Cova 312

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© Henrique Viard

Daniela Arbex

A LONGA JORNADA

DE UMA REPÓRTER PARA

DESCOBRIR O DESTINO

DE UM GUERRILHEIRO,

DERRUBAR UMA FARSA

E MUDAR UM CAPÍTULO

DA HISTÓRIA DO BRASIL
Copyright © 2015 by Daniela Arbex

1ª edição — Maio de 2015

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Editor e Publisher
Luiz Fernando Emediato

Diretora Editorial
Fernanda Emediato

Produtora Editorial e Gráfica


Priscila Hernandez

Assistente Editorial
Adriana Carvalho

Assistente de Arte
Nathalia Pinheiro

Capa e Projeto Gráfico


Alan Maia

Imagem de Capa
Fernando Priamo

Diagramação
Kauan Sales

Preparação de Texto
Ayrton Centeno
Nanete Neves

Revisão
Antônio Leria
Daniela Nogueira

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Arbex, Daniela
Cova 312 / Daniela Arbex. -- São Paulo :
Geração Editorial, 2015.

ISBN 978-85-8130-273-7

1. Brasil - História 2. Comunismo 3. Ditadura -


Brasil - História 4. Livro-reportagem 5. Repórteres
e reportagens 6. Reportagem investigativa
I. Título.

15-02129 CDD: 070.44932098108

Índices para catálogo sistemático

1. Brasil : Ditadura militar : Reportagem


investigativa 070.44932098108

GERAÇÃO EDITORIAL

Rua Gomes Freire, 225 – Lapa


CEP: 05075-010 – São Paulo – SP
Telefax.: +55 11 3256-4444
E-mail: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br
www.geracaoeditorial.com.br

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Este livro é dedicado à memória de todos aqueles
que tombaram na luta pela construção de uma
sociedade livre e democrática, aos que ainda estão
desaparecidos e também aos que sobreviveram à
ditadura brasileira, o período mais sombrio do país.
As cinzas do tempo jamais vão sepultar a verdade.
PARTE 1

Nascimento e morte
de um guerrilheiro
© Fernando Priamo

Cela da Penitenciária de Linhares


onde o guerrilheiro do Caparaó foi
encontrado morto em 1967
I

A cela
30
Quando o carro deixou para trás a poeira preta do
asfalto, o silêncio tomou conta dos passageiros. O veículo seguiu
pela estrada vicinal, único caminho de acesso à área de segurança.
Apesar de situado na zona urbana, o terreno continuava isolado do
resto da cidade, lugar onde o portão bege de ferro era o ponto final.
No instante em que o motor do automóvel foi desligado, um fun-
cionário uniformizado anotou a placa e retornou ao complexo. O
barulho do ferrolho contra a portinhola de aço aumentava a tensão.
Só dez minutos depois é que veio a ordem para entrar. Lá dentro,
uma mulher com metralhadora na mão e cara de poucos amigos
mandou descer. Rapidamente, iniciou revista minuciosa no carro e
em seus três ocupantes. Em seguida, determinou que os documentos
pessoais fossem entregues. Verificou as identidades, cruzou infor-
mações e confiscou os celulares. Com o serviço concluído, usou o
telefone para avisar sobre a chegada do grupo. Ao desligar, indicou
o caminho que levaria ao prédio de dois andares. Um homem gordo,
de calça jeans e coturnos, aguardava no varandão. Até tentou ensaiar

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Daniela Arbex

um sorriso, mas o suor brotava em sua testa apesar da temperatura


amena daquele dia típico de outono.
— Seu pedido deu um trabalho danado. Tivemos que desocupar
parte da galeria, e o pessoal protestou. Tem certeza de que quer entrar lá?
Diante da resposta positiva, o interlocutor recomendou em
tom grave:
— Então faça tudo o que for determinado. Se alguma coisa sair
errado, obedeça às ordens. Se mandarem deixar o prédio, não ques-
tione. Saia logo.
Respondi que sim, embora tivesse dúvida sobre qual seria a minha
reação caso fosse obrigada a recuar.
Antes de iniciar o procedimento de entrada, o chefe da unidade
chamou outros dois agentes para uma conversa reservada. Apesar
de estarem perto de mim, não consegui ouvir o que diziam. Cinco
minutos depois, eles retornaram. Num gesto ensaiado, o mais antigo
de casa mandou que o seguisse. Tentei não pensar nos riscos de
ser a única mulher a entrar em um local onde havia 180 homens
confinados em um espaço projetado para atender a metade. No
passado recente, as condições desumanas já haviam, inclusive,
transformado o local em palco de rebelião, quando mais de qua-
renta pessoas foram feitas reféns.
No instante em que o primeiro cadeado foi aberto, o nervosismo da
equipe ficou explícito. Pelo rádio, o coordenador pediu a posição de
cada um dentro do prédio, informando também a nossa localização.
— Estamos passando pelo corredor externo — sussurrava com
a boca colada ao aparelho. Vocês estão em qual setor?
Dentro da área reservada, a primeira coisa que vi foi uma muralha
protegida por cerca elétrica, além de caixas d’água industriais espalha-
das pelo terreno de aspecto rural. Ao longe, um homem com a pele
castigada pelo sol capinava o mato indiferente a quem passava. Cerca
de dois metros de distância nos separavam de outra porta gradeada.
Diante de mais um obstáculo, houve nova troca de informações via

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rádio. De fora, era possível visualizar pelo menos mais duas barrei-
ras. A segunda delas dava acesso a um pátio localizado nos fundos
do complexo. Dezenas de basculantes, muitos com roupas depen-
duradas, podiam ser vistos nessa área. Em frente a eles, havia outro
muro, maior do que o primeiro, com altura superior a três metros. O
arame farpado reforçava a sensação de confinamento na instituição
estrategicamente vigiada. Mesmo com medo, tentei percorrer com
os olhos cada canto daquele lugar para guardar tudo que a memória
fosse capaz. Tinha a certeza: eu não teria outra chance.
Apesar da proximidade com o edifício principal, o interior con-
tinuava blindado. Um último portão bloqueava a passagem. Lá
dentro, era proibido chegar perto das portas que davam acesso ao
corredor principal.
— Não se aproximem das grades. Não quero ver ninguém aqui
— gritava um homem cujo rosto eu ainda não podia ver.
No momento em que o cadeado foi destrancado, parei de ou-
vir o barulho dos radiotransmissores. Alguém falava com as duas
pessoas que caminhavam ao meu lado, mas a minha atenção estava
totalmente voltada para dentro da construção cinquentenária. A
poucos segundos de entrar na emblemática Galeria A, o único som
que escutava era o do meu coração descompassado.
Às 9h33, quando meus pés tocaram o piso de ladrilho hidráulico
nas cores branca, preta e cinza, comecei a percorrer um capítulo de
dor que o país ainda desconhecia.
Apesar da manhã de sol, o ambiente lá dentro era pouco ilumina-
do, e o mofo impregnava minhas narinas, causando forte mal-estar.
Senti-me nauseada naquele lugar de odor fétido. Com dificuldade
para respirar, tinha a impressão de que não havia oxigênio suficiente.
O ar parecia viciado. Era como se iniciássemos a exploração de um
porão que há tempos estava fechado, embora a ala ficasse no mesmo
nível do solo. A infiltração destruía os poucos vestígios do antigo
bege que cobria as paredes geladas.

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Daniela Arbex

Atravessei a galeria sob o olhar desconfiado de dois seguranças,


mas tinha a sensação que centenas de pessoas me observavam por
entre as grades de aço que me separavam dos prisioneiros. De um
lado estava a jornalista, do outro uma massa humana silenciada.
Os confinados sabiam que a ousadia da queixa não seria perdoada.
Em meio aos acordos velados, a impossibilidade de comunicação
era ensurdecedora. Parecia que uma bomba-relógio estava prestes
a explodir. A dúvida era se aquele seria o momento.
Um par de meses havia se passado desde o início da negociação
junto ao governo de Minas Gerais para o acesso à construção que
saiu do papel, às pressas, em janeiro de 1966, seis meses depois de
ter sido projetada. O Estado tinha o objetivo de custodiar naquele
espaço presos comuns, mas a finalidade da unidade foi desviada por
conta do regime de exceção que se instalou no país a partir de 1964.
Foi assim que, um ano depois de construída, a Penitenciária
Regional de Juiz de Fora passou a ter nova destinação: receber os
presos políticos que começavam a ser cassados pelo país. Dezesseis
guerrilheiros do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR)
foram os primeiros levados para lá. Eles haviam sido capturados na
Serra do Caparaó, localizada entre o Espírito Santo e Minas Gerais.
Os terroristas, como o grupo ficou conhecido pela comunidade,
colocaram fim aos costumes dos moradores do bairro pouco po-
voado onde o presídio estava encravado. Só se falava nos “traidores
da Pátria” e no risco que eles representavam. Na dúvida, ninguém
saía mais de casa, sobretudo na ausência da luz do sol. Parecia que
o breu da noite estimulava ainda mais o imaginário popular frente
ao “perigo comunista”.
Ocupada pelo exército, a penitenciária se transformou em um
dos principais depósitos da ditadura brasileira. Após a edição do
AI-5, em 1968, ainda durante a presidência de Arthur da Costa e
Silva, os prisioneiros políticos tornaram-se maioria na unidade.
Juiz de Fora sediava a auditoria da 4ª Região Militar, sendo cenário

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dos julgamentos de Minas Gerais. Por isso, mais de três centenas de
militantes políticos cumpriram pena ali entre 1967 e 1980. E, apesar
de ter sido um dos mais importantes estabelecimentos prisionais
sob a custódia do Estado e das Forças Armadas continua ignorado
cinquenta anos após o golpe militar.
Foi lá que o estudante Augusto, codinome do integrante da
Corrente Revolucionária de Minas (Corrente), cumpriu a maior
parte da condenação de dez anos, uma das mais longas do período.
Gustavo, outro prisioneiro, chegou a ser raptado dentro do cárcere,
de madrugada, para mais uma viagem às cegas, quando ocorreria
nova rodada de interrogatórios nos porões do DOI-CODI em São
Paulo. Décadas mais tarde, os dois alcançariam destaque nacional.
O primeiro, como assessor da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, e o segundo, como ministro dos Direitos
Humanos do primeiro governo Lula.
Apelidado de Gringo, Márcio Lacerda era também membro da
Corrente. Eleito prefeito de Belo Horizonte (MG) em 2012, o po-
lítico manteve reserva sobre o passado durante décadas. Só agora
ele quebra o silêncio. Em frente à cela de Gringo ficava a de Oscar,
nome usado na clandestinidade por Fernando Pimentel, que venceu
as eleições para governador de Minas Gerais no primeiro turno da
disputa eleitoral ocorrida em outubro de 2014.
Oficialmente desaparecida da penitenciária desde 2005, a lista de
presos políticos de Linhares — como a penitenciária ficou conhecida
mais tarde — inclui, ainda, ilustres anônimos, como o acadêmico
do curso de física da UFRJ, Rogério de Campos Teixeira, militante
da Corrente, e o aspirante a astrônomo, Antônio Rezende Guedes,
criador do Observatório de Linhares.
Outro militante, Nilo Sérgio Menezes Macedo, foi despachado
para lá após ser seviciado no Rio de Janeiro, onde foi cobaia de
uma aula de tortura na Vila Militar da Guanabara, que tinha como
alunos praças e oficiais das forças armadas. Por causa do episódio

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© Fernando Priamo

Um dos pátios da cadeia que


hoje mantém presos comuns
Daniela Arbex

traumático, ele teve uma passagem difícil na penitenciária, que foi


palco de greves de fome e de confrontos entre os prisioneiros po-
líticos e os seus guardas. Nenhum presídio político do país foi tão
rigoroso quanto Linhares em relação ao cerceamento de visitas feitas
por parentes dos presos.
Carmela Pezzuti, uma das mais famosas mães da guerrilha, e
seus dois filhos, Ângelo Pezzuti da Silva e Murilo Pinto da Silva,
também foram levados para lá. Seus nomes integraram as listas dos
prisioneiros políticos que seriam trocados, em 1970, pelo embaixa-
dor alemão, Ehrenfried Von Holleben, e pelo cônsul suíço Giovanni
Enrico Bucher, ambos sequestrados no Rio de Janeiro.
Nas celas de Linhares nasceu um vigoroso movimento de resistência
contra as atrocidades do regime. O convívio dos estudantes, mantidos
juntos nas alas destinadas aos subversivos, levou a uma indesejada troca
de informações. Cada novo preso político trazia notícias detalhadas
sobre a tortura sofrida em dependências policiais e militares do país.
Começava ali uma incômoda dor de cabeça para o Exército após a
redação do Documento de Linhares. Escrito dentro da unidade, em
1969, ele foi o primeiro que denunciou detalhadamente a violência
no período em que a força disseminou o medo. Os carcereiros e o
próprio regime militar nunca entenderam como o material burlou a
censura e a segurança para tornar conhecidos internacionalmente os
abusos cometidos nos porões da ditadura.
Cenário de um dos mais bem guardados segredos do exército,
Linhares foi ainda o cárcere do guerrilheiro do Caparaó Milton Soares
de Castro, vinte e seis anos. Natural de Santa Maria, Rio Grande
do Sul, Milton é o único prisioneiro encontrado morto dentro do
complexo em 1967. Após a sua morte — ocasionada por suicídio
segundo a versão oficial — a Galeria A tornou-se parte de um im-
portante quebra-cabeças cujas peças estavam espalhadas pelo país.
Enterrados por décadas, os documentos capazes de apontar os
últimos passos do militante gaúcho precisavam não só ser localizados,

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mas decifrados, já que os papéis guardavam ciladas que só puderam
ser esclarecidas após o confronto de versões.
A localização da sepultura de Milton, descoberta e revelada na
série de matérias que escrevi para o jornal Tribuna de Minas, em
2002, jogou luz sobre o episódio, mas não esclareceu os motivos que
levaram o exército a esconder de uma mãe o corpo de seu filho por
trinta e cinco anos. Foi isso que me fez marcar um novo encontro,
desta vez, com o futuro.
Em tempos de democracia, as tentativas de obstrução da nova
investigação jornalística que empreendi por cinco estados brasileiros
a partir de 2013 apenas confirmam que o passado teima em ser es-
quecido. Mas os segredos podem ser descobertos quando se julgam
sepultados sob as cinzas da memória.
Quase cinquenta anos se passaram para que a verdade pudesse ser
reconstituída no caso de Milton, um trabalho de pesquisa cercado
de reviravoltas, como em 29 de maio de 2014. Nessa data, quando,
finalmente, entrei na Cela 30 de Linhares, na companhia do fotógrafo
Fernando Priamo e do perito criminal Domingos Lopes Daibert, des-
cobri que a última parte da jornada era apenas o começo da história.

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Promotor militar dá parecer
favorável a prisão preventiva
de Edelson Palmeira de Castro
II

Notícias
pelo rádio
Há seis meses sem se olhar no espelho, Edelson Palmeira
de Castro assustou-se com o que viu. O cabelo preto liso chegava
à altura do ombro, o rosto estava barbado, a pele, descarnada pelo
súbito emagrecimento — seu peso havia baixado dez quilos — e os
olhos fundos pareciam estranhamente perdidos para um jovem de
vinte anos. Pela primeira vez em todo o período de confinamento,
ele percebia as ideias se esvaírem. O pensamento vagava confuso por
todas as escolhas que o levaram até aquele lugar. De um momento
para o outro, era como se tudo em que ele acreditava tivesse ruído.
Tinha tantas perguntas para fazer, embora soubesse que não obte-
ria respostas. Seu peito estava sufocado, tamanha era a vontade de
chorar, mas jamais permitiria que as lágrimas transbordassem em
terreno que ele considerava inimigo.
Horas antes, o dia parecia igual a todos os outros que passou no
Corpo da Guarda do 6º Batalhão de Engenharia de Porto Alegre.
Desde que Edelson foi preso, em 11 de outubro de 1966, a unidade
da 3ª Região Militar foi o endereço do militante da Frente Armada
Revolucionária Popular (FARP), mais tarde ligada ao Movimento
Revolucionário 26 de Março (MR-26) — coluna guerrilheira do

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Daniela Arbex

Rio Grande do Sul que tentou deflagrar uma luta armada nacional
contra a ditadura recém-instalada no país.
Antes de ser levado para o quartel do bairro Partenon, Edelson
esteve na Polícia do Exército. Na primeira vez que pisou na unidade,
então localizada na Praça do Portão, no Centro, o suspeito de sub-
versão estava de olhos vendados. Circulou assim pelo pátio durante
vinte minutos e, desta forma, acabou sendo reconhecido por um
membro da FARP. Era Luiz Carlos Carboni, militante detido após
uma trapalhada que chamou a atenção da polícia. Vizinhos da pensão
Farroupilha, onde ele estava hospedado, o viram em cima do telhado
do prédio no primeiro dia de setembro de 1966. Carboni havia voltado
de um bar, quando foi preso no quarto 22 da hospedaria localizada
na rua Chaves Barcelos, em Porto Alegre. A polícia encontrou em
seus pertences fórmulas de explosivos e bilhetes dirigidos a membros
da organização no Rio de Janeiro. Edelson diz ter sido ele quem o
identificou como um dos homens que estiveram no Uruguai para
o cumprimento de missões de cunho político, entre elas, receber
armamento contrabandeado.
A descoberta rendeu ao agora acusado quase dois meses de inco-
municabilidade numa cela de altura inferior a 1,72 metro, na qual
Edelson não conseguia ficar de pé. Sem luz, a única forma de saber
as horas era dando uma espiada no relógio que ficava logo acima de
um portão de ferro, por onde Edelson passou mais de uma vez por
semana durante os primeiros tempos de interrogatório.
Pressionado, tentou fugir durante o plantão do tenente que atirou
três vezes sem sucesso contra um “cachorro sarnento”. O plano de fuga
de Edelson fracassou, e ele viu as regras do quartel ficarem ainda mais
rígidas naquele dezembro de 1966. Um dia depois da malsucedida ação,
foi acordado por três soldados que o jogaram da cama em que dormia.
Em seguida, perdeu o colchão, depois a manta, restando-lhe somente
o chão. Como fingiu continuar dormindo, os militares inundaram
a cela com uma mangueira. O prisioneiro, então, sentou-se sobre a

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patente turca, uma espécie de privada rente ao chão. Foram setenta
e cinco dias de confinamento até que ouviu de fora da cela a voz da
mãe. Era véspera de Natal.
— Mãe, aqui! Estou aqui dentro — gritou várias vezes, sem se
importar com a punição que viesse a sofrer.
Com sangue de índio correndo pelas veias, Universina Soares de
Castro entrou porta adentro preparada para uma guerra. Ignorou
todas as ordens de parar dadas pelo 3º sargento Braz Elemar que
fraquejou diante da valentia daquela mulher miúda. Ela estava acom-
panhada da filha Edi, grávida de oito meses, que empurrava o rapaz
com a barriga.
— Menino, eu sou uma velha que sofre do coração. Além disso,
ninguém vai impedir uma mãe de abraçar seu filho.
O praça emudeceu.
Quando mãe e filho puderam se tocar, houve um silêncio aba-
fado. Uma lágrima rolou pela face da matriarca, dilacerada pelo
estado deplorável do jovem. Contendo a raiva e a dor que sentiu
diante daquela situação abusiva, dona Universina abriu as mãos do
prisioneiro, entregando a ele um pedaço de bolo e doces caseiros.
Depois, acariciou a face macilenta de Edelson.
— Aguente firme, meu filho. Seu pai também passou por mo-
mentos difíceis e aguentou. Não tenha ódio, pois Cristo também
sofreu. A justiça não tardará.
O militante não conseguiu falar nada, por medo de a emoção o
trair. Beijou as mãos calejadas da mulher cuja coragem tanto admirava,
mirando o seu olhar. O encontro que renovou as forças de Edelson
rendeu ao sargento uma abertura de inquérito.
Uma semana antes de completar 200 dias de prisão, Edelson já
estava familiarizado com a rotina do cárcere. Acompanhava da cela
a troca de turno, quando o sentinela deixava o posto para descan-
sar. Quem assumia o plantão recebia o relatório da noite anterior
e repassava as tarefas do dia — que não permitia sequer o banho

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Daniela Arbex

de sol para os presos políticos. Como o militante conhecia até os


passos de quem chegava, qualquer barulho diferente chamava sua
atenção. Demorou um pouco até o preso entender que os ruídos que
escutava naquele dia 28 de abril de 1967 vinham de um aparelho de
rádio trazido de casa pelo sargento de plantão para matar o tempo.
Edelson percebeu que o militar tinha dificuldade para sintonizar
a estação desejada. O praça era fã do radialista Glênio Reis que, na
época, já fazia sucesso com o estilo irreverente de apresentar seus
programa: “Aqui quem está falando é Glênio Reis, filho único de
Carolina Camargo Tanger dos Reis, de Bagé, e de João dos Reis,
de Cacimbinhas”.
Como era sexta-feira, porém, e Reis comandava a programação
musical de sábado, o militar teria que encontrar outra estação, tarefa
nada fácil em função da baixa frequência da rádio AM. Quando o
sargento conseguiu localizar a Gaúcha, era hora do jornal.
“E atenção. Um comunista preso na Serra do Caparaó foi encon-
trado morto nesta manhã, na Penitenciária Regional de Linhares.
Ele estava preso há pouco mais de vinte dias, quando um bando de
subversivos foi capturado pela polícia no monte e encaminhado para
Juiz de Fora, em Minas Gerais... A hipótese é de suicídio...”
Edelson sentiu um arrepio pelo corpo, mas tratou de se acalmar,
pois o homem que conhecia, integrante do Movimento Nacional
Revolucionário (MNR), jamais atentaria contra a própria vida,
afinal ambos estavam acostumados a lidar com adversidades desde
a infância. Como o locutor não havia citado nomes, o militante
do MR-26 tentava imaginar quem entre os dezesseis guerrilheiros
havia morrido.
Lembrou-se então que, na semana em que caiu — jargão conhecido
entre os presos políticos —, se preparava para viajar a Caparaó. O
combinado era esperar o bilhete do irmão, Milton Soares de Castro,
vinte e cinco anos, que havia partido para lá, em setembro de 1966,
com a missão de fazer o reconhecimento da área inóspita.

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Uma hora havia se passado após a divulgação da notícia pelo rádio.
Era fim de tarde quando o oficial de dia veio buscar Edelson na cela.
— O comandante quer falar com você.
— Sobre o que? Você sabe?
O sargento limitou-se a acenar negativamente com a cabeça.
O gabinete do comando ficava relativamente distante do Corpo
da Guarda. Para chegar ao prédio principal, era preciso atravessar
o pátio do quartel cercado por árvores. Edelson ainda não sabia,
mas iria experimentar uma dor até então desconhecida. Nada que
se assemelhasse aos golpes de pau que o surpreenderam durante
o interrogatório a que foi submetido na área militar, pressionado
a entregar o paradeiro de Milton e o caminho das armas trazidas
clandestinamente ao Brasil de Cuba, do Uruguai e da Argentina. O
que ele estava prestes a sofrer era infinitamente mais forte que as
perfurações feitas em seu corpo pelo prego estrategicamente colocado
na ponta do bastão de madeira usada contra o militante. Desta vez,
até a alma se curvaria.
Após ser anunciado no saguão da sala do comando, Edelson teve
a entrada autorizada. Quando a porta se abriu, viu sua irmã Gessi
Palmeira Vieira no gabinete amplo e imponente, decorado com
mobiliários talhados em madeira maciça. O olhar úmido de Gessi
deixou Edelson paralisado.
— Infelizmente, a informação que trago não é boa. Seu irmão,
Milton, se matou hoje de manhã em Juiz de Fora. Meus pêsames. Mas
vamos fazer de tudo....
O pintor interrompeu o comandante:
— Isso não foi suicídio, senhor. Assassinaram o meu irmão —
gritou o preso.
— Rapaz, você não sabe do que está falando — cortou o oficial.
Gessi tentou abraçar Edelson para evitar uma discussão cujo
perdedor já estava previamente definido. Em função do estado da
irmã, que não escondia mais o choro, o militante cedeu.

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Daniela Arbex

© Arquivo Pessoal

Gessi Palmeira Vieira, jovem

— Como eu ia dizendo, nós vamos fazer de tudo para trazer o


corpo do seu irmão para Porto Alegre. Já estamos em contato com
a 4ª Região Militar para viabilizar isso.
— Quando? — questionou Edelson, tentando manter a lucidez.
— Breve.
O preso político deixou o gabinete desnorteado. Não conseguiu
enxergar mais o caminho de volta para a cela. Suas memórias o
levaram para Santa Maria, o coração do Rio Grande do Sul, onde
ele e os irmãos cresceram ao lado da mãe benzedeira. Descendente
de índios, a matriarca nascida em São Francisco de Assis colocava
toda a sua fé nas ervas. Sem recursos para o básico, dona Universina
apelava para as rezas que ajudavam não só a curar mau jeito, mas
umbigo saltado, pé rachado e outras esquisitices da gente pobre da
comunidade do bairro Camobi.

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Como dinheiro era raridade, os filhos da benzedeira começaram
a trabalhar na meninice para conseguir uns trocados. Edelson abria
buracos na terra vermelha até desaparecer lá dentro. Milton, mais
velho, com dez anos, já pintava escolas para outras crianças estudarem.
Alto demais, ele recebeu dos colegas o apelido de Monstrão, no tempo
em que bullying não seria nada além de um palavrão estrangeiro.
Apesar das dificuldades, o período de escassez da família só co-
meçou em 1946, depois da morte do marido de dona Universina,
o brigadiano Marcírio Palmeira de Castro. Policial militar de Santa
Maria, o homem, que fazia caixão de cortesia para o enterro de amigos,
morreu de tifo em 21 de maio, quando Edelson tinha apenas quatro
dias de vida. Servidor da pátria que tanto amava, foi sepultado sem
glórias, deixando mulher e dez filhos.
A casa verde escura onde eles moravam foi construída pelas mãos
do militar, nos tempos em que lhe sobrava saúde e compadres. Erguida
em terreno rural com quintal, poço e pomar, o imóvel amplo tinha
três quartos, além de um imenso porão. Para entrar na moradia,
Marcírio projetou duas escadas compridas. Na cozinha, o fogão de
barro funcionava o dia todo. Era preciso muita lenha para alimentar
o fogo e a prole da mulher. Para cada filho que saía da barriga dela,
outro entrava. E haja polenta feita em panela de ferro para matar
a fome dos piás. Depois de pronto, o angu era espalhado na tábua
para esfriar. Só então se cortava os pedaços com linha, como a mãe
de Milton, Edelson e dos outros oito gostava de fazer. A polenta era
servida com pão, café e combinações improváveis. Carne de boi nas
refeições, só se fosse dianteiro, porque o traseiro, considerado mais
nobre, não aparecia em mesa de pobre.
A mesma colher que mexia a receita feita com água e fubá era usada
para castigar menino bagunceiro. A benzedeira acreditava que só assim
conseguiria colocar ordem numa casa com tanta boca para comer.
Com a educação rígida que recebeu do pai mascate, a matriarca criou
os filhos com afeto de sobra, mas pouca demonstração. De vez em
quando, sentia vontade de beijar os seus, porém mantinha afastamento.

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Daniela Arbex

Recrutada cedo para o trabalho na roça, ela não pôde ninar bo-
neca, talvez por isso tenha parido tanto. E mesmo ruim das letras,
a mulher tinha sabedoria de sobra para entender que, sem infância,
se vira gente grande triste. Os dela não seriam assim.
Da prole de dez, Milton e Gessi foram os que mais aproveitaram a
vida boa do campo. Nos fins de semana, eles passavam o dia jogando
cinco marias, brincadeira feita apenas com pedra, ligeireza e muita
imaginação. Também havia os ossos de boi, que faziam vencedor
aquele que os atirasse mais longe. O bumbá, que usa a casca de la-
ranja, exigia mais sorte do que habilidade. E a bulita, bola de gude,
fazia a meninada correr.
O tifo levou o pai dos guris e deixou para a família do mor-
to à privação, já que para manter o marido em tratamento, dona
© Arquivo Pessoal

© Arquivo Pessoal

O brigadiano Marcílio, que morreu de tifo, e Universina, pais de Edelson, Milton


e mais oito irmãos

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Universina começou a vender as coisas. A doença do brigadiano
levou as duas vacas que davam leite, o gado, o poço, a casa. Edelson,
Milton, Gessi e os irmãos se mudaram com a mãe para São Borja e
depois Porto Alegre.
O novo casamento da mãe, um ano depois da viuvez, não tirou o
luto da família. O outro brigadiano com quem dona Universina se
casou fez cinco filhos nela. Mas, ao contrário do primeiro marido,
o policial militar levou para dentro de casa a violência e a sanha de
abusar sexualmente das enteadas. Quando a benzedeira se viu livre
do traste que espalhou os filhos do seu primeiro casamento em casas
cujos donos ela pouco conhecia é que a viúva de marido vivo juntou
a família de novo. Não se importava em comer o pão que o diabo
amassou, desde que estivesse junto dos quinze que saíram dela.
Enquanto a mãe fazia fornadas de pão para vender, Edelson,
com cerca de oito anos, levava comida para Milton, que continuava
a pintar escolas. Nessa época, o pão com banha de porco era usado
para matar a fome dos irmãos. E, mesmo sobrando pobreza, dona
Universina pegou um guri abandonado para criar, o 16º filho. Milton,
que já estava na adolescência, não perdia a chance de fazer piada.
— Mais um escravo branco nesta casa — brincava, embora já co-
meçasse a ficar incomodado com a desigualdade social que o rodeava.
Apesar de o momento ser de choro, a lembrança da frase de
Milton fez o Edelson barbado rir. Ao se olhar no espelho que
recebeu na cela do 6º Batalhão de Porto Alegre, o preso político
entendeu que era hora de enfrentar a realidade. Liberado para deixar
o cárcere, a fim de cuidar da mãe de um filho suicida, o militante
precisava ficar apresentável para estar com a família abatida pela
tragédia. Raspou os pelos que escondiam seu rosto, ganhou um
corte no cabelo desgrenhado e uma muda de roupas limpas. Ao
mirar-se novamente no espelho, percebeu que a imagem refletida
não lembrava em nada o irmão de Milton. Aliás, sem Milton, todos
seriam diferentes dali para frente.

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