Cova 312
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Daniela Arbex
A LONGA JORNADA
DESCOBRIR O DESTINO
DE UM GUERRILHEIRO,
E MUDAR UM CAPÍTULO
DA HISTÓRIA DO BRASIL
Copyright © 2015 by Daniela Arbex
Editor e Publisher
Luiz Fernando Emediato
Diretora Editorial
Fernanda Emediato
Assistente Editorial
Adriana Carvalho
Assistente de Arte
Nathalia Pinheiro
Imagem de Capa
Fernando Priamo
Diagramação
Kauan Sales
Preparação de Texto
Ayrton Centeno
Nanete Neves
Revisão
Antônio Leria
Daniela Nogueira
Arbex, Daniela
Cova 312 / Daniela Arbex. -- São Paulo :
Geração Editorial, 2015.
ISBN 978-85-8130-273-7
GERAÇÃO EDITORIAL
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Este livro é dedicado à memória de todos aqueles
que tombaram na luta pela construção de uma
sociedade livre e democrática, aos que ainda estão
desaparecidos e também aos que sobreviveram à
ditadura brasileira, o período mais sombrio do país.
As cinzas do tempo jamais vão sepultar a verdade.
PARTE 1
Nascimento e morte
de um guerrilheiro
© Fernando Priamo
A cela
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Quando o carro deixou para trás a poeira preta do
asfalto, o silêncio tomou conta dos passageiros. O veículo seguiu
pela estrada vicinal, único caminho de acesso à área de segurança.
Apesar de situado na zona urbana, o terreno continuava isolado do
resto da cidade, lugar onde o portão bege de ferro era o ponto final.
No instante em que o motor do automóvel foi desligado, um fun-
cionário uniformizado anotou a placa e retornou ao complexo. O
barulho do ferrolho contra a portinhola de aço aumentava a tensão.
Só dez minutos depois é que veio a ordem para entrar. Lá dentro,
uma mulher com metralhadora na mão e cara de poucos amigos
mandou descer. Rapidamente, iniciou revista minuciosa no carro e
em seus três ocupantes. Em seguida, determinou que os documentos
pessoais fossem entregues. Verificou as identidades, cruzou infor-
mações e confiscou os celulares. Com o serviço concluído, usou o
telefone para avisar sobre a chegada do grupo. Ao desligar, indicou
o caminho que levaria ao prédio de dois andares. Um homem gordo,
de calça jeans e coturnos, aguardava no varandão. Até tentou ensaiar
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rádio. De fora, era possível visualizar pelo menos mais duas barrei-
ras. A segunda delas dava acesso a um pátio localizado nos fundos
do complexo. Dezenas de basculantes, muitos com roupas depen-
duradas, podiam ser vistos nessa área. Em frente a eles, havia outro
muro, maior do que o primeiro, com altura superior a três metros. O
arame farpado reforçava a sensação de confinamento na instituição
estrategicamente vigiada. Mesmo com medo, tentei percorrer com
os olhos cada canto daquele lugar para guardar tudo que a memória
fosse capaz. Tinha a certeza: eu não teria outra chance.
Apesar da proximidade com o edifício principal, o interior con-
tinuava blindado. Um último portão bloqueava a passagem. Lá
dentro, era proibido chegar perto das portas que davam acesso ao
corredor principal.
— Não se aproximem das grades. Não quero ver ninguém aqui
— gritava um homem cujo rosto eu ainda não podia ver.
No momento em que o cadeado foi destrancado, parei de ou-
vir o barulho dos radiotransmissores. Alguém falava com as duas
pessoas que caminhavam ao meu lado, mas a minha atenção estava
totalmente voltada para dentro da construção cinquentenária. A
poucos segundos de entrar na emblemática Galeria A, o único som
que escutava era o do meu coração descompassado.
Às 9h33, quando meus pés tocaram o piso de ladrilho hidráulico
nas cores branca, preta e cinza, comecei a percorrer um capítulo de
dor que o país ainda desconhecia.
Apesar da manhã de sol, o ambiente lá dentro era pouco ilumina-
do, e o mofo impregnava minhas narinas, causando forte mal-estar.
Senti-me nauseada naquele lugar de odor fétido. Com dificuldade
para respirar, tinha a impressão de que não havia oxigênio suficiente.
O ar parecia viciado. Era como se iniciássemos a exploração de um
porão que há tempos estava fechado, embora a ala ficasse no mesmo
nível do solo. A infiltração destruía os poucos vestígios do antigo
bege que cobria as paredes geladas.
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dos julgamentos de Minas Gerais. Por isso, mais de três centenas de
militantes políticos cumpriram pena ali entre 1967 e 1980. E, apesar
de ter sido um dos mais importantes estabelecimentos prisionais
sob a custódia do Estado e das Forças Armadas continua ignorado
cinquenta anos após o golpe militar.
Foi lá que o estudante Augusto, codinome do integrante da
Corrente Revolucionária de Minas (Corrente), cumpriu a maior
parte da condenação de dez anos, uma das mais longas do período.
Gustavo, outro prisioneiro, chegou a ser raptado dentro do cárcere,
de madrugada, para mais uma viagem às cegas, quando ocorreria
nova rodada de interrogatórios nos porões do DOI-CODI em São
Paulo. Décadas mais tarde, os dois alcançariam destaque nacional.
O primeiro, como assessor da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, e o segundo, como ministro dos Direitos
Humanos do primeiro governo Lula.
Apelidado de Gringo, Márcio Lacerda era também membro da
Corrente. Eleito prefeito de Belo Horizonte (MG) em 2012, o po-
lítico manteve reserva sobre o passado durante décadas. Só agora
ele quebra o silêncio. Em frente à cela de Gringo ficava a de Oscar,
nome usado na clandestinidade por Fernando Pimentel, que venceu
as eleições para governador de Minas Gerais no primeiro turno da
disputa eleitoral ocorrida em outubro de 2014.
Oficialmente desaparecida da penitenciária desde 2005, a lista de
presos políticos de Linhares — como a penitenciária ficou conhecida
mais tarde — inclui, ainda, ilustres anônimos, como o acadêmico
do curso de física da UFRJ, Rogério de Campos Teixeira, militante
da Corrente, e o aspirante a astrônomo, Antônio Rezende Guedes,
criador do Observatório de Linhares.
Outro militante, Nilo Sérgio Menezes Macedo, foi despachado
para lá após ser seviciado no Rio de Janeiro, onde foi cobaia de
uma aula de tortura na Vila Militar da Guanabara, que tinha como
alunos praças e oficiais das forças armadas. Por causa do episódio
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© Fernando Priamo
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mas decifrados, já que os papéis guardavam ciladas que só puderam
ser esclarecidas após o confronto de versões.
A localização da sepultura de Milton, descoberta e revelada na
série de matérias que escrevi para o jornal Tribuna de Minas, em
2002, jogou luz sobre o episódio, mas não esclareceu os motivos que
levaram o exército a esconder de uma mãe o corpo de seu filho por
trinta e cinco anos. Foi isso que me fez marcar um novo encontro,
desta vez, com o futuro.
Em tempos de democracia, as tentativas de obstrução da nova
investigação jornalística que empreendi por cinco estados brasileiros
a partir de 2013 apenas confirmam que o passado teima em ser es-
quecido. Mas os segredos podem ser descobertos quando se julgam
sepultados sob as cinzas da memória.
Quase cinquenta anos se passaram para que a verdade pudesse ser
reconstituída no caso de Milton, um trabalho de pesquisa cercado
de reviravoltas, como em 29 de maio de 2014. Nessa data, quando,
finalmente, entrei na Cela 30 de Linhares, na companhia do fotógrafo
Fernando Priamo e do perito criminal Domingos Lopes Daibert, des-
cobri que a última parte da jornada era apenas o começo da história.
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Promotor militar dá parecer
favorável a prisão preventiva
de Edelson Palmeira de Castro
II
Notícias
pelo rádio
Há seis meses sem se olhar no espelho, Edelson Palmeira
de Castro assustou-se com o que viu. O cabelo preto liso chegava
à altura do ombro, o rosto estava barbado, a pele, descarnada pelo
súbito emagrecimento — seu peso havia baixado dez quilos — e os
olhos fundos pareciam estranhamente perdidos para um jovem de
vinte anos. Pela primeira vez em todo o período de confinamento,
ele percebia as ideias se esvaírem. O pensamento vagava confuso por
todas as escolhas que o levaram até aquele lugar. De um momento
para o outro, era como se tudo em que ele acreditava tivesse ruído.
Tinha tantas perguntas para fazer, embora soubesse que não obte-
ria respostas. Seu peito estava sufocado, tamanha era a vontade de
chorar, mas jamais permitiria que as lágrimas transbordassem em
terreno que ele considerava inimigo.
Horas antes, o dia parecia igual a todos os outros que passou no
Corpo da Guarda do 6º Batalhão de Engenharia de Porto Alegre.
Desde que Edelson foi preso, em 11 de outubro de 1966, a unidade
da 3ª Região Militar foi o endereço do militante da Frente Armada
Revolucionária Popular (FARP), mais tarde ligada ao Movimento
Revolucionário 26 de Março (MR-26) — coluna guerrilheira do
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Rio Grande do Sul que tentou deflagrar uma luta armada nacional
contra a ditadura recém-instalada no país.
Antes de ser levado para o quartel do bairro Partenon, Edelson
esteve na Polícia do Exército. Na primeira vez que pisou na unidade,
então localizada na Praça do Portão, no Centro, o suspeito de sub-
versão estava de olhos vendados. Circulou assim pelo pátio durante
vinte minutos e, desta forma, acabou sendo reconhecido por um
membro da FARP. Era Luiz Carlos Carboni, militante detido após
uma trapalhada que chamou a atenção da polícia. Vizinhos da pensão
Farroupilha, onde ele estava hospedado, o viram em cima do telhado
do prédio no primeiro dia de setembro de 1966. Carboni havia voltado
de um bar, quando foi preso no quarto 22 da hospedaria localizada
na rua Chaves Barcelos, em Porto Alegre. A polícia encontrou em
seus pertences fórmulas de explosivos e bilhetes dirigidos a membros
da organização no Rio de Janeiro. Edelson diz ter sido ele quem o
identificou como um dos homens que estiveram no Uruguai para
o cumprimento de missões de cunho político, entre elas, receber
armamento contrabandeado.
A descoberta rendeu ao agora acusado quase dois meses de inco-
municabilidade numa cela de altura inferior a 1,72 metro, na qual
Edelson não conseguia ficar de pé. Sem luz, a única forma de saber
as horas era dando uma espiada no relógio que ficava logo acima de
um portão de ferro, por onde Edelson passou mais de uma vez por
semana durante os primeiros tempos de interrogatório.
Pressionado, tentou fugir durante o plantão do tenente que atirou
três vezes sem sucesso contra um “cachorro sarnento”. O plano de fuga
de Edelson fracassou, e ele viu as regras do quartel ficarem ainda mais
rígidas naquele dezembro de 1966. Um dia depois da malsucedida ação,
foi acordado por três soldados que o jogaram da cama em que dormia.
Em seguida, perdeu o colchão, depois a manta, restando-lhe somente
o chão. Como fingiu continuar dormindo, os militares inundaram
a cela com uma mangueira. O prisioneiro, então, sentou-se sobre a
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patente turca, uma espécie de privada rente ao chão. Foram setenta
e cinco dias de confinamento até que ouviu de fora da cela a voz da
mãe. Era véspera de Natal.
— Mãe, aqui! Estou aqui dentro — gritou várias vezes, sem se
importar com a punição que viesse a sofrer.
Com sangue de índio correndo pelas veias, Universina Soares de
Castro entrou porta adentro preparada para uma guerra. Ignorou
todas as ordens de parar dadas pelo 3º sargento Braz Elemar que
fraquejou diante da valentia daquela mulher miúda. Ela estava acom-
panhada da filha Edi, grávida de oito meses, que empurrava o rapaz
com a barriga.
— Menino, eu sou uma velha que sofre do coração. Além disso,
ninguém vai impedir uma mãe de abraçar seu filho.
O praça emudeceu.
Quando mãe e filho puderam se tocar, houve um silêncio aba-
fado. Uma lágrima rolou pela face da matriarca, dilacerada pelo
estado deplorável do jovem. Contendo a raiva e a dor que sentiu
diante daquela situação abusiva, dona Universina abriu as mãos do
prisioneiro, entregando a ele um pedaço de bolo e doces caseiros.
Depois, acariciou a face macilenta de Edelson.
— Aguente firme, meu filho. Seu pai também passou por mo-
mentos difíceis e aguentou. Não tenha ódio, pois Cristo também
sofreu. A justiça não tardará.
O militante não conseguiu falar nada, por medo de a emoção o
trair. Beijou as mãos calejadas da mulher cuja coragem tanto admirava,
mirando o seu olhar. O encontro que renovou as forças de Edelson
rendeu ao sargento uma abertura de inquérito.
Uma semana antes de completar 200 dias de prisão, Edelson já
estava familiarizado com a rotina do cárcere. Acompanhava da cela
a troca de turno, quando o sentinela deixava o posto para descan-
sar. Quem assumia o plantão recebia o relatório da noite anterior
e repassava as tarefas do dia — que não permitia sequer o banho
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Uma hora havia se passado após a divulgação da notícia pelo rádio.
Era fim de tarde quando o oficial de dia veio buscar Edelson na cela.
— O comandante quer falar com você.
— Sobre o que? Você sabe?
O sargento limitou-se a acenar negativamente com a cabeça.
O gabinete do comando ficava relativamente distante do Corpo
da Guarda. Para chegar ao prédio principal, era preciso atravessar
o pátio do quartel cercado por árvores. Edelson ainda não sabia,
mas iria experimentar uma dor até então desconhecida. Nada que
se assemelhasse aos golpes de pau que o surpreenderam durante
o interrogatório a que foi submetido na área militar, pressionado
a entregar o paradeiro de Milton e o caminho das armas trazidas
clandestinamente ao Brasil de Cuba, do Uruguai e da Argentina. O
que ele estava prestes a sofrer era infinitamente mais forte que as
perfurações feitas em seu corpo pelo prego estrategicamente colocado
na ponta do bastão de madeira usada contra o militante. Desta vez,
até a alma se curvaria.
Após ser anunciado no saguão da sala do comando, Edelson teve
a entrada autorizada. Quando a porta se abriu, viu sua irmã Gessi
Palmeira Vieira no gabinete amplo e imponente, decorado com
mobiliários talhados em madeira maciça. O olhar úmido de Gessi
deixou Edelson paralisado.
— Infelizmente, a informação que trago não é boa. Seu irmão,
Milton, se matou hoje de manhã em Juiz de Fora. Meus pêsames. Mas
vamos fazer de tudo....
O pintor interrompeu o comandante:
— Isso não foi suicídio, senhor. Assassinaram o meu irmão —
gritou o preso.
— Rapaz, você não sabe do que está falando — cortou o oficial.
Gessi tentou abraçar Edelson para evitar uma discussão cujo
perdedor já estava previamente definido. Em função do estado da
irmã, que não escondia mais o choro, o militante cedeu.
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© Arquivo Pessoal
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Como dinheiro era raridade, os filhos da benzedeira começaram
a trabalhar na meninice para conseguir uns trocados. Edelson abria
buracos na terra vermelha até desaparecer lá dentro. Milton, mais
velho, com dez anos, já pintava escolas para outras crianças estudarem.
Alto demais, ele recebeu dos colegas o apelido de Monstrão, no tempo
em que bullying não seria nada além de um palavrão estrangeiro.
Apesar das dificuldades, o período de escassez da família só co-
meçou em 1946, depois da morte do marido de dona Universina,
o brigadiano Marcírio Palmeira de Castro. Policial militar de Santa
Maria, o homem, que fazia caixão de cortesia para o enterro de amigos,
morreu de tifo em 21 de maio, quando Edelson tinha apenas quatro
dias de vida. Servidor da pátria que tanto amava, foi sepultado sem
glórias, deixando mulher e dez filhos.
A casa verde escura onde eles moravam foi construída pelas mãos
do militar, nos tempos em que lhe sobrava saúde e compadres. Erguida
em terreno rural com quintal, poço e pomar, o imóvel amplo tinha
três quartos, além de um imenso porão. Para entrar na moradia,
Marcírio projetou duas escadas compridas. Na cozinha, o fogão de
barro funcionava o dia todo. Era preciso muita lenha para alimentar
o fogo e a prole da mulher. Para cada filho que saía da barriga dela,
outro entrava. E haja polenta feita em panela de ferro para matar
a fome dos piás. Depois de pronto, o angu era espalhado na tábua
para esfriar. Só então se cortava os pedaços com linha, como a mãe
de Milton, Edelson e dos outros oito gostava de fazer. A polenta era
servida com pão, café e combinações improváveis. Carne de boi nas
refeições, só se fosse dianteiro, porque o traseiro, considerado mais
nobre, não aparecia em mesa de pobre.
A mesma colher que mexia a receita feita com água e fubá era usada
para castigar menino bagunceiro. A benzedeira acreditava que só assim
conseguiria colocar ordem numa casa com tanta boca para comer.
Com a educação rígida que recebeu do pai mascate, a matriarca criou
os filhos com afeto de sobra, mas pouca demonstração. De vez em
quando, sentia vontade de beijar os seus, porém mantinha afastamento.
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Recrutada cedo para o trabalho na roça, ela não pôde ninar bo-
neca, talvez por isso tenha parido tanto. E mesmo ruim das letras,
a mulher tinha sabedoria de sobra para entender que, sem infância,
se vira gente grande triste. Os dela não seriam assim.
Da prole de dez, Milton e Gessi foram os que mais aproveitaram a
vida boa do campo. Nos fins de semana, eles passavam o dia jogando
cinco marias, brincadeira feita apenas com pedra, ligeireza e muita
imaginação. Também havia os ossos de boi, que faziam vencedor
aquele que os atirasse mais longe. O bumbá, que usa a casca de la-
ranja, exigia mais sorte do que habilidade. E a bulita, bola de gude,
fazia a meninada correr.
O tifo levou o pai dos guris e deixou para a família do mor-
to à privação, já que para manter o marido em tratamento, dona
© Arquivo Pessoal
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Universina começou a vender as coisas. A doença do brigadiano
levou as duas vacas que davam leite, o gado, o poço, a casa. Edelson,
Milton, Gessi e os irmãos se mudaram com a mãe para São Borja e
depois Porto Alegre.
O novo casamento da mãe, um ano depois da viuvez, não tirou o
luto da família. O outro brigadiano com quem dona Universina se
casou fez cinco filhos nela. Mas, ao contrário do primeiro marido,
o policial militar levou para dentro de casa a violência e a sanha de
abusar sexualmente das enteadas. Quando a benzedeira se viu livre
do traste que espalhou os filhos do seu primeiro casamento em casas
cujos donos ela pouco conhecia é que a viúva de marido vivo juntou
a família de novo. Não se importava em comer o pão que o diabo
amassou, desde que estivesse junto dos quinze que saíram dela.
Enquanto a mãe fazia fornadas de pão para vender, Edelson,
com cerca de oito anos, levava comida para Milton, que continuava
a pintar escolas. Nessa época, o pão com banha de porco era usado
para matar a fome dos irmãos. E, mesmo sobrando pobreza, dona
Universina pegou um guri abandonado para criar, o 16º filho. Milton,
que já estava na adolescência, não perdia a chance de fazer piada.
— Mais um escravo branco nesta casa — brincava, embora já co-
meçasse a ficar incomodado com a desigualdade social que o rodeava.
Apesar de o momento ser de choro, a lembrança da frase de
Milton fez o Edelson barbado rir. Ao se olhar no espelho que
recebeu na cela do 6º Batalhão de Porto Alegre, o preso político
entendeu que era hora de enfrentar a realidade. Liberado para deixar
o cárcere, a fim de cuidar da mãe de um filho suicida, o militante
precisava ficar apresentável para estar com a família abatida pela
tragédia. Raspou os pelos que escondiam seu rosto, ganhou um
corte no cabelo desgrenhado e uma muda de roupas limpas. Ao
mirar-se novamente no espelho, percebeu que a imagem refletida
não lembrava em nada o irmão de Milton. Aliás, sem Milton, todos
seriam diferentes dali para frente.
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