Estadio Do Espelho
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3, 69-79 · 2014 69
A metamorfose do narcisismo:
Lacan, o estádio do espelho e a agressividade
Resumo: A temática do narcisismo em Lacan é abordada neste artigo a partir de dois textos iniciais
do autor, publicados nos Escritos – um sobre o famoso estádio do espelho e outro sobre a agressivi-
dade. Em ambos, temos a importância da imagem, tanto através do espelho como do outro, o seme-
lhante (semblable). Para a influência marcante da etologia na elaboração da problemática da imagem,
recorremos a um artigo de Bento Prado Jr., que aborda o tema a partir dos dois primeiros seminários
de Lacan. Trata-se no seu conjunto da formação do Eu e da própria constituição do sujeito humano.
Palavras-chave: narcisismo; imagem; eu (je); Eu (moi); etologia; agressividade; prematuração.
1 Psicólogo clínico pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), formado em Filosofia pela Universidade de
São Paulo (USP), psicanalista membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
e do Corpo Freudiano.
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do espelho, publicado em 1949, está constantemente presente. Pois bem, antes de procurar-
mos fazer uma apresentação do estádio do espelho, lembraremos uma citação de Freud que
nos parece fundamental. Ele diz:
É uma assunção importante que uma unidade [Einheit] comparável ao Eu não pode estar presente
no indivíduo desde o começo; o Eu deve ser desenvolvido. As pulsões autoeróticas, no entanto,
estão presentes desde o início; algo portanto deve acontecer ao autoerotismo, uma nova ação psí-
quica [eine neue psychische Aktion], para formar o narcisismo. (Freud, 1914/1982, p. 44)
Qual era essa nova ação psíquica que deveria iniciar o narcisismo e transformar o eu
num objeto libidinal nunca ficou claro nas elaborações de Freud. A função do estádio do
espelho pretende justamente trazer uma solução para essa questão, pois Lacan pensa essa
passagem no início pelo investimento libidinal da imagem, e não do Eu (moi).2
A questão do narcisismo em Lacan está intimamente ligada à formação do eu. O texto
princeps é “O estádio do espelho como formador do eu, tal como nos é revelado na expe-
riência psicanalítica”, apresentado no congresso de 1949 da Associação Psicanalítica Inter-
nacional (IPA) em Zurique, publicado nos Écrits em 1966, e que foi originalmente exposto
em Marienbad, em 1936. Em 1948, Lacan publicou “A agressividade em psicanálise”, que
pode ser considerado uma expansão ou desenvolvimento do artigo anterior (apesar da data
de 1948). Nesses dois artigos estão contidas a primeira elaboração do tema do narcisismo e
a questão da agressividade que lhe é correlativa. São, portanto, textos do início da obra de
Lacan, que ele mesmo considera “meus antecedentes” e que serão ampliados e reconsidera-
dos ao longo de toda sua evolução. Lacan, ao fazer um elogio a Freud por sua honestidade,
diz que isso “torna um texto de Freud sempre um texto aberto, jamais fechado, como se todo
o sistema estivesse lá” (1975/1979, p. 100). O mesmo podemos dizer do texto de Lacan, autor
cujo pensamento e apreensão da experiência analítica irão se transformando e reformulando
ao longo do seu percurso. No presente artigo, pretendemos focar esse início do seu pensa-
mento, que está essencialmente centrado no estabelecimento da dimensão do imaginário
(referido à imagem, e não à imaginação), elemento fundamental da sua trilogia junto com
o simbólico e o real.
A temática do espelho tem uma longa história antes de Lacan, a começar por um
comentário de Charles Darwin, num artigo de 1887, em que ele diz ter percebido como seu
filho de 8 meses foi capaz de associar sua reflexão no espelho com seu nome. Ele também
comparou a reação do bebê com a reação do macaco, observando que o bebê fica fascinado
pela própria imagem, enquanto os macacos superiores se comportam de forma diferente –
ao tentar procurar pela mão refletida atrás do espelho, ficam decepcionados e irritados, logo
perdendo qualquer interesse. James Mark Baldwin, em 1894, salienta a importância da imita-
ção para o processo de maturação. Menciono esses autores só como exemplo. Dentre aqueles
citados diretamente por Lacan estão: Charlotte Bühler, a quem Lacan atribui a importância
do transitivismo; Wolfgang Köhler, autor influente da psicologia da forma (Gestalt), a quem
deve a referência à Aha-Erlebnis (a vivência do Aha); e Henri Wallon, em cuja obra o termo
2 Lacan utiliza as duas formas do “eu” em francês, je e moi, sendo que este último refere-se ao das Ich alemão,
que corresponde ao que foi traduzido pelo “ego” latino na tradução de James Strachey, enquanto o je refere-se,
ao longo da obra de Lacan, ao sujeito do inconsciente. Neste artigo vamos empregar je por “eu”, e moi por “Eu”.
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usado por Lacan, stade du miroir, já aparece num artigo de 1931, “Comment se développe
chez l’enfant la notion de corps propre” (“Como se desenvolve na criança a noção de corpo
próprio”) – Lacan só o cita no artigo sobre a agressividade, mas sem dúvida podemos dizer
que é ele quem dá a descrição original do estádio do espelho; esse não reconhecimento
por parte de Lacan é criticado por Borch-Jacobsen em seu livro Lacan: the absolute mas-
ter. Trago essas referências apenas para lembrar que as ideias expostas nesses artigos estão
longe de serem originais, o que não invalida o fato de que as transformações que produzi-
ram no campo analítico tenham sido essenciais para a elaboração do imaginário, do eu e do
narcisismo.
Lacan inicia seu texto salientando a importância do reconhecimento pelo infans3 de
sua imagem no espelho, referindo esse reconhecimento à experiência já mencionada pelo
termo Aha-Erlebnis, “onde se exprime para Köhler, a apercepção situacional, tempo essen-
cial do ato de inteligência” (1949/1998b, p. 96). Faz a comparação com os macacos, que não
demonstram tal reconhecimento e logo perdem interesse na imagem refletida. A relação dos
movimentos do bebê com a imagem refletida aponta para um “complexo virtual com a rea-
lidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou seja, os objetos
que estejam em suas imediações” (p. 97).
A seguir, faz a descrição do espetáculo cativante do bebê diante do espelho, lem-
brando que desde Baldwin sabemos que isso se dá entre 6 e 18 meses de idade. Lacan relata
como a criança,
ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por
algum suporte humano ou artificial (o que chamamos na França um trote-bébé [um andador]),
supera numa azáfama jubilatória os entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posi-
ção mais ou menos inclinada e resgatar, para fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem. (Lacan,
1931, p. 97)
parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o eu se preci-
pita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes
que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. (Lacan, 1931, p. 97)
Essa imagem-Gestalt ou imago, nos dirá Lacan, é “mais constituinte do que consti-
tuída” (p. 98) – afirmação que chama a atenção, pois a percepção do corpo próprio não pode
ser considerada como constituída pela exteriorização por parte do infans, mas é, pelo contrá-
rio, constituída através dessa imago. Essa imagem, sendo primordial, anterior à constituição
do sujeito, será considerada por Lacan como ligada à espécie. Logo adiante, no mesmo texto,
dirá que a “maturação da gônada da pomba tem como condição necessária a visão de um
congênere, não importa de qual sexo” (p. 99). A seguir, dá o exemplo do gafanhoto migrató-
rio, no qual a transição da forma isolada para a forma gregária é obtida ao ser exposto “à ação
exclusivamente visual de uma imagem similar” (p. 99). Conclui dizendo que são “fatos que
se inscrevem numa ordem de identificação homeomórfica que seria abarcada pela questão
do sentido da beleza como formadora e como erógena” (p. 99).
A essas considerações etológicas podemos atribuir todo o peso da definição que Lacan
dá à função do estádio do espelho: “revela-se para nós, por conseguinte, como um caso par-
ticular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade –
ou como se costuma dizer, do Innenwelt [mundo interior] com o Umwelt [mundo em torno]”
(p. 100). Mas essa relação com a natureza é alterada pela “verdadeira prematuração especí-
fica do nascimento no homem” (p. 100). Trata-se da incapacidade do infans de dominar suas
funções motoras e da incompletude de sua maturação neurológica, o que está implícito na
noção freudiana de Hilflosigkeit (incapacidade de ajudar a si mesmo).
Lacan considera como o fato da prematuração lança o sujeito numa dialética tempo-
ral, “que projeta decisivamente na história a formação do indivíduo: o estádio do espelho é um
drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação” (p. 100). Nesse
sentido, o estádio do espelho abre-se para o futuro em vez de para o passado. Por outro lado,
as consequências desse modo de ser levarão Lacan a considerar “o engodo da identificação
espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma
forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assu-
mida de uma identidade alienante” (p. 100). Nessa origem do eu está prefigurada a dimensão
alienante do Eu. Aqui também está a importância da introdução da noção de sujeito, como
sujeito do inconsciente que jamais será associado ao Eu. Haveria muito a discutir sobre esse
ponto, inclusive a interpretação que Lacan dará da famosa frase de Freud “Wo Es war, soll
Ich werden”,4 num sentido inverso da psicologia de ego.
O corpo despedaçado das origens é algo já trazido pelos gregos em relação ao infans e
que Lacan diz aparecer regularmente nos sonhos, “quando o movimento da análise toca num
certo nível de desintegração agressiva do indivíduo” (p. 100). Toda essa dimensão, Lacan
lembra como presente na pintura visionária de Hieronymus Bosch. Em oposição a tais fan-
tasias e sonhos, a formação do eu aparece também simbolizada por um campo fortificado
ou como a busca do castelo interior e outras que surgem como metáforas espontâneas “para
designar os mecanismos de inversão, isolamento, reduplicação, anulação e deslocamento da
neurose obsessiva” (p. 101).
Até aqui acompanhamos de perto o texto sobre o estádio do espelho, mas abro agora
um parêntese para melhor clarificar todas essas referências à etologia e à psicologia da forma
em Lacan, apresentando parcialmente um artigo de meu mestre e amigo Bento Prado Jr.,
4 A tradução de James Strachey dessa frase – que se encontra na conferência XXXI, New introductory lectures
on psychoanalysis, vol. 22 da Standard edition, p. 80 – é a seguinte: “Where id was, there ego shall be”, que em
português seria: “Onde estava o Id, ali estará o Ego”, interpretada como a conquista do Id pelo Ego. Lacan,
entre as suas diversas interpretações dessa frase, atribui o seguinte sentido: “Lá onde estava isso, lá, como
sujeito, devo eu advir”. A questão está na problematização do cogito: para Lacan, o sujeito e o eu não devem
ser identificados, mas diferenciados, com o acento recaindo sobre o sujeito do inconsciente.
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“Para que haja relação de objeto, é necessário que haja anteriormente relação narcísica do Eu e
do outro. Ela é, aliás, a condição primordial de toda objetivação do mundo exterior – tanto da
objetivação ingênua, espontânea, quanto da objetivação científica” (Lacan, 1978, p. 118).
sobre a fêmea. O que é importante nesses experimentos para Lacan, salienta Bento Prado, é
a construção de um modelo mecânico-energético da emissão do comportamento instintivo
e “sobretudo a possibilidade de logro, ou da emissão na ausência do Merkzeichen adequado,
ou seja, o peso do imaginário na emissão do comportamento” (p. 63).
Na continuação, Bento Prado assinala que nesse modelo há uma imbricação funcional
entre sua mecânica interna e a estimulação externa, entre os padrões endógenos de compor-
tamento e seus desencadeadores externos. Temos aqui o círculo funcional (Funktionkreis) de
von Uexküll. É isso que leva Lacan a falar num “holismo recíproco” ou de uma “harmonia
preestabelecida” no modelo biológico do instinto. Esse círculo funcional implica uma dis-
tinção entre mundo real e mundo de objeto. Assim, descrever a anatomia de um organismo
implica também descrever o modo pelo qual filtra o mundo que lhe é externo, por meio do
qual introduz a descontinuidade no real sem fissuras, constituindo seu mundo próprio. O
termo Umwelt é utilizado por von Uexküll para designar essa “bolha” que cerca cada animal
e que cada animal carrega consigo (p. 64).
O que Lacan não aceita é “a aplicação desse esquema ao comportamento humano, ou
a superposição entre as noções de instinto e de pulsão” (p. 64). Entretanto, “Lacan lança mão
do modelo etológico para definir o estatuto da ‘subjetividade animal’, radicada na dimen-
são do imaginário” (p. 65). Aqui, Bento Prado menciona um momento do Seminário 1 em
que Lacan faz referência à teoria weissmaniana da imortalidade do plasma germinativo,
levantada por Freud: Lacan se pergunta, do ponto de vista psicológico, se o que o indivíduo
é levado a propagar pelo instinto sexual é a substância imortal no plasma germinativo. Diz
então: “claro que não, porque o que se propaga, com efeito, é bem o indivíduo. Só que ele não
se reproduz enquanto indivíduo, mas enquanto tipo” (Lacan, 1975/1979, p. 143).
O termo “tipo” tem aqui uma grande importância,
pois é como se o instinto sexual funcionasse a partir de um esquema especular em que a ima-
gem é o tipo, ou a “essência genérica”. Narcisismo animal, ele é também o primeiro narcisismo, o
Selbstgefühl (sentimento de si), que precede e funda a Selbstbewusstsein (consciência de si) ou a
ordem simbólica. (Prado Jr., 1990, p. 65)
A seguir, Bento Prado cita um trecho do Seminário 1 em que Lacan retoma uma
questão de Octave Mannoni ao discutirem o texto de Freud “Para introduzir o narcisismo”:
Há pouco, Mannoni falava dos dois narcisismos. Há inicialmente, com efeito, um narcisismo
que se relaciona à imagem corporal. Essa imagem é idêntica para o conjunto dos mecanismos do
sujeito e dá a sua forma ao Umwelt, na medida em que é homem e não cavalo. Ela faz a unidade
do sujeito e nós a vemos se projetar de mil maneiras, até no que se pode chamar a fonte imagi-
nária do simbolismo, que é aquilo através do que o simbolismo se liga ao Selbstgefühl, que o ser
humano, o Mensch, tem do seu próprio corpo. (Lacan, 1975/1979, p. 147)
Bento Prado assinala nesse texto a passagem do real ao imaginário e deste ao simbó-
lico. “A ideia de Umwelt ou de ‘narcisismo animal’ serve para introduzir, nas bordas do real,
um elemento que já o transcende, a esfera da pura imagem ou do irreal” (1990, p. 66). Esse
papel do espelho no comportamento do esgana-gata tem sua importância “como uma espécie
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tudo se passa como se o instinto sexual – ou seja, uma estrutura ainda puramente biológica –
provocasse uma espécie de descompressão ontológica, responsável pela produção de fissuras
(pensemos no sujeito que se projeta “de mil maneiras”, através do real, em direção a sua própria
imagem especular) na superfície até então lisa do Ser de Parmênides, transformando-o num
imenso espelho faturado. (Prado Jr., 1990, p. 66)
Todo esse percurso serviu para pôr em perspectiva a importância da imagem (Gestalt)
na fundação do primeiro narcisismo. Em seguida, Bento Prado nos fala do outro narcisismo,
em que a sexualidade se desfuncionaliza, se distancia da “coisa natural, neutraliza a dimensão
da necessidade ou da carência que eram preenchidas pela mediação da imagem” (p. 66). Essa
passagem ao imaginário já antecipa a “passagem do círculo funcional do instinto ao regime
anárquico das pulsões que, nele apoiado (Anlehnung), institui uma nova ordem, a ordem
do desejo ou da sexualidade humana” (p. 66). Esse segundo narcisismo é descentrado pelo
outro: aqui Narciso não é Solus Ipse, pois, como diz Lacan, o alter ego ideal vem fundir-se ao
Ich Ideal (eu ideal). O que fica claro na seguinte citação de Lacan:
Finalizando essa breve referência ao texto de Bento Prado Jr., tão esclarecedor de uma
questão bastante complexa desse início do pensamento de Lacan, faço uma última citação,
em que ele comenta, com um toque poético, a passagem do imaginário ao simbólico: “Como
se as imagens que flutuam sobre a continuidade plena do real abrissem espaço para a anco-
ragem do simbolismo ou para o desdobramento do desejo” (1990, p. 67).
Após esses esclarecimentos proporcionados pela leitura feita por Bento Prado Jr.,
podemos seguir com o texto “A agressividade em psicanálise”, publicado em 1948, como
mencionamos anteriormente: nele, Lacan afirma que a agressividade é uma tensão da estru-
tura narcísica. As suas considerações estão em continuidade com as aporias contra as quais se
chocou o pensamento de Freud, na significação que ele “promoveu como instinto de morte”
(1948/1998a, p. 104). O texto é apresentado em cinco teses. Nas três primeiras, temos uma
descrição das intenções agressivas na situação de análise e considerações de natureza técnica
de como lidar com elas. Vamos deixá-las de lado, apesar de sua relevância, e nos concentrar-
mos na quarta tese, que citamos na íntegra.
“Tese IV: A agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a
que chamamos narcísico, e que determina a estrutura formal do Eu do homem e do regis-
tro de entidades de seu mundo” (p. 112). Aqui temos a passagem da intenção subjetiva, que
corresponde a estados tão diversos como o medo fantástico, a cólera, a tristeza ativa etc., à
tendência à agressão, ou seja, à fonte última da agressividade. Em oposição à multiplicidade
fenomenológica, a tendência é única e Lacan dirá que essa tese implica dar “o salto da feno-
menologia de nossa experiência para a metapsicologia” (p. 113).
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Como vimos, na identificação narcísica o eu é um outro (je est un autre)5 pelo qual
o sujeito é descentrado em relação ao indivíduo, e a imagem primordial (Urbild), que é
alienante, está na origem e irá determinar a estrutura formal do Eu. Nos primeiros Semi-
nários, Lacan lançará mão de vários esquemas ópticos, do mesmo modo que Freud, num
verdadeiro “jogo de espelhos”, com a finalidade de estabelecer inúmeras diferenciações que
fogem ao senso comum. Dessa forma, Lacan se diferencia e critica a concepção habitual do
eu “como centrado no sistema percepção-consciência, como organizado pelo princípio de
realidade”, como ficou claro na apresentação de Bento Prado Jr. Lacan ainda acrescenta que
devemos partir “da função de desconhecimento que o caracteriza em todas as suas estruturas”
(1949/1998b, p. 103) É a essa organização original das formas do Eu e do objeto que serão
referidas todas as reações agressivas – reações que, por sua vez, as afetam.
Referindo-se especificamente à paranoia, um paradigma clínico em sua obra, Lacan
elogia Janet por ter descrito tão bem como “momentos fenomenológicos” a significação dos
sentimentos de perseguição, mas o critica por não lhes ter “aprofundado o caráter comum,
que é precisamente que eles se constituem por uma estagnação de um desses momentos”
(1948/1998a, p. 114). Antes Lacan se refere a essa estagnação como estereotipia que suspende
sua dialética. Essa estagnação formal “é parenta da estrutura mais geral do conhecimento
humano: aquela que constitui o Eu e os objetos, mediante atributo de permanência, identi-
dade e substancialidade” (p. 114). É o que vimos anteriormente na crítica à objetivação, aqui
constituindo o que Lacan denominou conhecimento paranoico, pois “introduz uma certa
discordância entre o organismo e seu Umwelt” e, ao mesmo tempo, “é a própria condição que
amplia indefinidamente o seu mundo e sua potência, dando aos seus objetos sua polivalên-
cia instrumental e sua polifonia simbólica, bem como seu potencial de armamento” (p. 114).
Como a captação pela imago da forma humana é o que vai ditar todo o comporta-
mento da criança na primeira infância, ela será uma das formas mais arcaicas da identificação
objetivante. Nesse período, “registram-se as reações emocionais e os testemunhos articula-
dos de um transitivismo normal” (p. 116). Lacan dá exemplos bem conhecidos, como o da
criança que bate e logo diz que bateram nela, a que vê cair, chora etc.
Do mesmo modo, é numa identificação com o outro que ela vive toda a gama das reações de
imponência e ostentação, cuja ambivalência estrutural suas condutas revelam com evidência,
escravo identificado com o déspota, ator com o espectador, seduzido com o sedutor. (Lacan,
1948/1998a, p. 116)
a natureza da agressividade no homem e sua relação com o formalismo do seu Eu e de seus obje-
tos. Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si
mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar o
seu Eu. (Lacan, 1948/1998a, p. 116)
5 A expressão “je est un autre”, Lacan tira de uma carta de Rimbaud a Paul Demeny, de 15 maio de 1871 (Lacan,
1978, p. 16).
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Vemos aqui toda a importância da dinâmica libidinal que está presente na constitui-
ção do Eu através da sua relação erótica e organização passional, algo que é discutido em
detalhes no Seminário 1, nos capítulos mencionados anteriormente. Além disso, devemos
salientar que a constituição do Eu se dá, por assim dizer, pela superposição da imagem origi-
nal (Urbild) com a imagem do outro – como tratado no estádio do espelho –, numa espécie
de externalidade interiorizada. Por fim, essa forma irá se cristalizar
na tensão conflitiva interna do sujeito, que determina o despertar de seu desejo pelo objeto do
desejo do outro: aqui, o concurso primordial se precipita numa concorrência agressiva e é aqui
que nasce a tríade do outro, do Eu e do objeto. (Lacan, 1948/1998a, p. 116)
6 Remeto o leitor ao número 20 da revista Ide da SBPSP (1991), em que foi publicada uma tradução de “En
guise d’introduction” (de Introduction à la lecture de Hegel), de Alexandre Kojève. Nos números subsequen-
tes, foram publicados dois artigos do filósofo Paulo Eduardo Arantes: “Kojève: um Hegel errado, mas vivo”
(Ide 21) e “Hegel no espelho do dr. Lacan” (Ide 22).
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em que as imagos do pai e dos irmãos reais ou virtuais, em que a agressão voraz do próprio
sujeito, negociam sua dominação deletéria sobre as regiões sagradas”, e da “persistência, no
sujeito, da sombra dos maus objetos internos”, o que abre à compreensão como certas situa-
ções podem desnortear “as funções voluntárias no adulto, ou seja, qual é sua incidência des-
pedaçadora na imago da identificação original” (Lacan, 1948/1998a, pp. 117-118).
Darian Leader,7 no seu livro Freud’s footnotes (2000), apresenta no capítulo “The
depressive position for Klein and Lacan” (A posição depressiva para Klein e Lacan) uma
comparação minuciosa das aproximações e divergências entre os autores no que diz respeito
à posição depressiva. Ambos tratam de uma situação depressiva nos primeiros 6 meses da
criança – Klein no interior do drama edípico, Lacan no estádio do espelho. São teorias muito
diferentes, mas que se referem à mesma intuição básica das origens. Assim, se em Lacan há
sempre a divergência entre o corpo fragmentado e a totalização na imagem, junto com o
momento jubilatório do reconhecimento, em Klein temos os sentimentos de destruição do
Eu junto com o anseio (pining) pelo bom objeto. Em ambos, os temas da fragmentação e
da totalização estão presentes, só para mencionar uma das aproximações. Aqui, no entanto,
teria início um novo trabalho junto às reflexões de Leader, que não cabe no presente artigo,
mas menciono este autor por sua excelência e por tratar com seriedade a importância de
Klein para o pensamento de Lacan, especialmente nas suas formulações sobre o narcisismo.
Resumen: La temática del narcisismo en Lacan es abordada en este artículo a partir de dos textos iniciales
del autor, publicados en los Escritos – uno sobre la famosa fase del espejo y otro sobre la agresividad. En
ambos tenemos la importancia de la imagen tanto a través del espejo como del otro, lo semejante (sembla-
ble). Para la fuerte influencia de la etología en la elaboración de la problemática de la imagen, recurrimos
a un artículo de Bento Prado Jr., que trata el tema a partir de los dos primeros seminarios de Lacan. Se
trata en su conjunto de la formación del Yo y de la propia constitución del sujeto humano.
Palabras clave: narcisismo; imagen; yo (je); Yo (moi); etología; agresividad; prematuridad.
Abstract: In this article, two texts of Lacan’s initial writings, published in Écrits – on the mirror stage
and on aggressiveness –, are analysed from the perspective of narcissism. In both we have the importance
of the image in the mirror and in relation to the other (semblable). In order to show the importance of
ethology for the establishment of the image, we consider an article by Bento Prado Jr. in which the author
analyzes the first two seminars of Lacan. The establishment of the I and the origins of the human subject
constitute its broader perspective.
Keywords: narcissism; image; I (je); me (moi); ethology; aggressiveness; prematurity.
7 Darian Leader é psicanalista, membro fundador do Centre for Freudian Analysis and Research (CFAR) e
presidente do College of Psychoanalysts, no Reino Unido.
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Referências
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Fischer Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1914)
Lacan, J. (1978). Le Séminaire, livre 2: le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse
(1954-1955). Paris: Seuil.
Lacan, J. (1979). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954) (B. Milan, Trad.). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975)
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Trad., pp. 96-103). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1949)
Leader, D. (2000). The depressive position for Klein and Lacan. In D. Leader, Freud’s footnotes (pp. 189-236).
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Prado Jr., B. (1990). Lacan: biologia e narcisismo (ou a costura entre o real e o imaginário). In B. Prado Jr.
(Org.), Filosofia da psicanálise (pp. 51-72). São Paulo: Brasiliense.