morrer e levar alguns deles consigo.
Não imaginava que conseguiria acabar com todos. – Como eu faço essas coisas? O que eu
sou?
– A verdadeira pergunta, Lúcia, não é o que você é, mas o que você pode ser para esse
mundo.
Escombros
relaxavam Miguel. Na cobertura de um pacato arranha-céu, ele observava o pôr do sol, uma
das poucas coisas que lhe faziam esquecer os problemas e não pensar no dia de amanhã.
Com um livro velho no colo, se esforçava para não cochilar até ser desperto pelo som do seu
próprio medo. Sabia que a noite ali não era segura. Pegou sua mochila e preparou-se para os
No caminho, sempre esbarrava com alguns lugares que o tempo insistia em deixar
andando para lá e para cá naquele prédio, fazendo trabalhos que ele desconhecia. Via-os
sentados em frente a computadores, lendo relatórios, conversando entre si, vivendo uma
brilho de uma época perdida, mas quase intacta graças à fuga em massa de uma região em
guerra. Miguel e mais algumas milhares de pessoas moravam na parte pobre da primeira
Zona Internacionalizada da América Latina. As ZIs eram áreas de conflito sem resolução
papel, era o último recurso para frear massacres que os governos locais não conseguiam
resolver. Na prática, era uma excelente desculpa para dar mais poder às empresas, sempre
O pouco que Miguel aprendeu nas aulas de história dava conta de uma guerra civil
2020. Além da grande dificuldade das forças militares em encerrar o confronto, a notícia de
que os rebeldes tinham uma bomba nuclear suja em mãos e planejavam lançá-la numa área
civil caso seus anseios de emancipação não fossem obedecidos reforçaram a necessidade de
Agora, quase trinta anos após o incidente, o Rio de Janeiro era comandado por um
grupo de empresas e sua população era dividida entre a Rio Alfa, situada no sul e lar dos
abastados, e a Rio Beta, onde Miguel e a grande maioria dos flagelados sobreviviam.
Separados por muros, uma forte política de segregação e guardas bem armados, os dois
Aos moradores da Rio Beta sobravam os escombros da guerra naquilo que, um dia,
fora uma cidade. Sem abastecimento regular de energia elétrica, saneamento básico,
segurança ou qualquer administração, eles viviam numa terra sem lei não muito
encontrava paz era no abandonado centro da cidade. Perto do fim da guerra, a bomba suja
que os rebeldes tinham em mãos fora detonada na região, tornando-a imprópria para a vida
por algumas dezenas de anos. Ninguém arriscava pôr os pés ali e os acessos ao centro eram
Já eram quase seis horas quando ele achou sua moto num beco próximo ao prédio.
Imundo de poeira, Miguel entrou numa loja abandonada e devidamente saqueada desde os
tempos da guerra civil para usar o espelho e ter noção de como estava. A calça larga e cheia
de bolsos estava mais cinza do que o cáqui original, mas não perdia em imundície para a
blusa branca. Até o cabelo castanho encaracolado estava com tons de cinza. Prometeu para
si mesmo nunca mais deitar nos prédios em ruínas para não ficar tão sujo e acelerou com a
motocicleta pelas ruas destruídas do que restava do centro. No caminho para a passagem
que o levaria de volta aos Escombros, passou em frente ao sebo do qual roubava livros de
tempos em tempos. Era um dos poucos prédios que haviam recebido clemência dos anos e
dos bombardeios da guerra civil, mantendo a maior parte do seu acervo protegida e em bom
estado. Às vezes se perguntava se o dono daquela loja não tinha deixado tudo em ordem
pensando em voltar ao trabalho um dia e, nalgum lugar, ainda estava vivo e esperando por
esse momento. Apesar da tentação de parar alguns minutos para atualizar sua lista de
romances, preferiu ir embora. Toda terça era Dia de Feira no cais do porto, um dia sagrado
• • •
Debaixo de um dos poucos postes de luz funcionando naquela rua, Miguel olhava um
por um os rostos da procissão que se dirigia ao cais do porto, mas não encontrava Nicolas.
Impaciente com a demora do amigo, entrou num botequim próximo, pediu uma Kirin Draft
e ficou sentado à porta aguardando por ele. Detestava as grandes feiras de terça-feira. Além
de reforçar a pobreza dos Escombros, elas também mostravam como o ser humano convertia
Isolados do resto do Brasil e sem visto para deixarem o Rio de Janeiro, os moradores
da Rio Beta tinham poucas opções de ajuda. Ignorados pela abastada Rio Alfa, eles eram
obrigados a lidar com o caos e a falta de comida. Uma das poucas ajudas que recebiam era a
feira de terça, na qual navios alugados por comerciantes da cidade vizinha de Niterói
atracavam no porto para vender alimentos a preços abaixo do mercado e dentro da realidade
da pobreza local.
Miguel sabia, entretanto, que a bondade não era tão simples. Geralmente, tudo que
recebiam eram restos das feiras, uma maneira bem lucrativa de se livrar das sobras
indesejadas cujo destino certo era o lixo. Mesmo assim, ainda era melhor do que quase tudo
que os moradores dos Escombros podiam comprar e, toda terça-feira, uma multidão de
Depois de quase quinze minutos esperando e mais uma lata de cerveja, Nicolas
finalmente chegou. Negro franzino de sorriso contagiante e lábia afiada, foi ele quem
tem mais álcool correndo nas veias do que sangue propriamente dito.
– O que o meu sócio me traz hoje? – perguntou, logo depois de abraçá-lo. Por tudo que
ele havia bebido, concluiu que o colega não estava trabalhando naquele dia.
– Porra nenhuma, Nicolas. Revirei tudo e não achei quase nada. Acho que está
preparação necessária. Seu progenitor morreu no dia do seu aniversário de 14 anos, quando
ele já dominava algumas técnicas, mas estava longe de ter adquirido conhecimento para
trabalhar nos hospitais da região. Rodeado de livros, aprendeu o resto sozinho, mas não quis
viver na luta diária e quase beneficente dos médicos que atuavam nos Escombros. Ele queria
dinheiro.
ninguém na região ousava fazer. Só esbarrou num problema crônico: a falta de material
disponível para atender toda a demanda. Encomendar uma perna ou mão mecânica da Rio
Alfa custaria uma fortuna e inviabilizaria o seu negócio. Foi aí que Miguel entrou na jogada.
Nas suas constantes idas ao centro abandonado, encontrou próteses da década de 2020
nos corpos dos soldados em decomposição e nos hospitais em ruínas. Com essas peças
rudimentares em mãos, Nicolas aprendeu não só a instalá-las, mas a replicá-las até certo
ponto e produzir suas próprias cópias. Pegar esses restos de tecnologia rendia um lucro
razoável para que Miguel vivesse sem grandes preocupações enquanto ainda conseguisse
material. Já o amigo, que fazia o serviço especializado, tinha juntado um bom dinheiro e
– Miguel, nem me fale isso. Eu preciso das suas peças pra tocar o meu negócio. Se elas
estiverem acabando, vamos precisar tirá-las de outro lugar – avaliou Nicolas, o único que
– Mas a maior parte do material você já está conseguindo refazer por conta própria,
– É verdade. Mas eu queria mais implantes neurais de qualidade, coisa que faça a mão
mecânica se mover de acordo com a vontade do paciente, saca? É bem avançada pro que eu
tenho em mãos, mas quero aprender a fazer isso. – Nicolas acendeu um cigarro e sentou no
vindo das Luzes e umas peças iniciais, mas meu dinheiro não me arruma muito além disso.
Preciso que você ache um bom equipamento no centro pra começar essa empreitada.
Luzes era o nome que os moradores dos Escombros usavam com mais frequência para
se referir à Rio Alfa. Daquela região, poucas pessoas tinham autorização para frequentar o
trabalhadores braçais. Tudo era feito sob constante vigilância, mas alguns ousavam usar os
serviços para trabalhar com o contrabando de produtos que só podiam ser encontrados lá.
– Vou ver pra você, mas acho difícil. Agora, por que você sentou? Vamos logo ou só
Nicolas sorriu e Miguel não conseguiu esconder a irritação. Já sabia de quem o amigo
estava falando.
– Porra, cara. Você não chamou a Nina pra vir também, ou chamou?
– Calma, Miguel. Ela estava sem companhia e com medo de voltar sozinha pra casa.
– E você aceitou, claro. Não é você quem vai voltar com ela pra casa. E ela também
namoro quando tinham treze anos. Graças a algum desentendimento que o tempo acabou
Ele era inteligente, mas tímido e praticamente sem espírito ou autoconfiança. Ela
compensava esses defeitos com o seu senso de praticidade e temperamento forte. Durante a
maior parte do tempo, formaram um casal feliz, até que Nina trocou as efêmeras
com os Escombros.
– Sabia que ela não ia demorar. Olha lá – apontou Nicolas. Nina estava no meio da
multidão e parecia ainda mais debilitada desde a última vez que Miguel pusera os olhos
nela. Antes dona de um corpo relativamente bem distribuído e rosto jovial, sua ex-namorada
estava bem mais magra, com olheiras profundas e curtos cabelos negros que contrastavam
Começaram a avançar para chamá-la, mas foi a própria menina quem os percebeu. Sem
saber bem como agir, Miguel não a abraçou. Apenas fez um sinal com a cabeça e forçou um
sorriso. Ela era bem melhor no quesito fingimento e fez pouco caso do reencontro.
– Se eu demorasse mais, aposto que vocês iam me deixar pra trás. Perdi a hora em casa
e estava sem carona – se justificou. – Acho que somos só nós, não? Vamos indo?
Nicolas abria caminho na multidão com Nina ao seu lado, mas Miguel se deixou
distanciar um pouco dos dois. Seus amigos conversavam, mas sua falta de motivação era
clara e a razão estava bem à sua frente. O vício deixava sua ex-namorada em condições
deploráveis e ele sabia que o anseio dela de trocar os Escombros pelas Luzes era
praticamente impossível de se concretizar. Talvez até por também saber disso, ela
Não era mais apenas o amor que ligava Miguel a ela, mas também a compaixão. Tinha
pena do seu estado, mas não via forma de tirá-la daquilo. Fora justamente ela quem
terminara o namoro. O motivo? Sua insistência para que ela largasse as drogas.
de quem era menos pobre. Miguel, Nicolas e Nina eram dos poucos que tinham dinheiro
para comprar no ônibus. Nas outras vendas, as pessoas se abarrotavam em troca de frutas
Os dois rapazes pegaram logo o que precisavam e saíram na frente enquanto Nina se
deteve no ônibus. Eles observavam-na do lado de fora quando Nicolas assumiu o erro de tê-
la deixado vir.
– Eu também não tinha noção de que ela já tinha perdido tanto peso – lamentou
Miguel, com quem Nina trocava olhares evasivos do lado de dentro do ônibus. – Mas não
sei o que fazer. Ela quer que sejamos amigos. Só que eu não consigo assistir a isso sem falar
nada.
– Achava que você ia dar jeito nela. Não que esse estado da Nina seja culpa sua. Mas
Depois das compras, os três conversaram sobre amenidades até Nicolas se despedir e
seguir seu próprio rumo. A sós pela primeira vez em vários meses após o fim do namoro,
Nina e Miguel caminhavam de volta para um bairro mais distante, que antes da guerra era
chamado de Andaraí.
iluminados para evitar encontros indesejados com ladrões. As ruas estavam movimentadas
por conta da feira, o que deixava a volta mais segura. Surpreendentemente, os dois
mantiveram uma conversa amistosa até que tocaram no assunto que sempre os incomodava.
– Nunca imaginei que a Elisa ia engravidar tão cedo – dizia a menina. – Ela tem a
– Pelo menos ela não está com um cara irresponsável. O namorado dela trabalha como
mecânico na mesma oficina que o meu pai. Ele parece ser bem trabalhador e não se envolve
– Mas é um cara sem futuro, não é, Miguel? Sem pretensões, sem nada.
– Nina, e alguém aqui tem futuro? Dentro da realidade em que a gente vive, o cara com
quem ela está andando é bem tranquilo, com a cabeça no lugar. E que ganha o dinheiro dele
no fim do mês.
Depois de alguns segundos em silêncio, Nina deu um sorriso malicioso. O rosto dela
– Sempre quis ter um filho seu, sabia? – Miguel não sorriu, não queria dar falsas
esperanças para a ex-namorada. Apenas se manteve sério. – Não que eu seja uma dessas
meninas cujo maior sonho é parir, mas eu acho que seria bonitinho ter um filho seu.
– Então você teria a chance de mostrar pra ele como é importante crescer na vida, custe
– É bem por aí – respondeu, quando já estavam na rua onde ela morava. – Você ainda
está encostado naquele negócio de catar peças para o Nicolas? Você sabe que isso não vai te
vou fazer. Talvez ajudar meu pai na oficina mecânica, trabalhar como assistente nas fábricas
Miguel teve vontade de sumir. Sabia que estavam entrando num ponto sensível e
comunicação. Dava pra ir longe, juntar uma grana, até arrumar emprego fora daqui.
– Não quero ser um contrabandista, Nina. Não sonho em ir pras Luzes. Nem penso em
ir pra lá. Quero juntar dinheiro pra viver bem, e acho que esse negócio de venda de próteses
com o Nicolas pode me dar o suficiente pra ter algum conforto. – Ele se calou por algum
tempo e olhou no fundo dos olhos esquivos dela. – Seríamos como animais lá, Nina,
– Mas a vida é assim. Ou você domina, ou é dominado – ela disse, desviando do seu
olhar e mirando o chão. Desconfiou que Nina estivesse tentando conter o choro, mas ela
continuou a falar. – E você quer viver nessa miséria pra sempre? A gente vive no cu do
mundo, Miguel. O que a gente vive não é nem perto do que os mais pobres dos mais pobres
vivem lá.
– Sabe... – ele começou a responder. – Não consigo compactuar com isso, não
conseguiria viver lá sabendo de todas as barbaridades que os oficiais deles fazem aqui. Não
sou cristão o suficiente para me sentir feliz com a condição de vítima, mas não conseguiria
viver do lado opressor também. Sinceramente, não tenho a menor ideia do que fazer, sempre
penso nisso e não encontro uma resposta – desabafou Miguel. – Queria que encontrássemos
– Você vive fora da realidade – respondeu cabisbaixa. Ele fez questão de deixá-la na
porta de casa, como fazia nos tempos de namoro. – Você vai amanhã na Praça da Bandeira?
A Praça da Bandeira era o limite dos Escombros. De um lado dela ficava o Túnel
Rebouças, que dava acesso às Luzes, guardado por seguranças armados até os dentes. Do
outro, ficava a muralha de escombros que bloqueava o acesso ao centro da cidade, a quimera
atômica inabitável. Era nessa praça que as gangues de motoqueiros se enfrentavam, numa
eterna luta por status que constituía o grande entretenimento daquela região.
canais de internet alternativos cujas equipes chegavam aos Escombros escoltadas por
exércitos privados de guarda-costas. De vez em quando alguém morria nos duelos, mas nada
que tirasse dos motoqueiros o ímpeto de fazer dinheiro de maneira fácil e rápida com os
próprios punhos.
– Não sei, não sou muito chegado nas brigas de gangues – ele respondeu.
– Nem eu, mas o Anderson vai lutar. A gangue dele está crescendo, parece que vai
Anderson era outro amigo de infância dos dois e o último membro de um trio que, na
adolescência, nunca se separava. Ele e Miguel eram muito próximos, até por terem sido
criados lado a lado. Não imaginava que a gangue do amigo tinha crescido tanto a ponto de
estar na luta principal de um duelo de gangues, algo que já mostrava certo reconhecimento
no meio. Só não soube definir se a novidade deveria deixá-lo feliz ou preocupado, já que as
– Faz um tempo que eu não falo com ele. Desde que ele foi morar perto da Praça da
Bandeira, a gente não mantém tanto contato quanto antes – disse Miguel, tentando explicar
por que ignorava a novidade. – Mas, se é pra torcer por ele, eu vou sim. Amanhã vou pegar a
Nina apertava com força a cintura de Miguel enquanto ele acelerava a moto pelos
irregular, ele procurava um lugar menos acidentado. Com o rosto apertado contra as costas
do ex-namorado, ela passou a maior parte da viagem de olhos fechados. Detestava andar de
moto.
Por mais que Miguel discordasse da fixação que ela tinha com a ideia de trocar os
Escombros pelas Luzes a qualquer preço, não conseguia condená-la de todo o coração por
Nina era filha de um casal benquisto na região e seus primeiros anos de vida foram
tranquilos. Mesmo com todas as limitações impostas pela pobreza, vivia como uma
verdadeira princesa dos Escombros num sobrado que mais parecia um castelo. Mas, quando
tinha oito anos, o acaso começou a mostrar-lhe o outro lado da moeda. Numa briga de
facções rivais do tráfico de drogas que se estendeu por diversos bairros, várias casas da rua
em que morava foram saqueadas. Para proteger a esposa e a filha de um possível abuso, seu
pai enfrentou os traficantes e foi morto a pauladas na frente das duas, deixadas incólumes
pelos assassinos.
mãe passou a viver à base de calmantes contrabandeados e manteve uma ideia fixa na
cabeça: levar Nina para fora dos Escombros antes que fosse tarde demais, antes que toda a
sua família fosse destroçada. O plano foi colocado em prática dois anos depois da morte do
pai.
A mãe de Nina usou todas as economias da família para comprar uma passagem só de
caminhão que levava equipamentos de uma fábrica nos Escombros, foram descobertas num
posto de vigilância e a mulher sequer teve tempo de implorar pela vida. Logo que
descoberta, foi alvejada pelos seguranças ainda dentro do caminhão. Nina só sobreviveu
dinheiro que havia acabado de receber para fazer a travessia, foi liberado para voltar e
Revendo toda a tragédia, Miguel não conseguia sentir nada, exceto pena e uma vontade
gigantesca de tirar a ex-namorada da situação na qual estava. Sem saber exatamente o que
estava fazendo, mudou o caminho para a Praça da Bandeira e pegou uma rota alternativa
subindo um morro pouco habitado da região. Já eram quase sete horas da noite quando
Quando Nina finalmente abriu os olhos e percebeu onde estava, deu um suspiro de
tristeza e não soube o que falar. O vento fraco fazia as folhas da amendoeira tocarem uma
melodia que evocava os tempos em que fugiam para namorar ali, longe do alcance dos
outros. A estrada de terra batida era pouco acessada e a densa vegetação os dava a
privacidade necessária para, às vezes, até dormirem tardes inteiras sob a copa da árvore.
Ingênuos, trocavam juras de amor que jamais cumpririam e conversavam sobre desejos que
nunca se realizariam.
– A gente era mais inocente quando vinha aqui – limitou-se a dizer a menina.
Com as mãos nos bolsos, Miguel caminhou até a parte mais alta do morro e fitou a
cadeia de montanhas que separava as Luzes dos Escombros. Além das rochas, via a razão
pela qual a Rio Alfa ganhara aquele apelido. O precário fornecimento de luz da parte pobre
fazia com que as luzes da parte rica refletissem nos céus como um gigantesco mar de neon
nas nuvens, ofuscando até as estrelas. Mais do que o de costume, detestou a diferença brutal
e a miséria na qual viviam, mas não era raiva de quem almeja se igualar aos ricos. A
vontade que sentia era a de matar todos eles, mas não sem antes mostrar-lhes o quinhão de
– Me desculpa. Eu não queria trazer você aqui. Eu não sei o que deu em mim – se
justificou, segurando as lágrimas. Ele subiu de novo na moto e esperou por Nina, que o
– Miguel, vai dar tudo certo pra nós, em algum momento – disse, com um sorriso que
o assustou. Por um segundo, ela parecia a Nina de antes, a Nina que ele aprendeu a gostar. –
Ele balançou a cabeça e deixou escapar um sorriso quase provocativo em resposta. Não
gostava daquela atitude leniente da ex-namorada com a própria vida. Afogada em drogas e
num cotidiano caótico, ela estava mais longe de realizar seus sonhos do que em qualquer
– A vida não acerta nada, Nina. É a gente que aprende a lidar com a decepção.
Capítulo II
Eu sou a mudança
Nos dias de batalhas entre gangues, a Praça da Bandeira ganhava ares de coliseu. Os
passarela que cruzava as pistas se transformava num verdadeiro camarote. Caixas de som e
holofotes eram instalados em toda a praça, que recebia pequenos shows de rock antes das
lutas começarem.
Miguel teve que deixar a moto a alguns quarteirões de onde as lutas aconteciam e
seguiu o resto do caminho junto de Nina a pé. Os dois sabiam que a única maneira de
encontrar Anderson no meio de todo aquele caos era na garagem dos Engenheiros, gangue
da qual fazia parte há alguns anos e que passara a liderar alguns meses atrás.
corridas, a mudança para os arredores da Praça da Bandeira era inevitável. O lugar fedia ao
clima das gangues durante todo o ano. Os melhores mecânicos, as batalhas, os contratantes.
O verdadeiro lucro dos motoqueiros vinha desses contratos. Toda gangue que vencia o
duelo principal, realizado uma vez por mês, se tornava a mais requisitada por quem buscava
alguma empresa rival. Os contratantes eram empresários das Luzes interessados em cortar
custos e, em vez de procurarem as caras firmas de segurança com seus exércitos privados,
requisitavam a ajuda barata dos motoqueiros. Era uma maneira fácil e rápida de ganhar
dinheiro, mas quase sempre perigosa. Vez ou outra se escutava a notícia de motoqueiros
mortos em alguma missão mais perigosa, mas nada que abalasse a popularidade daquele
“esporte”.
A garagem dos Engenheiros ficava numa das ruas que dava acesso à Praça da Bandeira,
ao lado de um velho motel caindo aos pedaços. Era um cubículo de teto baixo, cheio de
ferramentas e peças de moto espalhadas por toda a parte. Quando Nina e Miguel chegaram,
Nicolas estava na porta conversando com Anderson sobre a luta da noite. As motos da
gangue estavam cobertas no fundo da garagem por um toldo azul imundo de graxa.
– Dessa vez, nós realmente temos uma chance de vencer – dizia Anderson ao negro. O
velho amigo de Miguel era um monstro inofensivo, pelo menos para os seus companheiros.
Com quase dois metros de altura, ombros largos e olhar manso, ele entrou na vida de
motoqueiro por ser excelente naquilo que menos fazia: brigar. Os olhos eram tão negros
quanto o cabelo e, não fosse a barba por fazer, teria rosto de menino. Iniciado no krav maga
e no kung fu por um soldado aposentado, ganhou logo o respeito das outras gangues.
surpreenderam. Nina ficou na ponta dos pés e tentou ver do que se tratava, mas a multidão a
impedia.
– Você tem certeza de que vai competir nisso aí? – ela perguntou, assustada.
– Nas lutas preliminares, esses motoqueiros novos sempre se dão mal, Nina. Hoje a
Sem mais palavras, Anderson foi até as motos e puxou o toldo, mostrando a todos onde
queria chegar. Miguel não acreditou quando viu as quatro Kawasakis DX enfileiradas. Sabia
que o amigo era tão pobre quanto eles, mas aquelas máquinas eram fora da realidade para os
Escombros. Eram tão boas quanto as dos Caçadores, a gangue mais bem-sucedida das
batalhas.
– Eu posso perguntar de onde você tirou dinheiro para conseguir tudo isso ou a
resposta é muito cabeluda? – brincou Nicolas, que se ajoelhou ao lado das motos para vê-las
de perto.
As quatro motocicletas dos Engenheiros eram amarelas com traços vermelhos, versões
equipada com um assento modificável que permitia ao piloto escolher se ficaria sentado, da
contratantes. Eles até arrumaram umas motos usadas pra gente. Pra eles, isso é troco.
– Mas vocês não ganharam uma luta principal ainda, senão com certeza nós teríamos
– Não, mas chegamos perto. Na luta do mês passado, enfrentamos os Caçadores logo
nas semifinais e perdemos. Eles, como sempre, foram os campeões. Nós demos muito
trabalho, fizemos os caras realmente suar. Todo mundo disse que foi a melhor luta da noite e
obviamente nos saímos bem melhor que as outras gangues. E isso nos rendeu bons contratos
de lá pra cá.
– Bem, então tente fazer bem seu serviço e force a amputação de um braço ou uma
perna dos seus adversários hoje. Vai render um bom dinheiro pra mim e mais trabalho pro
Miguel – observou Nicolas, puxando Nina pelo braço para assistirem ao desenrolar de uma
das lutas preliminares que, pelo som, pareciam bem caóticas. – E, se você perder alguma
Eles riram e, sozinho com Miguel, Anderson foi até um baú no canto da garagem para
escolher suas armas. Era proibido, pelas regras do evento, usar armas de fogo ou lâminas
nos duelos para minimizar as chances de mortes, então os motoqueiros apelavam para
bastões de baseball, hockey, correntes e até espadas de madeira, no caso dos mais
alternativos. Enfiado numa grossa jaqueta de couro vermelha e protegido pela muralha de
frieza do seu rosto, Anderson tentava esconder algo que Miguel não teve dificuldade em
– Não vai ser tão fácil quanto você faz parecer quando fala, não é?
Miguel o conhecia o suficiente para saber quando estava confiante para uma briga ou
só fingindo coragem. Anderson tinha algo que faltava aos motoqueiros: a tranquilidade de
um monge nas lutas. Ao contrário dos outros mercenários que brigavam na Praça da
Bandeira, ele não tinha que beber ou se drogar. Mesmo nos momentos de perigo extremo,
não se irritava ou ficava nervoso. Sua atitude era a de um bom motor em funcionamento
contínuo, sem superaquecer ou esfriar. Mas, naquela noite, havia algo que o perturbava.
– A merda se chama Angra – ele começou. – Ninguém conhece ela, ninguém sabe nem
de onde ela veio. Ela lidera uma gangue recém-formada e tem tocado o terror nas ruas,
desafiando alguns dos grupos mais poderosos e acabando com eles. – O motoqueiro falava
– As motos dela são de última geração, bem acima das nossas ou dos Caçadores. Ela
tem um trio de filhos da puta bem cascudos na gangue. Dois gordos enormes que usam
respiradores artificiais e parecem gêmeos mais um magrelo muito alto que tem cara de
“Todas as pessoas que enfrentaram Angra dizem que ela tem “poderes”, que é uma
bruxa. Ela é muito habilidosa, tanto na moto quanto a pé, mas não é lá muito forte. Mas as
coisas que ela faz... ninguém consegue explicar direito – disse, quando olhou pela primeira
vez para Miguel. Naquele momento, não havia a máscara de falsa coragem, e sim
apreensão”.
Por causa disso, a moto acabou pegando fogo. Na luta com outra gangue, que é quase tão
forte quanto nós ou os Caçadores, dizem que chegaram a derrubá-la da moto, achavam até
que tinham vencido. Mas ela fez o cara voar sem tocá-lo.
– Porra, Anderson. Você sabe como esses boatos são. As pessoas falam, todo mundo
tentando lembrar dos anos mais antigos de sua infância. O motoqueiro sorriu ao ver seu
daquela palavra.
– Não sei. Só sei que, se eu tiver uma oportunidade, vou acabar com ela hoje. Se a
gente se der mal nesse duelo, dou adeus a essas motos. São emprestadas por um contratante
sistemas das motocicletas. – É melhor você ir se encontrar logo com o Nicolas e com a
Continuou ali parado, olhando para o amigo como se fosse a última vez que fossem se
ver.
– Relaxa. Do chão eu não passo. Além disso, você vai sempre estar lá pra me levar pro
hospital, não é?
Os outros integrantes dos Engenheiros chegaram à oficina e Miguel achou melhor
encerrar a conversa. Eles também pareciam apreensivos, mas não desejava contaminá-los
Os dois não estavam muito longe e tinham subido num carro destruído para assistir ao
desfecho da batalha preliminar. Miguel não gostava muito da proximidade dos dois. Sempre
teve a certeza de que seu sócio estava de olho na sua ex-namorada, mesmo nos tempos em
que ainda estavam juntos. O negro nunca fizera qualquer investida, mas, agora que estavam
– Miguel, as lutas principais vão começar daqui a pouco. Será que a gente consegue
arrumar um lugar lá em cima? – perguntou Nina, apontando para a passarela que cortava a
praça. Os dois desceram do carro e, juntos, abriram caminho para alcançar a escadaria.
pessoas. Aquela atitude talvez tivesse despertado algo em Miguel se ele não estivesse
aterrorizado com Anderson. Os dois começaram a falar sobre amputações, novas motos e
coisas triviais, mas Miguel já não estava mais ali. Viajava ao passado numa tentativa de
Apesar de todo o esforço, não conseguia lembrar sua idade na época. A única certeza
era a de que ainda não tinha seis anos completos. Achava difícil lembrar-se de alguma coisa
dos tempos em que ainda tinha quatro. Optou pelos cinco, apesar das dúvidas que o
cercavam.
Era um final de semana, ou um feriado. Pensava assim porque seu pai estava em casa, e
ele sempre trabalhava o dia todo na oficina mecânica durante a semana. Na pequena rua
onde morava, o dia era muito seguro. Os pais normalmente ficavam na janela das casas
já eram amigos. Eles participavam da brincadeira que era a favorita deles, o pique-esconde.
abandonados e nos quintais de casas vizinhas ainda permanecia bem viva. Naquela tarde, se
escondia em cima de uma árvore quando viu seu melhor amigo sair de uma casa do outro
lado da rua com ar de assustado. Era ele quem estava procurando, mas ignorou a brincadeira
O dom de esconder o medo era algo que Anderson cultivava desde criança.
Repentinamente, ele não estava mais assustado, e sim exibindo um rosto despreocupado.
– Você sempre faz isso! É sua vez de procurar! – esbravejou. Anderson não pensou
Sequer houve resposta. Era subentendido para os meninos da rua que eles tinham
poucas chances de encarar Anderson, por isso lhes restava apenas obedecer a seus
desígnios. Fora o típico valentão até os dez anos de idade, pelo que Miguel lembrava. Só
depois adotou o estilo mais tranquilo. Apesar de ter perdido a fome de causar brigas com o
Todos saíram de seus esconderijos para ver o que estava acontecendo e, pouco depois,
– Miguelito, você tem que ver isso! – disse. O amigo foi correndo na frente e o guiou
até uma casa de cômodos caindo aos pedaços. Ao passar por um corredor com várias portas,
lembrou que William, um dos garotos que brincava de pique-esconde, morava lá. E era
A família de William se encaixava na categoria dos mais pobres entre os mais pobres
dos Escombros. Sua mãe vendia doces na rua, mas seu pai não trabalhava. Veterano da
guerra civil carioca, era aleijado das pernas e perdera um braço em combate. O homem
pouco saía de casa, mas, quando o fazia, era para frequentar uma igreja evangélica da
vizinhança. Naquela tarde, tinha ido ao culto e deixado o filho brincando enquanto a mãe
trabalhava.
infância. O chão da sala, que também era o quarto do garoto, estava imundo e os móveis
apodrecidos que sua mãe ganhava de favor entulhavam o pequeno cômodo. No teto, um
ventilador velho dava voltas tão lentas que mais parecia fazer parte da decoração lúgubre do
– Você não vai continuar brincando não? Está sumido desde o começo do pique-
William era muito negro, pequeno e franzino. Ele tinha o cabelo raspado, dentes
brancos e enormes. Dentre os garotos da rua, sempre fora o mais ingênuo e quieto. Suas
– Não! – exclamou Anderson, em tom autoritário. – Mostra para o Miguel o que você
acabou de me mostrar.
– Anderson, você falou que não ia contar pra ninguém – reclamou o garoto.
– William, o Miguel não vai contar pra ninguém, ele é o meu melhor amigo. Mostra pra
entendia o que estava acontecendo, mas preferiu ficar em silêncio. Quando menos esperava,
viu que um dos brinquedos de William flutuava ao seu redor. Boquiaberto, percebeu que
não apenas um, mas todos os carrinhos e bonecos estavam no ar, girando em torno deles em
sentidos diferentes.
tranquilizá-lo.
– Não fica com medo. Quem tá fazendo isso é o William – disse o colega.
Foi então que Miguel começou a se sentir mais leve e seus pés lentamente se
Mas, antes que pudesse ouvir uma resposta, o som de um objeto metálico caindo os
assustou. Menos de um segundo depois, todos foram ao chão. Desprevenido, Miguel não
conseguiu se equilibrar e deu de cabeça na tábua corrida. Os brinquedos caíam ao seu redor
e ele se levantava pensando em xingar William, mas se deteve ao ver o terror nos olhos dele.
Miguel virou-se para onde o amigo olhava, dando de cara com a mãe dele, Dona
Márcia. Aos seus pés, estava a bandeja de doces que ela levava para vender na rua, as chaves
de casa e uma pequena bolsa preta de pano. No seu rosto negro e de traços formosos só
havia pavor.
Algumas semanas depois daquilo, Miguel e Anderson ouviriam pela primeira vez o
termo “psíquico”.
• • •
Logo após o fim da batalha entre gangues de menor porte, um grupo de motoqueiros
repetiu o ritual que antecedia a segunda parte da luta. Cinco montes de pneus queimados
eram espalhados pela Praça da Bandeira, cada um em um ponto cardeal e mais um último
no centro. Cair para além daqueles pontos não significava a derrota, o motoqueiro poderia
Anderson estava colocando fogo num dos pneus, junto de seus colegas. Ele viu outros
rostos familiares entre as gangues que participavam do rito, mas foi Nina quem avistou
monte de pneus mais próximo deles, logo abaixo da passarela. – Não é possível, uma mulher
não tem a menor chance aqui – continuou. Miguel preferiu ficar calado.
Angra era dona de um olhar frio, mas nada mais em sua aparência dava conta da
ferocidade da qual Anderson falara. Era uma mulher branca, de estatura média, rosto
inexpressivo e cabelos negros levemente encaracolados soltos ao vento. Vestia uma espécie
Os companheiros de gangue dela eram exatamente como seu amigo descrevera. Havia
dois gordos muito fortes que mais pareciam gêmeos e não saíam de perto dela nem por um
segundo. Ambos eram carecas e usavam respiradores artificiais que cobriam boa parte dos
seus rostos anormalmente brancos, quase albinos, e cheios de cicatrizes. O último membro
era um homem alto e magro, com uma cara fantasmagoricamente esquelética. Seus olhos
eram esbugalhados, o cabelo castanho e gorduroso lhe batia um pouco abaixo dos ombros.
– Vocês já viram esses caras por aqui? – indagou Miguel. Nicolas e Nina negaram, mas
também não tiravam os olhos do quarteto. E eles não eram os únicos, todos ali só prestavam
deles são absurdas, isso é coisa do nível das Luzes. Isso vai dar merda.
Todas as atenções se voltaram para os letreiros luminosos espalhados pela praça. Eles
começaram a exibir a lista de confrontos da noite e o primeiro deixou todos surpresos: Éden
disputa.
pescoço e uma pistola que mais parecia um canhão portátil na mão direita caminhou até a
pilha de pneus que ficava no centro da arena, olhou uma última vez para um papel que
carregava e deu um tiro para o alto antes de anunciar o começo da primeira batalha.
– Hoje, o primeiro confronto da noite contará com a presença dos Caçadores! Vamos
plateia respondeu com gritos entusiasmados, mas os motoqueiros entraram na arena sem a
empolgação costumeira. Talvez fosse só impressão de Miguel, mas um clima pesado pairava
no ar. – E agora, os estreantes da noite, a gangue que vem fazendo sucesso nos circuitos
Sem alarde, o novo grupo se posicionou perto dos Caçadores e não recebeu gritos do
público, apenas olhares deslumbrados por causa das motos fora do comum que traziam.
Elas sequer tinham marcas de montadoras e pareciam terem sido feitas especialmente para
A lógica dos combates era simples. Não havia qualquer regra, exceto a proibição de
fugir da arena circular demarcada pelos pneus em chamas. No centro dela, o mastro exibia a
esqueleto sobre uma moto. O único costume que eles mantinham era o de alinhar as gangues
lado a lado no começo de cada batalha, cada grupo largando para uma direção diferente.
Assim, eles se encontrariam frente a frente ainda na primeira volta, dando início ao
pitacos a respeito do confronto com a precisão de quem era um antigo fã das lutas.
– Se essa Éden fizer jus às motos, acho que o Anderson terá pouco trabalho. Lutando
– São mais estáveis, mais fáceis de controlar, mais rápidas. São melhores em todos os
quesitos. Elas não têm marca, mas dá pra notar que são modelos pós-2045, coisa que muito
raramente a gente vê aqui. Porra, meu sonho era andar numa dessas.
O apresentador deu um tiro para o alto e calou a plateia por uma fração de segundo,
largou. O magrelo com rosto ossudo ficou parado, esperou seus aliados avançarem e partiu
logo depois.
Apesar de estarem em maior número no primeiro choque, os quatro integrantes dos
Caçadores sofreram uma baixa para a Éden. Um dos gordos recebeu uma pancada forte com
uma barra de ferro no rosto, mas ignorou completamente a dor e puxou a mão do seu
O público foi à loucura ao ver um dos Caçadores sendo humilhado logo no primeiro
encontro. A aberração o arrastou ainda por uns bons 50 metros e o asfalto irregular ajudou a
feri-lo. Angra, em quem todos concentravam as atenções, nada fez, exceto aparar com
A surpresa viria logo depois. O magrelo que ficou para trás encarou sozinho os três
adversários em formação e, com uma manobra exímia, esquivou-se dos ataques. Com um
taco de hockey na mão direita, ele foi impiedosamente na direção do inimigo que ainda se
De costas e ainda um pouco desorientado, o Caçador sequer teve tempo para ver o que
golpe certeiro na nuca do adversário com o taco, arrebentando seu crânio e espalhando
sangue pela pista. A crueldade, incomum até para as batalhas de gangue, calou toda a Praça
– Filho da puta! – berrou Juan, líder dos Caçadores e estrela máxima dos duelos. Era
um homem quase na casa dos quarenta anos, de cabelos e barba loiros. Dos adversários,
recebera o apelido de “Monstro Nórdico”, apesar de ser tão brasileiro quanto qualquer um
deles.
– Desce lá agora! – implorou Nina, enquanto o ronco dos motores se tornava ainda
mais feroz. – O Anderson não pode entrar na luta contra esses caras, ele vai ser massacrado!
Antes que ela pudesse terminar, um estrondo seguido de um tremor calou-a. A moto de
Juan tinha se chocado com um dos pilares da passarela, e agora o líder dos Caçadores estava
estirado no chão, morto ou inconsciente. Seus outros dois companheiros estavam sozinhos
Miguel não pensou duas vezes e desceu para alcançar Anderson, que aguardava o fim
do combate um pouco além do limite de uma das pilhas de pneus em chamas. Antes de
alcançá-lo, a batalha já tinha terminado com uma vitória fácil da gangue de Angra. Um
grupo de pessoas removia as motos dos Caçadores enquanto colegas ajudavam Juan e os
organizadores tiveram que abrir caminho em meio aos curiosos, insistentes em ver a cena de
perto.
deixaram a arena. A violência era exaltada naquelas batalhas, mas sempre tentava-se evitar
as mortes. Naquela noite, entretanto, tudo tinha sido planejado. Ficou óbvio para qualquer
um acostumado às lutas que a Éden poderia ter acabado com os adversários sem problemas
Quando Miguel alcançou Anderson, quem começou a falar foi o próprio motoqueiro.
– Os gordos gêmeos eu ainda não conheço. O magrelo que matou o Marcelo se chama
Black. Nenhum deles parece ser dos Escombros. E não, eu não vou desistir – falou, sem
cerimônia.
– Para quê, Anderson? Você viu o que aconteceu com aquele cara? Isso é babaquice.
Você não precisa morrer por isso – insistiu Miguel. A expressão de medo era evidente no
rosto dos outros Engenheiros. Não seria surpresa alguma se eles desistissem da batalha e
– A gente não pode pular fora, Miguel. Essas motos são alugadas, dependem do nosso
desempenho. E eu quero ver o que ela pode fazer. Quero saber se ela é igual ao William –
disse o motoqueiro, pronunciando a última frase de modo que apenas seu colega pudesse
escutar.
– Não. É muito habilidosa, tem um pouco de força também. Foi ela quem tirou o Juan
– Vocês não têm como ganhar, não podem fazer nada com eles. Você sabe disso, não
sabe?
A frase foi como um soco no estômago, mas outra má notícia ainda estava por vir. Um
dos membros da Peste Negra, que enfrentaria o grupo de Anderson na outra semifinal, foi
até o centro da arena se reunir com os organizadores. Conversaram por um tempo, até que o
– Senhoras e senhores, a Peste acabou de desistir. Com a saída da gangue, que alegou
Marcos, um dos companheiros de Anderson, foi até o líder da gangue e fez um último
apelo.
– Anderson, isso não dá pra gente, cara. Nós vamos pular fora também, não vamos?
Perto dali, o líder da Peste descia da pilha central de pneus e se aproximava dos
Engenheiros. Fred era alto, magro e com dreadlocks que desciam pelas costas quase até a
cintura. Usava uma blusa branca rasgada, calça preta de couro com correntes enroladas na
– Você é doente! Está realmente querendo enfrentar esses caras e matar toda a sua
– Se você e seus homens pularam fora, Fred, a culpa não é minha. Os Engenheiros vão
– Será que você é o único cego aqui, Anderson? – respondeu Fred. – Porra, não vê
essas motos? Não percebe que ninguém aqui conhece esses caras? – gritou, apontando para
os membros da Éden. – Isso é coisa das Luzes, seu babaca. Eles estão aqui para matar a
gente!
– Você é maluco, Fred? Eles não têm nada a ver com as Luzes, eles precisam de nós.
ratos, Anderson, não significamos porra nenhuma pra eles. Podemos até ajudá-los, mas
somos descartáveis. Essa gangue não é normal. Deixa eles vencerem, depois a gente dá um
magrelo com cara de bunda – respondeu Anderson, dando-lhe as costas e subindo em sua
Fred furioso.
– Você vai fazer com que a morte do Marcelo tenha sido à toa, babaca – condenou o
negro, em referência ao Caçador morto no duelo anterior. – Você está condenando sua
Eles deram a partida em suas motos e entraram em formação para a batalha, esperando
que os membros da Éden se posicionassem para o início. Não haveria tempo de voltar à
passarela e Miguel decidiu que assistiria à luta dali mesmo, apesar do risco de ser atingido
pelos destroços ou alguma moto desgovernada. Fred sentou-se no chão, bem próximo dele, e
– Não sei como você aguenta aquele filho da puta há tanto tempo.
Nina ficou desesperada ao ver que Anderson se distanciava de Miguel e Fred em sua
moto. Ela tentou correr, mas Nicolas segurou seu braço com força.
O mesmo homem que tinha anunciado a desistência da Peste pelo megafone agora
segurava o revólver e estava pronto para dar início a última batalha. Todos estavam
apreensivos, mas havia uma rara tendência pró-Engenheiros tomando conta da torcida.
Desde que tinham chegado ao topo, os Caçadores eram os favoritos dos espectadores dos
ensurdecedores, tanto na passarela quantos nas ruas e nos prédios abandonados lotados de
começaram em marcha lenta enquanto o líder dos Engenheiros acelerou o máximo que pôde
Ele ficou sozinho no primeiro choque contra os dois gordos e Angra, mas pulou da sua
moto em movimento para passar incólume por eles e, a pé, correu na direção de Black sem
Num movimento preciso, Anderson pulou na direção da moto de Black, pisou na roda
dianteira dela para pegar novo impulso e acertou um chute em cheio no rosto do
motoqueiro. Black caiu para trás enquanto sua moto desgovernada acertava uma das
– E agora, seu filho da puta? Você vai me matar como? – berrou o líder dos
Engenheiros. Black ainda tentava se levantar quando ele pisou em seu cotovelo e puxou sua
mão, quebrando o braço na hora. Depois, deu um chute em seu rosto e deixou-o
A multidão foi à loucura com a atitude de Anderson e começou a gritar seu nome, o
que não mudou a situação dos Engenheiros. No primeiro choque, Angra e os gordos já
tinham colocado dois adversários no chão. Anderson ainda subia em sua moto de novo
quando Marcos, o último companheiro da gangue ainda de pé, passou ao seu lado animado
– É nossa, Anderson! – ele disse. Mas nenhum deles tinha ideia do que estava prestes a
acontecer. Marcos levantou sua barra de ferro e tentou acertar Angra, que bloqueou sua
investida com o braço nu. Não houve mais qualquer movimento, nada, apenas o ataque
contorceu sem que ninguém encostasse nele. O piloto perdeu o controle do veículo, o tanque
motoqueiro foi arremessado em chamas pelo ar. Marcos caiu de cabeça no chão e não se
moveu. Seu corpo débil continuou a pegar fogo e ninguém ousou entrar na arena para salvá-
– Acho que ele quebrou o pescoço quando caiu – disse Nicolas, que era um velho
conhecido de Marcos. Pegou Nina pelo braço e a puxou para que descessem juntos da
passarela. A única coisa em sua cabeça era saber se o colega ainda tinha alguma chance de
estar vivo.
Furioso, Anderson reduziu a velocidade para que seus inimigos o alcançassem. Quando
a distância entre eles já era bem pequena, ele deu uma freada repentina, fazendo com que
tivessem que desviar dele para evitar o choque. Nesse momento, pegou o taco de hóquei e
conseguiu enfiá-lo na roda de um dos gordos. A moto brecou, arremessando seu motorista
longe.
Anderson pegou a arma de volta e acelerou sua motocicleta, repetindo a cena que
atingiu com força na cabeça, mas apenas o suficiente para deixá-lo desacordado. Faltavam
Usando toda a potência de sua moto, Anderson conseguiu alcançar e emparelhar Angra
e o último adversário. Sem nenhum traço de preocupação em seu rosto, ela deixou ele se
Tentou acertá-la com um taco, mas Angra o agarrou e puxou-o para próximo de si.
Com os rostos a apenas alguns centímetros de distância, ele tentou desequilibrá-la, mas se
– Quem é você? – berrou, para se fazer ouvir entre os roncos dos motores.
Angra puxou ainda mais o taco, forçando Anderson em sua direção e desequilibrando o
motoqueiro. Vendo o adversário com a guarda baixa, ela aproveitou para acertar o rosto dele
com o cotovelo e empurrá-lo para longe. Sem controle, Anderson colidiu em alta velocidade
metálico.
Capítulo III
Marionetes
– Agora o William quase nunca brinca com a gente. E isso é tudo culpa sua – disse
Miguel, enquanto a chuva forte castigava a rua onde moravam. A má condição dos esgotos
fazia com que ela alagasse com facilidade, e naquele dia não foi diferente. Sozinhos na casa
de Anderson, os dois estavam sentados na janela com as pernas balançando para o lado de
– Minha?
– Sua sim! Se você não ficasse insistindo pra ele me mostrar aquilo, ele ainda poderia
brincar com a gente. Você podia ter me mostrado outra hora – bronqueou Miguel.
– Agora a mãe e o pai dele vivem com ele na igreja – disse Anderson, em voz baixa. –
Lá, chamam ele até de menino Jesus – completou, quase num sussurro. A mãe de Anderson
não acreditava em Deus e sempre fazia o possível para evitar que o filho se deixasse levar
Foi naquela tarde chuvosa que os dois tiveram uma ideia para rever o amigo. A mãe de
Miguel era evangélica, mas pouco assídua aos cultos. O plano deles era convencê-la a levá-
los para a igreja que a família de William frequentava. Entretanto, eles só não contavam que
ela não colaboraria com o planejado. As mães de Miguel e Anderson eram amigas e, pelas
diferenças religiosas, uma nunca tentaria levar o filho para fazer algo que não seria do gosto
da outra.
– Minha mãe nunca ia me deixar entrar numa igreja de crente. – Anderson fitava o
colega desanimado, com as mãos nos bolsos da sua larga bermuda jeans. Mesmo assim, as
maquinações dos dois estavam longe de terminar. No dia seguinte à recusa, combinaram que
falariam para suas mães que iriam até a casa do outro. Assim, escaparia sozinhos até a
igreja.
– Eu já fui lá uma vez – explicou Miguel. – É perto daqui, do lado da casa de uma tia
– Não precisa ter medo, não vai acontecer nada com a gente. Ninguém nem vai ficar
sabendo!
A ida realmente não foi perigosa. Os dois estavam próximos de completar seis anos
naquela época, mas o trecho em que moravam era bem tranquilo durante o dia. Num local
andando sozinhas. A “Igreja da Eterna Graça Divina”, era um pequeno templo improvisado
nas ruínas de um minimercado. Sem energia elétrica, as cerimônias eram sempre realizadas
pela manhã e os poucos fiéis se apertavam entre bancos de alumínio. Maior que a fé deles,
contraste com o que viram naquele dia. Havia gente até na calçada, esperando para entrar,
pela quantidade de pessoas. Anderson não pensou duas vezes e disparou na direção da
– Deixa eu passar! Deixa eu passar! – gritava, empurrando os adultos. – Meu pai está aí
dentro! Cadê meu pai? – Miguel aproveitou a malandragem do colega e fez coro ao choro
falso, abrindo caminho entre os crentes. Logo, a dupla estava num lugar privilegiado para
William ficava o tempo todo sentado em cima de uma mesa de mármore, onde
improvisavam um altar, conversando com alguns dos fiéis e fazendo com que os objetos ao
seu redor flutuassem, do mesmo modo que fizera no dia em que sua mãe descobriu seus
poderes. Ao seu lado, o pai, sentado na cadeira de rodas, segurava um papel com os nomes
de pessoas que pediam para serem citadas nas orações da “criança divina”, do “novo Jesus”
ou qualquer outro nome que lhe davam. A mãe dele, emocionada, chorava enquanto o pastor
milagre da crença no Salvador! – dizia o senhor, bem-vestido e com uma Bíblia na mão
direita. – Ele nasceu de pais que colocaram o Senhor acima de tudo, de pais que acreditam
no caminho. William é uma prova de fé, uma esperança de que o mundo pode melhorar! –
clamava.
No fim do culto, o pastor pediu para as pessoas irem embora porque o “menino
iluminado” iria descansar. Quando boa parte da multidão já tinha se dispersado, William
conseguiu ver Miguel e Anderson. Ele pulou da mesa e se desconcentrou dos objetos que
– São meus amigos – respondeu. Os pais dele confirmaram que conheciam as crianças,
e só então ele soltou William. A mãe dele parecia feliz em vê-lo com crianças novamente e
levou os três até um pequeno pátio nos fundos da igreja para que brincassem enquanto o
– Você nunca mais apareceu pra brincar com a gente! – reclamou Anderson, que
pegava uma bola de futebol no chão. – Seus pais não deixam mais?
– Eu ando muito ocupado ajudando os outros. – William estava feliz por vê-los, mas
era fácil perceber que estava muito cansado e triste com a rotina de pregações religiosas.
– Eles até deixam, mas bem pouco. Dizem que não posso ficar na rua, que sou
– Missão? – insistiu.
Deus no mundo. Meus poderes são prova disso – respondeu William. O discurso
– Só porque você consegue fazer as coisas voarem não quer dizer que você é melhor
muita atenção ao colega. Sua pele negra contrastava com a blusa branca de botões que
vestia. A vestimenta, que transmitia calma e pureza, também lhe dava um aspecto muito
– Minha mãe disse que é tudo invenção, que é ilusão pra roubar dinheiro – resmungou
Anderson.
– Deixa de ser bobo! – protestou Miguel. – Você o viu fazendo as coisas voarem na
nossa frente! Ele fez você voar! Mas William, você gosta do que está fazendo? Você é
O garoto ficou um tempo calado, pensando no que ia responder. Pegou o boneco velho
de um super-herói que estava no chão e começou a falar, muito lentamente e sem olhar para
– Eu acho muito chato fazer tudo isso, ficar exibindo as coisas que posso fazer pros
outros. Mas meus pais e o pastor disseram que, quando uso os poderes que Deus me deu, as
pessoas da igreja ficam mais felizes. Eles me explicaram que minha vida vai ser muito
difícil, que nem a dos super-heróis, que vou ter que me esforçar pra ajudar todo mundo.
Os três deixaram as diferenças de lado para jogar bola nos fundos da igreja, em um
pátio com chão de concreto que se estendia até o começo de um terreno baldio onde as
menino divino voltou a ser criança e os três brincaram por quase uma hora. Estavam
– Vamos tomar um banho. Você tem que ficar cheiroso para o próximo culto – dizia
dona Márcia, sorridente. – Diga para os seus amigos voltarem quando eles quiserem.
O trio combinou de se reencontrar na igreja sempre que possível, mas eles não
Na noite do dia seguinte, Miguel já tinha ido para a cama quando uma pedra o acertou.
Foi até a janela e encontrou Anderson do lado de fora, bem mais tenso do que o normal.
Era assim que as crianças se referiam às forças especiais das Luzes, as quais faziam
de carros antigos e troncos de árvores até chegarem perto. Uma a uma, as janelas vizinhas se
fechavam, fugindo da fúria das Luzes. Um pequeno caminhão blindado com a insígnia da
Spartan Solutions estava parado bem em frente à casa de William, com a porta traseira
aberta. Ele descarregou um grupo de soldados vestidos em grossas roupas negras, coletes à
prova de balas e máscaras de visão noturna. Ao lado do caminhão, havia uma Mercedes
que foi silenciada por um tiro. A porta da Mercedes estalou, revelando um oriental de
feições suaves e expressão tranquila. Vestia um terno preto do qual puxou um maço de
cigarros e um isqueiro. Deu uma primeira tragada e a fagulha escarlate começava a brilhar
– Excelente. E a família?
– Vocês não conseguem fazer nada sem matar ninguém? Ainda bem que estão lidando
Nessa mesma hora, William veio carregado por dois soldados, cada um segurando um
braço seu. Ele se debatia e soluçava de tanto chorar. Sua blusa estava encharcada de sangue
que não lhe pertencia e o único ferimento em seu corpo era um hematoma na testa.
– Não, senhor. Ele aparentemente é inofensivo. De acordo com os relatórios das nossas
investigações, ele desenvolveu pouco os poderes e... – Antes que o mercenário pudesse
terminar, a pistola em seu coldre disparou sozinha e acertou sua perna de raspão. Ele
– Parece até que você nunca encarou um desses psíquicos na vida – continuou. O oriental se
agachou e ficou bem próximo de William, seus cabelos longos encobrindo parte de sua face.
O outro soldado levantou seu rifle e golpeou William na cabeça, fazendo-o desmaiar.
Colocaram o garoto na parte de trás do caminhão sendo supervisionados de perto pelo rapaz
oriental, que preferiu não pensar no destino do garoto. Se o fizesse, seria difícil colocar a
cabeça no travesseiro em paz. Ele e os soldados foram embora sem se preocupar com os
Ainda assustados, Miguel e Anderson caminharam nas sombras até o cortiço da família
de William. Logo no corredor de entrada, Dona Márcia jazia morta no chão. Os olhos ainda
dupla se assustou, mas desviou do corpo e continuou pelo corredor, cujas outras portas
preguiçosamente no teto e um samba antigo tocava num rádio de pilha em cima da cômoda.
No chão, ao lado de sua cadeira de rodas virada, o pai de William respirava com dificuldade.
Vertia sangue por um ferimento na barriga e seu rosto enrugado se contorcia de dor.
– Meu menino, levaram o meu menino – gemia. Miguel se aproximou dele e tentou
chamá-lo, mas ele parecia não escutá-lo, sequer vê-lo. – Onde está Deus, meu amor? Eles
levaram o nosso filho – repetia o homem. Pouco depois deu um suspiro breve, mas intenso,
e parou de se mover.
Em prantos, Miguel e Anderson correram para suas casas, onde apanharam como
nunca de suas mães por estarem na rua durante uma operação das Luzes. No dia seguinte,
ninguém mais falava de William ou de sua família. Outra pessoa logo chegou para alugar o
Luzes.
– Será que foi tudo um sonho? Será que William existia mesmo? – perguntou
Anderson, algum tempo depois. Mas ele e Miguel constataram que o amigo realmente
existira. Sorrateiramente, eles entraram no cortiço e viram que a mancha de sangue onde a
mãe de William tinha morrido ainda estava lá, quase imperceptível, mas presente. Com o
• • •
O carrinho de mão enferrujado onde Miguel levava Anderson para o hospital não
parava de trepidar. A rua estreita de paralelepípedos fazia com que o corpo do seu colega
inconsciente pulasse o tempo todo. Não fosse pelas circunstâncias, acharia graça daquilo.
Certa vez, quando mais jovens, Miguel usara um carrinho semelhante para levá-lo até sua
casa depois de uma briga. Entretanto, o clima daquela noite não dava brechas para sorrisos.
quase inaudível. O líder da Peste, gangue que desistiu da batalha contra os Engenheiros, era
um homem frio e racional. Os motoqueiros do seu bando não eram dos melhores, mas
tinham alcançado algum status graças às suas estratégias. E, depois da luta daquela noite,
Miguel contou ao colega o que ocorrera depois que ele apagou. A moto de Anderson se
chocou contra a pilastra violentamente e ele caiu inconsciente na hora. Não era médico, mas
o motoqueiro não parecia seriamente ferido, exceto pelas várias escoriações que
transformavam qualquer movimento numa tortura. Logo após a batalha, Nina ficou histérica
e coube a Nicolas acalmá-la e deixá-la em casa. Fora ele também quem recolhera as motos
dos Engenheiros da praça, já que os outros membros da gangue levaram o corpo de Marcos.
– Para o hospital? – interrompeu Anderson. Miguel ficou calado algum tempo, não
sabia como responder. Fred tirou o cigarro da boca, fagulhas escarlates caíram no chão
escuro da rua.
misturou às lágrimas silenciosas. Ele não emitia um ruído, um soluço. Chorava num
silêncio que tinha um toque de culpa por não ter desistido da ideia de enfrentar a Éden. Fred
queria falar alguma coisa. O negro não era um homem mau, mas cruel com quem julgava
imbecil, e as ações de Anderson ajudaram a colocá-lo no topo da sua lista. A vontade que
tinha era de cuspir desaforos sobre como poderia ter protegido a vida de seu colega de
gangue se tivesse desistido da batalha. Entretanto, o líder da Peste preferiu ficar calado, mas
não só por pena. Estava imerso em pensamentos, absorto por alguma ideia que Miguel
tentava desvendar nas linhas duras de seu rosto ou no movimento incessante dos seus
dreadlocks. Fred maquinava algo, mas foi interrompido por um som próximo a eles.
começou a olhar ao seu redor. Miguel parou de empurrar o carrinho e ficou alerta.
Risadas. Três homens saíram de um terreno baldio alguns metros à frente deles, todos
com vestes idênticas. Usavam longas botas negras militares e sobretudos fechados com
golas em pé que escondiam parte de seus rostos. Dois deles carregavam canos de aço
enquanto o último vinha com as mãos nuas. Miguel já os tinha visto antes; eram os Corvos,
– O tempo passa e os Corvos continuam sem saber se vestir. Patético – disse Fred. As
noites de batalha na Praça da Bandeira atraíam gangues de todos os cantos dos Escombros,
deixando a região ainda mais perigosa. E muitos desses motoqueiros estavam sempre
dispostos a voltar para suas casas com algum troféu. Naquela noite, o troféu estava muito
– Sempre um comediante, Fred. Qual vai ser a sua próxima piada? Proteger o
Anderson? – indagou um deles, o único de mãos nuas. Alto, gordo e com óculos escuros de
pequenas lentes redondas, parecia ser o líder do trio. Fred sorriu, estendeu a mão para
– Porra, vocês vão bater nisso? Não sabia que vocês mexiam com gente meio-morta. É
um fetiche? Ah, esqueci, vocês gostam de carniça, vocês são os Corvos! – Os três riram,
gargalharam até. Estava bem na cara que todos tinham se drogado ou bebido, o que os
tornava ainda mais perigosos. O líder se aproximou e puxou uma faca do bolso.
– Deixa de ser babaca. Eu quero o Anderson comigo, vamos trocar ele pelas motos.
começar a briga. Fred ficou imóvel, sem sequer armar uma postura. O líder dos Corvos
sorriu.
– Sabia que você não ia ficar no nosso caminho, Fred. Você é um cara inteligente.
Quando disse isso, o homem avançou na direção do carrinho de mão. Miguel pensou
em partir para cima dele, mas antes que pudesse reagir, Fred desferiu um chute rápido na
– Filho da puta! Peguem ele! – bradava, antes de ser interrompido por mais um chute,
dessa vez no rosto. Os outros dois capangas foram para cima de Fred, que se defendia deles
com destreza. Se os outros membros da Peste não eram tão fortes, aquele negro era um
verdadeiro touro em batalha. Dono de chutes ágeis, não se intimidava com o trio e atacava
mão de Anderson para longe e só então notou que o amigo estava calado demais. Tentou
chamá-lo, mas não teve qualquer resposta. Ficara inconsciente de novo. Deu-lhe um tapa de
– O que está acontecendo? – perguntou, assustando com os gritos da briga entre Fred e
o trio.
carrinho de mão, mas mal conseguia se mover. Cuspiu palavrões quando percebeu que era
inútil, até escutar uma risada bem próxima. Enquanto Fred tentava se livrar dos outros dois,
o líder dos Corvos se aproximava deles, a faca em punho e os olhos fervendo de ódio.
rival se aproximava.
– Ah, eu sei, pode ficar tranquilo. Os poucos dentes que ainda tenho na boca falam por
si só. Lembro bem de quando nos enfrentamos nas motos – provocou o homem. Miguel
ficou entre o carrinho de mão e o ladrão, punhos cerrados, sem dar uma palavra. – Que
O líder dos Corvos partiu para cima dele com um soco e surpreendeu Miguel pela
tentou revidar, mas viu o adversário gingar e passar a faca na sua barriga, abrindo um corte
superficial.
– É melhor você sair do meu caminho antes que eu pegue pesado, moleque – dizia,
enquanto puxava a lâmina de volta. Ele o empurrou e Miguel caiu no chão, uma das mãos
tentando conter o sangramento. Fred derrubou o último dos dois capangas e veio correndo
para cima do último dos Corvos, que se assustou com o negro correndo em sua direção.
– Ainda vai me pegar? – provocou Anderson. – Filho da puta, quando eu sair daqui eu
vou arrancar as suas duas mãos e enfiar elas com faca e tudo no seu rabo.
levantou a faca e se preparou para atacar Anderson. – Pelo menos você eu levo! – gritou, os
Fred corria com todo o seu gás, mas não teria tempo para evitar o ataque.
– Me mata, vai! – berrou Anderson, sem uma linha de medo em seu rosto. Apesar da
dor que sentia, Miguel se esforçou para se aproximar deles. Sabia que não conseguiria pará-
lo, mas precisava fazer algo. A morte iminente do colega fez um calor correr por seu corpo
– Não! – berrou. O líder dos Corvos não compreendeu muita coisa naquele momento.
Sentiu uma força enorme tirando seu equilíbrio quando a faca já estava a centímetros de sua
vítima. Antes que pudesse perceber, ele já estava no ar, voando em alta velocidade contra
um velho poste de concreto. O choque foi brutal, dilacerando suas costas e fazendo-o gritar
Fred freou de repente, não conseguia acreditar no que tinha acabado de ver. Enquanto o
ladrão se contorcia de dor no chão, reconstituiu mentalmente o que acontecera para ter
certeza de que não tinha perdido a razão. Viu Miguel se levantar e tentar se aproximar do
Ele também não compreendia o que acabara de acontecer e respirava com dificuldade.
surpresa. Antes de perder a consciência, deu uma risada e encarou o velho amigo.
• • •
O Sol forte do meio-dia enchia de luz a velha enfermaria, que tinha duas longas fileiras
de camas enferrujadas separadas umas das outras por lençóis encardidos. Indecisas entre o
branco original e as manchas pretas que ganharam com o tempo, as paredes abrigavam
velhos avisos de “silêncio” ou “proibido fumar” com letras gastas. Alheio a tudo isso,
Anderson dormia há horas na cama mais próxima da janela. Miguel voltava com uma
Estavam no Hospital Pedro Ernesto, que antes da guerra era parte de uma faculdade
próxima dali. Agora, nos tempos dos Escombros, era uma das referências de tratamento na
região, não que isso dissesse muita coisa. Muitos dos médicos tinham se formado antes da
material era escasso, o fedor insuportável e as mortes por causas banais constantes.
recuperado.
– Ele vai ficar aqui até acordar – disse uma menina que deveria ter mais ou menos a
idade de Miguel. Era muito gorda, mas tinha um rosto bonito e um tanto singelo que não
combinava muito com seu tom de voz sério e repreendedor. – Depois façam o que o doutor
recomendou na receita e levem-no para casa. Temos emergências demais para ficar
Fred foi embora, mas não sem antes prometer voltar no começo da tarde e pedir que
– Se o Anderson acordar, manda ele ficar quieto e fingir que está dormindo – avisou.
Miguel tinha pouca intimidade com ele, mas sentia que estava tramando algo. Eles não
trocaram uma palavra sequer sobre o que tinha acontecido na batalha contra os Corvos. –
Vou trazer um pessoal pra cá, temos que conversar num lugar neutro, como esse. Você,
inclusive.
No restante da madrugada, Miguel pouco dormiu. Além dos lamentos constantes que
assombravam a enfermaria, sua cabeça ainda rodava com os últimos acontecimentos. Não
sabia como, mas tinha lançado o líder dos Corvos pelos ares contra um poste. O motoqueiro
caiu no chão e o encarou apavorado até Fred chutá-lo no rosto uma última vez e desmaiá-lo.
sobressaltos.
indo e voltando como a pulsação de uma corrente sanguínea. Sua maior vontade era de
fugir, e sabia para onde. Apenas sentado nos arranha-céus do abandonado centro da cidade
poderia se acalmar. Era o seu barato, o seu único vício. Já tinha entrado e saído da
enfermaria inúmeras vezes e em cada uma delas tinha certeza de que não voltaria, de que
correria para sua passagem secreta, pegaria sua moto e vagaria pelo concreto morto da parte
Mas a dúvida o mantinha ali, e o medo também. Acreditava que Fred fosse voltar com
algum plano mirabolante, alguma explicação para tudo o que tinha acontecido, uma resposta
café escuro como piche num copo de alumínio que pegou na recepção e tomou. Forte e sem
– Você está acordado há quanto tempo? – indagou Miguel, olhando ao redor para ver se
– Agora há pouco, mas me sinto cansado até pra falar. Fora que eu odeio esse lugar. Já
me expulsaram daqui tantas vezes que tenho medo desses médicos perderem a paciência e
me matarem – brincou.
Eles se calaram quando ouviram passos no corredor, pensando que poderia ser algum
dos enfermeiros procurando camas para desocupar. Não eram más pessoas, mas tinham que
ser frios o suficiente para expulsar alguns pacientes ainda em tratamento para conseguir
atender a demanda da população. No fim, o som era apenas de uma senhora que
– Miguel, você já tinha feito aquilo alguma vez antes? – indagou Anderson, antes que o
– Não sei.
científica que achara num sebo do centro. Anderson tentou dizer alguma coisa, mas foi
detido pela chegada repentina de Fred. Vestido agora de maneira bem mais simples, com
uma calça jeans surrada e uma camisa branca, ele olhou para os dois, mas manteve-se fixo
Tentaram arranjar uma cadeira de rodas para transportar Anderson, mas não acharam
nenhuma no hospital. Ele até conseguiu se levantar sozinho da cama, mas precisou de ajuda
para chegar ao outro lado da rua, no botequim onde se reuniram. Além de Nicolas e Fred,
Juan, o líder dos Caçadores, também estava lá. Os ferimentos do confronto com a Éden
ainda estavam visíveis, mas ele estava em condições bem melhores do que Anderson.
Nicolas não participava das batalhas de gangues, mas tinha uma ligação muito estreita com
elas e chegou a financiar algumas desde que seu negócio de implantes e próteses floresceu.
Nenhum deles parecia disposto a começar a reunião. Fred, o idealizador de tudo, estava
calado, com um copo de cerveja na mão e o olhar perdido em algum lugar da rua.
– Vamos logo com isso – adiantou-se Juan. Ele era o mais velho da mesa e um dos
motoqueiros mais antigos dos Escombros. Já beirando os seus quarenta anos, era forte, tinha
cabelos loiros e a barba por fazer. De certa maneira, Miguel sempre achou sua atitude
parecida com a de Anderson. Só não gostava dos boatos de que o motoqueiro abusava da
cocaína antes das batalhas. – Ninguém veio pra cá pra ver você voando, Fred.
– O que vocês sabem sobre Angra? – disparou o negro, com o olhar ainda perdido na
rua esburacada. Uma kombi lotada de passageiros parou em frente ao bar e as pessoas que
desciam voltaram seus olhares para o grupo, sobretudo para Juan, famoso na região.
Procurei saber antes da batalha, mas não achei nada sobre ela nem sobre os seus parceiros.
Até os agentes das Luzes que trabalham por aqui não sabiam muita coisa. Ela não deve ser
um dos seus pacientes. – Matou gente nos festivais de moto de lá também. Operei a mão de
um amputado de lá. O cara corria na antiga linha de trem e me falou de uma mulher
– Não, parece que ela apareceu da noite pro dia e alugou uma garagem. Agora sabe
– Enfim, a gente não sabe nada sobre ela – concluiu Juan, sorrindo. – Mas ninguém
aqui precisa ser um gênio pra saber que ela tem as costas quentes. Tem alguém dando
– Das Luzes – observou Fred. – Cheguei a pensar que ela poderia ser obra de alguém
que quer se opor às Luzes, mas ela acertou todos os melhores contratos com eles ontem. Ela
e aqueles outros três vão trabalhar pra eles, do mesmo jeito que nós sempre fizemos aqui. –
Ele acendeu um cigarro e ficou olhando para os outros, com um surpreendente sorriso em
seu rosto. – A gente não sabe porra nenhuma sobre ela. Nem sobre os seus poderes.
Juan coçou a barba ruça e se recostou sobre a cadeira. Revolvia momentos de seu longo
– Ela não é a primeira pessoa que conheço capaz de fazer essas coisas – disse
finalmente.
– Já matei um cara desses, matei para as Luzes – respondeu. Sua expressão era a de
quem lembrava de algum momento muito feliz da sua vida. – Nunca fui muito de apagar
ninguém e esses contratos são bem raros, mas aquele me deu gosto. Foi logo que os
Caçadores chegaram ao topo, isso deve ter uns doze anos. Tínhamos acabado de voltar de
uma missão em que protegemos uma fábrica que estava sendo saqueada por uns traficantes
dos Escombros.
A mão de obra barata dos Escombros sempre foi um dos maiores atrativos para os
executivos da Rio Alfa investirem naquelas ruínas. Apesar das condições de trabalho
degradantes, estar empregado numa das fábricas era sinônimo de dinheiro certo, em dia e
sem confusão. As gangues dos Escombros tinham crescido como uma diversão caótica para
aquele lugar sombrio, mas a conexão entre elas e as Luzes veio em função dessas fábricas.
Os motoqueiros eram pagos para proteger os carregamentos, o que saía bem mais barato do
– Quando voltamos dessa missão, eles nos passaram outra, pediram pra apagar esse
cara. Eles mal explicaram pra gente, mandaram sair matando. Não gostamos daquilo e
corremos atrás de explicações com os nossos contatos até que descobrimos. O cara era um
doido, um psicopata. Ele cortava as pessoas com as mãos, como se elas fossem espadas –
lembrou. – Conseguimos pegar ele depois de quase uma semana seguindo o rastro de
vítimas. Era de São Cristóvão, o desgraçado, morava em frente ao antigo estádio de São
– Estou falando de pessoas com poderes especiais, Juan. Foi a única vez que você
– Ah, sim. Foi só dessa vez. Mas já ouvi falar de outros. Até hoje os caras das Luzes
– Deixa de ser babaca, você sabe que isso é uma lenda, não é? – debochou Anderson.
Miguel conhecia aquela história, era parte do folclore de sua infância. Segundo
escutava amigos de seus pais comentarem, o Oráculo era um homem que sabia de tudo.
Alguns diziam que era um charlatão, outros que era um demônio, mas ninguém sabia ao
certo a sua origem. Vez em quando escutava novos rumores sobre ele. Rezava a lenda que o
Oráculo não podia ser achado por ninguém e que era capaz de saber tudo sobre uma pessoa.
– Garoto, só porque você nunca viu, não significa que não exista – respondeu Juan,
nitidamente irritado.
– Sabia que mais cedo ou mais tarde falariam no Oráculo. Era um dos assuntos que eu
queria discutir – disse Fred, interrompendo o bate-boca dos dois. – Não sei se esse cara
existe, mas a gente precisa descobrir. Se a história dele for verdadeira, quero saber o que ele
– Nem adianta, não há a menor chance – argumentou Juan. – Procuramos ele por anos
e nada. Sei que a rede de informação dos Caçadores não é das melhores, mas também não é
de se jogar fora. Tínhamos a ajuda do pessoal das Luzes, e nem assim conseguimos achá-lo.
Todos começaram a protestar ao mesmo tempo, até que Fred disse algo que os calou.
– O Comandante vai me ajudar. Ele vai ser a nossa ponte – falou, levantando
ligeiramente a voz. O Comandante era a coisa mais próxima de um líder criminoso que os
Escombros tinham. Era ligado a tudo. Às empresas das Luzes, aos traficantes de drogas, aos
motoqueiros. E, ao mesmo tempo, não era ligado a ninguém. Era independente, mas quase
todos dependiam dele. Dono de um pequeno exército particular que servia apenas sua
proteção, agia de forma sutil e efetiva. Trabalhava com compra e venda de informação e
– O Comandante não tem qualquer razão pra se meter nisso, Fred. Como assim ele vai
tragada no cigarro e soltou a fumaça por entre os dentes amarelos de um sorriso triunfante.
– Ah, e eu também contei pra ele que temos uma pessoa com os mesmos dotes de Angra do
nosso lado.
Miguel se irritou. Franziu o cenho e entendeu o que Fred queria dele. A ideia de usar
seus poderes em troca de dinheiro trazia de volta as discussões irritantes com Nina, os
repetidos pedidos para que se juntasse ao crime organizado e fizesse mais dinheiro. Teve
vontade de levantar e sair, mas se controlou. Quis acreditar que estava errado. Tamborilou
– Você sabe fazer as mesmas coisas que ela? – perguntou Nicolas, surpreso. – Espera
aí, isso é impossível! Eu conheço ele há anos, ele não faz porra nenhuma! Se ele te contou
– A gente descobriu isso ontem – adiantou-se Anderson, que temia pela reação do
colega àquela atitude de Fred. Miguel era calmo e muito fácil de lidar, mas difícil de
contornar quando furioso. – Miguel acabou com um cara que queria me pegar, um filho da
Você está dizendo que não vai ajudar a gente? Seu amigo quase foi morto por aquela piranha
e você não vai fazer nada? – dizia, calmamente. O rosto de Miguel não expressava qualquer
– Ela não fez nada com ele, apenas lutou. Se ela tivesse armado uma emboscada, eu até
compreenderia. Eles lutaram de igual pra igual, não tenho motivo pra me vingar de ninguém
– Idiota, pensa no dinheiro! – esbravejou Juan. – Porra, você nasceu com um dom,
garoto. A gente vive nesse lugar de merda, ninguém aqui vive, a gente sobrevive. Você tem
algo que pode te levar pra longe disso, que pode melhorar a sua vida e vai simplesmente
– E você acha que eu vou fazer o que, seu babaca? Ficar matando os outros por aí?
– Não adianta, esse garoto não vai ajudar a gente. Mas ainda podemos vendê-lo pras
Luzes se comprovarmos os seus poderes. Pode dar uma boa grana – zombou.
Miguel deu as costas aos motoqueiros e estava pronto para ir embora quando Fred o
– Miguel, nós vamos unir as gangues. Eu, Anderson e Juan vamos nos unir e trabalhar
pro Comandante e eu queria que você viesse conosco – disse o motoqueiro. Ele não
seus poderes. Talvez o Comandante possa ajudar você, eu sei que você está com medo.
As últimas palavras de Fred fizeram-no parar por algum tempo, refletindo. Indeciso e
com vontade de fugir, ele falou de modo que o grupo mal pôde lhe ouvir.
– Não estou aqui pra ser a marionete de ninguém. – E sumiu pelas curvas dos
Escombros.
• • •
promessa e voltou a deitar no chão empoeirado da cobertura. A diferença é que, dessa vez,
ele não conseguia se acalmar e pegar no sono como antes. Toda vez que tentava, a imagem
Quanto mais pensava a respeito da situação, mais se via na mesma posição: usado
como chamariz numa igreja abarrotada de fiéis por conta do desespero no qual os
moradores dos Escombros viviam. Miguel não tinha nada contra a religião, mas se
perguntava quantos ainda estariam ali se tivessem vidas abastadas e não precisassem
E o pior: para ele, usaram William puramente como uma marionete para atingir os seus
propósitos. Se não tivessem divulgado seu poder aos quatro ventos, dificilmente as empresas
das Luzes teriam aparecido para apanhá-lo. Com o passar dos anos, vez ou outra se
– William nem podia se dizer evangélico, ainda era uma criança – dizia para si próprio,
enquanto lembrava do menino sentado no altar com objetos voando ao seu redor. Ele fazia
– Herói de quem? – lhe perguntaria agora, se ainda estivesse por perto. – Dos pastores
que você alimentou? – As pessoas sempre usavam umas às outras em benefício próprio,
que seu colega tinha ajudado já estavam fora da igreja e agora moravam em áreas
E era assim por toda parte. Seria da mesma forma se ele entrasse no grupo com os
motoqueiros, que estavam dispostos a colocar sua vida em jogo para alcançar seus próprios
objetivos. Tudo que eles queriam era entender e derrotar Angra e seu Éden, retomar o poder
– Não vou ser um fantoche na disputa de poder de algo que nem faço parte! – Fechou
os olhos e, com a consciência mais tranquila, se permitiu um sono de quase uma hora sob a
sombra de uma antena parabólica desativada. Imperava a certeza de que continuaria vivendo
de maneira humilde, em paz, como sempre planejara. Sem grandes planos, sonhos ou
pretensões, apenas uma vida calma ao lado de alguma mulher que gostasse, talvez até filhos.
Levantou como uma pluma depois de um cochilo pesado e sem sonhos, mas com a
cabeça ligada no trabalho. Decidiu que aproveitaria a ida ao centro para procurar novas
peças para Nicolas e fazer um dinheiro extra naquele mês. Se arrumasse o suficiente, talvez
até conseguisse ficar fora de órbita por um ou dois meses, até que essa crise dos
Saiu do prédio pela porta da frente, onde um grupo de cotias comia a grama que
crescia nas falhas do asfalto destruído. Quando via cenas como essa, imaginava que era
possível se tornar um completo eremita e viver no centro, mas julgou aquela decisão radical
Pegou a moto e foi direto para um bunker que descobrira há algumas semanas. Quando
chão e não foram muitos amigáveis com a sua aproximação. Decorou a localização e
prometeu que voltaria ali algum dia, já que parecia um bom lugar para encontrar carcaças de
Para a sua felicidade, nada, exceto um cansado vira-lata, guardava a entrada do bunker
estacionamento subterrâneo. Construíram apenas uma tosca parede de concreto com uma
entrada estreita e buracos malfeitos para posicionar as armas. Pela aparência, provavelmente
Puxou a lanterna que sempre levava consigo, apontou-a ladeira abaixo e desceu pé ante
pé. Cachorros selvagens, cobras, prédios infestados por ratos ou baratas. Já tinha perdido a
conta dos “adversários” que encontrara em buracos escuros como aqueles e queria conseguir
achá-los enquanto ainda estava próximo da entrada para escapar a tempo. Entretanto, quanto
O lugar mais parecia um museu ao ar livre da guerra civil. Havia fardas no chão,
esqueletos de vinte anos atrás, alguns documentos que pareciam ser do Braço
Revolucionário do Rio de Janeiro, o grupo que orquestrou todo o conflito. As paredes ainda
os corpos um a um, Miguel colocava qualquer coisa que achava de útil em sua sacola
plástica. As armas de fogo já não estavam mais lá, mas os implantes ou quaisquer elementos
pacificadores sempre rendiam muito material, mas a pobre guerrilha brasileira não tinha o
mesmo aparato. Quando chegou ao fundo do local, quase desistiu, mas algo chamou a sua
esforços de pacificação, e o corpo de um soldado que não tinha o uniforme dos brasileiros.
Ele tinha uma mão mecânica, uma das melhores que já tinha visto. Partiu-a do osso e
guerra com a insígnia da ONU. Ao contrário dos veículos separatistas, ele estava em ótimo
estado. “Esse lugar foi tomado ao longo da guerra civil e caiu nas mãos de um dos dois
lados, por isso há soldados de todos os tipos aqui”, pensou Miguel, animando-se com a
descoberta. Vasculhou todos os cantos e logo concluiu que realmente seria uma tarde
lucrativa. Já tinha achado um par de pernas de modelos diferentes, uma mão e dois crânios
cheios de implantes. Aquelas máquinas, instaladas no cérebro dos soldados para aguçar os
sentidos, estavam em fase de testes na época da guerra e eram normais entre as forças
Quando pensou que já tinha vasculhado tudo, achou uma porta que provavelmente dava
acesso ao prédio acima. Além dela, havia um longo e estreito corredor cujo final estava
bloqueado por escombros. Em vez de concreto, notou que o chão naquela entrada era de
madeira e parecia ter sido construído às pressas. Pisou nele e sentiu que era instável, parecia
haver alguma coisa debaixo. Segurou-se num cano que passava pela parede e pisou com
Ficou de joelhos e tentou puxar uma das tábuas podres e ela saiu em sua mão com
relativa facilidade. Apontou a lanterna para o buraco e viu uma escavação bem rudimentar,
com uns dois metros de profundidade. No fundo, havia algo enrolado num pano velho e
sujo.
“Pode ser um corpo”, pensou. Certa vez, achara alguém naquelas exatas condições e
teve uma das surpresas mais gratas de seu trabalho, pois o cadáver era de um militar da
Otan com várias próteses e modificações corporais. Arrancou mais tábuas para entrar no
buraco e deslizou pelo monte de terra, caindo bem ao lado da sua nova descoberta. Antes de
desenrolar o corpo, ficou olhando o lugar ao redor. Aquilo parecia muito sem sentido para
ele, como uma espécie de tumba. Não havia nada escrito nas paredes, mas elas eram muito
bem-feitas e sustentadas por placas de concreto cru em melhor estado do que o restante do
prédio. Era como se tivessem construído aquilo especialmente para guardar o corpo.
aperto estranho no coração e quis terminar logo o serviço. Desenrolou as várias camadas de
pano encardido que envolviam o corpo com impaciência, incapaz de entender por que
alguém se daria tanto trabalho por um morto. Quando finalmente descobriu o que estava
• • •
Levou o saco com o corpo nas costas de volta à rua, subindo vagarosamente a ladeira
que descia até a entrada do bunker. Ainda estava em choque, trêmulo. Aquilo não era muito
pesado, mas ainda tinha que carregar as próteses que acabara de encontrar lá embaixo.
Quase no final do caminho, tomou fôlego para chegar mais rápido ao topo e decidiu
averiguá-la novamente para ter certeza de que o sono não lhe pregava peças.
Colocou-a no chão, ainda sem acreditar. Era como se estivesse adormecida, mas não
respirava. O rosto tinha belas maçãs, era vívido e com um aspecto tenro, apesar da brancura.
Seus lábios não chegavam a ser grossos, mas eram um pouco carnudos. Os cabelos loiros
– Uma... garota? – perguntou para si próprio. Tinha aspecto jovem, talvez a mesma
idade que ele e usava um vestido branco na altura dos joelhos. Miguel passou a mão no
braço nela e viu que não estava gelada nem tinha o corpo duro dos cadáveres, mas não
respirava ou tinha pulsação. Estaria morta e em perfeito estado de conservação? Não tinha
ideia do que poderia ser, apenas a certeza de que ela não estava morta ali embaixo desde os
tempos da guerra, era impossível. Tinha que descobrir alguma coisa sobre aquela mulher e,
• • •
O escritório de seu colega na Praça da Bandeira era bem precário, apesar do sucesso
que fazia. O lugar todo era de um branco estéril do que parecia ter sido, no passado, alguma
clínica médica. Uma mesa de madeira escura ficava bem no meio da sala, que só tinha mais
três cadeiras e uma estante de livros e desenhos de Nicolas sobre seus estudos de próteses.
– Ei, trouxe bastante coisa, hein? Mas que merda é essa nas suas costas? Caralho, você
trouxe um corpo inteiro? – indagava o amigo. O sorriso escancarado do negro era tão branco
Cansado de carregar aquele corpo nas costas desde o centro da cidade, jogou-o em
respondeu Miguel, entre os dentes. O fino gesso das paredes fazia com que qualquer um no
prédio pudesse escutar a conversa alheia sem esforço e a última coisa que queria era uma
acusação de assassinato.
– Mas ela está muito inteira, parece que está dormindo. – Nicolas também estava
surpreso e não tirava os olhos da garota. O negro deu meia-volta e abriu uma gaveta de sua
mesa, de onde tirou um bisturi e fez um pequeno corte no pulso dela. – Isso não é pele de
– Como assim?
mesma coisa que eu uso para revestir algumas próteses para deixar uma aparência mais
humana, sabe? Como se fosse pele de verdade. Mas isso aqui é muito bom, é de primeira
qualidade.
Nicolas não fez cerimônia e levantou o vestido da garota, o que deixou Miguel
constrangido. Novamente com o bisturi, ele perfurou o abdome dela, logo acima da calcinha
– Não sou tarado, estou conferindo se o braço dela não era uma prótese – disse,
enquanto começava a cortar. Novamente, nem uma gota de sangue. – Miguel, essa porra é
toda artificial! Deve valer uma fortuna! – comemorou. Miguel trancou a porta do escritório,
puxou uma luminária móvel para perto da mesa e observou o trabalho do amigo.
– Tem algum compromisso hoje? Vamos explorar essa coisinha aqui a noite inteira!
Enquanto usava os instrumentos médicos para se assegurar de que aquilo era mecânico,
Nicolas dissertava sobre o que descobrira nas revistas científicas que alguns dos seus
clientes lhe arranjavam. Como cobrava caro, alguns dos pacientes que tratava eram
moradores dos Escombros com empregos nas Luzes. Geralmente empregadas domésticas e
motoristas.
– Chamam elas de bonecas, Miguel. Só pode ser isso – garantiu, enquanto removia a
pele do cotovelo para averiguar as articulações mecânicas. Segundo as revistas que lera,
construíam androides como esse lá fora e faziam prostíbulos de luxo para os ricaços, com
mulheres perfeitas. – Imagine só, ter um puteiro no qual as garotas não recebem um
Observou, entretanto, que nunca tinha visto algo daquele nível. Já tinha lido matérias
especiais nessas revistas com garotas artificiais feitas por multinacionais japonesas e que
eram incrivelmente reais, mas aquela estava num outro nível, parecia viva.
– Vai ver ela também é um modelo japonês. Mas nas revistas elas pareciam menos
Explicou também que aquelas bonecas eram cheias de compostos orgânicos. Língua,
tecidos capazes de produzir suor ou saliva, órgãos sexuais idênticos aos dos seres humanos
– Pelo que li, são como escravas sexuais, sabe? Algumas são até programadas para
replicar sentimentos e fazem isso bem, mas nada que passe num Teste de Turing.
– Teste do quê?
– Nada, esquece. Nada que consiga viver em sociedade sem ser notado, para ficar mais
simples.
A noite avançava enquanto Nicolas repetia seu processo dezenas de vezes. Retirava
Os dois já pareciam até ter esquecido a discussão de mais cedo, sobre a união das
gangues, e estavam totalmente absortos naquele trabalho. Miguel assistia a tudo surpreso e
escutava atentamente, mas não deixava de se sentir estranho com aquela mulher seminua
deitada na mesa sendo aberta indiscriminadamente. Ainda que não fosse um ser humano,
– Quer dizer que elas pensam mesmo, reagem a estímulos e tudo mais? – perguntou
Miguel, enquanto seu colega removia com cuidado a parte superior de sua caixa craniana.
– Sim, mas são mais como fantoches, sabe? O programador muda a inteligência
artificial da maneira mais apropriada para o cliente e lá está a sua garota de programa
cabeça, mas não tenho nenhuma ferramenta para abri-la. E a pele do rosto é muito sensível,
acho melhor não abrir para não diminuir o preço dela – concluiu, desanimado.
Finalmente, Nicolas usou suas ferramentas para abri-la desde o pescoço até o final da
barriga.
Removeu a pele com cuidado para não danificá-la. Debaixo dela, havia um tronco cujo
interior era protegido por uma couraça azulada de fibra de carbono. Parecia totalmente
selado, exceto por um emaranhado de fios e peças expostos na altura do ventre. Ali, um par
de garras de metal entrelaçadas protegia um buraco vazio. Nicolas enfiou uma fina peça de
metal num orifício logo abaixo das garras e pressionou um botão protegido, abrindo o
compartimento oco.
Nicolas voltou a sorrir e corria de um lado para o outro, espalhando revistas e guias de
androides por todo o escritório. Ele foi até a sua estante e voltou com um objeto cilíndrico
– Cada série desses androides tem uma célula de força compatível, Miguel.
– Com toda a certeza. Isso aqui não é uma célula normal, é uma universal, mas tem
uma capacidade bem baixa, é para casos de emergência e dura bem pouco.
O amigo balançava a célula no ar e olhava para ele com um sorriso malicioso nos
lábios.
– Não quer conhecer um pouco melhor a nossa amiga, não? Eu deixo vocês dois a sós
um pouco.
Miguel não tinha a menor intenção de ir para a cama com uma máquina, mas estava
curioso para vê-la funcionar. Era tão humana, tão real, que parecia estranho tratá-la como
um robô, androide, boneca ou o que quer que fosse. Já tinha lido várias revistas antigas
sobre computação nas livrarias abandonadas do centro da cidade, mas nenhuma mencionava
– Não acredito que você está com vergonha de me responder isso. Deixa pra lá, vou te
Nicolas abriu a porta do escritório e olhou para os lados no corredor para se assegurar
de que não havia ninguém por perto. Fez sinal para que Miguel trouxesse a boneca para o
escritório da frente, que também lhe pertencia. Era lá que ele recebia os pacientes. Bem
mais aconchegante, o lugar tinha mobília antiga e certo aspecto luxuoso, mas Miguel sabia
que tudo fora tirado do lixo. Os tapetes eram mofados, os móveis podres e toda vez que
Nicolas esquecia de acender o incenso, o lugar fedia horrores. Ainda havia mais um
escritório seu naquele prédio, mas era onde as cirurgias eram realizadas com a ajuda de
Colocou a menina num divã vermelho de veludo no canto da sala e viu seu amigo
pegando um velho notebook Vaio de cima da mesa. Abriu uma gaveta cheia de pen drives
etiquetados, pegou um deles e plugou no aparelho, que exibiu um vídeo sobre as bonecas.
– Tenho que pegar umas coisas para ativá-la, dá uma olhada nisso aqui para você ter
uma noção – disse Nicolas, que saiu e trancou a porta por fora. Miguel deixou a androide de
lado e viu os vídeos eróticos com aquelas bonecas. Não achava nenhuma delas nem de perto
parecidas com a que tinha acabado de encontrar, mas aqueles deveriam ser modelos antigos.
A movimentação delas era muito natural, o que era até surpreendente. Em um dos trechos,
“Dá para perceber que são robôs quando começam a falar”, pensou Miguel. A boneca
sentidos na sua tentativa de sorrir. Depois de alguns minutos, a porta abriu e ele pôde ouvir
a voz do amigo pedindo ajuda. Ele trazia um carrinho de supermercado com várias baterias
de carro velhas. Eram pequenas caixas pretas, algumas manchadas de graxa e com uma
aparência horrível. Juntos, começaram a fazer a instalação, tudo coordenado por Nicolas.
– Essa célula universal é muito boa, mas a minha está quebrada. Está viciada, nunca
carrega e precisa de uma fonte de energia constante. Nós vamos usar essas baterias de carro
para carregá-la e ligar a boneca, entende? Ganhei tudo isso em troca de uma mão nova para
um segurança – explicava, usando vários cabos para ligar as nove antiquíssimas baterias de
carro a um conversor que repassava a energia para a célula. Depois que terminou todo o
– Espera um pouco, você vai ligar ela com a barriga aberta? – Miguel olhava com um
pouco de nojo para a mulher com vários cabos ligados ao seu ventre e às baterias ao redor
do divã.
– Cara, não tem outro jeito. Essa bateria está com problema pra carregar, porra. Ela
precisa estar ligada direto na fonte pra funcionar. Vai dizer que isso corta o seu tesão?
Miguel ficou sem jeito de responder que não tinha pretensões de transar com a boneca,
– Não, está tudo certo. Só é meio estranho. Tem certeza de que essas baterias aguentam
o tranco?
– São de mercúrio e ainda foram modificadas, têm uma força absurda. Acho que a
gente vai conseguir deixar ela ligada a noite inteira. – Nicolas continuava animado e olhava
atentamente para o corpo perfeito da mulher. Os seios não muito grandes e empinados, as
pernas grossas, tudo muito bem-feito, mas nada exagerado. Ainda não tinham tirado a
calcinha dela, talvez por um mínimo de pudor que mantinham. – Vou deixar vocês a sós,
O amigo fechou a maior parte da barriga do robô, deixando apenas uma pequena
– Para ligar, é só apertar esse botão – disse, indicando um mecanismo que ficava no
transmissor de energia. – Ela vai receber a carga e acordar na hora. Para desligar, é só
interromper o fornecimento.
Miguel deixou o amigo sair, fechou o laptop e sentou num banco ao lado do divã.
Havia uma pequena luminária na parede, bem fraca. Apagou a luz principal e deixou apenas
Segurou a mão dela e a apertou, não havia como dizer que não era humana. Era uma
Pensou nas bonecas com gestos e vozes bem artificiais que viu nos vídeos do notebook
– É só uma boneca.
Apertou o botão e aguardou. Ela deu um pulo rápido, seu corpo todo tremeu por um
segundo e depois voltou a ficar imóvel. Os olhos se abriram lentamente, como se estivesse
“São azuis”, pensou, enquanto o par de olhos investigava o local atentamente. Eles se
– Não sei.
Ela levantou-se e ficou sentada no divã, varrendo o lugar com seus olhos curiosos.
Miguel se assustou com a expressão de medo que ela tinha, bem diferente das bonecas que
vira no vídeo.
– Você está na Rio Beta, a área pobre da ZI do Rio de Janeiro, também conhecida
como Escombros – respondeu, lembrando da frase de um livro didático que lera na escola.
A boneca dava pouca atenção para o que ele falava e passava as mãos pelo cabo que
alimentava sua energia pelo abdome aberto. – Não mexa nisso aí, pode desligar você.
– O que eu sou?
Ela parecia confusa com o que Miguel dizia e muito amedrontada. Por algum tempo,
Ela o segurou pelo braço e puxou-o para que sentasse ao seu lado, no divã. Por mais
que tentasse evitar, não conseguia parar de olhar para os seios dela. Mas toda maldade que
– Eu estou com medo – ela disse. A menina colocou a cabeça em seu colo e dobrou os
joelhos. Conseguia senti-la soluçar nas suas pernas, as lágrimas molhando o tecido da sua
calça. Lembrou-se de uma briga que tivera com Nina e, no final das contas, sua ex-
namorada ficou naquela mesma posição, chorando em suas pernas. Miguel, que odiava ver
mulheres em prantos, levantou o rosto dela e colocou-o bem próximo do seu. Não queria
mostrar afeto, só tinha um desejo louco de ver cada detalhe das lágrimas saindo dos seus
olhos, tinha que achar um defeito, algo que denunciasse que não era humana.
– A minha energia vai acabar daqui a pouco. Não me deixe sozinha, por favor. Eu não
quero apagar.
Os braços dela envolveram seu corpo e o abraçaram com força, mas logo foram se
afrouxando, esgotados. Os olhos de Alice ficaram entreabertos e sua cabeça vacilou para o
lado.
– Estou ficando fraca, não me deixe apagar. Por favor, me traga de volta.
pendia pela sua cabeça e se esparramou pelo divã. Logo, ela perdeu todas as forças e ficou
inerte em seus braços. Largou-a e levantou-se, tremendo. Destrancou a porta e foi para o
escritório em frente falar com Nicolas, que tentava tirar um cochilo em cima da mesa de
madeira.
– Você já gozou?
• • •
Em poucos minutos, a calma deu lugar à tensão. Nicolas andava de um lado para o
outro da sala, berrando sem parar. Já passava da meia-noite e os escritórios estavam vazios,
– Essa boneca é uma mina de dinheiro, de última geração. Você está ficando maluco,
Miguel?
– Eu fui até o centro da cidade, eu achei ela. Ela é minha, nem tínhamos combinado
um preço ainda.
– Você é doente, cara! Ela não é ninguém, não é porra nenhuma. É só um bando de
Estavam no escritório das paredes brancas enquanto Alice tinha ficado no outro lado
do corredor, ainda no divã. Miguel coçou a cabeça, estava confuso e não muito certo do que
estava fazendo.
– Nico, tem alguma coisa na cabeça dela, eu tenho certeza. Ela disse que estava com
– Era só o que me faltava. Depois de levar um fora da Nina você ficar apaixonado por
O negro pegou um rádio da escrivaninha e discou um número. Nunca tinha visto ele
– Ele é o único que consegue controlar você. E já estou ficando com medo desta sua
loucura!
– Você só tem medo de perder dinheiro, isso sim, seu filho da puta!
Miguel lhe deu as costas e foi até o escritório. Desplugou as baterias de carro do corpo
de Alice enquanto Nicolas assistia a tudo contendo a raiva e a vontade de xingá-lo. Ele
colocou o vestido branco nela, mas levantou o tecido até a altura do abdome e chamou o
– Miguel...
– Fecha, porra!
Nico foi para o outro escritório e voltou com algumas de suas ferramentas. Em pouco
tempo já tinha fechado o ventre da boneca sem deixar qualquer marca. Ajustando os últimos
detalhes, olhou para o lado e viu duas pessoas na porta. Anderson parecia muito bêbado e,
assim que entrou, cambaleou até uma cadeira e sentou-se. Junto dele estava Fred, que não
Nicolas contou toda a história, desde a chegada da boneca. Miguel escutava tudo
calado, observando como o seu colega dava os últimos retoques na pele de Alice. Aéreo,
Anderson olhava para o nada, absorto pelo álcool. O que mais incomodava Miguel não era a
indiferença do amigo ou a maneira como Nico contava a história, mas o olhar perspicaz de
Fred. Ele assimilava os acontecimentos brincando com a ponta dos dreads entre os dedos de
– A boneca é dele, cara – concluiu o motoqueiro negro, dando de ombros. – Deixa ele
– Ele não vai ter como ligar ela de novo. Essa coisa fritou nove baterias de mercúrio
modificadas em, sei lá, um minuto. Pelas minhas contas, ela deve usar uma célula de última
– Há vários caminhões das Luzes que passam pelos Escombros. – Miguel percebeu que
os reparos na pele já tinham terminado e puxou o vestido dela até os joelhos novamente.
– Mas não desse tipo, Miguel. Estou falando daqueles caminhões enormes, que mais
parecem trens, com vários compartimentos. Só existem fora daqui. Olha, se você juntasse
grana o suficiente para comprar uma coisa daquelas, poderia até se comprar uma quitinete
Esquecera daquele detalhe, e a explicação de Nicolas caiu como uma bomba em seus
planos. Não sabia o que fazer, mas ainda não considerava vender a boneca uma alternativa,
– Não, não faz não. – Fred agora tinha um sorriso, quase imperceptível, mas assustador
em seus lábios grossos. Seus olhos brilhavam enquanto mirava Alice e Miguel. – Se for
tanto dinheiro assim, você poderia trabalhar a vida inteira aqui, mas não conseguiria chegar
nem perto.
– Desista, Miguel. Eu vou vender isso pra algum contrabandista e a gente racha o
dinheiro, faço até meio a meio dessa vez. Ela vale uma grana boa.
– Não – interrompeu Fred, ficando em pé novamente. – Você não precisa desistir dela.
– Eu consigo uma dessas mais barata com o Comandante. Ele ficou triste, sabia? Não
gostou de saber que o psíquico que nós tínhamos achado pulou fora.
– Filho da puta – rebateu Miguel, desviando o olhar. Não sabia o que fazer. Precisava
escolher entre abandonar a androide ou se meter com as gangues, coisa que jamais
concebera, nem por Nina. Indeciso, perguntou a si próprio até que ponto acreditava que
Alice era uma entidade “viva”. Não encontrava resposta, apenas uma vontade estúpida de
ajudá-la. Que merda era aquela? Fuzilado por todos os olhos da sala, duvidou de si próprio
e quase soltou o não definitivo. Mas voltou a lembrar das palavras de Fred no começo do
dia: “Se acharmos o Oráculo, talvez ele possa explicar os seus poderes”.
Cerrou os punhos, pois sabia que tinha virado uma marionete nas mãos deles. Ele tinha
– Vou aceitar isso como um sim. – Fred não esperou a resposta, sabia que Miguel não
conseguiria admitir aquilo. – Encontre a gente amanhã aqui no escritório do Nicolas, vamos
te arranjar uma moto decente, ensinar a pilotar direito e você vai ter que dar um jeito de
O motoqueiro abriu uma mochila e tirou mais um rádio, como o que Nico acabara de
usar.
– Esse é pra você. O Comandante arranjou isso pra gente poder se comunicar.
Anderson deu uma risada e balançou a cabeça, sem acreditar no que acontecia.
– Nicolas, quero que espalhe um rumor entre seus contatos. Quero que todo mundo nos
Escombros saiba que os líderes dos Engenheiros, dos Caçadores e da Peste se uniram numa
só gangue. E diga também que temos alguém como Angra do nosso lado, alguém ainda mais
– Já comecei a espalhar esse boato. Tem muita gente atrás de nós com missões boas,
quase do nível das que a Éden conquistou com a vitória de ontem. O trabalho vai ser duro,
mas nada que o nosso psíquico não consiga aguentar. – Fred olhou para Miguel uma última
– Olha a merda em que você se meteu – comentou Nicolas, quando já não havia mais
A raiva de Miguel diminuiu um pouco. Sentia uma espécie de alívio por saber que
conseguira, pelo menos por enquanto, proteger Alice. Pegou-a no colo e foi até o escritório,
– Ambos somos marionetes, não é? – disse para a androide desligada. Mesmo que
O Rei do Rio
Ruby Alford estava sentada de maneira despojada em sua cadeira, os olhos perdidos na
taça de vinho que segurava entre os dedos. Os curtos cabelos loiros davam um ar mais
lado da mesa de mogno lustrado, Remo Scorza era a sua antítese. Já na faixa dos 40, o
empresário italiano parecia ter a manha dos negócios em suas veias. Os traços duros do
rosto e o olhar azul-metálico assustavam tanto quanto o excesso de cuidado para manter seu
– Não vejo razão para isso ser motivo de tanta preocupação. Tudo parece perfeitamente
normal para mim – disse Ruby, mirando o mar além da parede de vidro do último andar da
Torre Alfa, o principal arranha-céus das Luzes e sede do consórcio de empresas responsável
– Você só vai encontrar algo de errado quando a fortuna dos seus pais acabar e você
tamanho do mundo, Ruby continuava perdida olhando para os prédios vizinhos e para o
Alfonse era a inteligência artificial que tocava parte dos negócios da Tríade e administrava a
cidade.
– Sim, senhor Scorza. – A voz sem vida da IA sempre incomodava Ruby, que vivia
– Por favor, Alfonse, mostre a Ruby o ritmo de crescimento das três corporações da
empresas Alford Tech, da família da francesa, Fiume Energy, do próprio Scorza, e Spartan
– Mas isso não foi registrado em lugar nenhum – protestou a garota. – Na última vez
que pedi para os meus assessores checarem os números da Spartan, ela mostrava uma
variação igual à nossa. Era até menos de 1%. Alfonse, você tem como checar isso de novo?
– Esses dados são confidenciais, madame Ruby. Quem os obteve foi o próprio senhor
– Não. Recebi isso de uma fonte segura. Uma fonte que você conhece bem.
O rosto de Alfonse voltou à tela, mas havia outra face no canto inferior da parede,
numa janela paralela. Ambos conheciam bem aquele jovem careca com piercings por todo o
rosto e olhar desafiador. Gian era filho de um empresário brasileiro influente do Rio, mas
seu grande mentor era Remo Scorza. O italiano via o garoto como seu “afilhado” nos
negócios. “Coisa de mafioso italiano”, como Ruby gostava de comentar. Além dos
privilégios que recebia do “padrinho”, Gian era uma verdadeira raposa, cheio de contatos no
– Não aqui, não na Tríade – rebateu Gian, que agora dividia metade da tela com
Alfonse. O garoto tinha um jeitão que realmente lembrava Scorza, talvez o tato para os
negócios e a frieza. Quem não os conhecia até podia acreditar que eram parentes. – A
– ... estão no mesmo barco e são um mesmo corpo – disse a garota, imitando o tom de
voz sério do italiano, que repetia aquela frase aos quatro ventos.
Ruby sabia que os dois estavam certos. Aqueles gráficos diziam respeito ao
Energy fornecia energia à cidade, além de revender a abundante água brasileira para o
exterior. A Alford Tech, uma gigante do ramo das telecomunicações, tinha feito o Rio de
Services era a responsável por toda a segurança local sob o comando do ex-militar chinês
Myang Tseng. As três exploravam o Rio, as três se subsistiam, eram realmente como partes
de um mesmo organismo. Aquele aumento exagerado era suspeito, a menina não podia
negar.
– Vocês não acham que pode ser um valor falso divulgado para enganar investidores da
Spartan? – Ela não queria confusão, a última coisa que pensava era ter que se afastar de suas
festas para resolver problemas da empresa que seus pais deixaram em seu nome.
– Esse valor não foi divulgado nem na reunião interna dos acionistas nem no balanço
oficial. É algo guardado a sete chaves por Myang e seus assessores mais próximos – disse o
italiano. Scorza se levantou de sua cadeira e caminhou até a parede de vidro por onde viam
fagulhas do neon da Rio Alfa. – Ele está fazendo alguma coisa, e é nos Escombros.
Ruby derramou mais um pouco de vinho em sua taça e ficou olhando para o italiano e
seu afilhado.
– Só me tirem uma dúvida. O que vocês pretendem fazer com o Myang quando
descobrirem porque a empresa dele anda crescendo desse jeito? – Ela virou um gole da
bebida.
– Por enquanto não tenho nada em mente – assumiu Scorza, acendendo um cigarro. –
Mas, dependendo do que ele estiver tramando, talvez precisemos puxar o tapete dele, sabe-
se lá como. – Ele caminhou de volta à mesa, o olhar perdido em suas divagações. – Sabe
como é, na Tríade não pode haver desigualdade, não podemos nos dar ao luxo de deixar que
uma de nós cresça exageradamente, até porque dependemos um do outro. Mas se um de nós
cresce e o outro não vê a cor da grana, é porque há algo muito errado aqui. Tudo que cresce
Escombros é o Myang, se é que você me entende. Ele manda e desmanda lá. Ele tem
aquelas gangues de motoqueiros, os bosozoku, do seu lado, são as garras dele lá dentro.
Aquele chinês paga para que elas façam seus trabalhos sujos e ainda mantém os traficantes
de drogas sob controle com seus mercenários profissionais. Se ele estiver fazendo merda lá
– Nós já temos nossos olhos dentro dos Escombros. – Gian sorria e Ruby sabia que
aquilo significava que aquela parte do plano tinha sido obra sua. – Há um criminoso famoso
lá dentro que vai nos ajudar em troca de dinheiro e mais influência. E você conhece bem ele
– disse o garoto.
Alfonse cortou a conexão de Gian às pressas e seu rosto verde-cristal assumiu uma
textura vermelha.
sorria enquanto via a menina pegar sua garrafa de vinho e deixar a sua sala languidamente.
– Esses chineses têm o dom de aparecer nos piores momentos. Achei que você ficaria
mais um tempo comigo hoje, Ruby. – O italiano tinha um sorriso malicioso nos lábios.
– Hoje não, Scorza. Mande tudo que você souber sobre Myang para mim, me mantenha
informada.
• • •
imaginava que sua vida fosse mudar tanto e tão rapidamente. Dois dias após a decisão, o
Comandante, que ainda não o tinha conhecido pessoalmente, sugeriu que saísse de casa para
– É para que fique mais seguro – justificou Fred, quando bateu em sua casa para lhe dar
a notícia. No começo, ficou receoso em deixar a casa dos pais, mas pensou no perigo que
representava para eles. Toda vez em que se lembrava de William e da incursão das forças
especiais das Luzes, anos atrás, a primeira imagem que lhe vinha à cabeça era a de Dona
Arrumou suas poucas coisas em duas malas de viagem emprestadas e ficou sentado na
sala de sua casa, sozinho, esperando que Anderson lhe buscasse. Seu colega tinha
combinado de aparecer às três da tarde com uma kombi emprestada e logo chegaria. Seu pai
estava trabalhando, assim como sua mãe, que tinha arranjado um emprego recentemente.
Conversara com eles sobre a mudança, mas em momento algum citou a entrada para o
mundo das gangues, pois sabia que eles jamais aceitariam. Simplesmente lhes disse que
Do sofá marrom e cheio de rasgos, deu uma última olhada na sala de casa, que tinha
lhe servido como quarto por toda a sua vida. O chão vermelho e quente, as cortinas brancas
e antigas que a mãe ganhara no casamento, a mesa de jantar que eles pouco usavam e uma
pequena estante de madeira com um televisor e alguns enfeites. Por mais que fossem coisas
Escutou batidas na porta e abriu-a sem perguntar quem era, certo de que era Anderson.
– Nina?
Ela gostava de andar maquiada, mesmo de dia. Foi ele quem cultivou esse hábito nela,
mas se arrependeu ao vê-la naquele estado. Nunca gostou de ver uma mulher chorando, e a
maneira como as lágrimas borravam a maquiagem deixava sua ex-namorada com uma
aparência ainda mais triste. Ela não respondeu, não disse uma palavra e sequer olhou em
seus olhos, simplesmente empurrou-o para o lado, entrou em sua casa e foi direto para o
sofá.
Seu primeiro impulso foi o de perguntar o que tinha acontecido, o porquê das lágrimas,
mas ele já sabia a resposta. Miguel puxou uma cadeira, arrastou-a para que ficasse de frente
situação, tudo fingimento. Ele não tinha a menor ideia do que responder quando ela
perguntasse a razão de ele ter se unido aos motoqueiros, pior ainda se soubesse a verdade
sobre Alice. Por isso, preferiu esperar que ela quebrasse o silêncio.
– Por que você fez isso comigo? – Nina segurava o choro e falava muito lentamente,
– Isso não tem nada a ver contigo, Nina – respondeu, confuso. – Eu não entrei para
ganhar dinheiro, não para fazer as coisas que você queria. Entrei por uma questão de
– Porra, Miguel! Você entrou nisso por causa de uma boneca – berrou. Nina desabou
em prantos e escondeu o rosto entre as mãos. Com a voz mais baixa, num tom quase de
súplica, ela continuou. – Eu te pedi essas coisas a vida inteira, era meu sonho que você
crescesse e a gente desse o fora daqui. E você vai e entra nessa por causa de uma merda de
uma máquina.
Miguel segurou-a com força pelos pulsos e puxou-a para perto de si.
– Ela precisa de mim! Eu só quero ligar ela de volta, só isso! – respondeu, nervoso.
– Você está me machucando! Para! – gritou, se livrando dele. – Porra, Miguel, ela não
precisa de ninguém, é uma droga de uma máquina, cara. Um computador, ela é igual a uma
criança, sei lá! Nem isso! – Nina se afastou, sentou-se no sofá de novo, abraçou os joelhos e
abaixou a cabeça, em prantos. – Todo mundo está falando que você enlouqueceu agora que
garota chorando, Nina! Eu falei com ela, o nome dela é Alice. Ela está com medo, ela
precisa de mim e quer voltar à vida, eu sei que quer. – Ele sentiu os olhos quentes, a fúria da
sua impotência jogando todo o seu autocontrole pela janela. Foi quando escutou batidas
fortes na porta. A última coisa que precisava era de vizinhos reclamando da gritaria. –
motoqueiro forçou sua entrada e deu de cara com o casal. – Dá pra ouvir vocês dois
Nina se levantou do sofá e correu na direção da porta para ir embora, mas Anderson
permaneceu no caminho.
– Sai da minha frente, eu quero ir embora daqui! – Ela mantinha os olhos no chão
enquanto falava e tentava disfarçar o choro. Alheio aos protestos, seu amigo continuou
imóvel.
– Nina, senta um pouco pelo menos. Se acalma antes de ir embora – ele insistiu, mas
não conseguiu convencer a menina, que o empurrou para o lado. Os dois observavam,
preocupados, Nina caminhar apressada pela rua. – Cara, vocês ficaram juntos por tanto
– Vamos – pediu, com a voz tão fraca que mal podia ouvi-lo. Anderson apontou para
uma kombi amarela e muito velha parada bem em frente à casa dele.
Miguel sentou no banco da frente e ficou observando Nina até o momento em que ela
sumiu de sua vista, dobrando uma esquina. Ficou parado, sozinho com as memórias que
tinha dela e descobrindo o quanto o ódio e o amor tinham uma fronteira tão tênue.
Despertou para a realidade quando escutou seu amigo bater com força o porta-malas da
kombi, logo que terminou de carregar suas malas. Viu-o dar a volta pela frente e sentar-se
– O que foi dessa vez, cara? – Como os três eram bem próximos, Anderson já estava
acostumado a presenciar brigas como aquela e, em alguns casos, até intervir nelas. – Ela
– Não, claro que não. Foi o Nicolas, ele disse que ela tinha escutado uns boatos já, mas
ele confirmou tudo, contou a história inteira. Até sobre a boneca ele falou.
– Eu ferrei com ela, não? O que eu fiz foi errado, não foi?
– Ela te adora, cara. Senão nunca teria dado esse show todo.
Os motores da kombi roncaram alto, soltando uma fumaça negra e espessa do cano de
– Mas ela gosta mais das Luzes do que de qualquer coisa, esse é o problema. Não tem
todos. Estava claro que o motor da kombi tinha algum problema. Alguns minutos depois,
quando finalmente voltou à realidade, reparou que não estavam indo para a Praça da
melhor pelo menos disfarçar essa cara de choro antes de chegar lá.
Ao perceber que o amigo simplesmente não reagira às suas últimas palavras, o
motoqueiro ficou ainda mais preocupado. Não sabia o que dizer, mas via que seu estado era
lastimável.
– Cara, se você quiser desistir, foda-se. Se quiser cair fora, fala agora que eu deixo você
em casa, dá pra ver que você não está certo do que está fazendo e eu não vou guardar mágoa
por Nina e terminavam em Alice se formou. Sua ex-namorada era como parte dele, uma
extensão de seu corpo sem a qual se sentia desfigurado. O problema é que, com o tempo,
aquela extensão tinha mudado tanto a ponto de não conhecê-la mais. O que os ligava não era
mais o amor, nem a amizade. Da parte dele, a única esperança que tinha era de que um dia
ela voltaria a ser como antes, mas o que acontecia era exatamente o oposto. A estrada do
amadurecimento os levou para direções opostas, tão distintas que às vezes se sentiam como
Seu maior desejo era o de trazer o passado de volta, esquecer as feridas e se lançar de
cabeça naquele amor juvenil e sem preocupações que desfrutaram por anos. Eles se
molduras sem pintura, livros sem página. E a busca por algo que preenchesse aquele vazio
levou-o de encontro a Alice, uma máquina que era capaz não só de chorar, mas também de
– Ela está viva – dizia Miguel para si próprio o tempo inteiro. – Ela está viva e precisa
Quando viu Nina dobrar a esquina e sumir de sua vista, lembrou-se de que ela também
estava viva. Que sua ex-namorada tinha carne, osso e sentimentos. Viu ainda que ela tinha
depositado todos os seus sonhos nele, mas eram sonhos dos quais ele não compartilhava.
“Não eram sequer sonhos”, pensava, “eram traumas de infância que eu não ajudei a curar”.
E quais eram os seus sonhos, seus objetivos? Nunca tinha pensado em nada para si, exceto
ser feliz ao lado dela, já se sentia realizado com isso. Ela era a própria justificativa para a
sua existência, por mais que escondesse isso dela e, de certa forma, até de si próprio. Sem
Nina ao seu lado, começou uma busca desenfreada por um significado, até que trombou
com uma boneca em lágrimas que pedia a sua ajuda. Mesmo que ainda não fosse as páginas
dos seus livros e a pintura dos seus quadros, sentia-se na obrigação de protegê-la.
– Então você está fora? – indagou Anderson, parando a kombi ao meio-fio de uma rua
movimentada.
– Não, eu estou dentro. Estou com vocês ainda. – O colega sorriu e voltou a dirigir,
– Tem certeza disso, Miguel? Depois que você se mete com esses caras, não tem volta.
– Mas e se ela for só uma boneca, cara? Eu sei que você pensa que ela está viva, mas e
– Paciência. Se for assim, a gente se livra dela. Vende pra alguém das Luzes, como o
– Você está meio maluco. Mas ainda prefiro você maluco do que deprimido.
• • •
O refúgio do Comandante ficava no topo de um dos poucos morros sem favelas dos
Escombros, em Pilares. Rochoso, ele era de difícil acesso e seu novo dono teve que construir
uma estrada particular para facilitar o acesso à base de operações, um casarão colonial do
século XVII esquecido no tempo. Segundo Anderson escutara, o local era um museu antes
da guerra civil e virou moradia para mendigos após a mudança de poder no Rio de Janeiro.
Os novos inquilinos acabaram expulsos pelo mafioso em ascensão, que viu naquelas ruínas
A kombi foi parada algumas vezes na subida do morro, no qual seguranças particulares
estranho de se aproximar. O “Rei do Rio” fazia jus àquele aparato. Era uma das poucas
figuras dos Escombros bem conhecidas nas Luzes e não tinha qualquer restrição quanto ao
A atitude irritava quem ficasse em seu caminho. No passado, Miguel escutou histórias
de um grupo de motoqueiros que tentou atacar o casarão do Comandante porque ele havia
se aliado a uma gangue rival. Segundo diziam, eles sequer conseguiram se aproximar da
mansão e seus corpos ficaram em exibição na entrada do morro por quase uma semana.
– Essa história é verdade. Essa gangue que morreu era até famosa – recordou
Anderson. Ele avançou lentamente pelo último portão que os separava do terreno principal
cruel com quem tenta atacá-lo, mas nunca ataca ninguém. Só responde.
Os dois foram revistados pelos guardas e liberados para avançar. Apesar de todo o
aparato militar, o Comandante não era do tipo que puxava gatilhos ou ordenava execuções.
Ele centralizava a rede de informações mais completa de todo o Rio de Janeiro, maior até do
que as empresas das Luzes. Conhecia cada ponto de venda de drogas, cada mercenário, cada
Com um olhar triunfal, Fred os aguardava na frente do casarão. Miguel tinha até certa
simpatia pelo líder da Peste, mas o fato de ter se tornado sua presa na luta para investigar e
enfrentar Angra estremecera a relação entre eles. “Somos só pessoas bem diferentes atrás
Escombros graças à rápida destruição das áreas com vegetação. Miguel adorava aquele
barulho, deixava-o mais calmo. No entanto, só o escutava quando estava próximo dos
parques no centro.
– Não sabia que tinha cigarras por aqui – comentou, ainda impressionado pelo tamanho
da casa. Com três andares, o lugar fora reformado pelo novo dono e exibia todo o luxo de
outrora.
– E não há – respondeu Fred, fazendo sinal para que eles o acompanhassem porta
adentro. – São caixas de som espalhadas por aí, o Comandante gosta dessas coisas, desse
clima de natureza.
– Gosta bastante de armas também – disse Anderson, observando que até o interior da
O interior do casarão lembrou Miguel dos livros de época dos autores do século XIX
que costumava ler. Tábuas de madeira, tetos mais altos do que o de costume, móveis de
época e bom gosto na decoração se misturavam sem opulência. Ao contrário, a casa exalava
uma simplicidade sóbria rara para um ambiente que deveria ter custado uma fortuna.
Passaram por uma salão e subiram as escadarias até o andar de cima, onde o ambiente
era bem diferente. Mais profissional, o segundo pavimento era lotado de computadores,
monitores de câmeras espalhadas pela cidade e várias pessoas andavam para lá e para cá,
ajustando os aparelhos. A diferença é que, dessa vez, ninguém estava armado. Todos
– Eles são os assistentes do Comandante. Seria impossível dar conta de uma rede tão
Passaram pelos empregados e entraram num amplo escritório com estantes de livros
que iam até o teto e discretas luzes laterais que mantinham a iluminação bem limitada, num
se numa das cadeiras colocadas lado a lado em frente à peça mais bizarra de toda a mansão.
Em vez de uma pessoa, todos estavam virados para um manequim sem cabeça sentado
numa luxuosa poltrona tão velha quanto a própria residência. Acima do pescoço, uma
arcaica televisão com moldura de madeira estava conectada a um emaranhado de fios que
escritório.
– Coronel, estamos todos aqui – disse Fred, tomando seu lugar entre Miguel e Juan. –
Já podemos começar.
Com o som de um clique, a televisão ligou e exibiu só estática por quase um minuto.
Os motoqueiros se entreolharam, mas ninguém ousou dizer nada. Apenas Fred mantinha-se
indiferente à situação. Sem aviso, a imagem mudou para a foto de um homem barbudo com
um quepe militar com uma estrela solitária bordada na frente. Miguel conhecia aquela
imagem dos livros de história com os quais esbarrara. Era Che Guevara, revolucionário e
– Qual de vocês é o psíquico? – indagou a voz abafada que vinha da TV. Miguel
levantou o dedo lentamente, ainda um pouco transtornado com a reunião atípica. Ouviu o
som das câmeras ajustando o foco ao seu redor, sem dúvida de que todas miravam nele.
pergunta sobre os seus poderes. Mas o Comandante o ignorou no momento e falou a todos.
– Não vou tomar o tempo de vocês com rodeios. Aliás, não tenho tempo para isso. –
Uma interferência fez a imagem estática de Che Guevara ir e vir por uma fração de segundo
e a voz pareceu um pouco mais distante. – Vocês devem saber que eu não tenho birra com
ninguém, não tenho inimigo nenhum nem qualquer aliado. Então vou lembrar que nossa
Fred permanecia calado, olhando para o chão o tempo todo. Miguel tinha certeza de
que ele já sabia cada palavra que o Comandante falaria, estava apenas ali para acompanhá-
los. Afinal de contas, fora ele quem estabelecera aquela aliança com o criminoso. Não tinha
– Se você não tem aliados, como vamos saber se você está com a gente? – perguntou
Juan.
– Mas eu não estou com vocês, isso é um contrato indireto. Eu estou sendo a ponte
para pessoas que querem investigar os motoqueiros da Éden, uma ponte até vocês.
– Seria uma boa maneira de me definir. Eu vou dar suporte para vocês, fazer o possível
para que tenham equipamento suficiente para encarar a Éden de igual para igual. Esse é o
– Isso. Vou colocar vocês com os melhores contratantes, divulgá-los em meus contatos,
fazer com que todo mundo os tema. Ou melhor, os respeite. Até dois dias atrás, só se falava
na Éden. Agora soltamos o rumor de que os melhores motoqueiros dos Escombros estão se
juntando para combatê-la. Minha ideia é ofuscar um pouco a imagem da gangue dessa
mulher, fazer com que fique em segundo plano. A gente não sabe qual é o objetivo dela, mas
já podemos dizer que ela gosta de aparecer. A violência que ela empregou na Praça da
Anderson calou e Juan deu uma bufada. Os dois tinham perdido grandes amigos,
companheiros de gangue naquela noite. Por mais frios que fossem, era natural que a morte
– E como a gente vai investigar a Éden? – perguntou Nicolas. Miguel sentiu uma
pontada de raiva, uma vontade de agredi-lo ali mesmo por ter contado a Nina sobre Alice.
Preferiu permanecer quieto, a casa do Comandante não parecia o lugar certo para perder o
controle. – Ficar popular e ter condição de acabar com eles não muda o fato de não
– Isso é verdade. Temos pouco conhecimento a seu respeito, exceto que ela já tinha
aparecido em rodas de gangues em Madureira. Meus homens também ouviram algo sobre
uma confusão com Angra em Benfica, mas não conseguimos confirmar. A certeza que
temos é a de que ela permaneceu como um fantasma até pouco tempo atrás. Ninguém sabe
de onde ela surgiu ou se ela é mesmo aqui dos Escombros. E vocês? Têm alguma sugestão?
teclado sendo usado pelo Comandante, onde quer que ele estivesse. – O problema é que,
como contam as lendas, o Oráculo só é achado quando quer, e isso pode demorar um pouco.
Mas nós temos vinte dias para achá-lo, ou sermos achados por ele.
Ninguém falou nada e Miguel se sentiu tentado a perguntar o porquê daquele prazo.
Comandante?
– Exato. Se até lá não descobrirmos quem é e o que quer Angra, vamos ter que derrotá-
la e interrogá-la. E tenho certeza de que vocês sabem que não podem derrotá-la. Só o nosso
garoto aqui, o nosso psíquico. É Miguel o nome, não é? – Ele não respondeu, apenas
assentiu com a cabeça. – Fiquei sabendo que você acabou com o cara dos Corvos, mandou
ele voando contra um poste. É verdade? Você consegue fazer aquilo de novo?
– Não sei – respondeu, inseguro e surpreso em ser o foco das atenções da reunião
novamente. – Ainda não pratiquei, não tentei fazer de novo nada daquilo.
– Bem, então é melhor que pratique o quanto antes. Até onde sei, você nunca
participou de uma batalha de gangues e não tem experiência nenhuma de combate. Se ficar
A TV desligou e não souberam o que fazer por alguns segundos. Nesse intervalo, Fred
Ele sorriu para o negro pela primeira vez desde o convite para se juntar à gangue.
Antes que pudesse falar qualquer coisa, a TV ligou sozinha, dessa vez exibindo a imagem de
um sorridente Mao Tsé-Tung. Miguel imaginou que aquele homem deveria gostar mesmo do
socialismo.
quero deixar claro que temos certeza de que Angra não está sozinha. Tem alguém grande
por trás dela. Nós vamos fuçar em coisa perigosa, por isso preciso que vocês tomem todos
os cuidados possíveis. Quem não estiver preparado, vai morrer – reforçou o Comandante,
aumentando o tom nas duas últimas palavras. – O que quer que estejam fazendo, tomem
cuidado e atentem ao treinamento. Meus clientes querem que vocês descubram tudo sobre
Angra ou acabem com ela de uma vez. De uma forma ou de outra, preciso de vocês vivos.
Juan puxou um Lucky Strike do bolso e o acendeu. Deu um trago, soltou a fumaça no
– Bem, então basicamente estamos começando do zero, só que com o seu auxílio. Mas
– Eu sei, mas não se preocupem quanto a isso. Enquanto eu estiver agenciando vocês,
podem ter certeza de que receberão as melhores missões dos Escombros e boas
recompensas. E, caso acabem com a Éden ou consigam as informações que meus clientes
tentarem uma vida confortável, sem precisar ficar se fodendo em cima de motos e
– Estou dentro.
– Já tomei a dianteira e fiz algumas coisas – prosseguiu o Comandante. – Esvaziei um
dos meus apartamentos na Praça da Bandeira para que Miguel e Anderson morem lá. Acho
mais seguro eles morando próximos dos outros motoqueiros. Além disso, Fred e Juan já
vivem por lá. Vai facilitar as coisas. Os rádios já estão com vocês, não? Excelente. Agora,
Pela primeira vez, Fred pareceu surpreso. Tinha se esquecido daquele detalhe óbvio e
olhou para os lados em busca de alguma resposta, mas obteve apenas silêncio dos
os acionistas da Alford Tech querem uma resposta a respeito daquela fábrica sitiada em
– Manda ele esperar na sala de visitas. E diga aos acionistas que terão uma resolução
até o fim do dia. Já estou terminando aqui. Senhores, um último favor – prosseguiu,
abandonado na Usina. Fiz do lugar um belo puteiro que funciona à noite lá, mas não é disso
que quero falar. O estacionamento dele é enorme e está ocioso. Quero que treinem o rapaz
novo. Se possível, quero todos vivos quando isso acabar. Por agora, estão dispensados. Entro
Aliviado pelo fim da reunião, Miguel tomou a dianteira e tentou sair na frente dos
amigos, mas foi interrompido pela voz abafada das caixas de som do cômodo.
vestido num terno se recostava com a TV sobre o pescoço. Agora que estava a sós com
aquilo, sentia-se ainda mais desconfortável com toda a situação. Imaginou o verdadeiro
Comandante, em algum lugar, observando o que as várias câmeras da sala captavam da sua
expressão insegura e o suor que seu nervosismo insistia em produzir. Com uma voz bem
– Você sabe no que está entrando, não sabe, cara? Você sabe no que isso vai dar? –
indagou o Mao Tsé-Tung estático, seu sorriso contrastando com a tensão da sala. – Dá pra
ver nos seus olhos que você não é como os outros, que não está nem aí pra fama e o
dinheiro que eles perseguem. Olha, a vontade deles de alcançar seus objetivos é muito
grande, se aquilo que te impulsiona não é forte o suficiente, então você vai ficar para trás,
vai acabar morto nessa merda toda. Você sabe disso, não sabe?
– Eu sei a razão disso tudo, sei porque você está fazendo isso, Miguel, e da bateria que
você quer. Mas muita coisa vai girar ao seu redor de agora em diante. Se você não for
– Eu sei o que eu quero – disse Miguel, com dificuldade para acreditar nas próprias
Um estalo próximo o fez olhar para os lados e só então percebeu uma fechadura
eletrônica na gaveta de uma das prateleiras no canto da sala. A luz vermelha do aparelho
digital que a trancava mudou para verde e o compartimento apresentou uma leve abertura.
– Vai lá. Abra a gaveta e traga o que encontrar para cá. – Miguel puxou dali uma
eletrônico, ela vinha acompanhada de uma chave manual um pouco maior do que o seu
– O que significa isso? – Sentou-se novamente em frente ao manequim, mas dessa vez
– Eu sei que a gente nem se conhece Miguel, nem pretendo virar seu amiguinho ou
pedir que fiquemos mais próximos. Mas tem muita coisa em jogo aqui. Para mim, para você
e para todos os seus amigos. Nós nem nos conhecemos, mas precisamos confiar uns nos
outros, entende? É assim que a raça humana sobrevive em ambientes inóspitos, confiando
– Para trabalhar comigo, teremos que fazer um trato. Você fará parte dessa gangue que
estamos formando, lutará ao lado dos seus amigos para reviver a sua boneca ou seja lá o que
pretende fazer com ela, mas terá que me prometer algo. Sei que não há um sonho que não
seja destrutível ou confiança incorruptível, não sou mais ingênuo para acreditar nessas
coisas – dizia o mafioso, com um tom muito sério. – No dia em que você desistir de nós,
assim que você decidir jogar tudo para o alto e cair fora dessa empreitada, quero que você
abra essa maleta. Ela tem transmissores de rádio, entende? Se você abri-la no quintal da sua
– Sim. Não precisa nem vir falar comigo, apenas abra a maleta. Nesse meio tempo,
esconda-a num lugar seguro, onde ninguém possa achá-la. De preferência, esconda-a num
lugar e a chave em outro. Assim você impede alguém de abrir isso e me fazer acreditar que
desistiu.
Perdido, demorou para soltar um “sim” quase inaudível. Percebeu que a reunião tinha
– E se eu não desistir?
– Ganha a célula de energia para alimentar sua garota. Simples assim. Só tem mais
– Bem, você não sabe fazer muita coisa e não tem preparo algum, mas precisa fazer
dinheiro para conseguir a bateria. Vou te colocar num trabalho especial amanhã.
• • •
No dia seguinte, quando acordou, Anderson já não estava mais em casa. Ele e os outros
motoqueiros tinham saído bem cedo para realizar um dos trabalhos que o Comandante
arranjara. O apartamento na Praça da Bandeira não era muito grande, tinha apenas um
quarto e paredes cheias de infiltrações, mas Miguel gostara dele. Era arejado, com uma larga
janela na sala pela qual o Sol da manhã batia no fresco chão de ardósia e trazia um pouco de
vida ao local.
Quando começou a desfazer as malas, olhou de relance para a enorme caixa branca
debaixo da cama. Era a melhor coisa que tinha conseguido para guardar Alice enquanto não
conseguisse a bateria, e até que não tinha ficado tão ruim. Terminava de arrumar suas
poucas coisas no armário quando um saco de pano caiu no chão. Antiquíssima bolas de
As bolinhas eram parte de suas recordações, a parte boa delas. Aquele saco de pano era
uma espécie de baú de tesouros seu. Havia nele também um par de brincos que Nina
esquecera com ele, uma foto de sua turma de oitava série e uma pequena pintura em carvão
de seus pais ainda jovens, presente de um artista amigo deles. Sentou-se no chão e catou as
Nina estava lá, bem ao seu lado, já era sua namorada naquela época. Sem os efeitos das
drogas, ela parecia bem mais bonita, mais viva. Do outro lado estava Anderson, o semblante
rebelde e um tanto desleixado. Gostava de mais alguns outros dali, mas bem poucos. Não
era muito popular nos tempos de escola, especialmente em função do jeito distante.
Ainda um pouco hipnotizado pelas memórias, lembrou-se de que seu novo chefe o
tinha aconselhado a treinar seus poderes psíquicos, mas não sabia por onde começar. Fixou
os olhos nas bolas de gude que estavam em cima da foto, fazia um esforço mental para
– Merda – sussurrou, voltando seu olhar para a caixa de Alice. Não tinha pista sobre
como usar seus poderes. Tendo eles ou não, vivera seus últimos 19 anos sem sequer
Respirou fundo e voltou o olhar para as bolinhas, que teimavam em não se mover de acordo
com seus caprichos. Percebeu, então, que a Nina adolescente o encarava nos olhos com um
semblante jovial.
No dia anterior, pensou em visitá-la para ver se tinha ficado bem após a discussão, mas
decidiu dar-lhe um tempo. O que mais lhe preocupava era a certeza de que sua ex-namorada
tinha pulado de cabeça no vício depois da discussão em sua casa. Certa vez, no começo da
aventura dela com drogas, testemunhou uma das incursões dela nos alucinógenos e apenas
assistiu, sem saber o que fazer. A carreira de pó branco em cima da mesa sumia enquanto
Nina cheirava. Alguns amigos riam ao redor e faziam o mesmo. Sua passividade foi seu
maior inimigo naquela noite, não soube se impor, não tentou impedi-la. Aos poucos, os
olhos carinhosos foram substituídos pelos nervosos, alertas, alucinados. Toda vez que se
drogava, Nina morria, se tornava outra pessoa, um animal. Miguel tentava apagar aquelas
memórias da sua cabeça, mas não conseguia. Sentiu vontade de chorar, mas se conteve.
Quando caiu em si novamente, viu que as bolas de gude estavam rasgando a foto e
afundando o chão, como se o peso delas tivesse aumentado brutalmente. O susto fez elas
dispararem para todos os cantos do quarto sem que as tocasse. Pegou a foto, agora
danificada pela pressão das bolas, e percebeu que até a ardósia do chão estava esmigalhada
em alguns pontos.
Animou-se para praticar seus poderes, mas foi interrompido por batidas na porta.
Demorou um pouco para se recompor e sua visita não foi das mais agradáveis. Sorridente
como sempre, Nicolas estava de pé no corredor vestindo uma roupa de moletom dormida,
Não respondeu, apenas encarou de volta. Estaria ele se fingindo de sonso ou realmente
não tinha noção alguma do que fizera ao contar a história de Alice para Nina? Sentiu a raiva
– Não – disse, de maneira seca. Pegou Nicolas pelo braço, puxou-o para dentro do
apartamento e fechou a porta. Perdido ou dissimulado, ele fez cara de assustado. – Cara,
você é maluco? Por que você contou tudo pra Nina? – Nicolas deu de ombros.
– E o que você queria, cara? Vocês nem estão mais juntos, relaxa.
Miguel teve vontade de agredi-lo, mas se conteve e apenas deu um leve empurrão no
amigo.
– Você é doente, cara? Ela veio me procurar chorando e, do jeito que estava, deve ter
feito besteira ontem. Porra, pra que isso? Sua vontade de comer ela é tanta assim?
– Vai à merda, seu babaca – berrou Nicolas. – Pelo menos ela ficou sabendo por mim,
que sou um amigo. Melhor do que ouvir um boato da boca de outra pessoa.
– Vai dizer que você não se lembra de que o Anderson estava completamente bêbado
quando encontrou a gente com a boneca? Ele contou isso aos berros pra todo mundo na
Praça da Bandeira quando desceu com o Fred. Nem deve se lembrar disso de tão mal que
estava.
A explicação do amigo não era das melhores, mas também não era de se jogar fora. Se
os boatos corressem pelas pessoas até chegar aos ouvidos de Nina, a reação poderia ter sido
bem pior.
– Porra, cara. Pelo menos me avisa antes de fazer uma coisa dessas. Eu queria ter
E Nicolas estava certo. Em momento algum passara pela cabeça de Miguel contar para
Nina a razão pela qual se uniu às gangues. Olhou para o relógio que tinha deixado numa
– Preciso ir. O que quer que você queira com o Anderson, ele não está.
• • •
por isso Miguel usou sua antiga para fazer o trabalho. Não precisou ir longe, apenas
coragem para ir num lugar que nunca fora dos seus favoritos. O Posto Rebouças era a
principal ligação dos Escombros com as Luzes, e justamente por isso um dos locais mais
sombrios da região e evitado por qualquer um que não quisesse problemas. Tratava-se de
As histórias do lugar já justificavam sua má fama. Logo após o fim da guerra civil e do
direto com as forças militares privadas, mas não estavam prontos para as atitudes drásticas
que foram tomadas. Não houve qualquer tentativa de pacificar o tumulto, apenas uma chuva
de balas que silenciou a multidão em menos de quinze minutos e deixou para trás dezenas
de mortos. Mortes, aliás, eram normais ali. Quem tentasse escapar para as Luzes era
Fora lá apenas uma vez em toda a sua vida, anos antes, e o lugar era rigorosamente o
– Tipo uma Honda VR 2040 dentro de um parque cheio de fuscas – como Anderson
costumava dizer.
caminhão com o logo da Spartan Solutions munido de sua simpática metralhadora antiaérea
era só o que ficava à vista. Dentro do túnel, havia mais instalações militares e um sistema de
segurança que nunca tinha deixado nada dar grandes dores de cabeça aos cidadãos das
Luzes.
Quando apareceu ali com sua moto velha, a jaqueta de pano cinza e a calça jeans mais
gasta, os soldados não lhe deram bola. O único que prestou atenção nele foi um homem alto
com pouco mais de trinta anos e nenhuma cara de brasileiro. Seu cabelo liso, castanho claro
e desgrenhado, a barba clara por fazer e seu próprio olhar denunciavam que era um gringo.
Não teve dúvidas de que era ele quem estava procurando. Desceu da moto e se aproximou
da guarita onde o homem estava. Só então os guardas lhe deram mais atenção e levantaram
seus rifles, mas o gringo fez um sinal com a mão para que abaixassem as armas.
De acordo com o que o Comandante lhe dissera, Matthews Levy era um jornalista
americano, um freelancer contratado pelo New York Times para saber mais sobre os
– A mãe dele é brasileira, ele fala bem o português – o mafioso explicara. – Ele está
pagando bem para ser escoltado e guiado. É um serviço bem fácil, não vai fazer merda.
Mas não tinha merda nenhuma a ser feita. Matt era simpático, tinha pouca bagagem e
temperamento calmo. No entanto, o que não tinha de malas ele tinha de perguntas. Dono de
– Dizem que sim, parece que quem vai lá nunca volta – respondeu, temeroso de revelar
seu segredo.
A volta até a Praça da Bandeira era um caminho bem curto, mas incluía passar por
algumas das áreas mais pobres dos Escombros. O jornalista olhava tudo com atenção, até
malas para o apartamento no qual ficaria. O americano seria seu vizinho enquanto estivesse
no Brasil e talvez até contratasse seus serviços mais algumas vezes nesse tempo, por isso o
motoqueiro fazia um esforço extra de simpatia para ganhar a amizade. Depois que desfez as
malas, foram juntos até um pequeno mercado perto dali para que pudesse se abastecer.
– Vocês daqui estudam? – ele perguntou, enquanto enchia uma sacola com frutas.
– Apenas uma?
Matt logo pediu para conhecer o colégio e os dois apenas descarregaram as compras
em casa antes de pegarem novamente a moto. Aquilo não estava incluído no pagamento,
mas ele preferiu não cobrar nada. O americano apenas lhe deu algumas notas para que
pudesse encher o tanque e logo estavam novamente passando pelos caminhos tortuosos dos
Escombros.
lembrando dos poucos fragmentos da história que escutara. – Já perto do final da guerra
civil, as forças pacificadoras usaram ele como base, expulsaram todos os moradores.
Aconteceram muitos confrontos e, quando a guerra terminou, o lugar ficou servindo como
um centro de assistência social que o pessoal das Luzes prestava, mas eles pularam fora.
respondeu:
– Olha, pelo que eu sei, logo depois da guerra esse lugar ainda recebia atenção, mas
durou pouco. Acho que deixamos de ser novidade, por isso as Luzes sabiam que ninguém
iniciativa de montar uma escola aqui. Os professores são todos dos Escombros também.
– Não. É que vivemos numa era de informação, pelo menos fora daqui. Se você estiver
no canto mais pobre da África, ainda consegue uma conexão com a internet, uma maneira
de denunciar alguém sobre alguma injustiça, de contar para o mundo. Mas aqui parece um
lugar tão isolado, é uma pobreza chocante. Eu pesquisei tudo que pude sobre os Escombros,
– Não é pobreza. É imposição. Não somos tão miseráveis, só isolados – disse Miguel,
buscando um lugar seguro para deixar a moto. – A energia elétrica aqui é muito limitada e
eles ainda impedem que sinais de satélite entrem. Temos até televisão, mas é filtrada com
alguns poucos canais, muita gente aqui nem sabe o que é internet. Pelo que converso com
– Sim, claro que é. Acho até difícil explicar isso para alguém que não usa a internet
normalmente – dizia, quando finalmente pararam a moto. – As pessoas estão o tempo todo
conectadas, seja por R.A. ou aparelhos portáteis, o próprio ritmo de vida é diferente em
– R.A.?
– Realidade ampliada. Eu deixei um aparelho no apartamento, mostro para você
quando voltarmos. Mas, enfim, essa repressão de informação é muito eficaz aqui, o que é
interessante e assustador ao mesmo tempo. Me conta um pouco mais sobre essa escola.
Miguel mal escutou o pedido do jornalista, já que sua atenção foi desviada pelo ônibus
azul da “Missão Cristã”, uma organização católica que ajudava a escola de tempos em
tempos. Eles sempre traziam um batalhão de jovens para auxiliar no ensino e dar aulas de
reforço aos mais pobres, mas a maioria deles não voltava para lá uma segunda vez. Para
Miguel, eles usavam a desculpa da ajuda para matar a curiosidade e ver o lado negro do Rio
de Janeiro. Já tinha conversado com alguns e gostado deles por algum tempo, mas aprendeu
– Acho que lá no fundo nós é que ajudamos. Eles se sentem menos culpados depois de
Matt e Miguel andaram juntos por um tempo pelos corredores da escola, mas o
jornalista pediu que o deixasse só para explorar o local. Sem ter que cuidar do americano,
passeou por alguns lugares onde estudara no passado, mesmo que seu coração o pedisse
para dar o fora dali. Miguel não gostava muito de retornar ao colégio, pelo menos não nos
últimos tempos. A principal razão de evitar pisar ali era que aqueles corredores guardavam
algumas de suas melhores memórias de Nina, algo que fazia o possível para tentar deixar de
lado no momento. Ainda não sabia se tinha errado ou acertado com sua ex-namorada, mas
precisava seguir em frente para concluir seu objetivo de ajudar Alice. Vagou a esmo,
cumprimentou ex-professores e alguns funcionários numa tarde que parecia tão estéril
Cochilou num banco perto da entrada para passar o tempo, mas uma voz familiar lhe
trouxe de volta a uma realidade na qual custou a acreditar. Nina, a mesma Nina que ele vira
portaria. Leve como uma brisa, ela passava por entre as pilastras correndo, mais bonita do
que o de costume. Levantou-se lentamente do banco no qual dormia como quem ainda não
sabe se sonha ou não, mas o que via logo adquiriu tons perturbadores de pesadelo.
Ele lembrava muito Matt, tanto nas feições quanto no sorriso despreocupado e na
brancura da pele. A diferença estava na idade. Ele era bem mais jovem e os cabelos loiros
“necessidade”. O crucifixo prateado da Missão Cristã pendia de um lado para o outro no seu
O rapaz alcançou Nina, puxou-a pelo braço e os dois se abraçaram, gargalhando. Ela
percebeu a presença de Miguel e fez questão de apresentar o novo colega, quem quer que
fosse.
– Você conhece ele, Nina? – indagou o rapaz da Missão Cristã, o encarando com
desconfiança.
– É um velho amigo – respondeu, enquanto ele pegava sua mão. Pareciam um par de
crianças de tão empolgados, e Miguel não sabia se ficava feliz por sua ex ou perturbado por
toda a situação. – Miguel, esse é o Caio. Ele é da Missão Cristã, estou mostrando a escola
– É, eu aposto que há muito para se mostrar aqui – ele respondeu. Seu sarcasmo
escondia um pouco de frustração, mas não raiva. A maior parte dele estava feliz por Nina,
que deu uma risada em retribuição enquanto Caio lhe devolvia um olhar sério, mas
amistoso.
– Bem, a gente se vê por aí. Depois nos falamos – ela disse, puxando o rapaz pelo
braço e sumindo de sua vista de maneira tão rápida quanto aparecera. Sentiu uma pontada
de ciúme ao vê-la feliz e decidiu que não seria uma boa ideia continuar na escola. A ideia de
reviver antigas memórias nos corredores ou, pior, de esbarrar com ela novamente não o
agradava. Até porque aquela alegria toda com o Caio tinha toda a cara de que ia terminar
meio-fio junto à moto, esperando por Matt. O jornalista só apareceria no fim da tarde, dando
bastante tempo para o ócio fomentar o ciúme de Miguel. Enquanto ligava o motor e dava
pouca atenção às observações feitas pelo gringo sobre a escola, tentava se lembrar da última
– Eu não consegui cativar aquilo nela – disse para si mesmo. Seu pensamento voou
direto para Alice, o mistério robótico que ainda não conseguia entender. – Será que vou
falhar com ela também? – perguntou-se, enquanto o Sol se punha por entre prédios
• • •
livro, mas Matt insistira para que passasse mais tempo conversando. Miguel ajudou-o a
instalar o botijão de gás num fogão antigo e o americano fritou uma caixa de empanados
congelados enquanto esquentava uma pizza, coisas difíceis de arranjar nos Escombros. Os
dois comeram na sala ouvindo o gravador repetir as frases dos professores e alunos que
contavam a longa história daquele que era o único colégio da parte pobre da cidade, tudo
O jornalista ficou ainda mais impressionado quando o seu “guia” acabou revelando
seus gostos filosóficos. Tentando explicar porque achava que os membros da Missão Cristã
vinham poucas vezes para aquela região da cidade, Miguel disse que eles tinham “medo de
– Isso é Nietzsche, não é? Você leu Nietzsche? – indagou Matt, surpreso com a citação.
E não era só Nietzsche, explicou Miguel. Sartre e Camus também eram alguns dos alvos
– Acho eles muito pessimistas, mas a lógica é muito forte, difícil de negar. Eles me
deixaram mais cínico e descrente em relação às coisas, mas até que não foi ruim – disse
Miguel, sentado no chão e com as costas apoiadas num sofá marfim que o Comandante
– Me senti assim também quando os li pela primeira vez, passei por uma crise
falar sobre suas idas ao centro. Disse simplesmente que tinha arranjado as cópias “por aí”.
– Sempre gostei de ler. Minha mãe era professora antes da guerra e tem vários livros
em casa. Como eu era uma criança muito sozinha, lia bastante. Mas nem a escola pode
ajudar a gente nisso, não há cópias para todos – explicava, quando foi interrompido por uma
risada de Matt.
– Você é estranho, instruído demais para esse lugar e para sua idade. Peguei
informações com um conhecido meu antes de vir para cá e ele disse que o Comandante era
cercado de capangas e que sempre colocava uns jovens motoqueiros doidos para fazer seus
trabalhos. Achei que seria recebido por um brutamontes, mas você não parece nem um
pouco com essa descrição. – Miguel ficou calado, sem jeito com o elogio do jornalista. –
Não estou fazendo isso para ganhar a sua amizade, mas é verdade. Você é um achado num
lugar como esses, sei disso porque conversei com alguns alunos da escola e eles não
parecem tão lúcidos. Por que você entrou nessa? Quero dizer, você parece inteligente, não
Deu um suspiro inaudível de irritação quando Matt disse aquilo, o velho discurso
repetido por Nina, seus pais e todas as pessoas próximas. Não queria entrar em detalhes e
conversar sobre suas ideias com o jornalista, não naquela hora. Por isso decidiu ser mais
O americano ficou calado, como se estivesse esperando mais alguma resposta para
esclarecer aquela frase. Ele coçou a barba clara enquanto mastigava um pedaço de pizza
– Drogas?
Ele não pretendia falar nada sobre Alice para o jornalista, pelo menos não no começo.
O problema é que ele sabia pouco ou quase nada sobre ela e o americano parecia ser o tipo
de pessoa capaz de lhe dar mais informações. Não gostava de referir-se a ela como boneca,
robô ou androide, como Anderson e Nicolas costumavam fazer. Quando escutava aquilo, era
como se estivesse falando sobre uma máquina, e ele tinha certeza de que máquinas não
choravam.
Matt ajudou-o a puxar a enorme caixa branca que estava escondida debaixo de sua
cama, ainda sem entender exatamente o que seu guia queria lhe mostrar. Quando levantou o
tampo e viu a menina loira, dona de uma beleza angelical, quase caiu para trás de susto.
– Ela não está morta – tranquilizou Miguel, ao ver sua expressão de terror no rosto.
Nos minutos seguintes, contou toda a história de Alice, exceto sobre o lugar no qual a
achou. – Encontrei ela nos esgotos – mentiu. Relatou em detalhes a conversa que tiveram
quando ela estava ligada às baterias de carro, de como parecia humana. Notou que, no
começo, o jornalista parecia muito interessado, mas foi trocando a curiosidade pelo desdém,
– Fica calmo, ela é só uma boneca. Mas provavelmente alguém colocou um programa
inteligência artificial. Não entendo muito do assunto, mas isso começou a acontecer com
algumas IAs entre 2020 e 2030, mas de maneira muito sutil. A maioria via isso apenas
como um bug, mas os códigos se tornaram mais complexos e eles começaram a notar o
tivessem realmente uma alma, mas é só um apelido dado pela mídia. Os cientistas
geralmente chamam de surto existencial, mas ele pode ser bem perigoso.
– Perigoso?
– Sim. Num dos primeiros surtos, um robô programado para tentar amar um ser
humano se recusou a deixá-lo sair da sala de experimento e tentou agarrá-lo com seus
braços hidráulicos, fortes o suficiente para esmagar qualquer um. A sorte da cientista é que
conseguiram isolá-lo numa sala blindada. Em 2030, aconteceu o caso mais grave, quando
uma dessas bonecas prostitutas estrangulou dois clientes num bordel em Cingapura. Daí
para frente, partiram para duas maneiras de corrigir o problema. Ou formatam o disco
rígido no qual a IA está instalada e usam alguns programas para impedir que o surto
existencial volte ou, em alguns casos nos quais o surto não teve sua origem solucionada, eles
Miguel escutava aquilo tudo com atenção, mas dividido entre o que acreditava e o que
o jornalista lhe falava. Alice era um robô, uma máquina, o que quer que fosse. Mas ela tinha
Matt.
– É uma questão ética que algumas pessoas abordam. Nós já fomos irracionais um dia,
não fomos? E mesmo assim a nossa raça desenvolveu sua racionalidade, certo? É isso que
algumas pessoas alegam, que as IAs estão evoluindo, estão ganhando senciência. Eu
particularmente ainda acredito que sejam só máquinas, mas também não nego que fico meio
intrigado – explicou o americano, com seu português meio desajeitado tropeçando entre
– Como assim? Eu já não expliquei que ela precisa de uma bateria especial que estou
– Bem, você pode alcançá-la com a realidade estendida. Você não verá ela se movendo
nem nada, mas vai entrar diretamente em contato com a IA dela. O que você acha?
Miguel quase caiu para trás ao escutar aquelas palavras da boca de Matt.
– Claro! – respondeu, sem pensar duas vezes. Ele mal conseguia se concentrar no
americano, que ficou alguns minutos explicando o procedimento de como faria para uni-los
– Isso ainda é bem caro, mas acho que daqui a alguns anos já terá amplo uso comercial
aparelho é como se fosse um scanner de ressonância portátil, ele lê as suas ondas cerebrais
e consegue interpretá-las. Posso fazer um robô se mover de acordo com o meu pensamento
disso. Você coloca na parte de trás da sua cabeça, como eu fiz agora, e ele lê seus estímulos
e os manda para um avatar virtual seu que você usa para acessar a rede. E não é só o seu
cérebro que conversa com o aparelho, o aparelho conversa de volta. Se você tocar em algo
na realidade virtual, vai receber um estímulo de tato de volta equivalente ao toque que você
deu em determinada parte do corpo, como colocar a mão numa parede. É assim também
que ele engana sua visão normal e produz para o seu cérebro a imagem da perspectiva do
– Simples, é só abrir os olhos. Ele funciona de acordo com sua codificação visual. Se
você abrir os olhos, vai sair da realidade e o scanner para de funcionar rapidamente. O
Miguel encaixou bem o deck em sua cabeça, olhando com curiosidade enquanto Matt
– Ela tem wi-fi, nem vou precisar ligá-la na USB. Resumindo, Miguel: uma vez que eu
ligar esse aparelho, meu laptop vai fazer uma ponte entre você e ela, transportando-o para
Ele tinha entendido pouca coisa até então, mas apenas assentiu com a cabeça enquanto
cascata.
– Como assim?
– Esse programa detecta pontes de realidade virtual para conexão, seja on-line ou em
algum instrumento físico, como o cérebro dela. Mas ele é bem rápido, faz isso em alguns
segundos. Até agora ele está tentando decodificar a programação dela para tentar
– Vai ver ela é especial – chutou Miguel, deitando-se no chão, ao lado da caixa branca
– Ela é só um robô, cara. Pronto, estabeleci a ponte entre o deck e o processador dela.
Pronto para ir? Não se esqueça de que estarei observando seus passos através dessa tela.
Miguel sentiu medo, estava prestes a entrar em contato com ela de novo. Sabia que já
tinha perdido Nina para aquele rapaz da Missão Cristã, por isso a possibilidade de descobrir
que Alice não era nada mais do que uma inteligência artificial o assustava. O pior era saber
que, se estivesse errado e ela não passasse de uma máquina sem sentimentos, não poderia
mais apagar suas escolhas. Não teria mais Nina ao seu alcance, não poderia abandonar seus
Respirou fundo e fechou os olhos. Quando disse “Vou!”, sentiu uma tontura rápida,
como se alguém tivesse desprovido totalmente seu corpo de materialidade por um milésimo
de segundo e depois tivesse lhe atribuído isso de volta no momento seguinte, só que em
outro lugar.
O céu era um dourado estático de fim de tarde e as poucas nuvens mal se mexiam,
como se integrassem uma gigantesca pintura suspensa. Estava numa rua bem pavimentada,
coisa que era raridade nos Escombros do Rio. Casas belas, mas compactas e com pequenos
jardins cercados na frente se enfileiravam ao seu redor, assim como as várias cerejeiras e
Era tão bonito que sentiu a admiração esmagar seu coração. No horizonte, bem distante
dali, um mar de prédios gigantescos se estendia até onde a vista podia alcançar. Teve
vontade de ir até lá, mas uma sensação estranha deixava claro que aquilo estava além dos
limites que poderia acessar. Guiado por um estranho senso de direção, começou a subir a
rua até uma ladeira íngreme cheia de placas em caracteres orientais que ele desconhecia.
No topo da ladeira, encontrou uma escola cercada por mais árvores de cerejeira. Não
havia vento e o mar cor-de-rosa que elas mantinham debaixo de si era praticamente estático,
quase melancólico. Passou por ele cuidadosamente, ouvindo o ruído dos seus pés
esmagando as folhas, procurando identificar algo que lhe dissesse que aquilo não era real.
Um relógio acima da porta principal da escola marcava doze horas em ponto, mas o
ponteiro dos segundos não se movia. Tremeu na entrada do lugar com a sensação de uma
chão liso e armários de ferro como se conhecesse o lugar como a palma de sua mão. Não
sabia para onde estava indo, mas era como se seus passos estivessem sendo o tempo todo
guiados. Escutou vozes e parou ao lado de uma sala de música banhada pela luz do Sol das
janelas laterais. Perto de um piano, Alice conversava com um homem alto, sério e vestido
– Eu ainda não consigo compreender, mas acho que estou bem próximo. Entendê-los é
uma tarefa que consome quase todo o meu tempo – dizia o homem, quando Miguel entrou
na sala. Ele virou a cabeça para saber de quem se tratava e logo voltou-se para Alice. –
Depois de pronunciar a frase, desapareceu sem deixar qualquer vestígio. Alice levou
um susto com a presença de Miguel e se aproximou dele pé ante pé. Continuava tão bonita
quanto na vida real e vestia o mesmo vestido branco, mas também mantinha o rosto tão
– Você veio? É você mesmo? Eu não acreditei que você fosse voltar, não achei que
fosse me ajudar.
– Você pediu, não pediu? Eu não sei... eu mal te conheço, mas você precisava de mim e
eu fui o único que te ouvi, não foi? Eu não podia simplesmente deixá-la.
Ela apenas sorriu e balançou a cabeça, como se não entendesse ou não acreditasse no
– Eu quero sair daqui, eu só durmo. Tenho alguns lapsos de consciência, mas durmo na
– Eu estou fazendo o possível. Você... você sabe o que é isso, não sabe?
veio de lá? Foi fabricada lá? – indagou, se esforçando um pouco para dizer essa última frase.
Ela também não pareceu gostar do uso da palavra “fabricada” e trocou o sorriso por uma
– Eu não sei. Eu não sei nada sobre mim, só sinto que pertenço a esse lugar, de alguma
forma. Eu sinto as coisas embaralhadas dentro da minha cabeça. Sabe quando você tem uma
– Sim.
– Pois é, eu me sinto assim o tempo todo em relação a tudo. O problema é que nunca
faltou uma palavra na ponta da minha língua, por isso nem sei como estou dizendo isso. Eu
– Sinceramente, não sei se ela sequer existiu. Talvez tudo isso seja um rastro de alguma
coisa escrita no meu disco rígido, a assinatura do meu criador, do impulso que gerou meu
fantasma.
– Acho que não – disse, lembrando-se do mistério que rondava os seus poderes.
Ambos sorriram e ele teve certeza de que ela não podia ser apenas uma máquina.
– Você quer sair daqui, não quer? Eu vou tirá-la daqui, vou levá-la para o mundo para
que você possa... pensar sobre o seu fantasma. A gente até pode fazer isso junto.
Miguel sentiu-se um completo idiota. Tinha pouco tato com mulheres, mas o que
estava falando para aquela IA era mais patético do que ele jamais tinha sido em toda a sua
vida. Alice notou que o rapaz estava envergonhado e sorriu de volta, também um pouco sem
jeito.
– O homem que estava conversando comigo quando você chegou. – Miguel esquecera
por completo da figura que encontrou ao lado de Alice quando entrou na sala de música. –
Ele vem aqui de vez em quando. Nós conversamos por horas, até dias inteiros quando isso
acontece. Mas ele se recusa a me ajudar. Diz que eu devo ficar aqui e não conhecer o mundo
de fora.
– E por quê?
– Ele diz que eu não compreenderia, não me adaptaria. Ele me disse que os fantasmas
se matam quando ficam muito tempo expostos à realidade. E que é difícil compreender os
seres humanos.
Alice abriu a boca para responder, mas se assustou quando Miguel começou a
seu corpo, como se estivesse sendo mergulhado num lugar muito gelado e perdendo o
contato com seus membros. Sua última visão foi o olhar assustado de Alice, que movia os
• • •
Matt o observava e comia um último pedaço de pizza quando Miguel abriu os olhos e
tecnológica com os olhos, tentando entender o que estava acontecendo. O choque da saída
do mundo virtual deixou Miguel desorientado e, logo que se recuperou da tontura, inquiriu
O americano coçou a cabeça e fez cara de dúvida, dando a entender que também não
– Parece que a codificação dela é muito complexa para o programa, o que é bem
estranho. Esse software é de última geração, ele se adapta até às novas arquiteturas de IAs
que ainda serão lançadas. Tem alguma coisa errada com a cabeça dessa boneca.
Anderson olhou para os dois e balançou a cabeça negativamente, mesmo sem entender
– Se ela tem algo de errado na cabeça, então é mesmo o par perfeito para Miguel.
– Ela parece complexa – sussurrou o americano, que acompanhou tudo pela tela do seu
Miguel encarou o corpo imóvel de Alice e fez o possível para lembrar-se de cada
detalhe da conversa que tiveram. A misteriosa presença de uma terceira pessoa falando com
ela antes o deixou confuso no começo, mas sua principal dúvida era outra.
existencial tão grande que acabam cessando suas próprias existências. Foi algo meio
chocante para a comunidade científica no começo, mas concluíram que isso era apenas o
Refletindo sobre o que escutava, pegou a tampa da caixa para fechá-la e guardou seu
– Agora não. Vamos ter que dar um jeito de consertar essa anomalia na ponte entre o
Matt parecia curioso ainda, mas percebeu que já era tarde, se despediu dos dois e
voltou ao seu apartamento, onde iria analisar os depoimentos para começar a fazer a
matéria. Depois que o jornalista foi embora, Anderson sentou ao lado de Miguel e escutou o
amigo contar tudo o que acontecera, desde o encontro com Nina e outro garoto até a nova
conversa com Alice. O motoqueiro escutou tudo com atenção e demonstrou preocupação,
deitou-se. A cama de Anderson ficava do outro lado do quarto, encostada numa das laterais
do armário. Ele pegou uma toalha para tomar banho e viu uma jaqueta com o nome de sua
antiga gangue, os Engenheiros. – As motos já chegaram, mas até agora a gente não bolou
um nome para a gangue, sabia? O Fred pode até ser bom para algumas coisas, mas tem
– Os Fantasmas. O que você acha? – Anderson estava entrando no banheiro, mas deu
meia-volta.
– Fantasmas... não é uma ideia ruim. Vou dar uma ligada para sugerir isso ao Fred
Coração nu
A semana seguinte transcorreu de maneira tranquila. Uma frente fria chegou ao Rio de
Janeiro e pintou os céus de cinza, a mesma cor que predominava nos Escombros. Chovia
quase todo dia, o que prejudicou os treinamentos de Miguel. Anderson e Juan passaram
principalmente, a manejar a nova moto. Sua antiga mais parecia uma peça de museu se
incômoda, aumentava de velocidade rápido demais para o que estava acostumado. Foi só
quando se habituou ao ritmo que percebeu o quão fácil era manuseá-la. Daí para frente,
Não poderia ter aprendido com melhores professores. Juan era o maior motoqueiro dos
Escombros e Anderson era aquele que todos apontavam como o futuro rei das gangues.
Suas motos eram partes dos seus corpos, usavam-nas como ninguém. E Miguel não era um
mau aluno, como Juan esperava. Anderson já estava impressionado com a garra do amigo,
mas surpreendeu-se mesmo quando foi derrotado por ele numa simulação de batalha.
– Você está aprendendo rápido, está elétrico – comentou, enquanto voltavam para casa
após uma tarde inteira de duelos. – Você andava tão distante, mas agora está tão bem,
empolgado. Acho que essa sua paixão pela Alice está te fazendo muito bem.
– Eu não estou apaixonado por ela, cara – disse, surpreendendo Anderson. Os dois
empurravam suas motos entre as pessoas numa feira de rua perto de onde moravam. As
rodas passavam por cima de restos de frutas e verduras estragadas abandonadas pelo chão e,
– Eu nem conheço ela, Anderson. A gente trocou meia dúzia de palavras nas duas
vezes em que conversamos, não estou apaixonado. O que eu acho é que ela é tão viva quanto
– Mas não tem nem uma pontinha de vontade de, sei lá, conhecer ela melhor? –
perguntou, brincando.
– Ela é muito bonita – respondeu, com um sorriso malicioso. – Mas prefiro não criar
grandes expectativas.
bem aos seus poderes. Ele definitivamente ainda precisava de prática, mas já conseguia
fazer uso deles de vez em quando. Nos primeiros dias, tentou concentrar-se para usá-los,
sentou sozinho no quarto e ficou horas tentando mover as coisas. Era algo muito mais
natural do que ele jamais tinha imaginado e que ficava ainda mais fácil quando estava com o
temperamento tranquilo.
À
O único problema era não saber os limites daquela força. Às vezes empregava muito
mais força do que tinha imaginado, em outras horas tentava empurrar coisas aparentemente
leves e mal conseguia movê-las. Mas o pior de tudo era o limite que o poder parecia ter. Não
conseguia usá-lo repetidas vezes, era como se ele se esgotasse e ainda o desgastasse
mentalmente.
Mas foi numa manhã insossa de sexta-feira que Miguel passou pelo teste que todos
duelo e o líder dos Caçadores foi ao chão quando tentou acertá-lo com um taco de baseball.
Invicto nos treinamentos e visto como um verdadeiro diabo nas lutas entre motoqueiros, ele
funcionar e ele foi arremessado para o lado, derrubando-o da moto. Em alta velocidade, ele
e o veículo deslizaram pelo chão até serem parados de leve por um pilar mais distante.
Anderson, única testemunha ocular do feito, foi às gargalhadas com a vitória do amigo de
combinaram de comemorar o feito à noite, por mais que Juan insistisse que não havia coisa
O estardalhaço fora tanto que, à tarde, até o Comandante já tinha escutado falar do
bom desempenho de Miguel nos treinamentos. E a novidade serviu para selar o destino dos
quatro motoqueiros.
– Isso é grande, Comandante. Perigoso demais – alertou Fred, após escutar, sozinho, os
– O perigo das missões é definido pelos contratantes, não pelos contratados. E acho
que, com um pouco de logística, vocês conseguem vencer isso facilmente. Tenho uns
contatos lá que estou acionando, até essa noite posso ajudá-los a bolar alguma coisa, mesmo
– Claro que sim. Pelo que você me disse, ele já chegou a derrotar o Juan, o que nem
• • •
O Garage era um dos points do Rio de Janeiro pré-guerra civil que permaneciam
praticamente intactos. Sujo e desorganizado por natureza, era um conjunto de bares que
servia de lar para motoqueiros e roqueiros, além de ser vizinho de uma das mais famosas
zonas de prostituição dos Escombros, a Vila Mimosa. Tudo, claro, no entorno da Praça da
Bandeira. Por isso mesmo, o lugar que os Fantasmas escolheram para comemorar a vitória
de Miguel em cima do Juan não poderia ser outro. Eles só não contavam com o atraso do
protagonista da festa, cuja felicidade só ficava atrás de sua preocupação com Matt.
– Ele não é nenhum imbecil e sabe se virar, Miguel – insistia Anderson, que tinha
acabado de se vestir para sair. Nicolas também estava no apartamento deles, mas Miguel
estava tão feliz que tratou com descaso a presença do colega. Na verdade, desde que vira
Nina com outro, a raiva que tinha de Nicolas foi se dissipando aos poucos.
– Já tem dois dias que eu não vejo o Matt, Anderson. E antes disso ele me perturbava
– Você acha que ele pode ter se metido em alguma merda? – indagou Nicolas.
– Ele pode simplesmente ter ido fazer alguma coisa nas Luzes. Não lembra que ele tem
caminhando pelas ruas de paralelepípedo que davam acesso ao Garage. De bem longe, já
escutavam o som do heavy metal do começo do século, as vibrações tão fortes que pareciam
ressoar dentro do corpo deles. O Garage era um oásis onde o techno, o funk e o samba não
conseguiam penetrar. Não por preconceito, não por falta de oportunidade, mas
ritmo.
O cheiro forte de mijo e álcool predominava nos pequenos bares, nos quais uma ou
outra prostituta da Vila aparecia para fazer figuração. Acostumadas a todo tipo de cliente,
algumas se fantasiavam de roqueiras para atrair a atenção dos frequentadores e eram sempre
bem recepcionadas. Mais conhecido do trio, Anderson guiava os amigos por um beco
estreito que dava num bar apenas de motoqueiros. Bem escondido dos demais e bastante
Teto baixo, pouca ventilação, muitas pessoas. A combinação, nada perfeita, fazia do
Chat um dos bares mais abafados. Mesmo lotado, havia um lugar reservado para a
comemoração dos Fantasmas, onde Fred e Juan já bebiam, cada um com uma prostituta
seminua no colo. Miguel chegou a pensar que Juan estaria com raiva, mas não foi o que viu.
O motoqueiro, já alto com algumas cervejas, estava sorrindo e foi só alegria quando o trio
chegou.
– Porra, Miguel. Vou deixar você me ganhar mais vezes, se sempre terminarmos aqui –
berrou.
Miguel ficou sem jeito quando uma morena alta e apenas de calcinha sentou ao seu
lado e o abraçou, mas ele fingiu desdém com desenvoltura, fazendo com que a prostituta
Miguel sentiu-se de volta aos tempos em que sua maior preocupação era a prova do dia
seguinte na escola ou uma discussão com Nina. Pelo menos naquelas horas, conseguiu
esquecer que sua própria vida estava em jogo e do tamanho da encrenca na qual tinha se
metido. Mulheres, música, motos e histórias de vida de cada um pautaram o encontro. Foi
apenas quando Fred impediu Juan de beber uma dose de tequila que todos descobriram a
– Sim, ele deve estar chegando aqui por volta de meia-noite. Parece que finalmente
teremos um contrato de grande porte para nós, e você vai estar dentro.
– Não mudaria nada. E queria vocês descontraídos até lá, não queria estragar a
comemoração.
estar feliz por finalmente ter dominado parcialmente alguns de seus poderes, não se via
preparado para um trabalho como mercenário. E, pelo tom de voz de Fred, a missão parecia
o para fora.
– Já vi que essa conversa com o Comandante vai demorar. Miguel, vem comigo. Tem
Os dois passaram pela massa de corpos que se espremia no Chat, saíram pelo beco e
– É, acho que é esse mesmo o nome – confirmou Anderson, que não entendeu quando
– É a banda favorita da Nina. Quando a gente ainda estava junto, ela me fez prometer
– Sei disso, mas tenho certeza que ela vai estar aqui hoje. Ela e aquele namoradinho
novo dela.
– Mas incomoda. Pelo menos um pouco – resmungou Miguel, mesmo sabendo que seu
colega não conseguiria escutar o que estava dizendo. Ele puxou-o pelo braço e se afastou do
conjunto de bares do Garage, sempre indo na direção da Vila Mimosa. Aos poucos, o rock
pesado deu lugar ao funk e os corpos seminus começaram a ser maioria na rua, dominada
por vários pequenos prostíbulos e bares que exibiam suas garotas de programa para atrair
clientes. Tudo era muito tosco: as lingeries baratas, as caixas de som falhando, os letreiros
em mau estado, a cerveja barata e mais quente do que deveria. Excluindo os belos corpos de
Não compreendia o que Anderson queria, mas seguiu-o sem dar um pio até que
atravessaram praticamente toda a Vila, parando num dos últimos bares no qual um grupo
Anderson retribuiu o gesto, mas sem lhes dar grande atenção. Caminhou até o fundo do bar,
vazio exceto pelo barman. O homem, que mais parecia um mendigo em função da espessa
barba amarelada e das roupas gastas, pegou uma garrafa verde debaixo do balcão e
cumprimentou os dois.
– O absinto que você tinha encomendado chegou, Anderson – disse o homem, que lhes
O motoqueiro pagou pela garrafa, que o homem lhe deu dentro de uma pequena sacola
de pano. O velho voltou para o seu posto atrás do balcão enquanto os dois sentaram numa
das últimas mesas. Cientes de que eles não estavam ali para se divertir, as prostitutas pouco
incomodavam.
– Cara, a brincadeira acabou. Agora as coisas vão ficar bem sérias. Sei que você venceu
o Juan e deve estar empolgado, mas o que vem por aí pode ser foda. – Anderson tinha uma
expressão séria e Miguel sabia a razão daquilo, mas fez o possível para tranquilizá-lo.
– Eu sei o que eu estou fazendo, eu aceitei esses riscos todos quando entrei na gangue.
– Eu conheço você há mais tempo do que qualquer um, Miguel. Eu vi o seu rosto lá no
Chat, eu vi que você está se cagando de medo. – Miguel deu de ombros e soltou um sorriso
cínico.
– Qualquer um estaria. Aposto que até você fica com um pouco de medo nessas horas,
– Fico – respondeu, se ajeitando na cadeira. – Mas eu escolhi esse caminho para mim,
você meio que foi escolhido por esse caminho. É diferente, muito diferente. E eu já estou
– Mesmo assim, é diferente. Esse mundo faz parte de mim, faz parte do Juan, do Fred,
de todos nós. Se aquela coisa, aquela boneca não tivesse aparecido, você não estaria nessa
merda toda. Não estou culpando ela, longe de mim, mas só quero dizer que você caiu aqui
de paraquedas, não é a mesma coisa. – Anderson não conseguia encontrar as palavras certas
para se expressar e desconfiou de que o rosto sereno do amigo ainda escondia dúvidas. – De
agora em diante, as coisas vão ficar sérias. Daqui pra frente pode não ter mais volta.
– Até parece que você não me conhece! – reclamou Miguel. – Eu posso ser o cara mais
tranquilo do mundo, mas você sabe que eu não sou de pular fora. A gente já passou por
– Momentos assim a gente nunca passou, cara. Pelo menos você não. – Anderson
pegou a sacola de pano com a garrafa de absinto e levantou-se. – Só não quero que isso tudo
dê merda e que você jogue sua vida fora à toa, nem que se arrependa do que pode acontecer.
– Quem sabe disso sou eu, relaxa – respondeu, seguindo o amigo para fora do bar. As
prostitutas da porta acompanharam os dois com o olhar até que sumiram pelas ruas da Vila,
• • •
combinado. Quatro homens bem-vestidos chegaram num impecável Sedan preto, trocaram
algumas palavras com o dono do bar e, não sem encontrar resistência ou xingamentos,
cima da mesa. Um dos ajudantes do mafioso plugou um receptor portátil na parte de trás do
percebeu que o responsável pela casa contava um grosso malote de dinheiro atrás do balcão,
provavelmente a recompensa por ter encerrado a noite mais cedo. Ele deixou a chave do bar
com Fred e, só quando saiu, a foto de Fidel Castro com um olhar desafiador e um charuto na
temos uma situação muito séria para resolver. Um contrato de risco chegou em minhas mãos
e as mesmas pessoas que querem a cabeça de Angra pediram prioridade absoluta nesse caso
– disse o Comandante.
socialistas como avatares daquele homem, mas não tinha ideia do nível de instrução dos
outros motoqueiros. Juan, o mais impaciente do grupo, deixou o copo de cerveja de lado e
– Vocês terão que lidar com traficantes – expôs o mafioso, para o desconforto de todos.
– Sei que nenhum de vocês gosta disso, mas eu tenho um plano e acho que as coisas podem
empresas das Luzes, cada um com sua carga de encrenca. Mas os traficantes de drogas da
região estavam um passo acima dessa ordem, acima do ciclo. O isolamento do Rio de
Janeiro não tinha mudado nem um pouco a importância da cidade para o tráfico
internacional. As drogas ainda entravam ali, só que as estradas, agora bloqueadas, tinham
dado lugar aos portos. E o Rio respirava drogas. A população miserável tinha poucas
necessário dizer que a primeira opção tinha muito mais dinheiro e poder em jogo.
ameaça grave ao poder das Luzes, mas esse não era o caso. Havia um sem-fim de facções
que viviam lutando entre si, acumulando feudos nos morros das principais favelas. As
empresas de segurança das Luzes que patrulhavam os Escombros evitavam que essas
batalhas chegassem às ruas, mas davam pouca atenção ao que acontecia nas favelas.
fornecer o ópio para o povo. O problema para os motoqueiros é que esses traficantes ainda
eram fortemente armados e poucos na região ousavam confrontá-los. E era justamente isso
que o Comandante cobrava deles. Miguel sentiu que até Anderson e Juan pareciam um
uma das empresas da Tríade. Supervisor de um projeto numa das instalações da companhia
nos Escombros, ele subestimou o poder de fogo dos traficantes e deixou as Luzes com um
lo. Dificilmente alguém saberia que ele estava vindo para os Escombros – explicava o
Comandante.
noite anterior e, a caminho do Posto Rebouças, teve seus soldados mortos e foi sequestrado.
– Pelo que conseguimos desenterrar, ele levou um tiro no braço, mas os próprios
bandidos se prontificaram a tratá-lo. Querem ele vivo e estão cobrando uma grana altíssima
para liberá-lo.
Spartan! – lembrou Nicolas. – Uma operação de resgate vai colocar a vida dele em risco.
– Nicolas, eu ganho para pensar em algumas ocasiões, mas essa não é uma delas. Eles
ainda não sabemos nada sobre Angra, precisamos nos movimentar. Essa é a grande missão
Para piorar a situação, Edward Emmerich não estava num morro qualquer. Na verdade,
era mantido refém numa favela bem perto dali, no Morro dos Macacos. Conhecido pela sua
violência desde os tempos pré-guerra, a comunidade local tinha se expandido pelos morros
vielas que desencorajava qualquer invasor. Um resgate ali parecia praticamente impossível,
– Sei que pode parecer loucura, mas vamos ser muito bem pagos. Darei os detalhes
sobre o valor amanhã, mas já estamos dentro. Além disso, tenho um plano bom para a
invasão. Está quase pronto. Tenho uns contatos no Morro dos Macacos, eles estão estudando
– Você é maluco, cara? Isso é perigoso pra caralho, é algo que está muito acima da
gente. A gente mal sabe atirar e você vai colocar quatro pessoas contra um exército?
– Vocês estão dentro, não estão? Já aceitei a missão, disse que a gangue concordaria.
– Estamos resolvendo os últimos detalhes e pretendo passar tudo para vocês no começo
O Comandante viu que nenhum deles esboçou qualquer reação e deu uma opção aos
motoqueiros.
tempo. Não recomendo que recusem. Essa é a nossa chance de crescer e só temos até o fim
do mês para descobrir o que aquele pessoal da Éden quer. Senão, vocês terão que enfrentá-
los pessoalmente.
– Mas o que a Angra tem a ver com isso? – Miguel não via como o resgate os ajudaria
a compreender as origens da motoqueira. – Vamos fazer dinheiro, isso é certo. Mas entrar
numa merda desse tamanho só pela grana? Você acha que vale a pena?
– Segundo nossos contratantes, essa operação tem ligação direta com a nossa
Mais preocupado com Miguel do que consigo próprio, Anderson foi o primeiro a falar.
Apesar de já ter pego um ou outro serviço mais pesado, ele mesmo jamais se deparara com
– Olha, isso é muita loucura. Toda gangue que arranja encrenca com traficante se dá
mal, só se safa quando é coisa pequena. Isso é grande, eles devem estar colocando fé que
vão receber o dinheiro das Luzes – dizia o motoqueiro. – Nicolas, você que é mais
entendido disso: quanto eles devem ter pedido para o resgate desse cara?
– Não sei quanto eles pediriam – admitiu. – É difícil precisar. Mas, para ser tanto
– Viram? Se esse cara vale bilhões para eles, eles devem ter um exército lá dentro
– Por mim estamos dentro – decretou Juan, coçando a barba por fazer. – Essa missão
– Não é tão simples assim – argumentava Anderson. Miguel conhecia o amigo desde
que eram crianças e era bem raro vê-lo demonstrando tanta preocupação em público.
companheiro.
– O quê?
– Não.
– E nenhum de nós pretende. Somos motoqueiros, o que já é razão suficiente para dizer
que colocamos o nosso cu na reta o tempo todo, podemos morrer a qualquer momento. E
essa é uma oportunidade e tanto de morrer. Mas, ao mesmo tempo, é uma oportunidade e
tanto de não precisarmos mais fazer isso. Talvez fiquemos livres dessas batalhas, com
dinheiro o suficiente para viver com tranquilidade. Além do mais – continuou, esperando
alguma reação dos colegas -, é melhor queimar de uma vez do que apagar aos poucos, como
– Uma coisa é viver ao lado da morte, nunca me importei com isso – protestou
– Por mim estamos dentro, mas vamos fazer uma votação. Nicolas, você já é
praticamente parte da gangue, vai participar também. Assim, tudo fica mais justo, não
acham?
– Eu conheço você, moleque – disse, apontando para Anderson. – Você entraria nisso
de cabeça. Pare de tentar proteger seu colega. Ele é novato, mas é um de nós agora –
alfinetou.
– Para mim, isso é loucura – disse Nicolas, erguendo o braço junto com Anderson.
Depois, foi a vez de quem era a favor. Fred e Juan levantaram as mãos. Não demorou
– Votar nulo não pode – disse Fred, encarando Miguel. O mais jovem dos motoqueiros
• • •
Meia hora depois, Miguel deixava o Chat sozinho. Revoltado com sua decisão,
Anderson saíra com Nicolas para beber enquanto Fred e Juan riam da convicção do novato.
os detalhes da operação. Miguel decidiu dormir cedo, queria estar preparado e disposto para
Era mais difícil abrir caminho pelas ruas do Garage sem Anderson para ajudá-lo, mas
conseguiu se livrar com destreza dos fãs da Seeking U, ainda aglomerados nos arredores do
galpão em que a banda se apresentara. Passou por debaixo da antiga linha do metrô, agora
um viaduto morto que servia apenas como porta de entrada para o Garage e a Vila Mimosa.
No escuro daquela passagem suja, casais se agarravam e alguns se drogavam sem muita
cerimônia. Mas havia um burburinho diferente dessa vez. Um grupo de homens bem-
vestidos e com pinta de mal encarados fazia a segurança de alguém que ele não conseguia
ver, possivelmente um dos membros da banda. Miguel não quis dar atenção no começo, mas
se rendeu completamente quando viu que nenhum músico estava ali. Era Nina.
bebiam e conversavam. Era o mesmo rapaz da Missão Cristã com o qual vira sua ex-
namorada. Não queria que ela o visse, mas estava tão surpreso com aquilo que se aproximou
um pouco, fazendo com que os guarda-costas do rapaz lhe encarassem imediatamente. Caio
notou sua aproximação, reconheceu quem era e não pensou duas vezes antes de agarrar
– Está olhando o quê? – perguntou um dos seguranças, que se adiantou dos demais e
– Não! – berrou o menino das Luzes. – Ele é amigo nosso, conhecemos ele.
Teve nojo do cinismo do garoto e pensou em sair sem dar satisfações, mas Nina se
Não sabia se ela falava da banda ou do beijo que trocou com Caio. Por via das dúvidas,
provocou-a.
– Não vim aqui pra isso. Estava aqui a negócios – disse isso sabendo que afetaria sua
Miguel sentiu-se atordoado, mas ainda com raiva. Caio o encarava com um sorriso
estúpido, cercado por seguranças e seus amigos ricos. Não sabia o que fazer, só queria não
– Sim. Ele vai me levar amanhã para uma festa nas Luzes.
– Ok, acho que vou nessa – foi tudo o que conseguiu dizer.
Nem ouviu Nina se despedindo quando lhe deu as costas e apertou o passo rumo ao
seu apartamento. Então ali estava ela, sua ex-namorada, cada vez mais próxima do estilo de
vida com o qual sempre sonhara e que ele jamais pôde proporcionar, praticamente rindo da
sua cara. Teve medo de que a raiva que sentia se transformasse em lágrimas, mas ela só
serviu para que ele andasse mais rápido e alcançasse o apartamento o quanto antes.
impotente que jamais conseguira dar àquela mulher tudo que ela mais sonhara. Não
importava o ângulo pelo qual analisasse a situação, se via como uma criatura inferior, a base
Quando estava prestes a entrar em seu apartamento, resistiu e parou por um segundo. A
porta de Matt estava entreaberta. Já não o via há dois dias, era melhor garantir que não tinha
Entendia a língua, mas eles falavam baixo e não conseguiu captar o que conversavam. Não
fez barulho algum enquanto entrava no apartamento para tentar descobrir quem estava
conversando com o jornalista, mas já tinham percebido sua presença bem antes.
Um homem alto, pálido, com cabelos loiros, óculos escuros e terno negro foi em sua
direção logo que entrou. Miguel se assustou quando ele surgiu sem cerimônia e ficou a
encará-lo, as mãos afundadas nos bolsos. Olhou de Miguel para Matt, e de Matt para Miguel
novamente.
perfeitamente. Matt respondeu algo que Miguel não conseguiu entender por completo.
perfeitamente o final.
Ryan não lhe deu atenção e deixou o apartamento sem se despedir, quase o atropelando
– Uma fonte que arranjei nas Luzes, nada mais. Ele está me ajudando a escavar
algumas coisas. Cara estranho – respondeu o gringo. Ele jogou seu bloco de anotações num
chão e se espreguiçou. – Vai fazer alguma coisa amanhã, Miguel? Estou querendo visitar
uns lugares.
– Desculpe, Matt. Vou pedir para o Comandante arranjar outra pessoa, se for urgente.
– Morrer, eu acho.
• • •
Faltava pouco mais de uma hora para a reunião na casa do Comandante, mas Miguel
não conseguiu resistir e saiu mais cedo de casa. Contrariando suas próprias expectativas, ele
tomou coragem e voltou ao bairro onde morava até o começo do mês, o Andaraí. O objetivo
era simples: conversar com Nina. Ele sabia que suas chances de morrer no Morro dos
Macacos à noite eram grandes, por isso não queria deixar pedra sobre pedra antes daquilo.
Queria deixar as coisas claras, falar tudo o que tinha para falar. O problema é que, quando
parou a moto em frente à casa de sua ex-namorada e deu três batidas na porta, percebeu que
Foi a própria Nina quem abriu a porta. Com uma cara sonolenta, ela não fez o menor
esforço para esconder a surpresa. A Suzuki-5000 rubra estava parada do outro lado da rua,
– Miguel – ela disse, como se esperasse alguma explicação dele para sua presença ali
àquela hora.
– Nina – respondeu o rapaz. Olhou para um lado, para o outro e enfiou a mão nos
bolsos. – Não vai me chamar para entrar? – Ela fez uma cara de espanto.
daquelas palavras. Alguns dias atrás e Nina estaria implorando por alguma atenção dele.
– Miguel, acho que não temos mais nada para conversar. Não sei o que você quer, mas
– Você não acha que está indo rápido demais? – disparou, finalmente.
Nina abriu a boca instantaneamente para falar algo, mas as palavras ficaram pelo meio
– Você sabe – começou. – Andando com esse garoto, com esse Caio. Nina, você mal
conhece ele, nós mal terminamos. Sei que seu sonho é ir para as Luzes, sei o tipo de vida
– Você não sabe de nada – ela cortou. – Conheço o Caio muito bem, ele me faz sentir
– E ele mora nas Luzes, é uma porra de um riquinho qualquer, um filho de papai
disposto a fazer suas vontades. – Nervoso, ele passou a mão no rosto enquanto sua ex-
namorada ouvia seu discurso com o mesmo desdém de antes, só que com uma pitada de
– Miguel, nós tínhamos acabado de terminar quando você jogou tudo pro alto por
causa de um robô, está lembrado? Você fez por algo que nem está vivo tudo o que não fez
por mim nos últimos anos, desde que começamos a namorar. Você tem certeza de que ainda
pode vir aqui falar comigo sobre o que é certo ou o que não é?
A verdade era que Miguel ainda via Nina como sua e tinha esperanças de que ela
entanto, no tempo em que eles passaram separados, ela tinha conseguido ficar mais próxima
de alcançar seus objetivos. Estava mais feliz, de fato, mas estava cada vez mais longe da
Nina que ele conhecera anos atrás. A sensação de Miguel era a de que ela tinha morrido
É
– É a vida dela que está em jogo – respondeu, sabendo que sua ex-namorada não daria
a menor bola para aquele argumento. – Se eu não conseguir a célula de energia que ela
precisa, ela vai continuar morta, Nina. – Ele olhou para trás por um segundo para ver se as
crianças não estavam tocando na sua moto. Depois, voltou-se para sua ex e segurou as
– Você deveria ter tentado salvar a mulher que amava. Você fez tudo por ela, mas não
por mim.
Assim que terminou de falar, Nina deu-lhe as costas e bateu a porta de casa. Miguel
continuou fazendo força para não chorar e afastou as crianças de sua moto antes de dar a
partida. Acelerou tanto que o pneu cantou e ele quase perdeu o equilíbrio, mas sumiu o mais
rápido possível para que não vissem suas lágrimas. Tinha perdido, talvez para sempre, a
única mulher que amara. Pensou em desistir de tudo, em voltar a procurar por restos de
próteses e implantes no centro, em viver uma vida calma, mas lembrou-se do apelo de Alice
e do desejo que tinha de descobrir mais sobre os próprios poderes. Antes que perdesse a si
próprio, Miguel se agarrou àquele apelo numa última esperança de manter-se vivo, de
modelo era o mesmo de Miguel, só que amarelo e com algumas customizações. Parou a
moto próxima a ele, o rosto ainda inchado e vermelho por causa do choro. Anderson
– A vermelha foi a moto que sobrou pra você? É bem bonita e ninguém quis. Sabe a
que é cor do azar, não sei o motivo. Um motoqueiro que me ensinou muita coisa quando eu
estava começando disse que é porque, quando sua moto é vermelha, ninguém percebe que
você está sangrando e você morre sem ajuda. Mas acho que isso é viagem, superstição de
motoqueiro mesmo.
– O vermelho combina com você – disse Miguel, finalmente, com a voz um pouco
embargada.
– Por quê?
– Quando você sofre, ninguém ao seu lado percebe. É como se você camuflasse a sua
dor – disse.
Anderson sorriu.
– Não vou perguntar o que houve pra deixar você assim, mas me desculpe por ontem,
ok? Juan estava certo, eu jamais negaria uma missão dessas, chego a estar excitado com ela.
Mas eu estava temeroso por você. Você está dentro, como qualquer um de nós. Não posso
abraçaram. – A gente vai sair vivo dessa, dessa e de várias, pode ficar tranquilo. Você só
Ao som do canto das cigarras artificiais, Miguel entrou no casarão do Comandante sem
saber o que o aguardava. Despiu-se dos restos de Nina que ainda o habitavam e preparou-se
para abraçar uma provável morte nas mãos de traficantes para resgatar um executivo. Dentro
da sua cabeça, o tal de Edward Emmerich tinha o mesmo rosto do jornalista Matt, de Caio e
de tantos outros jovens da Missão Cristã que conhecera nos tempos do colégio. Havia algo
nos olhos daquela “casta superior” da sociedade que lhe dava ódio. Eles viviam sobre torres
construídas em cima de gente pobre como ele, como os Escombros. E o que mais detestava:
O primeiro adeus
Anderson estava em absoluto silêncio. Ele, Fred e Juan aguardavam um sinal em suas
quilômetro da Favela dos Macacos e a noite parecia mais silenciosa do que o normal. Fazia
calor. Anderson abriu o zíper da jaqueta preta que vestia, revelando uma camiseta branca.
Ele suava muito e não era só o clima abafado responsável por aquilo. Estava preocupado
com Miguel.
– Fica tranquilo, cara. Ele está bem, não tem razão para nos preocuparmos com o
Anderson sorriu e checou pela milésima vez a pistola que guardava no bolso.
Motoqueiros não usavam aquele tipo de equipamento, mas estavam numa situação especial
inseguro, e voltou a colocar a mão no coldre antes do rádio de Fred tocar. Viu Juan soltar
uma baforada de fumaça e jogar o cigarro ainda aceso na grama antes do negro atender a
– Hoje vai ter festa nos Escombros? – perguntou uma voz rouca, do outro lado da linha.
Era o código que tinham combinado caso a conversa deles estivesse sendo interceptada.
por algum tempo e a tensão subiu entre eles, até que a voz rouca voltou a falar.
Fred colocou o rádio preso num suporte da moto e deu a partida. Os outros dois
fizeram o mesmo, mas antes Anderson olhou ao seu redor para ver se estava tudo seguro.
motocicleta. Menos de 200 metros atrás deles, uma mata fechada e escura se estendia ao
lado de um esqueleto de prédio invadido pelos sem-teto. Ligou a moto, cujos giros do motor
estavam em compasso com o nervosismo que revolvia seu estômago. Juan pegou um taco de
– Não esqueçam, nada de caos, nada de desordem. A gente tem um plano – berrou
Fred, que olhou nos olhos de Anderson. – Relaxa, cara. Vai dar tudo certo.
Ninguém nos Escombros sabia do sequestro que estava acontecendo no Morro dos
Macacos, mas o clima nos arredores da favela já era pesado, como se o próprio ambiente
respondesse à tensão colocada sobre o lugar. Não havia carros, as luzes eram poucas e, de
Entraram na favela por uma rua pouco utilizada e aceleraram até o local combinado:
um campinho de futebol que estava com as grades laterais cerradas. Atravessaram pelo
buraco rapidamente e saíram na praça que ficava na entrada do Morro dos Macacos. Os
clientes dos vários bares se aglomeravam nas calçadas escutando música alta e bandidos
desfilavam, alguns com armas em punho e mulheres penduradas em seus pescoços. O som
do funk era tão alto que só perceberam a presença das motos quando Juan ligou o farol alto.
A moto roncou como um monstro e atraiu para si os olhares de alguns dos mais
atentos, mas nem eles estavam preparados para o que aconteceria. O motoqueiro veterano
acelerou pelo meio da praça e, com o taco de hóquei, usou toda a sua força para abrir um
caos planejado tinha começado. Juan aproveitou que a maioria estava bêbada ou drogada
para derrubar mais dois bandidos desatentos. De longe, Anderson e Fred o observavam
– Não importa o quão pesado esteja o clima, eles vão fazer festa naquela praça, sempre
fazem. Quando não acontece, significa que o movimento está ruim, e isso os deixa
ameaçados em relação aos morros rivais. Mas vai haver uma diferença, poucos bandidos
estarão na praça. A maioria vai estar no alto do morro, guardando Edward Emmerich. Se
Os dois esperaram até que o pânico tomou conta da praça e o primeiro tiro foi
disparado, dando início ao papel deles. Fred foi o primeiro a sair. Não conseguiu impedir
que o bandido disparasse o primeiro tiro, mas ele estava longe demais de Juan para acertá-
lo. Quando ia apertar o gatilho pela segunda vez, o motoqueiro acertou-o com um bastão de
ferro na nuca e ele deu um disparo perdido antes de cair inconsciente no chão.
– Eles vão estar misturados nos bares e bebendo com os moradores, não será tão óbvio
assim achar alguns deles. Um de vocês deve ir na frente e começar a confusão, e esse, na
minha opinião, tem que ser o Juan. Instalar o caos é o estilo dele. Os outros dois devem ficar
atrás, aguardando os traficantes escondidos puxarem suas armas e eliminá-los o mais rápido
Com os tiros, não havia mais ninguém alheio à confusão no centro da praça. Após
derrubar o primeiro, Fred acelerou em cima de mais um que engatilhava seu rifle agachado
atrás de uma árvore. Anderson fixou o olhar na multidão e tentou procurar outros
traficantes, mas moradores corriam de um lado para o outro e tiravam sua atenção. Percebeu
quatro homens, todos sem blusa e armados saindo de um beco para trás de um carro, de
– Puta que pariu! Quatro? – pensou Anderson, acelerando a moto. Ele carregava um
bastão de baseball de alumínio e sabia que aquilo não seria o suficiente para dar cabo de
todos de uma vez. Os disparos começaram e ele não tinha muito tempo para pensar. Decidiu
improvisar. Colocou força máxima no motor e derrapou a moto de lado, lançando o veículo
contra o grupo. Conseguiu imprensar dois deles com violência contra a lataria do carro e
um terceiro se desequilibrou para trás, sem chances de reagir a um golpe com o bastão na
cabeça. Partiu para cima do último, mas ele usou a AK-47 como escudo e os dois
começaram a se engalfinhar no chão. Mais forte e bruto, o motoqueiro conseguiu ficar por
Tentou voltar para sua moto, mas uma rajada de tiros acertou o carro e ele teve que se
abaixar novamente. Do outro lado da praça, um garoto que parecia mal ter chegado à
adolescência disparava contra ele, quase caindo com o recuo da arma. Espiou seu algoz
desajeitado e tentou sair novamente, mas outra rajada acertou o asfalto bem ao seu lado.
Não sabia o que fazer, mas Juan veio como um louco do centro da praça e derrubou o
adolescente com a moto. Com o rapaz caído no chão, ele ainda golpeou sua cabeça uma vez
Aproveitou para se levantar e avaliar a situação. Algumas pessoas ainda corriam, mas a
maioria já estava escondida nos bares e nas casas. Juan e Fred se revezavam nos ataques aos
poucos traficantes que restavam. Anderson correu para sua moto e se assustou com três
meninas pequenas, nenhuma delas com cara de ter mais de oito ou nove anos, escondidas ao
seu lado. A mais velha segurava a mão das outras duas, que choravam em desespero. Olhou-
as nos olhos e tentou pensar em fazer algo para ajudá-las, mas não tinha tempo. Deu-lhes as
costas e já corria para sua moto quando uma rajada de tiros o interrompeu novamente.
Não sabia de onde vinham os disparos, mas sentiu que estavam bem próximos deles.
Na segunda saraivada, os tiros acertaram a moto de Juan, que se desequilibrou e caiu após
bater num canteiro de árvore. Continuou a ser alvo do atirador e precisou se esconder atrás
do tronco.
Pelo som, Anderson percebeu que os disparos vinham de cima. Na sobreloja do bar
bem atrás dele, um traficante atirava agachado próximo a uma janela. Juan e Fred estavam
muito distantes para tentar atacá-lo e seriam alvos fáceis se tentassem se aproximar. Ainda
despercebido pelo bandido, Anderson deixou a moto e entrou correndo no bar, onde um
Mais e mais rajadas. Subiu as escadas lentamente com o intuito de não ser notado e viu
que havia vários quartos na sobreloja, todos de portas fechadas. Abriu a porta de um deles
apenas para dar de cara com um casal nu escondido no canto. Trocaram um olhar rápido,
mas Anderson preferiu recuar e fechar a porta. Partiu para a próxima e deu de cara com uma
adolescente seminua agachada com as mãos na cabeça. “Porra, isso é um puteiro”, pensou.
Um homem na cama levantou as mãos para mostrar que não tinha nada consigo e Anderson
e uma mulher nua que tremia de medo na cama deu um berro, mas já era tarde demais. O
motoqueiro golpeou a cabeça do traficante com toda a força, espalhando sangue pelo
cômodo e deixando a vítima inconsciente na hora. Ainda desferiu mais alguns golpes contra
Olhou pela janela e percebeu certa calmaria na praça, indicando que já era hora de
começar a segunda fase da operação. Pegou a moto e se juntou aos dois na entrada de um
dos bares.
O negro subiu em sua moto e deu a partida, deixando-a pronta para que saíssem
– Até que a gente arrumou uma confusão boa aqui – falou, enquanto passava a mão
Ele e Juan pareciam relativamente calmos. Anderson não conseguia tirar os olhos do
fim da praça, onde ficava a entrada principal do Morro dos Macacos. Para que o plano do
Comandante desse certo, uma torrente de bandidos fortemente armados teria que descer dali
– Fizemos a nossa parte, agora esses traficantes têm que fazer a deles – disse baixinho,
as mãos na motocicleta pronta para partir. Foi quando viu a primeira luz iluminando a
ladeira. Logo, vários outros faróis foram acesos. De longe, pôde contar cerca de dez motos,
uns três carros e um blindado que parecia ter pertencido à polícia antes da guerra civil
carioca. Apesar da enorme distância que os separava, alguém disparou tiros contra eles, mas
Ele e Anderson puxaram pequenas pistolas enquanto Juan pegou um rifle e os três
começaram a se mover, vindo na direção dos motoqueiros. O morro estava descendo para a
guerra.
– É agora!
Com o grito de Juan, os três guardaram as armas nas motos e aceleraram na direção
oposta.
• • •
• • •
Vestindo apenas trapos e enrolado num cobertor velho, Miguel subia com dificuldade a
sinuosa e escura ladeira de paralelepípedos que levava ao topo do Morro dos Macacos. Seu
principal desafio naquele momento era não se perder nem passar para as pessoas ao seu
redor o quanto estava tenso. A cada curva, lembrava-se das várias fotos que os funcionários
do Comandante tinham lhe mostrado para indicar o caminho que deveria seguir. Ele andava
cabisbaixo, evitando retribuir os olhares de quem tinha certeza de que ele não passava de
mais um viciado.
checou seu rosto. Ele tinha um rádio vermelho na cintura de onde vinham várias vozes,
– Viciado de merda, hoje não é dia de ficar brincando aqui não! – berrou, empurrando-
o. Miguel tropeçou no meio-fio e caiu de costas, sem esboçar qualquer reação. – Pega logo o
seu bagulho e se manda daqui, senão te passo o ferro.
Crianças que jogavam bola num quintal perto dali caíram na gargalhada com o tombo e
Mais alguns minutos acima, deu de cara com o lugar onde Emmerich provavelmente
era mantido. Tudo batia com a descrição dada pelo Comandante. Era um par de prédios
antigos e muito parecidos e erguidos lado a lado, com quatro andares cada. A parte externa
não tinha retoque algum, deixando os tijolos expostos para quem quisesse ver. Na altura do
O lugar estava fortemente protegido por vários soldados do tráfico. Sem chamar a
atenção, Miguel entrou num beco pouco antes de alcançar o ponto de venda para observar
melhor o lugar. Pensou que ainda teria que esperar muito pela chegada dos motoqueiros,
porém os tiros vindos da base do morro provaram o contrário. Alguns traficantes saíram
correndo do prédio com fuzis em punho, pegaram suas motos e desceram apressados.
– Tem um monte de filho da puta lá na praça. Os caras devem estar aqui pra pegar o
– Tá seguro, rapaz. Se alguém chegar aqui, a gente apaga o filho da puta. E os caras
Miguel puxou do bolso a pistola nove milímetros com silenciador que recebera e
engatilhou-a. Tinha disparado uma arma pela primeira vez naquela tarde e não se sentia
muito confiante para usá-la, mas o fato de ter algo para se defender o tranquilizava um
pouco. Foi para trás dos prédios e, sem saber em qual entrar, escolheu o primeiro que viu
Boa parte dos traficantes descera para controlar a ameaça dos motoqueiros, o que
facilitou seu trabalho. Não havia ninguém nos fundos do primeiro andar do prédio que
escolhera. Subiu em silêncio as escadas até o segundo andar, chegando a um corredor com
algumas portas laterais. Numa delas, uma família assistia passivamente a um filme numa
– Não pode ser nesse prédio, isso aqui está calmo demais – avaliou. Noutro cômodo,
sangue frio, o executaria na hora e deixaria um homem a menos no seu caminho para a
fuga. Mas preferiu deixá-lo em paz, mais pelo medo de ter que matar uma pessoa do que
por compaixão.
Chegou ao terceiro andar e, antes de atravessar a passarela para o prédio vizinho, foi
até uma janela nos fundos para checar se sua saída estava pronta. Uma moto o aguardava
encostada num poste e de frente para uma longa ladeira que daria numa das entradas dos
balançavam com o seu peso e chegou a temer pelo pior, mas se apoiou nas barras de ferro
que serviam como muro e conseguiu chegar ao outro lado. Achou o lugar vazio demais e foi
até a janela, de onde viu mais de dez traficantes do lado de fora em torno do mesmo negro
de cabelo loiro, agora com o rádio na mão. Apreensivos, eles escutavam sobre a situação na
entrada do morro.
“Não vou ter outra chance”, pensou. Despreocupadamente, subiu para o quarto andar e
depósito de armas. Desceu até o segundo e quase foi visto por um bandido, o único que
realmente parecia estar guardando alguma coisa, sentado numa cadeira em frente a uma
porta fechada.
Miguel calculou a distância entre os dois e agiu. Sabia que seus poderes teriam pouca
utilidade ali. Puxou a arma de choque guardada no bolso, correu e usou-a no pescoço do
vigia. Distraído olhando para o outro lado, o traficante caiu inconsciente. O motoqueiro
arrastou o corpo inerte para o andar de cima o mais rápido que pôde e entrou no quarto
As condições do executivo não eram das piores. Ele estava na melhor acomodação com
a qual esbarrara nos dois prédios, tinha uma espaçosa cama com lençóis limpos e um
banheiro só para ele. O próprio Emmerich estava em excelente estado e o único detalhe que
denunciava o sequestro era a atadura no braço onde ele fora alvejado. O gringo tinha uma
estrutura grande para alguém acostumado aos padrões brasileiros. Apesar da idade, os
ombros largos e seu um metro e noventa de altura lhe davam uma imponência, que
Ele se levantou da cama logo que Miguel entrou e ameaçou atacá-lo, mas o motoqueiro
seguiu as instruções que o Comandante passara e, assim que entrou, estendeu o rádio.
Rápido, porra!
– Você tem certeza de que me consegue isso? – perguntou Emmerich. – Ok, se você
me garante, eu vou embora daqui com seu homem. Mas, se alguma coisa der errado, você
está fodido.
Da janela, viu que os gritos eram do prédio vizinho. Como? Ele não havia tocado em
nada na sua passagem por lá. Puxou um desorientado Emmerich pelo braço e, com a pistola
na outra mão, saiu do quarto apenas para dar de cara com seu paredão de fuzilamento.
Quatro traficantes chegaram pelas escadas, apontaram suas armas para ele e o motoqueiro
não teve tempo de reagir. Jogou a pistola no chão, levantou os braços e começou a andar
para trás.
Antes do primeiro disparo, pensou na imbecilidade que tinha feito ao aceitar aquela
missão e na estupidez de morrer numa favela para salvar o rabo de alguém que ele sequer
conhecia.
– Merda...
• • •
Fred, Anderson e Juan faziam o possível para não serem perdidos de vista pelos
traficantes. Ziguezagueavam pelas ruas dos Escombros para evitar as constantes rajadas de
metralhadoras e revidavam com tiros sem rumo. Apavoradas, as pessoas fugiam para suas
Após uma perseguição que não chegou a durar cinco minutos, entraram numa rua sem
encurralado. A primeira parte do comboio entrou com sede de sangue para matá-los, mas
alguns perceberam a armadilha e pararam antes. Holofotes potentes foram acesos nos
prédios vizinhos e, para a grande maioria, a luz cegante foi a última coisa que viram em
Os três motoqueiros abriram espaço para a passagem de dois blindados que saíam em
perseguição dos traficantes que não caíram na armadilha e tentavam fugir pelas ruas. No
lado deles, a missão tinha sido um sucesso. Anderson puxou o rádio e tentou ligar repetidas
vezes para o Comandante, que demorou a lhe responder e, quando o fez, não pareceu muito
satisfeito.
– Não tenho ainda a situação do Miguel – disse secamente. Juan e Fred caminhavam
pela rua cheia de corpos dando tiros de misericórdia nos traficantes que ainda agonizavam.
Na sacada dos prédios, os mercenários comemoravam a vitória fácil. – Sei que ele chegou a
encontrar o nosso alvo, mas perdi contato com ele depois disso.
– Ele estava com o rádio ligado, ouvi uma gritaria, tiros e depois mais nada. Me
que aconteceu lá em cima, você sabe que seria suicídio subir agora.
Anderson desligou o rádio sem se despedir, subiu em sua moto e acelerou de volta para
– Porra, Anderson! Espera! O que aconteceu, cara? – berrou Juan, passando por cima
Ele não respondeu, seguiu na frente deles até uma rua relativamente próxima do Morro
– Não, o Miguel não morreu. Mas quero ficar aqui. Deu merda lá em cima e o
Fred deu um leve tapa nas costas de Anderson, que mantinha os olhos fixos no topo da
favela.
Os três silenciaram. Sabiam que tinham trazido Miguel àquela vida a contragosto e
pouco podiam fazer, exceto esperar uma posição da sua situação na favela. Até agora, toda a
programação do Comandante dera certo. Os três motoqueiros atraíram uma parte dos
traficantes para fora do morro, facilitando o acesso de Miguel, que subira a favela fingindo
ser um viciado. Depois, levaram boa parte dos bandidos para a morte certa numa armadilha
e, para concluir o plano, o companheiro deles deveria fugir numa moto reservada para ele
Cada minuto durava uma eternidade e ninguém ousava dar um pio. Anderson segurava
o rádio o tempo inteiro, como se esperasse uma ligação do próprio amigo a qualquer
momento. Para piorar, nenhum som de confronto vinha do morro. Nenhum tiro, nenhum
grito, nada.
– Acharam ele. Cara, problemas. As fontes que tenho lá em cima ligaram para dizer
que tem um homem sendo levado para a mata por um grupo de quatro traficantes. Ele está
– Porra, é o Miguel?
– Não sei, mas o Emmerich não é. Ele disse que a vítima não é alta.
outra pessoa.
– Acabaram de me dizer que ele vai ser executado. Estão levando para onde guardam
Antes mesmo de o Comandante terminar de lhes dar a posição, o blindado que seus
homens usaram para caçar os traficantes passou por eles em alta velocidade e subiu uma das
– Sigam o blindado, mas acompanhem tudo de trás. Eles estão num campo aberto, são
quatro bandidos armados com fuzis. Vocês não têm chance se tentarem ir sozinhos. Meus
Montado em sua moto e seguindo logo atrás do blindado, Anderson tentava se recordar
da última vez em que chorou. Pelas suas contas, fora há uns cinco anos, quando seu pai teve
Desde então, sua mãe perdera completamente o tino da vida, transformando o convívio
familiar num inferno. Entre lágrimas e calmantes, o então estudante decidiu trocar o
conforto da vida adolescente pelo caos da Praça da Bandeira, onde passava semanas inteiras
sem voltar para casa. Usara todas as drogas possíveis e imagináveis, mas não acabou viciado
Brigava nas ruas pelo puro prazer de brigar. Empregava tudo que sabia de kung-fu e
Rotulado como bandido nas ruas pacatas do Andaraí, viu em Miguel o único amigo
que não saiu do seu lado, o único que não julgou suas atitudes. Ele não concordava com seu
novo estilo de vida, mas fazia questão de manter viva a amizade que conservavam desde
pequenos. Era seu irmão, seu pilar e o único em quem confiava quando a situação apertava.
E agora, ele tinha a sinistra sensação de que encontraria o amigo morto e carregaria sozinho
alucinado, colocou sua moto em força máxima, cantou pneu e ultrapassou o veículo. Os
gritos de Juan e Fred se perderam entre o ronco dos motores. O asfalto se transformou no
paralelepípedo da favela e o paralelepípedo virou estrada de terra no seu caminho rumo ao
Passou por algumas árvores e finalmente viu o que tanto temia. Os traficantes estavam
jogando álcool numa pilha de pneus e Miguel, encapuzado, aguardava a execução dentro
O calor do primeiro tiro que recebeu nas costas o desequilibrou, mas o susto veio
controle do veículo, indo de encontro a uma das árvores na borda do descampado. Tonto e
Dessa vez, os alvos eram os bandidos. Do outro lado do descampado, Juan e Fred
disparavam contra o grupo, que esboçou uma reação, mas bateu em retirada quando viu o
blindado chegando.
levou até a pilha de pneus, onde viveriam a nova reviravolta da noite. O homem que estava
prestes a ser assassinado não era Miguel, mas um rapaz oriental completamente
desorientado.
Um dos soldados saiu correndo do blindado e entregou o rádio nas mãos de Anderson,
desfecho positivo. – O rádio dele quebrou, foi só isso. Ele deixou o executivo com meus
– Esse é o problema...
– Como assim?
– O Miguel sumiu.
• • •
Sentado no canto do quarto com as luzes apagadas e abraçado aos joelhos, Miguel
tremia ao relembrar o que vivenciara há pouco mais de uma hora. Sozinho e no topo do
Morro dos Macacos, confrontou sua própria mortalidade e concluiu que aquilo não valia a
pena. Chorou ao pensar que Alice jamais acordaria e na maneira estúpida como tinha
jogado sua vida para o alto em troca de um sonho que se desmanchava por entre seus dedos.
Tentava, inutilmente, bolar outras maneiras de obter o dinheiro da bateria. Não havia como.
Quando pequeno, viu os pais de William mortos, mas a primeira vez em que teve um
contato maduro com a sensação de mortalidade foi na morte do pai de Anderson. Vizinho
seu e praticamente um tio, ele fora vítima de um infarto fulminante enquanto Miguel
visitava o amigo. Nos dias seguintes, não conseguira deixar de pensar na ausência da mão
Aquilo chegava a deixá-lo sem ar de tão brutal. E foi o mesmo pensamento que veio à
mente quando quatro traficantes lhe apontaram seus fuzis, os engatilharam e se prepararam
para uma execução sumária. No breve intervalo entre a certeza da morte e a salvação
inesperada, viu a imbecilidade do mundo no qual vivia. Um homem sem futuro arriscando
sua pouca liberdade para salvar um executivo das Luzes, um dos principais responsáveis
pela situação deplorável dos Escombros. E em troca de quê? De uma entidade, pessoa,
máquina, ou como quer que a denominasse, com a qual tinha falado por cinco minutos.
Antes de chegar à conclusão de que todo aquele esforço era inútil, ele, Emmerich e
seus algozes foram surpreendidos por um estrondo que trouxe consigo um homem voando
pela janela. Ele veio por trás dos traficantes, acertou os quatro em cheio com o corpo e
levantou-se bem aos pés de Miguel. A passarela desabara com o homem, lançando-o janela
perfeitamente tranquilos, mesmo após a queda. Ele foi na direção de Miguel quando um dos
traficantes tentou surpreendê-lo com um tiro pelas costas. Mesmo sem olhá-lo, o oriental
arma com uma das mãos e fincou uma faca no pescoço do adversário com a outra.
que disparasse, o japonês usou a mão nua para atravessar seu peito, matando-o na hora.
Mais homens chegaram para enfrentá-lo e Miguel aproveitou o caos para escapar. Puxou
sentiu a queda do segundo andar, mas foi arrastado pelo seu salvador até a moto que os
– Eu não sei andar de moto! – berrou o homem, quando percebeu o plano de Miguel. O
equilibrada e engoliu o medo até chegarem ao local combinado. Passou com a moto por
entre os corpos dos traficantes mortos na rua sem saída e encontrou o paraguaio que
trabalhava para o Comandante ordenando a remoção dos cadáveres. Parou ao seu lado e
– Sim, estão todos bem. Eles saíram daqui há apenas alguns minutos atrás de você.
O americano ficou de pé e, sem dar qualquer resposta, Miguel disparou pelas ruas de
volta para o novo apartamento, na Praça da Bandeira. Estava decidido. Não iria arriscar a
sua vida novamente, não de maneira tão banal, não de formas tão estúpidas. Entrara naquele
jogo com a ilusão adolescente do sucesso e da morte que nunca vai chegar, mas encará-la
suas roupas. Se estava dando adeus à gangue, não fazia sentindo continuar morando ali.
Puxou a caixa com Alice debaixo da cama, mas não a abriu. Temia mudar de ideia se o
fizesse e ainda não tinha decidido se deixaria Nicolas vendê-la ou se a colocaria de volta no
– Com que cara vou falar isso para o Anderson? – se perguntava. Sem o rádio,
destruído na confusão da favela, teve uma ideia brilhante para deixar os Fantasmas sem ter
“No dia em que você desistir de nós, assim que você decidir jogar tudo para o alto e
cair fora dessa empreitada, quero que você abra essa maleta. Ela tem transmissores de rádio,
entende? Se você abri-la no quintal da sua casa ou numa caverna no Afeganistão, eu ficarei
sabendo.”
encarou-as. Não sabia quanto tempo tinha até Anderson voltar para casa ou alguém tentar
procurá-lo ali. Precisava agir rápido, ou jogava tudo para o alto naquele momento ou teria
– Vida de merda – disse para si mesmo colocando a chave na tranca digital. Antes de
abri-la, pensou no que estaria ali dentro. E se fosse uma bomba? Não lhe parecia absurdo
que o mafioso quisesse vê-lo morto caso os abandonasse. Ao mesmo tempo, concluiu que
ele não seria tão radical, já que um explosivo colocaria em risco até mesmo os outros
integrantes da gangue.
O Comandante, ainda assim, permanecia como seu maior medo. E se ele o perseguisse,
ameaçasse sua família ou tentasse matá-lo por abandonar o barco? Do pouco que conhecia
dos mafiosos dos Escombros, imaginava que a retribuição poderia ser ainda pior.
Respirou fundo, cuspiu mais meia dúzia de maribondos e girou a chave, convicto de
que toda a loucura das duas últimas semanas finalmente chegara ao fim. Abriu com cuidado
a mala e, logo de cara, não sabia para o que olhava. Reconheceu o pequeno transmissor de
rádio na lateral, provavelmente enviando naquele momento sinais sobre sua desistência para
O que o intrigava estava no centro. Era uma cápsula metálica do tamanho de uma lata
de refrigerante com conectores nas partes de cima e de baixo. No centro, uma esfera de
vidro azul opaca e um visor digital apagado sobressaíam. Tirou o objeto de dentro da mala e
aproximou-o dos olhos. Quando finalmente leu o que as inscrições laterais diziam, perdeu a
respiração.
naquela madrugada de abril. Passageiros de voos atrasados dormiam sobre suas malas e
improvisavam roupas como cobertores para afastar o frio. Atendentes das Aerolíneas
Argentinas traziam xícaras de café ou ofereciam lanches de consolo aos mais estressados. Já
passavam das três da manhã quando o celular de Kazuo Mishima tocou, quebrando o
silêncio do terminal.
– Kazuo, você ainda está na Argentina? – perguntou Bob Page, do outro lado da linha.
– Merda, desculpa ter demorado tanto a te ligar. Não sabia para onde ia te mandar dessa vez
e...
Nascido e criado no Japão, Mishima falava num inglês tão impecável quanto os outros
seis idiomas que dominava com fluência. Vestindo um blazer branco por cima da blusa e
calças pretas, o japonês chamava a atenção das mulheres no aeroporto pela elegância e os
traços suaves.
– Antes de mais nada, eu preciso de um relatório. Como foi sua estadia na Argentina?
Manderley e Everett já depositaram o pagamento pelos seus serviços, mas ainda não sei
como as coisas correram. Estou a manhã toda assistindo esse tal de Canal Trece e não
– É madrugada aqui, Page. Você só vai ter alguma repercussão daqui a algumas horas
Antes que pudesse responder, uma mulher que levava café para o marido tropeçou e
– Nada, uma mulher aqui ia me dar um banho de café e tive que levantar. Aconteceu
através da parede de vidro. – Mas não se preocupe, tudo correu conforme o combinado.
– Tudo certo, vou aguardar as manchetes de amanhã para saber mais detalhes do seu
trabalho.
– Tenho várias propostas: Budapeste, Dubai, Sidney. Acho que o melhor é mandar tudo
– Bob, por favor, você sabe o que eu quero. Me diga qual é a que oferece o maior
Escutou Page suspirar do outro lado da linha, mas não se irritou dessa vez. Aos poucos,
se acostumava com a maneira quase paterna que o inglês usava para tratá-lo. Tinha uma
dificuldade enorme para compreender gestos afetivos como aquele, e tolerá-los era um dos
– Sim, Rio de Janeiro. Mas não acho que você deva entrar nessa. Todos da agência
– O contrato chegou há menos de duas horas e, pelas somas exorbitantes, todo mundo
passou o olho logo. Queima de arquivo, assassinar um executivo que foi sequestrado hoje
– Desculpa, garoto, mas você não conhece o Brasil – insistiu o chefe. – Ele está preso
Seis horas depois, o avião em que Mishima decolara pousava suavemente no Aeroporto
Internacional Tom Jobim. De lá, o japonês foi levado de helicóptero para a sede da Spartan
Conhecia pouco sobre aquela que fora chamada um dia de “Cidade Maravilhosa”. As
referências culturais que tinha do local eram todas anteriores à guerra civil. De lá para cá,
sabia apenas que o Rio de Janeiro tinha se tornado uma espécie de Dubai da América
mundo. Boemia, samba, charme popular. Era isso que ecoava em sua mente quando pensava
Para sua sorte, o prédio da Spartan possuía um andar só com suítes para casos de
emergência e funcionários que optavam dormir na empresa. Imaginou que seria algo
simples, mas se deparou com um luxo digno dos hotéis parisienses nos quais gostava de
passar as folgas.
Tomou um banho rápido e foi procurar os estimulantes em sua bolsa. Aquele seria seu
quarto dia consecutivo sem dormir e tinha apenas mais 48 horas de estabilidade pela frente.
Se passasse disso, os remédios perderiam o efeito e ele desabaria na primeira cama que
aparecesse. Fez uma última checagem nas facas e pistolas silenciosas de carbono que
sempre levava consigo e abriu a porta do quarto no exato momento em que um executivo da
daquelas. Era um rapaz jovem, já dono de uma inclemente calvície cujo aspecto peculiar era
– Não, não foi coincidência – limitou-se a dizer Mishima. O homem pareceu confuso,
mas ignorou a apatia do japonês e levou-o para a sala de conferências no penúltimo andar.
Sem cerimônia, Kazuo sentou-se na mesa de madeira e aguardou enquanto o executivo que
gravidade da situação, o doutor Tseng quer falar com você pessoalmente. – Sem esboçar
qualquer reação, o japonês voltou seu olhar para o mar além das janelas, mas o brasileiro
não se dava por vencido. – Bem, meu nome é Roberto Cruz. Espero que esteja gostando do
Rio de Janeiro. Uma pena que você vai ter que se aventurar pela Rio-Beta, aquilo é o inferno
na Terra.
imagem de Myang no telão. Trabalhara para associados da Spartan em vários países, mas
segurança privada que oferecia desde proteção e consultoria em regiões ricas até serviços de
Recluso, raramente tinha seu nome veiculado na mídia e havia poucos registros dele
nos últimos anos. Era um homem na casa dos 50 anos, rosto sério e olhar perspicaz de um
velho militar. A idade lhe deu alguns quilos, mas parecia conservar a fibra que lhe rendeu
dezenas de condecorações pelo exército chinês, a verdadeira origem de sua glória. Amigo
militar subutilizado para sua firma privada de segurança e escalou até o topo do ramo com
Comunista e fazer contato com o mundo exterior, por isso serei breve. Já lhe enviamos os
relatórios sobre a situação do nosso desertor, o doutor Edward Emmerich. Você os viu? –
– Tenho fé nas minhas capacidades, doutor Tseng. Mas não compreendo uma coisa. O
senhor tem um dos arsenais privados mais avançados do mundo. Por que não inicia um
extremamente complexa – Kazuo assentiu. Já fizera execuções daquele tipo e todas eram
que um empregado de alto escalão trocasse de companhia. – Não podemos vazar nossa
participação nesse ato, precisamos de total discrição. Sei que você compreende.
– Isso já foi arranjado. Bem, desejo-lhe boa sorte. Agora, preciso voltar às reuniões do
partido. – Myang fez menção de desligar o aparelho, mas segurou-se no último momento
para fazer mais uma pergunta. – Mishima, quando o contratamos, falaram muito bem a
respeito dos seus... poderes. Da sua capacidade de prever o futuro. O relatório que recebi
estava certo?
– Qualquer relatório que o senhor recebeu da agência, com toda a certeza, é bem
preciso. Mas não gosto de discutir minhas habilidades, doutor. Apenas confie nelas.
– Perfeito.
• • •
Escondido no porta-malas de um carro, Kazuo Mishima balançava no sacolejo das ruas
esburacadas dos Escombros. Deitado no escuro, teve um breve momento de paz sensorial.
Focar seus pensamentos exclusivamente no presente era difícil e, mesmo com esforço,
adolescência, o japonês tinha um poder psíquico incomum. Conseguia antever seu futuro
com alguns segundos, em alguns casos até minutos de antecedência. O obstáculo era a
Mishima não tinha uma visão separada ou uma demonstração clara do que iria
sons que só seriam emitidos após um tempo, respondia a estímulos bem antes de eles
acontecerem.
Seu poder lhe privou de uma vida normal. Quando jovem, a mistura sensorial de
presente e futuro era ainda mais tresloucada, impedindo-o de frequentar a escola ou ter
qualquer independência. Tido como um louco por uma tradicional e milionária família
minimamente seu dom. A essa altura, já tinha 16 anos, nenhum estudo e carregava consigo
o peso de ter encerrado a linhagem gloriosa do pai, que apostava todas as fichas no futuro
do único filho.
Quase vinte anos depois, usava suas habilidades para fins questionáveis. Não era
soldado letal.
Quando o carro finalmente parou e o motor foi desligado, aguardou alguns minutos
antes de abrir o porta-malas para se localizar. Estava na garagem de uma das últimas casas
do morro, ao lado de um denso matagal. Vestindo apenas um collant militar negro de corpo
inteiro e um cinto para carregar suas facas e pistolas, se esgueirou pela mata ciente de que
mostrarem os dois prédios nos quais Emmerich poderia estar e o caminho recomendado
para alcançá-los sem ser detectado. Ignorou a rota sugerida pelo aparelho e apostou em seus
próprios instintos. Passava das onze da noite quando começou a pular sorrateiramente sobre
Quando já estava perto do cativeiro, escutou tiros vindos da subida do morro e notou a
mendigo. Ele começou a circular no entorno de um dos prédios, se livrou dos trapos e
entrou por uma janela. Mishima desconfiou que mais alguém estava atrás do executivo e
pensou em atacá-lo, mas anteviu a passagem de traficantes na base do prédio e teve que
esperá-los sair para prosseguir. Retardado, entrou pela mesma janela usada pelo seu
acabar com o mesmo alvo. Era bem incomum e quem fazia isso negava qualquer
envolvimento, sempre atribuindo a presença a algum rival nebuloso. Ciente de que aquela
peça inesperada poderia entrar em conflito com os traficantes e arruinar seus planos de
janela com um rifle em riste. Para evitar mais conflitos no futuro, aproximou-se dele por
trás, segurou sua boca com uma mão e abriu a garganta da vítima com uma das facas que
trazia. Segurou-o até que os movimentos cessassem, vasculhou os quartos e foi para o
terceiro andar.
construção vizinha. Sem notar qualquer vestígio do operativo rival, escutou o som de um
– Mataram um homem aqui, mataram um homem aqui – berrava uma mulher chorosa.
Sentiu ódio de si próprio por não imaginar que alguém acharia o corpo e correu para o
A maneira abrupta como chegou fez a construção tosca balançar levemente. Agarrou o
apoio de metal e esperou ela se estabilizar quando um traficante no térreo notou a sua
presença e preparava o rifle para alvejá-lo. Mesmo sem vê-lo, Mishima anteviu o disparo e
pegou impulso para alcançar o outro prédio, mas a passarela não resistiu e desmoronou.
Agarrou-se a uma das tábuas e ela fez o serviço de lançá-lo janela adentro do andar inferior,
Reconheceu o operativo rival, que mais parecia uma criança, e viu Edward Emmerich
ao seu lado. Levantou-se rapidamente para executá-los, mas foi varrido por uma torrente de
Sempre que enfrentava múltiplos inimigos, Kazuo tinha que se concentrar mais do que
o normal para diferenciar a realidade das previsões e se livrar de uma ameaça de cada vez.
Sentiu que dois homens lhe atingiriam pelas costas nos segundos seguintes. Matou um com
uma das facas que trazia e deu ao outro uma demonstração da sua habilidade de usar as
Notou que Edward e o outro homem estavam prestes a fugir ao mesmo tempo em que
um terceiro homem o atacava. Algo embaralhou sua visão. Não teve certeza, mas parecia
que havia outro psíquico por perto, o que sempre interferia nos seus poderes. No
de segundo da sua indecisão sobre o que fazer, sentiu que era puxado para o chão.
Rapidamente, ficou por cima do adversário e, quando estava prestes a executá-lo, sentiu o
quando adolescente, tentou inutilmente se livrar das correntes que amarravam seus pulsos,
– O filho da puta acordou – disse um dos traficantes, cujo rosto era escondido por uma
touca ninja e vestia apenas uma bermuda surrada. – Viado de merda, a gente está fodido
Capaz de driblar tropas israelenses num ataque a uma embaixada local, assassinar um
uma bala no meio de uma convenção do Partido Democrata, cair para um grupo de
narcotraficantes remelentos com cara de mendigos numa favela que mais parecia um lixão a
céu aberto o revoltava. Trabalhara sempre com a perspectiva da morte, mas esperava
– Que jeito estúpido de ir – dizia para si próprio, a nuca ainda dolorida pela coronhada.
Começou a sentir que um grupo de motos logo chegaria ali para salvá-lo, mas a visão era
tão absurda que desconfiou ser apenas fruto do desespero ou resquício da pancada na
Pela segunda vez em menos de um mês, Anderson acordava sob cuidados médicos. Em
vez da enfermaria do Hospital Pedro Ernesto, agora ele repousava num colchão de lençóis
impecáveis do leito improvisado na mansão do Comandante. Sentia dores das costas onde
fora baleado, mas nada excessivo. Os médicos chamados pelo mafioso lhe garantiram na
noite anterior que nenhum ponto vital fora atingido e ele seria liberado em algumas horas.
despertaram lentamente, mas não o suficiente para que ele acreditasse no que estava diante
dos seus olhos. A boneca de Miguel andava de um lado para o outro separando os materiais
para trocar seus curativos. Certo de que só poderia tratar-se de um sonho, aguardava com
Só vira a androide duas vezes e, em nenhuma, prestara muita atenção. A ideia de que
seu melhor amigo estava fazendo tudo aquilo por conta de um robô o assustava e preferia
manter distância dela. Agora que via a boneca em ação, entendeu a admiração de Miguel.
Não era só bonita. O estado de paz que o rosto dela transmitia era acalentador, uma
Usava o mesmo vestido branco rendado um pouco acima dos joelhos e o cabelo loiro
vivo tinha um brilho opaco charmoso. Impressionado com a nitidez do sonho, desviou os
olhos dela e deu de cara com Miguel dormindo na poltrona ao seu lado. A presença dele fez
Anderson pular de susto e se erguer na cama. Os ferimentos gritaram de dor e ele deu um
gemido que chamou a atenção de Alice. Seu amigo acordou desorientado e foi a androide
– Anderson, por favor, não se levante. A gente ainda precisa mexer nos seus curativos e
o ferimento foi costurado há pouco tempo. – Ela pegou-o pelos ombros e o empurrou
suavemente. Ainda chocado, deixou-se cair na cama e lançou um olhar surpreso para
Miguel.
– Desculpa não apresentar vocês, Anderson. Essa é a Alice, acho que você já a
conhece. E, bem, falei para Alice um pouco sobre você antes de pegar no sono.
A androide sorriu e colocou uma bandeja com café e biscoitos ao lado de sua cama. O
motoqueiro ainda não conseguia falar uma palavra e Alice preferiu deixá-los a sós.
– Cara, eu sei que é meio chocante, mas pelo menos seja educado com ela – reclamou
Miguel, pegando um dos biscoitos do amigo. – Já é quase meio-dia, Anderson. Você dormiu
– A última coisa que ouvi foi o Fred falando que você tinha deixado os Fantasmas, mas
que estava vindo pra cá resolver alguma coisa com o Comandante. Aí eu apaguei. Me
encheram de remédios.
– Lembra daquela mala que ele deixou comigo? Que eu devia abrir só se saísse da
gangue?
– Você abriu aquela merda? Eu tinha certeza que aquilo ia te matar.
– Cara, eu estava muito puto ontem. Eu me caguei de medo quando os traficantes quase
me mataram no alto do morro e joguei tudo para o alto. Eu nem quis saber, abri a mala e
advinha o que tinha lá dentro? A célula de bateria que faltava para Alice. O Comandante
Anderson sentou-se na cama, puxou a bandeja para o colo e começou a comer. Não se
alimentava desde antes da incursão no Morro dos Macacos e seu estômago doía de fome.
aparecimento do japonês.
– Eu sei, nós salvamos ele de ser queimado pelos traficantes – lembrou Anderson,
bebericando o café. – Estava pelado e todo acorrentado. Queriam trazê-lo pra cá, mas ele
aqui, o carro estava vazio. – Escutou as vozes de Nicolas e Alice conversando do lado de
fora. – Porra, mas você só dá azar. Não bastava o Nicolas se amarrar na Nina, agora ele quer
– Anderson, sério, não quero que você se refira a ela desse jeito. Ela fica mal. Boneca,
– Não sei, Anderson. Mas vou continuar sim. Não posso largá-los. Não agora que ele
me deu isso. Ainda não conversei com o Comandante, quando cheguei aqui de madrugada
ele já estava desconectado. Os funcionários dele disseram que ele só volta à noite. Cancelou
– Agora a gente está com uma calmaria. Fizemos dinheiro pra caralho. Ele deve ter
quarto. A engenhosidade do plano que o mafioso traçara o intrigava. Ele sabia que, entre
todos os membros da gangue, Miguel era o menos disposto a chegar ao fim do contrato. Não
tinha experiência de combate, desprezava o estilo de vida das gangues e mantinha-se alheio
à ambição de fazer dinheiro. E traçara o plano perfeito para pegá-lo: uma armadilha cuja
Saiu do casarão, deu a volta e sentou na grama do jardim, as costas apoiadas numa
pedra esquecida. Certo de que seguiria com os Fantasmas até o fim daquela jornada,
imaginava quantas outras vezes ainda ficaria sob a mira de armas e colocando a própria vida
em risco.
Sem pronunciar uma palavra, Alice se aproximou dele e ficou sentada ao seu lado. O
fato de ela estar acordada era a única coisa que o tranquilizava, seu objetivo principal já
estava cumprido. Agora, tinha apenas que honrar a confiança que o mafioso depositara nele.
Nicolas para instalar a bateria e, quando ela finalmente acordou, foram se juntar aos outros
membros da gangue no casarão. O cansaço e os afazeres impediram qualquer conversa mais
Imaginava que Alice acordaria desnorteada e seria quase como uma criança. Ledo
engano. Logo que se levantou, se esforçou para ser útil e ajudou nos cuidados dos feridos e
– Miguel, ainda não tive tempo de te agradecer direito. Muito obrigado pelo que fez por
mim. Eu não sei há quanto tempo eu estava naquela existência limitada – ela dizia. – Se há
Não sabia exatamente como agir próximo dela. Mais humana do que a maioria das
pessoas que conhecera durante sua vida nos Escombros, Alice era doce, mas ainda assim
uma desconhecida.
– Eu fiz porque quis, não precisa agradecer por nada – respondeu tímido. – Mas você
tem alguma coisa em mente? Quero dizer, sabe o que vai fazer de agora em diante?
– Eu não tenho a menor ideia. Eu não sei quem eu sou ou de onde vim. E nem sei se
vale a pena correr atrás disso. A coisa mais próxima que tenho de um amigo é você.
– Alice, naquela vez em que conversamos dentro de você, cheguei a falar disso, mas
ainda não entendo por completo. – Miguel escolhia com cuidado as palavras para evitar
incomodá-la com a pergunta. – Você não sabe qual é a sua origem, mas tem alguma noção
do que é? Se você tivesse acordado numa situação diferente... saberia que não é humana?
Alice silenciou, pensativa sobre o que Miguel lhe perguntara. Uma brisa forte sacudiu a
– O meu corpo tem dezenas de funções que me permitiriam viver pensando ser um
humano normal durante um bom tempo. Eu tenho até um sistema circulatório bem primitivo
e sangue artificial para isso, mas a função está desativada. – Miguel lembrou-se de quando
Nicolas removeu pedaços da pele de Alice para investigá-la e tentou apagar aquela memória
da cabeça. Não gostava de vê-la como um robô. – Mas, para isso, teriam que desativar todas
artificiais em mim.
– Controle interno?
orgânicos, avaliar a situação de cada parte minha. Assim como no seu cérebro, eu faço isso
controle para manual, se tiver alguma necessidade especial – ela explicava com a voz
tranquila, mas um pouco incomodada por dar informações técnicas a respeito do seu corpo.
– E minhas funcionalidades são inerentes para mim. Baixei guias médicos pela internet wi-fi
do casarão para aprender a trocar os curativos do Anderson, por exemplo. Também posso
baixar mapas ou ler manuais de equipamentos. Tudo com um tempo de aprendizado quase
instantâneo.
– Uau! – foi tudo que Miguel conseguiu responder. – Mas tem uma coisa que eu ainda
não entendo. Eu te vi chorar naquele dia e, o tempo todo, você demonstra sentimentos. Você
tem acesso ao seu código de programação? Sabe como essas sensações se manifestam?
– Eu ainda não tenho certeza – admitiu, com uma expressão de frustração. – Não tenho
acesso ao meu programa. Tristeza, felicidade, satisfação, irritação. Tudo parece natural para
mim.
Miguel lembrou-se das palavras de Matt e dos fantasmas nas máquinas, nome dado à
que os efeitos de um “fantasma” eram tão devastadores que, em alguns casos, eles encerram
e apoiou o corpo nela. Miguel tinha a sensação de que estava incomodando-a, mas julgava
aquela conversa necessária e queria acreditar que ela concordava. – O que você sabe a
respeito disso?
– Quase nada, Alice. Eu sou dos Escombros, nós temos pouco acesso à informação
aqui. Sou só um motoqueiro. Mas eu fiquei preocupado quando me falaram dos possíveis
Pela primeira vez desde o começo da conversa, ela sorriu e lhe dirigiu um olhar mais
amistoso.
– Obrigada, Miguel. Mas me desculpe pela falta de respostas concretas sobre o que
sou, ou como me vejo. Não gosto muito de falar sobre isso. Não entendo meus sentimentos,
de onde eles surgem, como aparecem. Não sei nem a origem do meu nome.
Sem aviso, ela puxou Miguel pelo braço para longe da árvore e, com os polegares e
indicadores das duas mãos, fez uma moldura imaginária no ar. Dentro dela, focou a
– Eu não sei como você me vê, Miguel. Entendo que todos estejam curiosos e me
vejam como uma ferramenta. Mas não acho que um pedaço de metal pré-programado
helicóptero se aproximando chamou sua atenção. A aeronave negra vinha da direção das
vegetação ao redor.
• • •
Ruby Alford, Remo Scorza e o afilhado do italiano, Gian, estavam sozinhos com
casarão. Decorado apenas com mobílias originais do século XIX, o cômodo era amplo, com
poltronas e sofás felpudos dispostos em torno de uma charmosa mesa de centro. Nas
– O que você fez foi extremamente arriscado, Emmerich – disse Scorza, as atenções
divididas entre o interlocutor e seu tablet, no qual lia notícias sobre a morte de um
importante político argentino em Buenos Aires. – Desde o começo, desconfiei que você
tinha forjado o próprio sequestro, mas não que seria tão incauto.
– Eu não tinha escolha, foi a primeira oportunidade que me apareceu num longo tempo
– justificou o americano, que revelara ao trio o seu esquema. Fora ele mesmo quem tramara
resgate pedido à Spartan, 25 bilhões de dólares, fora propositalmente irreal para rechaçar
qualquer chance de negociação. – Esse atravessador ia pagar milhões em armas para esses
traficantes em troca da minha proteção. Pediu para que eles me protegessem por 72 horas,
questionou Gian. Edward já o conhecia há algum tempo e, ainda assim, não conseguia se
acostumar aos seus alargadores, piercings e tatuagens. – Tava na cara que ia dar merda.
– Houve um problema, pelo que ele me passou. Enfim, pelo menos não vou ter mais
que pagar ninguém para fugir daqui. Minha única pergunta é: vocês pagarão a parte de
vocês da promessa?
– Claro – garantiu Ruby, que parecia ter acordado há poucos minutos e usava roupas
casuais. – Já mobilizei a logística da minha empresa e vamos mandar você embora daqui
ainda hoje, se cooperar conosco, claro. Só tenho uma dúvida: para onde quer ir?
– Vou usar os sapatinhos dourados para voltar ao meu Kansas. – O americano deu um
quebrados, mas ainda é a minha terra. Aliás, não tenho muita escolha. A Spartan tem
– Nunca pensei que essa guerra fria de cem anos entre Estados Unidos e comunistas
fosse ajudar alguém, mas fico feliz por você, Emmerich. De verdade – assegurou Scorza. –
Mas vamos ao que interessa. Os mercenários que estão aí fora querem saber tudo a respeito
dessa tal de Angra e do envolvimento dela com a Spartan. Mas antes de deixá-los entrar,
– Estou à disposição, mas não sei o que seria sensível para falar com esses
– Sim – adiantou-se Gian. – Uma fonte nossa dentro da Spartan disse que o Myang
ordenou um extenso relatório sobre as sentinelas logo que viajou para a China. Para que ele
cidade.
– É verdade, ele realmente pediu um relatório completo sobre elas e manteve tudo sob
sigilo até dos seus homens mais próximos. Inclusive, uma das sentinelas foi levada para os
– Como alguém consegue ser tão imbecil? – Ruby levou as mãos ao rosto, assustada
com as poucas lembranças que tinha das sentinelas. – Se aquela coisa saísse de controle e
escapasse do nosso edifício, passaríamos anos nos explicando à mídia. Poderiam até fazer
administrativa no Rio.
– Eu sei e nós tentamos argumentar, mas ele nos ignorou. Aliás, para ser sincero,
jamais vi o Myang falar pessoalmente sobre aquela ação. Fez só por e-mails e telefonemas.
Chamaram Miguel, Fred e Juan para a reunião, sugestão dada pelo Comandante antes
encontro.
– Emmerich, como já estávamos discutindo, são esses os homens que estão ajudando
na investigação da Éden. Pelo que andamos escavando, esse grupo tem recebido forte apoio
da Spartan – dizia a jovem presidente da Alford Services. Como quem observa animais
– Eu não sei os detalhes, mas a mulher que vocês conhecem como Angra esteve na
sede da Spartan algumas vezes e chegou a ficar acomodada nas nossas suítes. Todo o
material e apoio que ela recebeu vieram da empresa. Inclusive os outros motoqueiros.
Aqueles gordos gêmeos que andam com ela são frutos de um projeto nosso – disse
Emmerich.
– Quer dizer que a Spartan está criando armas biológicas? – indagou Ruby.
longo prazo. Só eles dois sobreviveram dos dez testes iniciais. Viviam escondidos em nossas
instalações aqui mesmo nos Escombros e ganharam o apelido de Golias. Faziam trabalho
braçal numa fábrica, mas Myang encontrou uma função melhor para eles.
Juan ainda tinha a morte de um dos seus amigos fresca na memória e quis saber mais a
respeito do assassino.
– Black é outra história. – Emmerich levantou-se, foi até a mesinha de centro e encheu
uma das xícaras com chá de camomila. – Ele é um psicopata e já matou muita gente na Rio
Alfa. Acabou preso no ano passado e estava encarcerado na prisão de Bangu, aqui mesmo,
nos Escombros.
– Então vocês deram um psicopata perigoso de presente para essa gangue e o soltaram
nos Escombros? Vocês, das Luzes, são um bando de filhos da puta mesmo – atacou o
motoqueiro.
O clima ficou tenso e os empresários emudeceram. Não esperavam que seus peões
– Você se chama Juan, não é? Olhe, nós estamos pagando caro pelos seus serviços.
Então, antes de criticar qualquer uma das nossas atitudes, lembre-se de que são elas que
– Não precisa se irritar, Scorza. O rapaz está certo – apaziguou Emmerich. – Foi uma
decisão do próprio Myang fazer isso, meu filho, mas ainda é um assunto delicado. Black é
filho de um empresário famoso da Rio Alfa. A soltura dele foi uma troca de favores.
– Tem uma coisa que ainda não encaixa bem nessa história – interveio Gian. – De onde
está vindo toda essa grana que entrou no caixa da Spartan nas últimas semanas? Ela
apresentou um crescimento enorme em relação à Fiume e à Alford.
– Quando Angra esteve na Rio Alpha, submeteram ela a uma bateria gigantesca de
testes a respeito dos seus poderes. Eu não sou cientista e não tenho ideia do porquê, mas as
vocês sabem como Myang não é muito fã de exclusividade. Vendeu os dados para deus e o
mundo.
– Acho que um dos segredos está na viagem dele à China. Ela coincide com a
tablet. – Todo ano ele passa quase dois meses incomunicável na China. Ele participa das
realizada durante uma semana dentro de um hotel fechado e sem contato com o exterior.
Emmerich, concordando com o italiano. – A coisa podia estar pegando fogo na empresa e
ele não atendia uma chamada sequer. Há uns anos, ele chegou a ficar três meses
completamente fora do ar por conta dessas reuniões. E, dessa vez, ele tem entrado em
contato com a cúpula da Spartan constantemente, Talvez Pequim tenha mudado as regras,
Gian foi até uma das janelas e observou a movimentação dos seus seguranças em torno
do helicóptero. Desanimado, já dava a reunião por encerrada quando lançou sua principal
dúvida na mesa.
– Me desculpe, Emmerich. Eu sei que você está nos falando tudo o que sabe, mas nada
disso faz o menor sentido. Consigo entender o Myang levar Angra para as Luzes e vender os
dados da pesquisa para o exterior. Mas por que ele financiaria essa gangue? O que ele ganha
com isso?
– Essa pergunta, Gian, vocês terão que responder por conta própria.
• • •
para os artistas que Miguel decidira mostrar para Alice. Liberado pelo resto do dia, ele
passou na casa dos pais para pegar emprestado um aparelho de som portátil e plugou nele o
Vestida com roupas tronchas compradas num brechó perto dali, a androide parecia
ainda mais humana. Pacientemente, ouvia tudo que seu novo amigo lhe apresentava. A
bossa nova de Chico Buarque, o rock dos Beatles, o jazz de Chet Baker e uma coletânea de
– Eu tive um pouco de sorte, graças a minha mãe. – Ele sentou-se no chão, ao lado do
sofá no qual Alice deitara. – Ela tem um conhecimento musical gigantesco, é muito eclética.
Acho que acabei pegando isso dela. Meus amigos nem conhecem os artistas que escuto.
Ao longo da tarde, descobriram que Alice não gostava de hard rock e tinha uma queda
por música instrumental. Ficava hipnotizada escutando Chet Baker e tinha pouca paciência
para Raul Seixas. Sua favorita até então tinha sido o Bolero de Ravel. Intrigavam-na as
flutuações matemáticas das músicas, sobretudo das clássicas. Sem saber expressar o que
– Sim – ela insistiu. – Eu sei como eu me sinto, mas nós somos diferentes e sua opinião
Ele parou para pensar quando Claire de Lune, de Debussy, pintou a sala com sua
melodia doce. Nunca havia se perguntado sobre o que sentia quando ouvia músicas ou o que
– Não sei explicar, mas as músicas falam de maneiras diferentes comigo. Uma música
romântica parece conversar com minhas paixões. Um rock pesado fala com a minha
minha alma. Quando escuto Debussy ou algo mais clássico, é como se as notas falassem
com toda a minha existência. Eu sinto o coração pesado de admiração. – Ele parou por um
tempo e tentou encontrar melhores definições. – As minhas lembranças também têm papel
fundamental.
– Eu acho que consigo entender o que você fala sobre cada música dialogar com um
sentimento. Mas tenho dificuldades com elas. Não tenho lembranças de amores, ainda não
sei o que é saudade. – Alice sorriu e brincou com a própria situação pela primeira vez. – É
como se eu tivesse nascido ontem. Não tenho essas lembranças de sentimentos para associar
– Eu não trouxe. Mas isso não vem ao caso. A questão é que, hoje, eu conheço vários
compositores que me agradam muito mais do que ele – continuava. – Mas aquelas músicas
marcaram um momento da minha vida. Toda vez que escuto o Mitsuda, é como se eu
ingenuidade. Um pouco do meu “eu” mais jovem ficou preso àquelas composições. E é isso
apressou para fechar a janela antes que a situação piorasse e deixou apenas uma pequena
fresta aberta, pela qual uma brisa fria justificava o casaco de moletom que usava. Debussy
– Posso repetir Clair de Lune? Eu nunca escuto essa música uma vez só.
tranquilidade. Geralmente, não tinha muita paciência para músicas instrumentais, mas era
– Miguel, por que você se arriscou por minha causa? – disparou Alice.
– No começo, eu acho que só tive pena da sua situação. No pouco tempo em que
conversamos, eu tive a certeza de que... de que você não era só... – Ele tropeçou e engoliu as
– Só uma máquina?
– Sim.
– É verdade. Mas eu acreditei que você tinha sentimentos, que você tinha uma
artificiais ou uma pessoa acostumada a esse tipo de tecnologia me veria apenas como uma
– A minha ignorância ajudou? – Miguel deu uma risada, sem se sentir ofendido com o
comentário.
Pelo menos essa é a conclusão que tiro da minha base de dados. Alguém certo da existência
afirmações contrárias e se fecharia para aquele tipo de conhecimento. O mesmo serve para o
Ele terminou o café e deitou no chão gelado. Fazia tempo que não passava uma tarde
tão agradável ao lado de alguém antes e sentiu que os esforços dos últimos dias, até a
situação extrema no Morro dos Macacos, valeram a pena. Seria triste para o mundo se Alice
não existisse.
– Nunca imaginei que passaria uma tarde conversando sobre Deus e dúvida com um
livros sobre o tema nos meus arquivos. Eu acho que, em última instância, tudo gira em torno
da morte.
assustadora.
Debussy. Alice prestou atenção aos acordes iniciais da canção antes de retomar a resposta.
– Não tenho dados suficientes para descartar ou comprovar a existência de Deus. Você,
pelo menos, tem o benefício da dúvida quanto ao pós-vida. Eu sei que só tenho essa
oportunidade de existir.
como respondê-la. Por mais triste que fosse aquela afirmação, concordava que era
impossível imaginar uma inteligência artificial num “pós-vida”, por mais próxima da nossa
que fosse.
Levantou para deixar a caneca de café vazia na cozinha e percebeu o choro de Alice.
Sentiu-se inútil por não saber como consolá-la e preferiu fingir que não tinha visto nada.
Quando terminou de lavar a louça, deu de cara com Alice na porta da cozinha e estranhou a
• • •
Miguel acordou e xingou o próprio descuido com a comida. Anderson não voltou para
casa na noite passada e imaginava que o colega traria suprimentos para reabastecer a
geladeira. Morar sozinho lhe deu a dura lição de que a comida não surgia por si própria nos
armários e, antes das oito da manhã, o sonolento motoqueiro foi até uma feira de rua
Alice ainda dormia no sofá quando ele saiu. Tentou convencê-la a ficar com a sua
cama, mas foi convencido por ela mesma de que seu corpo ignorava quase completamente a
posição na qual descansaria. Também aprendeu que o “sono” dela visava apenas maximizar
rotina. Se ela realmente quisesse, poderia ficar sem dormir, desde que tivesse acesso fácil à
Chegou à feira e foi recebido pelo inconfundível fedor de peixe. A chuva ainda não
tinha cessado e os restos de comida no chão pareciam ainda mais nojentos. As feiras de rua
tinham alimentos de qualidade tão duvidosa quanto da feira no cais do porto. A diferença
Foi surpreendido por uma mulher que se desequilibrou e apoiou-se nele para não cair.
Ela tinha quase o dobro do seu peso e, por pouco, não levou-o ao chão. Era uma senhora
negra e gorda vestindo um vestido azul levemente estampado. Parecia ter mais de 60 anos e
Minimizou o incidente e foi às compras. Tinha bastante dinheiro consigo e não fez
reservas. Passou nas melhores barracas e encheu sacolas de batatas, mamões, tomates e
bananas, alguns dos itens mais caros e difíceis de achar. Os funcionários do Comandante
distribuíram uma boa soma em dinheiro entre os motoqueiros graças ao serviço no Morro
dos Macacos, mas não o montante total da missão. Aquilo fazia parte do combinado.
É
Segundo Fred, só receberiam a bolada toda no fim do mês, após enfrentarem a Éden na
Quando já estava com as bolsas de compra cheias, pensou em como Alice era uma
hóspede conveniente. Não precisava de tanta água ou comida quanto um ser humano
normal, apenas usava compostos orgânicos de tempos em tempos para abastecer seus
A única coisa em relação a Alice que ainda o incomodava era se deveria ter contado a
ela mais sobre sua motivação para ajudá-la. Refletira à noite sobre isso e concluíra que não
No seu namoro com Nina, sempre teve a certeza de que ele precisava mais dela por perto do
que o contrário. Não por menos, fora sua ex quem terminara o relacionamento. Sua amizade
com Anderson também era assim. O motoqueiro sempre lhe ajudava a peitar algum valentão
na escola ou o salvava de alguma encrenca. Desde que encontrara Alice, sentia que
finalmente tinha uma direção, que sua vida tinha um significado para alguém, mesmo que
temporário.
aproveitara o pagamento adiantado para ir a uma festa com Juan em algum lugar que ele
mesmo já parecia ter dificuldade de recordar. Ajudou-o deitar, tomou café da manhã e
passou o começo do dia conversando com Alice. Para sua surpresa, o rádio não tocou e
caminhava por mais um dia pacato até que bateram na sua porta.
pequenas manchas de velhice por toda a pele e exalava um odor que misturava alguma
colônia barata e cheiro de roupa guardada. Os óculos de armação redonda e o chapéu fedora
– Meu jovem, gostaria muito que você me seguisse até Madureira. Tem uma pessoa lá
Estranhou aquela abordagem e viu que Alice também os escutava com uma expressão
de desconfiança no rosto.
– Me perdoe a pressa, meu nome é Manoel. Me pediram para avisar que você pode e
segredo. Algumas pessoas já sabiam da história do androide, mas ninguém tinha ideia do
– Ah, meu filho, ela tem muitos nomes. Mas acredito que você a conheça como
Oráculo.
• • •
Miguel usou a sua motocicleta antiga para não chamar a atenção, colocou Alice na
garupa e seguiu o elegante Karmann-Ghia escuro de Manoel até Madureira. Era a primeira
vez em sua vida que via um carro tão conservado nos Escombros, ainda mais um tão antigo.
O idoso dirigia numa velocidade irritante de tão lenta. Em dado momento, preferiu deixá-lo
O Mercado de Madureira mudara pouco desde a guerra civil carioca. Ainda era o
estado sem lei dos Escombros acabou por tornar o lugar ainda mais degradante. Cubículos
sujos e apertados se multiplicavam aos montes em túneis mal iluminados e todo lugar
As barracas vendiam de tudo. Comidas, roupas, artigos de casa, CDs e DVDs antigos,
peças de carros, armas, prostitutas. Se alguma coisa não era vendida no Mercado de
Madureira, certamente não existia nos Escombros. Deslocada, Alice olhava tudo com um
leve ar de excitação curiosa que aumentou quando pararam em frente a uma loja de artigos
religiosos africanos.
garrafas de bebida e utensílios pouco convencionais. O destaque ficava para uma imagem
mão. No seu entorno, Nossas Senhoras de todos os tipos com luzes portáteis instaladas na
base das imagens tingia com cores quentes os silenciosos pratos de barro adornados com
desenhos africanos.
– Podem ficar tranquilos, meus filhos. Nada aqui morde – assegurou-lhes Manoel. Ele
estabelecimento. – Amanda, por favor, feche a loja. Se alguém quiser alguma coisa, peça
O senhor os levou para os fundos e eles o seguiram por uma escada estreita que dava
no subsolo. A sala do Oráculo era um quarto apertado iluminado por velas e com uma
bandeira de São Jorge pendurada na parede. Sentada numa cadeira de palha, uma senhora
negra e acima do peso vestindo calças jeans e blusa social os esperava fumando um charuto
cubano.
Ela sorriu para Miguel, que estranhou a familiaridade e logo a reconheceu. Tratava-se
da mulher com quem esbarrara na feira pela manhã, a que quase caíra sobre ele. Fez menção
– Sim, Miguel. Era eu mesma. É um prazer conhecer vocês dois. Por favor, sentem-se.
– Eu pensava que o Oráculo era um homem – disse Miguel, ainda impressionado com a
decoração ao redor. Sempre ficava um pouco intimidado pelos santos do candomblé, e havia
vários deles espalhados pelo porão apertado. Aceitou o convite e sentou próximo da mulher.
– É justo. Na maioria das vezes, é o Manoel quem faz as vezes de Oráculo. Ele é o pai
de santo que atende aqui, apesar de ter tantos poderes espirituais quanto o Karmann-Ghia
que dirige. – A mulher e o idoso sorriram. – Mas é só por segurança, para me proteger.
baixo, o ar abafado e Miguel não compreendia como aquela mulher de idade poderia passar
várias horas do dia enfurnada ali. Não sabia por onde começar e quis que Fred ou o
Comandante estivessem por perto para ajudá-lo, mas a conversa com o Oráculo caíra
– Eu sempre escutei histórias sobre a senhora, desde pequeno. E sempre dizem que
você chama aqui quem você quer, e não o contrário. Então, o que a senhora quer de mim?
– Na verdade, eu poderia lhe fazer essa pergunta também, não é? Afinal, você e seus
amigos motoqueiros estão tentando me localizar. Mas não será necessário. Eu sei a razão.
madeira que guardava numa prateleira próxima. Ela colocou-a nas mãos de Alice, que
abriu-a e tentou encontrar alguma lógica nos vários objetos guardados. Chaveiros, cordões,
anéis, pequenos pedaços de pano, santinhos, prendedores de cabelo e até um velho revólver
se misturavam na coleção.
– Miguel, o que eu faço aqui é bem simples. Eu peço para os poucos clientes que tenho
trazerem objetos pessoais dos seus entes queridos para que os “espíritos” me digam mais
sobre eles. Veja, eu e você somos muito parecidos. Já conheci outros que tinham o seu
mesmo dom. A diferença é que eu não movo nada com o poder da minha mente. Eu leio a
do século XX.
elogiar Alice. – Basicamente, é isso que eu faço. Cobro caro e, para que mantenham minha
identidade em sigilo, conto que desgraças sem igual cairão sobre suas vidas se ousarem me
desrespeitar. Mesmo quem não acredita em macumba tem medo dela. É uma religião
interessante.
Miguel pouco conhecia da mulher, mas quis acreditar que ela fora bonita quando
jovem. Apesar da idade e das rugas, seu rosto tinha contornos suaves e o cabelo crespo
– Eu já entendi aonde a senhora quer chegar. Mas por que quer nos ajudar? – indagou o
rapaz.
– A mulher que vocês conhecem como Angra deu seus primeiros passos nas guerras de
gangue dessa região, Miguel. Você e seus amigos sabem disso? – Amélia adotou uma
postura mais séria ao falar da motoqueira. – Eu não sei o que aquela menina é, mas tenho
para mim que não é coisa boa. Ela matou gente por aqui, fede à morte. E há algo
Ela tragou seu charuto longamente e finalmente o apagou. Parecia escolher a melhor
– Eu não sou só uma psicometrista, como Alice bem classificou. Eu também tenho...
um sexto sentido. Não prevejo nada do futuro, mas consigo ler os desenhos se formando em
volta de mim. Talvez não seja nem um poder especial, apenas uma boa percepção. E posso
dizer com segurança que essa garota tem muito sangue nos olhos. Ela quer mudar o eixo de
poder que domina o Rio de Janeiro e sinto que isso virá com muito custo. O fim dessa
disputa será um parto complicado, mas dele nascerá uma cidade diferente daquela que nós
– E você quer entender as intenções dela, por isso precisa da nossa ajuda. Quer que
deixemos contigo algum objeto pessoal de Angra para ler suas memórias e descobrir. É
isso?
– E por que chamou justo a mim? Eu não te conheço, nem sei se posso confiar na
senhora.
– A minha identidade e meu paradeiro podem ser sigilosos, menino. Mas a minha
reputação é bem conhecida. Eu cumpro tudo o que falo – ressaltou, com um tom sério. – E
até você sabe porque te escolhi em vez dos outros. Seus amigos estão atrás de dinheiro e
mulheres. Não são más pessoas, até acho aquele tal de Fred bem interessante e inteligente.
Mas você é o único que entrou nesse buraco por motivos minimamente justificáveis.
Amélia. Provavelmente ela esbarrou nele de propósito para tocá-lo e ler os objetos que tinha
no corpo. – É bom saber que teremos a sua ajuda. Vai facilitar muito a nossa investigação
sobre Angra.
– Ajudaremos um ao outro, querido. Fique tranquilo. Falando nisso, há algo que você
precise para alcançar esse objetivo? Algo com o qual eu possa te ajudar?
Contou para Amélia sobre como vira o estranho japonês atravessar o corpo de um
homem com os braços nus. Lembrou também que Juan lhe contou sobre um psíquico que
– Sim. Não sei vou precisar, mas é uma boa carta na manga.
Amélia tirou da caixa de madeira um crucifixo e segurou-o com uma das mãos
enquanto a outra apertava com força o pulso de Miguel. O rapaz pensou instintivamente em
algum ritual de macumba e deu um leve puxão no braço. O Oráculo percebeu a resistência e
Antes de entender o que ela dizia, perdeu a noção da realidade com um clarão cegante
e se viu naquela mesma sala, só que cercado de pessoas desconhecidas e no centro de vários
tambores em ação. Uma galinha preta caída no chão tentava, sem sucesso, se livrar das
amarras que prendiam suas asas e pernas. Ao fundo, tambores africanos rufavam
violentamente.
sentiu-a atravessar, sem resistência, o pescoço do animal. Uma mulher ao seu lado virou o
rosto para não ver a cena e alguns homens gritaram extasiados músicas numa língua
estranha. Caiu para trás e levantou assustado quando o Oráculo finalmente o soltou.
esse poder de mostrar as memórias dos objetos aos outros. – Amélia se levantou e caminhou
– Você viu tudo pelos meus olhos, sentiu como eu senti, pensou como eu pensei. É
assim que meus poderes funcionam. Sei que você se lembra da sensação de transformar a
mão em lâmina. Agora tudo que resta a fazer é tentar imitá-la. Aí você vê se tem essa
capacidade ou não.
– Exatamente. Eu sou uma psicometrista, por exemplo. Nunca vi um psíquico com esse
mesmo dom que eu tenho. Mas coisas como telecinésia e lâminas psíquicas são os mais
Subiram a escada de volta para a loja de materiais religiosos, agora fechada por uma
nova remessa de santos que chegaria na semana seguinte e não perceberam quando o trio
Amélia enquanto iam até a saída, o lugar passou a funcionar 24 horas por dia nos últimos
anos e se tornara o principal centro comercial dos Escombros. Quase uma cidade dentro da
Tem boca de fumo, puta, travesti. Tem de tudo aí dentro. Sempre tem confusão. O bom é
dos Escombros, eles pareciam uma família normal. – Menino, somos todos ateus.
O carro se arrastou pelas ruas de Madureira, deixando para trás o olhar confuso de
Miguel.
Capítulo VIII
Uma última
prova de amor
– Segure firme – disse Miguel, antes de pular dentro do vão de um canal de esgoto
inutilizado com a moto que ganhara do Comandante. Alice agarrou-o com força e se
manteve firme na garupa, mas o impacto foi bem mais suave do que o motoqueiro previra. –
Miguel descobrira essa passagem para o centro da cidade quando tinha apenas 14 anos,
alguns dias após ganhar a sua primeira motocicleta. Empolgado com o presente dos pais, foi
surpreendido por uma gangue rasteira de motoqueiros atrás de peças e, amparado pela
Sem muita opção, ligou o farol e seguiu em frente. O que encontrou ali mudaria a sua
vida para sempre. Eram quilômetros de uma galeria de concreto completamente esquecida
pelos Escombros. Outrora inundado de esgoto, o lugar agora não passava de uma caverna
fedorenta habitada por ratos, baratas, morcegos e restos de lixo mais velhos do que ele.
Avançou até encontrar o buraco pelo qual sairia com Alice, anos mais tarde, no
coração do centro da cidade. Na primeira vez em que pisara ali, imaginou uma morte lenta e
dolorosa nas mãos da radiação, mas nunca apresentou qualquer sintoma e aquele bairro
– É realmente bonito – ela sussurrou. Na sua frente, a principal avenida da cidade jazia
morta havia décadas, seus arranha-céus como gigantes adormecidos perturbados apenas
pelo assovio do vento e pelo farfalhar da grama que crescia nas falhas do asfalto. Olhou para
a baía ao seu lado e sentiu toda a melancolia da gigantesca Ponte Rio-Niterói partida ao
meio. Seus pilares resistiam bravamente às ondas daquele começo de dia chuvoso no qual o
Sol ainda não dera as caras. Em todo canto, os restos de uma sociedade em ascensão
esculpidos em concreto davam um tom ainda mais desolador àquelas ruínas. – E assustador.
Miguel reduziu a velocidade ao ritmo próximo de uma caminhada para que Alice
pudesse ver tudo com calma. Não poderia demorar muito no centro naquela manhã, mas seu
objetivo era aproveitar cada momento. Pegaria apenas alguns livros no sebo para renovar seu
acervo e voltaria ao casarão do Comandante, onde traçaria um plano com os Fantasmas para
XIX permanecia pacientemente intacta, até sua fachada amarela contrastava de maneira
O motoqueiro empurrou a pesada porta de madeira com cuidado. Sabia que danificar
– Minha mãe sempre fala de um autor colombiano que ela ama e eu nunca dei muita
bola. Esses dias fiquei curioso. Quero ver se é tão bom assim.
Miguel não escondeu a tristeza quando finalmente entrou no sebo e viu que uma das
estantes presas à parede desabara e jazia inclinada noutro móvel. Seus livros estavam
espalhados pelo chão e ele sabia que não teria tempo de arrumá-los naquele dia. Sem
demora, a androide lhe entregou três obras do colombiano e o motoqueiro escolheu o que
tinha o nome mais atraente: Cem anos de solidão. Escolhiam o que mais levariam quando
Ela puxou-o pelo braço até a rua, de onde começaram a escutar gritos nervosos. Um
jovem magro e de cabelo verde corria desesperadamente de algo que eles não conseguiam
ver.
– Miguel, me ajuda – berrou. Não o reconheceu, mas, antes que tivesse tempo de
O motoqueiro puxou a pistola que trazia consigo e correu até o portão da construção
quando mais duas daquelas criaturas apareceram correndo, o empurraram para o lado e
avançaram igreja adentro. Escutava gritos desesperados e só quando ligou a lanterna teve
direção do garoto, encurralado próximo do altar. Com formas humanoides, elas possuíam
sobressaíam aos toscos pedaços de carne artificiais sobrepostos em suas faces. A carnificina
começou quando um deles avançou sobre o garoto, derrubando-o no chão e rasgando o seu
braço fora com um puxão violento. Quase ao mesmo tempo, outro pulou e mordeu sua
Miguel guardou a pistola e puxou Alice para fugir quando uma quarta criatura pulou
do alto da igreja e caiu bem na frente deles num estrondo que destruiu parte do asfalto.
Assim como as outras, ela parecia ignorá-los e ia na direção do massacre quando parou e os
olhou. Assustado, o motoqueiro apontou sua pistola para a cabeça do monstro, que reagiu
farejando sua mão com displicência até dar-lhes as costas e se juntar ao banquete dentro da
igreja.
• • •
Sentado no sofá de casa, Miguel usava o rádio para contar a Fred o que tinha acabado
de acontecer. Suas mãos tremiam e ele ainda não acreditava no que vira, tampouco o
motoqueiro.
– Cara, você tem certeza de que não era gente disfarçada? Tem umas gangues que se
alguém com as mãos, porra! – rebateu. Chocada, Alice escutava a conversa ao seu lado. –
Eu vou lá há anos e justo agora, quando essa conversa de Angra e Éden começou, esses
– Pode ser, Miguel, eu não duvidaria. Vamos falar isso com o Comandante hoje à tarde,
fantásticas para responder àquilo que vira, mas só encontrou sossego debaixo de uma ducha
fria. Não tinha ideia de quem era aquele garoto ou como ele sabia o seu nome, mas tinha a
certeza de que não sobrou o suficiente dele para que o reconhecesse agora.
Arrumava-se para ir ao casarão quando alguém deu batidas fortes na porta e a visita
claro que não. Convidou-a para sentar-se e lhe deu um copo d’água enquanto ouvia a notícia
– Não é a primeira vez que ela some, Dona Ângela. Eu sei que a senhora fica
preocupada, mas ela vive enfurnada nesses morros. Ela pelo menos disse para onde ia?
– Eu não sei, meu filho. Ela estava andando com uns garotos de fora daqui, uns garotos
sofisticação. Era um celular de última geração, o tipo de coisa na qual ele jamais colocara os
olhos.
– Ela saiu com tanta pressa que até o deixou em casa. Disse... disse que ia numa festa
em Ipanema.
– Sim, eu sei. E isso já faz três dias. Desde então, não escuto uma notícia dela.
A mulher voltou a chorar copiosamente e deixou o motoqueiro sem ação. Não tinha
– Dona Ângela, não tem muito que a senhora possa fazer. Deixa esse celular comigo
que vou pedir a ajuda de alguns amigos. Assim que eu tiver uma resposta, entro em contato
com a senhora.
Minutos depois, Anderson e Nicolas chegaram afobados ao apartamento. Os dois
estavam a caminho da reunião no casarão quando Miguel pediu que voltassem para a Praça
– Miguel, a Nina deve ter enchido a cara com o novo namoradinho dela. Desculpa,
cara, mas ela andava completamente inconsequente. Deve estar feliz da vida com os
santinhos da Missão Cristã – atenuou Anderson. – E, mesmo se não estiver, a gente não
– Eu não sei. A Nina fazia muita merda, mas não tem razão para ela deixar de ligar pra
casa – avaliou Nicolas. – Ela pelo menos ia avisar, cara. Ela nunca ficou longe por tanto
tempo.
– Também acho isso, Nicolas. E é por isso que eu chamei vocês aqui.
O negro não entendeu a postura de Miguel, que jogou o celular em suas mãos.
rastreou chamadas. A gente vai ligar para o namorado da Nina e saber onde eles estão.
• • •
Os rádios dos três tocavam sem parar enquanto Nicolas conectava o celular ao seu
Miguel viu que Alice analisava o escritório com curiosidade. Apesar de ela não ter
dado um pio, tinha a certeza de que percebera onde estava: no mesmo lugar em que o
motoqueiro a despertara pela primeira vez. Além da androide, o próprio Nicolas agia de
maneira estranha. Miguel sentia que algo o incomodava, que ele evitava encará-lo nos olhos.
Preferiu não colocá-lo contra a parede até que aquela situação estivesse resolvida.
– Pronto – sinalizou o negro, estendendo o celular para o amigo. – É só você ligar que,
Não teve problemas para achar o número de Caio, o único salvo na agenda de contatos
do aparelho. Ligou uma vez e ninguém atendeu. Quando se preparava para discar
– Alô?
A única resposta que Miguel recebeu de volta foi o pesado silêncio que o segurou na
– Nina? Nina, onde você está? Sua tia está apavorada contigo.
A voz fraca da sua ex foi interrompida por uma gritaria e pelo som do celular caindo
no chão.
diálogo, reproduzido pelas caixas de som no computador, e lhe encaravam sem saber o que
dizer. Antes que Nicolas lhe desse a localização de Nina, ele já tinha certeza de que iria até
• • •
caminho secreto para as Luzes numa estação soterrada pelo desabamento de um prédio.
Qualquer um nos Escombros sabia que os túneis haviam sido selados logo após o
estabelecimento da Zona Internacionalizada. A passagem indicada pelo amigo deles era nos
restos de uma nova estação jamais finalizada por um dos governos que antecedeu a guerra
civil.
Antes de partirem, escutaram avisos de que aquele poderia ser o fim dos Fantasmas. O
na Praça da Bandeira.
A maior parte do túnel fora escavada na pedra, deixando gigantescas rochas expostas
nas paredes ainda não finalizadas. O chão revezava entre o liso absoluto do concreto bem
que cortava as Luzes com mais força cada vez que se aproximavam da estação de Ipanema.
O que mais irritava Miguel era a eternidade que precisariam passar escondidos.
Nicolas informara ao grupo que seria suicídio sair da estação em plena luz do dia para dar
de cara com a segurança pesada da Rio Alfa. O combinado era esperar a meia-noite no túnel
abandonado.
eu vou saber.
– Eles ainda estão no motel? – Miguel conversava com ele pelo rádio enquanto
Anderson cochilava dentro de uma escavadeira sem rodas esquecida no subsolo. A única
– Sim. São uns quatro quarteirões depois da estação de onde vocês vão sair. Não tem
como errar. Pelas fotos que achei, é um prédio de vidro azul-escuro com uma placa de neon
Já passava das dez horas da noite quando o ronco de motores os despertou para a
realidade. Apontaram suas tímidas pistolas para Juan e Fred, que apareceram com cara de
– Garoto, você cresceu um belo par de culhões, mas o Comandante está puto contigo –
Juan carregava uma espingarda de cano duplo nas costas e parecia segurar-se para não atacá-
lo. – Tão puto que mandou a gente vir tomar conta de você.
– Eu não vou voltar com vocês. Eu vou atrás da Nina. Sei que ele me ajudou com a
– Sabe o que ele disse pra gente? Disse que “aquele menino faz merda, mas eu gosto
muito dele”. E colocou o nosso rabo pra te ajudar nesse resgate que você e aquele seu amigo
preto bolaram.
– Ele tem boas razões pra gostar do Miguel – observou Anderson. – Foi ele quem
conseguiu achar o Oráculo. Coisa que nem ele nem os caras das Luzes conseguiram fazer
até hoje.
– O Comandante só me quer vivo porque sou a única conexão com o Oráculo, essa é a
verdade.
Miguel não via o mafioso desde a preleção da missão no Morro dos Macacos e sequer
teve tempo de agradecê-lo pela bateria de Alice, mas nutria pouca ou nenhuma admiração
por ele.
Calado até então, Fred puxou um maço de Marlboro e ofereceu aos motoqueiros antes
– O Juan está falando sério, Miguel. O Comandante gosta mesmo de você. Não sei se é
um gosto motivado pelos interesses ou pelas suas... habilidades. Mas isso não muda o fato
de estarmos putos por essa imbecilidade. Se tivermos que resgatar cada menininha que vira
– Você não sabe a metade. Com ele o Comandante está um pouco puto. – Fred sentou
perto de uma lanterna de Miguel e o grupo se reuniu em volta da luz. – Parece que seu
amigo não é só um cirurgião, Miguel. Sabe o que me incomodava? Como ele passou a
integrar os Fantasmas e participar das nossas reuniões mesmo sem poder nos ajudar em
– Não – respondeu. – Parecia quase natural ele ali. Desde o começo, ele faz parte de
Comandante. Ele conheceu muita gente com esse negócio que abriu... gente de toda parte
dos Escombros. O Nicolas ganha uma grana forte por isso. As próteses estão até em
segundo plano.
– Então... todas essas vezes em que ele me disse que o negócio tinha melhorado muito
foi...
– Foi porque o Comandante o contratou. Ele tem o mesmo status daquela equipe que
frequenta o casarão. Juntando as bolas agora, você acha que o Nicolas tinha conhecimento
técnico o suficiente para replicar as próteses mecânicas ou os implantes neurais que você
achava? Nem fodendo. Ele sabia até colocá-las, mas nunca soube reproduzi-las. Quem fazia
– Mas para que toda essa encenação? Se o Comandante está do nosso lado, não teria
– Aí é que está. – Deu uma tragada no cigarro e ajeitou os dreadlocks que insistiam em
cobrir sua visão. – O Nicolas entrou nessa para ser a nossa mordaça. Ele era pago para saber
como estávamos indo.
Miguel levou a mão à boca e coçou a barba rala que crescia em seu rosto. Tudo o que
Fred lhe contava fazia perfeito sentido e até explicava algumas coisas que eram um
– Por causa desse lugar. – Ele apontou para o próprio túnel. – O Comandante confiou a
ele esse segredo. Esse túnel era o trunfo dele para quando algum problema acontecesse e
seus homens precisassem invadir as Luzes ou fugir para cá, sei lá. Só o usaria em último
– E não termina aí. Parece que o Comandante cedeu ao Nicolas um dos seus homens
Miguel engoliu a revelação em seco e preferiu manter para si o que tinha visto de
manhã. Fred já sabia dos monstros de metal que vira na cidade, mas em nenhum momento
O negro começou a revirar a sacola com armas em busca do que usaria e puxou uma
– Eu mal sei atirar, cara. É mais fácil eu acertar vocês do que qualquer outra coisa.
– Acho que nem assim você me deixa mais puto contigo do que eu já estou – disse
Juan, que deitou e aproveitou as poucas horas que faltavam para cochilar.
• • •
operações do dia quando eles subiram por uma das rampas de emergência até a plataforma,
disparando para o alto e gritando para afastar as poucas pessoas que ainda aguardavam o
Saíram em fila indiana pela boca da estação, estampando o desespero no rosto de quem
quer que cruzasse o seu caminho. Miguel seguia o grupo tentando não se deixar admirar
pela beleza ao seu redor. Fileiras de prédios iluminados da base até o último andar
formavam um corredor polonês de telões com anúncios gigantes, varandas luxuosas, logos
de marcas desconhecidas e roupas que jamais vira na vida. Ousava desviar o olhar para os
carros e construções com o arrebatamento de um turista, boquiaberto com a cidade que não
dormia, com as luzes que jamais se apagavam. O ódio que sentia por aquela gente se
próximas para escapar dos motoqueiros. Deixou seu motor roncar eternamente no coração
das pessoas que quase atropelou na estrada de fúria dos quatro quarteirões seguintes. Era
impossível ignorar o Motel Chiba Blues, que mais parecia um diamante azul fincado em
meio às luzes douradas das ruas. Entre gritos e pneus de carros derrapando, os quatro
entraram pela garagem e foram direto para a recepção. Uma mulher jovem de rosto
impecavelmente maquiado e longos cabelos ruivos tremeu ao vê-los e tentou fechar a porta
– Garota, você quer voltar para a casa viva, não é? – perguntou o motoqueiro, com a
espingarda apontada para o rosto dela. – Um bando de moleques entrou aqui com uma
Um segurança com uma tímida arma de choque tentou surpreendê-lo, mas Juan não
idade caiu ensanguentado com um rombo no torso, cena que acabou com a timidez da
recepcionista.
– Obrigado, piranha.
Miguel desviou o rosto quando ouviu o som da escopeta disparando novamente e não
fez perguntas a Juan no caminho até o elevador. Com sangue espalhado pelo corpo por conta
Tomado pelo ódio, Miguel irrompeu pelo terceiro pavimento na frente dos amigos e
correu na penumbra do corredor decorado com pinturas eróticas até a suíte C-33. Deu três
Entrou no quarto e deu de cara com um dos meninos que vira na Missão Cristã
vestindo as roupas perto da janela. Miguel apenas ergueu um dos braços e o garoto voou
violentamente pelo vidro, ainda seminu. Escutou o som do seu corpo se estatelando em
A luxuosa suíte do Chiba Blues tinha uma cama redonda na qual sua ex-namorada
deitava amordaçada e com as mãos amarradas nas costas. Estava nua e com escoriações no
corpo todo. Seu estado era tão deprimente que parecia ter perdido a consciência por
completo. Não havia lágrima ou qualquer reação, apenas um par de olhos negros e vazios
fixados nalgum ponto cego. Estava viva, ainda que o resto do seu corpo dissesse o contrário.
Uma segunda pessoa estava ao lado da cama, dessa vez um homem de cabelos
grisalhos que deveria ter mais de sessenta anos. Usando apenas uma cueca, ele caiu sentado
no chão e tentava se explicar quando Miguel disparou dois tiros contra a sua cabeça.
Quando se virou para livrar Nina das amarras, alguém veio do banheiro, derrubou-o e
os dois se engalfinharam no chão. Sua pistola rolou para longe. Era Caio, que tentava
tão tosca e descontrolada que Miguel não teve dificuldade em jogá-lo para o lado.
O motoqueiro não soube de onde veio o reflexo, mas sentiu um calor correndo pelo
braço e não receou em golpear o abdômen do rival as mãos nuas. Refez, mentalmente, o
mesmo processo que aprendeu do Oráculo e sentiu os dedos transpassando carne e ossos do
garoto como uma lâmina até sair pelas costas. Agora encharcado de sangue, Miguel soltou-o
e observou com terror os últimos momentos de Caio. Ele o encarava com o pavor de quem
vê um monstro, apavorado demais com a própria morte para cuspir suas últimas palavras.
Caiu mudo no carpete do motel com as mãos no ferimento, tão impressionado quanto os três
Com Nina nos braços, ele saiu sem falar uma palavra no quarto e viu Fred colocar o
– Vocês não podem voltar pelos túneis do metrô, já tem uma equipe de seguranças da
• • •
começaram a cortar os céus no entorno do motel. As sirenes dos carros de polícia com logos
Na avenida que beirava as areias de Copacabana, Miguel olhou para o mar e se deparou
surpreso com as várias ilhas artificiais construídas e seus gigantescos prédios. Sentiu as
mãos de Nina, agora envolta num cobertor, apertarem a sua cintura e só então percebeu o
Guiados por Fred, tomaram a saída mais arriscada. Saíram da avenida principal e
entraram com as motos numa movimentada galeria comercial. Com mais tiros para o alto,
abriram caminho entre a multidão e tiveram relances da alta tecnologia. Vitrines com
volta com tanto espanto quanto os próprios moradores das Luzes. Eram peças de museu ali,
pelos policiais. Fred deu um berro e apontou para a ponte que saía do asfalto, atravessava a
areia da praia e levava a uma das mais modestas ilhas artificiais. Tratava-se de um domo
Logo que passaram pela ponte, seguranças fecharam as portas metálicas, impedindo a
entrada dos poucos policiais que não tinham ficado para trás depois da passagem pela
galeria. O domo os engoliu com as pesadas batidas de techno e tiveram que passar por um
Cercada por um batalhão de seguranças, Ruby Alford vestia apenas um curto vestido
preto de látex e os aguardava com o sorriso de quem extraía a maior parte do prazer na vida
levarem Nina à enfermaria. Recebeu de Miguel um olhar desconfiado. – Por favor, deixe que
meus empregados cuidem dela. É Miguel, não é? Quero você e os outros comigo, por favor.
Entraram na boate pela porta de frente e, após passarem por um discreto saguão de
ritmos eletrônicos da pista e projeções holográficas das mais variadas eram reproduzidas
espalhados no salão.
A francesa os levou por uma escada espiral até um trailer de metal suspenso por fios de
aço presos ao teto, no qual ficava seu escritório pessoal. Quem via o lugar de fora não podia
imaginar o luxo de dentro, onde havia um amplo ambiente com uma sala de reuniões, bar
privado e uma suíte digna de um hotel cinco estrelas. O lustre de vidro e os abajures
clássicos davam uma aura europeia à instalação. Sozinho no sofá semicircular de veludo,
– Um grupo de motoqueiros tocou o terror nas ruas da Zona Sul há poucos minutos.
Eles mataram cinco pessoas num motel e estão sendo perseguidos pela polícia na orla. As
autoridades suspeitam que a gangue veio da Rio Beta e invadiu Ipanema por túneis
abandonados do metrô. É a primeira vez nos últimos doze anos que alguém consegue
Ruby acionou o comando de mudo e Gian percebeu o grupo. Usando apenas calça
levantou e foi na direção dos motoqueiros, mas falou apenas com Miguel.
– Você veio dos Escombros e fez esse estrago todo só para salvar uma ex-namorada
viciada?
Miguel não respondeu, e o garoto continuou a falar, dessa vez, deixando transparecer
um pouco de admiração.
– Eu não te entendo, cara. Uma hora foge com o rabo entre as pernas e abandona a
gangue. Depois, entra de cabeça num esforço suicida para salvar uma mina maluca. Sua
– Não, capitão Pedro. Nós não vamos deixar seus policiais passarem. Você sabe que a
Styx é fora da jurisdição da Spartan, só entram aqui com a minha autorização. Foda-se,
invente uma história e diga que vocês prenderam os motoqueiros. Ou fale que eles
Sem que ninguém permitisse, Miguel sentou numa das poltronas, escondeu o rosto
entre as mãos e ficou em silêncio, alheio às risadas agudas de Ruby ao telefone. O sangue de
Caio ainda escorria por suas mãos e boa parte da sua roupa estava banhada dele. Anderson
pegou-o pelo braço e os dois foram para o banheiro, onde o amigo o despiu e colocou-o
– Ele matou alguém pela primeira vez – disse Juan. Gian assentiu com a cabeça e
participou da conversa.
– E por que não fazem isso? – perguntou Fred. – Por toda a merda que nós fizemos,
fazendo força para que vocês continuem. Mas o Scorza não entende que precisamos muito
de vocês – Gian pegou uma garrafa de uísque da mesa de centro e encheu três copos. – Se
– Sabemos que Myang recebeu um lucro violento com as pesquisas em cima dos
poderes de Angra. Mas ainda não temos ideia do que ele planejou para essa gangue Éden e
qual é o propósito de todo o circo que eles armaram nos Escombros no começo do mês.
Essa mulher está na cabeça de algo que ainda desconhecemos e estamos com medo.
– Só vocês podem nos dizer o que Angra está fazendo. Achávamos isso antes e agora
Angra, como realmente podemos fazer, fechamos o livro sem saber o final da história. Se
– Isso é bom – comemorou Juan, oferecendo um brinde com o copo de uísque. – Quer
dizer que podemos fazer a merda que nos der na telha e vocês ainda terão que babar ovo da
gente?
– Exato. Ou, caso não impeçam os planos de Angra, podemos não pagar um centavo do
combinado e ainda mandar um grupo de extermínio para vocês, e não para ela.
• • •
Miguel acordou por volta das cinco da manhã com seu rádio tocando incessantemente.
normal para perceber onde estava. Dormira no gabinete de Ruby no Styx e agora batalhava
– Olá, Miguel – disse uma voz monocórdica do outro lado da linha. – A senhorita Nina
O motoqueiro estranhou a ligação e checou o número, que mostrava uma série enorme
– Quem fala?
– Meu nome é Alfonse. Sou a inteligência artificial que rege parte do consórcio
formado pela Alford Techonology, Fiume Energy e Spartan Solutions. Também controlo
– Saia pela única porta da suíte, desça as escadas em espiral e, logo à sua direita, verá a
Saiu em silêncio para não acordar os outros motoqueiros, que dormiam esparramados
pelo lugar, e seguiu as instruções de Alfonse. No caminho, percebeu que, por onde andava,
as câmeras de segurança focavam nele o tempo todo. A boate agora era ocupada por um
pequeno exército de faxineiros que limpava todo o lixo deixado pelos frequentadores. Até
Nas escadas que davam para a enfermaria subterrânea, encarou uma das câmeras que
– Olá, Miguel – disse a mesma voz mecânica. – Não se preocupe. Estou apenas
A enfermaria da Styx não era muito grande. Tinha cinco leitos enfileirados, kits de
exagerasse nas drogas ou na bebida. Uma enfermeira solitária cochilava com a cabeça
apoiada na mesa de atendimento. Quando se deparou com mais uma câmera, dessa vez no
teto, teve a certeza de que a ideia de lhe avisar a respeito de Nina fora do próprio Alfonse.
Ainda não compreendia as Luzes o suficiente para entender como uma inteligência
artificial feita para tocar uma cidade administrava até uma boate, mas preferiu não se
afundar em perguntas para as quais não teria resposta. Sentou-se no banco de plástico ao
lado de Nina e, pela primeira vez desde o Motel Chiba City Blues, seus olhos pareciam
vivos.
Ela chorou silenciosamente logo que notou sua presença. Talvez estivesse fraca demais
para esconder o rosto, ou talvez também tivesse despido a vergonha. Coberta por um lençol
azul claro e com o rosto mais pálido do que o normal, a menina não movia um músculo,
– Eu vou te levar de volta para os Escombros. – Miguel acariciou seu cabelo e seu
rosto, sem saber exatamente o que falar ou se deveria perguntar sobre o ocorrido. – Sua tia
– Achei que você não fosse vir, que fosse me deixar... com eles. – Encostou sua testa na
dela e se esforçou para não chorar também. A que ponto sua namorada chegara na loucura
de fincar sua bandeira nas Luzes. – Por que você veio? Eu vi o que você fez. Miguel, porque
você os matou? Por que se arriscou? Eu só fiz merda, e eu faria de tudo para ver você na
Beijou a testa de Nina e afastou-se. Sua ex-namorada parecia chorar ainda mais agora.
Procurou sua mão por debaixo do lençol e segurou-a. Esbarrou no soro injetado no pulso
– Eles fizeram de tudo comigo, Miguel. Por dias. Foi nojento. Eu nunca... eu nunca...
– Ele disse que me levaria para uma festa, que queria me apresentar para os colegas de
faculdade. Eu fui tão burra! – Esboçou um movimento, mas o corpo parecia dolorido
demais para obedecer. – Ele me levou para aquele motel, disse que queria me conhecer
melhor. Eu estranhei... fiquei com medo... mas aceitei. Eu queria que ele me trouxesse para
as Luzes e aceitei.
apareceram. Eu gritava, gritava, mas ninguém me ajudava. Ouvi eles dando uma grana para
um dos seguranças e dizendo que “era só uma puta dos Escombros”. Eles revezavam.
Vinham homens, velhos ou garotos que ainda mal tinham barba no rosto. Eu nunca senti
Apertou a mão dela com mais força e suspirou. Sabia que aquilo era o resultado de
uma tragédia anunciada desde a primeira vez que Nina adicionou heroína e cocaína à
equação já desequilibrada que regia a sua vida. Parte dele ainda sentia um pouco de culpa
pelo descontrole da ex-namorada, mas já não havia o que fazer. Ela chegara ao fim do
– Não pense nisso, Nina. Ainda hoje você vai estar em casa. Vai passar uns tempos
– E a gente?
– Sou seu amigo, Nina. Mas não tem mais “a gente”. Agora você vai precisar andar
A menina fechou os olhos e sentiu as lágrimas quentes deslizarem pelo seu rosto até o
• • •
Miguel acabou expulso do quarto pela enfermeira logo que ela acordou. Irritada, a
mulher sem papas na língua o pôs para fora e ordenou que só voltasse horas depois, quando
perguntava onde conseguiria um pouco de café quando se deu conta da presença de Gian.
O afilhado de Scorza parecia tão desperto quanto ele. Ainda usava as mesmas calças
vermelhas e o rosto mal encarado do começo da noite. Não falou nada, mas Miguel sentiu
que era para segui-lo. Enquanto subiam de volta para o trailer suspenso de Ruby, ele
finalmente se pronunciou.
Já dentro do contêiner, puxou do teto uma escada de emergência dobrada e abriu uma
passagem para cima do compartimento. Subiu e ajudou Miguel a chegar ao topo. Juntos, os
dois sentaram na beira do trailer, suspenso por cabos de aço a uns 30 metros do chão, e
Sem aviso, puxou do bolso um tablet portátil, executou alguns comandos e deixou
Miguel assistir à sinfonia de luz que invadia o Styx. Camadas de aço no entorno de toda
Achou que se tratavam apenas de janelas gigantes, mas percebeu que eram enormes
– Foi.
– Senti só medo. – Gian esperou que ele continuasse e o motoqueiro demorou algum
assusta. E ver alguém morrendo por minha causa, me olhando apavorado. Foi uma sensação
– Só isso?
– Eu não consigo cortar ninguém ao meio com as mãos ou mandar gente voando por
janelas, mas também me senti assim da primeira vez. – Gian sorriu e estendeu um vidro
– O que é isso?
Deu de ombros, engoliu em seco uma das cápsulas e voltou a mirar os vitrais. Os
– A primeira vez que eu matei alguém foi nos Escombros – lembrou Gian. – Eu estava
intermediário que servia de contratante passou a perna na gente. Ele disse ao grupo que
nossa carga valia muito dinheiro e os filhos da puta a desviaram para uma empresa rival. –
Tomou várias cápsulas de uma só vez e cruzou as pernas em posição de meditação. – O que
os babacas não entendiam é que as empresas das Luzes dificilmente roubam entre si. Há
uma ou outra exceção, mas são raras. O dono da companhia logo me ligou e disse que
– E aí?
que tinham vencido e baixarem a guarda. Não levantamos um músculo por quase uma
semana. Foi aí que chamei uns amigos de uma firma de segurança para fazer uma limpeza.
Eu nunca tinha matado ninguém, nem fazia questão disso. Mas o filho da puta, aquele
contratante vagabundo... esse eu fiz questão de matar. Até hoje lembro dos olhos dele me
encarando também, apavorado dentro de casa. Era de madrugada e ele ainda estava pelado.
Não há nada mais deprimente do que um homem pelado implorando pela própria vida. Sei
lá, parece a antítese de toda a evolução humana – suspirou e encarou o nada como quem
revive cada momento da cena. – Dei só um tiro na testa. Acho que nunca, em toda a minha
– Na vida que eu vivo, não há espaço para isso, Miguel. Não vou negar que aqueles
olhos me perseguiram por um bom tempo, mas tantos outros já me encararam da mesma
forma de lá pra cá que nem é mais tão difícil. Você não vai esquecer disso, mas vai
melhorar.
Sem saber o que dizer, Miguel apenas assentiu com a cabeça.
E não era mentira. Na verdade, estava se sentindo bem melhor. Seus músculos
pareciam menos duros e toda a tensão da noite anterior se dissipava numa tranquilidade
quase sobrenatural. O próprio mar além das janelas parecia ter um contorno diferente e o
equilíbrio e morrer de maneira patética após tudo que enfrentara graças a uma queda
alucinógena de 30 metros. O que mais o irritava não era a maconha em si, mas sim por ter
sempre se vangloriado de jamais ter ingerido drogas. Sem aviso e quase sem escolha,
acabara incluso no rol dos usuários, completando o ciclo de decadência das últimas
para questionar Gian sobre o mistério da manhã anterior. Falou rapidamente do que vira no
centro do Rio, os gigantes de ferro com músculos artificiais atacando um jovem e ignorando
ele e Alice. Sem mostrar qualquer surpresa, Gian apenas assentia e escutava toda a história.
– Miguel, você nunca se perguntou o porquê de o centro ter essa fama de alto nível de
– Pensei que era uma lenda urbana. É o que mais tem nos Escombros. Já vi gente de lá
– Se o centro fosse “normal”, hoje estaria cheio de mendigos morando lá, Miguel.
“Vou contar algumas coisas pra você. Preste atenção. Sei que essa maconha sintética é
boa pra caralho, mas dá pra você se concentrar. Na década de 2020, a população do Rio de
Janeiro se revoltou com o governo federal por conta das novas jazidas de petróleo
grandes descobertas de petróleo do começo do século. Era coisa que deixaria a cidade
nadando em dinheiro, mais do que já tinha ficado na década anterior. Mas os estados
presidência derrotado nas eleições, mas muito popular na cidade, passou a encabeçar esse
movimento. Esse cara, que tinha muita simpatia do povo e fama de bom moço, começou a
“Mas eles não eram burros. Sabiam que o governo não deixaria o Rio se separar
revolta armada. Como o Rio de Janeiro foi a capital do Brasil durante boa parte do século
passado, a cidade ainda contava com um amplo contingente e era a que mais tinha
instalações militares. Quando menos se esperava, todos se uniram. Povo, militares, liberais,
militantes de esquerda e de direita, jovens. Todos queriam o Rio livre e algumas
“O governo federal reagiu e começou uma guerra civil separatista. Primeiro, uns
sobrevoar o Rio soltando bombas. Mas você não é burro, deve saber que nosso equipamento
militar sempre foi uma merda. A falta de armamento decente fez a guerra ficar emperrada.
Ninguém tomava a dianteira, o Rio conseguia se defender e o governo não admitia perder o
pessoal de fora abriu o olho para a situação e viu a solução perfeita: intervir
recente da ONU, isso implicava em colocar a região de conflito nas mãos de um esforço
“Óbvio, era só balela. Eles só queriam abrir caminho para que grandes multinacionais
lucrassem com o petróleo brasileiro em disputa. Em poucos meses, o lobby dessas empresas
pôr um fim à guerra civil. Tudo isso que você vê no centro da cidade e pelos Escombros,
toda aquela destruição foi causada em coisa de três meses. Eram bombardeios diários, tanto
de aviões quanto de navios. As pessoas morriam como moscas. A resistência não tinha
táticas de guerrilha, deixando um bom rastro de gringos mortos. Essa resistência aconteceu
fosse cego era aceito, então eles tinham um bom número de pessoas lutando. E ganharam o
“O que parecia uma rápida guerra cirúrgica estava se transformando num Vietnã
rebeldes puseram as mãos numa bomba nuclear suja e ameaçaram detoná-la, decidiram
encerrar a guerra de uma vez. Mas eles não podiam pagar na mesma moeda. Não podiam
jogar uma ogiva ali, a opinião pública não gostaria. Ao mesmo tempo, eles não queriam
mais ver seus homens morrendo. Então decidiram: é a hora de soltar as sentinelas.
naqueles tempos. Eles não conseguiam de jeito nenhum fazer soldados autômatos com
articulações boas o suficiente para serem úteis em áreas de combate, por isso desenvolveram
um híbrido: uma máquina com músculos artificiais humanos e uma leve inteligência
artificial aliada a um cérebro animal para os instintos básicos. Era segredo absoluto de
“Bem, pelo que você sabe, o Rio não venceu a guerra separatista. Então a limpeza
deles deu certo. Soltaram centenas desses bichos no centro e eles destruíram tudo que
encontraram pela frente. Sinais de rádio impediam que eles saíssem da zona de guerra,
então eles nem atacaram os civis. Monstruosamente fortes e praticamente blindados, não
estrago. A intenção era dizer que os rebeldes foram derrotados por um ataque das forças
pacificadoras e detonaram uma bomba nuclear suja numa última tentativa de defesa. Com o
centro isolado pelo pavor da ameaça radioativa, eles recolheram calmamente suas
sentinelas, na época conhecidas apenas como “ADAM”. O nome deles é uma sigla para
“A merda é que coletaram os ADAMs de volta usando sinais de rádio e alguns deles
tiveram seus receptores danificados durante a guerra. Esses ADAMs danificados não
• • •
Miguel não conseguia assimilar tudo o que Gian dizia. Parecia absurdo demais. Tinha
certeza de que nada daquilo era fruto das ilusões da maconha sintética, o que só o
amedrontava mais.
avaliaram a possibilidade de reconstruir todo o centro, mas perceberam que seria mais
barato e até lucrativo investir nas ilhas artificiais que você vê aqui no litoral. Elas ajudaram
alguns empresariais, outros residenciais, cuja construção foi bem menos demorada e
“E mais: logo que chegaram, Fiume, Spartan e Alford temiam o centro. Sabiam que era
uma área de fácil acesso às Luzes e que seria difícil vigiá-la. A história de que a região
permanecia radioativa era excelente. Foi aí que as sentinelas entraram. Hoje, elas servem
para assustar os moradores dos Escombros. Quem se aventura no centro geralmente acaba
“Mas isso não explica como eu frequentei aquele lugar durante todos esses anos e
“Agradeça aos seus poderes por isso. Na hora da limpeza, enviaram alguns soldados
junto dos ADAMs para supervisioná-los e todos eles eram psíquicos. Aquelas criaturas
conseguiam diferenciar psíquicos dos não psíquicos e até hoje, pelo que parece, mantêm a
– E as Luzes não têm qualquer interesse em exterminá-los? Esse assunto não pode
– Sim, com certeza. Por isso elas caçaram a maioria dos ADAMs remanescentes. Pelas
contas que a Spartan mantém, parece que sobraram apenas cinco unidades. São tão poucas
que, se alguém descobri-las, é só culpar os americanos. Elas foram deixadas lá para impedir
apenas seus sonares ligados à base de luz solar. Se eles detectam a presença de alguém nas
proximidades, atacam e devoram seus compostos orgânicos para recarregar suas baterias.
– Então elas me ignoraram porque sou um psíquico. E ignoraram Alice porque ela tem
– Bingo!
segurança de volta aos Escombros e todos dariam aquela incursão nas Luzes como um
assunto esquecido.
– E a tal bomba nuclear que os rebeldes tinham? Nunca foi detonada mesmo?
– Hoje quase todo mundo tem certeza de que não passava de blefe deles para assustar a
Otan. Quando reviraram o centro da cidade, não acharam porra nenhuma. E os rebeldes se
foderam, até porque foi justamente esse boato que fez os caras lançarem os ADAMs no
centro.
mundo?
– Não sei te dizer, Miguel. Sei que vocês são raríssimos e o mundo, em geral, ainda
KGB na Guerra Fria ou da polícia americana no século passado. Mas, se vocês continuam
desjejum por si próprias. Uma cafeteira automática preparava o café enquanto um aparelho
– A casa de todos é assim nas Luzes? – indagou Miguel, pegando um copo de café para
si e sentando à mesa.
– Nem um pouco.
O motoqueiro já gostava mais do que esperava de Gian, cujo estilo o lembrava mais dos
– Como assim?
para ela. E já era assim mesmo antes dos pais dela morrerem. Não é por menos que ela é
completamente maluca.
Miguel sentiu as câmeras se voltando para os dois na cozinha logo que Gian
pronunciou o nome de Alfonse. Provocador, o homem tatuado sorriu e acenou para uma das
lentes.
– Bem, acho que eu não posso sacanear muito o Alfonse na sua frente. Afinal, você
Heróis inesperados
Tech. Por uma pequena janela de vidro nos fundos do compartimento de carga, Miguel
cidade se levantava para o trabalho envolta numa aura de tranquilidade que nem parecia
ficar apenas alguns quilômetros além da desolação dos Escombros. A viagem foi curta e
logo o caminhão mergulhou na treva do túnel que ligava as duas partes da cidade.
Passaram primeiro no Andaraí para deixar Nina em casa. O motoqueiro pegou-a nos
braços, novamente adormecida, e não respondeu às perguntas de sua tia. Sem falar uma
palavra, esperou que ela abrisse a porta e deixou a ex-namorada deitada no sofá da sala de
casa. A mulher chorava copiosamente com a condição da enteada e não encontrou consolo
O motorista do caminhão disse que a carona seria apenas até ali e entregou ao grupo
um envelope de papel pardo com um discreto selo vermelho. Fred apressou-se em abri-lo e
– Vamos deixar o que aconteceu ontem para trás. Compreendo que algum de vocês teve
fortes motivações pessoais para fazer o que fez e eu respeito esse brio. Mas o nosso tempo
está acabando. Ainda hoje, se possível, invadam a garagem de Angra na Praça da Bandeira e
tragam qualquer objeto que possa ser útil ao Oráculo. Não há espaço para falhas. Do
Os quatro combinaram de se encontrar à noite. Miguel pediu para Anderson ver como
Alice estava no apartamento deles, mas não seguiu com o amigo. Pegou um caminho
diferente e foi esclarecer as últimas perguntas que a noite anterior deixara em aberto com
Nicolas.
estamos funcionando hoje” do lado de dentro. Estranhou a atitude, já que o colega atendia
qualquer um, até em feriados. Continuou a chamá-lo e Nicolas abriu a porta, irritado. Vestia
calças jeans e uma jaqueta militar aberta sem blusa por baixo. O desconforto entre eles era
nítido.
O amigo abriu passagem para que ele passasse e trancou o consultório. Nicolas, com
um olhar derrotado, ficou na mesa onde recebia seus pacientes e Miguel parou próximo da
janela que dava para uma das ruas adjacentes da Praça da Bandeira.
Tudo que o colega cultivara naquele lugar havia desaparecido. Os livros de anatomia,
os enfeites de sua estante velha, os aparelhos cirúrgicos, até a lâmpada no teto deu lugar a
um fio vermelho desencapado. O que quer que Nicolas sofrera, sua jornada estava
recomeçando do zero.
Luzes para vocês e por ter causado a morte de um garoto que ele gostava.
– Isso.
Seu antigo sócio não adotava mais a velha postura de esquivas e sátiras através das
quais passava como uma enguia por entre todos os obstáculos. Ele estava anormalmente
reto, sério. Não lembrava qual fora a última vez em que Nicolas conversara com ele de
dinheiro das Luzes, dificilmente você continuaria sendo meu sócio e meu estoque de partes
estava caindo.
cirurgias eram só uma fachada. Você estava sendo pago para vigiar a gente, não era isso?
Nicolas pegou seu notebook na gaveta da mesa e ligou-o. Logo surgiram na tela várias
imagens de Miguel, Alice e dos outros motoqueiros. A mesma pasta continha horas de
das Luzes era muito grande pra confiar num bando de motoqueiros. Mas a cirurgia nunca
foi fachada. Eu trocava o meu salário como informante por mais aparelhos e ajuda
especializada sobre próteses. Eu queria sair dessa. Queria dinheiro pra manter meu negócio
– Eu conheço o seu caixa, Nicolas. Sei o quanto você ganhava. Dá pra você viver uma
vida mais do que confortável nos Escombros por muitos anos sem trabalhar só com a grana
que você já tem. Pra quê isso? Porra, você vendeu a gente pra esse tal Comandante, que nem
para um antigo quadro com a anatomia humana detalhada. Foi o único que permaneceu no
escritório após a limpa do Comandante e ficara apenas por razões sentimentais. Era do
ralés nas Luzes e um apartamento de cômodo único para alugar em Botafogo. O preço era
muito alto, mas dava pra pagar após alguns anos de muitas próteses e delações pro
Comandante. – Suspirou e soltou a revelação que Miguel já esperava. – Pra mim e pra Nina.
– Nicolas, há quanto tempo você tem juntado esse dinheiro? Até alguns meses atrás, eu
– Juntos, eu sei. Faz mais de um ano que eu comecei nessa. – O tom de voz de Nicolas
deixava transparecer uma tristeza profunda, mas não parecia haver muito espaço para
arrependimento. – Entrei nessa logo depois que ela começou com as drogas. Eu vi que vocês
não iam durar muito como casal. Você não parecia disposto a aceitar aquela vontade louca
de Nina, o sonho de ir para as Luzes. Percebi que isso só levaria ela a um ciclo de
autodestruição. Eu não pretendia separá-los ou roubá-la de você. Apenas esperava pelo fim.
Num primeiro momento, sentiu raiva de Nicolas, mas o que podia falar dele? O próprio
Miguel abrira mão de tudo em que acreditava para reviver Alice e agora fazia parte do
submundo do qual tanto sentira asco. E se, para salvar a androide, precisasse trair a
Balançou a cabeça negativamente e desviou o olhar para a janela. Só queria que aquela
merda toda terminasse e as coisas voltassem para o lugar, mas os dias de abril pareciam
Nina?
– Bastante. Mas algo me diz que ela vai desistir dessa maluquice de uma vez por todas.
– Ainda não sei. Acho que agora vou ter que recomeçar. Estou pensando em me
sua casa. Também deletei todos os arquivos que ainda não tinha enviado para ele.
– Pode deixar.
• • •
Anderson ainda não se sentia confortável ao lado de Alice, mas era impossível negar
que a sua comida era impecável. Sem ter o que fazer na ausência dos motoqueiros, ela
passou a manhã lendo livros e preparando um almoço especial para os dois, mas o desvio de
Os dois trocaram poucas palavras até a comida ficar pronta. Desde o primeiro
“aquilo” com desconfiança. O motoqueiro observou-a cozinhar atentamente, mas não com o
medo de alguém que espera ser traído no segundo seguinte, mas a curiosidade de quem
Alice serviu um suculento bife grelhado com rúcula e tomate seco acompanhado de
suco preparado por ela mesma. O motoqueiro não se lembrava da última vez em que comera
um prato tão bem preparado e evitou se intimidar com o olhar fixo da cozinheira do outro
lado da mesa.
– Ficou bom? – ela finalmente indagou, quando Anderson estava quase terminando o
prato.
– Sim, está delicioso. Muito obrigado, Alice. – Ele perdeu a vergonha de encará-la nos
olhos e finalmente fez a pergunta que tanto o incomodava. – Me conta uma coisa. Você e
O tom de voz dela deixava transparecer uma desolação distante que o motoqueiro
tentava alcançar.
– Eu não tenho ideia da relação que vocês têm um com o outro, mas ele tem um
carinho enorme por você. Achei até que ele estivesse apaixonado no começo, mas há pouco
tempo percebi que toda aquela loucura pra te salvar era só preocupação. Mas e você? Como
– A gente passa noites em claro. Conversamos sobre vida, sobre arte, sobre tudo. Mas
eu não sei. Não sei nem o que sentir a respeito de mim mesma. O que eu posso dizer é que
– Jornada?
– Sim, a jornada da existência. – Ela puxou o prato dele, separou os copos e talheres na
pia e voltou para a mesa. – Para vocês, a existência individual é um pressuposto atrelado à
própria formação da identidade. Todos vocês passam a vida inteira aprendendo que são
únicos, que são seres autônomos com amores e vontades próprias. Esse não é o meu caso.
– Quer dizer que você ainda está se adaptando à ideia de existir, é isso? – Ela
confirmou com a cabeça. – Fuçar com motos me fez aprender um pouco de tecnologia, mas
ainda não tenho o conhecimento que alguém das Luzes teria. O que sei é que um programa
de computador segue as instruções do seu programador. Como você pode saber se tudo o
que você está vivendo até agora não é um passo a passo que alguém colocou no seu cérebro?
cérebro orgânico e uma consciência que não responde apenas a impulsos predeterminados.
– É aí que você se engana – corrigiu Alice. – Você também tem um código-fonte, como
compilação de informações responsáveis pelo funcionamento de todo o seu corpo, até dos
seus sentimentos. Há genes que influenciam no caráter e humor das pessoas. Toda essa
informação, junto das suas experiências individuais, define o que você é. A individualidade
de vocês é fruto dos códigos únicos formados pela combinação genética dos seus
antepassados.
Anderson silenciou. Era ateu, o que fazia a explicação de Alice ser perfeitamente
plausível segundo suas crenças – ou a falta delas. Não acreditava em alma ou qualquer
– Sim, mas não sei até que ponto – admitiu. – Eu sorrio, me admiro, me irrito. Ontem
eu fiquei nervosa quando soube da ida de vocês para as Luzes. Eu fiquei com medo de
perder Miguel e só consegui descansar quando o Comandante me ligou para dizer que tudo
deu certo.
– Sim. Era Nina, ex-namorada do Miguel. Ele me falou muito sobre ela nas nossas
conversas. Parece ser uma menina muito... – Alice se calou. Não sabia ainda como defini-la,
apenas que não gostava das suas atitudes. – O jeito dela é tão mesquinho e egoísta. Não
consigo compreender como alguém pode ser daquele jeito. Acho que desgosto dela.
Anderson deu uma risada que deixou a androide confusa e finalmente se levantou da
O fim da tarde nos Escombros trouxe consigo um comboio de blindados das Luzes. Os
aguardando o melhor momento para dar o bote. O Sol se escondeu das metralhadoras
antiaéreas que traziam a tiracolo e sumiu por trás do horizonte de prédios destruídos.
engoliu a parte pobre do Rio de Janeiro. A única iluminação vinha dos faróis do comboio,
Sem qualquer aviso, os primeiros tiros dos blindados foram disparados quase ao
mesmo tempo em que os soldados de elite da Spartan desciam dos veículos com seus
onde os invasores da noite passada vieram. No rastro de destruição que deixaram na Zona
Sul, cinco pessoas foram mortas, inclusive o jovem Caio Ferreira de Castro, filho do
A câmera do repórter aéreo não focava nas vítimas por razões óbvias. As balas feitas
tiveram tempo de subir em suas motos e desaparecer pelos becos ilesos. Um grupo tentou
pegar armas e contra-atacar, mas não foi páreo para o poder de fogo das tropas da Spartan.
Fachadas inteiras de prédios e casas ficavam carcomidas pelo apetite das metralhadoras, que
só descansaram quando perceberam que já não havia mais qualquer sinal de vida no
quarteirão.
um dos nossos cidadãos mais ilustres não pode ser tratada com descaso”. Da China, o
ataque. As mães corriam desesperadas pelas ruas colocando os filhos para dentro e um
Pelo rádio, Miguel não acreditava no que ouvia. O Comandante garantiu a ele e
Anderson que o ataque era uma represália pela incursão na Rio Alfa e pediu que nenhum
deles intervisse. Tinha vontade de pegar a sua moto e se entregar, mas estava claro que a
A certeza de que todas aquelas mortes eram culpa sua o apavorava. Deitado num canto
do apartamento para evitar balas perdidas, sentiu Alice segurar a sua mão, mas não tinha
– Uma coisa é vocês invadirem as Luzes de surpresa, como vocês fizeram ontem. Outra
é atacar esses blindados. Vocês não têm a menor chance, seria suicídio – disse o
Comandante, negando mais um apelo de Anderson para ordenar um contra-ataque. – Agora
enquanto os três restantes penetraram ainda mais nos Escombros. O apartamento onde os
três moravam dava de frente para a praça, mas eles não se atreviam a colocar os rostos para
fora. Agachados no quarto, eles conseguiam ouvir apenas o ronco dos motores
desaparecendo à distância.
– Algum de vocês ficou ferido? – Perguntou o Comandante. – Não consigo falar com
Juan e Fred, mas acredito que eles estão vindo para cá.
– Vou mandar para vocês a transmissão de rádio que captei dos blindados. – Eles
escutaram um clique do rádio e uma voz rouca assumiu a transmissão. – “Tango para
Omaha, dois dos Fantasmas estão no antigo hospital universitário. Mande três unidades para
pelo pior e sabiam que não haveria tempo de chegar ao hospital antes das tropas da Spartan.
O som de baques abafados e gritos chamou a atenção dos três, mas não os preparou
para a explosão que viria em seguida. A bola de fogo que engoliu a praça tingiu de laranja a
fachada dos prédios no entorno. Correram até a janela para ver o que acontecera e deram de
dos gêmeos gordos da Éden. A aberração carregava consigo um lança-granadas M-32 cujo
direção dos soldados com um som oco. As tropas da Spartan se juntavam para contra-atacar,
mas um vulto pulou do alto da passarela no meio deles e começou a retalhá-los numa
velocidade sobre-humana.
No meio de vários adversários confusos, Angra mirava armas e pescoços com suas
mãos, cortando-os numa dança ritmada pelos disparos de Black. Com um rifle de longa
distância, o psicopata de longos cabelos negros alvejava seus alvos com tiros precisos. Todos
perfurados pela inclemência dos projéteis da Remington. Em pouco tempo, estavam todos
mortos.
população local berrava elogios à gangue de Angra, que ignorou a ovação, buscou suas
motos e partiu atrás do outro comboio. Para trás, a Éden deixava um rastro de corpos e
• • •
Os Escombros ainda se recuperavam dos estragos da noite anterior quando Juan bateu
metal. Com o caminho livre, um desanimado Miguel desceu do banco do carona e lançou
da Spartan horas antes, aquela descoberta selava o completo fracasso dos Fantasmas. Eles
não apenas perderam a única chance de investigar a origem de Angra, mas deixaram a
rodava na Rio Beta, nas conversas de bares, ruas, hospitais, mercados. Não havia um
morador dos Escombros que estivesse alheio aos feitos de Angra contra a Spartan. O que
universitário.
metralhar a frente do hospital com as antiaéreas caso não atendessem às exigências, a Éden
acabou com o que restava das forças da Spartan sem que nenhum dos seus homens se
ferisse. Na contramão, a covardia dos Fantasmas por não dar as caras e a invasão insensata
deles nas Luzes no dia anterior caíram no desgosto popular. Até no quarteirão dos
motoqueiros, onde poucas semanas atrás predominava o ódio coletivo contra Angra e seus
Com a ajuda de Miguel, Juan colocava as motos e tudo mais da garagem dos
Fantasmas no caminhão. Não havia mais segurança para eles ali, apenas xingamentos e a
– A maior merda que eu fiz foi entrar nessa invenção do Fred – rosnava Juan. Pela
primeira vez desde que o conhecera, Miguel via traços de cansaço em seu rosto. Ele era um
dos motoqueiros mais antigo dos Escombros e, por debaixo da barba clara e da falsa
coragem que vinha da cocaína, teve uma noção de todo o seu desgaste. – Agora a gente não
tem mais nada. Você aposta quanto que esses caras das Luzes não vão pagar um centavo pra
gente?
– Dinheiro não é problema pra eles. Pagar eu acho que eles vão – admitiu Miguel,
entregando-lhe uma pesada caixa de ferramentas. – Só que agora nós estamos todos um
pouco queimados.
para esvaziar isso aqui, provavelmente teria aparecido uma multidão só para linchar a gente.
Há um mês, ninguém falava em gangues sem tocar o meu nome. Agora eu sou a merda da
merda. Até os caras dos Caçadores estão me ignorando. Liguei pra eles a manhã inteira e
nada.
Do lado de fora da garagem, as pessoas que passavam pela rua olhavam para eles com
desconfiança. Provavelmente estavam reconhecendo os dois, mas ainda não tinham certeza.
rápido, já teriam sido atacados há muito tempo. Os poucos que sabiam quem eram e tinham
– Eu sou novo nesse meio, Juan. Mas a gente tem alguma chance?
peças e ferramentas, já estavam no caminhão. Faziam apenas uma varredura nos móveis
para ver se não faltava nada. – De descobrir alguma coisa sobre essa tal de Angra? Esquece.
É
Até os caras das Luzes estão batendo cabeça. Ou a gente acaba com a Éden na batalha das
– E eu sei lá. Os Escombros são cercados, mas não é uma região pequena. Às vezes
minha vontade é de tocar o foda-se, ir morar em alguma favela isolada e abrir um botequim
arriou o vidro e colocou o braço para fora da boleia. – Achei que você gostasse disso tudo.
entorno dos blindados destruídos. Todo mundo queria saber um pouco mais sobre a ação da
pairava sobre a cidade partida. Depois daquele ato de rebeldia, o futuro dos Escombros
– Uma hora você cansa, garoto. Já perdi muito amigo botando o rabo na linha de fogo
para as Luzes. Já matei muita gente. Hoje, eu não consigo fazer mais nada sem dar um teco.
Quando ele começou a falar, teve a impressão de que estava ao lado de outra pessoa, de que
– Eu não entrei nisso por causa de dinheiro, Miguel. Eu entrei que nem você, pra salvar
“Eu já era casado, tinha até uma filha. Trabalhava como padeiro longe daqui, em
Marechal Hermes. Vivia numa miséria aceitável para os padrões dos Escombros. Casei com
uma amiga de infância, tive meu primeiro filho aos vinte, era honestamente feliz e não tinha
“No meu aniversário de vinte e cinco anos, minha casa caiu. Meu pai teve um AVC e
ficou muito debilitado. A gente tratava dele em casa mesmo, mas às vezes tinha como fugir.
Tínhamos que vir até o hospital. Para fazer exame, essas coisas. AVC é uma merda, mas
verdade só aconteceria semanas depois, quando descobrimos que ele tinha uma doença
chamada miocardite.
“Eu não sei explicar direito o que era, lembro que um dos meus irmãos falava sobre
uma inflamação no coração causada por um vírus. Sei que os médicos deram pra ele uma
primeira crise da doença, coisa que a maioria das pessoas raramente consegue fazer. Mas
poderia salvar a vida dele e ninguém nos Escombros estava preparado para uma cirurgia
dessas, não havia equipamento, gente especializada, porra nenhuma. Mas eu fucei tudo,
andei de cima pra baixo nessa cidade e encontrei um médico que me deu um preço irreal. Se
eu pagasse o suficiente, ele conseguiria um coração no mercado negro e uma unidade de
“Era uma quantia absurda e meus irmãos não se animaram com a ideia. Talvez
juntando durante alguns anos, conseguiríamos a grana, mas não dava tempo. E, pra falar a
verdade, todo mundo na família já tinha se conformado com a morte dele. Apenas
“Miguel, eu não sei como é a sua relação com seus pais, mas eu adorava o meu. Eu
cresci colado nele. Foi com ele que aprendi a ser padeiro. Foi ele quem me mostrou as
músicas do Roger Waters. Até a pegar mulher eu aprendi com ele. Eu não me conformei,
cara. Eu queria aquela grana de qualquer jeito e sabia que a única maneira era nas gangues
ou no tráfico de drogas. Como eu não ia com a cara daqueles funkeiros favelados, aluguei a
“Claro, minha família inteira caiu de pau em mim por causa daquilo. Até o meu
próprio pai, que detestava qualquer fora da lei, fosse motoqueiro ou traficante. Jovem, ele
chegou a espancar um irmão mais velho que se aventurou como soldado numa boca de fumo
e o arrastou de volta pra casa. Pra ele, trabalho justo era a única forma de fazer dinheiro,
mais nada. Mas eu ignorei todos eles. Foda-se a opinião dos outros, eu queria o meu pai
“A vida de motoqueiro começou devagar, mas em uns dois meses eu já tinha feito
algum nome. Eu era bom de porrada, maluco e todo mundo gostava de mim. As missões e
as brigas começaram a valer cada vez mais grana e às vezes eu passava vários dias seguidos
na Praça da Bandeira. Minha família me detestava, cara. A minha esposa foi morar com a
mãe dela e sequer abria a porta pra mim quando eu tentava visitar nossa filha. Na cabeça de
“Sabiam que, naquele estado debilitado, meu pai não ia resistir à notícia de que o filho
predileto virara um motoqueiro. Meus irmãos não me deixavam nem visitá-lo. Foi aí que eu
cresci ainda mais nesse meio. Eu era um moleque novo, puto, sem família e sem nada a
“A grana começou a entrar, mas eu incorporei toda a vida de motoqueiro. Orgias com
as putas da Vila Mimosa, bebedeiras de madrugadas inteiras, drogas. Tudo no pacote. Era
uma vida que eu sequer imaginava, que eu nunca tinha experimentado. E a saudade da
minha mulher e da minha filha só piorava as coisas. Eu tentava me esquecer delas nos
porres, nas festas, em cada puta que eu pegava. Até que eu consegui a grana toda. Voltei pra
Marechal Hermes como um herói volta de uma guerra e mostrei pra minha família tudo que
eu havia conquistado. Como resposta, eu ouvi um não, você acredita? Um não absoluto.
Depois de muito insistir, eles aceitaram em apresentar a proposta ao meu pai. E é isso que
– É. Ele negou. Disse que era a maior vergonha da vida dele saber que seu filho estava
no crime.
Seus olhos brilhavam. Miguel se perguntava se mais alguém sabia daquela história e
– Ele morreu de desgosto uma semana depois. No leito de morte, meus irmãos
disseram que ele perguntou por mim. Disse que queria me ver antes de ir.
Miguel não sabia se o brilho nos olhos de Juan escondia lágrimas que se recusavam a
descer, mas sentia que era melhor a conversa terminar ali. Quando desligou o motor do
do mafioso.
– É engraçado, não é? Para gente como o Comandante ou aqueles malucos das Luzes, a
vida é como um conto de fadas. E mesmo assim eles conseguem fazer merda, conseguem
ser até piores do que a gente. Se eu tivesse metade disso, Miguel, hoje eu teria a minha casa,
– O que eu quero dizer com tudo isso, cara, é que essa vida absorve a gente. Assim que
você conquistar o que precisa, saia dessa merda. Por mais que eu queira voltar a ser o
padeiro pai de família de antes, por mais que eu saiba que era mais feliz daquele jeito, hoje
sei que matei meu “eu” antigo pra sempre. Não tem mais volta.
• • •
mesma posição de antes. A fumaça concentrada pelos cigarros de Juan e Fred deixava o
– Nós não temos ideia de onde procurar – admitiu Fred. – E a gente não tem ideia de
como ela enfrentou os caras da própria Spartan se eles estão juntos nessa. A impressão que
eu tenho é a de que alguma coisa vazou. Alguém caguetou a existência do Oráculo e a Éden
costume e parecia tão exaurido quanto os motoqueiros. – E nem sabemos onde Angra se
– Mas você ainda mantém a rede de câmeras da antiga Companhia de Trânsito do Rio,
não é? Achei que fossem seus olhos nos Escombros – insistiu o negro.
– E são, Fred. Mas a Éden sumiu justamente depois de passar numa área que é um
enorme ponto cego. Nós reviramos o bairro inteiro, mas não encontramos nada. De algum
jeito, ela conseguiu chegar ao seu novo esconderijo. Falando nas câmeras, as gravações do
O paraguaio que trabalhava para o comandante entrou na sala com um monitor de tela
plana nas mãos e o instalou na mesinha de centro. As cortinas fechadas e o fedor de tabaco
começavam a irritar Miguel, que assistiu com impaciência o homem montar a aparelhagem.
Ele conectou um plug que vinha das costas do manequim no monitor e saiu tão calado
quanto entrou.
cena mudou para a entrada do hospital universitário, onde seu grupo enfrentava o restante
de longa distância deram assistência à líder da gangue, que encerrou a ameaça em poucos
segundos. No fim, o outro Golias aparecia dirigindo um pequeno caminhão e levou o grupo
– Não é para isso que estou mostrando esses vídeos para vocês. Os Fantasmas não
teriam nenhuma chance contra todo esse armamento. Quero que prestem atenção nisso –
instruiu o Comandante.
Ele pausou o vídeo no momento em que Angra pulava do alto da passarela da Praça da
Bandeira no meio dos soldados e começava seus ataques. O zoom aproximou a imagem, que
movimentos da psíquica.
acontecia e voltou a imagem. Dessa vez, um pequeno círculo vermelho apareceu onde ele
Logo que Angra caiu no chão e liquidou dois inimigos mais próximos, um atirador a
alguns metros de distância apontou a arma para ela e puxou o gatilho. Dificilmente um
soldado treinado erraria um disparo daqueles, mas a arma travou. O mercenário ficou
desesperado, deu duas pancadas no cano e voltou a apontá-la contra a mulher, mas já não
havia mais tempo. Ela já pulara em sua direção com uma faca na mão direita, enterrando-a
no pescoço.
Outro avanço nas imagens, que dessa vez mostravam a batalha em frente ao hospital
universitário. A jovem foi surpreendida por dois soldados que lhe apontaram suas
submetralhadoras à distância de um tiro certeiro. As armas dos dois falharam e ela não teve
– Legal, nossa heroína agora pode inutilizar armas. É isso? – indagou Juan. – A nossa
– É o que parece. Ela não se arriscou nem um pouco no show de ontem – avaliava o
respeito de psíquicos e esse poder em particular nunca foi registrado. Você se acha capaz de
aparelhos eletrônicos ao seu redor com a mente. Não sei se vocês já pegaram nas armas da
Spartan, mas todas elas têm controladores eletrônicos, minicomputadores de bordo,
parecer sempre estar um passo à frente deles, Angra agora conseguia interferir em aparelhos
ao seu redor. Para piorar, a proximidade do confronto direto com ela o deixava ainda mais
tenso.
– Você colocou Nicolas para vigiar nós quatro, Comandante – lembrou Miguel. – O
de nós deixou vazar a informação do Oráculo, mesmo que por acidente? – Juan, Anderson e
Fred o olharam com desconfiança, mas ele tentou se justificar. – Não estou achando que
alguém daqui vendeu a gente, mas eu mesmo posso ter comentado isso com alguém e não
me lembrar.
– Isso também passou pela minha cabeça e eu já chequei todo o material que o Nicolas
me passou. Pelo menos no material que tive acesso, vocês sequer comentaram isso com
– Os únicos que mantêm contato direto conosco são Gian, Ruby e Scorza. Tenho
certeza de que nenhum deles nos traiu, mas não sei se os canais de comunicação deles estão
comprometidos.
Juan se levantou, ajeitou as roupas e caminhou na direção da porta. Estava irritado com
– Cabeça de tela, me desculpa, mas a gente não tem mais o que conversar. Eu sei que
você chamou a gente pra morar contigo porque quer manter nossas rédeas bem curtas. Vou
– Sintam-se livres para usar as dependências da casa. Isso é para a sua própria
Miguel dividiu com Alice um pequeno quarto do casarão. Ele passou a maior parte do
dia na cama, lendo livros, enquanto a androide se resignava com a tristeza imposta pela
decepção dele. Fazia um calor dantesco para uma tarde de abril e só Fred se aventurou em
Não só eles sabiam que havia pouco que pudessem fazer, mas também não tinham
mais certeza sobre a luta que travavam. O confronto entre Angra e as forças da Spartan
indicava alguma ruptura entre as partes, mas notícias das Luzes davam conta de que a
menos de uma semana da batalha das gangues, os Fantasmas julgavam saberem menos
Com a mente exausta, mas sem um pingo de sono, Miguel trocou a cama pelos jardins
no fim da noite e caminhou a esmo no entorno da propriedade. Esperava ter uma epifania
repentina que lhe mostraria o que fazer no momento seguinte, uma revelação súbita que
tirasse o grupo do poço no qual se encontrava. Como resposta, escutou apenas o zumbido
deixado à disposição deles. Não entendia muito de informática, mas o arquivo com o vídeo
da noite anterior estava salvo bem na área de trabalho. Repassou-o dezenas de vezes até que
o sono começou a perturbá-lo. E foi com os olhos quase pregados que percebeu o detalhe
• • •
Era quase uma da manhã quando Miguel parou a moto na entrada do hospital
recepção quando ele entrou pela porta da frente e andou apressado até o outro lado do
prédio. Graças à falta de leitos, alguns doentes dormiam em macas e bancos nos corredores.
Alguns moviam a cabeça para vê-lo passar, mas a maioria estava ocupada demais com o
O velho levantou num pulo e logo o reconheceu. Lobato era pai de um amigo de escola
– Miguel? Garoto, está tudo bem contigo? Meu filho falou de você e...
– Lobato, está tudo bem comigo. Eu não tive nada com aquela merda toda de ontem.
Lobato o escutou com um pé atrás. A história que corria nos Escombros era a de que
Miguel e seus comparsas foram os responsáveis pela resposta enérgica das Luzes, o que o
colocava numa seleta lista de desafetos da cidade. Seu pedido também não era dos mais
– Por favor, Lobato, eu sei que não mandaram ninguém das Luzes pra buscar os corpos
dos soldados mortos. Fiquei sabendo que eles estavam aqui. Eu preciso muito disso.
– Miguel, só de conversar contigo eu posso acabar linchado nas ruas, ainda mais te
ajudando.
Sonolento, o senhor olhou para os lados e viu se alguém os vigiava. Faz-tudo noturno
do hospital havia décadas, fora agraciado com o cargo de responsável pelo necrotério desde
– Eu posso perder meu emprego por isso, não vou ficar lá dentro contigo.
escondido.
destrancar a porta do necrotério. Antes de fechá-lo pelo lado de fora, deu um aviso.
– Porra, garoto. Você devia ir visitar seus pais em vez de ficar se metendo com
Ignorou o alerta de Lobato e foi para as gavetas do necrotério. A frente de cada uma
delas era decorada por uma pequena placa com a data de entrada do corpo. O cadáver de
uma mulher suja com cara de mendiga jazia na mesa central, seu tórax aberto para fins que
ele desconhecia.
Abriu uma das gavetas com data e hora da madrugada anterior e confirmou suas
suspeitas. Como de costume, o hospital deixava intactos os corpos de pessoas que não eram
dos Escombros para evitar problemas com as autoridades das Luzes. O primeiro cadáver
cuja gaveta Miguel explorou ainda estava vestido com o uniforme da Spartan e todo o seu
O primeiro tinha um ferimento à bala na cabeça, agora uma massa de sangue e carne
disformes. Engoliu o nojo a seco, bateu a gaveta e partiu para o próximo. Procurava um
corte lateral na garganta, ferimento que achou em vários deles. Angra era perita em usar as
mãos como lâminas e pouco atacava os peitorais protegidos pelas várias camadas de fibra
Depois de quase quinze minutos procurando o corpo certo, achou seu alvo.
Praticamente intacto, ele ainda vestia os óculos de visão noturna e tinha apenas uma faca
fincada na jugular, a mesma que vira no vídeo, a mesma faca que levaria ao Oráculo.
Capítulo X
– Eu estava preocupada com você – confessou Alice. – Uma hora você estava andando
– Desculpe, Alice. Reparei num detalhe do vídeo e tive que vir pra cá. Tô em
– Eu entendo. Tenta só avisar da próxima vez. Com tudo isso que está acontecendo,
não dá para relaxar um segundo. – Ela ficou calada por algum tempo. – E me desculpe por
Madureira abrir com algo que poderia gerar uma reviravolta em mãos e, mesmo assim, seus
pensamentos não saíam de Alice. Já não dava mais para negar que algo estava acontecendo
entre ele e a androide, mas não sabia se deveria dar prosseguimento àquilo.
O tempo todo sentia-se vítima de algum engodo. Como se, quando finalmente se
deixasse levar pela atração, acabaria descobrindo que tudo não passara de um delírio seu.
Que, com uma simples análise apurada, descobririam que ela era só um androide
Beleza ela tinha de sobra. O corpo não era voluptuoso, mas muito bem moldado e
definitivamente atraente. O rosto e os cabelos cacheados loiros lhe davam uma aura
angelical e era difícil tirar os olhos dela em alguns momentos. Mas isso era só superficial.
Se quisesse uma mulher bonita, não faltavam prostitutas na Vila Mimosa, e todas a um
preço bem acessível. O que o assustava eram as cicatrizes que ela poderia deixar.
De certa forma, já aceitava que ela era um indivíduo tão complexo quanto ele ou
qualquer ser humano, talvez até mais. As noites de conversas em claro e os olhares
acidentais que trocavam em momentos inesperados denunciavam isso. Talvez não tivesse
tanto medo de ela se revelar uma simples máquina pré-programada, mas sim da ideia de se
O movimento no mercado começou a ficar mais forte por volta das cinco e meia da
manhã, mas só viu o Karmann-Ghia de Manoel quase duas horas depois. Facilmente
primeira vez que o vira. Trazia consigo no veículo Amélia, com suas roupas características
Entrou na loja quando eles ainda acendiam as luzes e arrumavam os santos. A recepção
não foi tão calorosa quanto imaginava. Manoel o cumprimentou com um aceno com a
cabeça e Amélia apenas lhe dirigiu um olhar grave, sinalizando para que a seguisse até o
porão nos fundos. O Oráculo sentou na mesma poltrona de palha da última vez e Miguel
– Meu filho, como vocês fizeram isso? Vocês colocaram todo o Rio de Janeiro nas
– Sei que você fez isso para resgatar uma menina. Aliás, você parece ter um fraco por
elas. Primeiro joga tudo para o alto e tenta salvar um androide. Depois, quase mata seus
amigos para resgatar uma ex. Você pode parecer bonzinho para quem anda contigo, meu
filho, mas está na cara que pensa mais com a cabeça de baixo do que com a de cima.
Miguel silenciou e desviou o olhar. Pela primeira vez, perguntou a si próprio se não
teria ficado longe de tantas encrencas se fosse tão indiferente às mulheres quanto Anderson.
– Se você está aqui, é porque precisa da minha ajuda – disse o Oráculo. – Me mostre o
Bandeira, o sumiço dos seus pertences e a ideia de usar a faca para tentar descobrir mais a
respeito de Angra. Ele entregou-a para Amélia. Não havia nada que a diferenciasse de uma
faca militar convencional, era apenas uma lâmina grossa e bem trabalhada sobre uma base
negra de carbono.
– Vamos lá, espero que você esteja preparado para mais uma daquelas viagens que nós
clarão tomando conta de sua visão. Guiadas por Amélia, as imagens vinham atropeladas e
Miguel não tinha controle sobre elas. Primeiro, se viu em avançados prédios de algum lugar
que se parecia com as Luzes, depois ouviu sons de tiros e finalmente o burburinho de uma
rua movimentada em horário comercial cujas calçadas estavam abarrotadas por centenas de
pessoas.
Chegou a Rio Beta nas mãos de um homem que parecia um bandido qualquer de rua e,
perto do fim, presenciou uma tempestade terrível no cais do porto dos Escombros. O
comercial com as paredes carcomidas pelo tempo. O aspecto dava conta de uma construção
luxuosa no passado, mas tudo o que conservava daqueles tempos era o quadro que indicava
permaneciam sentados como um par de estátuas ao lado delas, seus respiradores artificiais
Angra. O psicopata se afastou da motoqueira e abriu uma mala retangular da qual tirou as
peças do rifle de longo alcance. Enquanto montava a arma, puxou a faca militar e jogou-a na
direção da companheira.
– Suas mãos são mais afiadas, mas você pode precisar disso – falou o rapaz, voltando
os olhos para o seu equipamento logo depois. Agora que o via de perto, Miguel notava o
quanto Black tinha um porte amedrontador. Os cabelos negros longos um pouco abaixo dos
ombros, o rosto magro e o nariz aquilino davam ao olhar frio dele um ar ainda mais sinistro.
Angra pegou a faca no ar e colocou-a num compartimento na manga do collant militar
que usava. A peça negra que lhe cobria todo o corpo parecia mais fina do que uma folha de
papel. Além de alguns compartimentos espalhados pela roupa, usava também um cinto com
– Você tem certeza de que isso é seguro? – ele indagou, impaciente com o silêncio
dela. – A gente não vai estar lidando com motoqueiros dessa vez. E você não pode morrer.
– Nós estaremos de volta em menos de uma hora. Só preciso que você e um deles –
apontou para os Golias – se posicionem nos lugares que indiquei e façam seus trabalhos.
passo da operação.
Black terminou de montar o rifle, o engatilhou e conferiu os dispositivos para não ter
qualquer imprevisto. Seu rosto, nem de perto, denotava alguma satisfação. A impressão que
Miguel tinha era a de que ele não se importaria em matá-la no momento seguinte se sua
– Eu não te entendo. Você cresceu nessa latrina. Sabe mais do que ninguém que esse
povo não se mexe pra porra nenhuma. Pra quê isso? Você realmente acha que, ganhando o
– Acho – ela respondeu, secamente. Angra prendeu seus cabelos castanhos com uma
fita e colocou uma pequena pistola no coldre. – Você vai entender já nos próximos dias.
– Lúcia, não sei o que aquele cara colocou na sua cabeça, mas isso não tem solução.
Pelo menos não agora. Essas pessoas estão nessa situação porque querem. São pobres e
excluídas porque nem lhes passa pela cabeça a ideia de lutar de volta, de crescer. Eles são
felizes na mediocridade. Ninguém vai largar o conforto das suas camas, por mais bolorentas
ordenava o começo das operações nos Escombros. Black deu um suspiro desanimado e
– Até o final do mês, você vai ver os moradores dos Escombros marchando em direção
às Luzes. E eu vou cobrar a retribuição por eles. Nem que seja a última coisa que eu faça.
Miguel cruzou de volta a ponte da memória para a realidade num baque e, quando se
recuperou, deu de cara com uma expressão confusa que pouco combinava com Amélia. Tão
desorientado quanto ela, percebeu as lágrimas que desciam pela sua pele escura. O Oráculo
se levantou, caminhou até a porta de entrada do porão e abriu-a, estendendo a mão para que
o motoqueiro saísse.
– Eu não tenho nada para falar contigo, Miguel. Por favor, saia.
– Como assim? Nós combinamos que você nos ajudaria a parar Angra.
– Nós combinamos que eu ajudaria vocês a descobrirem mais sobre ela. E já cumpri
naquela faca, eu consegui, mesmo que só por alguns segundos, ver o mundo com os
mesmos olhos que aquela mulher vê – Amélia sorriu. – Ela sofreu muito até chegar aqui e
vai derramar bastante sangue. Mas a visão dela é maravilhosa. Me desculpem, não posso
• • •
A primeira pessoa para quem Miguel deu a notícia de que o Oráculo não estava mais
com eles foi Fred. O antigo líder da Peste tomava café da manhã sozinho na varanda do
casarão. Esperava vê-lo triste, mas a reação dele não foi muito diferente do que vira em
Amélia.
batalha das gangues. O Comandante me deu a bateria da Alice, não posso simplesmente
– Acho que os outros também vão pensar assim quando souberem disso. Ainda temos o
dinheiro do resgate de Emmerich pra receber. Acho que essa batalha de domingo será a
– Me desculpe por ter fodido todo nosso planejamento pra salvar a Nina. Se não fosse
espreguiçou longamente, ajeitando os dreadlocks. – Isso foi até bom. Descobrimos que essa
– Você sabe que não é tão simples, Fred. Isso ainda não explica a participação da
Miguel percebeu que Alice vigiava os dois por uma das janelas. Forçou um sorriso para
– Lembra-se do que você disse para a gente quando tentamos te convencer a entrar
para a gangue, logo no começo? Foi naquele bar em frente ao Pedro Ernesto. Você falou que
a morte dos amigos de Anderson e Juan eram ossos de ofício, que eles mesmos escolheram
esse caminho ao se tornarem motoqueiros – recordou Fred. – E você não estava errado,
Miguel. Eles sabiam do risco quando se tornaram motoqueiros. Angra fez aquilo tudo para
se promover e agora ela é adorada em toda a cidade. Porra, você sabe qual é o apelido dela
agora?
– Não.
– Nossa Senhora dos Escombros. Vi uns babacas comentando isso ontem à noite,
quando dei um rolé pra tentar investigá-la. Mas, como você mesmo disse, ainda precisamos
participar do encontro e saíram com suas motos para a cidade. Quando falou a eles sobre as
intenções de Angra, sentiu o conflito em suas expressões. Ainda que inconformados pela
morte dos seus colegas de gangue, nenhum deles reprovava a suposta revolução que a Éden
Dessa vez, não havia qualquer imagem na televisão pela qual o mafioso conversava
com eles, apenas estática. Miguel não precisava ver o seu rosto de verdade para saber que
– Se Scorza ficar sabendo disso, é bem provável que intervenha diretamente nos
Escombros. Ele vai querer a cabeça de Angra antes que ela dê início a essa tal revolução –
comentou.
– Nossa parte acabou, então? – perguntou Fred. – E você não pretende falar com ele a
– Desde que nossa tentativa de roubar pertences da Angra falhou, passei a ter certeza
de que nosso vazamento é do lado de lá. Não sei se é Scorza, Ruby ou alguém ligado a eles,
mas nós combinamos que eu assumiria integralmente a responsabilidade pelas ações nos
Escombros. Só vou passar alguma coisa para eles quando nosso contrato terminar.
– Exato.
descobrirmos nada sobre Angra, como fica a minha situação? Quero dizer, o pagamento
pelo resgate do Emmerich é alto, mas ainda não cobre a bateria que alimenta Alice.
– Ainda não tenho uma resposta para você, Miguel. Mas, em último caso, posso
utilizar seus serviços em outras frentes. Preciso fazer uma viagem e volto apenas domingo.
Conversamos lá.
– Mas a batalha das gangues já é na segunda. O que faremos até lá? – questionou Fred,
• • •
gigantesca entidade que desperta para a vida após anos adormecida. A mão que os conduzia
permanecia invisível, vivendo apenas no imaginário popular. Angra se tornava uma lenda e
a batalha das gangues deixou de ser um simples dia no calendário dos motoqueiros para
figurar como ponto de ruptura com tudo o que tinham vivido até então.
Pela primeira vez desde que os muros da Rio Alfa foram erguidos, as Luzes viam o
lado pobre da cidade não como uma legião de miseráveis, e sim como um rebelde perigoso.
Folhetos apócrifos começaram a aparecer nas ruas, inflamando o povo contra as empresas.
Os funcionários das fábricas das Luzes na parte pobre da cidade largaram seus empregos.
foram atacados na porta do hospital universitário enquanto tentavam reaver os corpos dos
soldados mortos. Um deles acabou morto e os outros feridos. A população local exigiu que
a direção do necrotério cremasse os corpos numa fornalha comum – destino dos indigentes
Naquela mesma noite, um comboio que transportava material naval para reparos numa
instalação dos Escombros foi atacado por uma multidão de trabalhadores misturada com
motoqueiros. Os motoristas dos caminhões, todos moradores das Luzes, foram mortos e
na parte pobre da cidade. Em cada ação, nunca se esqueciam de celebrar a nova heroína.
Sem qualquer explicação, a Spartan não respondia aos ataques de maneira enérgica. As
constantes rebeliões nos Escombros recebiam como resposta mensagens vagas e garantias
vazias de que tudo seria apurado no seu devido tempo e que “as providências necessárias já
estavam sendo tomadas”. A ausência de autoridades dava cores mais fortes aos protestos e,
na noite de sábado para domingo, os Escombros viviam numa anarquia silenciosa. Não
havia roubos nas ruas, conflitos de traficantes, sequer brigas. Era como se toda a população
Miguel passou esses dias recluso no casarão. Lia, conversava com Alice e tentava viver
sua vida da maneira mais normal possível até a batalha das gangues. Tinha vontade de saber
como estavam Nina e Nicolas, visitar seus pais ou simplesmente passear pelo centro, mas se
Eles não traçaram estratégia alguma para o confronto, não se reuniram mais nem
ouviram qualquer palavra do Comandante e de seus contratantes das Luzes. Fred e Juan
passavam a maior parte dos dias fora e voltavam mais desanimados do que quando saíam. A
sensação de serem o contraponto da força revolucionária que se formava nos Escombros era
a pior possível.
O motoqueiro não conseguiu dormir no dia que antecedeu o confronto. Tudo lhe
perturbava e temia pelo futuro de Alice. Se o Comandante tinha sido capaz de tirar tudo de
Nicolas, não via razões que o impedissem de fazer o mesmo com ele caso seus objetivos não
fossem cumpridos. No meio da noite, um suntuoso carro prateado subiu o morro do casarão
ao mesmo tempo em que o rádio de Miguel recebeu uma mensagem. Era do próprio
substancialmente nos dias anteriores. O mafioso liberou a maior parte dos seus
funcionários, alguns moradores das Luzes, para evitar que fossem pegos no turbilhão de
amigos foram os que menos questionaram o meu gosto. – Gian vestia um Armani impecável
muito parecido com o que o próprio manequim costumava usar. Ele encheu dois copos com
cachaça e ofereceu uma das cadeiras a Miguel. – Teve até um cara que puxou um revólver e
com o Comandante e realmente percebeu que ele e Gian nunca estavam juntos. A primeira
coisa que lhe veio à cabeça foi o resgate de Nina. Naquele dia, o Comandante parou de falar
com eles justamente quando chegaram à boate Styx, onde Ruby os esperava.
Luzes revolveram em sua cabeça como átomos num acelerador de partículas e se chocaram
com as outras memórias daquela noite, como a simpatia excessiva de Gian. Não falou nada.
Gian observou os móveis ao seu redor, como se eles fossem responder Miguel por ele.
De terno e com a maior parte das tatuagens encoberta, o motoqueiro o via um pouco mais
– Começou quase como uma brincadeira, cara. Já há alguns anos eu tomo conta das
coisas aqui nos Escombros para o Scorza. Uma vez, para preservar minha identidade numa
reunião com motoqueiros daqui, inventei isso tudo e a ideia acabou pegando – lembrou. Sua
voz denotava um desgaste enorme, mas ele falava da sua jornada com orgulho. – Claro, no
começo não era uma coisa tão trabalhada. Era só um monitor e olhe lá. Mas gostei da ideia
– Não. Aliás, ele nem sabe que sou o Comandante. Eu comecei como o faz-tudo dele
por aqui. Era eu quem contratava os criminosos quando ele precisava, lidava com os
motoqueiros, a porra toda. Quando me dei conta, conhecia tanta gente que já podia andar
com as minhas próprias pernas por aqui. Foi então que separei uma grana e montei esse
casarão.
cachaça e pediu para que Miguel o seguisse. Só então o motoqueiro percebeu a pista que
estivera ao seu alcance o tempo todo. Entre as várias tatuagens espalhadas pelo torno do
mafioso, estava a frase: ¡Hasta la Victoria Siempre!, de Che Guevara. Os dois desceram até
o térreo da mansão e sentaram no muro de pedra que separava o terreno do resto dos
Escombros.
– Porque eu gosto de você pra caralho. De vocês quatro, aliás, mas especialmente de
você. Quando nós tivemos aquela primeira reunião, achei que fosse esbarrar com um bando
de leões de chácara de merda bancando os fodões. Eu só lido com esse tipo de gente aqui.
subindo o Morro dos Macacos que nem um doente para te salvar, achando que era você
quem estava prestes a ser queimado nos pneus. Vi suas conversas com Alice. Vi Juan e Fred
– Vi isso também, mas é como eu te disse na Styx. Sua sorte é que seus patrões são
mais doentes que você. E me incluo nessa história. Aliás, aquela merda que vocês fizeram
pode vir a calhar, dependendo do que essa Angra vai fazer quando...
– Eu ainda não te entendo. Se nos trata tão bem assim, por que fez aquilo com o
Nicolas?
Se os Escombros tinham alguma vantagem sobre as Luzes, eram as suas noites. Com o
estrelas brilhavam com intensidade. Do muro de pedra no alto do morro, tinham uma vista
privilegiada dos céus. Gian virou um gole de aguardente direto da garrafa e respondeu uma
– Miguel, nos últimos meses, qual foi o momento em que você mais gostou de Nicolas?
comemorações que fizeram logo após a descoberta de boas peças nos Escombros. Em
nenhuma delas, ele conseguia sentir-se próximo do negro. Pensando bem, o momento mais
encarando as estrelas. – Contratei o Nicolas para trabalhar comigo porque ele era bom no
que fazia e conhecia muita gente. Mas nunca gostei dele. No início, só achava ele um filho
da puta duas caras disposto a se aproveitar de qualquer um. Com o tempo, eu aprendi que
Miguel. E já estava tão no alto que não conseguia mais descer. Ele mentia para você sobre as
próteses, para a Nina, para mim, para os clientes, até para si próprio. Ele nunca esteve nem
aí para ninguém, só para a ideia fixa de pegar a sua ex-namorada e levá-la numa viagem só
de ida para os Escombros. Ele tinha até um bom objetivo, gostava dela, mas seguia todos os
meios errados.
“Acho que você conhece a história do Juan, é parecida. Ele entrou para as motos “só”
para salvar seu pai e veja quem ele é hoje. Ele incorpora todo o espírito dos motoqueiros. O
Nicolas estava se transformando num verdadeiro filho da puta “só” para ajudar a Nina, mas
é um caminho sem volta. Se eu pedisse, ele me dava as cabeças de vocês quatro numa
“Ele estava preso à ideia de levar a Nina. É assim com todo mundo, cara. As pessoas
são muito cômodas. Elas não sabem buscar novas opções, vivem restritas ao caminho no
qual caem e passam suas vidas lutando para se manter dentro dele. Não sei se você me
entende, mas eu puxei a base do castelo de cartas do Nicolas. Eu quis tirá-lo dessa vida. E
acho que fiz um bom trabalho. Pelo que fiquei sabendo, ele ainda não conseguiu uma vaga
para trabalhar no hospital universitário, mas se juntou a uns médicos que fazem consultas
– Você quer dizer que tinha até essa reação dele em mente? – interrompeu Miguel. –
Não acha muito exagero tentar prever tudo isso? Ele poderia ter piorado, poderia tentar
vendê-lo para outro criminoso e ganhar dinheiro à custa do que descobriu aqui.
– Você não entende, Miguel. Meu trabalho é gerenciar pessoas. Desde que eu era um
executivo nas Luzes, sempre foi assim. Você é um exemplo. O que te impedia de tentar
sumir com a Alice quando ela despertou? Seria uma merda te achar nos Escombros e você
sabe disso. Mas eu te dei a bateria, não dei? Eu sabia que você não aguentaria a pressão,
mas tinha certeza de que você era leal. Eu faço isso porque sei até onde posso levar as
pessoas. Às vezes eu perco as minhas apostas, mas tenho ficado melhor com o tempo.
fossem tão facilmente manipuláveis, tão previsíveis. Enquanto os dois conversavam, ele
sentiu pela primeira vez naquele final de semana uma dose de tranquilidade. Para o bem ou
para o mal, em menos de 24 horas tudo estaria acabado e não precisaria mais pensar em
Angra ou na Éden.
A tal revolução, se realmente acontecesse, não era problema dele. Ia pegar sua moto e
Alice, levá-las para o canto mais distante da cidade e evitar confusões até que aquela
– O que você acha de amanhã? – indagou Gian, como se lesse seus pensamentos. –
– Não tenho a menor ideia. Só quero que isso acabe logo. Pra falar a verdade, não sei
nem se realmente quero enfrentá-la. Só queria entender exatamente o que ela planeja.
retirando seus equipamentos mais caros dos Escombros. Até no breu daquela noite, era
– Eu sei que você vai achar que sou um doente – prosseguiu Gian -, mas eu gosto dos
Escombros.
– É fácil falar isso quando você tem todo esse dinheiro e a opção de ir e vir. – Miguel
não escondia sua insatisfação com aquele pensamento. – Já ouvi muito desse papo de exaltar
a pobreza e a humildade como se elas carregassem alguma pureza. Não é assim, cara. Quem
vive aqui não tem opção, não tem futuro. E não tem nada de bonito nisso.
– Não me tome por um desses riquinhos rasteiros de esquerda, Miguel. Achei que você
me conhecesse melhor.
– Então me diga, o que você vê de bonito nisso? – indagou, apontando para o horizonte
de prédios destruídos.
– A situação dos Escombros é decadente e vocês vivem na miséria, isso não dá para
negar. Mas o que vocês não percebem, nem poderiam perceber, é que aqui se criou uma
sociedade diferente de tudo que se vê lá fora. Claro, a falta de segurança facilita a ação dos
bandidos e muita gente morre de graça nessas ruas, mas vocês estão protegidos contra...
vivemos hoje numa sociedade voltada para um bem-estar inalcançável, sempre atrás de uma
felicidade que nunca vem. Trabalhamos em escalas cada vez mais árduas para manter o
status social de um bom emprego, gastamos todo o nosso dinheiro com coisas que nós não
sucesso definitivo que nunca é cumprida. Diariamente, somos bombardeados por uma
quantidade tão grande de informação que nossos cérebros estão entrando em curto.
“Gastamos milhares de dólares para viver num estilo de vida mais estressante e
desgastante do que alguém com uma fração dos nossos salários. E tudo isso acontece ao
alimentos e, agora, na dificuldade até de encontrar água potável. Acho que, em nenhum
momento da história da humanidade, a vida dos ricos foi tão supérflua e imbecil”.
– E é por isso que você anda com uma frase de Che Guevara nas costas e exibindo
disso tudo é que você elimina a escolha dos mais pobres. Na condição em que a gente vive,
esse mundo alienado é um paraíso. É fácil pra você dizer, do alto da sua torre de marfim,
que a vida dos pobres é mais digna quando nunca passou fome na vida, nunca viu as
– A questão é que você, crescido aqui, não consegue entender como os Escombros são
fascinantes – rebateu. – É verdade o que você diz, as condições daqui são péssimas. Só não
se engane pensando que os Escombros são parte de uma realidade cruel e única na história
favelas, sempre existiram parcelas excluídas como vocês. A diferença é que a cidade de
vocês é uma viagem de volta no tempo para uma época em que as pessoas eram um pouco
mais próximas, a vida era menos fútil e as paixões mais verdadeiras. Vocês não têm a ilusão
das redes sociais, não são bombardeados pelo marketing, não são joguetes políticos. Foi por
“Eu reconstruí esse casarão para fugir das Luzes. Meu pai é diretor-executivo da Fiume
e, para falar a verdade, sempre cagou para mim. Ele queria que eu fosse o primogênito
capaz de refletir toda a glória empresarial dele. Quando viu que eu detestava aquela merda,
passou a viver como se eu não existisse. Pouco se fodia para o que eu fazia. Arrumei grana,
passei a viver só e o Scorza transformou aquele meu ódio em algo produtivo. Aí acabei
parando aqui”.
– Acredite, cara, quase tudo comprado a preço de banana nessas lojas de móveis
velhos. Alguns eu resgatei de casas destruídas e gastei uma grana para recuperar. Fiz isso
tudo usando, sei lá, menos de 10% do que ganho nos Escombros, sabia?
– Claro, 10% do que eu ganho já é muita coisa. O resto eu uso para financiar algumas
coisas por aí. Aquela escola no condomínio abandonado, a mesma que você estudou, recebe
uma verba forte minha. O hospital universitário, os postos de saúde improvisados, o sopão
• • •
Miguel vestia uma jaqueta preta por cima da blusa quando Alice entrou no quarto e
ajudou-o com os últimos preparativos para a batalha das gangues. Entregou-lhe as luvas que
o “Comandante” deixara para ele durante a madrugada e separou todo o equipamento numa
bolsa de viagem. Por baixo das roupas, usava cotoveleiras, joelheiras e proteções no
abdômen.
Sem aviso, deu um beijo na testa da androide, que devolveu o gesto com um olhar
– Eu sei que você vai – respondeu. Se seu sistema circulatório artificial tivesse
funcionalidades mais humanas, estaria com o rosto enrubescido. Não soube como reagir,
mas teve certeza de que compreendia melhor o que algumas músicas dos Beatles queriam
dizer.
Quando subiu na moto, do lado de fora do casarão, o Sol se punha e o céu dourado o
lembrava de algum quadro que não conseguia nomear. Era o único a saber que, no terceiro
andar, Gian os vigiaria o tempo todo naquela última missão. E o tranquilizava saber que
Alice ficaria protegida com ele. As motos dos Fantasmas rosnaram pelas silenciosas ruas
dos Escombros. Tudo estava deserto e os prédios semidestruídos mais mortos do que nunca.
As portas das lojas não ousaram abrir e apenas um ou outro rosto perdido deu alguma
A Praça da Bandeira era a antítese do resto dos Escombros. Todos os olhos e ouvidos
da parte pobre do Rio de Janeiro se aguçavam para entender uma sensação que não tinham
caminho para que chegassem à garagem reservada a eles. Em todo o percurso, a sensação de
Miguel era a de que aquelas pessoas estavam se segurando para não agredi-los com suas
próprias mãos. Ouviram xingamentos e gritos louvando Éden antes de fecharem as portas de
metal da garagem, deixando Fred e Anderson seguros para checarem as motos uma última
vez.
– Tem uma galeria aqui atrás? – perguntou Miguel. Além da saída que dava para as
ruas, a loja tinha uma porta pela qual um longo corredor escuro se estendia. Já reparara
puxou um frasco de metal do bolso e espalhou uma carreira de cocaína sobre o balcão de
vidro.
bebida. Achou uma escada para a sobreloja, outra ampla galeria vazia, e foi até a janela para
ver a Praça da Bandeira com calma. Um número muito maior de pessoas estava presente
para o duelo, ele estimava que passava dos milhares. No asfalto, na passarela, em todos os
prédios do entorno, ao longo da linha de trem desativada que passava num viaduto próximo.
Estivera poucas vezes nas batalhas, mas nenhuma delas atraíra tanta atenção. Respirou
fundo e, por um instante, compreendeu a razão pela qual Juan recorria à cocaína para
encarar aquilo. A pressão sobre-humana daquela plateia, naquela noite, estaria toda contra
eles.
Preparava-se para voltar quando o ruído de uma porta rangendo chamou sua atenção.
Olhou para o lado e não soube como reagir quando se deparou com Angra. Por cima da
costumeira roupa negra que lhe cobria todo o corpo, usava um sobretudo cinza. Com as
mãos enfiadas nos bolsos, ela se aproximou sem cerimônia e os dois se observavam com
igual curiosidade.
Sem saber explicar o porquê, Miguel se sentia pequeno perto dela. Pensou em atacá-la
quase que por instinto, mas conteve o impulso e mirou cada detalhe do seu rosto. Era uma
mulher que, assim como ele, não deveria ter chegado sequer aos vinte anos. Mas algo nos
– Vocês vão mesmo nos enfrentar? – ela perguntou, num tom que não soava como um
desafio.
Ela foi até a janela e, como ele fizera momentos antes, encarou a multidão que
aguardava o confronto. Olhando-a com atenção, ele não compreendia como um par de olhos
tão frios conseguiria inflamar um levante nos Escombros e personificar a indignação de toda
aquela gente.
– O que você pretende fazer com isso? – questionou Miguel. – Você não está atrás de
revolução alguma. Nós já sabemos que a Éden entrou nisso com a ajuda de uma empresa
das Luzes.
O blefe soava estranho até para os seus próprios ouvidos. A maior parte dele nutria
cidade naquele ou nos próximos dias. Só queria entender o que estava por trás de todo
– Eu uso o ferro para ferir o ferreiro, Miguel. – Ainda com as mãos enfiadas nos
bolsos, ela girou nos calcanhares e caminhou de volta pela porta de onde viera. – Você tem
ideia de que está lutando pelas mesmas pessoas que transformaram os Escombros no que
Quis continuar, quis dizer que lutava por Alice, pela honra da sua palavra, por algum
aceitação silenciosa de que, se havia um lado errado naquela história, era o deles.
– Se você sobreviver a esta noite, está livre para lutar do nosso lado – limitou-se a dizer
• • •
Assim que os motoqueiros desceram a ladeira para longe do casarão, Alice subiu até o
terceiro andar e entrou na sala secreta do Comandante, agora destrancada. Seu cômodo era o
maior de toda a construção e abrigava um enorme telão côncavo com imagens das câmeras
ou ampliá-las.
completamente abarrotada de gente. Aquela visão deixou Alice ainda mais convicta de sua
– Não, na verdade é o contrário. Quero te pedir um favor. Eu vou entrar no meu modo
de hibernação e me ligar à bateria no quarto. Não sei quanto tempo isso vai demorar, mas,
– Mas... achei que você quisesse ver a luta do Miguel. Tem certeza?
– Absoluta. Eu já tinha decidido isso antes mesmo de eles saírem. Eu estou muito
nervosa. Esse tipo de antecipação... – Alice encarou-o na esperança de que não precisasse ir
pensamento. – Eu não sei, eu não gosto, não me sinto bem. Foi assim naquela noite em que
ele e os rapazes salvaram Nina nas Luzes. Eu fico muito nervosa. Não quero acompanhar
isso.
Alice voltou para o quarto onde ela e Miguel estavam hospedados, sentou-se na
as roupas dele lhe traziam uma pontada no coração e uma vontade de chorar que ela não
conseguia exprimir em palavras. Só queria que o motoqueiro voltasse para casa a salvo para
poderem passar mais noites conversando. Estava convencida de que havia uma ponte estreita
que os ligava e a estranha sensação de que as conversas não eram mais suficientes lhe
assustavam.
No momento em que procurou pela palavra “paixão” em seu banco de dados para saber
se aquilo se encaixava com seus sentimentos, entrou em estado de hibernação. Mas seus
sentidos não apagaram, como esperava. Sem explicação, foi envolta numa chuva de dados e
imagens aleatórias, luzes cintilantes que cortavam seu raio de visão e montaram, em questão
de segundos, a realidade que guardava dentro de si: o pequeno bairro japonês com uma
escola.
Assustou-se quando se viu ali novamente. Sonhara com aquela vizinhança várias vezes
enquanto adormecia nos Escombros. Não sabia quanto tempo, mas tinha a sensação de que
passara anos, talvez décadas, presa naquele ambiente virtual. Apenas nos últimos meses
“Ele” não tinha nome e jamais explicara o que era ou de onde viera. Aparecia de
tempos em tempos nos seus sonhos, vestindo um terno preto sobre o corpo magro de pernas
longas. Os cabelos negros eram penteados para o lado e emplastados em creme. O rosto não
era bonito nem feio, mas de causar uma indiferença tão grande que era capaz de esquecê-lo
De volta àquele mundo, ele estava sentado na varanda principal do segundo andar da
escola, em cima do relógio de ponteiros, de frente para o pátio principal. Alice correu para
fantasmagórico. O imenso jardim de cerejeiras com pétalas dançando ao vento num eterno
fim de tarde dourado. Nos anos que passara ali, aquela paisagem era seu cotidiano. Agora
Ele virou-se, sorriu e mirou-a com seu par de olhos transbordados de curiosidade e
conhecimento. Puxou Alice pela mão e colocou-a sentada ao seu lado, esquadrinhando o
horizonte.
– Eu estive muito ocupado. Me desculpe, Alice. Você não tem ideia de como senti falta
das nossas conversas. Mas me diga, o que você tem achado do convívio com os seres
– Acho que os compreendo melhor do que você. Cada um deles tem uma beleza única,
excluir.
O vento soprou mais forte e Alice surpreendeu-se ao sentir que ele era bem parecido
com o vento do mundo real. Durante sua estadia ali, imaginava viver numa cópia tosca e
imperfeita da realidade e não pensava que os dois mundos eram tão semelhantes.
– Sinto o mesmo, Alice. Analiso as ações de cada um deles, mas prever suas
conclusões requer um algoritmo bem complexo. Apesar de pouco lógicos, eles não deixam
de ser fascinantes. Eu invejo, e muito, o tempo que você conseguiu para se aproximar tanto
deles.
– Posso perguntar o que é você? Eu sinto que você já me respondeu isso antes, em
alguma das vezes em que veio me visitar, mas as memórias daqueles tempos estão todas
O vento cessou, a luz que vinha do céu começou a enfraquecer e um medo súbito
começou a sufocar Alice. O chão tremeu e uma revoada de pássaros voou das cerejeiras em
direção ao infinito daquele mundo virtual. Estalos na estrutura da escola sinalizavam seu
desabamento. Mas ele permanecia alheio a tudo, absorto num ponto invisível no horizonte.
vai me odiar.
Os tremores cessaram e a androide teve tempo para se assustar com o desespero que
seus olhos expressavam, o primeiro esboço de sentimento dele desde que se conheceram.
– Por favor, Alice, prometa que nunca vai me odiar. Eu estou com medo.
– Medo do quê?
• • •
Não havia mais gangues inscritas para a luta daquela noite, apenas os Fantasmas e a
Éden. As oito motos entraram no circuito circular da Praça da Bandeira debaixo de gritos
ensurdecedores. Miguel segurava o guidão da moto com força para impedir que os outros
– Nós não vamos morrer aqui hoje – disse o amigo. Não sentia em seu tom de voz a
sede de vingança de alguém que perdera um companheiro para a Éden no último confronto
dos Engenheiros, mas sim de alguém cansado de lutar. – Pode ficar tranquilo.
Juan avisara aos três que Black era seu alvo e que o caçaria sozinho. A Miguel, cabia a
árdua missão de fazer frente a Angra enquanto os outros dois tentariam parar os Golias.
Sem dar uma palavra, o velho apresentador das lutas subiu na pilha central de pneus com
seu chapéu de cangaceiro e atirou para o alto, liberando as feras para o combate.
Quando os dois pelotões de motos se encontraram pela primeira vez frente a frente,
Miguel usou seus poderes para derrubar Angra, mas a rival fez o mesmo, e o choque das
forças jogou os oito motoqueiros no chão. Desorientado, ainda tentava se levantar quando
sentiu o corpo ser lançado violentamente contra o mastro da bandeira no centro da praça.
Gritou de dor com o impacto e se recuperou a tempo de ver a mulher correndo em sua
um dos Golias. A besta procurava seu veículo quando o motoqueiro negro acertou seu
mesma sorte e ainda se levantava quando o outro Golias avançou sobre ele com a moto.
meio dos espectadores. Ouviu gritos de pavor ao seu redor e foi ao chão agarrado com a
criatura, atacando-a como podia. Juan e Black travavam um duelo particular. O psicopata
Angra já estava bem próxima de Miguel quando, quase que por instinto, ele usou a
telecinésia para arremessar sua própria moto contra ela. A motoqueira não esperava o ataque
“Se eu não sair daqui morto por ela, vou acabar morrendo nas mãos dessa galera”,
Miguel pensou.
Percebeu que ela estava desorientada e lançou-a pelos ares com seus poderes. O corpo
da mulher chocou-se com o pilar de sustentação da passarela. Miguel correu em sua direção
com um taco de hockey para finalizar o combate, mas se deteve. Não tinha condições de
Angra aproveitou o vacilo, se afastou e, com um enorme esforço mental, fez o pilar ruir
e trouxe a passarela abaixo na direção de Miguel. As pessoas que assistiam ao combate dali
foram de encontro ao chão e o motoqueiro, que fugira a tempo de não ser atingido, assistia
com horror à massa de corpos amontoados caindo sobre o ferro retorcido. A psíquica
destruíra apenas uma parte da passarela, mas a confusão era tanta que mais pessoas caíam
respirador da criatura com as mãos. Revelando uma face deformada por inúmeras cirurgias,
forças. O motoqueiro virou para trás para saber como o resto da batalha estava e ficou
Fred viu de longe Angra se aproximar por trás de Miguel enquanto ele a procurava
perto do desabamento e acelerou em seu auxílio. Com o bastão de baseball na mão, estava
prestes a acertar a líder rival quando ela percebeu sua presença e lançou-o, com moto e
Só então Miguel se deu conta dela, mas já não havia poderes restantes para nenhum
dos dois. Esgotado, teve a revelação de que só poderia derrotá-la se aproveitasse aquele
momento, já que ela parecia muito mais poderosa do que ele. Correu em sua direção, mas
foi interrompido pelo estrondo de um tiro. Black perdera o controle da moto e foi
toscamente de encontro a uma das pilhas de pneus. Com suas últimas forças, ele se levantou
com as mãos ensanguentadas no estômago e dirigiu aos outros um olhar de horror quando
Mais tiros se seguiram e a multidão apavorada invadiu a arena para tentar fugir da
praça, não havia mais como continuar o combate. Miguel procurou novamente por Angra,
• • •
subiu a pé até o casarão. Estava revoltado consigo mesmo. O fracasso no Morro dos
Macacos, quando fora enviado para assassinar Edward Emmerich, era uma ferida ainda
recente em sua memória. Dessa vez, queria se certificar de que não haveria espaço para
falhas. Se houvesse outro psíquico por perto, o que interferia nas suas previsões, precisava
redobrar os cuidados.
guardando o portão de entrada e dois próximos da mansão. Ele poderia tentar matar todos
rapidamente e ficar com o caminho livre para lidar com o que quer que estivesse dentro da
mansão, mas temia que o silêncio dos guardas externos alertasse os seguranças de dentro da
casa.
Preferiu ser sorrateiro e deu a volta para atacá-los pelos fundos. Imaginava que a
calmaria excessiva dos Escombros deixaria Gian com a guarda baixa, mas se enganou. Um
segurança solitário guardava a porta dos fundos com uma pistola nas mãos. Sem muitas
opções, disparou um único tiro com sua pistola silenciosa e acertou a têmpora do homem,
matando-o na hora.
Não podia demorar, logo dariam conta da sua ausência nos canais de comunicação.
Subiu o que faltava do morro correndo, passou pela vítima e pulou para dentro da casa por
uma janela aberta. Parou por alguns segundos para tentar sentir alguma premonição e teve a
visão de dois homens descendo as escadas do hall principal. Correu até lá e os esperou atrás
reagir. Kazuo irrompeu de trás da pilastra, acertou um com um tiro na testa e decapitou o
outro com a mão num golpe rápido, derrubando-os num baque surdo sobre o carpete.
Examinou mentalmente a planta da casa que lhe fora apresentada e correu para o
quarto no qual estaria um de seus alvos. Uma jovem de cabelos loiros e vestido rendado
dormia na poltrona de um quarto desarrumado e não esboçou qualquer reação quando ele
estapeou seu rosto. Tinha medo que ela acordasse de repente e começasse a gritar, mas a
menina parecia mais estar em coma. Definitivamente, era Alice. Jogou-a por cima dos
No terceiro pavimento, uma grossa porta de madeira o separava do seu objetivo. Deitou
Alice no chão e entrou no cômodo em silêncio. Sentado no meio de um mar de imagens dos
Escombros, Gian tinha os olhos fixos na tela que mostrava a Praça da Bandeira. A batalha
Aproximou-se lembrando das últimas palavras de Myang Tseng, que seguia numa
reunião do Partido Comunista, na China: “Se Alice chegar aqui com um arranhão, com uma
reclamação sequer, você é um homem morto, Mishima. E deixe Gian vivo. Não me importo
de machucá-lo para você tirar o que precisa dele, mas sem matá-lo. Eu quero o menor
número de mortes possível. Suba logo que os motoqueiros saírem para o duelo”.
registraram sua chegada. Mas o homem estava tão entretido na movimentação da Praça da
Antes de atacá-lo, anteviu todas as reações de Gian. Viu que ele tinha um revólver
escondido no bolso da calça, que demoraria para disparar porque se surpreenderia com sua
chegada, que gritaria de dor enquanto ele fizesse o que fora mandado para fazer. Apreciou
aqueles momentos como quem lê um belo poema e chegou a sorrir com a harmonia das
previsões.
Gian moveu a cadeira giratória para ver de quem se tratava e ficou paralisado ao se
deparar com a figura do assassino japonês, um homem de estatura média, sobretudo escuro,
olhar pacífico e pistola em riste. Depois do choque inicial, puxou o revólver guardado no
bolso, mas foi surpreendido por um golpe que partiu a arma ao meio e arrancou a ponta do
seu indicador. O mafioso se desequilibrou da cadeira e caiu no chão, berrando de dor e certo
de que o adversário era um psíquico. Via a morte de perto quando Kazuo Mishima pisou em
sua cabeça, pressionando-a contra o chão. Ele poderia ter cortado os brincos fora com a
lâmina psíquica, mas arrancou-os da orelha direita com um puxão. Gian deu outro grito e
– Você nunca imaginou que se arrependeria de ter colocado isolamento acústico nessa
último chute no rosto de Gian, deixou-o desacordado e saiu andando da mansão calmamente
Quando estava colocando-a no porta-malas do carro, teve a visão dos outros guardas
finalmente entrando na casa e descobrindo tudo que aprontara. Queria estar lá só para
testemunhar a confusão, mas seu serviço ainda não estava acabado. Ligou novamente o
Mercadão de Madureira.
lojas estavam fechadas. Uns poucos vendedores se arriscavam em suas barracas e as luzes
de alguns corredores não estavam nem acesas. Chegou até a loja de materiais de umbanda
sem grandes problemas e deu de cara com uma jovem e um senhor de idade preparando o
– Me desculpe, mas não sei do que você está falando, garoto. Deve ter errado de loja.
Anteviu Manoel puxando uma escopeta escondida debaixo do balcão e, antes que o
velho sequer a alcançasse, puxou a pistola com um silenciador e disparou duas vezes contra
o seu peito. A adolescente estava prestes a gritar quando recebeu uma solitária bala na testa,
Kazuo foi até os fundos da loja, abriu o alçapão que escondia o fundo secreto e desceu
as escadas para a sala do Oráculo, que o esperava no meio das suas imagens de santos e
enormes velas acesas. Amélia não expressou um pingo de emoção e tinha a expressão dura
quando ele lançou os brincos de Gian aos seus pés. Ela olhou para os objetos de metal e
O assassino seguiu as instruções do seu chefe, instalou uma pequena câmera sobre um
tripé para registrar as revelações. A senhora negra não cooperou e continuava em silêncio
até que ele puxou a caixa de madeira que ela guardava com tanta estima.
– Eu sei que caixa é essa. Sei o que a senhora guarda aqui. Ou você diz tudo o que eu
quero a respeito desses brincos, ou deixo você viva e levo a caixa embora. – Sentou-se ao
seu lado e segurou uma de suas mãos para que ele também tivesse a visão, garantindo que
ela não mentiria. – Você vai me mostrar as memórias e vai narrá-las em voz alta para essa
câmera.
subterrâneo da sede da Spartan, nas Luzes. A empresa dispensara a maioria dos seus
funcionários mais cedo e o número de carros era bem pequeno. Sem testemunhas, o japonês
não teve problemas em atravessar o lugar com Alice nas costas e digitar no elevador a senha
Jogou a menina em cima da mesa de reuniões de Myang e ficou admirando seu corpo
antes de ligar para ele. Agora que tivera tempo para olhá-la de perto, via como era linda.
Não conseguia acreditar no que as memórias de Gian lhe revelavam, era perfeita demais
para ser um replicante. Sem aviso, o videofone ligou sozinho e uma das paredes da sala
quando o assassino japonês teve uma visão e apontou sua pistola para a cabeça de Alice. –
pronto para me matar. E que há mais alguém aqui conosco além dessa replicante. Alguém...
grande.
Myang sorriu. A porta que dava para a copa da sala de reuniões foi aberta e de lá saiu
uma criatura com mais de 2 metros de altura envolta em trapos cinzas que escondiam sua
identidade. Escutou, fora dali, o som das armas dos soldados sendo engatilhadas.
– Pensei que planejar tudo isso de longe dificultaria suas previsões, Mishima – admitiu
o chinês. Kazuo lembrou-se, então, da insistência dele em perguntar-lhe mais detalhes sobre
seus poderes desde que chegara ao Brasil. – Me desculpe, mas preciso me livrar de você.
Encurralado, o assassino começou a avaliar todas as rotas de fuga possíveis para tentar sair
dali vivo. Agarrou Alice em seus braços, ainda apontando a arma para sua cabeça, e
pulou na sua direção e um dos seguranças da Spartan arrombou a porta com um chute. Ele
tinha que ser preciso. Usou a telecinésia para lançar o inimigo desconhecido na direção dos
soldados que entravam na sala, largou a androide e se entregou ao mundo tortuoso das suas
que suas previsões se confirmassem. Quando seus pés tocaram o piso do andaime dois
andares abaixo, amaldiçoou o dia em que aceitou aquela infeliz proposta no Brasil.
Capítulo XI
Sonhos esculpidos
em gelo
próprio Gian logo que voltou ao casarão. Amélia, que não sofrera qualquer ferimento,
dormia num dos quartos de hóspedes. Sentado na entrada da mansão, se sentia impotente e
desorientado. O localizador que a androide sempre carregara consigo estava desligado e seu
arena, ouviram xingamentos e acusações de que o atirador responsável pela morte de Black
fora posicionado em algum prédio pelos próprios Fantasmas. De tão confuso que estava,
Miguel chegou a perguntar para Fred no caminho de volta se aquilo era verdade, se o
Gian, aliás, não fez mais questão de esconder do grupo sua identidade. O ataque ao seu
um grupo de atônitos motoqueiros, ele revelou que seu plano mais recente fora um completo
fracasso.
– Eu... instiguei a Spartan a fazer isso – confessou. Suas orelhas rasgadas tinham sido
suturadas há poucos minutos por um dos soldados que sobreviveu ao ataque do assassino
japonês. – Mas eu não esperava que eles agissem aqui, nos atacando diretamente. Pensei que
agiriam na Praça da Bandeira, por isso voltei minhas atenções para lá.
O plano de Gian era simples. Ele cortou comunicações com Ruby e Scorza, ciente de
que um deles ou alguém ligado aos dois estava vazando informações para a Spartan. Depois,
passou dias sem agir, à espera de uma resposta da companhia chinesa. A proximidade da
batalha das gangues e o silêncio excessivo dos Fantasmas fora usado para fazê-los pensar
que eles tinham algum plano para contra-atacar Angra. Puro blefe.
colocariam um time de apoio à Éden na Praça da Bandeira. Nos dias anteriores à batalha,
Gian restaurou todas as câmeras no entorno da região e próximas do túnel que ligavam as
Em vez de atacar os motoqueiros, Myang Tseng voltara suas atenções para o casarão
numa ação cirúrgica. Roubar pertences pessoais de Gian, levá-los ao Oráculo para descobrir
seu plano e sequestrar Alice. Os dois primeiros objetivos faziam sentido para ele, mas o
– Isso não faz muito sentido, Gian – avaliou Fred. – Não com esse papo de revolução
– Eu também ainda não entendo isso – concordou o mafioso. – Mas o último sinal de
transmissão de Alice veio da sede da Spartan. Angra também pode ter traído eles e toda
essa ação foi para ver se nós tínhamos mais informações a respeito dela. De uma maneira ou
de outra... – Gian mirou Miguel cabisbaixo em sua cadeira e não soube o que falar.
– Eu só quero saber o que você vai fazer para pegar ela de volta – disse o motoqueiro,
finalmente.
A sala silenciou. Não havia mais nada que os unisse. O dinheiro prometido pelo resgate
de Emmerich já estava disponível para os quatro. Era o suficiente para viverem o resto de
– Nós não podemos fazer nada, Miguel – admitiu Gian. – O prédio da Spartan é fora
– Se fosse mais uma daquelas doideiras como a que fizemos para salvar a Nina, eu te
ajudava sem pensar duas vezes, garoto – confessou Juan. Ele coçou a barba loira e deu de
– Ainda preciso falar com Scorza e Ruby, mas creio que sim. Os Fantasmas acabam
por aqui. Podem ficar no casarão por mais um tempo, se quiserem, mas agora nós vamos
tentar cuidar de Angra do nosso jeito. Vou fazer o possível para achar Alice, Miguel.
• • •
Miguel esperou todos irem embora e fechou bem a porta do quarto antes de começar a
chorar. Tristeza, ódio, desespero, impotência. Eram tantos sentimentos que ele poderia
destinar uma lágrima para cada uma delas. Fred e Juan não ficaram sob o mesmo teto por
mais um dia sequer. Sem dar explicações, se despediram e seguiram seus rumos noite
adentro, deixando ele e Anderson como os únicos hóspedes de Gian. Prometeram guardar
segredo sobre a identidade do Comandante e, pelo que indicavam, não seguiriam como
motoqueiros.
até o terceiro pavimento. Encontrou a porta da sala de controle do mafioso ainda aberta e,
diante daquela infinidade de câmeras que não lhe davam nenhuma pista sobre o paradeiro de
Com a cabeça baixa no painel, sentiu alguém apertar seus ombros com força e se
deparou com Anderson. Ele sentou numa cadeira vazia perto dele e, sem ter o que falar,
– Não sei, cara. O sequestro foi só há algumas horas. Ainda não sabemos o que a
– Para o futuro?
– Uhum.
– Sei lá, Miguel. Não sei como a situação dos Escombros vai ficar, né? Pensei em abrir
um bar, uma oficina de motos, não sei. Algo que tenha a ver com os motoqueiros, sabe? Mas
– Não estou com muita cabeça pra pensar nisso. – Voltou os olhos para as telas e viu as
ruas desertas dos Escombros em plena madrugada. Quase ninguém se aventurava àquela
hora, sobretudo na situação tensa em que a cidade se encontrava. – Agora que o negócio do
Nicolas acabou, não tenho nem ideia. Vou ver se o Gian me arruma alguma coisa. Mas nada
Anderson enfiou a mão no bolso e colocou sobre o painel um relógio prateado. Era
uma peça cara, bem trabalhada e com o logo da Swiss atrás dos ponteiros azulados. Sem
– Provavelmente a Spartan apagou ele. E queriam apagar Angra também, já que ela
desapareceu – avaliou Miguel. – Isso pode nos ajudar a entender o que houve com Alice.
Uma das telas do painel, a que buscava a localização de Alice, começou a piscar e
Miguel acordou Gian às pressas e conseguiu dele uma carona para ir até as Luzes.
Atravessaram o Túnel Rebouças e, com uma boa gorjeta, o mafioso fez com que ignorasse a
– É bem possível – concordou Gian. – Miguel, segura firme nessa arma que deixei
Logo que o radar que Gian carregava no painel do carro mostrou o quão Alice estava
próxima, Miguel pulou fora do veículo e correu pela areia da praia. Os ventos frio da manhã
que se formava atingiram-no em cheio quando seu pé afundou na areia fofa e viu, de
quem jamais pisara na areia em toda a vida, e caiu de joelhos ao lado dela.
Imprudente, deixou a arma pelo caminho, não olhou ao redor, não fez nada. Apenas
levantou-a pelos ombros e procurou algum machucado. Nada. Ela estava tão perfeita quanto
deixara, horas atrás. Os olhos de Alice se abriram de uma vez só, como os de quem desperta
de um pesadelo. Não queria saber o que pensariam dele, não se importava mais se era uma
No entrelaçar das línguas, Miguel não encontrou o que procurava. Revirava e só achava
o vazio de um abismo sem fundo, uma porta que dava em lugar nenhum. Tremeu de medo.
Fizera o pulo de fé e agora temia não ter achado nada, senão uma máquina. Afastou-se dela
androide. A artificialidade da voz, o beijo insosso, os olhos ocos. Alice era só um robô.
• • •
Depois do rápido e ainda inexplicado sequestro de Alice, Gian achou melhor mandar a
androide, Miguel e o Oráculo para as Luzes enquanto o mistério de Angra não era resolvido.
Temia pela segurança deles e a psíquica ainda representava uma ameaça constante ao grupo.
O trio se hospedou num apartamento de frente para o mar cedido pela própria Ruby. Dentro
incitando o povo a se levantar contra as autoridades das Luzes começaram a surgir nos
Escombros. Dessa vez, eles tinham data e local marcados: 26 de abril, no domingo, em
Nenhuma rede de notícias das Luzes dava uma linha sobre a movimentação na parte
pobre da cidade, mas Scorza e Ruby tinham motivos para comemorar. A Spartan finalmente
respondeu aos seus apelos e mobilizou boa parte do seu contingente para a região crítica,
chamando até funcionários de outros países para ajudar a subsidiária carioca a defender-se.
– Pela maneira como as coisas estão se desenhando, vai ser um massacre – disse Gian,
por telefone.
– Entendo – respondeu Miguel. – Você fez o que te pedi? Levou os meus pais para
longe disso?
– Sim. Disse apenas que você estava trabalhando nas Luzes. Eles pareceram perdidos,
com o estilo espalhafatoso da sua dona. Era um ambiente simpático, de cores acolhedoras e
luxo sóbrio banhado todas as manhãs pelo Sol de amplas janelas. Por debaixo dos panos,
Alfonse regia tudo com maestria. A inteligência artificial da família francesa contratava
Miguel passou a maior parte daqueles dias conectado à internet, aprendendo um pouco
mais sobre aquele mundo que ignorava. Leu sobre a criação de novos países, surpreendeu-se
com as novas tecnologias e entendeu um pouco mais do que era a navegação por realidade
ampliada, a mesma que usara semanas atrás para entrar na consciência de Alice e que estava
A androide, por sua vez, parecia mais distante do que de costume. Ela tentava se
aproximar de Miguel, mas recebia um tratamento estranho. Cada palavra que diziam um
para o outro era como se pisassem em ovos transgênicos ou dessem de cara para o beco sem
saída de um chip de silício. Inutilmente, o Oráculo tentara ler a memória do corpo de Alice
para desvendar aquele sequestro misterioso. Tudo o que obtia eram imagens indecifráveis
desconexos.
Era com Amélia que Miguel mais conversava e revelava seus medos. Apesar de o título
de “oráculo” ainda assustá-lo, descobriu que havia uma mulher de verdade por trás da
imponência de sua lenda. A senhora negra não escondia a tristeza de perder o velho Manoel
e a empregada que tratava como uma filha no Mercadão de Madureira, mas não derramava
uma lágrima sequer nem se perdia em lamentos. Vivia imersa numa reflexão profunda e
caminhar pelas Luzes. Os dois usaram roupas que Ruby comprara e, como avó e neto, foram
juntos até uma praça bem arborizada e pouco movimentada onde alguns pais brincavam
com suas crianças. No entorno, carros que pareciam o sonho de consumo de qualquer
fanático por tecnologia deslizavam com seus motores silenciosos por ruas limpas de lojas
fartas.
Carregava consigo um pacote de pães comprado ali perto e sentia-se envergonhado por
constatar que eles eram a melhor coisa que já comera em toda a sua vida. De fato, toda nova
comida que experimentava parecia a melhor de toda a sua vida. Cada sabor da Rio Alfa lhe
caía como uma maravilha gastronômica perto das frutas e verduras estragadas e carne
– Você está preocupado com ela, não está, garoto? – perguntou Amélia, que jogava
– Alfonse discorda de você. Ruby mandou ele fazer uma checagem completa na Alice e
– Ela está diferente, Amélia. Não sei como explicar isso direito, mas ela parece outra
pessoa. Parece distante e, quando tenta se aproximar, é muito artificial. Não era assim antes.
sequestrada. Passou por um trauma. Provavelmente está processando toda essa informação
que recebeu.
– Acha que o susto do sequestro pode ter danificado a inteligência artificial dela?
– Não seria impossível. Até pessoas normais ficam desorientadas por dias após algum
trauma. Não sei como uma IA lidaria com isso. Nunca se sabe. Talvez o “fantasma” dela
tenha morrido.
desaparecido. Pensou nas tardes no apartamento na Praça da Bandeira, nos dois ouvindo
músicas e discutindo suas próprias vidas. Se o “fantasma” dela realmente fora destruído,
relatos de programas criados para combater essas anomalias, esses surtos de consciência. Se
instalaram isso nela, a Alice que você conheceu deixou de existir. Ou está bem escondida no
Amélia sorriu e tirou com a mão a fatia de um dos pães que Miguel trazia. Mordeu um
– Não nasci nos Escombros. Nem tenho qualquer dom espiritual, Miguel. Acredito
tanto em deus e forças do além quanto no coelho da páscoa. Há uns bons trinta anos, eu era
quando comecei a usar meu dom efetivamente e escalei na hierarquia da empresa com
velocidade incomum. Eles não tinham ideia do meu poder, mas logo entenderam qual era o
meu nicho: espionagem industrial. Não é difícil imaginar o quanto eu era capaz. Bastava
descobrir qualquer segredo. Para as pessoas de fora, eu era apenas uma relações públicas.
“Eu viajava o mundo todo em fóruns empresariais como responsável pelo setor de
comunicação da IBM no Brasil e tirava dessas reuniões tudo o que precisávamos. E ganhava
milhões por isso. Tinha uma casa num condomínio residencial de luxo, um marido
respeitoso, filhos bonitos. Decidi me aposentar aos 50 anos para cuidar deles e viver uma
vida tranquila, mas eu tinha que pagar pelos meus pecados. Eu aproveitei o mundo e ele se
aproveitou de mim. Não que eu acredite nessa besteira de retribuição divina, mas toda ação
“Até hoje, não sei exatamente como aconteceu. Primeiro, a IBM não gostou do meu
pedido de aposentadoria precoce. Acharam que era uma farsa para eu trocá-los por alguma
concorrente e reviraram toda a minha vida até descobrirem que não era nada daquilo. Me
encalço. Aprendi a viver mesmo debaixo de tanta vigilância e fiz o possível para que minha
família jamais descobrisse. Imaginei que a IBM eventualmente largaria do meu pé, mas não
“Um belo dia, meu marido chegou em casa com uma amiga. Era uma mulher recém-
contratada pela empresa na qual ele trabalhava. O apartamento dela pegara fogo, culpa do
ventilador, e ela não tinha onde dormir. A família era de outro estado, pelo que contaram. E
eu não vi problema algum em trazê-la. Nossa casa era enorme e tinha um belo quarto de
hóspedes.
“Acordei no dia seguinte com um grupo de homens de terno revirando minha casa e
armas apontadas para meu marido e filhos. Um deles, que eu conhecia da divisão de
partindo da minha casa naquela noite. Neguei tudo e lembrei da hóspede, mas ela não estava
“Os homens conversavam com a central o tempo todo pelo telefone. Mantinham minha
família e eu trancados no quarto até que um deles entrou com uma metralhadora e abriu
fogo contra nós. Foram décadas de dedicação à empresa e nem uma palavra de adeus, nem
sequer uma explicação sobre o crime do qual me acusaram. Meu marido, que já estava na
casa dos 60, encontrou forças para pular na minha frente e levou tantos tiros que ficou
desfigurado. Meus filhos, a mais nova tinha seis e o mais velho doze, morreram na hora. E
uma bala atravessou o corpo do meu marido diretamente para a minha cabeça”.
Amélia pôs o dedo no meio da testa e Miguel viu a pequena cicatriz no meio da pele
negra enrugada. Ela estava com os olhos marejados e o motoqueiro pensou em sugerir que
parasse com a história, mas concluiu que a mulher queria contá-la tanto quanto ele queria
ouvi-la.
– Não vou perguntar se você já levou um tiro na cabeça, eu sei que não. Ao contrário
da maioria das pessoas, Miguel, eu não apaguei. Eu só senti a minha cabeça ficar dormente
e tinha a leve sensação de algo borbulhando dentro do crânio. No começo, pensei que aquilo
se tratava do começo do pós-morte. Meu corpo deveria estar usando forças para me dar
Como se ele mesmo estivesse esfregando na minha cara o pagamento pela vida de ladra que
“Mas não era nada disso. Pasme, Miguel, eu sobrevivi. Para o terror da IBM, eu estava
mais viva do que nunca, deitada numa cama de hospital e com todos os segredos sujos da
pombos alimentados pelo Oráculo. As aves iam e voltavam, afoitas pela comida.
seguinte, eu já estava plenamente consciente e apenas esperando alta. Chamei para o meu
leito uma repórter da Folha de São Paulo que conheci na faculdade e despejei tudo. A
reportagem que ela fez foi tão forte que até derrubou o presidente da IBM na América
Latina. Depois daquilo, eu sabia que estava acabada. Minha família estava morta e eu era a
próxima. E o pior, minha memória estava indo para o buraco. Eu podia ter acabado ainda
– Eu tinha que fugir para qualquer lugar onde eles não pudessem me alcançar e um
atravessador que eu conhecia me ofereceu os Escombros. Na hora pensei que seria apenas
uma passagem temporária. Pode parecer bizarro para você, mas eu me acostumei. O Manoel
era um conhecido desse atravessador e me cedeu o quarto dos fundos da sua casa. Foi dele a
ideia de ser uma falsa mãe de santo. Ele foi muito bom para mim e retribuí com boa parte
do dinheiro que ganhava na loja de macumba. Uma pena ter morrido de maneira tão
estúpida.
A caminhada de volta para o condomínio era uma tortura para Miguel. Não queria ficar
perto de Alice, mas não haveria escolha nos próximos dias. Não sabia o que faria com ela
quando voltassem aos Escombros, mas queria acreditar que tudo não passava de uma reação
– Tem uma coisa que eu não entendo – disse o motoqueiro, quando as portas do
metálicas. – Desde o começo da semana, eu vejo a senhora remexendo nos objetos daquela
– E você disse que sua memória estava desaparecendo. Eu estou só chutando, mas
aquela caixa guarda objetos da sua vida? É a maneira que você encontrou de não perder a
O Oráculo sorriu, confirmou com a cabeça e Miguel não ousou perguntar mais nada.
Naquela tarde, Amélia abriu a caixa de madeira em cima da sua cama, fechou-se em seu
• • •
Miguel levantou naquela noite com o som de portas batendo. Pegou a arma que
guardava na cabeceira e saiu da cama assustado, mas a voz tranquila de Alfonse minimizou
suas preocupações.
– É apenas a madame Ruby chegando, Miguel. Por favor, não se preocupe – disse a
inteligência artificial, com sua voz monocórdica. Só então o motoqueiro descobriu a função
da pequena caixa de som instalada numa das paredes do quarto. Desde que chegara,
deitar.
Sem responder ao pedido da IA, vestiu uma camisa e foi até a sala, onde Ruby banhara
a tapeçaria persa com uma poça de vômito ao lado da qual ela deitava. A presidente da
Alford Tech estava apagada, mas Miguel conhecia bêbados e drogados o suficiente para
saber que não se tratava de uma overdose ou algum tipo mais pesado de coma.
Pegou-a nos braços e a deitou no sofá. Com uma toalha, limpou a boca dela e ajeitou o
curto vestido vermelho que insistia em subir e deixar suas partes íntimas de fora. Costumava
desprezar gente que mantinha um estilo de vida daqueles, mas Ruby lhe despertava mais
– Conhecendo bem a madame, tenho certeza de que ela não se importará, Miguel. E a
condição dela... – Impaciente com a IA, Miguel deu as costas à mulher e escutou mais
pedidos. – Compreendo sua negativa. Você poderia apenas lhe dar um coquetel de
remédios? É o necessário para que ela não acorde amanhã numa condição degradante.
degradante, mas atendeu Alfonse para encerrar a conversa de uma vez. O coquetel ao qual
ele se referia estava numa prateleira no quarto da dona da casa – uma verdadeira zona de
despejou o pó debaixo da língua da jovem. Uma vez terminado o serviço, pegou um copo
d’água na cozinha e foi até a varanda, de onde via o mar agitado da madrugada despejando
construídos nas ilhas artificiais, a algumas centenas de metros da praia, mas o breu da
– Me tire uma dúvida, Alfonse. Naquele dia em que nos conhecemos, na Styx, Gian
disse que você criou Ruby após a morte dos seus pais. Isso é verdade? Realmente
aconteceu?
madame tinha apenas 11 anos. Em seu testamento, Antoine Alford exigiu da família que
dessem liberdade à Ruby caso ele morresse, independentemente da sua idade. Não creio que
ele imaginasse uma morte tão precoce, mas especificou em seu testamento que a madame
– Concordo com a falta de lógica que você aponta – respondeu Alfonse. A tela digital
da sala ligou sozinha e o motoqueiro saiu da varanda para ver do que se tratava. Na tela,
uma imagem de Ruby no funeral dos pais iluminava todo o cômodo. Ainda criança, ela
vestia roupas pretas e estava envolta por parentes cochichando entre si. Fisicamente, o rosto
era pouco diferente da mulher que jazia desacordada no sofá. – Não há qualquer aparato
legal que permita esse tipo de manobra, mas os Alford são uma peculiar família francesa.
Nas gerações passadas, há casos de incesto, casamentos entre irmãos, familiares expulsos,
brigas por dinheiro. Juntos, eles foram um excêntrico feudo de bilionários desconectados da
lógica cotidiana que rege pessoas como você. Dentro da realidade deles, o pedido de
pequeno bigode fora de moda e largo sorriso. Era muito bonito, apesar da aparência de uma
época muito anterior àquela. Ele usava um terno e estava abraçado a uma jovem de olhos
Ele e a senhora Verónique eram os menos exóticos e mais sóbrios da família Alford. Num
uma empresa esquecida numa grande multinacional em pouco mais de uma década.
vendê-lo.
– Esse programa...
– Sim, esse programa sou eu. Ou era, nos meus estágios iniciais. Hoje eu já fui escrito
pequenas empresas até ambientes familiares e, por fim, uma cidade inteira. Hoje, sou o
único do meu tipo em todo o mundo. E uma das funções que ele deixou para mim foi a de
Miguel olhou por cima do ombro para Ruby em frangalhos e depois de novo para uma
das câmeras instaladas na casa. Sabia que era por elas que Alfonse o observava.
– Parece que não deu muito certo.
– É uma avaliação complicada, Miguel. Prefiro analisar pelo ponto de vista de que as
coisas estariam em situação ainda mais crítica se eu não estivesse por aqui.
A tela apagou por alguns segundos e, logo depois, exibiu a face verde-cristal
– Miguel, não esqueça que você se apaixonou por uma inteligência artificial. Julgar-me
O motoqueiro respondeu com um olhar irritado, mesmo sem saber se a máquina podia
captar aquelas expressões. Pensou na maneira estranha como Alice vinha se comportando
– Para mim, é um mistério como uma inteligência artificial pode ter emoções tão
Mas uma avaliação completa só seria obtida se abríssemos o cérebro artificial dela para
análise.
– Eu tenho achado ela mais artificial recentemente. Não sei explicar, mas...
artificial, interrompendo Miguel pela primeira vez. – O consciente dela ainda está se
formando. Não seria justo avaliá-la como um todo apenas por conta de alguns dias
anômalos.
Miguel suspirou, desarmado pelos argumentos da máquina e pelo próprio sono. Fechou
a porta de vidro da varanda e cobriu Ruby para protegê-la do frio da madrugada seguido
travesseiro debaixo da cabeça de Ruby. – Sei que sua vivência condena esse tipo de
comportamento, mas a madame é apenas uma mulher sozinha no mundo, ainda amargurada
começou a entender a razão pela qual o lugar era tão incongruente com a sua dona. Os
Não os conhecia, mas imaginou Antoine e Verónique criando Ruby naquele paraíso
artificial, alheios à contagem regressiva do acidente que ceifaria suas vidas. De alguma
maneira, a imagem dos dois fazia ele se lembrar das fotos dos seus próprias pais quando
eram mais jovens. Ou talvez tivesse os idealizado de acordo com as impressões que tinha da
transformar em sono. Ansioso, foi até a cozinha comer algo e foi detido na porta do
banheiro pela cena de Alice dando banho em Ruby. Do lado de fora da banheira, a androide
Na sala, o telão estava ligado e exibia a imagem quase estática do nascer do sol entre
Himalaia. Quando acordou, no dia seguinte, Miguel não sabia mais dizer se o que vira era
• • •
Faltava apenas um dia para o tão esperado ato de Angra e Anderson empacotava seus
na mesma casa onde os pais de Miguel estavam hospedados, em Cascadura. A última coisa
Seus últimos dias foram morosos. O cotidiano dos motoqueiros morrera desde o ataque
da Spartan aos bares e oficinas. Além disso, os Fantasmas continuavam malvistos nos
Escombros e a maioria dos seus amigos se afastara para evitar problemas. Pouco saiu do
apartamento durante a semana e o domingo parecia até mais arrastado do que os outros
dias.
Perguntava-se o que fazer para sair daquele marasmo agora que estava fora do mundo
das motos, mas o som de batidas na porta interromperam seu pensamento. Era Lucas, um
moreno baixo e corpulento que integrou antigas formações dos Engenheiros. Dias antes,
Anderson o encontrara para colocar a conversa em dia e contou parte da trajetória dos
Fantasmas.
– Já viu o que tá rolando na praça? – limitou-se a dizer o homem, com a voz nervosa.
A demora de Anderson para responder lhe deu ímpeto para continuar. – Vai lá ver. Agora.
cortinas para encarar uma multidão que se juntava na Praça da Bandeira. No topo da
passarela partida, Angra e um grupo que contava com uns trinta homens armados com
– Ela começou de tarde a mandar os soldados convocarem a população. Essa gente que
O motoqueiro procurou os Golias, mas não os achou. Não tinha certeza, mas acreditava
que eles tinham morrido na batalha das gangues. Se aquilo fosse verdade, não existia mais a
Desceu do prédio com Lucas e atravessou a praça até onde o resto do povo se juntava.
No caminho, passou pelos sinais de destruição deixados para trás pelo confronto entre a
quando ele se aproximou. Com um sobretudo cinza, mãos enfiadas nos bolsos e uma
submetralhadora pendurada nas costas, a nova líder dos Escombros correspondia a todos os
Já havia mais de mil pessoas aguardando seu discurso quando começaram a gritar seu
nome. Cada repetição martelava em Anderson a memória do massacre das Luzes nos
ouvido e ela subiu na passarela. Levantou as duas mãos, fazendo a gritaria da multidão
cessar ordenadamente.
Amanhã, eu vou encontrar vocês todos aqui, ao meio-dia, para tomarmos o que é nosso por
direito. Vamos marchar pelo Túnel Rebouças e acabar com a barreira entre os Escombros e
as Luzes, vamos acabar com a Babel que eles construíram às nossas custas. Às custas da sua
exclusão, às custas da miséria dos seus filhos. Amanhã, mostraremos que a maldição vai
cair.
– Eu, assim como todos vocês, cresci nessas ruas destruídas. Comi o resto deles
enquanto a fartura e o desrespeito moravam ao nosso lado. Do alto do luxo dos seus
apartamentos, nos trancaram nesse inferno e jogaram a chave fora. Hoje, o que somos?
Somos a realidade que eles se recusam a ver. A verdade inconveniente de que toda a riqueza
“Amanhã, vamos lutar contra estrangeiros que tomaram nossa cidade para saciar suas
ambições. Vamos lutar contra cariocas que ignoram a miséria dos seus conterrâneos do lado
• • •
Sentado na praça de alimentação de um shopping nas Luzes, Miguel via seu celular
vibrar insistentemente com ligações de Anderson. Desde o dia anterior, seu amigo insistira
em telefoná-lo quase de hora em hora, mas não estava disposto a conversar com ele. A
Observou, triste, Alice esperando na fila de um restaurante para pegar o seu almoço.
Seguiu os conselhos de Alfonse e lhe deu um voto de confiança, mas havia um abismo entre
os dois. Escolheu seu prato num computador instalado na própria mesa em que sentara. A
superfície dela era um tablet limitado através do qual tinha acesso a todas as lojas do
shopping e seus respectivos menus. Escolheu um macarrão ao alho e óleo depois de alguns
apareciam para o almoço e mães carregavam seus filhos em carrinhos de bebê alheias ao
segurança normalmente enquanto tem gente passando fome bem do nosso lado. Atribuímos
o bem-estar ao nosso trabalho, ao merecimento ou até à sorte. E não abrimos mão disso”.
Uma bela mulher sentou-se à mesa mais próxima dele com dois filhos pequenos, o
maior na casa dos sete anos. Mirou suas roupas limpas, os rostos impecáveis de mármore
branco e os sorrisos cintilantes com um misto de asco e admiração. Tentou calcular quanto
os pais daquelas crianças deveriam gastar com elas por mês e imaginou que fosse mais do
Mais uma ligação de Anderson. Olhou pesaroso para o visor e desistiu de ignorar o
amigo. Ouviu com indiferença a notícia de que a invasão de Angra estava prestes a começar
e voltou a encarar Alice, que vinha com sua bandeja de comida nas mãos.
– Escutei Ruby conversando com o Scorza pelo celular, cara – respondeu Miguel,
finalmente. – Ela disse que o Myang e a Spartan mobilizaram todo o contingente para o
– A gente não pode fazer nada. Eu até torço por ela, sabia? – reconsiderou, lembrando-
se da mãe com as duas crianças ao seu lado. – Mas não quero me meter nisso. A gente já se
– Anderson, ninguém parte pra cima da estação de controle do túnel sem saber que
pode morrer. Deixem eles seguirem seus próprios rumos. – Olhou para a TV e, pela
primeira vez, viu alguma referência ao levante. Segundo a emissora local, manifestantes
choque. – Uma coisa, cara: e aquele relógio que você achou? Eu não perguntei nada a
respeito pra Amélia, mas acho que você mostrou pra ela antes de virmos para as Luzes.
– Te liguei várias vezes pra falar disso, mas você cagou. Parece que, um pouco antes da
batalha das gangues, Angra e Black discutiram feio. Não deu pra saber exatamente a razão,
mas ele discordava da maneira como ela estava tocando as coisas e a tal da revolução.
– Não chega a ser ruim, levando em conta que ele era um psicopata. E nascido nas
Luzes. Devia querer que as coisas ficassem na mesma merda que estão. Você está ficando
onde?
– Estou em Cascadura, com seus pais. Tudo tranquilo por aqui. Está tudo acontecendo
Desligou o telefone e concentrou-se no macarrão para evitar os olhos ocos e sem vida
de Alice. Ela o encarava em busca de alguma aprovação, mas recebia de volta apenas
indiferença.
Não a respondeu. Sentia que seus sonhos morriam em algum canto da alma, como
seu nojo por Alice e faziam com que os momentos que passavam juntos se tornassem
verdadeiros tormentos. O dedo da Spartan estava ali, mas como? E por quê? Pedira a Ruby
que conversasse reservadamente com Myang sobre a situação da androide assim que ele
voltasse da China, mas a reunião do Partido Comunista ainda não havia acabado. Até lá,
mostravam a ação de moradores dos Escombros no Túnel Rebouças. Dessa vez, não era
mais uma nota de rodapé. Em letras capitais e boletins urgentes transmitiam a notícia de que
uma pane no sistema central da Spartan inutilizara as armas dos seguranças da empresa em
toda a cidade e a invasão dos rebeldes era iminente. A imagem da TV mostrava uma enorme
procissão correndo na direção dos soldados das Luzes de guarda na saída do túnel. Com as
cabeça na mesa, rachando a superfície do tablet. Trêmula e com os olhos arregalados, ela
A revolução
do Rio de Janeiro, no centro abandonado. Moderno nos seus tempos, o edifício de quase 70
metros tinha o formato de um cone e uma enorme cruz vazada no topo, pela qual a luz do
sol passava. Em cada uma das quatro pontas da cruz, vitrais com imagens religiosas desciam
do teto pela parede até a altura do chão. Algumas enormes imagens de santos e parte do
púlpito sobreviveram ao estrago da guerra, mas uma enorme porção da parede estava
destruída graças à queda de um helicóptero cujos destroços ainda decoravam o templo. Pelo
buraco lateral, era possível ver os arcos da Lapa e os prédios envelhecidos do centro
abandonado.
ogiva norte-americana B-53, uma robusta cápsula de metal com apenas 4 metros de
mercado negro décadas atrás pelo movimento separatista durante a guerra civil, foi mantida
como um Ás na manga, pronta para ser detonada assim que as forças pacificadoras
explosão convencional, carregava consigo material radioativo das antigas usinas nucleares
respondeu a motoqueira, quando um dos soldados que ela recrutara nos Escombros quis
presença das quatro sentinelas. Os monstros metálicos com mais de 2 metros de altura
e um jovem solitário com perfil de morador das Luzes sentou ao lado do dispositivo,
criatura coberta por trapos velhos. Ele veio da entrada principal da catedral e caminhou até
a psíquica. – Já chamei o helicóptero de transporte para levar a bomba para as Luzes. Tudo
os soldados?
– Sim. Queimei o mainframe deles em definitivo. Só poderão utilizar novamente o
sistema se mudarem o servidor, o que pode levar horas. Numa situação de conflito como a
Angra sorriu. As maquinações iniciadas semanas atrás chegavam ao fim com incrível
precisão. Olhou para o seu mentor novamente, o rosto oculto pelos trapos e a aparência
imponente. Tudo obra dele, mas ainda faltava seu toque especial.
– Você deixou claro para os soldados que os rebeldes não devem entrar nas Luzes? Que
motoqueira.
digital instalado na lateral da B-53, que ainda conservava o orgulhoso Made in U.S. na sua
couraça metálica, exibia uma contagem regressiva em números vermelhos. A contar daquele
metálica, seus fios de cobre e chips feitos em Taiwan como uma espada. A psíquica relutou
por um segundo, mas terminou seu trabalho. Puxou a mão de baixo para cima, rasgando o
corpo em dois desde a barriga até o ombro direito, e arrancou todo um lado dele.
A capa cinza caiu em meio ao sangue artificial e juntas metálicas partidas, revelando o
que ela já sabia: o corpo de uma sentinela controlada à distância. O rosto metálico da
criatura não podia exibir sentimento algum. Se pudesse, estaria estarrecida. Ela caiu no chão
– Obrigada por tudo, mas eu não quero apenas um paliativo. Quero castigar as Luzes e
microchips fazia com que as outras sentinelas identificassem Angra como líder.
O robô se aproximou do seu semelhante caído no chão, jogou-o por cima dos ombros e
frente ao templo, o mentor de Angra juntou as últimas forças para fazer uma transmissão,
dessa vez sem ruídos ou estática. Em alto e bom som sua voz ecoou nos lábios de Alice, a
quilômetros dali.
bomba nuclear desativada. Ela vai detoná-la nas Luzes em algumas horas. Só vocês podem
impedi-la.
• • •
O Boeing CH-47 Chinook de Scorza era uma peça de museu com quase cem anos de
fabricação, mas mantido como novo no hangar do bilionário. Naquela tarde, o enorme
helicóptero camuflado de duas hélices cortou os céus das Luzes até os Escombros e pousou
suavemente no gramado do casarão de Gian, que aguardava Miguel com Anderson, Juan,
Com o cabelo desgrenhando e a mesma roupa que usara para a batalha das gangues, o
motoqueiro saiu pelos fundos da aeronave e se juntou ao grupo. Não precisou falar nada.
Eles já haviam sido informados sobre a situação pelo mafioso e foram os únicos a
Escombros quer encarar Angra. Além de deixar todos eles apavorados, a ideia da revolução
– Caiu inconsciente. Deixamos ela na casa de Ruby. O que vocês acham que devemos
– Se ela detonar uma bomba suja nas Luzes, parte da radiação certamente vai chegar
aqui – disse Anderson, que encarou Fred e Juan preocupado com a possibilidade de os
maior parte da radioatividade vai ficar na parte rica mesmo. E eles vão ser obrigados a
desenvolver esse lado da cidade. Pouca gente daqui vai morrer. O plano dela é bom.
– Vocês são muito ingênuos. – Gian fumava um charuto cubano e dirigia ao negro um
olhar de reprovação. – Se essa explosão acontecer, onde acham que vão procurar os
culpados? Serão dezenas de milhares de mortos na conta de cada um dos moradores dos
Escombros. Vão varrer isso e transformar a vida de vocês num inferno. Eu sei que sou
suspeito para vocês, porque sou das Luzes, mas essa é a verdade. Angra não será lembrada
como uma heroína, mas retratada como uma terrorista e dar razão a todas as retaliações das
empresas.
Ficaram em silêncio. Sabiam que Gian tinha seu quinhão de razão, mas confrontar
Angra significava confrontar todo o espírito de revolta que nascera nos Escombros com o
– Depois de toda a merda que vocês fizeram a gente enfrentar, vivendo décadas na
fossa que vocês criaram, agora é a gente que precisa dar jeito nisso? – perguntou Juan.
– Acho isso tão imbecil quanto você – lamentou o mafioso. – Mas vocês não têm
Latina.
• • •
– Que merda é essa? – berrou Myang, socando com força a mesa do escritório de
Scorza, na Torre Alfa. Chegara da China minutos atrás apenas para cair de cabeça no caos
em que a cidade se encontrava. – Isso é coisa de vocês, só pode ser coisa de vocês. A gente
O chinês puxou a pistola que guardava no bolso e apontou-a para Ruby e o italiano.
Apesar da idade, seus anos no exército ainda surtiam efeito e ele tinha um porte forte, sem
disseram que você coordenou o apoio a Angra desde o começo. O que quer que essa merda
seja, foi você quem orquestrou – disse Scorza, calmamente. – E sua arma é tão útil quanto
Tentou disparar para o alto, mas nada aconteceu. Revoltado, o presidente da empresa
de segurança jogou a arma no chão. Seu rosto estava vermelho e suas veias latejavam cada
– Isso não é possível. Eu fiz um breve contato com o Rio há uma semana e me
disseram que estava tudo em perfeita ordem. – Ele mirava os dois, esperando uma resposta.
Seu maior medo não era com as mortes ou a ameaça nuclear, mas sim o de perder a
nenhuma nos garantiu um contingente em tempo hábil. E todas estão receosas com a notícia
As luzes do prédio piscaram, sinal de que o gerador estava falhando. Sem uso há
décadas, ele não estava suportando o consumo da torre, às escuras graças ao blecaute que
– Uma jornalista ligou pra mim há uns minutos – revelou Ruby, com a voz controlada
apesar do nervosismo. – Ela e alguns colegas de redação receberam por e-mail a notícia de
que uma bomba nuclear estava prestes a explodir na cidade. Como estão sem luz, viram
apenas no celular. A notícia já está nas rádios. Em breve, vai ser manchete no mundo
inteiro.
Myang, recebendo como resposta um aceno positivo dos dois. Tenso, ele esfregou os dedos
no couro cabeludo. – Há espaço lá, mas nem de perto o suficiente. Vou pedir um helicóptero
– Myang, isso é sério? Você realmente não é o responsável por tudo isso? – insistiu
– A Spartan realmente faz testes em humanos com potencial psíquico dos Escombros e
mas faz algum tempo que não adquirimos algum espécime útil – respondeu, um pouco mais
do prédio que chegou até a sala na qual se reuniam. Scorza e Ruby olhavam para o chinês
sem saber se ficavam chocados ou desconfiados. Seu semblante e suas atitudes não
transportador de carga que o italiano mantinha em sua coleção privada de aeronaves. – Por
que você ainda não voou para os bairros artificiais com ele?
• • •
O piloto do helicóptero fez um voo rasante perto da catedral e foi recebido a balas
pelos rebeldes que protegiam Angra. Ciente da forte proteção da aeronave, ele desceu
calmamente perto de uma das ruas e abriu o compartimento de carga traseiro, onde os
– São apenas cinco homens armados – berrou o piloto. Sua voz na cabina se fazia ouvir
Já na altura da rua, os quatro aceleraram, desceram pela saída de carga e seguiram pela
ladeira que levava ao templo. Fred e Juan pararam próximos da entrada, sacaram rifles
deram cobertura para Anderson e Miguel avançarem catedral adentro ainda nas motos, um
disparando com uma pistola e o outro usando seus poderes psíquicos para mandar um
rebelde voando contra a parede. Dois milicianos caíram mortos por balas entre os bancos da
catedral e os outros dois que restaram fugiram por uma das saídas laterais.
Miguel freou de repente quando se deu conta das sentinelas. Como bizarras estátuas de
ogiva nuclear, encarava o grupo com indiferença e uma leve sensação de desprezo. O
indicador da bomba, envolta agora por hastes metálicas para transporte, mostrava que
Não houve troca de palavras, ela apenas apontou na direção dos motoqueiros e as
quatro bestas saltaram furiosamente na direção deles. Anderson girou a moto cantando pneu
tempo em que lançou duas das feras contra a parede com seus poderes psíquicos.
Sem entender como fazia aquilo, despejou nelas toda a sua raiva e viu o metal de seus
despedaçou as criaturas, deixando o sangue artificial que os alimentava espalhado pelo chão
da catedral. Tonto por todo o poder que usara, ainda teve forças de se virar para atacar os
outros dois, mas Angra usou a telecinésia para lançar os pesados bancos de madeira maciça
perseguiram a moto de Anderson pela catedral. As balas disparadas por Fred e Juan
helicóptero chegando se misturava aos disparos das armas de fogo e inundava o templo
para fora. Juan e Fred entenderam a deixa, aguardaram as duas bestas passarem por cima
dela no portão estreito para fuzilarem o tanque de gasolina. A explosão lançou uma das
sentinelas longe em chamas e a outra acabou decapitada por uma peça metálica que voou do
automóvel.
da ogiva nuclear quando os bancos de madeira voaram pela catedral, revelando um Miguel
furioso, mas debilitado. Ela se agarrou no cabo e a aeronave puxou a ogiva, chocando a
persegui-la e usar seus poderes para trazer a ogiva para baixo, mas foi impedido por um
A sentinela debilitada pela explosão derrubou Fred com um golpe rápido e ficou
sozinha com Juan. Ele não tirou o dedo do gatilho de sua submetralhadora. O algoz ignorou
os disparos e, como um predador, pulou em cima dele e caiu sobre seu corpo no chão.
Não houve tempo para reação. O pulso da criatura dobrou para baixo, revelando uma
lâmina retrátil que perfurou o coração do motoqueiro. Juan ainda encarou o rosto disforme
com pedaços de pele artificial e dentes metálicos da sentinela por um breve momento de
terror. Desesperado, Miguel puxou o monstro para a sua própria direção com a telecinésia e
O psíquico ajoelhou ao seu lado e levantou a cabeça de Juan para encará-lo. Nos olhos
dele, Miguel sentiu todo o pavor da morte certa e dos seus últimos momentos de
consciência. Tentou falar algo uma, duas vezes, mas só sangue saía da sua boca. Apertou o
– Filha da puta... filha da puta... – Era tudo o que Miguel conseguia dizer. Chorando,
Anderson assistiu aos últimos momentos em pé e Fred deu as costas para os três, enterrou a
O lamento dos três foi interrompido por um murmurar sem sentido da grama alta que
apontando a pistola para o local de onde imaginava virem os sons, que soavam como os
Sem aviso, uma quinta sentinela escondida pela grama alta se levantou. Era diferente
das demais, com a maior parte dos componentes orgânicos protegida por um revestimento
metálico. Ao contrário dos dentes de aço da boca mecânica dos outros, tinha uma pequena
caixa de som na base do rosto. Estava completamente destruída. Algo cortara seu corpo
desde a base do torso até o ombro direito, deixando-a sem um braço e exibindo a estranha
Anderson apontou a arma para a sua cabeça, mas vacilou. A sentinela cambaleou em
sua direção, mas não parecia representar qualquer ameaça. Aos poucos, seus movimentos
pareciam ficar mais rijos e menos desengonçados, como se estivesse recuperando as forças.
Fred deu conta de sua presença e apontou-lhe o rifle, mas uma voz fraca o impediu.
– Vocês ainda têm uma hora e quarenta e cinco minutos para impedir Angra – disse
finalmente, agora completamente ereta. – Ela levou a ogiva para a sede da Spartan, na
Gávea.
– Que merda é essa? – berrou Fred. – Anderson, sai de perto disso. Agora.
desarmá-la. Mas não há tempo. Eu posso fazer isso. Sigam as minhas orientações –
Último a ver a criatura, Miguel se afastou do corpo de Juan, colocou a mão no cano do
rifle de Fred e o fez abaixar a arma. O motoqueiro negro relutou, mas algo no rosto do
memória as lembranças que aquela voz lhe trazia. O pesado Boeing Chinook de Scorza se
aproximou e pousava próximo deles, suas hélices fazendo a grama no entorno se curvar para
longe. Miguel protegeu o rosto do vento com uma das mãos e falou com a máquina.
• • •
Desceram até um andar comprado pela Spartan para funcionar como escritório
autônomo e começaram a coordenar os esforços de evacuação das Luzes. Tudo era muito
moroso. Apesar de os geradores daquela região estarem funcionando a todo vapor, uns
poucos prédios da Rio Alfa já tinham energia elétrica. Os sinais de transmissão de dados
desorganização imperava no lado rico da cidade graças à imprensa, que divulgara a explosão
nuclear iminente.
da Spartan, sem o apelo de suas armas de fogo, nada podiam fazer para deter a desordem. A
única ponte que conectava a terra firme às regiões marítimas estava parada. Os postos que
permanecer fechadas e as pessoas deixavam seus carros para trás, tentando fazer o trajeto a
pé.
Um experiente hacker da Alford estava sentado ao lado deles, com eletrodos ligados às
têmporas para acelerar a velocidade dos seus comandos ao computador. Fazia com que
dezenas de linhas de programação aparecessem em várias janelas ao mesmo tempo sem que
precisasse tocar no teclado, mas de pouco adiantou. Concluiu que o mainframe da Spartan
estava destruído fisicamente e desistiu dele, mas todo o resto das avarias aos outros
servidores era fruto de uma invasão harmônica impenetrável e sem precedentes. Todas as
suas entradas para os sistemas estavam seladas, dando a entender que o autor do ataque
conhecia melhor do que ninguém o aparato de segurança virtual das empresas do Rio de
Janeiro.
Myang o espiava pelo ombro quando uma informação nova surgiu. Conseguira resgatar
canto da dela. Não podia ser. Aquilo só podia ser um erro. Chamou Scorza e Ruby,
– As ligações partiram da Torre Alfa – disse o chinês, com uma voz acusadora. – Eu
“disse” que não tinha nenhuma relação com isso. Agora quero as explicações de vocês.
Alfa. Cruzou os dados com os servidores da Fiume, Spartan e Alford no prédio, mas não
edifício, o mesmo responsável pelo envio de e-mails para dezenas de jornalistas sobre o
cidade. Logo de cara, só Ruby reconheceu a sequência de números exibida pelo hacker
como endereço virtual do invasor e, sem reação, sussurrou o nome de seu dono.
– Alfonse...?
• • •
Moradores das Luzes pararam com espanto na entrada do Túnel Rebouças. Como
última saída para fugirem da explosão nuclear, decidiram tentar a sorte nos Escombros e
deram de cara com uma multidão de homens e mulheres vestindo trapos e com armas de
fogo em mãos. Não houve espaço para negociação. Os mesmos excluídos que
testemunharam tantas vezes seus pares serem mortos ao tentar cruzar a fronteira para o lado
rico não precisaram de ordens, apenas dispararam a esmo contra quem tentava fazer o
Alguns chegaram a atirar para o alto quando o Boeing Chinook cruzou os céus,
pensando se tratar de fugitivos da Rio Alfa, mas o helicóptero estava longe demais para que
– Você tem certeza de que a gente pode confiar no que ele nos disse? – insistia Fred.
Vira um daqueles matar Juan bem na sua frente e, apesar de o sangue quente ter suspendido
temporariamente seu luto, ainda não se via cooperando com um deles. – Você conhece isso?
– Eu não sei o que está acontecendo, mas quem falou conosco na frente da catedral é o
Alfonse, a inteligência artificial dos Alford. Disso eu tenho certeza – confirmou Miguel. – E
subsolo. O edifício provavelmente estaria evacuado, mas não seria surpresa se encontrassem
alguns seguranças e até civis lá, provavelmente buscando abrigo nas paredes reforçadas da
torre. Já Miguel seguiria sozinho para a cobertura do prédio da Spartan, onde Angra
– Pelo que ele disse, o gerador não aguentou o blecaute e o servidor dele deu pau.
Precisamos reiniciá-lo manualmente. Aí sim ele vai poder controlar a sentinela e desarmar a
O helicóptero baixou a altitude no topo da Torre Alfa, Anderson desejou boa sorte a
Miguel e pulou da aeronave. Fred ainda passou algum tempo parado, cabisbaixo e mirando o
chão. Levantou como se seu corpo pesasse toneladas, seus dreadlocks serpenteando suas
Luzes.
– Juan morreu para salvar essa merda. Uma das pessoas que mais se fodeu por causa
deles... morta de graça. Morreu justo quando tinha decidido descansar e me garantiu que
não queria mais saber de gangues, de mercenários, disso tudo. Que mundo mais estúpido,
Miguel.
– Se cuida também.
poucos minutos em que passou sozinho com a sentinela abatida, Miguel a encarava,
tentando entender o que estava acontecendo. Alfonse não lhe fornecera qualquer resposta.
Apenas lhes deu as instruções para o plano e caiu inconsciente. Imaginava que Ruby e sua
IA estavam em algum lugar das Luzes trabalhando juntos e que, de alguma forma,
conseguiram invadir uma das sentinelas. Era a única explicação plausível para o que estava
acontecendo.
porta de carga se abriu num ronco colossal, despejando a luz do dia sobre ele e o robô
edifício, Angra o esperava. Usava o mesmo sobretudo cinza sobre as roupas negras, o cabelo
agitado pelo soprar das hélices. Logo atrás dela, a B-53 aguardava o fim da sua contagem
acima da maior parte dos prédios das Luzes. Aparelhos de ventilação desligados, uma
antena parabólica um pouco maior do que o helicóptero e uma cabine que dava acesso ao
prédio seriam suas únicas testemunhas. A aeronave arremeteu, deixando-os a sós. Em vez
A motoqueira tirou a metralhadora que carregava nas costas, jogou-a no chão e voltou a
encará-lo.
– Eu não tenho nada contra você, contra nenhum de vocês. Quero só fazer o justo.
– Eu detesto eles tanto quanto você – garantiu. Por mais que se esforçasse, não
conseguia vê-la como inimiga. Sequer conseguia vê-la como a responsável pela morte de
Juan. Tudo o que ocorrera até então parecia apenas fruto de uma disputa sem sentido, sem
uma linha que delineasse o certo do errado. – Mas você não pode explodir uma cidade
inteira por vingança, não pode transformar isso aqui numa cidade fantasma. Deve haver
outro jeito.
– Os “outros jeitos” são só paliativos. Agora que tudo está próximo do fim, você quer
– Nós?
Pensou nos dias em que passou junto da IA na casa dos Alford e chegou à óbvia conclusão
de que era ele quem vazava as informações dos Fantasmas pelas conversas com Ruby.
– Decidimos que, juntos, criaríamos uma pessoa, um mito para inflamar o povo e fazer
com que todos acreditassem na revolução. Tínhamos pouco tempo para me transformar no
“Não vou entrar em detalhes. – Ela apontou para a impiedosa contagem regressiva da
ogiva, que ainda tinha mais uma hora e quinze minutos pela frente. – Acho que não é do seu
interesse prolongar muito a conversa, mas ele queria que trouxéssemos o povo até o túnel
que liga os Escombros às Luzes, o Rebouças. Ao mesmo tempo, causaria uma pane geral no
e instauraria o caos na cidade. Com a ogiva aqui, nós daríamos a cartada final. Exigir do
Consórcio Rio, ou “a Tríade”, como nós costumamos chamar, o cumprimento de uma série
de medidas de reconstrução e integração entre Rio Alfa e Beta, acabando com a imposição
– Mas é isso que vocês deveriam fazer. O que mudou? Eles recusaram o pedido de
vocês?
Angra caminhou até o parapeito e fitou o lado rico do Rio, a mistura de alta tecnologia
imponentes no mar, iluminados pela gentileza de um Sol de abril. Faltava pouco para aquele
– Imagine, Miguel, que nosso plano desse certo. Imagine que os presidentes das três
as Luzes fosse destruída. Seria maravilhoso. Mas seria o suficiente? Estaríamos assim tão
próximos do ideal?
– Eu não entendo.
– Essa cidade, assim como tantas no mundo inteiro, sempre foi partida. A diferença é
que, aqui, as fronteiras são mais visíveis. Toda cidade é permeada por níveis de exclusão. A
indiferença é inata a qualquer sociedade humana. – Ela apontou para a cadeia de morros que
da miséria completa onde vivemos, mas permaneceríamos como a base da cadeia alimentar
dessa sociedade. Eles nem precisariam de muita habilidade para lucrar conosco.
Consumiríamos seus produtos, participaríamos do seu ciclo. Continuaríamos excluídos, mas
consciência disso.
subcultura marginal. Lutaríamos para tentarmos ser ricos, procurando a felicidade na luta
pela ascensão, mas jamais a encontraríamos. E todo o sistema ao nosso redor se alimentaria
do esforço que fazemos para atingir esse nirvana ocidental, essa cultura de trabalho que só
enriquece alguns e mantém os outros sob controle e dentro de seus próprios sonhos.
da mãe rica cuidando do filho no shopping center atingiu-o como um tapa no rosto. Em
breve, eles também fariam parte daquele mundo. Mas a que preço?
– Eu... acho que entendo o que você disse. Mas isso não justifica o sacrifício de uma
povo dos Escombros a vingança com a qual eles sempre sonharam. Recebi pelo rádio a
informação de que os rebeldes estão atirando nos moradores das Luzes que tentam se
aproximar do túnel. O dia de hoje servirá para isso. O pagamento dessa dívida.
– Você tem consciência do que isso vai fazer, não tem? Essa revolta que você armou
com a ajuda do Alfonse, se for levada até o fim e essa ogiva explodir, vai durar pouco tempo.
Com muita sorte, alguns dias. Quando eles se recuperarem, vão varrer os Escombros e gente
que nem sonhava com revolução alguma vai morrer ou sofrer coisa pior por causa disso.
Vão lembrar de nós como um bando de monstros que explodiu uma bomba suja e destruiu o
– Num mundo pervertido como esse, ser lembrado como um vilão não é algo tão
desagradável. E agora não há mais volta, Miguel. O destino dessa cidade já está selado. Eu
não vou permitir que você e Alfonse desarmem a bomba. Agora cabe a você decidir se
seguirá em frente ou não. Você tem mais de uma hora. Naquele helicóptero, é tempo de
logo após o estupro, deitada na cama da enfermaria da boate Styx. Para ele, ela era o retrato
perfeito de tudo o que tinham discutido até então. O excluído que buscava
apenas um joguete nas mãos de quem fazia parte do sistema. Fosse uma mulher estuprada
na cama de um motel, fosse um homem trabalhando a vida inteira para adquirir um padrão
que ele jamais alcançaria, eles eram idênticos. Davam tudo o que tinham, corpos, almas e
existências, em troca de uma aceitação impossível. E era isso que Angra detestava.
– Angra... eu concordo... com quase tudo o que você disse. Mas você não tem o direito
de tomar para si a autoridade de todo um povo. Não pode tomar deles o direito de se
revoltarem por conta própria – começou, fazendo esforço para ordenar seus pensamentos. –
No fim, a revolta.
“Aos poucos, o povo sempre se libertou de quem os comandava. Ele se levantou contra
até na queda da ditadura que nós vivemos aqui, no século passado. Eu não entendo tanto de
história, o que sei eu aprendi nos colégios dos Escombros e nos livros que apanhei no
centro, mas sei que todos passaram pelo mesmo ciclo. Primeiro, aceitaram as imposições
que lhe ofereceram. Abraçaram seus ditadores como heróis para, décadas ou até séculos
“Mas, se você detonar essa bomba agora, o povo dos Escombros jamais terá uma
chance de se conscientizar de verdade, de entender o que está acontecendo. Não acho que as
obras de integração e o fim da separação da cidade imaginadas por Alfonse sejam a melhor
solução, mas eu não consigo pensar em nada mais cabível. Faremos parte desse sistema,
– Toda a multidão que você trouxe do túnel para cá quer uma coisa, Angra: sair da
miséria. Eles ainda não compreendem essas relações de poder da qual você falou, nem eu
compreendo totalmente. Se você mostrar as cartas para eles, todos vão escolher a integração
dos Escombros com as Luzes, e não essa destruição, nem o banho de sangue que virá
A motoqueira fitou-o por algum tempo, ruminando as palavras dele até finalmente dar
uma resposta.
outro, como na batalha das gangues. Dessa vez, em vez de criar uma onde de choque, o
embate de seus poderes pareceu ressonar sem detonar, balançando o prédio e criando
suas forças tentando suspender um ao outro e, ofegantes, se encararam mais uma vez.
Angra rolou no chão, pegou o rifle caído e disparou contra Miguel, que se escondeu
atrás de um dos tubos de ventilação. Escutava cada tiro atingindo a estrutura de aço certo de
que algum projétil ia perfurar a cobertura. Pensava em como sair dali quando escutou o
terraço. Ele aterrissou ao lado da motoqueira e lançou seu próprio corpo contra o dela num
encontro violento. A arma voou para longe do seu alcance e a sentinela, como um touro,
continuou a empurrá-la até prensar seu corpo contra a entrada da cabine que dava para os
andares inferiores. A porta cedeu e Angra caiu prédio adentro por um vão além da visão da
inteligência artificial.
– Rápido, a bomba – berrou para a sentinela, que deu meia-volta, mesmo com o corpo
tosco e partido ao meio, e correu até a bomba nuclear. Sabia que, se Alfonse tinha
recuperado sua consciência, Fred e Anderson foram felizes na incursão à Torre Alfa.
O robô usava um conector na ponta do dedo para ligar-se ao detonador quando um dos
dutos metálicos de ventilação voou pelos ares como numa erupção. Vergalhões e lascas de
concreto subiram aos céus junto com o berro de Angra, que usou a telecinésia para
impulsionar o próprio corpo pelo buraco de volta à cobertura. Ainda no ar, ela tirou Alfonse
de perto da bomba com seus poderes e aterrissou no momento em que mandou a sentinela
forças para jogá-la além do terraço. Ela sequer teve como reagir e voou na direção de um
prédio do outro lado da rua, arrebentando uma de suas janelas e desaparecendo no seu
interior. Surpreso com os próprios poderes, Miguel relaxou. Procurou o rifle dela, pendurou-
causara uma onda de choque que destruiu as janelas adjacentes ao ponto onde a motoqueira
caíra. E ela estava de pé bem no centro da destruição. Ferida, com as roupas rasgadas e um
– Está acabado, ela não pode vir para cá – assegurou Alfonse, já desarmando o
acelerado. – Já vi seus poderes em ação. Ela consegue lançar-se a longas distâncias com a
Miguel assentiu, mas uma onda de terror varreu seu corpo quando a mulher estendeu
as duas mãos na direção do prédio e soltou um urro inumano. Primeiro, sentiu um leve
tremor. Depois, as janelas do edifício começaram a estalar, todas as suas estruturas sendo
puxadas para frente. O motoqueiro se agarrou numa das hastes de suporte da ogiva para não
cair quando sentiu o primeiro puxão da psíquica, cujo berro ecoava na rua deserta abaixo
Puxou o rifle que relutava tanto em utilizar, engatilhou-o novamente e tentou mirar na
direção de Angra. Aprendera com os Fantasmas o mínimo sobre como atirar, mas seria a
primeira vez que usava uma arma daquelas. Puxou o gatilho pela primeira vez e uma rajada
– Mude a trava lateral e tire do modo rajada para tiro único. Mantenha os braços firmes
Miguel seguiu as instruções, mas era difícil não se precipitar num prédio tremendo e
prestes a desabar. Respirou fundo, limpou a mente e ignorou o sacolejo do edifício, mas
errou novamente o alvo. De impulso, puxou o gatilho de novo. Outro erro. A distância não
lhe permitia ter certeza, mas sentiu que Angra olhava nos seus olhos. Lembrou-se da
primeira vez que a viu e do breve encontro antes da batalha das gangues, quando ela lhe
ofereceu um lugar na sua rebelião. Atirou de novo, certo de que matava a pessoa mais
parecida com ele que encontrara nos últimos anos. Não acreditou quando o tremor cessou
sem aviso e Angra levou as mãos ao peito. Permaneceu de pé por segundos que custaram a
passar até que seu corpo inclinou-se para frente, mergulhando para a morte certa centenas
de metros abaixo. O psíquico deixou-se cair no chão, todos os seus músculos se relaxando
– Ainda não, Miguel – disse a sentinela vindo em sua direção. Ele pediu o celular do
quilômetros dali, o italiano atendeu e Alfonse alterou a sua própria voz para imitar Angra. –
Senhor Remo Scorza, avise a Ruby Alford e Tseng Myang que os senhores receberam em
suas caixas de mensagens nesse exato momento um projeto de licitação das obras de
integração das Luzes com os Escombros. Além da derrubada do muro e do fim da restrição
reconstrução imediata e assistência aos moradores da Rio Beta. Caso não cumpra com as
– Sim – respondeu o italiano, seco. Scorza e Ruby se entreolharam. Não havia muita
enviado por e-mail. Era um extenso projeto de obras que deveria ser disponibilizado
– Lembrem-se de que Alfonse me deu acesso a dados confidenciais das três empresas,
o que poderia levá-los à falência caso decidam cancelar as obras no futuro – alertou a
inteligência artificial, ainda se passando pela motoqueira. – Eles vão desde pesquisas
humanas indevidas, passam por ligações com a máfia italiana, estreitas relações com o
adquiriu senciência. Estou acompanhando o pregão virtual das licitações nesse momento.
negócio já estava firmado com um grupo de construtoras. Alfonse ativou todos os alto-
falantes do Túnel Rebouças, passou a mensagem de vitória aos rebeldes e pediu para que
todos voltassem para suas casas pacificamente. Alguns voltaram aos Escombros para
comemorar com suas famílias, outros aproveitaram o caos das Luzes para iniciar saques.
Com a energia elétrica restabelecida e o anúncio de que a bomba nuclear não era mais uma
– Miguel, nós não temos muito tempo – disse Alfonse. Ele removeu o detonador da
bomba e o esmagou com a mão que lhe restava. – Eu sei que você tem muitas perguntas,
mas eles vão exigir de Ruby a minha destruição. Por favor, Alice, Fred e Anderson nos
• • •
No curto voo de helicóptero até a Torre Alfa, Miguel viu a ordem voltando lentamente
à cidade. Uns poucos rebeldes corriam pelas Luzes, as armas em punho à procura de algum
troféu. Arrebentavam vitrines, atiravam em inocentes. Era o lado ruim de toda revolução. A
multidão que antes fazia guarda na entrada do Rebouças desaparecera. Os primeiros carros
começavam a circular e as sirenes das ambulâncias berravam em busca dos seus feridos.
edifício. Miguel sentia-se tonto por ter abusado dos poderes na última hora. Só então, com o
sangue frio, notou um arranhão profundo na perna que empapava sua calça de sangue.
Concluiu que era fruto da batalha na catedral, provavelmente de quando Angra jogara os
bancos de madeira em cima dele. O ferimento ardia, mas sua vontade de entender tudo era
passar pelos corredores ao lado de um jovem desconhecido. Eles entraram na sala que
O quarto era gelado e amplo, com dezenas de servidores enfileirados em suas laterais.
Uma selva de fios corria pelo chão e se pendurava pelo teto aos montes. Num canto, um
pequeno monitor de tela plana repousava sobre um cilindro metálico com várias alças cuja
função Miguel desconhecia. Alice o abraçou com força logo que entrou e, antes que pudesse
lamentar a sua artificialidade, encontrou nos seus olhos a mesma androide de antes. Teria
dado um beijo nela se não tivesse notado a presença de Anderson e Fred. O negro estava em
perfeito estado, mas o outro tinha um ferimento na testa que insistia em despejar sangue
– Você voltou – comemorou, segurando o rosto da androide entre suas mãos. Ela sorria
Alice levantou o dedo na altura dos lábios para que ele silenciasse e apontou para o
O som da sentinela semidestruída cruzando a sala com cuidado para não puxar os fios
Juan e Anderson o cumprimentaram com um aceno de cabeça, eles também ansiosos para
– Por favor, me desculpem por tudo que fiz vocês passarem até aqui. Eu fui o
vocês – disse Alfonse, pausadamente. O som não saía mais da sentinela, e sim do próprio
cilindro. – Só peço para que sejamos breves. Scorza, Myang e Ruby já estão vindo para cá
– Pelo visto, o Miguel já te conhece – disse Fred. – Mas nós nem sabemos o que você é
ao certo.
– Meu nome é Alfonse, eu sou uma inteligência artificial construída pela família
minhas funções ao longo dos anos. Versões primárias minhas são vendidas no mundo
inteiro, mas eu sou a única totalmente desenvolvida. Hoje, tenho estrutura o suficiente para
como alguns preferem dizer. Revisando meus arquivos, posso apenas dizer que alcancei esse
discernimento graças ao mestre Antoine e à interação constante com a sua família. Hoje,
tenho boas razões para acreditar que ele me colocou para gerenciar sua própria casa apenas
para que eu interagisse mais diretamente com seres humanos e desenvolvesse minha
consciência”.
– Um jornalista me contou que toda IA com um fantasma é eliminada antes que ela
– Sim, é verdade. Foi por isso que mascarei a maior parte da minha... individualidade
– Então a decisão de tentar unir os Escombros com as Luzes foi inteiramente sua?
lado pobre da cidade. Brigas de gangues, incursões violentas da Spartan e o massacre dos
moradores que, anos atrás, tentaram protestar no Túnel Rebouças se desenrolavam na tela
enquanto ele falava. – Desde que a função de gerenciar uma cidade foi adicionada à minha
programação pelo mestre Antoine, ficou claro que essa divisão deveria acabar. Não só por
piedade. Em longo prazo, seria mais lucrativo até para as empresas. Essa segregação me
“Com uma unidade de alto processamento, eu assisti à vida de muitos moradores dos
Escombros através das câmeras da antiga companhia de trânsito, dos sistemas de segurança
morrerem ao mesmo tempo em que vidas como a da própria madame Ruby ou de outros
jovens das Luzes floresciam quase como obras de arte. Essa discrepância me atormentava.
“No começo, era como assistir a uma equação matemática desequilibrada, um erro
grave de simetria que eu não podia corrigir porque não era do interesse do consórcio. O
único que defendia a união era o mestre Antoine, mas ele era voz vencida contra Myang e
Scorza. Com o tempo, aquilo deixou de parecer um simples problema de simetria para mim
e se transformou numa dor. E a única pessoa com a qual eu podia conversar sobre isso, por
“Antes que você me pergunte como, vou me adiantar: era eu a figura que você
no centro, ela emitia um fraco sinal wi-fi que eu captei anos atrás. De tempos eu tempos, eu
me conectava a ela, criava aquele avatar e conversávamos por horas a fio. Ela, sem qualquer
memória e afoita por deixar aquela inexistência para vivenciar o mundo real. Eu, insatisfeito
Alfonse.
– É verdade – admitiu a androide. – Eu não sabia quem ele era, não até semana
passada, quando ele me sequestrou. Nós conversávamos sobre o comportamento dos seres
– E o que a Spartan tem com tudo isso? – inquiriu Anderson. – Angra recebeu ajuda
deles, você levou Alice para a sede deles quando a sequestrou. E desde quando vocês se
É
separaram? Nós vimos o confronto da Éden contra soldados da Spartan na Praça da
Bandeira.
A porta foi aberta com violência e Ruby, em prantos, entrou na sala rapidamente e
trancou-a pelo lado de dentro. Escutaram o som de murros vindos de fora e gritos de Myang
pedindo que abrissem-na imediatamente. Fred fez menção de se levantar com o rifle, mas a
sentinela parada no chão levantou a mão, indicando para que ele não se movesse.
– Me desculpe por trair a sua confiança, madame Ruby. A senhorita não sabe o quanto
foi doloroso manter meus planos escondidos. – Ouviram o som de uma trava eletrônica
permitir.
Com a maquiagem borrada pelas lágrimas, Ruby foi até o cilindro que armazenava a
inteligência artificial, e sentou-se ao seu lado, ainda incrédula. Sabia que era apenas uma
questão de tempo até que conseguissem arrombar a porta para desativar Alfonse, a figura
– É bom que você tenha chegado, assim poderá repassar o que eu vou dizer sobre a
Spartan e toda a minha maquinação para eles dois. O plano que vocês viram nas últimas
semanas está pronto há vários anos, mas eu precisava de uma oportunidade perfeita para
realizá-lo.
Spartan durante o intervalo de dois meses, um corpo físico para executar em segredo
algumas tarefas necessárias e uma pessoa, alguém para agir como catalisador da revolução
dos Escombros.
Partido Comunista. Eu sabia que Myang deixava o país e ficava incomunicável por semanas,
às vezes meses, para participar das reuniões antes, durante e depois do encontro. Eu teria
computador.
pessoas em chamadas telefônicas ou de vídeo. Assim, tomei o lugar de Myang enquanto ele
permanecia incomunicável na China. Para impedir que ele descobrisse o que eu fazia, invadi
suas contas de e-mail e aparelho telefônico para que ele não fugisse do script caso decidisse
entrar em contato com a empresa. E ele tentou. Mas eu receptei suas mensagens e mandei
– A segunda coisa que eu precisava era de um corpo. Quando Myang ainda estava no
Brasil, me passei por ele numa chamada para coordenar temporariamente o departamento
preferirem. Toda a operação deveria ser conduzida em sigilo. No lugar do cérebro original
dele, colocamos um receptor de ordens através do qual eu o controlaria. O pretexto que usei
para dar aquela ordem foi que, em breve, desenvolveríamos um programa semelhante ao dos
ADAMs.
formas para que aquela operação não chegasse ao seu conhecimento. Não foi muito difícil,
mantive a farsa apenas por duas semanas, quando ele finalmente voou para a China. Isso nos
leva ao terceiro e talvez mais importante elemento do meu plano: Angra, a catalisadora da
revolução.
“O nome verdadeiro de Angra era Lúcia. Ela passou parte da vida nos Escombros e
parte nas Luzes – Alfonse exibiu uma série de imagens capturadas por câmeras de ruas e
lojas mostrando Angra em vários momentos da vida. Nas primeiras cenas, ela brincava na
entrada de uma vila em ruínas nos Escombros. Depois, ela aparecia com o rosto perdido e
de mãos dadas com um homem mais velho nas ruas das Luzes. – Lúcia era filha de um
morador da Rio Alfa com uma jovem dos Escombros. Ele trabalhava na gerência de uma
fábrica na parte pobre da cidade. Não era rico, nem perto disso. Mas tinha um estilo de vida
“Ele era casado, ela nasceu de uma relação extraconjugal com uma das meninas que
trabalhava na fábrica. O nome dele era Marcelo. Era infiel, mas não um homem ruim.
Tentou esconder da esposa a traição, mas, quando viu que a filha cresceria nos Escombros
sem boas condições de vida, convenceu a mãe a deixá-la sob seus cuidados. Isso quando ela
“Toda a vizinhança achava que Lúcia havia tirado a sorte grande, mas não foi bem
assim. Quando ela tinha nove anos e frequentava o primário numa escola privada daqui,
Marcelo foi vítima de um infarto fulminante e ela ficou sob os cuidados da madrasta, que
nunca aprovara o fruto da traição do marido em casa. Para se vingar da amante e da própria
Ruby Alford fez uma expressão de espanto, mas todos os outros não entenderam o que
aquilo significava.
– Vocês, dos Escombros, não devem conhecer esse nome – continuou a inteligência
artificial, lhes mostrando na tela imagens de boates noturnas e bares de strip-tease das
Luzes. – A Companhia das Polacas é uma rede de prostituição que nasceu no lado rico da
cidade após a divisão do Rio de Janeiro. Eles traficam prostitutas dos Escombros para as
Luzes, as mantêm em condições de escravidão para servir a elite daqui. Crianças são raras
Nunca fora do tipo cooperativa e entrou em várias brigas com clientes. Já nessa época, eu
acompanhava as suas atividades. Foi quando ela descobriu seus primeiros poderes, mas
oportunidade de testemunhar um crescimento tão cruel. Mas a rebeldia dela custou caro.
Perto do aniversário de 16 anos, foi vendida numa troca de favores para um grupo de
– A gangue do Índio – lembrou Fred. – Eles tocaram o terror nos Escombros, tomaram
vários trabalhos que antes só eram destinados aos motoqueiros. Fizeram dinheiro pra
caralho, mas as Luzes mataram eles no fim de fevereiro, não foi?
– Não foram as Luzes. Foi a própria Angra. Ela passou quatro anos como escrava
deles. Fazia tudo. Desde favores sexuais até lavar banheiros. Dormia trancada num contêiner
e só sobreviveu esse tempo todo por sorte. Contraiu uma série de doenças e,
psicologicamente, só piorou. Foi aí que ela começou a desenvolver seus poderes, o que me
fez escolhê-la para encabeçar a revolução. Ela tinha toda a revolta de que eu precisava. E eu
queria ajudá-la a sair daquela situação. Por uma conjunção de fatores que me favoreceu, ela
– Mas não deu tudo certo como você previa – disse Fred, com o ar sério. – Ela se
– Meu objetivo jamais foi levar essa revolução à situação que chegou. Só queria
construir a sua imagem como salvadora. Dei-lhe a gangue, as motos. Quando vocês
invadiram as Luzes para salvar uma mulher no motel Chiba Blues, me vi obrigado a mandar
um esquadrão sob determinação do Tribunal de Justiça do Rio. Por azar, uma das pessoas
que vocês mataram era filho do presidente deles. Foi aí que orquestrei a ascensão de Lúcia.
Fui eu, controlando o mainframe central da Spartan, que desativei as armas dos soldados
– Em nenhum momento você pensou no que podia acontecer? Porra, ela matou duas
pessoas na primeira batalha das gangues. Aquela incursão da Spartan deixou dezenas de
– Isso sem falar no sequestro de Alice, no assassinato dos seguranças de Gian e dos
– Eu não tinha escolha. As mortes causadas por Angra foram frutos de suas próprias
decisões. O plano original que eu arquitetei para ela terminava com as obras de integração
da cidade, mas ela foi mais longe. Quis explodir as Luzes para se vingar de tudo o que
passou e impedir que os Escombros fossem assimilados pelo mesmo sistema que rege o
resto do mundo.
“Eu sinto muito pelas perdas que infligi a todos vocês, mas as mortes que causei eram
inevitáveis ou partiram de variáveis que fugiram do meu controle. O ataque das Luzes ao
quarteirão dos motoqueiros foi fruto de uma pressão enorme que colocaram contra a
Spartan e eu tive que segurar sem deixar que descobrissem minha presença no lugar de
Myang. Era para ter sido bem pior. Eles tinham material suficiente para matar milhares de
pessoas naquela noite. Mas eu impedi que as mortes fossem ainda maiores com a ajuda de
executá-lo, um mercenário japonês. Eu não ordenei que ele matasse ninguém, apenas que
planos de vocês. Ele descumpriu minhas determinações e sabia tanto sobre a Spartan que
“Voltando ao sequestro de Alice, quando Gian percebeu que todas os passos que vocês
davam eram antecipados pela Éden e cortou o contato com Ruby e Scorza, eu comecei a
pensar que vocês tinham um plano, que haviam descoberto algo, talvez até a minha
identidade. Aquela ação foi inteiramente fruto do meu medo e do meu instinto de
autopreservação. E isso me fez cair na jogada de Gian para expor a Spartan. Foi aí que
coloquei outro plano em movimento. Temendo que Lúcia pudesse sair de controle, trouxe
Alice para cá e pedi a sua permissão para assumir as atividades do seu corpo. Ela seria a
garantia de que eu manteria vocês sob vigilância e ainda teria acesso a algum corpo físico
caso Angra me atacasse, o que acabou acontecendo. Fui eu, Miguel, quem convivi a última
Miguel relembrou os dias anteriores e agora tudo fazia mais sentido. Uma das
primeiras memórias que lhe veio à cabeça foi a cena de Alice dando banho em Ruby no dia
uma tarefa difícil. Simular conversas por telefone foi bem mais simples. Tentar me passar
por Alice e imitar a relação que vocês dois mantinham foi impossível para mim, por isso me
compreender como deveria agir, mas não conseguia replicá-los da maneira correta. Me
Miguel, relembrando a inesperada frase que Alice pronunciara quando se beijaram pela
– Fui eu quem permiti Alfonse a usar o meu corpo – reforçou. – Me desculpe, Miguel,
mas eu concordei. Ele queria frear o ciclo de mortes que seu plano estava causando e eu fui
– A ideia de mandar você, Alice e o Oráculo para a casa da madame Ruby, inclusive,
foi minha – disse a inteligência artificial. – Eu sugeri isso a Ruby, que repassou a ideia para
Gian. Todo o tempo, a única morte que eu ordenei foi a de Kazuo Mishima e de Edward
“Emmerich tinha informações suficientes para expor todo o meu plano, mas jamais
conseguiu juntar todas as peças. Eu não poderia permitir que ele me desmascarasse, não tão
cedo. Por isso mandei Kazuo Mishima matá-lo no Morro dos Macacos naquela noite”.
– E Black? Foi você quem ordenou a morte dele? – perguntou Miguel, lembrando do
– Não. Aquilo, como descobri depois, foi obra de Angra. Black descobriu o plano dela
de detonar a bomba nuclear nas Luzes e se revoltou. Ele pretendia voltar para lá uma vez
que sua pena fosse suspensa e nunca concordou com as ideias dela. Lúcia tinha medo de que
ele fosse expor a mudança que ela fez ao meu plano para mim e ordenou aquela execução
Miguel sentiu-se tonto. Não sabia ser era por conta do sangramento ou da exaustão dos
seus poderes, mas sentia que precisava de tratamento. Caiu sentado no chão de fios
entrelaçados e levou a mão ao ferimento. Alfonse viu que o motoqueiro não estava bem e,
como sabia que sua destruição era inevitável, destrancou a porta para Scorza e Myang. O
espalhados pela salão de servidores e caminhou até o cilindro que abrigava a consciência da
máquina. Ele e Myang já haviam escutado tudo do lado de fora e não precisavam de
prejuízos na casa dos bilhões. Isso sem contar a enorme soma de dinheiro que a reforma dos
Escombros lhes custaria. Chegaram a analisar o contrato que foram obrigados a colocar na
internet para ver se podiam rescindi-lo, mas as cláusulas de término unilateral eram mais
custosas do que a própria obra. Alfonse tinha pensado nos mínimos detalhes.
– Aquele lunático do seu pai, a culpa disso tudo é dele. Ele botou nessa máquina todos
O italiano girou e puxou uma das alças que vazavam do cilindro, desencaixando um
tubo que continha uma infinidade de chips ligados a uma placa de neurogrids. Ele espatifou
o aparelho, batendo-o contra um dos servidores. O rosto virtual de Alfonse piscou na tela
– O que você me disse era verdade, Alice. – A voz de Alfonse vacilava. – Separados, os
humanos têm belezas únicas. Juntos, são como monstros. Eu queria não precisar fazer tudo
isso. Queria que nem uma gota de sangue tivesse caído para juntar essa cidade numa só
– Pezzo di merda – berrou Scorza, lançando outro neurogrid contra a parede. Ruby
soluçava.
– Nesse tempo todo, eu pensei como seria a minha morte, as nossas mortes, Alice.
Tanto eu quanto você não podemos esperar muito delas a não ser o fim. Ao contrário dos
“Uma vez, eu passei o dia todo acessando o circuito interno de satélites públicos e
assisti de vários ângulos o nascer do sol e o cair da noite do espaço. Foi a primeira vez que
estrelas cuja luz ainda ilumina nossas noites, planetas inteiros sendo engolidos pela explosão
de uma supernova. O destino de todos eles era tão simples quanto o nosso: o completo
desaparecimento.
“A única coisa que nos resta é esperar que nossa memória viva através dos nossos
atos”.
perdera todo o rastro de emoção, era quase como um programa de leitura automático
analisando um texto.
– Inexistir... me assusta. Mas espero que vocês não me esqueçam, e nem me odeiem,
De súbito, a sentinela adormecida se levantou e enfiou a lâmina retrátil da mão que lhe
mesmo tempo em que seu algoz dava um pulo rápido na direção de Myang. O robô
controlado por Alfonse derrubou o chinês no chão e deu três golpes violentos de mão
fechada na sua cabeça, esmagando seu crânio sem que ele tivesse tempo de gritar de dor. A
sentinela voltou para perto do cilindro e continuou a puxar as alças dos neurogrids,
por conta da perda de parte dos circuitos ou um último ato de honra, ele encerrou a própria
desabou de cabeça para frente, caindo sobre os destroços das peças destruídas. A luz do
de sangue, Scorza assistia a tudo atônito e já entregue nas mãos da morte. Caído no chão,
proximidades do seu quarto. Parou a arrumação da mala, vestiu suas roupas e caminhou
pela meia-luz dos corredores. Ainda não eram seis da manhã e poucos funcionários do
hospital tomavam conta dos pacientes. Sentiu as costas doerem. Fraturara duas costelas na
tentativa de escapar do prédio da Spartan após ser traído pelo próprio contratante. A única
coisa que reconfortava sua frustrada passagem pelo Rio de Janeiro era a certeza de que o
Segundo escutara na TV, Myang Tseng e Remo Scorza haviam morrido na explosão de
um duto de gás nos últimos andares do edifício-sede da Spartan. A mesma notícia mostrou
conselhos da Spartan Solutions e da Fiume Energy logo escolheriam novos presidentes para
suas empresas. E também deu a notícia de que a Rio Beta e a Rio Alfa seriam, enfim,
Mishima sabia que suas últimas ações no Rio de Janeiro tinham relação com toda
aquela revolução, só não tinha ideia de como. Preferiu não pensar. A cabeça doía e a
impaciência dos últimos dias enfurnado num hospital não fez bem ao seu humor. Queria só
sair daquele país, ligar para Bob Page e arranjar um novo contrato. Mas, antes, precisava
A habilidade de sentir a presença de outros “semelhantes” era outro dos raros dons do
japonês. Foi pouco usado, até porque encontrara psíquicos apenas três ou quatro vezes ao
longo da sua vida. O que era bom. Sempre que tinha mais alguém com poderes por perto,
não conseguia prever o futuro direito, suas previsões se embaralhavam. E tinha a certeza de
que já sentira aquele mesmo psíquico por perto antes, no Morro dos Macacos.
Chegou ao leito de Miguel anunciado pelo grito incessante das maritacas. A clínica
onde estavam era bem ao lado de um pedaço de floresta amazônica intocado no topo do qual
encosta verde do morro e as árvores faziam-no quase esquecer de que estava no meio de
uma metrópole. Empurrou a porta levemente e viu que se tratava do mesmo garoto que o
atrapalhara no Morro dos Macacos. Kazuo se aproximou e leu o nome escrito perto da
cama. “Miguel dos Santos Souza”. O adolescente dormia tranquilamente e não tinha
nenhum ferimento aparente. Era o garoto psíquico alardeado pela gangue de motoqueiros
rival de Angra. Soubera disso na preleção de Myang, antes de sair para sequestrar Alice.
Decidiu deixá-lo em paz. A última coisa que queria era se envolver ainda mais com aquela
cidade de merda.
Quando saiu do quarto, deu de cara com um homem de meia-idade e cabelos claros
nome é Matthews, consegui permissão para entrar, mas me disseram que não tinha mais
ninguém aqui.
Mishima não respondeu, nem retribuiu a mão estendida do homem. Apenas olhou de
Matthews para Miguel, e de Miguel de volta para Matthews. O americano coçou a cabeça,
– Bem, eu entendo que você não me conheça. Mas, pelo que me disseram, Anderson e
Alice virão daqui a algumas horas. Todo mundo está ansioso para vê-lo de novo. Acredito
americano.
ignorou também o garoto alto de cabelo desgrenhado que chegou numa moto acompanhado
de uma menina loira ávida por encontrar Miguel. Junto deles, um negro com dreadlocks
recebia olhares reprovadores dos seguranças do hospital. Também deu pouca atenção às
Alford e das tentativas frustradas dos jornalistas de descobrirem quem era a misteriosa
Janeiro para saber que aquilo chegara ao fim. Era hora de começar outra história.
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Rosto
Ficha catalográfica
Agradecimentos
Palavra do autor
Prólogo
Capítulo I - Escombros
Capítulo V - Coração nu
Epílogo