Hernández Los Museos en La Sociedad Líquida

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 301

MUSEOLOGIA

E PATRIMÓNIO

vo l u me 1

Fernando Magalhães
Luciana Ferreira da Costa
Francisca Hernández Hernández
Alan Curcino
COORDENADORES

Escola Superior de Educação e Ciências Sociais | Politécnico de Leiria


Fernando Magalhães
Luciana Ferreira da Costa
Francisca Hernández Hernández
Alan Curcino
(Coordenadores)

MUSEOLOGIA E
PATRIMÓNIO
Volume 1
MUSEOLOGIA E
PATRIMÓNIO
Volume 1
Presidente
Rui Filipe Pinto Pedrosa

ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS SOCIAIS

Diretora
Sandrina Diniz Fernandes Milhano

EDIÇÕES
https://www.ipleiria.pt/esecs/investigacao/edicoes/

Conselho Editorial
Alan Curcino
(Universidade Federal de Alagoas, Brasil)
Emeide Nóbrega Duarte
(Universidade Federal da Paraíba, Brasil)
Fernando Paulo Oliveira Magalhães
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
José António Duque Vicente
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Luciana Ferreira da Costa
(Universidade Federal da Paraíba, Brasil)
Marco José Marques Gomes Alves Gomes
(Instituto Politécnico de Leiria, Portugal)
Silvana Pirillo Ramos
(Universidade Federal de Alagoas, Brasil)
FICHA TÉCNICA

Título: Museologia e Património - Volume 1


Coordenadores: Fernando Magalhães, Luciana Ferreira da Costa,
Francisca Hernández Hernández, Alan Curcino
Projeto gráfico: Alan Curcino
Capa: Rui Lobo
Edição: Instituto Politécnico de Leiria – IPLeiria
Edifício Sede – Rua General Norton de Matos, Apartado 4133, 2411-901
Leiria – Portugal
https://www.ipleiria.pt/

ISBN 978-989-8797-35-3
Novembro de 2019

©2019, Instituto Politécnico de Leiria

APOIOS

Rede de Pesquisa e (In)Formação em


UNIVERSIDADE Museologia, Memória e Patrimônio
FEDERAL DA PARAÍBA

Facultad de Geografía e Historia:


Grupo de Investigación Gestión del Patrimonio Cultural
UNIVERSIDAD
COMPLUTENSE
MADRID
À contínua cooperação entre os
amigos brasileiros, espanhois e
portugueses em torno da
Museologia e do Património.
ÍNDICE

Apresentação ....................................................................................................... 7
Fernando Magalhães
Luciana Ferreira da Costa
Francisca Hernández Hernández
Alan Curcino

Los museos y el patrimonio en una sociedad líquida ............... 10


Francisca Hernández Hernández

No princípio era o “património”: reflexões (possíveis)


acerca dos significados e apropriações de património” ........... 57
Cândida Cadavez

Num pequeno lugar, o mundo todo: o património fafense e


os cruzamentos culturais Brasil-Portugal ................................... 95
Fernando Magalhães

Virtuais e digitais: o patrimônio museológico em bits ............ 115


José Cláudio Alves de Oliveira

Museu de Serralves: visitante como patrimônio cultural ...... 151


Robson Xavier da Costa

Patrimônio e empoderamento dos atores de


desenvolvimento local ....................................................................... 179
Manuelina Duarte Cândido

Museus, patrimônios e experiência criadora: ensaio sobre


as bases da Museologia Experimental .......................................... 199
Bruno César Brulon Soares

Cuiabá 300 anos: a cidade, o espaço público e o patrimônio


cultural .................................................................................................... 232
Giordanna Laura da Silva Santos
Ana Vittori Frigeri
A expansão do patrimônio cultural diante das tecnologias
digitais: entre o atual e o virtual ..................................................... 255
Carmen Lucia Souza da Silva

Museu em Revista. A seção ‘Relíquias Brasileiras’ da


Revista Selecta (1929-1930) ............................................................ 273
Aline Montenegro Magalhães
Museologia e Património – Volume 1

Apresentação

Os livros Museologia e Património – Volume 1 e Volume 2


são resultado de uma cooperação científica internacional entre o
Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) – Polo Leiria e
a Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESECS) do Instituto
Politécnico de Leiria (IPLeiria), Portugal, juntamente com a Rede de
Pesquisa e (In)Formação em Museologia, Memória e Património
(REDMUS) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil, e o
Grupo de Investigación Gestión del Patrimonio Cultural (GIGPC) da
Facultad de Geografía e Historia (FGH) da Universidad Complutense de
Madrid (UCM), Espanha.
O percurso desta cooperação inicia-se com a publicação de
quatro Dossiês Temáticos sobre "Museu, Turismo e Sociedade”,
respectivamente nos anos de 2014, 2015, 2017 e 2018, na Revista
Iberoamericana de Turismo (RITUR), editada em conjunto pelo
Observatório Transdisciplinar em Turismo da Universidade Federal de
Alagoas (UFAL), Brasil, e pela Facultat de Turisme e Laboratori
Multidisciplinar de Recerca en Turisme da Universitat de Girona (UdG),
Espanha. Tais dossiês contaram com o apoio da REDMUS/UFPB para
sua publicação entre 2014 e 2017, além do Instituto de História
Contemporânea - Grupo de Investigação Ciência, Estudos de História,
Filosofia e Cultura Científica (IHC-CEFCi) da Universidade de Évora
(UÉvora), Portugal, assumindo a organização e assinatura como
Editores. Já no ano de 2018, acrescentou-se ao apoio à publicação o
CICS.NOVA/ESECS/IPLeiria.
Os dossiês objetivaram contribuir para as diversas áreas
dedicadas a reflexões sobre os espaços museais e o conhecimento
museológico, enfocando, sobretudo, uma perspectiva a partir do
Turismo, lançando mão de análises sob dimensões sociais,
antropológicas, históricas, políticas e econômicas, evocando,
transversalmente, os conceitos de cultura, memória, património e
educação na constelação das relações entre museus, turismo e
sociedade apresentadas pelos autores dos artigos publicados.
Como consequência positiva do dossiê de 2018, realizou-se em
novembro ainda no ano de 2018 o I Colóquio Internacional sobre
7
Museologia e Património – Volume 1

Museu, Patrimônio e Informação, organizado pela REDMUS/UFPB com


o apoio do CICS.NOVA/ESECS/IPLeiria, na cidade de João Pessoa,
Brasil.
A partir do êxito do colóquio, agregando cooperativamente
autores dos dossiês da RITUR como convidados, além de outros
especialistas reconhecidos internacionalmente, nasceu o projeto
destes livros tendo, por sua vez, como autores professores e
pesquisadores do Brasil, da Espanha e de Portugal, dedicados às áreas
da Museologia e do Património, com o objetivo primordial de reunir
um conjunto de textos científicos capazes de plasmarem a grande
variedade e riqueza do que é produzido sobre estas áreas nestes três
países.
Contar com a colaboração de uma série de profesores e
pesquisadores que pretendem refletir sobre as novas perspetivas da
atual Museologia e do Património é uma oportunidade única de entrar
nos novos espaços de exposição que todos os museus do mundo nos
oferecem tão prodigamente hoje. Ao mesmo tempo, permite-nos abrir
perspetivas sempre surpreendentes que nos oferecem tentativas de
definições distantes de conceitos obsoletos, enquanto nos apresentam
novas formas de desenvolver o Património Cultural. Isso é considerado
uma realidade sustentável dentro de um sistema integral que leva em
conta não apenas as políticas dos museus, mas também os fatores
econômicos, sociais e ambientais que favorecem seu gozo a partir de
novos conceitos como no âmbito seja, por exemplo, da Educação ou do
Turismo Cultural.
Talvez este seja um dos aspectos que melhor reflete a situação
atual da Museologia e sua relação com o Património. A teoria
museológica é essencial para saber para onde estão indo as tendências
neste campo, como também para saber o que é hoje o conceito de
Património e como é possível aproximar os cidadãos que escolheram a
partir dos museus e do Património Cultural experimentar as imensas
possibilidades que o mundo global as coloca à sua disposição.
Os autores que participam dos dois livros oferecem uma
amostra muito variada e enriquecedora de quais são os desafios da
Museologia atual e de como é necessário apostar em uma Museologia
sustentável que leve em consideração a promoção, valorização e
conservação do Património Cultural em conexão necessária prática e
político-epistemólogica com diversas disciplinas, como aqui são
8
Museologia e Património – Volume 1

encontradas: História, Sociologia, Antropologia, Ciência Política,


Turismo, Ciência da Informação, Artes Visuais, Tecnologias, dentre
outras. Para o leitor, descortinam-se aqui pesquisas e ensaios
contemporâneos sobre a Museologia e o Património inter, pluri, multi e
transdisciplinares na perspetiva do que é produzido na atualidade no
Brasil, na Espanha e em Portugal.
Visto tratar-se de publicação internacional, estes livros
apresentam em duas línguas oficiais, português e castelhano, os seus
capítulos originais. Ademais, todo conteúdo de cada capítulo, incluindo
as figuras, fotografias, imagens, gráficos e quadros analíticos, bem
como suas resoluções e normalização, são da responsabilidade dos
seus respetivos autores.
Ao final desta apresentação, fica o desejo a todos de uma
profícua leitura na perspetiva de seu uso e de sua ampla divulgação
como contribuição à evolução e futuro dos campos da Museologia e do
Património.

Fernando Magalhães
Luciana Ferreira da Costa
Francisca Hernández Hernández
Alan Curcino

9
Museologia e Património – Volume 1

LOS MUSEOS Y EL PATRIMONIO EN UNA SOCIEDAD LÍQUIDA

Francisca Hernández Hernández


Universitat Complutense de Madrid, España
https://orcid.org/0000-0003-1277-5519

1. El concepto de patrimonio en una sociedad globalizada

Los conceptos de Patrimonio Cultural y Museología han ido


evolucionando a lo largo del tiempo y se han adaptado a las nuevas
sensibilidades del mundo contemporáneo y al contexto sociocultural
actual. Es evidente que, ya desde las culturas antiguas se produjeron
una serie de obras artísticas que se han ido transmitiendo de
generación en generación y que, con el tiempo, han configurado lo que
conocemos como patrimonio cultural. Cuando nos referimos a dichas
producciones artísticas como el germen de lo que hoy denominamos
patrimonio cultural, no estamos afirmando que en ese tiempo se
estuviera pensando en dicho concepto porque éste no existía como tal.
Lo que estamos diciendo es que, tanto el coleccionismo como la
conservación de los bienes culturales, obedecían a un deseo de
atesorarlos y custodiarlos para que no se perdieran porque contenían
un valor simbólico y testimonial muy importante. De hecho, muchas de
las obras antiguas no se han conservado, hasta el punto de que llegaron
a desparecer por completo, mientras que otras nuevas se fueron
creando, aportando cada época sus propias producciones. Con ello no
estamos identificando la historia del coleccionismo con la historia del
patrimonio, sino que el hecho de coleccionar y de musealizar obras de
arte supondrá un eslabón más en la consolidación de lo que, mucho
más tarde, se definirá como patrimonio cultural.
No hemos de olvidar que las culturas antiguas no poseían la
idea de historia ni de memoria, por lo que no consideraban que sus
obras pudieran constituir en el futuro un testimonio de su pasado y, en
consecuencia, no consiguieron tener un concepto de patrimonio, tal y
como hoy lo entendemos. Será con la consideración del monumento
como testimonio del pasado cuando aquél adquiera su carácter
10
Museologia e Património – Volume 1

histórico (Choay, 1992, p. 22). Sin embargo, pensamos que “La


Revolución francesa supone un aldabonazo en la conciencia de los
ciudadanos, que experimentan una cierta ambigüedad en su actitud
frente al patrimonio. De hecho, por una parte, desean acabar con el
Antiguo Régimen y sus símbolos y, por otra, pretenden asumir y
conservar su propio pasado. De esta toma de conciencia surge el nuevo
concepto de nacionalización de los bienes culturales, que pasarán a
convertirse en bienes de interés público, cuyo conocimiento y disfrute
ha de estar abierto a todos los ciudadanos” (Hernández, 2002, p. 78). A
partir de ese momento, el patrimonio cultural ha tenido un desarrollo
dinámico que ha llegado hasta nuestros días y ha alcanzado un
reconocimiento universal. Surge una conciencia ciudadana de proteger
lo que hoy conocemos como patrimonio cultural, y que está constituido
por aquellos bienes de carácter histórico y artístico de propiedad de la
Corona, de la Aristocracia y de la Iglesia, que se convierten en
Patrimonio Nacional de todos los ciudadanos.
Una de las consecuencias inmediatas de dicha nacionalización
es la creación de los primeros museos públicos en París con el fin de
proteger las colecciones enajenadas y, al mismo tiempo, que pudieran
ser contempladas, no solo por las clases privilegiadas, como ocurría
hasta ese momento, sino que fueran accesibles a todos los ciudadanos.
Se abren al público el museo Central de las Artes (Louvre), el de
Historia Natural, el de Artes y Oficios y el de los Monumentos
Franceses. Por otro lado, no podemos olvidar que el British Museum se
crea en 1753, hecho que demuestra que la sociedad europea ha tomado
conciencia de que la difusión del saber es una responsabilidad pública.
A lo largo del siglo XIX fueron surgiendo bastantes museos, de manera
que este siglo ha sido considerado como el de la edad de oro de los
museos. En España, el término patrimonio es bastante reciente, puesto
que durante el siglo XIX solían utilizarse los términos “antigüedades”,
“monumento” y “objeto artístico”. El valor artístico y el valor de
antigüedad han sido siempre los valores que más se tenían en cuenta a
la hora de considerar cualquier elemento como patrimonio. El propio
término se utiliza por primera vez con la aprobación de la Ley de 13 de
mayo de 1933, denominándose Patrimonio Artístico Nacional. En dicha
ley se contemplan los bienes inmuebles y los objetos muebles que
tengan interés artístico, arqueológico, paleontológico o histórico, cuya
antigüedad sea no menor a un siglo, salvo algunas excepciones.
11
Museologia e Património – Volume 1

Los valores de antigüedad, artístico y monumental han dado


paso a nuevos valores más en consonancia con la sociedad del
momento, de manera que la visión antigua queda desfasada frente a la
nueva doctrina de los bienes culturales, contemplada en la Comisión
Franceschini (1966). En ella se amplía el concepto de patrimonio a
todos aquellos bienes que hagan referencia a la historia de la
civilización, que incluye cualquier manifestación, actividad o
testimonio del ser humano y de la naturaleza. Massimo Severo
Giannini, en su trabajo I benni culturali (1976), basándose en las
Conclusiones de la Comisión, elabora un concepto jurídico de bien
cultural destacando que, independientemente de la propiedad pública
o privada, éste tiene un valor material e inmaterial y cumple una
función social en cuanto que todos los ciudadanos tienen derecho a su
disfrute. Esta teoría servirá como referencia a la hora de elaborar la
Ley 16/1985, de 25 de junio, del Patrimonio Histórico Español.
Los bienes culturales se heredan de unas generaciones a otras,
al tiempo que cada generación va creando e incorporando otros
nuevos. A finales de los años 80 del siglo XX hemos asistido al
fenómeno de patrimonialización de productos culturales y naturales,
materiales e inmateriales del pasado y también contemporáneos. De
este modo, se amplía el campo patrimonial y se incluyen elementos que
definen e identifican a una sociedad en algún momento de su historia.
No sólo interesa el pasado, sino también la sociedad contemporánea y
su prospectiva de futuro. Al mismo tiempo, es importante destacar la
importancia que ha ido adquiriendo el patrimonio natural,
especialmente a partir de la Convención del Patrimonio Mundial,
Cultural y Natural de 1972, cuya simbiosis constituye el Patrimonio
Integral. Hoy la sociedad está muy sensibilizada ante los temas
medioambientales y la sostenibilidad del planeta, y los centros de
interpretación, ubicados en los espacios naturales protegidos, han
despertado gran interés en los visitantes al ofrecerles los medios
adecuados para su conocimiento y disfrute.
En nuestros días, dentro de una sociedad globalizada, el
concepto de patrimonio cultural posee, al igual que el del museo, un
valor polisémico puesto que abarca las diversas culturas y formas de
vida que se desarrollan en los diferentes países y pueblos con el
objetivo de preservar su memoria histórica, considerada como un
referente cultural de capital importancia. Según señala, en su artículo
12
Museologia e Património – Volume 1

1º, la Declaración Universal de la UNESCO sobre la Diversidad Cultural


(París, 2001), son diversas las formas en que la cultura de los pueblos
se va desarrollando a lo largo del tiempo y del espacio, diversidad que
se pone de manifiesto en la originalidad y pluralidad de identidades
que caracterizan y distinguen a las diferentes comunidades humanas.
El nuevo concepto de patrimonio cultural es muy extenso, y
comprende el patrimonio material e inmaterial, etnológico, histórico,
artístico, arqueológico, paleontológico, científico, las canciones, las
fiestas, los bienes inmuebles, el patrimonio natural y los paisajes
culturales. Además, no sólo se refiere al pasado sino también al
presente e incluso al futuro. Por esa razón, el patrimonio cultural
puede ser estudiado desde distintas perspectivas tanto por
historiadores, arquitectos, ingenieros, arqueólogos, museólogos,
restauradores, geógrafos, antropólogos, etnólogos y sociólogos, como
por otros científicos interesados en diferentes aspectos del mismo. A
partir del momento que una comunidad humana otorga un significado
y un valor cultural a unos determinados bienes culturales, ya sean
materiales o inmateriales, éstos entran a formar parte del patrimonio
cultural porque constituyen un aspecto fundamental de la creatividad
del ser humano. Y esto es así porque ponen de manifiesto la identidad
de un pueblo que trata de conservarla en la memoria a través de las
manifestaciones orales y de las tradiciones que han llegado hasta la
comunidad y que ésta ha elegido, dándole un valor significativo.
Podemos decir que el patrimonio es el reflejo de lo que los
seres humanos han creado en un tiempo y lugar determinado de su
historia y lo han considerado como algo específico de su propia
identidad, al tiempo que lo distinguen de otras comunidades con
identidad diferente. Refleja lo que la sociedad es y, al mismo tiempo, se
convierte en un lugar de crítica y de creación del conocimiento. De esta
manera, nos enfrentamos a un nuevo concepto de museo y de
patrimonio muy alejado de la idea tradicional que se tenía de ellos,
dando paso a una forma distinta de acercarnos a dichas realidades
patrimoniales. Ya no hablamos del patrimonio histórico artístico, sino
del bien cultural, ni prestamos toda la atención a los objetos del museo
para centrarnos fundamentalmente en las ideas que se pretenden
transmitir a los visitantes. El patrimonio ya no se dirige tanto al objeto
en sí mismo considerado, cuanto al sujeto dentro de la sociedad y a las
ideas y discursos que pueden formular a partir de aquel. El patrimonio
13
Museologia e Património – Volume 1

y la cultura son realidades abiertas y revisables que permiten múltiples


posibilidades de interpretación y que no pueden quedar encajonadas
en esquemas obsoletos del pasado, sin referencia a la sociedad que los
ha hecho posible. El patrimonio cultural es presentado y expuesto a la
mirada del público dentro y fuera del museo en un intento de dialogar
con la sociedad, asumiendo también otros significados que lo
enriquezcan y complementen, y que necesariamente han de
desembocar en un compromiso social.
Si el fenómeno de la globalización ha llevado a un modelo de
sociedad homogéneo y a un sistema económico del pensamiento único,
el nuevo concepto de museo y de patrimonio apuesta por favorecer el
desarrollo de la diversidad creando nuevos relatos donde sea posible el
diálogo y el encuentro entre las distintas culturas. Hasta ahora, tanto el
patrimonio como el museo nos han contado su propia historia, pero
hoy es necesario que se detengan y analicen el presente en que nos
movemos.
A la hora de reflexionar sobre la construcción del patrimonio
cultural y el proceso de patrimonialización, es preciso analizar qué
entendemos hoy por patrimonio y cómo éste se ha ido desarrollando a
lo largo del tiempo. Desde el punto de vista de la antropología, se
considera que el patrimonio es una construcción social lo que significa,
según Prats (1997, p. 20), que no se da en la naturaleza, ni es algo que
nos viene dado desde siempre porque constatamos que no se ha
producido en todas las culturas ni en todos los momentos históricos.
Esto lleva a que pueda ser considerado como un artificio ideado por
alguien en un momento y lugar concreto, con unas intenciones
precisas, lo que supone que, en cuanto resultado de la evolución
histórica, “es o puede ser históricamente cambiante, de acuerdo con
unos criterios o intereses que determinen nuevos fines en nuevas
circunstancias”, de manera que pueda hablarse de la “invención” del
patrimonio. Y esto vale tanto para el patrimonio cultural como para el
natural, territorial o paisajístico.
No obstante, para algunos autores, el hecho de que la
antropología no haya tenido en cuenta la singularidad interdisciplinar
que requiere la protección del patrimonio, ha llevado a que, a la hora
de definir algunas de sus características, éstas resulten “discutibles o
controvertidas”. Como indica Castillo Ruiz (2007, p. 6-7), entre las
distorsiones que pueden darse, se encuentra la acentuación por parte
14
Museologia e Património – Volume 1

de la Antropología de “su condición de construcción social”, que nos


transmite “una idea de variabilidad, inestabilidad y recreación
constante” que no tienen en cuenta uno de los postulados
fundamentales que conforman el concepto, como es la continuidad que
favorece la ampliación de la realidad patrimonial protegida. Y eso, a
pesar de que la historicidad es una característica fundamental del
patrimonio histórico. Otra distorsión que introduce la antropología es
“la confusión sobre la dimensión subjetiva o humana de los objetos a
proteger”, dado que se olvida que la existencia del patrimonio histórico
no se basa en los objetos, sino en el sujeto y en el significado que esos
objetos tienen para los ciudadanos en la actualidad. Una última
cuestión discutible introducida por la antropología, a partir del
reconocimiento que se ha dado al patrimonio inmaterial, es la negación
de la discontinuidad entre pasado y presente, lo que supone el
reconocimiento de que la protección ha de entenderse como una
actividad que se realiza en el presente sobre los bienes del pasado, en
la medida que éstos interesan a los ciudadanos de hoy.
Es evidente que el concepto de patrimonio no se identifica con
la historia de los museos ni de sus colecciones, y que cuando estamos
hablando de la historia del patrimonio cultural no lo identificamos con
la de los objetos que forman parte del mismo (Pomian, 1996, p. 93),
como si no tuvieran ninguna relación con el contexto social, político,
económico e ideológico en el que tiene lugar su aparición. Si
contemplamos las diversas formas de acumulación de objetos, obras de
arte y monumentos que se han dado a lo largo de la historia,
constatamos una gran pluralidad de motivaciones y de formas de
plasmar dichas realidades, que poco tienen que ver con nuestra actual
concepción de patrimonio. Sin embargo, cuando nos referimos a ellas
lo hacemos conscientes de que nos encontramos ante una manera de
entender la realidad muy distinta a la que tenían en la edad antigua, en
el medioevo o en el renacimiento. Pero eso no significa que debamos
caer necesariamente en el “presentismo” ni en el “etnocentrismo”, ni
mucho menos que, todos los “tratados museístico-patrimoniales”
caigan en la “tentación historicista”, tal y como afirma Llorenç Prats
(1997, p. 21). La historia no nos evita realizar un esfuerzo por
interpretarla, explicando cuáles han sido las causas que han hecho
posible su evolución y su desarrollo, más allá de los meros cambios que
hayan tenido lugar o de la continuidad que se ha podido dar a lo largo
15
Museologia e Património – Volume 1

del tiempo. Según el mismo Prats (1997, p. 22 y 25), el factor


determinante que define lo que entendemos hoy por patrimonio, no es
su carácter de construcción social, ni su genealogía, sino, más bien, “su
carácter simbólico, su capacidad para representar simbólicamente una
identidad”. Y eso se da a partir del movimiento romántico del siglo XIX
en el que surgen nuevas identidades que ponen de relieve el “carácter
nacional, pannacional y colonial” de dichas representaciones.
Por todo ello, constatamos que la musealización sirve como
instrumento para que tanto los objetos del museo como los distintos
elementos patrimoniales, ya se trate de instrumentos raros, tesoros o
sitios históricos, ocupen un lugar seguro dentro del patrimonio cultural y
natural. Todos ellos son fruto del esfuerzo y la creatividad de una
determinada sociedad y, por consiguiente, deben ser preservados. Esto
significa que no solamente el museo puede preservar los testimonios de
la realidad, sino que también otras instituciones pueden hacerlo. A este
respecto, Tomislav Šola (1982, p. 7) afirma que para él es indiferente si la
teoría del funcionamiento del museo ha de llamarse museología o
museografía, siempre que se establezca con claridad el contenido de
dicha disciplina. De ahí que utilice el término de heritology
(patrimoniología) y se pregunte por qué no llamar a un concepto tan
amplio como es el de museología, una disciplina que ya no está centrada
solo en los museos, por el nombre de heritology.
Recientemente, el mismo Šola (2015) afirmaba que si se propuso
abandonar el término museología fue porque lo consideraba
“improductivo y confuso”, pero que tanto ingleses como franceses,
alemanes y estadounidenses lo rechazaron porque pensaban que el
término no era acertado desde el punto de vista lingüístico y, además,
carecía de relevancia para la profesión museística. Sin embargo, Šola hace
notar que, a partir del nacimiento de la patrimoniología, han ido
surgiendo muchos y variados términos –nueva museología,
ecomuseología, economuseología, museología social, teoría general del
patrimonio, etc.- que son el reflejo de la frustración que se ha
experimentado con la museología. Y añade que su intención al utilizar el
término heritology, y su lógica aplicada a los museos, no ha sido sino “una
provocación que adquiría el aire de herejía y de no-conformismo”.
Convencido de que la educación profesional debe ser lo más cercana
posible a la práctica, cree que no es bueno dividir el mundo entre
realizadores y pensadores. Por eso, insiste en que la utilización de los
16
Museologia e Património – Volume 1

términos “heritology” y “mnemosophy” deberían servir para encontrar


una definición abierta y utilizable del dominio del patrimonio y sus
distintas formas de organización.

2. Los museos y el patrimonio

Hoy observamos que tanto las funciones del museo como el


mismo concepto de patrimonio han experimentado unos cambios tan
profundos que los museos se han visto en la necesidad de afrontar los
nuevos desafíos que una sociedad líquida y posmoderna les ha puesto
ante sí. Ya no le basta al museo recolectar, conservar y exponer sus
colecciones, sino que está llamado a convertirse en un espacio de
comunicación y encuentro donde los objetos son considerados como
elementos que ponen de relieve las características de una determinada
comunidad que, a través de sus actividades culturales, ha puesto de
manifiesto su propia identidad colectiva y pretende transmitirla a las
generaciones futuras.
La historia del patrimonio y de los museos demuestra que éstos
están íntimamente relacionados entre sí y que dicha relación se ha ido
consolidando con el tiempo, hasta el punto de que hoy se les considera
como elementos activos que contribuyen a cambiar la realidad social
en la que están insertos. Los museos no hacen sino reflejar la cara más
visible del patrimonio y son el lugar donde se expone y manifiesta
abiertamente la memoria de los pueblos. Ésta no es una realidad
cerrada, sino que está abierta a nuevos enfoques que tienen que ver
más con la manera en que las personas se relacionan con los elementos
patrimoniales desde el presente, que desde el mero deseo de rescatar
del olvido un pasado, por muy floreciente que éste haya sido. Si en
nuestra sociedad posmoderna las culturas y las estructuras sociales se
caracterizan por su diversidad e inestabilidad, donde todo se vuelve
más flexible, volátil y diverso, es normal que las instituciones
patrimoniales y museísticas se hayan visto afectadas a la hora de elegir
unos criterios concretos para llevar a cabo el proceso de selección de
aquellos bienes culturales que mejor expresen su identidad colectiva y
se hayan sentido dubitativos a la hora de tener que decidir qué bienes
debían o no ser escogidos.
Este tema fue tratado en el XIII Congreso sobre El patrimonio
cultural en las sociedades líquidas: qué bienes culturales conservar en la
17
Museologia e Património – Volume 1

contemporaneidad, organizado por la Universidad del País Vasco, en


el Oiasso Museoa y el San Telmo Museoa, que se celebró entre los días
19 y 20 de octubre de 2017. A dicho congreso fue invitado Hugues de
Varine, quien respondió en su blog a la invitación a participar en el
mismo diciendo que, si bien él no estaba muy al corriente de las
“sociedades líquidas”, le parecía que la pregunta sobre "qué bienes
culturales conservar en este momento" resultaba muy clarividente y
muy oportuna en un momento en el que, tanto las instituciones como
los profesionales del patrimonio, desearían conservar y restaurar
todos los bienes en su estado más “auténtico”. Sin embargo, él opinaba
que la pregunta se podría haber formulado de otra manera insistiendo
en qué bienes culturales se consideran más útiles y, en consecuencia,
deberían ser conservados desde una perspectiva de desarrollo
sostenible, aunque este hecho no se considere muy líquido.
Por eso, resulta imprescindible considerar cuáles han de ser los
criterios patrimoniales que se han de seguir en una sociedad líquida
como la nuestra. Podemos preguntarnos cómo han de abordar los
conservadores, las instituciones patrimoniales y los colectivos sociales
los procesos de elección del patrimonio cultural. Y también señalar qué
criterios patrimoniales de elección se pueden emplear en las actuales
sociedades líquidas. Si hoy nos encontramos dentro de una sociedad
que posee una inmensa cantidad de objetos y de elementos muy
parecidos, que muy rápidamente quedan obsoletos, será necesario
plantearse qué bienes culturales se han de seleccionar y cuáles no. Y
habrá que ver qué función han de desempeñar los museos y los
espacios patrimoniales a la hora de elegir los bienes culturales dentro
de la sociedad líquida. Al mismo tiempo, tendrán que plantearse el
modo de abordar y gestionar el patrimonio cultural, sobre todo cuando
éste va perdiendo el significado de su propia identidad.
Cuando un objeto es seleccionado para ser expuesto en el
museo lo es porque posee un significado especial para la sociedad, en
cuanto que le aporta una serie de conocimientos que le ayudan a
comprender mejor el relato que se le quiere contar. El objeto en sí
mismo considerado y la información que sobre él se nos proporciona
no es suficiente para considerarlo como un objeto significativo, sino
que es preciso contextualizarlo de tal manera que pueda ser
comprendido e interpretado de forma correcta por el público que lo
contempla. Por esa razón, cuando se programa una exposición, se ha de
18
Museologia e Património – Volume 1

tener en cuenta que no se trata de escoger numerosos objetos para ser


expuestos uno detrás de otro, sino que es preciso seleccionar aquellos
que mejor puedan contribuir a la comprensión del discurso que se
desea transmitir. En el proceso de elección de los objetos, los
responsables de los museos han de estar muy atentos a qué es lo que la
sociedad del momento está demandando para responder
adecuadamente a sus necesidades e inquietudes. Tendrán que evitar
anteponer sus intereses políticos, académicos o económicos a las
expectativas de una sociedad en continuo cambio y que no se conforma
con cualquier cosa que se le ofrece. Por otra parte, deberán combinar
de manera equilibrada las exigencias de una sociedad globalizada, en la
que abundan los objetos que son considerados universales y que
cambian con suma rapidez, con los pertenecientes a grupos más locales
y particulares, que son el reflejo de sociedades más propensas a
conservar su identidad.
Pero, ¿qué sucede cuando el pasado y la memoria colectiva,
según afirma Bauman, van perdiendo importancia para la sociedad y
las instituciones, y los bienes culturales que ya existían dejan de ser
significativos y pierden todo su interés? ¿Han de seguir valorándose de
igual modo y se han de aportar los medios económicos necesarios para
su conservación y restauración, o se han de retirar a los almacenes de
los museos hasta que vuelvan a ser reclamados por la sociedad que hoy
los ignora? Por otra parte, ¿cómo hemos de situarnos ante las
iniciativas de Marcel Duchamp cuando, en 1914, creó los ready mades,
objetos de la vida cotidiana que eran separados de su entorno natural
para exponerlos como obras de arte? ¿Está justificado que el arte y la
belleza se puedan encontrar en lo fugaz y superficial y no en lo
permanente y lo sublime? Cuando Duchamp escoge la Fuente como una
obra de arte, que expone a la vista de todos, no nos está diciendo que el
urinario colocado al revés sea una obra extraordinaria, sino que ha
sido producida en serie y que, por el simple hecho de haber sido
elegida por el artista, la convierte en una obra de arte revolucionando
la idea tradicional que de éste se tenía. Así tiene lugar la
desacralización del arte y nos adentra en la dinámica del museo
líquido, que no duda en acoger cualquier manifestación de la vida
ordinaria para que sea expuesta en un momento determinado, aunque
pueda ser retirada o sustituida por otra según se crea conveniente. Lo

19
Museologia e Património – Volume 1

importante no es la obra en sí, sino el significado que se le pretende


dar, independientemente de su valor artístico o su ausencia del mismo.
Pero también constatamos que están entrando en los museos
muchos de los objetos que fueron utilizados hace unas décadas, como
las cintas de cassette, los teléfonos de marcación de dial giratorio, los
magnetófonos Telefunken o los discos de vinilo, y que hoy ya han
quedado en desuso. Un ejemplo lo tenemos en la empresa digital
alemana Jung von Matt que ha creado el Museo de los Objetos Obsoletos
a través de un canal de YouTube con la intención de que los visitantes
puedan contemplar una serie de vídeos donde se muestran diferentes
aparatos y electrodomésticos de los años 50 o 60 del siglo pasado.
Cuando una determinada sociedad escoge una serie de bienes
materiales e inmateriales y los asume como exponentes simbólicos de
su propia cultura, éstos pasan a formar parte del patrimonio que es el
reflejo de la forma de entender el mundo. Cada sociedad elige los
elementos culturales que desea resaltar como propios y desecha otros
que, aunque igualmente válidos, no estima que sean los más aptos para
dar a conocer sus peculiaridades culturales. Por ese motivo, la
selección de objetos puede verse modificada según los intereses de
quienes han de conservarlos. Pero ¿quién escoge, dentro de dicha
sociedad, los elementos que han de considerarse exclusivos,
significativos y representativos desde el punto de vista de la identidad?
Si partimos de la idea de patrimonio como una construcción ideológica,
social y cultural, observamos que es la sociedad, o más bien, quienes
detentan el poder político y económico, así como el control cultural,
académico e intelectual, los que deciden qué criterios se han de seguir
a la hora de seleccionar aquellos bienes que mejor pueden representar
la manera de entender la realidad de un pueblo o etnia. Estaríamos
hablando de un patrimonio que posee un carácter oficial y selectivo en
el que no intervienen los ciudadanos, pero también existe la
posibilidad de que éstos participen activamente en la creación de un
patrimonio independiente y extraoficial, expresado en diferentes
prácticas culturales que poseen un significado y valor especial para
ellos, aunque, con el tiempo, sea preciso que se vea apoyado por las
instancias oficiales si se quiere consolidarlo y que no desaparezca
(Prats, 1997, p. 35).
Además, existen asociaciones privadas y organizaciones no
gubernamentales que, desde una visión posmoderna, están
20
Museologia e Património – Volume 1

convencidas de que las instancias oficiales y los estados han de


traspasar competencias y responsabilidades a la sociedad civil. Y, en
consecuencia, apuestan por colaborar estrechamente en proyectos de
creación de nuevos patrimonios que tienen como referencia aspectos
significativos de la vivencia de comunidades, cuya cultura corre el
riesgo de desaparecer porque viven en situaciones de precariedad o
cuyo entorno natural se encuentra desprotegido. Un ejemplo lo
tenemos en el Centro Internacional para la Conservación del
Patrimonio (CICOP), situado en San Cristóbal de La Laguna (Tenerife),
una institución no gubernamental cuyo objetivo primordial es la
cooperación internacional en torno al Patrimonio Físico de los pueblos.
Se trata de la patrimonialización de la cultura de la solidaridad a través
de la realización de diversas actividades que potencien su singularidad
como comunidad.
Eso significa que cuando un objeto, monumento o fenómeno es
reconocido como digno de ser conservado, lo es no precisamente
porque todos lo reconozcan como tal, sino porque alguien cree que
responde mejor a la ideología que se desea resaltar frente a los demás.
Ante la diferencia, se pretende destacar aquello que es específico de
una comunidad y que la distingue de cualquier otra, de manera que
pueda ser reconocida socialmente como distinta. Pero la identidad no
deja de ser una forma de imaginación y representación de la ideología
subyacente que es la que sustenta cualquier posible lectura de la
misma.
Muchos son los soportes donde la memoria puede
materializarse y poner de manifiesto cuál es el pensamiento colectivo
de una sociedad en un momento determinado de la historia. A través
de textos, gráficos, narrativas, monumentos, obras de arte, fiestas,
canciones, celebraciones, mitos, sitios arqueológicos y museos, todos
ellos importantes soportes de la memoria, podemos llegar a entender
el porqué de muchas de las actuaciones del ser humano a lo largo del
tiempo. Porque, sin memoria, se pierde la identidad individual y
colectiva. Sin embargo, hoy nadie pone en duda que los museos son
lugares y “soportes privilegiados” de la memoria (Maceira Ochoa, 2012,
p. 20), de manera que es necesario, más que nunca, preservarla ante
una sociedad globalizada. Por eso, también el patrimonio está siempre
en constante movimiento y necesita redefinirse continuamente para
seguir vivo, pero solo perdurará en la medida que “los individuos de la
21
Museologia e Património – Volume 1

comunidad cultural recuerden y recreen su significado en cada periodo


histórico” (Arizpe, 2006, p. 254).
Hemos de admitir que no existe una única memoria social en la
que las sociedades puedan reconocerse, otorgando al pasado un
sentido único, sino que, como señala Gilda Waldman (2006, p. 17),
existen “memorias en conflicto” que no se ponen de acuerdo a la hora
de procesar y de dar sentido al pasado, sobre todo cuando éste hace
referencia a situaciones de conflicto, traumas sociales o identidades de
género. Ahí tenemos el ejemplo de la interpretación tan controvertida
que se hace de la guerra civil española desde el punto de vista
arqueológico e histórico. Eso explica que los museos ya no tienen como
única misión conservar los vestigios del pasado, sino que están
llamados a convertirse en instrumentos de transformación y
reinterpretación de la realidad social y cultural del momento histórico
en que viven. De ahí que, en nuestros días, se considere más
importante pensar, imaginar e inventar el museo que trabajar en él,
como muy acertadamente ha señalado Tereza Scheiner (2008, p. 32) al
afirmar que “El museólogo hoy no es el profesional que trabaja en los
museos, sino el que piensa el museo”.
Esto no significa que no se valore el trabajo realizado por los
profesionales de los museos, ni que no se reconozca el valor del
esfuerzo realizado cada día por inventariar, restaurar, conservar y
difundir el patrimonio cultural del que son depositarios. Por el
contrario, lo que se quiere indicar es la necesidad de que dichos
profesionales estén dispuestos a cambiar sus esquemas mentales
respecto al museo, dejen de lado determinadas prácticas museológicas
que han quedado obsoletas y adopten otras más renovadoras y en
consonancia con la sociedad posmoderna en la que nos toca vivir. La
resistencia a cambiar los antiguos modelos de actuación es debida, en
muchos casos, al miedo que se experimenta ante los cambios
acontecidos dentro de la sociedad y que les lleva a sospechar que
puedan desvirtuar la esencia del museo. Nada más lejos de la realidad,
porque el acceso a las nuevas tecnologías de la información y de los
medios virtuales nos está ofreciendo la posibilidad de tener acceso al
conocimiento de una manera totalmente distinta, posibilitando la
pluralidad de discursos frente al monopolio del discurso único que,
durante mucho tiempo, se ha dado en la museología.

22
Museologia e Património – Volume 1

Dado que la cultura es diversa, como lo son los diferentes


pueblos en la que ésta se manifiesta, los museos tienen como tarea
primordial explicar el significado del patrimonio cultural del que son
depositarios, revitalizándolo y haciendo que sea valorado por toda la
sociedad. Ésta ha de considerarlo como un elemento a su servicio y, al
mismo tiempo, ha de involucrarse en su conservación y difusión. Los
museos están llamados a resignificar el patrimonio, recuperando su
contexto original y haciéndolo presente como una realidad viva que
tiene algo que comunicarnos en el presente. Podemos decir que hoy
cualquier realidad que tenga que ver con el ser humano, y con el
espacio natural en el que éste se mueve, puede ser considerado como
un elemento patrimonial y, en consecuencia, convertirse en objeto de
estudio museológico. La museología tiene como tarea preocuparse por
el patrimonio cultural y natural, material e inmaterial, mueble e
inmueble. De este modo, ha surgido una nueva forma de afrontar el
patrimonio cultural, desde una visión pluralista y diversificada, a
través de la creación de los museos de sitio, los centros históricos, los
centros de interpretación, los ecomuseos, los museos comunitarios y
los parques temáticos, naturales o arqueológicos.
Todos ellos nos muestran aspectos importantes que tienen que
ver con el patrimonio en cuanto que reflejan diferentes aspectos de la
vida de los ciudadanos en su medio social, cultural y medioambiental, y
que han de ser afrontados de manera integral. Eso significa que la
museología no puede desentenderse de la manera en que se gestionan,
preservan y transmiten dichos patrimonios. Además, ha de respetar
siempre las diferentes identidades culturales de los pueblos a la hora
de seleccionar aquellos objetos o elementos simbólicos que mejor
pueden servir para expresar la idea que tienen del mundo y de su
futuro como impulso de transformación dentro de él. Porque la cultura
es diversa, como lo son los diferentes pueblos. Los museos tienen como
tarea primordial explicar el significado del patrimonio cultural del que
son depositarios, revitalizándolo y haciendo que sea valorado por toda
la sociedad, al tiempo que lo convierten en un elemento a su servicio y,
al mismo tiempo, la alientan para que se involucre en su conservación
y difusión.

23
Museologia e Património – Volume 1

3. Los museos en una sociedad líquida

Zygmunt Bauman utiliza el concepto de “modernidad líquida”


para indicarnos que la realidad de nuestros días está experimentado
un cambio continuo y permanente, y es precisamente en esta época
moderna donde tiene lugar el cambio de las formas sociales sólidas y
estables a otras que han dejado de serlo (Bauman, 2013a, p. 17). Al
estudiar los fenómenos de modernidad y posmodernidad que han
tenido lugar en nuestra historia, Bauman se sirve de dos metáforas que
ponen de manifiesto la realidad que hay detrás de cada una de ellas. Se
trata de la “modernidad sólida” y de la “modernidad líquida”. La
primera, hace referencia a un modo de vida estable y consolidado,
donde todo estaba establecido según un orden predeterminado y
existían unos valores que nadie se atrevía a poner en tela de juicio. La
segunda, por el contrario, propone un estilo de vida donde prima lo
privado, la falta de vínculos estables y un cierto individualismo. En su
libro Tiempos líquidos: vivir una época de incertidumbre (2007a), el
autor explica cómo la transición de la modernidad sólida ha ido
evolucionando y perdiendo consistencia hasta el punto de que la
sociedad ya no quiere vivir sometida a unas determinadas normas. Por
el contrario, se va adaptando a las necesidades que la modernidad le
impone en cada momento y acepta caminar desde la incertidumbre, la
movilidad continua y la relatividad de los valores, características todas
ellas de la modernidad líquida. Ya no existen proyectos para toda la
vida, sino que cada momento se vive como si fuera el único válido. No
hay necesidad de que el futuro sea para siempre porque necesita ser
construido y deconstruido continuamente.
Estos cambios han afectado también a los museos que se
encuentran dentro de esa sociedad líquida que les obliga a estar en un
continuo proceso de transformación, donde ya nada parece sólido y es
preciso estar abiertos a todo lo novedoso que llame la atención del
público. No es de extrañar que el Musée des Civilisations de l’Europe et
la Méditerranée (MuCEM), situado en el Fort Saint Jean de Marsella,
haya adoptado la decisión de sustituir las colecciones permanentes por
las nuevas salas de exposiciones, donde se renuevan continuamente las
colecciones dando una visión de actualización permanente (González
Alcantud, 2018, p. 16). Inaugurado el museo en el 2013, no solo se
centra en la cultura tradicional francesa, sino que se amplía a las
24
Museologia e Património – Volume 1

culturas de los países mediterráneos del pasado y del presente,


analizadas desde un punto de vista multidisciplinar, al tiempo que elige
los temas de las exposiciones partiendo del interés que despiertan en
el público. Los museos de sociedad son los que mejor reflejan el
modelo de sociedad liquida. La mayor parte de ellos se han ido
renovando a partir de la década de los 90 del siglo pasado e,
independientemente de su distinto origen, se han centrado en las
creaciones contemporáneas del arte, la música, el cine, y también en los
problemas sociales del momento (Geert, 2018).
Actualmente, tanto las funciones del museo como el mismo
concepto de patrimonio han experimentado unos cambios tan
profundos que los museos se han visto en la necesidad de afrontar los
nuevos desafíos que una sociedad líquida y posmoderna les ha puesto
ante sí. Ya no le basta al museo documentar, conservar y exponer sus
colecciones, sino que está llamado a convertirse en un espacio de
comunicación y encuentro donde los objetos son considerados como
elementos que ponen de relieve las características propias de una
determinada comunidad que, a través de sus actividades culturales,
expresa su propia identidad colectiva y pretende transmitirla a las
generaciones futuras. Si en nuestra sociedad posmoderna las culturas y
las estructuras sociales se caracterizan por su diversidad e
inestabilidad, donde todo se vuelve más flexible, volátil y diverso, es
normal que las instituciones patrimoniales y museísticas se hayan visto
afectadas a la hora de elegir unos criterios concretos para llevar a cabo
el proceso de selección de aquellos bienes culturales que mejor
expresen su identidad colectiva, y se hayan sentido dubitativos a la
hora de tener que decidir qué bienes debían o no ser seleccionados.
Pero, ¿qué pensar del arte y de la cultura en la modernidad
líquida? Bauman trata el tema en su artículo Arte, muerte y
postmodernidad incluido en el libro Arte, ¿líquido? (2007b) y en La
cultura en el mundo de la modernidad líquida (2013a). En ambos
escritos la teoría de la modernidad líquida es contemplada desde el
campo del arte contemporáneo. Y, independientemente de que se le
puedan poner muchas objeciones por parte de algunos críticos, es
conveniente saber qué es lo que piensa y cómo lo justifica. Para
Bauman (2007b, p. 15-16) existe una estrecha relación entre el arte y
el tema de la inmortalidad, que ha sido tratado en la teoría del arte de
dos maneras diferentes. Por una parte, nos encontramos con Otto Rank
25
Museologia e Património – Volume 1

quien opinaba que el origen del arte se encuentra en el deseo


individual de inmortalidad del artista, mientras que, por otra, Hannah
Arendt piensa que solo la obra es inmortal a condición de que no se la
convierta en algo útil y funcional.
El arte no pretende otra cosa que hacernos olvidar la propia
muerte. Pero cuando el arte es considerado como un objeto más de
consumo, pierde su carácter de inmortalidad y, al igual que los objetos
desaparecen cuando se consumen y “pierden toda o parte de su
sustancia”, así también el arte desaparece no físicamente, pero sí en
cuanto que decae su interés y pierde su “capacidad de divertir, de
suscitar deseo y emociones placenteras” (Bauman, 2007b, p. 20-21).
Bauman opina que la obra de arte solo puede recuperar su capacidad
de emocionar si es “rescatada de la grisácea cotidianeidad y convertida
en un acontecimiento único”, que es lo contrario de lo eterno. Si por
una parte, las obras de Matisse, Vermeer, Picasso y otros artistas han
recobrado su "capacidad de divertir", sirviéndose de una publicidad
exhaustiva de las exposiciones excepcionales que atraen a las masas,
por otra, constatamos cómo los públicos que visitan los museos de
manera habitual muestran tan solo un discreto interés por las obras
maestras que pueden contemplarse cada día. Eso significa que, si el
arte desea convertirse en un objeto de deseo y tener una cierta
relevancia en la sociedad posmoderna del consumo, ha de manifestarse
como un acontecimiento que tiene lugar en un tiempo concreto
independientemente de su posterior valor extra-temporal. En
definitiva, para Bauman (2007b, p. 22), “La cuestión es dilucidar si el
arte que se acomoda a esta exigencia, que satisface la necesidad de
acumular sensaciones sigue siendo fiel a su función, a la función que
tuvo en tiempos pre-modernos y modernos: revelar la dimensión
trascendental del estar-en-el-mundo, traer al mundo de lo pasajero y lo
temporal elementos que resisten al paso del tiempo y desafían la
norma universal del envejecimiento, el olvido y la desaparición”. Pero,
tal vez, de lo que se trata es de ver si, una versión posmoderna de la
“inmortalidad momentánea” y experimentada como un instante de
sensaciones, nos está anunciando la decadencia y la muerte de la
función tradicional del arte y, por tanto, también del museo tradicional.
En todo caso, observamos que la sociedad de consumo está más
interesada en el arte del presente que en el del pasado, razón por la
que las exposiciones que tratan de reflejar la sociedad actual están
26
Museologia e Património – Volume 1

teniendo, en ocasiones, más éxito que las que se centran en el arte


antiguo, cuyos valores están más consolidados que los actuales.
Conscientes de que nos movemos dentro de una sociedad consumista,
los artistas utilizan sus obras como crítica de dicha sociedad. En
algunos museos y exposiciones de arte contemporáneo se exponen
diferentes obras con el propósito de mostrar las inquietudes
detectadas en la sociedad actual y, al mismo tiempo, los artistas tratan
de indagar y revisar la historia pasada, presente y futura. Varios son los
ejemplos que podemos poner. La fotógrafa Stefanía Beretta presentó
el año 2002, en la ciudad de Locarno, la exposición Trop con 30
imágenes de desechos y desperdicios en su intento de poner ante la
vista de los visitantes la idea de “exceso” relacionada con nuestra
forma consumista de vivir. A través de sus fotografías, realiza una
especie de arqueología del presente, al mostrarnos cómo los desechos
pueden servirnos para construir nuevos lugares de habitación hasta
el punto de que mucha gente vive encima de los restos y las sobras
que han sido consumidos.
Virginia Torrente organizó y supervisó Arqueológica, una
exposición que tuvo lugar en Matadero Madrid en el 2013, en la que se
muestran los ocho sitios-específicos creados y relacionados con la
arqueología y la antropología contemporánea. Federico Clavarino, a
través de la fotografía, nos habla de la identidad y del significado de los
objetos, al tiempo que trata de buscar las huellas del pasado en el
presente, sin dejar de mostrarnos las múltiples contradicciones con las
que nos encontramos en nuestro tiempo. En su exposición The Castle,
de 2015, nos muestra cómo, al igual que la arqueología parte de los
objetos y fragmentos que encontramos y procuramos construir o
reconstruir un mundo, así también con la fotografía recogemos una
serie de imágenes con las que tratamos de dar sentido a nuestra
historia. Pero lo importante es que estamos haciendo una arqueología
del presente mientras la vivimos.
Óscar Carrasco es otro de los fotógrafos que en sus
exposiciones trata el tema de la arqueología del presente o del pasado
reciente, al presentarnos una serie de lugares construidos que hoy se
han deteriorado y convertido en ruinas. En sus Cartografías del olvido
expuso, en 2016, una serie de lugares, inmuebles, rincones y paisajes
periféricos que han sido abandonados dentro de la ciudad de Madrid y
que ya nadie se fija en ellos, pero que contienen un importante valor
27
Museologia e Património – Volume 1

simbólico para sus ciudadanos. Un último ejemplo de artistas de la


fotografía lo tenemos en la exposición Not a retrospective, de la
fotógrafa y cineasta inglesa Nadia Lee Cohen, que estará desde el 22 de
febrero hasta el 12 de mayo de 2019 en el Centro de creación y
producción cultural contemporáneo de La Térmica, en la ciudad de
Málaga. La autora, que ya expuso su obra en la National Portait Gallery
de Londres, a través de una selección de sus fotografías, en las que
todas son de mujeres, y de algunos de sus audiovisuales, pretende
hacer una crítica a la sociedad de consumo, al desenfrenado culto al
cuerpo, a la violencia o a la frivolidad de la belleza que se vive en
nuestros días.
Toda creación artística se mueve bajo la influencia de la
transitoriedad e incertidumbre que caracterizan la sociedad líquido-
moderna, y si la obra de arte cambia es debido al miedo que
experimenta ante la idea de permanencia. Sin embargo, Anna Zamora
(2009, p. 171), nos recuerda que “la metáfora de la liquidez no es del
todo innovadora en el campo de la sociología del arte”. Según Bauman
(2007c, p. 42), en la época de la modernidad líquida los artistas ponen
toda su atención en los “acontecimientos pasajeros: acontecimientos
de los que, de entrada, se sabe que serán efímeros”. El tiempo ha sido
fuente de inspiración para las artes plásticas. Ahí tenemos cómo los
anglosajones acentúan el valor de “la permanencia orgánica de las
composiciones de objetos inanimados “still life” o bodegones”. Y la
misma fotografía, considerada como arte y como memoria de una
determinada realidad social, nos permite congelar el tiempo.
Para Zamora (2009, p. 171-172), “la hipótesis sobre la fluidez
del arte es poco convincente desde el punto de vista institucional”
porque, dado que “los museos, galerías de arte y casas de subastas son
organizaciones que limitan la entrada a los artistas noveles”, se puede
concluir que “el marco institucional de y para las Bellas Artes no parece
líquido, sino más bien sólido”. Es más, cuando Bauman describe los
museos como “cementerios del arte” (2007c, p. 48), en los que el
aprendizaje y el desarrollo de la creatividad artística serían totalmente
independientes de aquellos, lo que nos está ofreciendo es una
descripción bastante ambigua y parcial de los mismos. Como señala la
misma autora (Zamora, 2009, p. 172), los museos no solo se convierten
en el primer punto de encuentro para aquellas personas que no son
especialistas, sino que también aportan “una dosis de capital cultural y
28
Museologia e Património – Volume 1

económico” a las ciudades en las que se encuentran. Y, en cuanto a la


transitoriedad del arte, tratado por Bauman y Jaukkui (2007, p. 71ss.),
se ha de resaltar que las exposiciones temporales y las ferias de arte
contribuyen a dinamizar el campo del arte y de la cultura y son un
complemento significativo de las colecciones permanentes.
En un mundo en el que las personas sienten la urgente
necesidad de experimentar nuevas y diferentes sensaciones a cada
momento, las exposiciones temporales pueden servir para crear
nuevos discursos que ofrezcan otras posibilidades de acercarse a
aquellas obras de arte que, desde siempre, forman parte indisociable
de las colecciones permanentes. Se trata, por tanto, de renovar el
imaginario del contenido del museo sirviéndose de unas prácticas
expositivas actualizadas. Lo mismo sucede con la idea de la
temporalidad de la obra que, pese a que algunos autores las destruyan,
la norma general es que pervivan en el tiempo. Zamora (2009, p.73)
rebate que las obras de arte contemporáneo se creen para,
posteriormente, destruirlas y recuerda que, aunque así fuera, es
preciso recordar que “la destrucción de obras no es una novedad del
siglo XXI, sino una práctica histórica que se da en diversas
comunidades, como la del pueblo Zuni” en el Estado de Nuevo México
(Estados Unidos). En ella, existe la tradición de regenerar los Ahayu:da,
divinidades de la guerra representadas en figuras de madera cuyos
líderes religiosos se encargan de realizar (Ferguson, Anyon y Ladd,
1996). Y, por otra parte, si es verdad que los modos de producción y
difusión cultural experimentan hoy día cambios frecuentes, no puede
deducirse de ello que acentuar la importancia de la transitoriedad del
arte deba considerarse como “una característica exclusiva de la
sociedad líquido-moderna”. En Valencia tenemos el ejemplo de las
fallas, que se celebran con motivo de las fiestas de San José. Durante
todo el año, las diferentes cofradías o gremios se dedican a construir
sus figuras o ninots, auténticas obras de arte efímero en las que se hace
una crítica política y social del momento. Una vez finalizadas serán
quemadas durante la Nit de la Cremà, salvo una que es elegida al ser
premiada y que se conservará en el museo de los ninots, para volver al
año siguiente a construir otras nuevas que contribuyan a realzar las
fiestas populares.

29
Museologia e Património – Volume 1

Dentro del fenómeno de los museos efímeros, muy en la línea


de la sociedad líquida, se está dando un cambio significativo con la
creación de instalaciones artísticas pop-up que, según el sitio online de
noticias y opinión estadounidense Vox, propiedad de Vox Media, sin
tener una vocación de permanencia y solo estar abiertas unos cuantos
meses porque se trata de exposiciones temporales, han sido diseñadas
para convertirse en “selfie-friendly” y están cambiando la manera de
entender el turismo cultural y de relacionarse con el arte y sus museos
a través de Instagram. Ejemplos como el museo del Helado de San
Francisco, el museo itinerante de Candytopia dedicado a los dulces que
ha recorrido diversas ciudades de Estados Unidos, el museo de los
Selfies de Los Ángeles, el museo de Happy Place de los sentimientos,
The Color Factory o museo de los colores, y el museo de los Sueños o
de las Burbujas, entre otros muchos, ofrecen a los visitantes la
posibilidad de fotografiar las obras para compartirlas e interactuar con
ellas por Instagram, convirtiendo la visita en una ocasión para degustar
dulces exóticos, aspirar aromas o disfrazarse con ropajes distintos. Y, a
pesar de que la entrada cuesta unos 38 dólares, el éxito de visitantes es
tan grande que hay que solicitar las entradas con varios meses de
anticipación (Canalis, 2108; Gutiérrez, 2019). También podemos
resaltar la iniciativa de la plataforma Wallpeople surgida en la ciudad
de Barcelona como "un proyecto internacional de arte colaborativo" en
el que, a través de Internet, invitan a la gente a que intercambie y
comparta fotos, música y obras de arte exponiéndolas en la calle,
considerada ésta como la mejor sala de exposiciones, favoreciendo la
creatividad hasta el punto de transformar en museos efímeros los
espacios públicos de diferentes países del mundo (Celdrán, 2014).
Seguramente que, para muchas personas con una concepción
tradicional de lo que ha de ser un museo, pueda resultarles extraña
esta forma de presentar el arte. Pero no cabe duda de que es la
expresión más clara de la existencia de una nueva forma de mirar y de
concebir el mundo, y los museos no pueden dar la espalda a esta
realidad que tanto atrae a los jóvenes.

30
Museologia e Património – Volume 1

4. El museo y el patrimonio ante los hábitos de comportamiento


de la sociedad líquida

Si la sociedad en que nos movemos es líquida, podemos


preguntarnos también hasta qué punto el museo, que hoy tenemos
ante nosotros, es también líquido, dado que sus visitantes han asumido
los hábitos de comportamiento propios de dicha sociedad líquida. Hoy
las fronteras del museo ya no se encuentran tan bien definidas como
antes, puesto que el espacio museal de la cultura y su relación con el
visitante ya no lo constituye solo el lugar físico, sino también el sitio
web, la página de Facebook, el perfil de Instagram o la entrada en
Wikipedia (Boiano y Gaia, 2016, p. 9). Sabemos que la propia
naturaleza del museo tiende a mostrarle como un fenómeno estable,
consistente y poco propenso al cambio, por lo que no coincide con el
trepidante ritmo de los cambios que exige la sociedad líquida, siempre
dispuesta a adoptar cualquier novedad que rompa con la monótona
cotidianidad de los días sin alicientes ni sorpresas inesperadas.
Sin embargo, el museo está llamado a recoger las sugerencias
de una sociedad cambiante que pide renovarse y adaptarse a las
nuevas exigencias de un mundo en continua transformación, alentado
por la presencia cada vez más intensa de las nuevas tecnologías, si no
quiere verse relegado a la irrelevancia y el anonimato en las nuevas
plataformas culturales. Si durante mucho tiempo el elemento
fundamental del museo era el objeto en sí mismo considerado, hoy
comprobamos que el museo ha de servirse del discurso y de los medios
digitales que pueden acercar una gran cantidad de información a
cualquiera que entre en sus páginas Web. Renunciar a la utilización de
estos medios sería un error que privaría a los museos de la posibilidad
que se les ofrece de abrirse a un mundo, cada vez más amplio, en el que
ha desaparecido cualquier barrera que impida la comunicación entre
las personas.
Ejemplos de cómo los museos se adaptan a las exigencias de la
nueva tecnología los tenemos en varios museos americanos. Así, en
el Cooper-Hewitt Museum de Nueva York podemos observar cómo, al
llegar al museo, se entrega a los visitantes una pluma electrónica donde
van guardando la información que más les llame la atención y puedan
revisarla e interactuar con ella en la página del museo
www.cooperhewitt.org, en cualquier otro momento. El Brooklyn
31
Museologia e Património – Volume 1

Museum de Nueva York utiliza la aplicación ASK, que permite a los


visitantes hacer preguntas o iniciar una conversación sobre las obras
de arte que ven en la visita, posibilitándoles enviar mensajes y
fotografías de una obra elegida. Al estar conectados con un equipo de
historiadores del arte y educadores que conocen la colección, tratan de
responder a las preguntas que se les formulan y dan recomendaciones
sobre qué es lo que pueden ver a continuación. A través de sensores de
Bluetooh detectan la ubicación del visitante y de la obra que está
contemplando y le muestran diferentes contenidos.
El Museo de Arte Moderno de San Francisco (SFMOMA) ofrece la
aplicación de una App que contiene varias visitas auto-guiadas con
audio, información de galerías de fotos y planos para los visitantes,
quienes, si lo desean pueden moverse por el museo de manera
independiente y buscar contenidos en la aplicación a través de
números de parada. La Tate Modern de Londres se sirve de un
videowall multitáctil, denominado Timeline of Modern Art para
permitir a los visitantes del museo que visualicen y consulten, tocando
las palabras que les interesan en la pantalla digital, alrededor de 3.500
obras de arte de 750 artistas, y tengan una experiencia cultural e
interactiva del arte moderno que les resulte gratificante. El Science
Museum de Londres, a través de una nueva aplicación para iPad,
permite a los visitantes estudiar, rotar y manipular con cerca de 80
objetos que han sido previamente seleccionados por los conservadores
del museo. Además, tienen acceso a fotografías, secuencias de archivo
de películas y obras de arte contemporáneas.
El Metropolitan Museum of Art (MET) de Nueva York, a través
de su nueva aplicación App, permite a los visitantes moverse
libremente para encontrar información sobre el edifico principal y el
de The Cloisters, al tiempo que le ofrece información sobre las
exposiciones del momento, los horarios de apertura y los puntos más
importantes de la colección. La App permite experimentar el museo
incluso cuando no se está dentro. El Rijksmuseum de Ámsterdam
cuenta con una aplicación de orientación automática en el interior del
museo, la Rijksstudio, que, mediante un mapa interactivo que indica las
diferentes rutas, va guiando al visitante hacia el punto de inicio del
recorrido elegido, llevándole de una sala a otra. Además, permite a los
visitantes fotografiar las obras dentro del museo para que las
compartan y se les invita a que, en ocasiones, las dibujen en lugar de
32
Museologia e Património – Volume 1

fotografiarlas con el propósito de potenciar una actitud más reflexiva


de la visita. El Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires
(MALBA), ha diseñado un proyecto digital a partir de la colección
permanente Verboamérica en la que intervienen dos elementos
digitales que se complementan mutuamente. Se trata de la aplicación
Siente Verboamérica, que se sirve de la geolocalización y de la realidad
aumentada para que los visitantes tengan una experiencia del museo
diferente, y de un sitio web Mi Verboamérica en el que los visitantes
son invitados a que recojan y expongan los conocimientos que les ha
proporcionado la visita (Carrillo del Pino, 2017, p.3).
Las nuevas tecnologías utilizadas en todos estos museos,
sirviéndose de audios, videos, fotos, elementos interactivos, realidad
aumentada y la geolocalización, contribuyen a que los visitantes,
independientemente de su bagaje cultural y su grado de
conocimientos, puedan llegar a tener una experiencia gratificante de su
visita a los museos. A este respecto, los artistas japoneses So Kanno y
Yamaguchi Takahiro han organizado una exposición en el Museo YCAM
de Yamaguchi (Japón), titulada Avatars, en la que una serie de objetos,
como un ventilador, un cono de tráfico, un teléfono o el busto de una
venus grecorromana, comparten una misma sala, cuyos movimientos
pueden ser controlados a distancia por las personas que entren en la
web, que está conectada a Internet, mediante el manejo de las flechas
de teclado. Los internautas son libres de escoger un determinado
avatar para ver por dónde se mueven (Celdrán, 2017).
Plataformas digitales como People Art Factory o Google Art
Proyect nos ofrecen la posibilidad de adentrarnos en el conocimiento
del patrimonio de nuestros días desde una perspectiva líquida. Del
mismo modo, la creación del Harddiskmuseum por el artista Solimán
López, Director del Laboratorio de la Escuela Superior de Arte y
Tecnología de Valencia (ESAT LAB) pretende sumarse al arte urbano,
efímero y net-art con el propósito de dialogar sobre el arte y la
sociedad, al tiempo que intenta acoger las obras de arte intangibles
creadas por los artistas sirviéndose del arte digital y efímero, cuyo
contenido se guarda en un disco duro que puede verse en una pantalla
LED. En su manifiesto Intangible, López (2015) expresa claramente
cuál es la sensación que experimenta al adentrarse en el campo digital:
“Cuando pienso en lo digital, si es que se puede pensar en lo digital,

33
Museologia e Património – Volume 1

caigo en la cuenta de su carácter de líquido. Algo que se escurre por los


dedos en su afán de tocarlo, aprehenderlo o hacerlo propio”.
Tanto el museo como el patrimonio cultural están llamados a
compartir idénticos modelos de actuación a partir de una visión
dinámica de la propia institución, que nada tiene que ver con los
modelos tradicionales en los que se les consideraba como lugares
estables e inmutables, cuya función primordial no era otra que
preservar sus colecciones de cara al futuro. Si la sociedad se mueve
dentro de una perspectiva temporal y cambiante, el museo y el
patrimonio han de tomar una actitud dinámica, plurisensorial e
inclusiva que favorezca la plena inmersión en la realidad que les rodea.
Ya hemos visto cómo Bauman utiliza el término sociedad líquida para
describir la modernidad como un tiempo donde los lazos entre las
personas son frágiles y cambiantes, flexibles, vulnerables e inciertos,
privilegiando por encima de todo la individualidad y el intento de
satisfacer todos los deseos de una manera rápida y sin cortapisas
institucionales.
Pero, entonces ¿cómo hemos de combinar la preocupación que
el museo tradicional ha tenido siempre por conservar y proteger los
objetos y el patrimonio cultural con la necesidad de adaptarse a las
nuevas exigencias de una sociedad que está en continua búsqueda de
experiencias culturales, que vayan más allá de la mera contemplación
de los objetos colocados en una vitrina? Haciendo un poco de historia
podemos recordar cómo en la Conferencia Internacional de
Museografía, celebrada en Madrid el año 1934, se puso gran interés en
potenciar la investigación museística relacionada con la manera de
organizar, exponer, conservar y difundir los bienes culturales
depositados dentro de los museos. Además, se aconsejaba que la
estructura de los edificios antiguos se respetara en la media de lo
posible y se tuviera en cuenta el entorno en que se encontraban. Para
la Conferencia era primordial valorar primero el contenido de las obras
que formarían parte de las colecciones del museo y las medidas que se
deberían tomar para su adecuada conservación, pasando a un segundo
plano el edificio arquitectónico que debía albergarlas. Es evidente que
se privilegiaba el contenido frente al continente en una época en la que
existía una gran sensibilidad y preocupación por recuperar las obras
de arte del largo letargo en que muchas habían sobrevivido olvidadas
en los almacenes de los museos. Urgía, por tanto, su recuperación,
34
Museologia e Património – Volume 1

conservación, protección y adecuada exposición en las salas de los


museos. Se continuaba, así, el interés por conocer el carácter científico
de las colecciones promovido durante el siglo XIX y en el que los
museos eran considerados como centros de investigación y
concienciación del valor de las obras de arte.
Sin embargo, con el paso del tiempo, la sensibilidad ha ido
cambiando y se ha desplazado hacia la valoración del museo como
continente considerado en sí mismo como una obra artística, mientras
que las obras se estimaban como una parte importante pero
complementaria del edificio. Ya Richard Wagner, a finales del siglo XIX,
había tratado de unificar las artes partiendo de su idea sobre la
Gesamtkunstwerk (obra de arte total), formulada en su obra Das
Kunstwerk der Zukunft (La obra de arte del futuro), en la que trataba de
reunir en una sola obra el arte de la danza, la música y la poesía con la
arquitectura, la escultura y la pintura. A ello contribuyó el arquitecto
Frank Lloyd Wright cuando, en 1959, diseñó el Museo Solomon R.
Guggenheim de Nueva York y convirtió el edifico arquitectónico, en
forma de espiral, en un símbolo y modelo de lo que debería ser la
arquitectura museográfica. De hecho, otros muchos museos han
seguido esta línea constructiva, como el Guggenheim de Bilbao,
diseñado por el arquitecto norteamericano Frank Gehry, como
consecuencia de la colaboración entre las Administraciones Vascas y la
Solomon R. Guggenheim Foundation. En él se ha tratado de combinar
las obras expuestas con los espacios singulares y versátiles a fin de
ofrecer a los visitantes una experiencia museística totalmente
novedosa. Que la arquitectura de los museos se haya convertido en uno
de los elementos que más llaman la atención del público
contemporáneo, pone de manifiesto la importancia que está
adquiriendo el museo como edificio convertido en un verdadero
logotipo, como reclamo publicitario que atraiga un elevado número de
visitantes. Nos movemos, por tanto, en la dinámica de lo líquido y
mutable, donde todo se relativiza y se valora según los gustos del
momento. Las obras del museo son importantes, pero la imagen que se
ofrece del edificio pasa a ser tan importante o más que las mismas
obras expuestas, al ser valorado como una obra más de arte.
Los visitantes consideran al museo tradicional como una
institución estable que expone sus colecciones permanentes de manera
monótona y repetitiva, sin ningún aliciente que les motive y les llame la
35
Museologia e Património – Volume 1

atención para acercarse a visitarlo. Deseosos de tener experiencias


nuevas, exigen al museo modelos diferentes de exposición de las obras,
lo que le obliga a estar en una continua actitud de cambio y renovación.
Consecuencia de ello es la tendencia a programar exposiciones
temporales que poseen una duración limitada en el tiempo y suelen ser
utilizadas para atraer a los visitantes, y como un medio al servicio del
marketing y de la economía del mercado. De ahí que el museo líquido
asuma con toda naturalidad las exposiciones temporales, sin por ello
tener que perder su identidad. Las grandes exposiciones temporales o
blockbuster exhibitions, pueden contribuir a que, independientemente
de que en ellas se creen escenarios efímeros que podrían resultar
negativos para el museo, se dé una mayor confluencia de visitantes,
sobre todo no habituales, contribuyendo a su fidelización. Al mismo
tiempo, favorecen la obtención de beneficios económicos y ofrecen la
posibilidad de contemplar, desde nuevas claves de lectura, aquellas
obras que se conservan en los almacenes de los museos. La adopción,
por parte de los museos, de determinados logotipos asociados a
arquitectos de vanguardia, como Richard Rogers, Jean Nouvel, Rafael
Moneo, Frank Gehry, Norman Foster o César Pelli, así como de marcas
relacionadas con grandes artistas como Picasso, Warthol, Monet o el
Bosco, contribuye a que dichas exposiciones consigan atraer un
importante número de visitantes, constatando que en todas ellas la
garantía de su éxito se fundamenta en el nombre del artista o
arquitecto al que se asocia la exposición. Y el museo líquido posee las
condiciones necesarias que se requieren para animar a los visitantes,
cada cierto tiempo, a que visiten dichas exposiciones porque les
permite tener siempre experiencias novedosas.
Otro fenómeno que contribuye a aumentar el número de
visitantes es la existencia de muchos museos sin colecciones
permanentes, como el MUSAC de León o el Guggenheim de Bilbao, o el
hecho de que algunos cedan sus colecciones a museos satélites o
franquicias como el Hermitage, el Louvre o el Pompidou. Desde que la
Smithsonian Institution decidió ofrecer a otros museos exposiciones
franquicia, sin un excesivo coste económico, otros museos importantes
han tratado de transformar el concepto tradicional de museo y de
abrirse a formas más dinámicas y atractivas de presentar sus
colecciones. Pero eso no significa que se despreocupen de la
conservación de las obras viajeras ni que se desee ponerlas en peligro,
36
Museologia e Património – Volume 1

sino que los museos tratan de adaptarse a las nuevas exigencias del
público que desea tener acceso a esos bienes culturales. El éxito de un
museo no está, por supuesto, en el gran número de público que visita
sus colecciones, pero también es verdad que si éstas no son visitadas,
su valor como patrimonio cultural se vería muy devaluado. La cuestión
que se plantea es si esos museos franquicia contribuyen o no a que el
público conozca, se interese, valore y disfrute del patrimonio cultural o,
por el contrario, se trata de una nueva forma de inversión mercantilista
en la que se comercializa su oferta, sin descartar la posible
colonización cultural que se pretende realizar desde los museos.
Según Ramadori (2016, p. 6) el museo líquido corre el peligro
de convertirse en una especie de muestra temporal, en continua
evolución, que ha de competir con otras exposiciones de duración
limitada que se siguen ofreciendo desde diferentes instituciones. Pero,
en todo caso, dicho museo ya se preocupa de ofrecer actividades
novedosas que sirvan de apoyo a las diversas tareas de conservación y
exposición programadas con las colecciones permanentes. Y, para ello,
se sirve de los medios tecnológicos, potenciando también la valoración
del patrimonio cultural y las exposiciones virtuales. De hecho, como ya
hemos dicho más arriba, el concepto de museo líquido suele ir asociado
al surgimiento de las nuevas tecnologías que, al cambiar
constantemente, ofrecen al visitante la posibilidad de tener diferentes
experiencias que le llevan a saltar de una obra a otra y a compartirla en
el espacio de la red siempre cambiante (Boiano y Gaya, 2016, p. 9).
En opinión de Ramadori (2016, p. 8), la dimensión física de los
museos también se ha visto influenciada por la dinámica de la sociedad
líquida, que les ha llevado a distanciarse de la concepción estática que
aquellos poseían. Frente a los espacios neutros y las arquitecturas
cuadradas, características de los museos racionalistas, los museos
líquidos ofrecen instalaciones fluidas que posibilitan visiones diversas
y en continuo cambio, que facilitan una lectura más subjetiva de los
espacios y de los objetos expuestos, en el que privan los enfoques
emocionales. Por tanto, en la sociedad líquida también hay lugar para
la existencia de una arquitectura museológica líquida que no ha de
buscar necesariamente como fin primordial la mercantilización
cultural, sino que está sujeta a una serie de condiciones que
determinan su desarrollo. No hemos de olvidar que, desde el punto de
vista histórico, no se ha dado nunca una cultura única y monolítica,
37
Museologia e Património – Volume 1

sino que en un mismo período han coexistido diferentes tendencias,


que se han enfrentado entre sí dando lugar a lo que Colonna (2014)
denomina la dialéctica clásica/anticlásica. Al igual que el museo
líquido, la arquitectura líquida puede ser identificada como una forma
de representación de nuestro periodo histórico y la respuesta
adecuada a las necesidades de comunicación de nuestra sociedad.
Éstas pueden conjugarse con una mayor valoración de los bienes
culturales, de los que, a su vez, se obtienen ingresos económicos con la
afluencia de visitantes. Por otra parte, si consideramos la arquitectura
líquida como el contenedor donde se recopilan los objetos museísticos
y se preparan los espacios expositivos, podemos deducir que aquella,
como cualquier otra manifestación artística, se encuentra imbuida de
historicidad y está en condiciones de ser interpretada como una
instalación que acoge las obras dándoles un nuevo significado
(Ramadori, 2016, p. 8).
A este propósito, Salvatore Rugino (2008), al exponer el
contenido de su obra Liquid box, parte de la idea de una "lógica
líquida" que está fuertemente respaldada por las tecnologías digitales,
que contribuyen a la creación de nuevas formas de vida, más flexibles y
abiertas, y que vienen determinadas por factores externos a la
disciplina de la arquitectura, por lo que no son predecibles como las
matemáticas. Se caracterizan por poseer la capacidad de los líquidos
puesto que, al no tener una forma específica, se adaptan con facilidad al
contenedor o al contenido y puede afirmarse que pertenecen a un
espacio euclidiano. Partiendo del hecho que nos encontramos inmersos
en una nueva realidad donde las tecnologías de la información
promueven una forma de vida en red que, a su vez, se encuentran
conectadas a otras redes y en continua transformación, nos lleva a
pensar la arquitectura y las ciudades de una manera totalmente
innovadora. No es de extrañar que, ante esta nueva realidad, la
arquitectura esté llamada a expresarse a través de nuevas palabras,
términos y significados que pongan de manifiesto la transformación
cultural que se ha dado en nuestros días.
Tanto el museo como el patrimonio están llamados a dinamizar
la sociedad y a promover la participación de los ciudadanos en la
valorización y utilización responsable de los bienes culturales. Por eso,
es necesario redefinir el concepto de patrimonio y adoptar una nueva
narrativa que tenga en cuenta a la persona en su totalidad, quien está
38
Museologia e Património – Volume 1

llamada no solo a cuidar la realidad material que le rodea, sino también


a desarrollar nuevas formas de narrar y documentar todos los
fenómenos que hoy se dan dentro de la sociedad, ya sean relativos a la
cultura, al medioambiente o incluso a la forma de gestionar el mismo
patrimonio.
En cuanto a la forma de gestionar el patrimonio podemos
fijarnos en personas pertenecientes al campo de la gestión
empresarial que están aportando una visión bastante creativa y
moderna de cómo se han de afrontar los retos de una sociedad en
continuo cambio. Uno de los ejemplos lo tenemos en Aitor Grandes, Co-
Founder y CEO de MetaStartup, un tecnólogo y emprendedor que ha
creado la compañía 24symbols.com (https://www.24symbols.com), un
servicio para leer libros digitales en internet basado en un modelo de
suscripción, y la MetaStartup.com. (https://www.metastartup.com).
Grandes, ante el fenómeno de la sociedad líquida, opina que las nuevas
“empresas líquidas” están en posición de poder dar respuesta a un
nuevo tipo de sociedad cambiante, en la que la velocidad es la que lleva
la delantera. Eso significa que, desde el punto de vista empresarial, la
liquidez no solo interviene en el modo de producir un determinado
producto o de gestionar una empresa, sino en las mismas políticas de
contratación, organización y emplazamiento. A este propósito, es de
resaltar cómo el Informe de Accenture Technology Vision 2016, al
hablar de las tendencias tecnológicas emergentes, en la Tendencia 2
sobre fuerza de trabajo líquida, señala que “Las empresas están
invirtiendo en las herramientas y tecnologías que necesitan para
mantener el ritmo de cambio constante de la era digital. Sin embargo,
hay un factor crítico que se está quedando atrás: la fuerza de trabajo.
Las empresas necesitan algo más que una tecnología adecuada;
necesitan aprovechar esa tecnología para permitir a las personas
adecuadas hacer las cosas apropiadas en una fuerza de trabajo
«líquida», adaptable, preparada para el cambio y con capacidad de
respuesta” (Informe 2016, p. 8). Pues bien, eso que se aplica a las
empresas también puede referirse, salvando las distancias propias de
cada campo, a la manera de gestionar el patrimonio y los museos, que
han de estar muy atentos para que las personas, -ya sean visitantes,
conservadores o patrocinadores de los museos-, se sirvan de las
nuevas tecnologías como una forma de capacitación que les facilite
adaptarse y aprender constantemente, aportar nuevas soluciones e
39
Museologia e Património – Volume 1

impulsar el cambio continuo dentro de los museos y del patrimonio


cultural.
Estamos convencidos de que dentro de los museos y de las
instituciones patrimoniales se necesita potenciar el liderazgo
compartido y estar dispuestos a dejar espacio para la innovación y la
revisión de los proyectos e ideas en cortos espacios de tiempo. Todas
las personas que forman parte de la vida de los museos pueden aportar
sus ideas y su capacidad creativa, de manera que colaboren en la forma
de afrontar el nuevo paradigma líquido, en el que la incertidumbre y
los cambios constantes exigen dar respuestas distintas en cada
momento preciso, sin que se tenga opción a dejarlas para más tarde.
Pero, para ello, habrá que potenciar dentro de los museos el trabajo en
equipo y el liderazgo consultivo y participativo.

5. Museos, Patrimonio y Turismo en la Sociedad de Consumo

Los museos, al igual que los monumentos, los yacimientos


arqueológicos, los edificios civiles y religiosos o las ciudades históricas,
han entrado dentro de la dinámica de la sociedad de consumo y lo han
hecho a través del turismo cultural. Ciudades como París, Londres,
Roma, Florencia, Venecia, Viena, Atenas, Madrid, Barcelona, Córdoba,
Granada, Málaga o Toledo se han convertido en destino prioritario del
turismo cultural para un público deseoso de disfrutar con la
contemplación de dicho patrimonio. Conscientes de la importancia que
el turismo ha adquirido de cara a la difusión del patrimonio, los
museos no han dudado en incorporar a sus programas de promoción el
marketing como una forma de darse a conocer y de captar visitantes
aumentando su audiencia. Y lo han hecho al observar cómo los parques
temáticos ofrecían multitud de actividades que proporcionaban a los
visitantes la posibilidad de pasar el tiempo divirtiéndose y teniendo
una experiencia sensorial y emotiva muy agradable, al tiempo que les
permitían tener acceso a los espacios de consumo como bares,
restaurantes y tiendas de productos diversos que favorecen el
consumo.
Tenemos diversos ejemplos de cómo los parques temáticos han
sabido responder a las exigencias de un público cada vez más propenso
a consumir experiencias sorprendentes y novedosas. Especial
importancia ha ido adquiriendo el parque temático Epcot de la Walt
40
Museologia e Património – Volume 1

Disney World Resort de Florida, inaugurado en 1982 con el nombre de


Epcot Center. Sus atracciones son visitadas por numeroso público,
generando una fuente importante de ingresos económicos que
potencian su dinamismo y disposición a colaborar en el ofrecimiento
de diversos eventos culturales, que ya quisieran para sí muchos de los
museos norteamericanos. También las casas museo de artistas o
personajes que han hecho historia en el mundo de la música, del cine o
de otras artes han logrado llamar la atención del público, que recorre
enormes distancias para acercarse hasta los lugares donde se ubican
con el propósito de contemplar los recuerdos de sus ídolos. Así,
Graceland, el hogar de residencia de Elvis Presley, se ha convertido,
desde 1982, en una casa museo, templo y archivo donde se conservan y
exponen más de un millón de diferentes piezas de guardarropa,
trofeos, inmobiliario, fotos y documentos de uno de los más grandes
símbolos de la música Rock and Roll del mundo. En él también se
ofrecen algunas de sus instalaciones para albergar eventos especiales
como bodas, encuentros de promoción y corporativos y, además, muy
cerca, se sitúan el museo de aviones y el museo de coches utilizados
por el cantante. Cada año lo visitan más de 600.000 personas.
Los museos e instituciones patrimoniales han tomado
conciencia de que, si los parques temáticos, con unos precios bastante
elevados de entrada, consiguen atraer a una gran cantidad de público,
ellos también pueden potenciar la asistencia a sus exposiciones y
lugares culturales cambiando radicalmente las escenografías,
adoptando las nuevas tecnologías y, sobre todo, las formas de diseñar y
presentar sus colecciones y monumentos. Todo ello, acompañado de
un estudio pormenorizado de las necesidades, exigencias y
expectativas que ponen de manifiesto los visitantes.
Ante el desarrollo que el turismo cultural ha experimentado en
nuestra sociedad, tanto los museos como el patrimonio han visto en él
la posibilidad de atraer a un público muy diverso que está dispuesto a
desplazarse y viajar de manera continuada para disfrutar de la cultura
gastronómica, paisajística y recreativa, asistiendo a fiestas
tradicionales y populares, festivales de cine, teatro o danza y a desfiles
de diseño de moda. Pero también siente una cierta atracción por la
singularidad del patrimonio cultural manifestado en museos,
monumentos y ciudades, acercándose a ellos para visitarlos. Por eso, es
preciso tener muy presente al tipo de público que se dirigen para
41
Museologia e Património – Volume 1

poder satisfacer ampliamente todas sus expectativas, lo que supone


tener un conocimiento amplio del mismo, saber cuáles son sus
aspiraciones y deseos, o qué sensaciones pretenden experimentar.
Porque no es lo mismo dirigirse a un sector de la población de edad
más avanzada que, a los jóvenes, a personas de negocios, a
especialistas en diferentes ciencias o a grupos de familias, todos ellos
con situaciones económicas, culturales y personales muy distintas, que
exigen una oferta cultural personalizada y diversificada.
Sin embargo, muchos se plantean la pregunta de si los museos y
el patrimonio han de entrar en la dinámica de la sociedad de consumo
propia de los centros comerciales, viendo en este hecho un peligro de
relativización y de empobrecimiento del concepto de cultura, tal y
como se ha concebido hasta nuestros días. A pesar de ello, no cabe
duda de que algunos museos importantes como el Guggenheim o la
Tate Modern han sabido crear una marca cultural como rasgo distintivo
de identidad, que ha entrado a formar parte del mercado internacional
como instituciones dispuestas a ofertar una manera propia de ver y de
sentir el arte, y que están teniendo un gran éxito de público. Los
museos, ya sean públicos o privados, se ven en la necesidad de utilizar
los medios relacionados con la mercadotecnia, con el propósito de
obtener ingresos que contribuyan a la financiación de los gastos
ocasionados por sus instalaciones y actividades culturales. Conscientes
de ello, no tienen inconveniente en permitir el uso de sus instalaciones
para diversas celebraciones y acontecimientos sociales, tanto públicos
como privados, así como la promoción y venta de diversos productos
que llevan la marca de la casa.
Los mismos museos utilizan sus obras de arte como forma de
promoción y, al mismo tiempo, de obtención de recursos económicos.
Un ejemplo lo tenemos en el Museo del Prado que, con motivo de la
celebración del bicentenario de su fundación, ha llegado a un acuerdo
con la empresa de moda Zara para que ésta cree una colección meme
Becoming a work of art de cuatro camisetas y tres sudaderas que llevan
impresas unas imágenes inspiradas en los cuadros más conocidos del
museo, como son el del Emperador Carlos V con su perro de Tiziano, la
Monna Lisa, las Meninas de Velázquez o las Tres Gracias de Rubens, a
un precio medio entre 18 y 36 euros (Morán, 2019). Pero ya antes el
Museo del Louvre se sirvió de algunos cantantes para los mismos fines
que el Museo del Prado, permitiendo que Beyoncé y Jay-Z, en la
42
Museologia e Património – Volume 1

promoción del videoclip sobre su disco Apeshit, se paseasen por sus


salas y se fotografiasen delante de la Monna Lisa, la Victoria de
Somotracia o la Consagración de la Primavera (Vicente, 2018).
Observamos que el mundo de la moda también ha entrado en
los museos como si de una obra de arte más se tratara. Ya en el 2000 el
Museo Guggenheim de Nueva York tuvo la iniciativa de presentar en
sus salas la obra del diseñador Gorgio Armani compuesta por unas 400
piezas de su colección que, más tarde, se expondrían también en el
Guggenheim de Bilbao y en la Royal Academy de Londres. Desde
entonces, muchas son las exposiciones sobre diferentes marcas de
moda que se han ido realizando en diversos museos. Así, en el año
2015, en el Victoria and Albert Museum y en el National Museum of Art
and Design se organizó la exposición Alexander McQueen: Savage
Beauty con la colaboración de la casa de moda Swarovski y el
patrocinio de la American Express. En el mes de julio de ese mismo año
tuvo lugar la exposición de Yves Saint Laurent: Style is Eternal en el
Museo Bowes de la ciudad de Barnard Castel, en el condado de
Durham, patrocinada por la Fundación Pierre Bergé-Yves Saint
Laurent. Más tarde, en otoño, el Desing Museum de Londres acogió la
exposición Life on Foot de la marca española Camper, y el Fashion and
Textile Museum de la calle Bermondsey (Londres) organizó la
exposición Liberty in Fashion con motivo de la celebración del 140
aniversario de los grandes almacenes londinenses Liberty. Finalmente,
la Galería Charles Saatchi de Londres se convirtió en la sede de la
exposición Mademoiselle Privé donde se expusieron las creaciones de
Chanel y la obra de alta costura de Karl Lagerfeld.
A través de todas estas marcas los museos pretenden acercarse
a las personas de una manera distinta, sirviéndose del marketing
cultural para conseguir ante todo que tengan una experiencia
agradable en su contacto con las obras y, al mismo tiempo, lograr que
se dé un retorno de inversión (Return on Investment) que repercuta de
manera positiva en los recursos económicos que éstas adquieren. En
una sociedad líquida, donde el hacer es más importante que el tener, el
marketing cultural potencia aquellas experiencias que llevan a las
personas a satisfacer sus deseos de viajar, asistir a un concierto o
visitar un museo. Se buscan nuevas sensaciones que siempre hay que
renovar porque, al consumirse, van cambiando al mismo ritmo que la
vida feliz posmoderna en la que “cada uno de sus momentos dura sólo
43
Museologia e Património – Volume 1

un rato hasta que llegue el próximo” (Bauman, 2007b, p. 20). Con ello
se pretende conectar con los diferentes públicos y convertirlos en
auténticos brand lovers, es decir, en clientes que eligen siempre la
misma marca a la hora de comprar un determinado producto y se
sienten emocionalmente unidos a la misma porque les produce
emociones placenteras. Es lo que pretende Carlos Aguiló, socio
fundador de Katapult, una agencia de Marketing especialista en hacer
que las marcas formen parte de la vida de la gente, y que se creó con el
propósito de desarrollar el Sponsoring, los Naming Rights y el
Mecenazgo con los consiguientes beneficios económicos.
Los museos e instituciones patrimoniales contribuyen de
manera muy positiva al desarrollo cultural y económico de las ciudades
atrayendo no solamente a un gran número de visitantes, sino también
de empresas culturales de ámbito nacional e internacional, que
desarrollan sus actividades en relación directa con la realidad cultural
de las mismas. Un ejemplo de cómo se sitúan las ciudades como
centros culturales, aportando los medios necesarios para potenciar los
museos y los centros patrimoniales, lo tenemos en la ciudad de Málaga
que ha utilizado el logotipo “Málaga ciudad de museos, donde habita el
arte” con el propósito de favorecer el impacto del turismo cultural y, al
mismo tiempo, fomentar su desarrollo económico. Para su alcalde,
Francisco de la Torre, la nueva marca quiere ser un reclamo para que
los operadores empresariales y culturales consideren la ciudad como
una referencia cultural y museística de primer orden en nuestro país y
en todo el mundo. Al mismo tiempo, la preocupación por la
sostenibilidad del turismo y la conservación de los lugares
patrimoniales es la muestra más evidente de que existe una gran
sensibilidad por preservar el medio ambiente y el entorno de los
museos y de los monumentos, de manera que hoy no se puede diseñar
una exposición o visita cultural sin tener en cuenta esta realidad.
El desarrollo del turismo ha tenido mucho que ver con la
recuperación de algunas tradiciones de los pueblos que habían estado
olvidadas desde hace tiempo y que se han actualizado como reclamo
para atraer a un mayor número de turistas. Estamos de acuerdo con
Velasco (1990, p. 143) cuando señala que, gracias a la riqueza y
variedad de su folklore, algunos pueblos se han convertido en un
referente turístico hasta tal punto que éste se ha apropiado del folklore
exigiendo al pueblo “no que se muestre como es sino que se muestre
44
Museologia e Património – Volume 1

según la imagen que de él se tiene”. Al mismo tiempo, el autor destaca


cómo algunos de los rasgos más característicos del folklore son sus
paradojas, pues gracias al turismo han podido conservar sus
tradiciones que les ha servido para progresar económica y
socialmente.
Nos movemos en una sociedad de consumo en la que la cultura
es presentada como el lugar por excelencia donde se almacenan una
serie de bienes para que sean consumidos por los potenciales clientes.
El mundo cultural se asemejaría a una gran tienda en la que, a través de
unos anuncios bien diseñados, se exponen una serie de productos con
el propósito de despertar el deseo del público y satisfacerlos de la
manera más rápida posible. La sociedad necesita consumir productos
culturales, que es preciso renovar constantemente para que no se
queden obsoletos. Los museos, conscientes de esta realidad, organizan
de manera continuada una serie de exposiciones temporales, que son
el exponente claro de ese deseo de consumo irrefrenable. Si se
consigue seducir al público para que compre la mercancía cultural, es
decir, para que se decida a visitar las exposiciones, se habrá
conseguido fidelizar la clientela para futuras muestras de arte o de
eventos culturales que refuercen su autoestima y le den la sensación de
haber vivido una experiencia gratificante y enriquecedora.
Lo mismo sucede con las distintas formas de patrimonio
cultural expuesto en nuestras ciudades, entre las que se encuentra el
arte urbano o callejero, cuyo aspecto más significativo es su carácter
efímero, y que se realiza utilizando las técnicas del graffiti, la serigrafía,
el collage o el esténcil con el propósito de protestar contra todo lo que
signifique tradición y esquemas del pasado. Al igual que el movimiento
vanguardista del dadaísmo, el arte urbano se opone a todos los
cánones de la belleza clásica y a los principios inamovibles del
pensamiento único, apostando por el cambio, la libertad, la
espontaneidad, lo inmediato y lo imperfecto frente al orden, la
perfección y lo inmutable (Villalba, 2011, p. 93).

6. La educación en museos y patrimonio dentro de la sociedad


líquida

Un aspecto a tener en cuenta es cómo afrontar la educación en


los museos y en el patrimonio dentro de una sociedad líquida. Si, como
45
Museologia e Património – Volume 1

señala Bauman en su libro Sobre la educación en un mundo liquido


(2013b), la idea de educación que se venía defendiendo en la
modernidad ya no nos sirve y, por tanto, las herramientas de la
pedagogía tradicional se han vuelto obsoletas, será preciso promover
un tipo de educación que enseñe a vivir en un mundo sobresaturado de
información, en el que la cultura ya no se considera como un conjunto
“sólido” de saberes, sino más bien como algo cambiante, fugaz y
líquido.
Bauman nos presenta dos formas de entender la educación,
muy diferentes entre sí. Por una parte, estaría la educación en la
modernidad sólida donde la educación es siempre jerárquica y
consistiría en la acumulación del conocimiento, que ha de conservarse
para siempre porque posee un valor importante en cuanto que ofrece a
las personas la posibilidad de desarrollarse personal, profesional y
socialmente. La educación es entendida como un proceso de vida que
exige un compromiso y una responsabilidad de cara al futuro, al
tiempo que crea unos vínculos humanos sólidos. Además, considera el
consumismo como una forma de acumulación de bienes que se han de
conservar. El punto de encuentro de las personas tiene lugar en los
espacios físicos y, para conocer nuevas culturas, es necesario viajar
desplazándose de un lugar a otro. La competitividad de las empresas se
fundamenta en la creación de relaciones entre los clientes, y la
planificación del futuro es algo prioritario, por lo que se buscan
trabajos que garanticen el futuro económico.
Por otra, se encuentra la educación en la modernidad líquida en
la que la educación, siempre provisional y abierta a la incertidumbre,
consiste en gozar brevemente del conocimiento, que es algo de lo que
puede desprenderse con facilidad y solo es válido por su novedad. La
educación sirve para producir un conocimiento que se utiliza en el
momento y una sola vez, y no exige ningún compromiso de cara al
futuro ni ningún tipo de responsabilidad. El consumismo está basado
en el gozo breve de las cosas porque todo es desechable. Los puntos de
encuentro son las redes sociales y para conocer las diferentes culturas
basta con un viaje virtual a través de los dispositivos electrónicos. La
competitividad de las empresas tiene su consistencia en las redes
sociales y no se ve necesario planificar el futuro porque no se buscan
trabajos que duren toda la vida, sino que será necesario cambiar de
empleo con frecuencia.
46
Museologia e Património – Volume 1

Teniendo presentes estas premisas, hemos de ver hasta qué


punto es posible aplicarlas a la educación en los museos y el
patrimonio. Para ello, es preciso hacer una distinción entre el museo
sólido y el museo líquido. Algunos autores, como Joaquín Esteban
Ortega (2011, p. 109-110), identifican el museo sólido o unívoco con el
museo tradicional y el museo líquido o equívoco con el museo
posmoderno, dejando en medio el museo analógico o moderno.
Según este autor, si seguimos el esquema presentado por
Bauman y lo aplicamos a dichos museos, observamos que el museo
tradicional o sólido es unívoco y nos presenta el conocimiento de una
manera piramidal y jerarquizada. En él, los responsables de los museos
se esfuerzan por adquirir, conservar y exponer las obras de sus
colecciones, y todo su empeño se centra en ofrecer a los visitantes una
visión bien definida y determinada, siguiendo un relato fijo y
previamente establecido por los especialistas de las colecciones. De
esta manera, los visitantes no intervienen para nada en el diseño y
ejecución de las exposiciones y su actitud dentro del museo es
totalmente pasiva. Los educadores y mediadores tienen como tarea
explicar los mensajes que se les ha propuesto y no pueden salirse de
dicho esquema a la hora de explicar el contenido de la exposición. La
educación que ofrecían dichos museos se parecía bastante a la
impartida en la educación formal del sistema educativo, que se
caracterizaba por la separación física existente entre el profesor, que
impartía la enseñanza, y el alumno que la recibía pasivamente y debía
ser evaluado sobre los conocimientos adquiridos.
El museo posmoderno o líquido es equívoco y nos muestra el
conocimiento de una manera más horizontal, flexible y contando
siempre con los diferentes departamentos. En él, todo es ambivalente,
incierto y controvertido, por lo que no ofrece esquemas fijos ni teorías
cerradas, sino que prefiere que los visitantes participen activamente en
la elaboración del discurso expositivo desde una actitud de diálogo
abierto a la pluralidad de opiniones. Los visitantes han de crearse su
propia visión personal de la exposición y ser capaces de hacer una
crítica de la misma, mientras que los educadores tienen como misión
servir de filtro de los efectos producidos por los aspectos
instrumentales utilizados en la educación y, al mismo tiempo,
relativizar la sacralización excesiva de la exposición. Tanto los
contenidos, como las tecnologías aplicadas y las formas de
47
Museologia e Património – Volume 1

entretenimiento que se adopten han de estar siempre dispuestas al


cambio porque en el museo líquido todo es mutable.
En una posición intermedia estaría el museo moderno o
analógico que es considerado como un centro de democratización del
saber, si bien sigue siendo vertical, jerárquico y técnico. En él se
exponen y comunican las obras teniendo en cuenta las exigencias del
mercado, sirviéndose de los medios de difusión y de entretenimiento
para atraer al público. Los visitantes son invitados a participar en sus
actividades pero, al mismo tiempo, son considerados como
consumidores. Los educadores están muy centrados en la difusión de
las obras expuestas, sirviéndose de todo tipo de textos explicativos y
rótulos orientativos para el público. A este respecto, el filósofo Maurico
Beuchot (2000, p. 38) nos recuerda que el método hermenéutico, que
utiliza la analogía como método de interpretación, nos puede ayudar a
evitar el univocismo que conduce a la cerrazón de los positivistas y
cientificistas que se oponen a cualquier cambio en las estructuras
existentes y el equivocismo que fomenta la excesiva apertura del
relativismo posmoderno.
Los museos están viviendo un tiempo en el que se entrecruzan
diversas formas de acercarse a los visitantes a través de prácticas
novedosas y siempre cambiantes, propias de la sociedad líquida, que
nada tienen que ver con los antiguos formatos museísticos utilizados
hasta hace muy pocas décadas. Por eso, tienen como tarea diseñar
nuevos caminos para la museología del siglo XXI, donde sea posible
promover la conciencia crítica y el lenguaje poético como una forma de
aprendizaje que sobrepase sus propios límites y les deje la puerta
abierta a posibilidades hasta ahora desconocidas. La irrupción de la
“modernidad líquida” ha provocado una conmoción importante en el
ámbito educativo que ha de afectar necesariamente también a la
educación en museos y patrimonio. En un mundo en constante
movimiento y mutación, los museos han de afrontar la situación con
optimismo y creatividad a la hora de plantearse cómo presentar la
institución, qué contenidos ofrecer y qué sistema de aprendizaje
utilizar que estén en consonancia con los tiempos líquidos en los que
nos ha tocado vivir. En el acierto o no de saber combinar la tradición y
la modernidad, lo antiguo y lo nuevo, lo sólido y lo líquido, los museos
se estarán jugando la pervivencia de parte de su futuro como espacios
de educación y aprendizaje significativos.
48
Museologia e Património – Volume 1

7. ¿Tienen futuro los museos y el patrimonio en una sociedad


líquida?

Llegados a este punto de la reflexión, podemos preguntarnos si


los museos y el patrimonio tienen futuro en una sociedad líquida
donde los cambios son muy rápidos e imprevisibles y se constata cómo
se pasa con suma facilidad de una sociedad de productores a otra de
consumidores. Partimos del convencimiento de que no existe un
modelo único de museo ni de patrimonio, sino que se da una pluralidad
fragmentada y diversificada de modelos que nos obligan a reconocer
que hoy es necesaria una nueva forma de pensar y de redefinir el
museo y el patrimonio. A partir de ahí, será necesario crear las
condiciones apropiadas que faciliten la existencia de unas relaciones
cada vez más dinámicas entre la sociedad, el arte y los espacios
culturales. Para que esto sea posible, será preciso romper
determinados esquemas mentales que nos impiden deshacernos de
una idea de museo y de patrimonio monolítica, sólida e inmutable, casi
sagrada, en la que todo está dicho y no se ve la necesidad de cambiar
nada de lo ya existente. Tradicionalmente, el museo se ha concebido
como una institución que tenía como tarea fundamental conservar y
proteger el patrimonio cultural para que fuera conocido y disfrutado
por la sociedad. Pero es evidente que la idea de museo se ha ido
transformando y ya no responde a esos esquemas antiguos de la
museología tradicional, sino que se ha adaptado a las nuevas
exigencias de una sociedad que pide más entretenimiento y tiempo
para el disfrute que para la reflexión y la crítica constructiva. Al
patrimonio cultural que conservan los museos se le exige que sea
ligero, entretenido, espectacular, cambiante, productivo económica y
políticamente y que contribuya al desarrollo sostenible del lugar donde
se encuentra contextualizado. Responder a todas esas expectativas
exige, por parte de los responsables de los museos y del patrimonio, un
ejercicio de reflexión y de imaginación creativa que esté dispuesta a
poner en movimiento todos los mecanismos necesarios para que
dichos cambios se lleven a la práctica de manera efectiva. Tratar de
combinar el valor cultural de todo el patrimonio museístico, haciendo
hincapié en sus fortalezas y posibilidades desde el punto de vista
científico, con la necesidad de convertirlo en una experiencia
49
Museologia e Património – Volume 1

gratificante y lúdica, es un reto que hay que asumir con todas las
consecuencias si queremos concienciar, sensibilizar y educar al público
para que lo conozca, lo valore y lo conserve.
El museo ha de considerarse como un relato y acontecimiento
vivo y dinámico que no puede limitarse a ser un simple contenedor de
obras, sino que está abierto a asumir todos los cambios que sean
necesarios para responder, de manera satisfactoria, a las exigencias de
las personas que viven en un tiempo y en un contexto socio cultural
con unas características muy determinadas, que pueden ir cambiando
según evoluciona la sociedad. Su capacidad de adaptación ha de ser tal
que esté dispuesto a correr el riesgo de ver desnaturalizada
aparentemente su razón de ser. Muchos profesionales de los museos
temen que si el museo no conserva los fundamentos conceptuales que
ha tenido hasta ahora, pierda su razón de ser y se quede reducido a la
pura banalización o al mero espectáculo, sin una base cultural sólida.
Es evidente que existe dicho peligro, pero también es verdad que si
queremos romper con los esquemas tradicionales, porque los
consideramos obsoletos y carentes de significado para la sociedad de
hoy, se nos exige asumir los postulados de la posmodernidad museal,
activar la creatividad y tratar de responder a los interrogantes que se
nos plantean cada vez con mayor urgencia. Si la sociedad no encuentra
sus inquietudes y expectativas reflejadas en los objetos expuestos
dentro del museo, difícilmente se sentirá atraído por conocerlos ni
decidirá visitarlos.
Esto implica que los museos no pueden dejar de centrarse en el
presente, sin que por ello tengan que olvidar o desentenderse del
pasado que les ha configurado hasta nuestros días. Cuando algunas
vanguardias artísticas constataron que los museos se habían alejado de
la sociedad, convirtiéndose en un monopolio de las clases intelectuales,
no tuvieron reparo en llevar el arte a la calle para devolvérselo a la
sociedad. Y los museos se vieron obligados a asumir que la realidad
había cambiado y no podían seguir actuando como lo habían hecho
siempre. Pero sabemos que el presente es cambiante, como lo es
también nuestra manera de situarnos ante la realidad social y cultural
en la que vivimos. Y si ha cambiado el paradigma, no podemos
desentendernos de él, sino que se nos exige tratar de comprenderlo y
de afrontarlo con creatividad para saber cómo situarnos ante los
procesos culturales que exigen cambiar las prácticas que se han venido
50
Museologia e Património – Volume 1

desarrollando hasta ahora relacionadas con los museos y el patrimonio


cultural. En todo caso, el museo ha de estar dispuesto a acoger y
asimilar todo lo que la sociedad le ofrece y, al mismo tiempo, ha de
devolverle lo que se ha ido creando dentro de él.
Si los museos y el patrimonio cultural hacen presente la
memoria colectiva de los pueblos, quiere decir que están llamados a
combinar lo líquido con lo sólido. Por una parte, dentro de la sociedad
líquida, los objetos de los museos son consumidos con gran rapidez,
como lo son las emociones, lo que exige al museo renovarse de manera
continuada para no quedarse obsoleto ni envejecer prematuramente.
No basta con conservar sus colecciones permanentes inalterables, sino
que ha de procurar que todos sus fondos se vayan renovando y
exponiendo al público de manera continuada a través de las
exposiciones temporales, cuyas instalaciones se montan y desmontan
según el tiempo de duración del evento cultural. Pero, por otra, en el
museo sólido o tradicional las obras de arte se resisten a envejecer y
desaparecer para siempre, exigiendo una continuidad que les lleve a
perpetuarse más allá del tiempo y del espacio. No podemos ignorar
que, en la vida cotidiana, nos encontramos con las obras en su estado
físico ocupando un lugar dentro del museo o del espacio urbano, pero
también que nos adentramos en un mundo virtual que facilita una
inmersión totalmente líquida en el patrimonio cultural que nos está
indicando las múltiples, variadas y cambiantes posibilidades de
acercarnos a él. Como señalaba Guillermo Solana, director del Museo
Thyssen de Madrid, en uno de los cursos impartidos en El Cultural
(Díaz de Quijano, 2016), “Los museos ya no son solo sitios físicos, sino
una presencia en la iconosfera", donde las informaciones circulan en
los medios de comunicación, evidenciando que, si no se está en ellos, es
como si no existieran. Habrá que buscar, por tanto, nuevas formas de
integrar e insertar el patrimonio cultural en la sociedad actual
entendido en un sentido amplio, en el que tiene cabida la cultura del
pasado y del momento presente, expresada en todas sus formas y
matices, asegurando su presencia mediática, siempre cambiante,
efímera y frágil, propia de la sociedad líquida en la que nos movemos.
El futuro de los museos y del patrimonio está asegurado a condición de
que sepamos situarnos adecuadamente ante una nueva forma de
percibir el mundo.

51
Museologia e Património – Volume 1

Bibliografía

ACCENTURE TECHNOLOGY VISION (2016): [URL:


https://www.accenture.com/es-es/_acnmedia/Accenture/next-
gen/tech-vison-2016-geo/assets/Accenture-IT-Tech-Trends-
Technology-Vision-Exec-Summary-2016-Spanish.pdf]. Acceso el
5/03/2019.

ARIZPE, L. (2006): Culturas en movimiento. Interactividad cultural y


procesos globales. México: Cámara de Diputados, LIX Legislatura-
UNAM/CRIM-Editorial Miguel Ángel Porrúa.

BAUMAN, Z. (2007a): Tiempos líquidos: vivir una época de


incertidumbre. Barcelona: Tusquets Editores.

BAUMAN, Z. (2007b): Arte, muerte y postmodernidad. Arte, ¿líquido?


(Z. Bauman, H. Braun-Vega, J. Villeglé, eds.). F. Ochoa de Michelena
(trad.): 11-24. Madrid: Sequitur.

BAUMAN, Z. (2007c): Arte líquido. Arte, ¿líquido? (Z. Bauman, H.


Braun-Vega, J. Villeglé, eds.). F. Ochoa de Michelena (trad.): 35-48.
Madrid: Sequitur.
BAUMAN, Z. (2013a): La cultura en el mundo de la modernidad líquida.
México D.F.: Fondo de Cultura Económica.
BAUMAN, Z. (2013b): Sobre la educación en un mundo liquido:
conversaciones con Ricardo Mazzeo. Buenos Aires: Paidós.

BAUMAN, Z.; JAUKKURI, M. (2007): Tiempos líquidos, artes líquidas.


Arte, ¿líquido? (Z. Bauman, H. Braun-Vega, J. Villeglé, eds.). F. Ochoa de
Michelena (trad.): 71-96. Madrid: Sequitur.

OIANO, S.; GAIA, G. (2016): Il museo liquido. MUSEO in-forma, Rivista


quadrimestrale della Provincia di Ravenna – Notiziario del Sistema
Museale provinciale, anno XX, nº 55: 9-10.

BEUCHOT, M. (2000): Tratado de hermenéutica analógica. México:


UNAM-Ítaca.

52
Museologia e Património – Volume 1

CANALIS, X. (2018): Cómo Instagram está cambiando los museos (y


nuestra relación con el arte). Edición España. Tendencias, 16 noviembre
2018. ‘[URL:
https://www.hosteltur.com/109786_como-instagram-esta-
cambiando-los-museos-y-nuestra-relacion-con-el-arte.html]. Acceso el
10/03/2019.

CARRILLO DEL PINO, M. F. (2017): TFM / ESdesign Barcelona. [URL:


http://conferencias.esdesignbarcelona.com/DESIGN/memorias/memo
ria_carrillo-del-pino_florencia.pdf]. Acceso el 28/04/2019.

CASTILLO RUIZ, J. (2007): El futuro del Patrimonio Histórico: la


patrimonialización del hombre. e-rph. Revista electrónica de Patrimonio
Histórico: 1-35.

CELDRÁN, H. (2014): Wallpeople, cómo convertir la calle en un museo


efímero con la ayuda de los internautas. [URL:
https://www.20minutos.es/noticia/2071766/0/wallpeople/arte-
callejero/museo-efimero-internautas/]. Acceso el 20/03/2019.

CELDRÁN, H. (2017): El museo japonés YCAM permite controlar por


Internet los objetos en exhibición. [URL:
https://blogs.020minutos.es/trasdos/tag/artefactos/]. Acceso el
20/03/2019.

CHOAY, F. (1992): L´Allégorie du patrimoine. París: Seuil.

COLONNA, F. (2014): La dialettica di classico/anticlassico tra Argan,


Zevi e Novak per una definizione critico-estetica di “Architettura
Liquida”. BTA – Bollettino Telematico dell’Arte, 16 Giugno 2014, n. 715.
[URL: http://www.bta.it/txt/a0/07/bta00715.html]: Acceso el
28/04/2019.

DÍAZ DE QUIJANO, F. (2016): Guillermo Solana: "Los museos se


mantienen gracias a las exposiciones temporales". [URL:
https://www.elcultural.com/noticias/arte/Guillermo-Solana-Los-
museos-se-mantienen-gracias-a-las-exposiciones-temporales/8996].
Acceso el 29/03/2019.
53
Museologia e Património – Volume 1

ESTEBAN ORTEGA, J. (2011): La condena hermenéutica. Ensayo sobre


filosofía de la ambivalencia educativa. Barcelona: Editorial UOC.

FERGUSON, T. J.; ANYON, R., y LADD, E. J. (1996): Repatriation at the


Pueblo Zuni: Diverse solutions to complex problems. American Indian
Quarterly, 20 (2): 251-273.

FRANCESCHINI, COMISSIONE (1966): Relazione de la Comissione


d´indagine per la tutela e la valorizzazione del patrimonio storico,
archeologico, artístico, e del paesaggio. Rivista Trimestrale di Diritto
Pubblico, Anno XVI, 1:119-224.

GEERT, F. van (2018): Representar el multiculturalismo de las


sociedades líquidas. Nuevas tendencias expositivas en los museos
etnográficos. El patrimonio cultural en las sociedades líquidas (I. Arrieta
Urtizberea, ed.): 21-40. Bilbao: Universidad del País Vasco.

GIANNINI, Massimo S. (1976): I Benni Culturali. Rivista Trimestrale di


Diritto Pubblico, Anno XXVI, 1: 3-38.

GONZÁLEZ ALCANTUD, J. A. (2018): Los Museos de Sociedad ante la


vida líquida. La Memoria sólida y la Intangibilidad conceptual. Revista
Euroamericana de Antropología, nº.5: 7-18.

GUTIÉRREZ, F. E. (2019): Museos efímeros: El nuevo paraíso para los


exhibicionistas de las redes sociales. elciudadano.com [URL:
https://www.elciudadano.cl/artes/museos-efimeros-el-nuevo-
paraiso-para-los-exhibicionistas-de-las-redes-sociales/02/27/].
Acceso el 16/03/2019.

HERNÁNDEZ HERNÁNDEZ, F. (2002): El patrimonio cultural: la


memoria recuperada. Trea: Gijón.

LÓPEZ, S. (2015): Manifiesto Intangible. [URL:


http://harddiskmuseum.com/manifesto-intangible/]. Acceso el
26/03/2019.

54
Museologia e Património – Volume 1

MACEIRA OCHOA, L. (2012): Museo, memoria y derechos humanos:


itinerarios para una visita. Cuadernos Deusto de Derechos Humanos, nº
68. Bilbao: Publicaciones de la Universidad de Deusto.

MORÁN, N. (2019): Las prendas meme de Zara con los cuadros más
famosos del Museo del Prado. Woman madame, 15 de marzo de 2019.
[URL: https://www.woman.es/moda/shopping/zara-camisetas-
sudaderas-meme-cuadros-famosos-museo-prado?foto=1#galeria-
42000-2325124]. Acceso el 1/05/2019.

POMIAN, K. (1996): Nation et patrimoine. L´Europe entre cultures et


nations (D. Fabre, ed.): 85-95. Paris: Maison des Sciences de l´Homme.

PRATS, Ll. (1997): Antropología y patrimonio. Barcelona: Editorial


Ariel.

RAMADORI, M. (2016): Il museo liquido: evoluzione storica,


potenzialità, rischi. BTA – Bollettino Telematico dell’Arte, 9 Maggio, n.
807: 11-13.

RUGINO, S. (2008): Liquid box. Roma: Aracne.

SCHEINER, T. C. (2008): El mundo en las manos: museos y museología


en la sociedad globalizada. Cuicuilco, nº 44 (septiembre-diciembre):17-
35.

ŠOLA, T. S. (1982): A Contribution to a Possible Definition of


Museology. System of Museology and Interdisciplinarity. ICOM-ICOFOM,
20-23 October: 1-8. Paris: Museum of Decorative Arts.

ŠOLA, T. S. (2015): Mnemosophy. An Essay On The Science Of Public


Memory. Zagreb: European Heritage Association.

UNESCO (2001): Declaración Universal de la UNESCO sobre la


Diversidad Cultural. Paris. [URL:
http://www.congreso.es/docu/docum/ddocum/dosieres/sleg/legislat
ura_10/spl_70/pdfs/30.pdf]. Acceso el 15/03/2019.

55
Museologia e Património – Volume 1

VELASCO, H. (1990): El folklore y sus paradojas. (REIS) Revista


Española de Investigaciones Sociológicas, nº 49: 123-144.

VICENTE, Á. (2018): Beyoncé y Jay-Z sorprenden con un vídeo grabado en el


Louvre. El País, 17/06/2018. [URL:
https://elpais.com/cultura/2018/06/17/actualidad/1529231079_87
0495.html]. Acceso el 1/05/2018.

VILLALBA, M. (2011): El arte urbano como forma de expresión.


Creación y Producción en Diseño y Comunicación [Trabajos de
estudiantes y egresados], Nº 42:93-94.

WALDMAN M., G. (2006): La cultura de la memoria: problemas y


reflexiones. Política y Cultura, nº 26: 11-34. [URL:
www.redalyc.org/articulo.oa?id=26702602.]. Acceso el 1/10/2018.

ZAMORA, Anna (2009): Zygmunt Bauman. Arte, líquido? (Reis) Revista


Española de Investigaciones Sociológicas, N.º 125:171-182.

56
Museologia e Património – Volume 1

NO PRINCÍPIO ERA O “PATRIMÓNIO”: REFLEXÕES


(POSSÍVEIS) ACERCA DOS SIGNIFICADOS E APROPRIAÇÕES
DE PATRIMÓNIO”1

Cândida Cadavez
Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Portugal
https://orcid.org/0000-0001-8129-0238

1. A tessitura

Para iniciar a discussão que este capítulo pretende desenvolver


é necessário evocar e debater uma série de noções, sem o que a
desconstrução de património que se propõe surgiria desprovida da
rede que eventualmente a permite. De facto, seja qual for a perspetiva a
partir da qual património é visitado importa, antes de mais, parar nas
noções de cultura, identidade, representação, tradição, autenticidade e
memória que serão, por certo, aquelas que concorrem para o
entendimento possível das questões que guiam estas páginas.
Raymond Williams (1988) afirmou que cultura é uma das duas
ou três palavras mais difíceis de toda a língua inglesa (vd. p. 87). Esta
asserção extrapola o cenário único da língua inglesa, evocando em
pleno a vasta abrangência e a consequente vacuidade que tendem a ser
associadas a cultura, um título que invariavelmente acaba por ser
entendido como uma expressão clara, inequívoca e estagnada de
valores comuns, com origens remotas e difusas, que transformam
cultura numa linha agregadora e inquestionável, impermeável às
mutações mais naturais, inevitáveis e óbvias. Para um senso comum
pronto a aceitar de modo passivo conceptualizações ditas doutas e
intocáveis cultura não é recebido como o conceito aberto e plural que
espelha e simultaneamente molda identidades individuais e de grupo.

1 Este capítulo é o resultado de uma investigação desenvolvida no âmbito de

um curso de Pós-graduação em Direito do Património Cultural, frequentado


na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal.
57
Museologia e Património – Volume 1

Ela é ao invés entendida como uma moldura perene, invariável


e quase como o fruto de uma decisão do destino que a proíbe de
assumir o caráter de complexidade e perplexidade que fazem dela uma
tessitura manipulável e manipulada, aberta e plural, e que serpenteia
consoante o que os tempos e os poderes querem exibir ou esconder.
Como bem indicou José Barata-Moura (2016), “[h]á formas
culturais onde se cultura um «monológio» pretendido. Mas mesmo ele
nunca despede a alteridade” (p. 4), evocando as diversidades e
alternativas sempre presentes, muitas vezes escondidas, que
acompanham e (con)formam a cultura. Contudo, quadros que
representam comunidades culturais sólidas e homogéneas são
evocados para justificar e demonstrar o alegado caráter óbvio e
essencial desta noção. Essa essencialidade facilita a identificação dos
valores de um determinado grupo e valida a imposição das
homogeneidades que descrevem comunidades mais pequenas ou
nações mais vastas, como sugere Gellner (2001, p. 26).
Mais do que nunca, e perante todos os constrangimentos e
facilidades proporcionados pelas vivências globais coevas,
compreender a contemporaneidade só é possível se se aceitar com
Barata-Moura (2016) que a “cultura é uma caixa de ferramentas no
con-fronto e nas feiturias do fronteiro” (p. 5) muito mais versátil, rica e
enriquecedora do que o corpus sereno, parado e não agenciável que
algumas narrativas insistem em propagar. Neste sentido, cultura é um
termo que continua invariavelmente associado à criação de consensos
inibidores de diferenças ou de divisões (vd. Williams, 1988, p. 25) ao
mesmo tempo que impõe o balanço necessário à vida e ao convívio
entre grupos (vd. Eco, 1998, p. 177). Tamanhos devaneios acabam por
hierarquizar culturas, abrindo, dessa forma, caminho a intolerâncias e
mortes, alegadamente a bem da exibição e da proliferação de uma
cultura mostrada como a única verdade que descreve um grupo.
Cultura acaba, assim, por corresponder a um quadro de referências e
interpretações apriorísticas que condiciona o entendimento de
agregados diferentes (vd. Morgan & Pritchard, 2000, p. 31), o que
parece, de algum modo, constituir um permanente desrespeito, por
exemplo, pelas conclusões da Conferência do México de 1982 em que
formalmente, e a um nível global, se entendeu dever compreender e
associar cultura a algo mais inclusivo e englobante, dando primazia às
características de dinamismo e abrangência dissociáveis de uma noção
58
Museologia e Património – Volume 1

de cultura que se pretende seja vivida sempre em linha com o respeito


pelos Direitos Humanos.
Numa perspetiva cristalizante e cristalizada, cultura surge
como veículo e justificação perfeita e incontroversa de identidades
igualmente solidificadas por um destino que parece pré-determiná-las
e fixá-las ad eternum a comunidades inconfundíveis e muito certas do
papel que desempenham na vasta geografia dos grupos-tipo enquanto
empedernimentos persistentes (vd. Barata-Moura, 2016, p. 6). Estas
narrativas identitárias concretizam-se em função de uma retórica do
esquecimento, resultante da negociação entre o que deverá ser
recordado e exibido, e aquilo que deverá ser negligenciado pela
memória coletiva. De acordo com Maurice Halbwachs (1992), a
sociedade tende a reorganizar as suas recordações de forma a ajustá-
las às condições variáveis do seu equilíbrio identitário (vd. pp. 172-
173, 183). Pierre Nora (1989), por seu turno, afirma que muitas vezes
os lieux de mémoire não têm qualquer referente real, constituindo eles
próprios os seus únicos referentes, tal é o poder de seleção e imposição
dos seus agentes e produtores (vd. p. 23). Ainda a propósito da
intervenção da memória na criação e na manutenção das identidades
culturais empedernidas, importa evocar Aleida Assmann (2010)
quando refere que as memórias são dinâmicas e que aquilo que é
recordado do passado, de modo a cristalizar identidades, depende
largamente dos contextos culturais, das sensibilidades morais e das
exigências do presente (vd. p. 21). Quando estes jogos são transpostos
para a dinâmica da valorização cultural e da patrimonialização
identificamos a existência de episódios, características e padrões
criteriosamente selecionados e que se apresentam como provas
irrefutáveis de modos de vida e de habitus. O resultado final é um
encadeamento harmonioso e coerente, resultante de amnésias
concebidas de forma inteligente e objetiva e que mostram identidades
e símbolos inabaláveis, onde não há lugar para qualquer tipo de
contradição ou erro interpretativo que possa fazer perigar os poderes
e ideologias que alimentam as “tradições” e “autenticidades” que
identificam (vd. Howard, 2003, p. 18).
Na ótica de Marc Guillaume (2013), os diversos tipos de bens
culturais e rituais considerados como património corporizam
precisamente repositórios informativos e símbolos de acontecimentos
que não escaparam a interpretações e atualizações constantes para que
59
Museologia e Património – Volume 1

melhor se implemente a função mnemotécnica contemporânea que


lhes compete (vd. pp. 24-25). Para Guillaume (2013), o passado,
enquanto pseudotopia, e o modo como, por motivações diversas, se
convencionou entendê-lo representado através de inúmeras
expressões patrimoniais, é uma narrativa sempre em processo de
reformulação ou de negociação para que se atinja a coesão e a
identidade sociais pretendidas (vd. p. 24). Na mesma linha, Hodgkin &
Radstone (2007) defendem que “memoriais e museus são afirmações
públicas daquilo que foi o passado e de como o presente o deve
reconhecer” (pp. 12-13). Curiosamente, ou não, será nas
representações (momentaneamente) solidificadas disponíveis nos
espaços de exibição que encontramos as metáforas mais inabaláveis
das comunidades imaginadas que Benedict Andersen (2006) nos
apresenta (vd. p. 4), algo semelhante a constrangimentos e urgências
claramente localizados no poder que formata um tempo e um espaço. É
aqui que as memórias autorizadas, oficiais e simbólicas nos convencem
acerca da existência de comunidades perenes e únicas, evidenciadas
por representações patrimoniais.
Identidade e memória, por sua vez, constituem um par que
raramente é arredado de tradição, o termo que, como refere Barata-
Moura (2016), sinaliza trajetórias procuradas, e que, ao contrário do
que comummente se aceita, resulta de escolhas e de genealogias
originadas por necessidades seletivas (vd. p. 11), i.e., “[a] tradição é
sempre um acidentado processo de trans-porte, em que as cargas
oriundas do passado são postas a uso num presente que lhes opera re-
sinificações” (p. 12).
Michael Ignatieff (1999) menciona a necessidade de se criar
tradições que permitam evocar e glorificar um passado no qual a
comunidade se revê e encontra um destino comum (vd. p. 80),
enquanto Maurice Halbwachs (1992) defende que as tradições
representam a consciência que a sociedade tem de si própria no
presente (vd. p. 183). Para Eric Hobsbawm (2000), as tradições são um
conjunto de práticas gerido por regras tacitamente aceites, e
caracterizado pela sua natureza ritual ou simbólica, com o propósito de
inculcar determinados valores e normas de comportamento através da
repetição, ligando-se, desta forma, inevitavelmente ao passado do qual
aparenta emanar de forma natural e contínua (vd. p. 14). Hobsbawm
(2000) advoga que esta estratégia é responsável pela criação de novos
60
Museologia e Património – Volume 1

ícones nacionais que representam simbolicamente a coesão social ou a


pertença a grupos e comunidades, legitimando relações de autoridade
e impondo valores e comportamentos (vd. pp. 7-9). Das palavras de
Hobsbawm (2000) importa ainda destacar que as tradições que
aparentam ser antigas são, inúmeras vezes, não só criações recentes
como até inventadas, que acabaram por se impor rapidamente (vd. p.
1). O obsessivo e omnipresente impulso de criação de tradições é algo
presente quer nas narrativas das nações, quer nas representações
patrimoniais, em particular em cenários multiculturais, tornando-se
responsável pela organização de festejos públicos e de exposições
(demasiado) recorrentes com o intuito de repovoar a memória com as
tradições consideradas mais adequadas.
Nestes palcos, as culturas, identidades, memórias e tradições
são autorizadas apenas quando exibem consigo o (devido) título de
autenticidade. O uso recorrente deste rótulo fundamenta-se quase
sempre numa alegada antiguidade nacional ou regional, e
consequentemente cultural, que permite e força a transmissão de
determinados quadros que deverão ser aceites como óbvios e
essenciais num dado contexto. Impede-se, assim, como refere Peter
Howard (2003), o surgimento de contradições ou as interpretações
erradas que poderiam fazer perigar poderes e ideologias (vd. p. 18).

2. Patrimonialização, sempre. Porquê?

São as representações patrimoniais, seja qual for o molde com


que se materializam, que se diz exibirem de modo inequívoco estas
culturas, memórias, tradições e identidades tidas como perenes e
cristalizadas. Serão também as representações que, se crê, evidenciam
todos esses conceitos que têm a heroica missão de, numa luta desigual
contra os tentáculos de uma globalização apresentada como
ameaçadora, manter inalteráveis e autênticas as “verdadeiras”
culturas, memórias, tradições e identidades. Pedras, ameias, telas,
paisagens, ritmos, coreografias, rituais, superstições ou gastronomias
corporizam representações patrimoniais em que as comunidades se
habituaram a encontrar reflexos daquilo que lhes é dito que são. Como
indica Barata-Moura (2016), “[n]ão há cultivo de cultura sem
materialização em «monumento»: em obra que faz pensar no que foi

61
Museologia e Património – Volume 1

feito (e que não se restringe aos prodígios da alvenaria)” (p. 10), em


suma, “[não há cultura sem criação de património” (p.14).
Os receios, já referidos, quanto às mais do que certeiras
homogeneizações culturais impostas pela globalização estarão talvez
na origem da uma tão popular insistência na necessidade de preservar
representações patrimoniais com o intuito principal de manter
narrativas identitárias tradicionais e autênticas que quase nunca
contemplam realidades concretas que naturalmente (re)estruturam os
diversos patrimónios que compõem os cenários do século XXI. Os
movimentos migratórios impossíveis de dissociar do modus vivendi
coevo, e tudo aquilo que transportam consigo, desde práticas,
possibilidades de intercâmbios e permutas, ou até mesmo diferentes
sabores e texturas com outras origens, constituem uma das
características mais presentes nas sociedades contemporâneas e que,
por insistências teimosas e desajustadas, continuam a ser quase
sempre afastados das validações do património cultural por não
evocarem, como se espera de tais representações, o âmago mais
autêntico da identidade de um lugar.
Zygmunt Bauman (2000) conceptualizou a noção de
modernidade líquida, pretendendo com ela significar e desconstruir a
descartabilidade que caracteriza as vivências pós-modernas
alimentadas pela velocidade e pela repugna do sólido, enquanto
metáfora de permanência e de fixação, e do permanente. O cidadão
pós-moderno será, então, um ser em constante divagação e angústia
em busca de novas e “melhores” representações que prontamente
substitui por outras, mal surjam a oportunidade ou a necessidade. A
luta obstinada pela divulgação e pela preservação patrimonial, muitas
vezes à custa de técnicas e estratégias pouco autênticas e tradicionais,
materializará quiçá o combate da frustração e do sentimento de perda
que esta modernidade líquida nos indica e recorda.
As representações patrimoniais autorizadas e a importância
que lhes é atribuída enquanto elementos narrativos de identidades
comunitárias recordam o que Anderson (2006) designa como
“artefactos agregadores” a propósito da dinâmica das comunidades
imaginadas (vd. p. 4). Dissertando acerca dos grupos locais, regionais
ou nacionais a que todos afirmamos pertencer, Anderson (2006)
conclui que tais grupos são maioritariamente comunidades
imaginadas, pois até os membros da mais pequena nação jamais se
62
Museologia e Património – Volume 1

conhecerão ou encontrarão. Contudo, nas mentes de cada um deles


existem a imagem e a certeza dessa comunhão (vd. p. 6). Anderson
(2006) defende, então, que é a existência dos já referidos “artefactos
agregadores” que confere esta noção de pertença e de quase
fraternidade sentida por e com desconhecidos – as representações
patrimoniais serão porventura os mais fortes artefactos agregadores
precisamente pelas narrativas identitárias e de autenticidades
associadas a grupos que lhes são inerentes.

3. O “ajuízamento” patrimonial

Importa, agora, evocar documentos e suportes que permitem


entender precisamente o significado e a pertinência associados a
património, e ao já indicado impulso para o divulgar e proteger.
A Constituição da República Portuguesa (CRP) (1976), no seu Artigo
78.º, intitulado “Fruição e criação cultural”, garante, no número 1, que
“[t]odos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de
preservar, defender e valorizar o património cultural.” Ao Estado, por
seu turno, em colaboração2 com todos os agentes culturais, competirá
incentivar e assegurar a fruição pelos cidadãos, apoiar a criação
cultural, salvaguardar e valorizar o património cultural, que, porém, a
CRP (1976) não explana, “tornando-o elemento vivificador da
identidade cultural comum”3 (Artigo 78.º, n.º 2, alínea c), e ainda
assegurar a defesa e a promoção da cultura portuguesa no estrangeiro.
Assim, a CRP (1976) assume como sendo matéria clara para o
domínio público a significação de património (cultural), partilha as
responsabilidades de preservação, divulgação e autorização e acesso à
fruição com os agentes culturais, e exalta a função do património
enquanto agregador das comunidades imaginadas conceptualizadas
por Anderson (vd. 2006).
O Relatório Intercalar da Proposta de Lei de Bases do Património
Cultural (1998) também é esclarecedor quanto às certezas
materializadas pelas representações patrimoniais quando refere ser
“indesmentível que, na visão da actualidade e no projecto de futuro do
legislador constituinte, a independência nacional surge alicerçada numa

2 Itálicos nossos.
3 Itálicos nossos.
63
Museologia e Património – Volume 1

identidade cultural portuguesa cujos esteios fundamentais são a língua e


o património ultural do nosso povo4” (p. 66), ou seja, fazendo ecoar
argumentos semelhantes aos difundidos pela CRP (1976) no que
respeita à validação e à sustentação de uma identidade nacional
através de um corpus que narra histórias inegáveis e autênticas, e
condensa vivências sociais revolutas (vd. p. 44). Este Relatório…
(1998) chega mesmo a estabelecer que “a defesa do património
cultural é um dos vectores da política da preservação da independência
nacional, tarefa prioritária do Estado” (p. 68). Tendo em conta o valor
nacional atribuído a estas representações patrimoniais, as
considerações preambulares do Relatório Intercalar da Proposta de Lei
de Bases do Património Cultural (1998) informam que

[é] nos dias de hoje preocupação comum à generalidade


dos países do mundo a defesa, preservação e valorização
do respectivo património cultural, podendo declarar-se
quase unânime a visão de que os bens que integram essa
essa classificação – cujo conteúdo e escopo registam
apesar de tudo variações de Estado a Estado – devem ser
objecto de legislação que os distinga dos demais bens de
uso e consumo ou dos imóveis e sítios a que não se atribua
significado artístico ou histórico. (p.7)

A referida necessidade desta proteção legislativa justifica-se


nos seguintes argumentos: por um lado, entende-se que o acesso e a
fruição de património cultural são vitais para a formação e o
desenvolvimento individuais; por outro, defende-se que a conservação
de determinados objetos é indispensável à preservação (“nalguns
casos, à consolidação5”) da identidade cultural da nação; e, por último,
enfatiza-se a importância que o património cultural detém enquanto
gerador de receitas, nomeadamente pela prática turística (vd. p.8).
Assim se justifica a necessidade de um enquadramento mais concreto e
adequado à realidade face a um regime, vigente à data, tido como
deficiente (vd. p. 36). É curioso constatar como a premência da
preservação do património cultural é um fator que, em alguns casos, se

4 Itálicos nossos.
5 Itálicos nossos.
64
Museologia e Património – Volume 1

diz concorrer para a consolidação da identidade nacional, i.e., a solidez


das representações patrimoniais funciona como o elixir necessário que
permite e força a coesão dos grupos. Esta afirmação evoca o Artigo 27.º
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que refere que
“[t]odo ser humano tem o direito de participar livremente da vida
cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo
científico e de seus benefícios”.
A Lei n.º 107/2001 de 8 de setembro fornece no seu Artigo 14.º
algumas pistas que permitem entender que os bens culturais que
materializam o património cultural são aqueles representam
“testemunho material com valor de civilização ou de cultura”. Neste
âmbito, e sejam quais forem as categorias patrimoniais em causa (vd.
Artigo 15.º), devem ser objeto de especial proteção e valorização
representações patrimoniais imóveis, móveis ou imateriais, bem como
os respetivos contextos, sempre que “constituam parcelas
estruturantes da identidade e da memória colectiva portuguesas”
(Artigo 14.º).

4. Os “ajuizamentos” patrimoniais – pelo mundo

Pode afirmar-se que, antes do grande receio das


uniformizações culturais globais, a destruição patrimonial identificada
no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial terá constituído o
alerta maior sentido até então no que respeita à necessidade de
preservar o património cultural. Atestam-no inúmeros manifestos e
documentos, com mais ou menos projeção prática no terreno.
A Convenção Cultural Europeia (1954) terá sido, contudo, o
primeiro e mais seriamente acolhido documento que convidava os
diversos Estados a adotar medidas de proteção patrimonial. Continua,
por isso, a ser ainda evocado pelos textos mais recentes como a fonte
inicial do que posteriormente veio a ser formalizado em termos de
normas, regulamentos e legislação relativos à pertinência da
preservação patrimonial. O Conselho da Europa é um dos autores com
mais produção sobre património cultural imóvel materializado
sobretudo em monumentos, mas também acerca do património
associado às artes ou à cultura popular, ou ainda ao património
imaterial. A Comissão Europeia, por seu turno, tem sido emissora de
normas várias, indicadoras de diretrizes e de modelos, e de convenções
65
Museologia e Património – Volume 1

relativas a património, que, depois de ratificadas, ganham um estatuto


vinculativo nos estados membros. A Convenção da UNESCO (1972) é
uma plataforma de referência incontornável no que respeita à gestão e
às boas práticas no âmbito do património e da sua relação com a
memória, a preservação, a partilha e a fruição. Este documento
apresenta a novidade de se considerar o património como algo comum,
que deve, por isso mesmo, convidar a uma partilha de
responsabilidade e ao respeito mútuo.
A Carta de Veneza (1964), resultante do II Congresso
Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, é
um documento extremamente esclarecedor quanto ao significado de
património e à sua pertinência para efeitos de coesão identitária.
Assim, o preâmbulo desse documento torna claro que “[i]mbuídos de
uma mensagem do passado, os monumentos históricos perduram até
aos nossos dias como testemunhas vivas de várias gerações” e
testemunhos da história (pp. 1-2), acrescentando que as unidades
comunitárias, a quem compete proteger essas representações, se
solidificam perante esse património comum. O Artigo 1.º da carta
sugere uma definição para monumento histórico, corpus que, como
facilmente se reconhece, será talvez o exemplo de património imóvel
construído que mais atrai consensos quanto às narrativas autênticas
que alegadamente transporta e exibe. Este artigo indica argumentos
que serão, anos mais tarde, recuperados pela Convenção da UNESCO
(1972) quando explica que estes monumentos testemunham uma
civilização em particular, uma evolução significativa ou um
acontecimento histórico. Insiste, ainda, em políticas de restauro e de
manutenção sobretudo tradicionais6 (vd. pp. 2, 3) por forma a que se
mantenham autenticidades. A Convenção de Faro (2005), ratificada pelo
Estado Português em 2008, evoca a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948) para confirmar que os direitos relativos ao
património cultural são inerentes ao direito de participação na vida
cultural, acrescentando, em termos diversos daqueles que
encontrámos na Carta de Veneza (1964), que o património cultural é
apresentado como fonte de conhecimento (vd. Artigo 13.º). Além disso,
o Artigo 1.º desta convenção (2005) é inovador ao referir como o
património cultural pode ter uma função determinante na construção

6 Itálicos nossos.
66
Museologia e Património – Volume 1

de uma sociedade pacífica e democrática, bem como nos processos de


desenvolvimento sustentável e na promoção da diversidade cultural.
Outro elemento que distingue este documento de outros
redigidos a propósito de património cultural reside na alusão que
dirige à existência de patrimónios que identificam áreas mais extensas
do que países, como sucede com a referência ao património cultural
comum à Europa (vd. Artigo 3.º). A afirmação que agrega património
cultural e paz será retomada pelo Código Global Ético para o Turismo
(2001) a propósito daquela que é uma prática global cada vez mais
comum nas rotinas do século XXI, o turismo, e que é, sem dúvida,
encenada e recriada em função de representações patrimoniais. Em
comum, estes dois documentos referem ainda o direito que todos os
cidadãos devem ter à fruição do património cultural (vd. Artigo 4.º e
12.º, e Artigos 4.º e 7.º). Também a chamada de atenção para a
necessidade de se encorajar uma reflexão ética, bem como o apelo ao
respeito pela diversidade de interpretações e o imperativo de se
estabelecer estratégias que permitam a convivência pacífica de
representações culturais contraditórias num mesmo palco cultural (vd.
Artigo 7.º) levam-nos a evocar, de novo, o Código Global Ético para o
Turismo (2001) na sua insistência de que um melhor e mais consciente
conhecimento de património cultural poderão conduzir a atitudes de
mais tolerância e paz entre comunidades distintas (vd. Preâmbulo,
Artigo 1.º) . À imagem do que sugere o Artigo 78.º da CRP (1976), a
Convenção de Faro (2005) reitera a responsabilidade coletiva devida ao
património cultural e que deve ser partilhada pelos diversos agentes
sociais. Património cultural será, segundo os ditames desta convenção,
compreendido como um grupo de recursos herdados do passado,
identificado por uma comunidade, independentemente de quem os
possui7, como o reflexo e a expressão de valores, crenças, saberes e
tradições próprios e em permanente evolução (vd. Artigo 2.º).
Todos os documentos evocados, independente de serem cartas,
convenções ou códigos, destacam de modo inequívoco que, por ser
testemunho da história e da civilização a que “pertence”, o património
cultural deve ser entendido como um símbolo evidente e
inquestionável da identidade dessa comunidade, que representa de
modo autêntico e tradicional e, de uma forma ou de outra, deverá ser

7 Itálicos nossos.
67
Museologia e Património – Volume 1

acolhido como fonte de conhecimento. De um modo geral, e mesmo no


caso de documentos que não distinguem os diversos tipos de
património, o património cultural é descrito invariavelmente como um
corpus que deve ser mantido e preservado com as suas características
tradicionais, principalmente por contribuir para a manutenção, e até
para a consolidação8, como é indicado no Relatório Intercalar da
Proposta de Lei de Bases do Património Cultural (vd. 1998, p. 8), da
coesão de um grupo local, regional ou nacional. Esta ideia é, sem
dúvida, o leitmotiv comum aos documentos evocados, notando-se que
aquilo que os distingue é sobretudo a maior ou menor discriminação
ou justificação dessa crença transversal. Independentemente do
registo utilizado, todos esses textos são unânimes em nomear o direito
à fruição cultural e em apelar às comunidades para que participem e
interajam de modo mais ativo, tornando-se agentes visíveis e
interventivos, e não meros observadores.

5. A “naturalidade” da patrimonialização oficial

Mas será a patrimonialização, isto é, a decisão de que um dado


bem material (móvel ou imóvel), ou uma determinada representação
imaterial “merecem” a distinção de ser elevado até ao patamar onde
passa a ser observado e vivenciado com a deferência que a memória, a
tradição e a identidade impõem, um ato inocente e natural que
pretende apenas embelezar paisagens e relembrar passados? A ser
assim, de que modo é que tais autorização e validação sucedem?
Recordar o que os documentos antes referidos indicam quanto
ao significado de património permite concluir que, de facto, o valor
cultural atribuído a determinados bens, espaços ou experiências, bem
como a patrimonialização (mais ou menos formal) que daí advém são o
resultado de decisões ponderadas e de poderes assertivos com
autoridade, conferida pelo contexto em que agenciam, para deliberar
acerca do que constitui uma representação patrimonial adequada e
ilustradora da memória mais correta, da tradição mais adequada e da
identidade mais apropriada, tendo em conta um determinado fim que,
muitas vezes, pouco terá da candura e da naturalidade que se associa
comummente ao processo. Na verdade, identificar e credenciar

8 Itálicos nossos.
68
Museologia e Património – Volume 1

memórias, pois é esse o cerne do ato de patrimonializar, será tudo


menos uma seleção natural e inocente de eventos, personagens e
rituais com origem no passado. Recordando Aleida Assman (2010), são
fascinantes, mas, ao mesmo tempo, também um pouco perversas, as
estratégias de fixação ou de ocultação de memórias, e os jogos
praticados com a finalidade de exibir ou de esconder tudo aquilo que
mais convenha a um dado contexto ideológico. Ou seja, serão
necessidades práticas muito pouco imparciais que talham os percursos
da patrimonialização, pelo que diferentes contextos atribuíram
propósitos distintos aos bens, sítios e rituais que serão, assim, corpora
utilizados com a intenção de narrar a melhor história associada à
comunidade que alegadamente os detém.
Tome-se por exemplo o contexto particular do regime do
Estado Novo português, e a sua coincidência temporal com a vigência
da Carta de Atenas (1931). Este documento confirma a tendência, à
época, da “instituição de uma manutenção regular e permanente,
adequada a assegurar a conservação dos edifícios” (p. 1) e recomenda
que “se assegure a continuidade da sua vida consagrando [os
monumentos] contudo a utilizações que respeitem o seu carácter
histórico ou artístico” (p. 1). Deve ser destacada igualmente nesta carta
a preocupação com a harmonia do contexto sempre que se pretendesse
construir novos edifícios, antecipando já a designação de “sítios”
conceptualizada em 1972 pela UNESCO, e o cariz imperativo de um
restauro cuidado e adequado (vd. III, V: 2,5). Trata-se, em suma, de
uma enumeração de constatações e recomendações que espelham bem
a preocupação pela preservação e pela exibição patrimonial por parte
dos regimes com características semelhantes ao Estado Novo
português que se iam, entretanto, implementando, e para os quais as
representações patrimoniais desempenhavam um importante papel
propagandístico. Principalmente, nos primeiros anos do regime
português, quando se apostava numa estratégia propagandística que o
autorizasse, diversos tipos e representações patrimoniais foram
identificados e divulgados pelos órgãos competentes do Estado Novo
com o propósito de enfatizar e justificar noções de autenticidade,
identidade e tipicidade nacionais.
A própria Constituição Política da República Portuguesa (1933),
i.e., o documento que estabelece o enquadramento legal para a
validação do regime de António de Oliveira Salazar, indica de forma
69
Museologia e Património – Volume 1

inequívoca a importância destes bens quando declara que “estão sob a


protecção do Estado os monumentos artísticos, históricos e naturais, e
os objetos artísticos oficialmente reconhecidos como tais9” (Artigo 52.º).
Por um lado, estabelece-se a tutela, por outro lado, esclarece-se que a
acreditação daquilo que deverá ser considerado bem patrimonial é
tarefa do Estado. Nesta senda, o regime de Salazar evocava
recorrentemente a razão por que atribuía tamanho valor ao
património, as “páginas vivas da nacionalidade”, tal como explicado em
A Cultura Portuguesa e o Estado (1945, p. 50), e replicado no exemplo
seguinte:

a História de Portugal está admiràvelmente escrita, dêsde o


início da nossa nacionalidade, em todos os monumentos
guerreiros ou religiosos que se encontram a cada canto, e tão
firmes quási todos êles na terra, que de tão belos parecem
desafiar o tempo, e tão vivos que dir-se-ia quererem viver
para além da morte.
Viagem. Revista de Turismo, Divulgação e Cultura, fevereiro de
1941, p. 1

As medidas de recuperação patrimonial foram, ao longo de


todo o Estado Novo português, enaltecidas e entendidas como uma das
principais mudanças trazidas pela Revolução Nacional de 1926. A par
da busca da beleza e do conforto estético, tais políticas visavam
aumentar o património moral da “Nação”, i.e., recuperar provas da
grandeza pátria e, assim, agregar os nacionais em torno de uma
identidade inequívoca, com o propósito de transmitir uma imagem
coesa e clara de Portugal, quer para o exterior, quer para os próprios
portugueses.
Anos depois de a Sociedade de Propaganda de Portugal ter
realizado um inventário do património nacional, o Conselho Nacional
de Turismo viu referida como uma das suas tarefas mais significativas
a “caracterização dos nossos monumentos e a catalogação da nossa
riqueza arqueológica e artística, e subvencionando as obras de mérito
inconcusso, trasladando-as para outras línguas e fazendo-as circular
gratuitamente no estrangeiro” (decreto n.º 17:605, 15 de Novembro de

9 Itálicos nossos.
70
Museologia e Património – Volume 1

1929). O Diario de Lisbôa de 24 de novembro de 1937 referia que na


Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais existia “uma
intenção que não esmorece, um pensamento fecundo que se manifesta
no labor patriótico de «reparar» (…) os monumentos que mais
padeceram” de um certo tipo de vandalismo que durou durante anos”
(p.: 1). Além disso, um decreto-lei de fevereiro do ano seguinte
reiterava que

Não podem ser consideradas injustificadas as medidas de


defesa do património artístico e histórico da Nação, nem se
ignoram os resultados obtidos da firme e criteriosa execução
das medidas referidas, nomeadamente nos últimos anos, em
que, sob o impulso da Revolução Nacional, se deu
desenvolvimento de vulto à obra de conservação e
reconstrução de tantos dos nossos principais monumentos.
(...) Estas providências, apesar de impostas principalmente
por motivos de ordem estética, vão contribuir para aumentar
o património moral da Nação10.
Decreto-lei n.º 28:468, 15 de fevereiro de 1938

Data do ano de 1929 a fundação da Direcção-Geral dos Edifícios


e Monumentos Nacionais, integrada no Ministério do Comércio e
Comunicações, que, nas palavras de Margarida Acciaiuoli (1998),
materializava a ordem patrimonial que o novo regime instaurara e que
defendia as práticas de restauro que valorizassem o passado e as
características nacionais (vd. p. 11). Maria João Neto (2001) defende
que este organismo servia a necessidade de preservar a memória
histórica criada pelo regime, pelo que são alvo de restauro os
monumentos que, aos olhos do Estado Novo, melhor “autenticam os
momentos de triunfo da Nação secular” (p. 145) pela evocação que
fazem de episódios-chave de Portugal, como a descoberta do caminho
marítimo para a India ou a restauração da independência.
Em 1932, três anos depois da criação desta direção geral, a
Repartição de Jogos e Turismo declara através do decreto n.º 21:261,
de 20 de maio, a existência de “sítios e locais de turismo e
monumentos naturais a que é mester conservar a sua feição pitoresca,

10 Itálicos nossos.
71
Museologia e Património – Volume 1

adoptando preceitos adequados a subtraí-los ao mau gôsto,


intolerância e caprichos da acção humana”. Esta parece ter sido uma
ferramenta particularmente importante no âmbito da valorização do
património, pois, além do acima exposto, o seu Artigo 2.º estipulava
que tais espaços e monumentos não poderiam jamais ser
intervencionados sem a autorização do Governo, depois de ouvido o
Conselho Nacional de Turismo.
Neste sentido, assistimos logo nos primeiros anos do Estado
Novo a uma profusão legislativa que visa classificar monumentos e
espaços patrimoniais, dá conta de edifícios que passavam a ser
património do Estado, anuncia a construção de monumentos, presta
contas de verbas usadas em restauro, e autoriza a Direcção Geral dos
Edifícios e Monumentos a celebrar contratos para a execução de obras
de conservação, entre outras prorrogativas11. O significado atribuído
ao património construído e à sua recuperação, segundo os cânones do
regime de Salazar, era tal que, a partir de março de 1936, passou a ser
permitida a aposição de vinhetas emitidas pelo Conselho Nacional de
Turismo que representavam alguns dos principais monumentos
nacionais (vd. portaria n.º 8:378 de 6 de março de 1936). No ano
seguinte, a portaria n.º 8:672, de 2 de abril, determinava que “fôssem
criados e postos a circular bilhetes postais ilustrados para serviço
nacional, reproduzindo cinqüenta desenhos originais de monumentos,
costumes regionais e païsagens típicas portuguesas”.
No ano de 1934 teve lugar um acontecimento que foi deveras
elucidativo quanto à real motivação do Estado Novo no que toca à
necessidade de recuperar e divulgar diversas formas de património.
Assim, o I Congresso da União Nacional, reunião magna cujo propósito
inicial seria evocar e elogiar o chefe da “nova Nação” e os feitos
conquistados por sua interceção, acabou por incluir na sua agenda de
trabalhos a apresentação de algumas “teses” sobre o tema em apreço,

11 Vd. Decretos n.º 26:235 e n.º 26:236, 20 de janeiro de 1936, decreto n.º
26:450, 24 de março de 1936, decreto n.º 26:453, 25 de março de 1936,
decreto n.º 26:461, 26 de março de 1936, decretos n.º 26:499 e decreto n.º
26:500, 4 de abril de 1936, decreto-lei n.º 27:878, 21 de junho de 1937,
decreto-lei n.º 28:067, 8 de outubro de 1937, decreto-lei n.º 28:129, 3 de
novembro de 1937, decreto-lei n.º 28:468, 15 de fevereiro de 1938, e decreto-
lei n.º 28:869, 26 de junho de 1938.

72
Museologia e Património – Volume 1

i.e., património. A temática do património material e do seu restauro


foi, assim, apresentada neste encontro, tendo sido sempre considerada
como uma das mais importantes evidências da renovação nacional.
Deve, neste âmbito, destacar-se as comunicações “Monumentos
Nacionais – Orientação técnica a seguir no seu restaúro” (1935), da
autoria do engenheiro Henrique G. da Silva, “A Indústria de Turismo”
(1935), proferida pelo engenheiro José Duarte Ferreira, e ainda a tese
do engenheiro Carlos dos Santos intitulada “Turismo” (1935), pelo
facto de todas elas desconstruírem, na ótica do regime, bem entendido,
a pertinência da recuperação, da exibição e da conservação
patrimoniais. O primeiro título exalta as recuperações patrimoniais
mais recentes desenvolvidas em Portugal, “sem deixar de acalentar os
naturais anceios pelas conquistas da civilização moderna” (1935, p.
55), e reforça que “Portugal voltou ao Passado no culto dos seus
Monumentos, restaurando uns, conservando outros, dando, enfim, a
todos a pureza da sua traça primitiva” (1935, p. 55). Os outros dois
títulos justificam a importância que o regime atribui ao turismo,
impulsionando o seu desenvolvimento, por se tratar de um sector que
promove precisamente o restauro e a exibição patrimoniais. Assim,
num contexto de exaltação nacionalista criado por afirmações que
destacam Portugal e as suas virtudes coevas daquilo a que se assistia
no resto do mundo, não é difícil entender a afirmação de Manitto
Torres (1935), segundo a qual o setor turístico representava mais do
que uma mera fonte de rendimento nacional, materializando
igualmente um valioso instrumento de revivalismo histórico e
tradicional, “fixador das riquezas materiais e morais do património (...)
duma consciência nacional do passado, do presente e do futuro” (p.
71), e adivinhá-lo como um útil veículo de propaganda:

De modo que é a tradição – mais cheia de encantos, quanto


mais se exhuma e revéla, mais prenhe de ensinamentos,
quanto mais recúa e a civilização avança na sua desilusão
diária – o único atractivo turístico que resiste, incolume, ao
tempo, ganhando, ao contrário, com êle, novo interêsse! (...)
Cada vez mais cheios de prestígio o passado e a tradição,
servidos em tôdo o mundo por museus e reconstituições cada
dia mais numerosos e magníficos, o turismo tomou-os à sua
conta e dêles fez o seu mais resistente e irresistível atractivo!
73
Museologia e Património – Volume 1

(...) O turismo sabe isto muito bem e assim, ao lado da


antiguidade provecta, surge, tão matemáticamente como a
sombra segue a vara, o hotel moderníssimo, com ascensor,
água corrente e guarda-portão de barba frizada! (p. 93)

Dois anos depois, em 1936, o I Congresso Nacional de Turismo,


que reuniu cerca de cento e oitenta participantes na Sociedade de
Geografia de Lisboa, também viria a ocupar-se de questões
patrimoniais, esse tema tão caro a um regime como o de Salazar.
Cumpre, neste contexto, destacar a tese apresentada por Mário
Cardozo (1936), “Museus e monumentos nacionais no
desenvolvimento do turismo”. A propósito das exigências dos turistas
coevos e da importância atribuída ao património material, o autor
concluiu ser indispensável ao país cuidar “essencialmente das suas
instituições culturais e sociais, que são os elementos da mais sólida e
verdadeira propaganda, capazes de reter a atenção do viajante que
passa” (p. 4). Mário Cardozo defendeu ainda que os monumentos e os
museus constituíam lições eficazes para os visitantes aprenderem
acerca do destino, destacando o papel dos castelos, que entendia como
símbolos da fundação do país, pelo que deveriam ser classificados
como monumentos nacionais (vd. pp. 4, 6).
Em 1945, numa já usual manobra de recapitulação da obra feita
pelo regime do Estado Novo, o Secretariado Nacional de Informação,
Cultura Popular e Turismo (SNI) publicou o livro A Cultura Portuguesa
e o Estado, no qual se referia o restauro recente de mais de duas
centenas e meia de monumentos de acordo com a traça original, num
ato de “devoção patriótica para influir na educação” (p. 53). Poucos
anos depois, a obra 15 Anos de Obras Públicas 1932-1947 (1949)
reiterou a certeza de que a conservação dos monumentos nacionais era
algo que prestigiava a “Nação” (vd. p. 9).
O opúsculo editado pelo Secretariado de Propaganda Nacional
(SPN) Cadernos da Revolução Nacional. Portugal de Ontem. Portugal de
Hoje. Portugal de Amanhã (s/d) denunciara já antes a preocupação do
regime com o património, quando assinalou que os “monumentos
nacionais, quási abandonados, muitos quási totalmente em ruínas,
receberam do Estado Novo oportuna e benéfica protecção” (pp. 64-65),
o que permitiu que os mesmos fossem salvos da ruína, passando a
constituir documentos preciosos e venerandos das eras passadas (vd.
74
Museologia e Património – Volume 1

pp. 64-65). Ainda com o intuito de tentar demonstrar a importância


atribuída ao património, enquanto símbolo da continuidade e do
equilíbrio históricos existentes no regime salazarista, recordamos o
álbum intitulado Representação A Sua Excelencia O Presidente Do
Ministerio Doutor Antonio De Oliveira Salazar Para Que Seja Construido
Em Sagres O Monumento Digno Dos Descobrimentos E Do Infante (1935)
que incluía mais um dos diversos projetos que vinham sendo
elaborados para a realização de um monumento evocativo do Infante
D. Henrique, figura com quem, aliás, Salazar era amiúde comparado,
no que toca a um alegado espírito empreendedor e protetor. Do texto
que acompanha as imagens das maquetas propostas, citamos parte de
uma longa exposição que legitimaria esta edificação, porque nela
encontramos uma clara evidência da vontade que o regime tinha de
construir obras que o eternizassem, pois que

surgem perfeitas e grandes porque nelas colabora um


princípio espiritual dirigente, uma fé colectiva e o génio dos
artistas, criadores mas integrados, sob uma comum direcção
espiritual, num plano mais vasto. (...) A ideia directriz é dada
pela fé religiosa e nacional representada pelos próprios
Governantes, transmitida por homens de Igreja e de Govêrno.
Não deverá de novo o Govêrno da Nação (...) fazer com que
realize a obra de arte colectiva que exprima todo o valor
criador da Nação Portuguesa na sua época? (...) O que importa
é que o Chefe do Govêrno saiba escolher o que mais e melhor
pode engrandecer a Nação12. (...) E a grande e nova
consagração dos Descobrimentos será perfeita e eterna”.
(1935: s/p)

Face à pertinência dos espaços museológicos e expositivos na


construção e na reprodução das retóricas nacionalizantes e turísticas, é
fácil entender que o regime salazarista se tenha igualmente destacado
no domínio das obras públicas. A prová-lo cumpre-nos realçar a
Exposição de Obras Públicas 1932-1947, cuja comissão executiva foi
presidida por Eduardo Rodrigues de Carvalho, engenheiro inspetor
superior do Conselho Superior de Obras Públicas. Do catálogo dessa

12 Itálicos nossos.
75
Museologia e Património – Volume 1

exposição (1947) retemos o louvor feito à política do Estado Novo por


ter sabido criar na população o orgulho de pertencer à “comunidade da
Nação” (s/p), e o reiterar da crença oficial, segundo a qual caberia ao
Estado mostrar e recordar aos seus cidadãos aquilo que deviam ver e
observar:

o português é, por sua natureza, pouco observador e muito


esquecido, nunca será de mais relembrar-lhe o caminho
andado, levando-o a concentrar a sua atenção, ainda que só
por momentos, no extraordinário esforço despendido, e a
poder assim apreciar os benefícios que para o país têm
resultado da política financeira, económica e social que, com
firmeza sem precedentes, vem norteando a nossa governação
pública no período de paz e de progresso dos últimos vinte
anos da vida nacional. (s/p)

Inúmeros foram os projetos elaborados e muitas foram as


obras de estatuária realizadas em louvor das personagens preferidas
da ideologia salazarista. De todos os projetos apresentados
destacamos, naturalmente, o monumento ao Infante D. Henrique e o
Padrão dos Descobrimentos, assim como as propostas para a
construção de estátuas erigidas em homenagem a estadistas, “heróis”
dos descobrimentos e reis, como D. Afonso Henriques, Rainha D.
Leonor, D. Fernando II, António José de Almeida, Óscar Carmona e
naturalmente Salazar, com uma estátua de corpo inteiro produzida
propositadamente para a Exposição Internacional de Paris em 1937.
Além disso, as iniciativas oficiais realizadas em prol da defesa e da
recuperação patrimoniais eram tema recorrente na imprensa como
forma de divulgar à “Nação” aquilo que o regime resultante da
Revolução Nacional concretizava para manter as vivas memórias da
sua história. A maioria das notícias referia as verbas despendidas, as
medidas tomadas, os casos particulares, como foi a conversão do
antigo Mosteiro de Santa Engrácia em Panteão Nacional (vd. Diário de
Notícias, 20 de janeiro de 1935: 1), todos os restauros que seriam
exibidos por ocasião do Duplo Centenário (vd. O Seculo Ilustrado, 27 de
maio de 1939: 16-17), ou a especificidade associada à recuperação do
Castelo de São Jorge, em Lisboa, “verdadeira acrópole da nação” (O
Seculo Ilustrado, 30 de março de 1940: 16).
76
Museologia e Património – Volume 1

Os estudiosos da recuperação patrimonial desenvolvida


durante o Estado Novo português são unânimes no reconhecimento do
caráter eminentemente ideológico que motivava tais ações. Daniel de
Melo (1997) explica que o regime selecionava, sobretudo, “os castelos,
as igrejas e outros monumentos nacionais que simbolizavam uma
ligação concreta ao passado histórico edificante, um testemunho do
espírito patriótico, um marco da sublimação criadora” (p. 58),
enquanto Susana Lobo (2006) defende que interessava
fundamentalmente recuperar os monumentos medievais, entendidos
como testemunhos do nascimento e da consolidação da “Nação” (vd. p.
32). De acordo com a mesma autora, não havia lugar para
equívocos, “clarificavam-se os ideais estéticos identificados com o
Regime em projectos de marcada simbologia nacionalista” (p. 33).
Também Domingos Bucho (2000) destaca a forte motivação política e a
forma como era encarada a recuperação das fortificações medievais,
entendidas como a materialização da alma portuguesa (vd. p. 19). José
Rodrigues (1999), por seu turno, recorda que, no meio de tantos
ímpetos de recuperação, instigados por motivos fortemente políticos,
surgiram inúmeros erros de interpretação artística que acabaram por
destruir ou mutilar monumentos de grande significado histórico que
foram forçados a adaptar-se a constrangimentos coevos, como foi
comum acontecer com a “recuperação” dos templos medievais (vd. pp.
75, 76, 79).
Se pensarmos na vertente nacionalizante do regime de Salazar
não será difícil compreender a necessidade de recuperar, conservar e
exibir testemunhos reais do passado e artefactos de arte popular como
representações patrimoniais válidas da “Nação”. Esta estratégia servia
simultaneamente para convencer públicos nacionais e visitantes
estrangeiros, já que, como sabemos, a observação e a visita de
património material e imaterial são rotinas apreciadas e procuradas
por turistas.
António Ferro, responsável pela propaganda da “Nação” entre
1933 e 1949, período durante o qual dirigiu o Secretariado de
Propaganda Nacional (SPN) e o Secretariado Nacional de Informação,
Cultura Popular e Turismo (SNI), é uma figura incontornável no que
concerne à identificação e à divulgação das corpora patrimoniais mais
adequadas para representar a “Nação”. Recorde-se neste particular, e
meramente a título ilustrativo das inúmeras intervenções de Ferro
77
Museologia e Património – Volume 1

nesse sentido, a designada visita dos intelectuais que promoveu em


1935 e na qual acompanhou um grupo de convidados estrangeiros
ilustres (que incluía Unamuno ou Pirandelo, por exemplo) na visita aos
sítios patrimoniais que melhor representavam a “Nação”, como
Guimarães, Batalha, bairros históricos de Lisboa ou Mosteiro dos
Jerónimos. A ação de António Ferro é igualmente inegável quando se
recorda um dos momentos mais paradigmáticos no âmbito da
identificação do património popular que mais se adequaria a
representar a verdadeira essência nacional e que sucedeu por ocasião
do concurso para eleger a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, em
1938, ano em que o SPN lançou um concurso que visava nomear o
lugarejo mais típico de Portugal. No Boletim Oficial de 7 de fevereiro de
1938, Ferro divulgava as regras da competição, convidando as
localidades rurais a procurar “no mistério das suas gavetas (…) tudo
quanto era raiz, tradição, tudo quanto era passado com restos de
vida” (1948, s/p). Oficialmente, o evento justificava-se como um
necessário combate às influências perturbadoras da unidade nacional,
ao mesmo tempo que se anunciava como uma manifestação pública
que tinha por propósito educar e fazer propaganda da verdadeira
“Nação”.
Como referiu Ferro na inauguração do Museu de Arte Popular,
dez anos depois, o concurso da Aldeia Mais Portuguesa visara
selecionar a localidade “menos penetrada da civilização dos outros,
ainda que tal carácter não fosse incompatível com aquele mínimo de
progresso que se considera indispensável à saúde e dignidade dos
povos” (s/p) e, na lógica do regime, convocar a população a observar
exemplos concretos da “Nação” materializados em diversas formas de
representação patrimonial material e imaterial. Tal é explicado pelo
documento Itinerário (s/d), disponível no espólio da Fundação António
Quadros, que refere que este evento pretendia encontrar um lugar
marcado por uma arquitetura simples, e onde a população usasse um
mobiliário doméstico igualmente rudimentar. A distribuição do casario
seria igualmente avaliada, bem como os trajos, as alfaias e as lides
agrícolas, as artes e indústrias populares, as atividades artesanais, os
meios de transporte, e as rotinas associadas ao lazer e ao recreio (vd.
s/p).
O périplo pelas aldeias a concurso decorreu entre 18 de
setembro e 5 de outubro, com uma paragem para descanso em Évora,
78
Museologia e Património – Volume 1

no dia 1 de outubro. Durante esses dias a caravana avaliou as doze


povoações concorrentes, que deveriam exibir, perante a comitiva de
jurados, representações de património material e imaterial que
provassem que não tinham sido modificadas ou modernizadas devido
ao contacto ou à proximidade com centros mais populosos e, por isso,
“pouco autênticos”. Monsanto da Beira cedo se apresentou como uma
forte candidata ao troféu Galo de Prata, por alegadamente ser uma
representação adequada da boa propaganda nacional e por ter “uma
base séria de regionalismo” (O Seculo Ilustrado, 24 de setembro de
1938, p. 4). O concurso para a eleição da Aldeia Mais Portuguesa foi,
como era hábito, tema de inúmeras páginas da imprensa generalista
portuguesa do ano de 1938. O Século Ilustrado falava do concurso como
“uma linda iniciativa do SPN” (O Século Ilustrado, 18 de junho de 1938,
p. 9). Em setembro do mesmo ano, a publicação Viagem. Revista de
Turismo, Divulgação e Cultura destacava a iniciativa como uma das
mais brilhantes páginas do SPN, recordando que o Secretariado
sempre sustentara a defesa das tradições populares, i.e., do património
imaterial, como afirmação de nacionalismo inteligente e controlado,
numa permanente crença de que o progresso não implicava
necessariamente perda de tipicidade (vd. Viagem. Revista de Turismo,
Divulgação e Cultura, setembro de 1938, p. 1). Para esta publicação,
“carecem os adjectivos de valor ao se tentar definir o alcance, nacional
e patriótico, de criar, como estímulo e homenagem, um prémio à aldeia
mais portuguesa que melhor souber guardar as suas antigas
características” (p. 1).
Ellen W. Sapega (2008) acredita que este concurso pretendeu
recuperar tradições e reinventar memórias coletivas (vd. p. 18). A
pobreza, o primitivismo e o arcaico, por um lado, e a calma, a
virtuosidade e a pureza, por outro, eram termos usados para
apresentar e justificar as candidaturas, e cada visita dos elementos do
júri resultava na encenação de um espetáculo que recriava à força as
alegadas características e o património da região. O facto de, ao
contrário do inicialmente previsto, o concurso ter tido apenas uma
única edição fortalece o ideal de unidade nacional, pois, ao tornar-se a
alegoria real da ruralidade portuguesa, Monsanto terá adquirido as
qualidades de um museu vivo, i.e., passou a ser entendido como um
espaço de evocação constante da memória da “Nação” (vd. pp. 22, 23).

79
Museologia e Património – Volume 1

Grande parte do património que foi identificado e


sistematizado como resultado deste concurso acabou por ser mostrado
em inúmeras exposições, muitas das quais eram frequentes pontos de
interesse de passeios e excursões organizados pela Fundação Nacional
para a Alegria no Trabalho (FNAT), estabelecida por um decreto-lei
que descrevia como sua principal missão “a transformação profunda
da nossa mentalidade, o revigoramento de todos os laços e de todos os
sentimentos que mantêm a comunidade nacional e a perpetuam
através dos tempos” (Decreto-lei n.º 25: 495, 13 de junho de 1935). Era
também o mesmo património oficializado pelo concurso Aldeia Mais
Portuguesa de Portugal que se exibia nas incontáveis feiras e
exposições nacionais e internacionais em que a “Nação” participava ou
de que era organizadora, como aconteceu com a Exposição do Mundo
Português em 1940.

6. O novo habitus e a democratização da criação, da exibição e da


fruição

O caso do Estado Novo português evoca um exemplo extremo


de um contexto político-social muito específico em que representações
patrimoniais, identificadas e divulgadas com o propósito de mostrar
conhecimentos tidos como certos e corretos, foram assertivamente
apropriadas pelo poder institucional que as (sobre)usaram com fins
propagandísticos muito óbvios e pragmáticos. Contudo,
independentemente dos enquadramentos que as acolhem e moldam,
estas representações patrimoniais serão sempre corpora que se
confundem com objetivos e narrativas em nada inocentes, e que jamais
poderão afastar-se dos caminhos trilhados pelos diversos tipos de
poder dos seus atores, dos mais localizados e frágeis aos mais
abrangentes e constrangedores. A seleção e a hierarquização inerentes
ao complexo processo de patrimonialização tendem no sentido da
concretização da melhor e da mais adequada representação do ponto
de vista do agente promotor, cujo objetivo final ambicionará
invariavelmente o balanço pluridimensional possível e sustentável
entre aquilo que se quer, de facto, mostrar, o modo como tal deve ser
exibido, as expetativas dos visitantes (locais ou forasteiros) e os
diversos tipos de lucros e mais-valias que daí poderão ser retirados
por todos os intervenientes. Como refere Marc Guillaume (2003),
80
Museologia e Património – Volume 1

“[c]onservar é sempre artificializar, encenar, (…) transformar o outro


(coisa, ser vivo, pessoa) em objeto de observação de um sujeito
observador” (p. 19).
Porém, “[m]udam-se os tempos, mudam-se as vontades” e, ao
sabor destas mutações sem fim, também as representações
patrimoniais exibidas em contextos pós-modernos de liquidez (vd.
Bauman, 2000) podem adquirir novas formas e ser validadas por
outras vozes em prol de uma autenticidade e de uma tradição que,
apesar de tudo, teimam em ser evocadas. Não descartando jamais a
convicção de que o valor atribuído a um bem ou a uma experiência, ou
ritual, com o intuito de o dar a entender como “Património”, não será
nunca alienado de estratégias manipulatórias de um qualquer tipo de
poder que em tempo algum se afastará de parcialidades
incontornáveis, os cenários sociais coevos sugerem que algo de
diferente se passa. O “Património” autorizado será agora “património”
democratizado, não só por permitir que a designação seja formalmente
aplicada a novos configurações de representações, mas também
porque a valorização cultural estará hoje também um pouco do lado
daqueles que antigamente apenas eram autorizados a fruir o que
outros identificavam como sendo válido. A par do Património canónico
acreditado institucionalmente – o “Património” sólido e indiscutível - e
que continua a ser exibido em áreas mais convencionais, atualmente
cria-se, exibe-se e frui-se outros corpora de representação - os olhares
das primeiras décadas do século XXI procuram novas telas de exibição
e não se coíbem de dirigir os seus focos de atenção para lugares
diferentes daqueles que até há pouco tempo eram os únicos dignos de
expor Património.
Estar-se-á eventualmente perante a materialização de algo
exposto pela Constituição da República Portuguesa (1976) vigente.
Assim, o Artigo 42.º da CRP, Liberdade de criação cultural, estabelece a
liberdade que deverá estar associada às criações intelectual, artística e
científica, especificando que a mesma “compreende o direito à
invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou
artística”. Por seu turno, o Artigo 73.º, Educação, cultura e ciência,
refere o direito à educação e à cultura, sendo que é competência do
Estado promover a “democratização da cultura, incentivando e
assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e à criação
cultural”. A criação de património distinto daquele que se valorizava no
81
Museologia e Património – Volume 1

passado e os novos modos de fruição do mesmo são agora livres para a


criatividade e para um acesso não constrangido e democrático por
parte dos olhares e das práticas que com eles interagem.
Identificado e compreendido o modo como as normas
presentes na CRP (1976) abordam estas novas práticas relacionais
(liberdade de) criação / (liberdade de) fruição, cumpre entender que
palco é este, em que criadores e fruidores se permitem tamanha
emancipação de comportamentos canonizados. Recordemos com Ilídio
Salteiro (2016) que o “tempo é uma entidade física concreta em torno
da qual se relacionam o espaço, a matéria e a energia” (p. 15). Torna-se,
assim, mais natural entender o auxílio conceptual que Pierre Bourdieu
(1979) poderá proporcionar para que se perceba que fenómenos
sociais terão consentido esta mudança de paradigma. Habitus é o
conceito que, neste momento, convida a evocar Bourdieu (1979), por
permitir (tentar) compreender a ausência de solidez que possibilitou o
surgimento desta democratização nos momentos de criação, de
validação e de fruição patrimoniais a que se assiste hoje em dia. Na
ótica de Bourdieu (1979), a (constante) reciclagem de gostos ou
tendências, ou habitus, seja qual for a sua natureza, resulta de
experiências tidas, com alguma regularidade, enquanto membros de
grupos. Nas primeiras décadas do século XXI, pertencemos a grupos
tão diferentes (mesmo que apenas a nível virtual) e tão facilmente
descartáveis e recicláveis que acabamos por viver experiências muito
diferentes que moldam o nosso habitus e que abrem os nossos sentidos
a novas representações que reconhecemos como exemplos (mais)
válidos e significativos de representações comunitárias, com um peso
tão grande quanto têm, ou tinham no passado, as representações
observadas num museu ou num templo religioso, por exemplo. A
formação de tendências é explanada por Bourdieu (1979) como sendo
o natural resultado dessas experiências sociais vivenciadas pelos
sujeitos nas aglomerações a que pertencem, e cuja recorrência cria
padrões de gostos e preferências (vd. p. 191). Extrapolamos os limites
de classe social utilizados por Bourdieu (1979) a favor de diversos
outros polos agregadores eventualmente pertinentes sempre que
falamos de práticas de visitas e de observações exibicionais,
nomeadamente em contexto de práticas turísticas. Rotinas familiares,
constrangimentos etários, formação académica, curiosidade e ânsia por
mais conhecimento poderão servir atualmente como fatores
82
Museologia e Património – Volume 1

condicionantes de gostos e de tendências, nomeadamente no que


refere àquilo que se procura para visitar e atentar enquanto viajante e
observador no século XXI.
Esta é a época em que rotinas, comportamentos e tendências
podem ser explicados metaforicamente pela modernidade líquida
conceptualizada por Bauman (2000), antes evocada, e que
consubstancia a crença de que até os símbolos e representações
patrimoniais mais ortodoxos já não são sólidos. Em vez disso, devemos
compreendê-los como algo que pode ser rapidamente substituído e
desprovido de significado, para adquirir um outro sentido mais útil ou
ajustado a novas realidades várias. Estes são os tempos em que as
ousadias da vanguarda já não surpreendem e são entendidas como
comuns, tal como identificado por Lipovetsky (1983).
A par das inegáveis, salutares e incontornáveis mutações do
habitus, enquanto resultado e concretização real do modo como
fazemos uso do nosso capital cultural, fruto das diversas experiências
de vida percorridas, entendidas como estruturas estruturantes que
organizam todas as práticas e a sua perceção (vd. Bourdieu, 1979, pp.
191-195), a procura de identidades e de autenticidades continua a ser
associada à observação e à experimentação de bens culturais diversos
que são entendidos e valorizados como património que veicula saberes
e conhecimentos perenes. Bourdieu (1979) aplica a noção de habitus
também ao gosto e às preferências por determinados objetos culturais,
em detrimento de outros disponíveis. Será, então, este o contexto pós-
moderno que autoriza e fomenta a liquidez formal e uma determinada
aceitação vanguardista que, em concerto, proporcionam o palco
perfeito para a liberdade e a democratização associadas à criação, à
validação e à fruição no/do mundo do património, antes referidas.
Atente-se, pois, a alguns exemplos que evidenciam estas novas
práticas, referindo, desde já, a intervenção criativa de Vhils, ou
Alexandre Farto, o artista urbano que desde 2000 começou a fazer-se
notar como grafitter, e que desconstrói e “ [problematiza] a memória
coletiva das cidades, a vertigem das suas imagens, as histórias dos seus
habitantes”
(http://www.fundacaoedp.pt/exposicoes/disseccao/dissection/180),
fazendo uso de métodos de trabalho que conquistaram críticos e
público, principalmente após terem sido apresentados no emblemático
Cans Festival de Londres no ano de 2008. Ao mesmo tempo em que
83
Museologia e Património – Volume 1

participa em exposições coletivas ou individuais em espaços canónicos


de exibição patrimonial, como, por exemplo, no Museu da Eletricidade,
em Lisboa, ou na Lazarides Gallery, em Londres, Vhils continua a usar
como telas para os seus trabalhos muros e paredes de cidades, onde
opta pela utilização de técnicas pouco ou nada convencionais que
incluem a remoção das camadas superficiais de estruturas ou a sua
escavação.
O reconhecimento público e oficial que lhe atribuiu em junho
de 2015 o grau de Cavaleiro da Ordem de Sant'Iago da Espada, a mais
antiga ordem honorífica de Portugal, usada para distinguir o mérito
literário, científico e artístico de cidadãos portugueses, é o fruto do
sucesso alcançado pelas suas inúmeras obras com localizações tão
díspares como Las Vegas ou Paris, e também em distintas cidades
alemãs, espanholas, inglesas, brasileiras, australianas ou mexicanas. Na
área de Lisboa existem diversas representações emblemáticas do
artista em igual número de telas exteriores situadas em muitos dos
itinerários percorridos em Alfama, na Avenida Infante D. Henrique, em
Santa Apolónia, em Alcântara ou na Avenida da India (vd.
http://www.alexandrefarto.com/), sempre que se procura os ícones e
representações patrimoniais divulgados pelas narrativas mais
canónicas, como sucede nas zonas mais antigas da cidade e no
conglomerado Belém/Jerónimos. Estas localizações remetem-nos em
concreto para alguns dos mais conhecidos polos frequentados por
turistas, que, quando os atravessam, não podem deixar de observar as
exibições criadas por um artista reconhecido nacional e
internacionalmente, cuja obra também poderão visitar em espaços
mais tradicionais, mas que lhes são, assim, oferecidas gratuitamente,
numa esquina ou num prédio mais antigo, sem que tenham de esperar
ou de procurar. Assim, percorrer e visitar exibições patrimoniais em
Lisboa, num habitus imposto pelos manuais de história ou pelos
ditames de guias turísticos mais ou menos conceituados que os tornam
imperdíveis em quase todos os percursos de lazer calcorreados na
capital portuguesa, é, nas primeiras décadas do século XXI, uma prática
mais heterogénea, mais criativa e, em última análise, mais
surpreendente do que no passado.
O próximo caso remete para uma localização geralmente
afastada das rotinas dos que procuram representações patrimoniais na
área da Grande Lisboa, a zona da Amadora. Parece-nos, por isso,
84
Museologia e Património – Volume 1

pertinente evocá-lo por também ele nos fornecer indícios assertivos de


uma mudança de habitus nas práticas de observação e fruição
patrimonial, representando o acesso democrático e livre antes
evocado, nomeadamente pela Constituição da República Portuguesa
(1976). A revista Smart Cities de março e abril de 2015 foi dedicada à
arte urbana, e nesse contexto publicou uma breve nota, disponibilizada
também no seu sítio eletrónico, a propósito do lançamento de uma
plataforma digital concebida no âmbito de um trabalho académico de
pós-graduação na Faculdade de Letras de Lisboa e patrocinada pela
Câmara Municipal da Amadora (vd. www.smart-
cities.pt/pt/noticia/mapa-do-graffiti-o-acervo-de-arte-urbana-da-
amadora3004/). O Mapa do Graffitti da Amadora (www.cm-
amadora.pt/patrimonio-cultura/335-informacao-geografica/1354-
graffiti) tem por objetivo dar a conhecer a arte urbana existente no
concelho, para o que se disponibiliza informação sobre os artistas, bem
como imagens e pequenos filmes acerca das suas criações, com o
intuito de que possa servir para atrair visitantes que, sem esta forma
de divulgação, provavelmente não visitariam aquelas ruas por falta de
conhecimento das ofertas disponíveis para o novo habitus da prática de
fruição patrimonial (vd. www.rtp.pt/noticias/index.php?article).
Já em 2016, o Bairro Padre Cruz, nos arredores de Lisboa,
serviu de galeria ao ar livre para a criação e a exibição de
representações sob a forma de grafiti. Esta comunidade, o maior bairro
social da Península Ibérica, habitualmente afastada dos roteiros dos
que buscam exibições autênticas e tradicionais de identidades por ser
associada a práticas de convívio e de rotinas sociais mais fora do
designado cânone, foi envolvida num projeto que teve, como momento
mais formal, um congresso internacional organizado pela GAU (Galeria
de Arte Urbana), onde foi transmitida a informação de como também
este espaço começou a atrair ao bairro um número crescente de
visitantes à procura das novas telas que movem os cidadãos
contemporâneos. A própria comunidade local insiste agora em manter
essas telas, e em criar outras, e manifesta publicamente o seu orgulho
pela nova identidade que agora lhe está associada.
A última referência exemplificativa do novo e mutável habitus
de exibição e de fruição patrimonial indica um modo diferente de se
observar e desfrutar de representações patrimoniais, e é
disponibilizada pela Associação Renovar a Mouraria
85
Museologia e Património – Volume 1

(www.renovaramouraria.pt/). Desde 2008 que a associação tem vindo


a trabalhar com a comunidade local da Mouraria, conhecida pela sua
heterogeneidade cultural e pelos baixos rendimentos, que terão
conotado o bairro com práticas sociais menos convidativas e, por
consequência, com um espaço a evitar por não habitantes. Esta
intervenção agenciada pela Associação Renovar a Mouraria
possibilitou que a comunidade tivesse acesso a instrumentos que lhe
permitam reconstruir-se com base em práticas sustentáveis e não em
imposições artificiais esboçadas a nível global ou administrativo. O
principal patrocinador deste projeto é um programa de financiamento
europeu que possibilitou o desenvolvimento de uma série de
atividades destinadas a toda a comunidade e a criação de
infraestruturas como cantinas solidárias, apoio jurídico à população
migrante, apoio escolar, e organização de atividades de convívio. A
oportunidade de se exibir as diversas representações patrimoniais
existentes num bairro tão peculiar como a Mouraria, em concertação
com as várias iniciativas desenvolvidas no âmbito da inovação social
em curso, originou a criação de um percurso turístico pelas ruelas do
bairro, local recomendado por todos os guias turísticos e percorrido
também por caravanas de tuk-tuks. Contudo, a diferença e a
criatividade desta oferta local , materializada pelo projeto Migrantour,
refletem, de novo, o disposto pela CRP (1976), nos Artigos 42.º e 73.º,
i.e. a liberdade de criação e de fruição patrimoniais. O que torna os
itinerários oferecidos pela Associação Renovar a Mouraria e pelo
projeto Migrantour diferentes é o facto de serem guiados por
residentes locais que transportam os visitantes através das suas vielas
e praças do bairro, o que lhes permite ter um contacto com os vários
patrimónios materiais e imateriais que vão encontrando a partir da
perspetiva de alguém que vive, convive trabalha, diverte-se, e aprende
naquelas ruas. Este projeto, tal como refere o site, “promove o trabalho
local. História e estórias com gente dentro é o tema destas visitas.
Vivemos e trabalhamos na Mouraria. Recolhemos histórias e memórias
daqueles que, tal como nós, fizerem deste espaço a sua casa e
enriquecem-no sempre que abrem as portas das suas casas, dos sítios
onde trabalham ou rezam, e nos convidam para entrar”
(www.renovaramouraria.pt/category/visita-a-mouraria/portugues-
visitas-guiadas/).

86
Museologia e Património – Volume 1

Poderiam ter sido aqui igualmente referidos outros casos em


que os símbolos culturais e as representações patrimoniais que atraem
os olhares no século XXI estão fora dos espaços convencionais, ou se
apresentam de acesso livre direto e gratuito, ou, ainda, que
representam formas inovadoras e que costumavam ser rejeitadas, mas
que agora estão disponíveis a todos aqueles, cujo habitus assim o
permita. Poder-se-ia ter nomeado, por exemplo, um conjunto de
talheres de plástico, organizado em formato de coração pela artista
Joana Vasconcelos e que foi exibido no Palácio Nacional da Ajuda,
atraindo milhares de visitantes; ou ainda o nome de Bordalo II, que
manipula diversos tipos de despojos e resíduos materiais para
conseguir exibir representações de um novo património a poucos
metros do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre Belém, reconhecidos
como Património da Humanidade.
Patrimónios “marginais”, locais “marginais” e vozes “marginais”
são, de repente, rececionados como as representações patrimoniais
mais autênticas e significativas do mundo contemporâneo. O
“ajuizamento” e a validação do bem cultural está agora também em
mãos anteriormente “marginais” e desacreditadas, mas que afinal
talvez sejam a possível e melhor materialização da liberdade e da
democratização nas práticas de criação, validação e fruição
patrimoniais coevas.
As sociedades alteram os padrões por que se regem, os seus
membros (re)agem em conformidade, mudando ou adaptando
tendências e gostos em sentidos diversos e aparentemente infinitos,
líquidos e descartáveis. Esta é uma realidade sólida e que terá de ser
tida em conta para que se consiga atingir uma plataforma de satisfação
comum a todos os que participam nas experiências da criação, da
validação e da fruição das diversas representações de património
cultural. Mais do que nunca, todo o mundo é agora, de facto, um espaço
de exibição patrimonial de mais fácil alcance e disponibilizado em
lugares, sob formas e por vozes antes indizíveis.
Conclusão
Este capítulo pretendeu refletir acerca da evolução do conceito
de “Património” / “património” e demonstrar que os processos que
levam à identificação de representações patrimoniais não são o
resultado de “rotulagens” inocentes e naturais, dependendo, antes, de
motivações do contexto social e político que permitem ou excluem
87
Museologia e Património – Volume 1

agentes de autorização cultural, e do consequente reconhecimento


patrimonial de um bem ou de uma prática comunitária. Apesar disso,
“Património” e “património” surgem invariavelmente associados à
exibição de identidades e autenticidades culturais de grupos mais ou
menos extensos, mas são sempre o produto de um “ajuizamento”
constrangido pelos intuitos mais importantes para a época em que o
mesmo é arquitetado e produzido.
Os tempos coevos da globalização e de uma democratização por
que se almeja, também em termos de criação e fruição patrimonial, tal
como evidenciado por alguns dos diversos corpora normativos
referidos, provocaram e promoveram a passagem gradual de um
conceito sólido de “Património”, identificado oficialmente e exposto em
espaços canónicos, onde eram apresentados por vozes autorizadas,
para um “património” mais abrangente, de mais livre criação e de mais
fácil acesso, e que surge como mais natural face às (não)características
da pós-modernidade líquida das primeiras décadas do século XXI.
É outro o habitus de partilha, vivência e fruição culturais e
patrimoniais. Quem observa e experimenta é também instigado a
colaborar na produção, na acreditação e na preservação. Parece que
não existem formas, matérias, espaços e vozes “in-autorizáveis” ou “in-
autorizadas”. São, também, outras as práticas e as tendências que, em
última instância, fazem crer que já se entende a cultura, a identidade
cultural e o património como José Barata-Moura (2016) os desconstrói,
i.e., “cultura não é um depósito de inertes, identidade não é
empedernimento, identidade cultural é um trabalho
inter/intracomunitário de convivência” (p. 7), ou seja, são conceitos
trabalhados e exibidos em resultado e em função de ponderações e de
poderes vários. Usando, ainda, a voz de Barata-Moura (2016), em
tempos líquidos pós-modernos, e em mundos de rápida
descartabilidade e reciclagem urgente, é necessário que

mais aquém da estética dos sentimentos, e de uma apregoada


«ética dos negócios» - o património das culturas [seja] tratado
à luz de um intenso (polifónico, multilinear, controvertido, e
certamente polémico) ajuizamento cultural. Saído de – e
protagonizado por – uma comunidade viva, em que a Cultura
não apenas disponha de tabuleta no portal, e poiso numas
instalações, mas tenha verdadeira respiração efectiva. (p. 20)
88
Museologia e Património – Volume 1

Bibliografia

A Cultura Portuguesa e o Estado (1945). Lisboa: Edições SNI.

Acciaiuoli, M. (1998). Exposições do Estado Novo 1934-1940. S/l: Livros


Horizonte.

Anderson, B. (2006). Imagined Communities. London: Verso.

Assman, A. (2010). From Collective Violence to a Common Future:


Four Models for Dealing with a Traumatic Past. In Helena Silva,
Adriana Martins, Filomena Guarda and José Sardica (Eds.), Conflict,
Memory Transfers and the Reshaping of Europe (8-23). Newcastle upon
Tyne: CSP.

Barata-Moura, J. (2016). Identidade e Património Cultural. A Questão


do Ajuizamento. In Direito do Património Cultural. Curso de Pós-
graduação (s/p). Faculdade de Direito da Universidade de Direito da
Universidade de Lisboa.

Bauman, Z. (2000). Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press.

Botelho, C. (1942). Exposição da Aldeia de Monsanto no Estúdio do S.P.N.


Lisboa: SPN.

Bourdieu, P. (1979). La Distinction. Critique Sociale du Jugement. Paris:


Les Editions de Minuit.

Bucho, D. J. C. A. (2000). Herança Cultural e Práticas do Restauro


durante o Estado Novo (Intervenção nas Fortificações do Distrito de
Portalegre). Tese de Doutoramento em Conservação do Património
Arquitectónico. Universidade de Évora.

Cadernos da Revolução Nacional. Portugal de ontem. Portugal de Hoje.


Portugal de Amanhã (s/d). Lisboa: Edições SPN.

89
Museologia e Património – Volume 1

Cardozo, M. (1936). Museus e monumentos nacionais no


desenvolvimento do turismo. In I Congresso Nacional de Turismo
(1936) (s/p). IV Secção. Lisboa.

Carta de Atenas. Conclusões da Conferência Internacional de Atenas


sobre o Restauro dos Monumentos (1931). Atenas.

Carta de Veneza (1964). Veneza.

Código Global Ético para o Turismo (2001). Organização Mundial do


Turismo.

Comissão Executiva da Exposição de Obras Públicas (1948) 15 Anos de


Obras Públicas 1932-1947. S/l.

Constituição da República Portuguesa (2016, 7.ª Revisão). Lisboa:


Assembleia da República.

Constituição Política da República Portuguesa (1933).

“Convenção de Faro, 2005” in Diário da República, 1.ª série — N.º 177


— 12 de setembro de 2008.

Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela


resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de
dezembro de 1948.

Eco, U. (1998). Faith in Fakes. Travels in Hyperreality. Trad. William


Weaver. London: Vintage.

Ferro, A. (1948). Fundação António Quadros, Caixote 015A, Discursos


de AF, Envelope III. Informação n. º 1328 SNI.

Gellner, E. (2001). Nations and Nationalism. Oxford: Blackwell


Publishers Ltd.

Guia da Exposição de Obras Públicas 1932-1947 (1947). S/l: Soc.


Astoria, Lda.
90
Museologia e Património – Volume 1

Guillaume, M. (2003). A Política do Património. Porto: Campo das


Letras.

Halbwachs, M. (1992). On Collective Memory. Trad. Lewis A. Coser.


Chicago and London: The University of Chicago Press.

Hodgkin, K. & and Radstone, S. (2007). Memory, History, Nation.


Contested Pasts. London: Transaction Publishers.

Howard, P. (2003). Heritage. Management, Interpretation, Identity.


London: Continuum.

Ignatieff, M. (1999). Nationalism and Toleration. In Susan Mendus


(Ed.), The Politics of Toleration (77-106). Edinburgh: Edinburgh
University Press.

Itinerário (s/d). Fundação António Quadros, Caixote 015B, Envelope A


Aldeia Mais Portuguesa.

Lipovetsky, G. (1983). A Era do Vazio. Lisboa: Relógio d'Água Editores.

Lobo, S. (2006). Pousadas de Portugal. Reflexos da Arquitectura


Portuguesa do Século XX. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra.

Melo, D. (1997). Salazarismo e Cultura Popular (1933-58). Dissertação


final de Mestrado em História dos Séculos XIX e XX (secção séc. XX).
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de
Lisboa.

Ministério da Cultura (1998), Relatório Intercalar da Proposta de Lei de


Bases do Património Cultural. Lisboa: Ministério da Cultura.

Morgan, N. & Pritchard, A. (2000). Advertising in Tourism and Leisure.


Oxford: Butterworth-Heinemann.

91
Museologia e Património – Volume 1

Neto, M. J. B. (2001). Memória, Propaganda e Poder. O Restauro dos


Monumentos Nacionais (1929-1960). Porto: FAUP.

Nora, P. (1989). Between Memory and History: Les Lieux de Mémoire.


In Representations. No. 26. Special Issue: Memory and Counter-Memory,
(Spring, 1989), University of California Press: 7-24. URL:
http://www.jstro.org/stable/2928520.

Rodrigues, J. (1999). A Direcção-geral dos Edifícios e Monumentos


Nacionais e o Restauro dos Monumentos Medievais durante o Estado
Novo. In Caminhos do Património (69-82). Lisboa: Direcção-Geral dos
Edifícios e Monumentos Nacionais e Livros Horizonte.

Rosas, F. (2001). O salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o


Estado Novo e a questão do totalitarismo. In Análise Social, vol. Xxxv
(157) (1034-1054). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa.

Rosas, F. (2008). O Salazarismo e o Homem Novo. Ensaio sobre o


Estado Novo e a Questão do Totalitarismo nos Anos 30 e 40. In Luís
Reis Torgal e Heloísa Paulo (Eds.) Estados Autoritários e Totalitários e
suas Representações (31-48). Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra.

Saial, J. (1991). Estatuária Portuguesa dos Anos 30. Lisboa: Bertrand


Editora.

Salteiro, I. (2016). Arte Contemporânea Produção de Património


Cultural. In Direito do Património Cultural. Curso de Pós-graduação
(s/p). Faculdade de Direito da Universidade de Direito da
Universidade de Lisboa.

Sapega, E.W. (2008). Consensus and Debate in Salazar’s Portugal. Visual


and Literary Negotiations of the National Text, 1933-1948.
Pennsylvania: Pennsylvania State University Press.

92
Museologia e Património – Volume 1

Silva, H. G. (1935). Monumentos Nacionais – Orientação técnica a


seguir no seu restauro. In I Congresso da União Nacional (s/p). Volume
IV.

Torres, M. (1935). Bases do desenvolvimento e organização do turismo


nacional. In I Congresso da União Nacional. Discursos, teses e
comunicações (s/p). Volume II.

Viagem. Revista de Turismo, Divulgação e Cultura. Em colaboração com


a C.P. Patrocínio do Conselho Nacional de Turismo. N. º 3. setembro de
1938.

Viagem. Revista de Turismo, Divulgação e Cultura. Em colaboração com


a C.P. Patrocínio do Conselho Nacional de Turismo. N. º 4. Ano II.
Fevereiro de 1941.

Williams, R. (1988). Keywords. A vocabulary of culture and society.


London: Fontana Press.

Diario de Lisbôa. Ano 17.º, N.º 5194, 24 de novembro de 1937.


Diário de Notícias. Ano 71.º, N.º 24768, 20 de janeiro de 1935.
O Seculo Ilustrado. Ano I – Número 24. Edição Semanal do Jornal «O
Seculo”. Lisboa, 18 de junho de 1938.
O Seculo Ilustrado. Ano I – Número 38. Edição Semanal do Jornal «O
Seculo”. Lisboa, 24 de setembro de 1938.
O Seculo Ilustrado. Ano I – Número 73. Edição Semanal do Jornal «O
Seculo”. Lisboa, 27 de maio de 1939.
O Seculo Ilustrado. Ano III – Número 117. Edição Semanal do Jornal «O
Seculo”. Lisboa,30 de março de 1940.

Legislação
Decreto n.º 17:605, 15 de novembro de 1929.
Decreto n.º 21:261, 20 de maio de 1932.
Decretos n.º 26:235 e n.º 26:236, 20 de janeiro de 1936.
Decreto n.º 26:450, 24 de março de 1936.
93
Museologia e Património – Volume 1

Decreto n.º 26:453, 25 de março de 1936.


Decreto n.º 26:461, 26 de março de 1936.
Decretos n.º 26:499 e decreto n.º 26:500, 4 de abril de 1936.
Decreto-lei n.º 25: 495, 13 de junho de 1935.
Decreto-lei n.º 28:468, 15 de fevereiro de 1938.
Decreto-lei n.º 27:878, 21 de junho de 1937.
Decreto-lei n.º 28:067, 8 de outubro de 1937.
Decreto-lei n.º 28:129, 3 de novembro de 1937.
Decreto-lei n.º 28:468, 15 de fevereiro de 1938.
Decreto-lei n.º 28:869, 26 de junho de 1938.
Lei n.º 107/2001, 8 de setembro.
Portaria n.º 8:672, 2 de abril, 1937.
Portaria n.º 8:378, 6 de março de 1936.

Referências em sítios eletrónicos


http://www.alexandrefarto.com/ (último acesso: 14/10/2016).
http://www.cm-amadora.pt/patrimonio-cultura/335-informacao-
geografica/1354-graffiti (último acesso: 14/10/2016).
http://www.fundacaoedp.pt/exposicoes/disseccao/dissection/180
(último acesso: 14/10/2016).
http://www.renovaramouraria.pt/ (último acesso: 14/10/2016).
http://www.renovaramouraria.pt/category/visita-a-
mouraria/portugues-visitas-guiadas/ (último acesso: 14/10/2016).
http://www.smart-cities.pt/pt/noticia/mapa-do-graffiti-o-acervo-de-
arte-urbana-da-amadora3004/ (último acesso: 14/10/2016).

94
Museologia e Património – Volume 1

NUM PEQUENO LUGAR, O MUNDO TODO: O PATRIMÓNIO


FAFENSE E OS CRUZAMENTOS CULTURAIS
BRASIL-PORTUGAL

Fernando Magalhães
Instituto Politécnico de Leiria, Portugal
https://orcid.org/0000-0002-1206-8622

1. Introdução

Num território vasto como o espaço nacional português, o


cruzamento de culturas é frequentemente sublinhado como fator
desafiante das ideias de autênticiade cultural. Nada é puro, nada é
autêntico, porque os fluxos culturais são múltiplos e cruzados. Neste
contexto, a cultura nacional é, antes de mais, esse resultado dos
múltiplos cruzamentos de povos que aqui se estabeleceram ou que por
este território passaram, e continuam a atravessar, e que nele
deixaram os seus comportamentos culturais, gravados naquilo que
hoje designamos como património cultural. Mas o território vasto não
é abstrato, nem desprovido das comunidades locais, de maior ou de
menor dimensão, cujos destinos se intersecionam com os da nação,
pelo menos desde o momento em que estas começaram a ser
construídas, no século XVIII.
É assim que, num pequeno lugar português, a cidade de Fafe, se
reúne o mundo todo, ou pelo menos uma boa parte do meu / nosso
mundo, que tem resultado dos cruzamentos culturais que ao longo dos
séculos se têm estabelecido entre Portugal e Brasil, e que se estendem
para além da língua.
Acostumados a pensar a influência cultural Portugal-Brasil num
só sentido, inviabilizando-se quer as culturas locais, quer as influências
africanas na cultura brasileira e as desta em Portugal, Fafe emerge
como um microcosmo capaz de testemunhar que os fluxos culturais
não se fazem num só sentido, mas em direções múltiplas e
intersecionadas. Esta cidade, e o seu património cultural, são produto
da cultura brasileira e das influências do Brasil sobre a cultura
95
Museologia e Património – Volume 1

portuguesa. Nas pedras dos seus principais edifícios históricos,


públicos e privados, está gravado um pedaço do Brasil ou dos muitos
Brasis, que continuam a ser incontornáveis quando se abordam a
história, a sociologia e a antropologia nacional e local, sobretudo do
noroeste português, âmago da emigração para o Brasil, que se fez
sentir com grande intensidade entre o século XVIII e o inicío do século
XX.

2. Fafe e o Brasil, cruzamentos interculturais

A tradição antropológica ensina-nos a descobrir nas mais


pequenas localidades, os factos socioculturais que nos conduzem à
reflexão dos nossos mundos, no plural, porque eles são, tais como as
dimensões da nossa identidade, múltiplos e complexos. No século XXI
nascemos num lugar, frequentemente estudamos noutro lugar, assim
como podemos trabalhar e viver ainda em outros sítios diferentes,
dentro ou fora da conceção do Estado-Nação, herdada do Iluminismo.
Viajamos em turismo por múltiplos sitíos, e todos esses espaços
contribuem para o permanente refazer-se das nossas identidades
pessoal e cultural.
A cidade de Fafe, terra minhota, portuguesa, onde nasci há
quase meio século, acabaria por despertar a vontade de estudar os
fluxos culturais cruzados que se fizeram e se fazem entre Portugal e o
Brasil, de que esse pequeno lugar é um microsocosmos. São locais que
também atravessam a minda identidade, e de que o património local,
primeiro construído, agora cultural, aí deixado pelos emigrantes de
torna-viagem, se tornou significativo no fazer-se da comunidade local.
Fafe é um caso de estudo na medida em que permite desconstruir
ideias, frequentemente solidificadas na mente do senso comum, que
conduzem à extrapolação de que, sendo Portugal a chegar ao Brasil, há
500 anos, aí deixou as suas marcas culturais, visíveis, por exemplo, na
organização das cidades ou nos elementos empregues na construção
dos edifícios históricos, na língua, na gastronomia, etc. (Matosinho,
2016). Contudo, a cultura brasileira, inspirada também, mas não só,
nos comportamentos culturais que os portugueses aí deixaram, é tal
como este pequeno retângulo, a consequência das fusões dos múltiplos
povos que atravessaram o mundo, dentro das Américas, entre a
Europa, a Àsia, a África e a Oceância e dentro do próprio Brasil, um país
96
Museologia e Património – Volume 1

de dimensão continental.. Inclusive comungamos das características


culturais brasileiras no nosso dia-a-dia, seja no carnaval, na música, na
televisão, na arquitetura, nos azulejos, assim como na língua etc..
São várias as marcas deixadas pelos emigrantes de torna-
viagem, que testemunham esse cruzamento de culturas que tem
múltiplos sentidos geográficos e simbólicos, visíveis no património
cultural. Deste modo, pretendemos, com este texto, refletir sobre as
influências que a miscigenação cultural teve e tem sobre a cultura
portuguesa, apropriando-nos do património cultural para construir
pontes entre culturas. Habituados a pensar sobre o legado cultural que
os portugueses disseminaram pelo mundo, numa relação de poderes
nem sempre ausente da crítica, como é óbvio, afigura-se importante
pensar no caminho inverso, ou seja, qual o contributo que o Brasil tem
dado para o permanente refazer-se das cuturas locais e da própria
cultura nacional portuguesa.
Para concretizarmos o nosso objetivo, discorreremos de
seguida sobre os fluxos migratórios portugueses, para o Brasil, que
tradicionalmente e até meados do século passado, foram mais no
sentido de saída de população do que de entrada, o retorno dos
emigrantes às suas localidades originais, e o seu contributo para o
enriquecimento cultural das mesmas, usando neste estudo, uma
pequena localidade portuguesa, onde a marca dos emigrantes torna-
viagem constitui atualmente o maior legado patrimonial da cidade e do
concelho: Fafe.
O que se pode entender por arquitetura dos brasileiros e qual a
sua importância no contexto quer do património local, quer pelo facto
de Fafe servir como locus de reflexão sobre os múltiplos e cruzados
comportamentos culturais entre Portugal e o Brasil será a outra
questão a responder. Discorreremos, ainda, ao longo deste texto, sobre
a importância da influência da cultura brasileira para o fazer-se e
refazer-se da história e da antropologia local fafenses do século XIX e
XX e o seu reflexo na atualidade.

3. Da “arquitetura dos brasileiros”, à influência dos emigrantes


“torna-viagem” em Fafe: um renovado retorno cultural a casa

Fafe situa-se a apenas 10 km de Guimarães, cidade onde nasceu


Portugal, no centro da região minhota. Concentrando historicamente
97
Museologia e Património – Volume 1

uma alta densidade populacional, os distritos que compõem a antiga


província do Minho reúnem uma população de cerca de um milhão de
habitantes, numa pequena área territorial de 4838 km2. Esta antiga
província haveria de marcar e, de confundir-se, com os ritmos
históricos, antropológicos e espaciais de Portugal, dela tendo saído boa
parte da emigração que se dirigiu, principalmente, para o Brasil até
meados do século XX, e para os países do ocidente europeu, em
particular para a França, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial.
Estes movimentos múltiplos e transnacionais de pessoas e, com
elas, de ideias e bens, acabariam por ter impacto nos modos de vida e
manifestações de comportamentos culturais, tanto nas terras de
chegada como nas de partida, quer pela via da saída, com a perda de
população, quer, sobretudo, pela via do retorno, que acabou por se
manifestar num enriquecimento cultural que resultou das viagens e
diferentes vivências operadas pela emigração.
Em várias localidades do Minho, a influência cultural,
abarcando neste conceito todos os outros campos da vida das
populações, tais como a economia, a língua etc., dos emigrantes “torna-
viagem”, seja do Brasil, seja de França, os últimos na segunda metade
do século XX, não só se tornou visível ao nível das expressões
inguísticas, da arquitetura urbana ou paisagística, como passou a fazer
parte do repertório de poder político e cultural locais. Estes
patrimónios culturais são hoje usados pelos poderes locais e mesmo
pelo nacional, enquanto marcadores identitários, capazes de servirem
para delimitar um lugar e diferenciá-lo dos seus vizinhos, num
processo operado pelas lideranças locais e nacionais, as duas únicas
formas de divisão territorial portuguesas (Bourdieu, 1989).
A localidade fafense é atualmente um exemplo da miscigenação
cultural operada pelos emigrantes de torna-viagem do Brasil, podendo
usar-se esta comunidade local como exemplo das pontes culturais que
unem os dois lados do Atlântico. Os seus principais edifícios, públicos
ou privados, foram construídos por estes emigrantes, no que é
denominada por “Arquitetura dos Brasileiros”. Nessas construções
incorporaram elementos portugueses mas também brasileiros, como
por exemplo no revestimento das fachadas externas com azulejos, ou
na introdução das palmeiras, no Jardim do Calvário, aquando da sua
construção, em 1859.

98
Museologia e Património – Volume 1

Destaca-se também o Hospital de Fafe, cuja edificação foi


iniciada em 1859. Foi construído maioritariamente com capitais dos
filantrópicos «brasileiros de torna-viagem» e inaugurado em 19 de
Março de 1863, sendo uma réplica do Hospital da Beneficência que
ainda hoje existe no Rio de Janeiro (Hospital de Fafe -
http://hsj.scmfafe.pt/contextualizacao-historica/). Como nota Sara
Melo (2016), em nenhum outro lugar do noroeste português, a ação
cultural dos emigrantes “torna-viagem”, em particular brasileiros, foi
tão forte como na cidade de Fafe. A eles se deveram as principais obras
da sede de concelho, nomeadamente o jardim público, denominado
Jardim do Calvário, o edifício do Hospital, o Cine-Teatro, a própria
organização urbanística, e toda uma série de casas particulares
apalaçadas, compostas por clarabóias trabalhadas de formas artísticas
e fachadas revestidas de azulejaria.
A importância deste legado para a comunidade é sublinhado
pelos poderes locais, como se pode observar através do acesso à página
da Internet da Câmara Municipal de Fafe, um dos principais órgãos do
poder autárquico local português. Clicando em “Descobrir”, encontra-
se um ícone do lado direito que refere “Arquitetura dos Brasileiros”.
Neste sítio da Internet, estas entidades assumem como características
diferenciadoras do concelho, quer no contexto regional, quer no
nacional, o legado deixado pelos emigrantes regressados do Brasil, na
localidade. Em “Arquitetura dos Brasileiros”, o edificado citadino
fafense mais expressivo é assim caracterizado:
“O séc. XIX marcou as terras de Fafe, sobretudo com a forte
incidência emigratória para Brasil, na época a terra mais apropriada à
procura de fortuna. Muitos destes emigrantes transportariam, depois,
para Fafe as suas economias, aplicando-asna construção de belos
edifícios e palacetes.
A Arquitetura dos “Brasileiros” é um dos traços marcantes no
urbanismo da cidade de Fafe e é um dos seus mais queridos e aliciantes
ex-libris. A arquitetura deste período é, desde logo, o símbolo da
afirmação e do prestígio pessoal do proprietário e da sua riqueza.
Fundamentalmente são palacetes de grandes dimensões, alguns deles
envolvidos por jardins “tropicais”, com a inevitável palmeira misturada
com árvores de fruto. Impõem-se por fachadas amplas, revestidas de
belíssimos azulejos multicolores, com numerosas portas e janelas, de
pé direito considerável. As varandas estreitas, quase sempre a toda a
99
Museologia e Património – Volume 1

largura do prédio, apresentam guardas de ferro forjado ou fundido,


ricamente ornamentadas. Apontam-se ainda diversos exemplos de
beirais de faiança pintados, normalmente de cor azul. Elemento
fundamental na arquitetura brasileira é a indispensável claraboia,
símbolo maior desse tipo de construção, a encimar o telhado e a
iluminar as escadas interiores.
Edifícios como o Arquivo Municipal, a Casa do Santo Novo, o
Jardim do Calvário e o Teatro Cinema são ótimos exemplos de espaços
onde a influência da arquitetónica brasileira é inegável. Referimo-nos
aqui às fachadas imponentes, os mosaicos averdiscados e amarelos ou
as magníficas clarabóias.
Estes são traços que marcam de forma categórica a arquitetura
e urbanismo da cidade, reconhecendo-lhe grande valor cultural e
oferecendo imagens maravilhosas” (Descobrir – Arquitetura dos
Brasileiros: http://www.cm-fafe.pt/conteudo?item=31283).
A emigração portuguesa para o Brasil tem quase tantos anos
como a chegada dos portugueses a estas terras tropicais, movimento
que se intensificou com a descoberta do ouro e de outras riquezas, a
partir do século XVII, e com maior expressividade nos dois séculos
seguintes (Matozzi, 2016). À semelhança do que aconteceu em grande
parte das terras portuguesas, também de Fafe saíram muitos
emigrantes que, ao voltarem, reconstruíram uma nova vila, dotada de
equipamentos de saúde e culturais bastante inovadores para esse
tempo. Como evidenciado por Fernanda Maia (2009) e Sara Melo
(2016) os séculos XVIII e XIX, particularmente, foram caracterizados
por uma intensa emigração em particular do noroeste português, em
direção ao Brasil. Entre o início e meados do século XVIII, por exemplo,
emigraram para o Brasil anualmente entre 8000 a 10000 portugueses,
num movimento que apenas foi mais intenso do que os seus anteriores
(p. 92). Muitos destes portugueses acabariam por regressar, dotados
de novas dimensões identitárias, visíveis na sua denominação de
“brasileiros”, termo que servia para designar “nã o apenas uma pessoa
nascida no Brasil ou vinculada por descendê ncia a esse estatuto de
nacionalidade, mas també m o emigrante portuguê s que, em teoria,
tinha feito vida e enriquecera por terras de Santa Cruz. Hoje ainda
persistem os dois significados, se bem que atualmente o que nos é
pró prio venha apenas vinculado a avaliaçã o esté tica das mais antigas

100
Museologia e Património – Volume 1

casas de emigrante, as conhecidas «casas de brasileiro»” (Tavares,


2015, p. 23-24).
Os emigrantes de “torna-viagem” eram assim designados em
virtude de se tratar de pessoas que haviam saído, antes, de Portugal em
direção ao Brasil, em tempos onde meios e vias de comunicação não
eram tão desenvolvidos como atualmente, passando boa parte da sua
vida em terras de Vera Cruz. Regressavam, posteriormente, à sua terra
natal. Nesta, acabaram por investir as fortunas feitas além-mar,
legando obras emblemáticas, hoje consideradas património cultural. A
estes emigrantes se devem a introdução de muitos elementos culturais
portugueses no Brasil e brasileiros nas comunidades locais e nacional
portuguesa, num processo caracterizado por interseções culturais de
múltiplas vias.
O termo “brasileiro de torna-viagem” advém, provavelmente
dos séculos XVII / XVIII, encontrando-se referências aos mesmos na
literatura de Alexandre Herculano, que em 1853 escreve “denominação
de brasileiro adquiriu para nós uma significação singular e
desconhecido para o resto do mundo. Em Portugal, a primeira ideia
talvez que suscite este vocábulo é a de um indivíduo cujas
características principais e quase exclusivas são viver com maior ou
menor largueza, e não ter nascido no Brasil; ser um homem que saiu de
Portugal na puerícia ou na mocidade mais ou menos pobre e que, anos
depois, voltou mais ou menos rico” (Herculano, 1983, p. 68).
Estes atores sociais, influenciados pela riqueza cultural, pela
fauna e pela flora tropicais, e pelos desafios criativos que o
tropicalismo neles incutiu, acabariam por trazer consigo novas ideias,
que reproduziram na língua, na arquitetura, na reorganização das vilas
novas como Fafe, na forma como construíram os edifícios mais ou
menos monumentais e revestiram as suas fachadas, com azulejos.
Neste contexto, como refere o historiador José Hermano Saraiva, no
documentário “Horizontes da Memória- Os Brasileiros de Fafe”,
produzido pela Radio Televisão Portuguesa (RTP), em 2002, ao minuto
3.24, “talvez no nosso país não haja nenhuma cidade que deva tanto
aos emigrantes brasileiros, como a cidade de Fafe” (Horizontes da
Memória: https://www.youtube.com/watch?v=P3EWYJIbAmI).
Inicialmente construídos com um valor apenas de uso, os
edifícios deixados pelos emigrantes no Brasil, evidenciam elementos
que os permitiram transformar em testemunhos simbólicos da vida
101
Museologia e Património – Volume 1

cultural da comunidade local. Por um lado, constituem o principal


conjunto urbanístico do centro histórico da cidade de Fafe, por outro
lado, testemunham determinadas técnicas de trabalho, visíveis nos
pormenores decorativos das suas clarabóias, bem como nos materiais
empregues na construção, tais como o azulejo de fachada, ou no estilo
arquitetônico, muito próprio. Outro pormenor interessante do
edificado deixado na cidade, por grande parte destes emigrantes, é a
datação inscrita nos edifícios, feita de modo bem visível no topo das
suas fachadas. Esta datação permite verificar que a maior parte do
edificado foi elaborado entre meados do século XIX e inícios do século
XX, o que é um período relativamente largo da história local. Por
exemplo, entre o Jardim do Calvário, cuja construção se iniciou em
1859 e o Teatro-Cinema, inaugurado em 1923, decorreram
aproximadamente 64 anos, o que permite depreender que a influência,
sobre a cultura local, dos emigrantes torna-viagem não foi temporária
nem efémera, mas prolongada no tempo e sobretudo concentrada
numa área geográfica central da sede de concelho.
A influência destes atores sociais foi ainda maior, se
considerarmos o seu contributo para a construção da Igreja Nova de
São José, cuja inauguração ocorreu apenas em 1961, já em pleno
período da ditadura salazarista do Estado Novo, e quase um século
após a inauguração do hospital. É de salientar, no entanto, que a
construção deste templo religioso “(...) teve a participaçã o de um
brasileiro que contribuiu com oito contos de reis, impulsionando a
construçã o (...) em 1895, sendo só inaugurada em 1961” (Melo, 2016,
p. 95). É este legado, cuja presença se faz sentir com uma intensidade
relevante, que foi classificado como património cultural local, na
medida em que “um indivíduo ou um grupo de indivíduos identifica
como seus um objecto ou um conjunto de objectos” (Magalhães, 2005,
p. 24). Mais do que o “legado que herdamos do passado e que
transmitimos a gerações futuras” (…) a patrimonialização destes
edificios, consiste “num processo simbólico de legitimação social e
cultural de determinados objectos que conferem a um grupo um
sentimento colectivo de identidade. Neste sentido, toda a construção
patrimonial é uma representação simbólica de uma dada versão da
identidade, de uma identidade “manufacturada” pelo presente que a
idealiza. Assim sendo, o património cultural compreenderá então todos

102
Museologia e Património – Volume 1

aqueles elementos que fundam a identidade de um grupo e que o


diferenciam dos demais” (Silva, 2000, p. 218).
Pela importância que adquiriu no fazer-se e refazer-se dos
comportamentos da comunidade local, o edificado legado pelos
brasileiros de torna-viagem assume, como temos vindo a observar,
uma expressão assinalável enquanto marcador identitário da cultura
local. É premente constatar que ele testemunha a entrada da
comunidade na modernidade, e o abandono definitivo do
medievalismo. Antes da contribuição massiva destes atores sociais
para a comunidade local, a vila de Fafe era pequena, mantendo-se no
seu estado medieval, em que dependia sobretudo das atividades
ligadas à agricultura.
O desenvolvimento urbano e industrial ocorre, portanto, a
partir de “segunda metade do sé culo XIX, (em) que Fafe mudou a sua
imagem medieval, devido aos “brasileiros” com a injeçã o de capitais e a
instalaçã o das primeiras indú strias” (Coimbra, 2003, p. 32). Somente a
partir de meados do século XIX, é que o centro urbano de Fafe vê
nascer vários edificios “caracterizadas por uma arquitetura e
decoraçã o de «gosto brasileiro», e «Arte Nova», onde sobressaem as
á guas-furtadas e os andares assotados. As frontarias sã o lisas e
rebocadas a branco ou com graciosos azulejos, onde predominam as
cores amarela e verde. As varandas reduzem-se a uma pedra linear
com guardas de ferro forjado ou fundido e as fachadas, com guias de
pedra, verticais, a toda a altura do edifı́cio, completam com as
clarabóias a decoraçã o destas construçõ es, sı́mbolos do Brasil que
acolheu os emigrantes de Fafe no sé culo XIX” (Monteiro, 2004, p. 38).
Como refere Aline Santos (2016), em á reas ao norte do paı́s,
das quais é emblemá tico o caso do municı́pio de Fafe, localizado na
regiã o minhota, os emigrados foram responsá veis pela construçã o de
escolas, asilos, hospitais, jardins, passeios pú blicos, residê ncias com
arquitetura diferenciada das tradicionais, alé m de terem instalado
indú strias, especialmente tê xteis” (p. 75). No já mencionado programa
“Horizontes da Memó ria- Os Brasileiros de Fafe”, José Hermano Saraiva
refere, no min. 2.51, que “os portugueses de Fafe ajudaram a fazer o
Brasil, e foi o Brasil quem ajudou a fazer este pequeno lugar de Fafe, na
cidade progressiva, ativa que hoje é ” (Horizontes da Memória:
https://www.youtube.com/watch?v=P3EWYJIbAmI). O programa, com
a duração de cerca de 28 minutos, centra-se no património legado
103
Museologia e Património – Volume 1

pelos emigrantes, da cidade de Fafe, iniciando-se no emblemático e já


mencionado Jardim do Calvário. Este jardim foi edificado por um
brasileiro de torna-viagem, de nome Albino de Oliveira Guimarães,
sendo inaugurado em 1892.
Dos mais monumentais e significativos edifícios públicos
legados pelos emigrantes de torna viagem, destacam-se, portanto, dois
elementos claramente comuns a Portugal e ao Brasil: as fachadas
revestidas de azulejos e as clarabóias.
A utilização dos azulejos no Brasil foi disseminada pelos
portugueses, contudo, o seu uso na cobertura integral das fachadas
exteriores atingiu uma dimensão expressiva em terras brasileiras, uma
vez que se tratava de um material adaptado ao clima tropical e suas
consequências sobre o edificado. Tônia Matosinho (2016) no seu artigo
intitulado “Azulejaria e a influência portuguesa nas cidades
brasileiras”, discorre sobre a influência dos portugueses na
organização urbanística e arquitetónica do Brasil, bem como a
introdução de novos materiais como o azulejo, que se revelou bastante
eficaz no revestimento das fachadas dos edifícios sujeitos ao clima
tropical. Como refere a autora,

“Os azulejos existentes nas igrejas do Rio constituem-se de


painéis e funcionam não só como elementos decorativos,
substituindo a ornamentação em talha, mas também como
revestimento parietal. É justamente como revestimento de
superfícies arquitetônicas que o azulejo vai evoluir dos
interiores para as fachadas no Brasil do século XVIII e
descobrir, nos trópicos, sua funcionalidade. (...) Sol, chuva,
maresia e umidade são responsáveis pelo desgaste das
edificações em um país tropical. Como a superfície externa
vitrificada do azulejo reflete a luz, serve de isolante
térmico, proporcionando um ambiente interno mais
fresco; e também repele a umidade, minimizando os custos
de conservação decorrentes da ação das intempéries.
Junta-se a isso a facilidade de limpeza (...)” (Matosinho,
2016, p. 4).

Esta inovação criativa e expressiva do Brasil teve as suas


consequências sobre a arquitetura fafense. Do Brasil vieram novas
104
Museologia e Património – Volume 1

ideias quanto à utilização dos azulejos no revestimento das fachadas de


grande parte dos edifícios fafenses, legados pelos emigrantes de torna-
viagem, num processo de troca intercultural de experiências culturais
que testemunham a riqueza das relações que se construíram entre
Portugal e o Brasil ao longo dos últimos cinco séculos.
Como refere Matosinho (2016) “esse novo uso do azulejo na
colônia acaba ecoando na metrópole. Para agilizar o processo de
recuperação da cidade de Lisboa, destruída pelo grande terremoto de
1755, o Marquês de Pombal manda revestir de azulejos as fachadas
danificadas. Nas palavras de Santos Simões, houve aqui ‘um curioso
fenômeno de inversão de influências, e traordinário e emplo de
comunhão cultural’ (...). Comunhão que se afirma entre a cultura
descendente e aquela que a constituiu, a partir de um patrimônio
azulejar não apenas decorativo, mas reconhecidamente utilitário”
(Matosinho, 2016, p. 4).
Fafe, um lugar relativamente pequeno, do interior minhoto
português, constitui-se assim como um microcosmos da troca de
experiências culturais entre Portugal e o Brasil. Retomando o título, ao
contrário, do artigo de Matosinho, Fafe demonstra a azulejaria e a
influência brasileira nas cidades portuguesas”. Do lado de lá do
atlântico vieram a inspiração que conduziram ao desenvolvimento de
novas estruturas de lazer e de cultura, de gosto requintado e muito
avançadas para a época, tais como o Jardim do Calvário ou o Teatro-
Cienma, edifício executado arquitetonicamente em Arte Nova, ou ainda
o já referido Hospital da Misericórdia. Todo este património tem sido
sobejamente estudado por Miguel Monteiro e Artur Coimbra, dois
historiadores, incontornáveis, no estudo do legado patrimonial que os
emigrantes de torna-viagem deixaram em Fafe. A ambos se deve uma
boa parte da investigação científica efetuada sobre esse património
cultural local e, por isso, entram na categoria dos grandes homens da
cultura fafense. Como tive oportunidade de discorrer em “À procura de
um lugar na Europa: o território e o património nos discursos sobre
Leiria e suas regiões”, publicada em 2012, Pierre Nora (1986) e Mona
Ozouf (1986), dois investigadores franceses demonstraram a
importância que os heróis fundadores e os grandes homens
desempenharam nos discursos subjacentes à fundação dos vários tipos
de comunidades modernas. Neste sentido,

105
Museologia e Património – Volume 1

“A criação dos grandes homens e dos heróis possui, em


cada um destes conceitos, imagens sociais que ora os
aproximam dos seres humanos, ora dos divinos. No
primeiro caso temos os grandes homens, seres mortais,
terrestres, cuja categoria inclui muitas figuras do Estado-
Nação, escritores de renome, pintores, cientistas, poetas e
gente comum como pais de família exemplares. Estes, de
acordo com os cânones da Revolução Francesa,
destacaram-se das massas pelo contributo que deram num
qualquer campo da vida social”.

Os heróis constituem personagens posicionadas num campo de


contacto entre o mundo dos homens e o dos Deuses. Fazem parte desta
categoria os santos, reis, guerreiros e rainhas, muitos deles
santificados. Os heróis estabelecem a ponte entre o mundo visível e o
invisível, reclamando a legitimidade em Deus para exercerem o poder
político sobre os seus reinos (...), no caso dos reis, ou religioso, no caso
dos santos (...). Como declarou Jaime I, rei inglês de inícios do século
XVII, “Os Reis são com razão chamados Deuses, porque exercem sobre
a terra um poder semelhante ao Poder Divino” (Kantorowicz, 1999:
37)” (Magalhães, 2012, p. 221).
Os grandes homens nascem com a Revolução Francesa, sendo
constituídos por personalidades que se destacaram pela sua obra em
prol da nação, desiderato que se estende às comunidades locais. Neste
sentido, Manuel Monteiro ou Artur Coimbra, dois investigadores cuja
obra se centra na comunidade local fafense, são dois “grandes homens”
da comunidade.
Miguel Monteiro foi um investigador do património
arquitetónico fafense legado pelos emigrantes de Fafe, no Brasil, que
retornaram à sua terra e a valorizaram, construindo edifícios que
compõem, hoje, o principal conjunto patrimonial, histórico e
antropológico, da malha urbana. Miguel Monteiro estudou as
dinâmicas socioculturais do concelho de Fafe, desde século XVIII até à
atualidade, centrando a sua investigação numa série de edificações de
valor patrimonial e na sua relação com o fenómeno da emigração dos
"brasileiros de torna viagem" que, financeiramente abastados,
investiram na sua cidade com uma arquitetura recheada de
revivalismos associados a uma apreensão estética, de terras de Vera
106
Museologia e Património – Volume 1

Cruz, a nível das cores e dos revestimentos das fachadas, em azulejo.


São, da sua autoria, obras significativas para entender a vida das
populações fafenses, e o impacto nesta, dos emigrantes torna-viagem,
do Brasil, a monografia “Migrantes, emigrantes e "brasileiros" de Fafe,
1834-1926 : territórios, itinerários e trajectórias”, editada em 2000, e
apoiada pela Universidade do Minho, e “Fafe dos Brasileiros – 1860 –
1930: Perspetiva Histórica e Patrimonial, publicado em 1991, pela
Imprensa Nacional / Casa da Moeda, entre outros. O historiador foi
também um, senão mesmo, o principal impulsionador do Museu das
Migrações e das Comunidades, sendo o autor deste projecto, por
convite do Presidente do Município de Fafe, o qual veio a obter
aprovação em reunião de Câmara Municipal de 12/07/2001.
Associaram-se a esta iniciativa, o Centro de Estudos das Migrações e
das Relações Interculturais e a Federação das Associações Portuguesas
de França. Testemunhando a importância da memória ligada aos
movimentos emigratórios locais, sobretudo para o Brasil e para França,
este museu, instituição central, ao nível da cultura local (Costa, 2018),
foi inaugurado em 12 de julho de 2001. A deliberação da Câmara
Municipal de Fafe que lhe deu origem, atesta o reconhecimento da
comunidade relativamente ao papel que os emigrantes tiveram, e
continuam a possuir, no enriquecimento cultural e económico de Fafe.
O museu foi instalado na Casa Municipal da Cultura, em setembro de
2009, sendo assim apresentado pelas autoridades locais:

“O Museu das Migrações e das Comunidades, percursor no


seu género em Portugal, funda a sua existência no estudo,
preservação e comunicação das expressões materiais e
simbólicas do universo migratório e, em especial, do ciclo
do retorno dos emigrantes portugueses. Inscreve as suas
finalidades na perspetiva do conhecimento dos
movimentos migratórios e, em especial, da emigração
portuguesa, detendo-se particularmente na emigração
para o Brasil do século XIX e primeiras décadas do XX e na
emigração para os países europeus da segunda metade do
século XX. Assenta na descoberta dos seus efeitos,
decorrentes do cruzamento de povos e culturas, na história
económica, social e cultural e naquilo que concorre para a
sua compreensão histórica e social” (Museu das Migrações
107
Museologia e Património – Volume 1

e das Comunidades: http://www.cm-


fafe.pt/conteudo?item=31299).

Os museus locais e regionais iniciaram o seu desenvolvimento


em Portugal, em finais do século XIX e no início do século XX.
Inspirados nas ideias da museologia clássica, estes museus passam, da
mesma forma, a ser instalados em edifícios históricos mais ou menos
sumptuosos, como acontece com o Museu das Migrações e das
Comunidades. As primeiras tentativas de criação de museus distritais
(regionais) em Portugal, remontam ao século XIX, nomeadamente à
circular de 25 de Agosto de 1836, em que se propõe a “construção de
uma Biblioteca Pública e de um Gabinete de Raridades, de qualquer
espécie, e outro de pinturas, em cada capital de distrito” (Gouveia,
1985: 149). Tratou-se da primeira tentativa de cobertura museológica
local do país.

“Embora podendo porventura concluir-se que o objectivo


prioritário desta legislação seria o de proteger “as
preciosidades literárias, e cientificas que pertenciam aos
conventos das extintas Ordens Religiosas”, e de passar a
“empregar com proveito Nacional, todos esses poderosos
meios de difundir a instrução, e de excitar o gosto pelas
letras e belas artes”, será de salientar que se estava
perante um programa envolvendo a cobertura
museológica de todo o país” (Gouveia, 1985: 149).

Contudo, a ideia não era promover a diversidade cultural local,


mas antes, a partir dos gabinetes de raridades regionais, pretendia-se a
inculcação da identidade nacional. A cobertura museológica do país
através deste género de “museus” significava a extensão do poder
central sobre o território português, numa altura em que os meios e as
vias de comunicação se encontravam num fraco estado de
desenvolvimento. Na circular de 25 de Agosto de 1836, revelam-se
como objectivos a atingir: […] empregar, com proveito Nacional, todos
esses poderosos meios de difundir a instrução, e de excitar o gosto
pelas letras e belas artes […] (Circular de 25 de Agosto de 1836: 149).
A instabilidade política, cultural e económica, responsáveis pela
emigração massiva de portugueses em direção ao Brasil, que
108
Museologia e Património – Volume 1

caracterizou Portugal ao longo do século XIX e inícios do século XX,


conduziu à ineficácia desta determinação legislativa. Apenas em finais
do século é que se iniciará um movimento de criação de pequenos
museus de âmbito regional que virá a adquirir considerável expressão
(Gouveia, 1985: 149). É neste período que, coincidindo com a moda da
arqueologia, a disseminação de trabalhos arqueológicos e o
aparecimento de espólios variados, surgem os museus arqueológicos
regionais. Defendia-se que estes museus deveriam situar-se no
contexto original das escavações, junto aos locais onde os vestígios
eram recolhidos (Gouveia, 1985; Ramos, 1993). Para além dos museus
de arqueologia destacaram-se uma série de museus agrícolas e
industriais locais que surgiram em Santarém, Coimbra, Guimarães e
Figueira da Foz.
A aprovação dos primerios projetos museológicos locais e
regionais resultaram de um processo iniciado com o Decreto n.º 1 de
26 de Maio de 1911, em que se revalorizavam os museus regionais
“como complemento fundamental do ensino artístico e elemento
essencial da educação geral” (Ramos, 1993: 45). A partir da “base
legislativa anterior […] são criados no país, entre 1912 e 1924, treze
museus regionais” (Gouveia. 1985: 164-165). Em Fafe, só a partir dos
anos 80, do século XX, é que as atenções das autoridades locais pela
conservação da memória através dos museus começou a ter relevo,
com a inauguração, em meados da década de 1980, do Museu
Hidroelétrico de Santa Rita.
Tal como Monteiro, o historiador Artur Coimbra possui uma
extensa obra bibliográfica sobre o concelho de Fafe, em particular
sobre a cidade e os seus monumentos, demonstrando mais uma vez o
impacto e a importância dos brasileiros de torna-viagem no
desenvolvimento da cidade, uma vez que eles são os atores principais
da obra deste historiador.
Longe de pretendermos analisar exaustivamente a vida e a obra
do historiador, bem como o contributo da sua investigação para o
entendimento do património fafense e do significativo impacto que os
brasileiros tiveram na sua conceção, apresentamos apenas algumas das
obras desenvolvidas por Artur Coimbra. Assim, ao nível da
historiografia e da antropologia local, destacam-se, Maximino de Matos
– Vida e Obra (1989); Grupo Nun’Álvares – Sede Social: do Sonho à
Realidade (1991); Major Miguel Ferreira – Uma Lição de Liberdade
109
Museologia e Património – Volume 1

(1995); Fafe – a Terra e a Memória (1997); Dicionário dos Fafenses


(2001); Desafectos ao Estado Novo (2003), 2ª ed. 2004; Fafe –
Apontamentos de História Local (2003); O Associativismo em Fafe
(2004); Padre Joaquim Flores: Uma Vida ao Serviço do próximo
(2006); S. Julião de Serafão, Mil Anos de História (2006); António
Marques Mendes – Íntimo e Universal (2007); Ruy Monte – Obra
Poética (2007); Ruy Monte – Prosa (2007); Fafe – 30 Anos de Poder
Local (1976-2006) – Alguns Aspectos (2007); Associação Desportiva
de Fafe – 50 Anos de História (2008); Movimento Associativo da
Freguesia de Fafe (2008); Teatro-Cinema de Fafe – Memória para o
Futuro (2009); Associação de Dadores Benévolos de Sangue de Fafe:
uma Lição de Humanidade (2009). Bem mais recentemente, publicou
FAFE, MEU AMOR - Textos e imagens sobre o concelho, 1ª edição, pela
Junta de Freguesia de Fafe, em 2013, e 2ª edição, em 2017, pelo Núcleo
de Artes e Letras de Fafe, com a parceria da Freguesia de Fafe.
Enquanto personalidade elevada a grande homem da cultura
local, Artur Coimbra venceu o Prémio Literário A. Lopes de Oliveira,
com a obra historiográfica “Bombeiros Voluntários de Fafe — Uma
História de Heroísmo desde 1890”, publicada nos anos de 2017 e 2018.
Em suma, a cultura local construiu-se assim de novos
elementos evidenciadores das influências tropicalistas tais como a
inserção de novas espécies de flora no Jardim público ou do
revestimento das fachadas externas dos edifiícos integralmente com
azulejos. Todos estes elementos têm grande impacto na forma como é
feita a historiografia e a antropologia fafenses.

4. Conclusões

Terminando como começámos, a antropologia permite-nos


pensar, reflectir a uma microescala. A diversidade cultural faz-se em
escalas diversas, que vão do pequeno ao grande lugar, atingindo todas
as formas como o espaço físico tem sido alterado pelas culturas
humanas. A partir da sedentarização, o homem e a mulher deixaram de
contar com o mundo todo, para construíram civilizações complexas,
situadas num determinado ponto geográfico, mas longe do isolamento,
não só estas pequenas comunidades se mantiveram em contacto com
as suas vizinhas, influenciando-se mutuamente, como delas viriam a
partir as grandes conceções do Estado e, mais recentemente, da Nação.
110
Museologia e Património – Volume 1

Estas novas conceções de divisão territorial implicaram a elaboração


de novas relações a partir das comunidades locais, quer entre si, quer
com aqueles novos espaços.
Em todo este processo, as lideranças foram determinantes na
divisão do espaço e na invenção de novas comunidades,
nomeadamente na fundação das comunidades locais. Estas
microssociedades tornaram-se cada vez mais complexas sob o ponto
de vista cultural, estando na base do aparecimento de outras de maior
dimensão, com as quais se passaram a relacionar pela via do fluxo
cruzado de pessoas, ideias e bens. Fafe, com as suas lideranças e as
suas populações, constitui o exemplo de uma microssociedade que
emergiu, primeiro como testemunho dos cruzamentos interculturais,
hoje como símbolo e resultado dessas interseções. No início, estas
relações foram particularmente intensas com o Brasil, mas também
com outros países onde se fala português, depois com países europeus,
sobretudo a França. Mas, em nenhumas dessas relações, com a Europa
ou com África, os cruzamentos interculturais ficaram tão visíveis como
com o Brasil e, os testemunhos dessas relações, gravam-se ainda hoje
no centro histórico da cidade. Fafe emerge também como um símbolo
da histórica emigração dos portugueses, principalmente do noroeste
português, em direção ao resto Basil, constituindo uma ponte entre os
dois povos.

Bibliografia

BOURDiEU, Pierre (1989). O Poder Simbólico. Lisboa, DIFEL.

CIRCULAR DE 25 DE AGOSTO DE 1836. In Diário do Governo, n.º 203, de


27 de Agosto de 1836.

COIMBRA, Artur (2003). Fafe – Apontamentos de História Local. Fafe,


Câmara Municipal de Fafe.

COSTA, Luciana (2018). Museologia no Brasil, Século XXI: Atores,


Instituições, Produção Científica e Estratégias. João Pessoa, Editora do
CCTA/UFPB.

111
Museologia e Património – Volume 1

DESCOBRIR – ARQUITETURA DOS BRASILEIROS (2019). Disponível


em: http://www.cm-fafe.pt/conteudo?item=31283. Acessado em 05 de
maio de 2019.

GOUVEIA, Henrique Coutinho (1985). Acerca do Conceito e Evolução


dos Museus Regionais Portugueses desde finais do século XIX ao
regime do Estado Novo. Bibliotecas, Arquivos e Museus, vol. 1, 149.

HERCULANO, Alexandre (1983). A Emigração. 1873-1875. In


Herculano, Alexandre, Opúsculos. Vol. II. Lisboa, Presença, 67-128.

HORIZONTES DA MEMOô RIA- OS BRASILEIROS DE FAFE (2019).


Documentário produzido pela Radio e Televisão Portuguesa, em 2002.
Disponivel em https://www.youtube.com/watch?v=P3EWYJIbAmI.
Acessado em 28 de abril de 2019.

HOSPITAL DE FAFE (2019). História. Disponível em:


http://hsj.scmfafe.pt/contextualizacao-historica/. Acessado em 03 de
março de 2019.

MAGALHÃES, Fernando (2005). Museus, Património e Identidade:


Ritualidade, Educação, Conservação, Pesquisa, Exposição. Porto,
Profedições.

MAGALHÃES, Fernando (2012). À procura de um lugar na Europa: o


território e o património nos discursos sobre Leiria e suas regiões.
Leiria: Insituto Politécnico de Leiria.

MAIA, Fernanda (2009). “Os ‘Brasileiros’ de torna-viagem e as


relações Portugal-Brasil na década de 1930 – estudo de caso”, in
SOUSA, Fernando de; MARTINS, Ismênia; MATOS, Izilda (coord.) – Nas
Duas Margens. Os Portugueses no Brasil. Porto: CEPESE/Edições
Afrontamento.

MATOSINHO, Tônia (2016). Azulejaria e a influência portuguesa nas


cidades brasileiras. Revista Lugar Comum n.º 46. Available in:
http://uninomade.net/wp-
content/files_mf/1463585425LCAzulejaria%20e%20a%20influ%C3%
112
Museologia e Património – Volume 1

AAncia%20portuguesa%20nas%20cidades%20brasileiras%20-
%20Tonia%20Matosinho.pdf.

MATOZZI, Martina (2016). Portugueses de Torna-Viagem. A


representação da emigração na literatura portuguesa. Tese de
Doutoramento em Patrimónios de Influência Portuguesa, ramo de
Estudos Culturais. Coimbra, Universidade de Coimbra.

MELO, Sara (2016). A arquitetura e seus ambientes como simbologia


de uma herança cultural: reabilitaçã o da Casa Summavielle, Fafe. Vila
Nova de Famalicão: Universidade Lusíada. Dissertação de mestrado em
Arquitetura. Disponível em: http://repositorio.ulusiada.pt. Acessado
em 22 de maio de 2019.

MONTEIRO, Miguel (1991). Fafe dos Brasileiros – 1860 – 1930:


Perspetiva Histórica e Patrimonial. Fafe: Fafe, Imprensa Nacional/Casa
da Moeda.

MONTEIRO, Miguel (2000). Migrantes, emigrantes e "brasileiros" de


Fafe, 1834-1926 : territórios, itinerários e trajectórias”. Edição de autor
apoiada pela Universidade do Minho, Braga.

MONTEIRO, Miguel (2004). Fafe dos "brasileiros" (1860-1930).


Perspectiva histó rica e patrimonial. Fafe, Diá rio do Minho.

MUSEU DAS MIGRAÇÕES E DAS COMUNIDADES (2019). Disponível em


http://www.cm-fafe.pt/conteudo?item=31299. Acessado em
29/05/19.

NORA, Pierre (dir.) (1986-1992a) Les lieux de mémoire I-VII. Paris,


Gallimaurd (7 vols.).

NORA, Pierre (dir.) (1986-1992b) ”Entre Mémoire et Histoire”. Les


lieux de mémoire - I La République. Paris, Gallimaurd, 17-42.

OZOUF, Mona (1986) “Le Panthéon, L’École normale dês mortes”. In


Nora, Pierre (dir.) Les Lieux de Mémoire – I La République. Paris,
Gallimard, 139-163.
113
Museologia e Património – Volume 1

RAMOS, Paulo (1993). Breve história do museu em Portugal. In


Trindade, Maria Beatriz Rocha (coord.) Iniciação à Museologia. Lisboa,
Universidade Aberta, 19-62.

SANTOS, Aline (2016). SISTEMA MIGRATOô RIO BRASIL-PORTUGAL.


Hierarquias geográ ficas e dinâ micas dos fluxos e contrafluxos
populacionais no limiar do sé culo XXI. São Paulo, Universidade de São
Paulo, 2016. (Tese apresentada ao Programa de Pó s-Graduaçã o em
Geografia Humana do Departamento de Geografia, da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciê ncias Humanas da Universidade de Sã o Paulo,
como Requisito Parcial para Obtençã o do Tı́tulo de Doutor em
Geografia Humana).

SILVA, Elsa (2000). Património e identidade. Os Desafios do Turismo


Cultural. Antropológicas, 4, 217-224.

TAVARES, Domingues (2015). Palacete Marques Gomes. Porto: Dafne.

114
Museologia e Património – Volume 1

VIRTUAIS E DIGITAIS:
O PATRIMÔNIO MUSEOLÓGICO EM BITS

José Cláudio Alves de Oliveira


Universidade Federal da Bahia, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-2887-2025

1. Introdução

Quando o pleno acesso à web tornou-se viável ao público, os


media sugeriam que um dos principais benefícios fosse o ganho
cultural e educacional às pessoas comuns. Cidades seriam conhecidas,
obras clássicas estariam ao alcance do mouse, as mais diferentes
músicas ficariam disponíveis, as notícias ganhariam velocidade on-line,
o conhecimento de séculos estaria indexado em bilhões de links,
transações comerciais seriam feitas em minutos e cada pessoa poderia
se comunicar e partilhar seus objetivos e desejos com milhões de
outras pessoas.
Esta etapa do processo histórico contemporâneo – iniciada
entre os anos 1980 e 90 – recebeu o nome de globalização. A palavra
remete ao que é atual, dinâmico, tecnológico, de tempo acelerado,
massivo, sem fronteiras, interligado e, em certa medida,
democratizante – um atrativo importante à Internet que esteve no
imaginário dos indivíduos foi a facilitação da visita aos museus na web.
Este novo tipo de frequência de visitantes impôs aos museus uma
mudança de estética e de linguagem e uma necessidade de buscarem
novos meios de manter a eficácia de sua finalidade.
O presente capítulo traz definições conceituais sobre o museu
virtual (MV), o museu digital (MD), o cibermuseu (CM) e o museu
presencial (MP), que pegaram o caminho infinito do ciberespaço,
iniciando pela World Wide Web (WWW) nos anos 1990. Aqui, além de
aportar em pesquisadores e teóricos que se debruçaram sobre os MVs,
o texto se restringe aos sites de museus, como marcos iniciais de uma
museologia no ciberespaço, e tece algumas diferenciações – de

115
Museologia e Património – Volume 1

evolução ou não – que instituições empregaram em seus designs


informacionais entre 2004 e 2019.

2. Entre o virtual e o digital. Diferenciações

Antes de discutir as definições que giram em torno dos


“museus virtuais” é preciso diferenciar os conceitos de virtual e
digital, indo para além do conceito de “museus virtuais” que foi
exposto no primeiro capítulo, de forma sintética. (grifos do autor)
A palavra virtual é de origem latina virtualis e deriva da palavra
latina virtus, que significa força e potência. Alguns autores, como
Philippe Quéau (1995) e Pierre Lévy (1999a, 1999b) debruçaram
sobre esta questão sob o ponto de vista filosófico.
Philippe Quéau (1995), ao questionar a noção de realidade,
considera que o virtual deve ser entendido como uma outra
experiência do real. Repensando o conceito aristotélico de potência,
Queáu faz uma analogia entre o esboço de desenho que antecede a
obra de arte para explicar o virtual. Segundo Quéau, no entanto, é
preciso distinguir a potência do virtual: “Lo potencial es aquello que
puede convertirse en actual. Lo virtual es la presencia real y discreta de
la causa”. (13) (QUÉAU, 1995, p. 28) Para este autor, o virtual está mais
próximo do conceito de potencial das teorias físicas contemporâneas,
do que do conceito de potencial preconizado por Aristóteles, que via na
potência uma atitude para receber uma forma. Nesse sentido, também
Mário Perniola (1994) distingue o virtual como o não potencial da
tradição, pois “a oposição aristotélica entre paciência e ato privilegia o
ato que constitui a forma plena e final do ser, a própria existência do
objeto, em relação à qual a potência é mera pré-formação, pré-
determinação, pré-existência”. (PERNIOLA, 1994, p.107)
Outra peça da presente abordagem vem de Bernard Deloche
(2001), que trabalha o conceito de virtual sob um ponto de vista
estético. O que interessa aqui é que o autor trabalha uma virtualidade
que engloba a ideia de síntese (simulação do real) e de imagem
numérica. Isso permite que o virtual possa renovar profundamente o
status da imagem, modificando a sua relação com a arte, e.g.

13 - Tradução livre: “O potencial é aquilo que pode converter-se em atual. O


virtual é a presença real e discreta da causa”.
116
Museologia e Património – Volume 1

Subsumindo o caso do museu, nos seus aspectos virtual e


digital, ele passa a ser um mediador da relação do público com a arte. E
para isso, concluí-se com Deloche, que é preciso distinguir o virtual do
digital, pois a digitalização de uma determinada imagem não é
necessariamente a criação de uma imagem virtual. O virtual não se
confunde com o irreal ou o imaterial, pois C´est donc ailleurs qu´il faut
chercher la virtualité de l´art, non pas dans l´irréalité ou l´immatérialité
mais dans la positive même du sensible: montrer le sensible par un
artefact. Et l´art n´est rien d´autre que la virtualisation du sensible. (14)
(DELOCHE, 2001, p.150). (grifos do autor)
Deloche (2001) acredita que a arte é um artefato, um produto
artificial que o Homem interpõe entre ele mesmo e o mundo. Nesse
caso, a virtualização consiste em passar de um artefato a outro
artefato, como uma espécie de substituição. Deloche trabalha com os
conceitos de Gilles Deleuze, onde “O virtual não se opõe ao real,
somente ao atual. O virtual possui uma plena realidade enquanto
virtual”. (DELEUZE, 2000, p. 342) Para Deleuze, deve-se evitar,
contudo, confundir o virtual com o possível, pois “(...) o possível opõe-
se ao real; o processo do possível é, pois, uma realização”. (DELEUZE,
2000, p. 345). Por isso, neste estudo não está se trabalhando conceito
de virtual em oposição ao real, mas em complemento ao físico.
Para compreender a diferença entre “museu virtual” e “museu
digital”, é necessária uma distinção clara entre o virtual e o digital. O
digital só é possível a partir de um processo de digitalização, e o virtual
já é uma realidade em si, em potência. A imagem digital é uma matriz
de números, contida na memória de um computador, ou seja, a imagem
digital é a representação de uma imagem real, em formato informático.
Gubern (1996) utiliza os postulados de Aristóteles sobre a potência e
faz uma distinção entre a produção da imagem e o seu resultado: “[…]
podemos llamar al modelo lógico-matemático de la producción
infográfica la obra en potencia y a la imagem resultante la obra en acto,

14 - Tradução livre: “E por isso é necessário procurar a virtualidade da arte,


não na irrealidade ou na imaterialidade, mas no sensível: mostrar o sensível
através de um artefato. E a arte não é outra coisa senão a virtualização do
sensível”.
117
Museologia e Património – Volume 1

correspondientes a las dos etapas de su modelización y de su


visualización”. (15) (GUBERN, 1996, p. 143)
Ainda em relação à questão da digitalização nas discussões de
arte e de estética, Régis Debray (1992) aponta a digitalização como
uma ruptura na história da imagem no Ocidente. Para este autor, a
passagem do analógico ao digital é uma ruptura tão grande quanto a
arma atômica o foi para as guerras.
Finalizando a questão do virtual, é interessante deixar claro que
a virtualidade não passa necessariamente pela Internet. A virtualidade
é aquilo que existe potencialmente. Já o digital é representado
exclusivamente por números (segundo um código convencionado) e,
portanto, passível de processamento por computadores.

3. Construindo a concepção do museu virtual

O conceito de “museu virtual” ainda é algo novo no campo da


comunicação. Conforme foi visto, a Internet é uma realidade mais
difundida de apenas 28 anos. Antes disso, o seu uso era restrito a
ambientes científicos e militares. Foi somente com a difusão da rede
mundial de computadores, em termos públicos e comerciais, que, a
partir de 1994, os museus começaram a aparecer como condição de
media eletrônica e, consequentemente, estar no crivo dos estudos da
comunicação e outras ciências, não ficando restrito, portanto, à
museologia e arquitetura.
Anna Lisa Tota (2000), que diz que os “museus virtuais on-line”
são na sua maioria, aproximações imperfeitas dos museus físicos,
parece fazer uma ligação bastante próxima do que alega Pierre Lévy,
quando afirma que “os ‘museus virtuais’, e.g., não são muitas vezes
senão maus catálogos na Internet, enquanto o que se ‘conserva’ é a
própria noção de museu enquanto ‘valor’ que é posta em causa pelo
desenvolvimento de um ciberespaço onde tudo circula com fluidez
crescente e onde as distinções entre original e cópia já não têm
evidentemente razão de ser”. (LÉVY, 1999a, p. 202)

15 - Tradução livre: “(…) podemos chamar o modelo lógico-matemático da


produção infográfica ‘a obra na potencia’ e a imagem resultante «a obra no
ato», correspondendo às duas etapas de sua modelização e sua visualização”.
118
Museologia e Património – Volume 1

A questão que se levanta aqui, e que Lévy reforça, é importante,


na medida em que a discussão sobre os museus virtuais ainda se
arrasta. Lévy nesta afirmação dá uma pista de como os especialistas
poderiam trabalhar a questão dos “museus virtuais”, discutindo a
própria noção de valor e de conservação de patrimônio.
Essa questão é trazida aqui por ser verificada a sua pertinência
numa mídia que, do espaço tradicional, passa a habitar o infinito
espaço virtual, e também buscando um autor que tece comentários
contundentes acerca do museu de uma maneira não especificamente
museográfica ou museológica, mas enquadrada no campo da
comunicação. Portanto, não se trata apenas de uma transposição do
sentido próprio ao figurado, ou seja, de uma simples metáfora.
É certo que ainda há pouca discussão teórica sobre os “museus
virtuais”. Segundo Weriner Schweibenz (1998) o conceito de “museu
virtual” está em constante construção e é fácil confundi-lo com as
outras denominações, tais como: museu eletrônico, museu digital,
museu on-line, museu hipermedia, meta-museu, museu cibernético,
cibermuseu e museu no ciberespaço. (grifos do autor)
Por se tratar de uma temática ainda nova na museologia, não
há um consenso em relação ao que é considerado museu virtual e o
que é apenas um site de museu. A maioria dos autores que trabalha
com a questão aponta para uma definição ligada à virtualização dos
objetos e sua apresentação on-line, sem uma discussão mais profunda
sobre os aspectos teóricos deste tipo de abordagem. (grifos do autor)
Para melhor entender a discussão sobre o conceito dos museus
virtuais, o quadro e o comentário a seguir trazem uma relação com
alguns conceitos propostos por diversos autores e ilustrações de
museu pertinentes a cada ideário: (v. quadro 1)

Autor Ano Concepções de museu virtual


Glen 1992 Conexão entre várias mídias, múltiplas
Hoptman16 perspectivas.
Sergio 1997 Uma réplica do museu físico.
Talens e José
Hernandez17

16 - Retirada do artigo de Werner Schweibenz (1998). The virtual museum.


119
Museologia e Património – Volume 1

Jamieson 1997 Uma coleção eletronicamente


Mckenzie organizada de artefatos (pinturas,
fotografias, etc.).
Artur 1997 É um meio que oferece ao utilizador um
Colorado18 fácil acesso aos objetos do museu.
Arnold 1998 Hipertexto eletrônico no ciberespaço que
Haupt contribui para a museologia e o
patrimônio cultural.
Werner 1998 Meios para estabelecer o acesso, o
Schweibenz contexto, usando a tecnologia de
informação.
Pierre Lévy 1999a Catálogos eletrônicos com função de
marketing do museu presencial (MP)
Antonio 1999 Trata-se de um ‘outro museu’, de um
Battro museu virtual em paralelo com o real,
seu complemento no ciberespaço, com
vida própria.
Bernard 2001 Indica o campo da problemática do
Deloche museal, isto é processo de
descontextualização/recontextualização
do museu.
Maria 2002 Folheto eletrônico; museus realmente
Piacente interativos; museu no mundo virtual

Quadro 1 – Quadro de definições de museu virtual

Dentro da concepção de Glen Hoptman (1992), o


http://www.nmai.si.edu/ é um museu digital (MD) que desenvolve
conexão entre várias mídias em múltiplas perspectivas. O MD
corresponde à sua interface presencial, o National Museum of
American Indian, localizado em Washington, DC (EUA). É um museu do
tipo Concebido, cuja categoria única está voltada para a Etnologia. O
museu possui, presencialmente, criticidade, com objetivo de se

17 - Retirada do livro de Maria Luísa Bellido Gant (2001). Arte, museos y


nuevas tecnologias, p. 248.
18 - Ibidem, p. 249.

120
Museologia e Património – Volume 1

aproximar às etnias e manter programas coordenados a partir das


diversas comunidades que trabalha. (figura 1)

Figura 1. HOME http://www.nmai.si.edu/


Acesso em março de 2019

O National Museum of American Indian (NMAI) é um caso


exemplar de um museu com preocupações de resgate e preservação de
traços de várias etnias do México ao Canadá. Com isso, além da
interface do museu, em MD, ele tem em seu projeto, e já em atuação,
uma rádio e uma televisão. No projeto do MD há perspectivas de
funcionamento da rádio e TV, o que o tornará mais interativo ainda.
O MD, bastante rico, com interface com o Sistema de
Documentação e Museológica (SDM), traz um sistema de busca aberto,
que pode ser trabalhado com tipo de objeto, nome, estrutura, arte e
região. Ao ser executado, a resposta vem em página separada com as
opções e porcentagem dos resultados encontrados. (v. figura 2)

121
Museologia e Património – Volume 1

Figura 2. Busca no NMAI.


Primeira etapa: digitação da palavra-chave no campo do
sistema.
Palavra utilizada: Funerary
Fonte: http://www.nmai.si.edu/

O sistema é rápido e auxiliado pelo acervo geral do Smithsonian


Institution. Os textos e imagens são hipertextualizados, com
comparativos e indicativos de publicações, sempre levando a marca do
Smithsonian Institution.
O MD, apesar de criar uma integração com diversas mídias,
possui uma falha, o vídeo é indisponível. O link para a televisão abre o
site da emissora – assim como o da rádio – mas apresenta apenas o
projeto, os locutores, apresentadores e indicativos dos programas.
Hoje, na exposição on-line, o MD disponibiliza textos e imagens
em PNG, o que não acontecia em 2004 a 2007, quando era utilizada a
linguagem Flash (Macromedia Flash Player 7). Ele é capaz de captar a
relação de vários objetos de variadas dimensões em apenas um ângulo.
Isso demonstra um salto qualitativo frente a outros museus da mesma
categoria que não articulam essa interatividade.
Na concepção de Arnold Haupt (1998), quando referencia o MD
como um Hipertexto eletrônico no ciberespaço, como um contributo
para a museologia e o patrimônio cultural, o exemplo principal é o
http://www.vattenriket.kristianstad.se/, interface do Museu Ecológico
Kristianstads Vattenrike localizado em Kristianstad, Suécia. (v. figura
3)

122
Museologia e Património – Volume 1

Um ecomuseu de grandes dimensões, com preocupação em


trabalhar o ecossistema como um todo, o que vem demonstrar a
concepção da “nova museologia” da década de 1980, quando projetou a
figura do ecomuseu e dos museus comunitários.

Figura 3. HOME http://www.vattenriket.kristianstad.se/


Acesso em março 2019

O Vattenrike objetiva mais o ecossistema, a fauna e a flora. Os


aspectos da história social ficam em segundo plano e de forma
diminuta no plano digital. O MD, em 2004, trazia poucas imagens
ilustrativas de animais e paisagem, deixando fluir a informação em
textos em HTML, nas próprias páginas, em PDF (em inglês), com
ilustrações e links bastante informativos.
Na época, um filme de doze minutos esclarecia muito sobre a
região, o circuito, o público, a monitoria, a fauna, flora e a herança
cultural da região. Tudo em Windows Media Player, narrado em inglês,
com excelente qualidade, podendo inclusive ter o seu download.
As imagens de aves e outros animais vinham em gravuras e
fotografias, em tamanho básico de 14 ks com ampliação para 59 ks em
JPG. Nem todas eram linkadas, mas em cada grupo – aves, peixes,
mamíferos – havia os textos em PDF que auxiliavam em muito a
informação, ilustrativa e textual, sobre todo o habitat. Hoje, as figuras
não existem, mas mapeamentos, PDFs dos anuários do museu e vídeos
trazem essenciais informações sobre fauna e flora.
123
Museologia e Património – Volume 1

Na sua versão de 2004, duas webcams traziam imagens, em


tempo real, da região de Kristianstad, onde se podia notar a
movimentação do trânsito e das pessoas, o clima e a preservação
ambiental do patrimônio total. Havia, também, outro suporte de
fotografias do museu que eram atualizadas a cada dez segundos. E a
informação, em tempo real do tempo. Atualmente há links para outras
reservas ecológicas e museus ao ar livre.
A concepção de Werner Schweibenz (1998), que vê o MD
como meio para estabelecer o acesso, o contexto, usando a tecnologia
de informação, pode ser exemplificada na versão on-line que vigorou
de 2003 a 2005 do Museu da República, localizado no Rio de Janeiro,
Brasil, cujo portal http://www.museudarepublica.org.br/ está
completamente modificado no
http://museudarepublica.museus.gov.br.
Museu presencial (MP) de edifício convertido, com categoria
principal ligada à História, bastante tradicional, possuiu uma interface
que procurava dar ênfase à instituição, aos projetos e, com a utilização
multimídia da tecnologia, informações televisivas e de busca de dados
ao visitante.
Um dos maiores museus históricos do Brasil, o Museu da
República disponibilizou nessa interface integração entre web e SDM
(Sistema de Documentação Museológica), possibilitando a pesquisa ao
acervo museológico, ao arquivo histórico, à biblioteca e, de forma
“geral”, auxílio na navegação e busca dos dados.
O acervo museológico podia ser pesquisado por: assunto,
coleção, data, autor (es), objeto (s) e/ou materiais/técnicas. O arquivo
histórico por: assunto, data, coleção e/ou série/subsérie. A biblioteca
podia ser consultada por: assunto/idioma, autor/produtor e/ou título.
A parte geral consultada por: assunto, coleção, data, autor/produtor
e/ou título. Ao pesquisar qualquer um desses acervos, era oferecida
uma ficha técnica do objeto. Nem todas as fichas com fotografia. Fichas
básicas que traziam dados e informações do objeto.
O link para entrar no sistema estava no menu, em coluna, à
esquerda, no item Educação e Pesquisa. Nele se podia entrar no
“Centro de Referência da História da República Brasileira” – que foi
fundado em 1983, constituído por “uma biblioteca com cerca de 10 mil
livros e publicações sobre Ciências Sociais e História do Brasil,
incluindo obras raras; 176 títulos de vídeo; 100 títulos de CD-ROM
124
Museologia e Património – Volume 1

sobre arte, história, museus e variedades; e 600 títulos de periódicos. O


Centro de Referência ainda abriga o acervo original da época em que o
Palácio do Catete era sede da Presidência da República, o que inclui
doações pessoais, como a Coleção Pereira Passos, a Coleção Igreja
Positivista do Brasil, a Coleção Getulio Vargas e a Coleção Memória da
Constituinte. Todo o acervo bibliográfico podia ser pesquisado
gratuitamente no portal Centro de Referência da História Republicana
Brasileira”, onde o pesquisador tinha a interface entre os sistemas
(digital, arquivo, museu, biblioteca).
Além da disponibilidade de vídeos (Windows Media Player), o
MD possuía a WEBTV, em fase experimental, desde 10 de maio de
2004, quando o Governo Federal lançou o Sistema Brasileiro de
Museus, com apresentação do Ministro da Cultura, Gilberto Gil, no
Museu da República; e logo após, em 27 de maio de 2004, o Projeto
Memória do Movimento Estudantil Brasileiro, com debates e
Depoimentos de José Serra, José Dirceu, Aldo Rabelo, Lindberg Farias e
vários outros.

Conceituar a proposta da TVMUSEU é, sem dúvida, um


grande passo para inclusão dos museus brasileiros na
tradição de entretenimento. Os parâmetros que norteiam
conceitualmente este novo espaço são baseados no que
existe de mais moderno na discussão da inserção dos
museus e seus acervos no mundo NET, complementando e
potencializando todos os conteúdos dos Museus e
instituições similares, estimulando e facilitando a visita
presencial, democratizando o acesso à informação,
documentos e acervos.
<http://www.tvmuseu.com/webtv.htm> ( ) 19

Os programas previstos para a WEBTV eram: Jornalismo Diário,


Museu Novidade no Brasil e no Mundo, O Que Acontece nos Museus,
Museu Entrevista e Debate, TV Museu Jovem, Formando na TV MUSEU,
O Que Acontece nas Universidades.
O MD transmitia as imagens em tempo real de três webcams
em três salas de exposição do museu. Isso permitia, há milhares de

19 Link hoje inexistente. 18 de maio de 2019


125
Museologia e Património – Volume 1

distância do MP, o internauta ver um possível roubo ou depredação do


patrimônio. Sabendo que essas câmeras eram a base de vigilância
interna no museu, onde um monitor acompanhava tudo. De toda
forma, os visitantes estavam diante de um sistema de vigilância
interativo, que facilitava todos verem o MP ao vivo, mas que também
permitia ao invasor analisar os movimentos nas salas para uma
possível ação ilícita.
A exposição, o café, serviços, cursos etc., eram também itens do
menu que ficavam, nesse caso, em segundo plano, não pela
importância, mas pelo ótimo projeto de documentação que o MD
comportava, mesmo levando em conta que, ao encontrar os dados do
tema/objeto, o pesquisador não tinha textos que contemplavam a
totalidade do seu assunto, mas referenciais que, entre os sistemas,
podiam elucidar em muito o caminho da pesquisa.
Hoje o museu traz uma página com a apresentação e visita
virtual, em 360 graus, com áudio que conta a história do museu e de
alguns pormenores do seu acervo e do que está exposto, mas sem
qualquer conteúdo para uma pesquisa de nível de principiantes. A
página não passa de ilustração da arquitetura e exposição, ainda assim
com limites.
A concepção de Pierre Lévy (1999a), que critica os MDs como
catálogos eletrônicos com função de marketing do MP, pode ser
ilustrada com o http://casadeportinari.com.br/, espelho do Museu
Casa de Portinari, localizado em Brodowski, São Paulo, Brasil
O MP é um Museu-casa, cuja categoria básica é a biográfica e a
secundária, por se tratar de um grande pintor, voltada para a História
da Arte. O gênero é tradicional. (v. figura 4)
Na sua primeira versão digital, o portal trazia vinte e sete
imagens dos objetos. A qualidade das imagens dos objetos e dos textos
limitava-se ao nome, data, técnica e tamanho (quando obra) e nome
(quando local). Era possível salvar e ampliar. Não havia
tridimensionalidade para objetos escultóricos. Todos locados em
exposição e não em acervo, cujo link apenas informava o que se podia
encontrar na interface presencial, sem qualquer hipertexto que o índex
ou sistema de busca, a exemplo dos lugares onde viveu Portinari e
alguns dos seus objetos, sem maiores detalhes textuais.

126
Museologia e Património – Volume 1

Figura 4. HOME http://casadeportinari.com.br/


Acesso em março de 2019

O MD era, portanto, apenas uma interface informativa do MP,


constituindo-se em um pequeno catálogo eletrônico com um pífio
quantitativo do acervo e da informação. O MD não possuía vídeo, o que
se tornava falho quando se pretendia falar da cidade natal de Portinari
e do próprio museu. Hoje, o acervo é apenas ilustrativo e com
complemento informacional geral do que existe. Do ponto de vista
“virtual”, resta a visita em 360 graus.
O http://www.mac.usp.br/, entre 2003 e 2005, espelho do
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, enquadrava-se na
concepção de Antonio Battro (1999). Tratava-se de um “outro museu”,
de uma arquitetura complementar com vida própria em
funcionamento no ciberespaço, paralelo com o MP, estendendo textos,
sistema de busca nos acervos, e ludicidade que no MP não são
mostrados.
Battro assinala que o “museo virtual es aquél que se encuentra
expuesto en Internet y es interactivo con el usuario de la red…No sigue
un recorrido predeterminado o un camino obligado. Puede pasar de un
cuadro a otro sin recorrer toda la galería o seguir una visita guiada
paso a paso, con toda suerte de indicaciones y explicaciones críticas. A
la salida, podría hacer también alguna compra - a distancia - en la
boutique del museo virtual. Por ahora no se puede sentar en el bar del
museo a tomar un café virtual con un amigo pero no conviene excluir

127
Museologia e Património – Volume 1

nada. Los avances técnicos nos deparan sorpresas en cada esquina”.


(BATRRO, 1999, p.3) (20)
O MAC está localizado em São Paulo, Brasil. É um museu de
arquitetura concebida, com categoria fechada na arte. O gênero é
Tradicional, embora haja projetos pedagógicos. (v. figuras 5 e 6)

Figura 5 – o MAC em 2004 Figura 6 – o MAC em 2019


HOME http://www.mac.usp.br/

O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo


(MAC USP) possui um acervo de cerca de 8.000 obras, entre óleos,
desenhos, gravuras, esculturas, objetos e trabalhos conceituais,
constituindo grande patrimônio cultural com decorrências sociais
nacionais e internacionais. São obras de artistas como Anita Malfatti, Di
Cavalcanti, Brecheret, Tarsila, Rego Monteiro, Portinari, Oiticica, De
Chirico, Modigliani, Boccioni, Picasso, Chagall, entre tantos outros.

20Tradução livre: “o museu virtual aquele que se encontra exposto na Internet


e é interativo com o usuário da rede...Não se segue um roteiro predeterminado
ou um caminho obrigatório. Pode passar de um quadro a outro sem recorrer
toda a galeria ou seguir uma visita guiada passo a passo, com toda ajuda de
indicações e explicações críticas. À saída poderia se fazer também uma
compra – a distância – na butique do museu virtual. No momento não se pode
sentar no bar do museu pra tomar um café virtual com um amigo mas não
convém excluir nada. Os avanços técnicos nos trazem surpresas em cada
esquina”.
128
Museologia e Património – Volume 1

Multiplicador do saber e da excelência do próprio acervo,


sempre acompanhando os desafios sociais, o MAC USP é uma grande
sala de aula, laboratório e espaço aberto a todas as formas de diálogo e
criação que expressem a densidade da arte contemporânea - ponte
para todos os processos que envolvem a vida do homem atual, espaço
para todas as linguagens, poéticas e ousadias.
A exposição virtual e o gabinete de papel contavam, em 2004,
com duzentos e vinte objetos apresentados, que podiam ter o
download e ampliação das suas imagens, cujos textos abrangiam o
nome, local, data, técnica, tamanho, forma de aquisição, informação
sobre o trabalho do autor e contexto histórico, sem suporte
videográfico, mas com a possibilidade de consultar o Catálogo On-line,
através do Dedalus, e as novas aquisições da biblioteca, o que
correspondia à interface com o sistema de documentação e a interação
com dois grandes sistemas do museu.
Ainda em sua abertura (home) o MAC mostrava quatro
exposições temporárias previstas para finalizar ainda em 2004. A
amostra, com textos e imagens, era uma síntese das suas interfaces
presenciais.
Com uma coluna vertical à esquerda, o MD trazia links para
biblioteca, informações, história, exposições, eventos e projetos, além do
apoio, que era uma forma de marketing para instituições, como a USP e
Petrobrás, e empresas.
Em linha horizontal, a home trazia, em um dos links, o acesso ao
“MAC VIRTUAL”, “projeto que integra a arte à tecnologia digital.
Múltiplas informações em diferentes idiomas (português, espanhol e
inglês), consulta, estudos, entretenimentos”. [Previa] “a organização de
três eixos: tornar visível a ação do acervo, laboratórios, projetos,
exposições e demais atividades do MAC USP, o seu campo experimental
com pesquisas, curadorias e criações (Museu Experimental) e a
interatividade lúdica e educativa (Museu Lúdico)”
http://www.mac.usp.br/
Ao entrar no MAC VIRTUAL, o observador podia perceber os
links para o acervo, as exposições, os cursos e os projetos, ainda
seguidos pela barra vertical, à esquerda, que direcionava o pesquisador
para o ponto inicial.
Ainda na home o observador podia perceber os dois projetos
MD. Aquele que se parecia com a interface do MAC, e o “virtual”, que,
129
Museologia e Património – Volume 1

além de oferecer uma interface mais sistemática, possuía um grau de


interatividade mais avançado e uma maior facilidade de busca e
elementos textuais mais completos.
No acervo do “MAC VIRTUAL”, as instruções para pesquisar e
interagir eram claras logo ao abrir a página, quando uma janela se
abria com opções para o catálogo virtual, glossário e obras. O buscador
possuía três opções, através de iniciais em alfa, com a procura por
tema, movimento artístico, material, autor, tendência ou período. Nesse
campo, havia uma seta que se abria em cortina. A outra opção era
digitar o nome do autor, mas que tinha de utilizar a segunda opção. Por
exemplo: escolher na cortina a palavra “técnica” e, em autoria, o nome
“Abramo”. O resultado sai em link para “ABRAMO, Lívio”, que foi um
artista da gravura, nascido em Araraquara, SP, Brasil, 1903 e falecido
em Assunção, Paraguai, 1992.
Na parte superior dessa mesma janela, imagens escultóricas,
pictóricas e de instalações deslizavam lentamente em horizontal. Todas
linkadas, e com o click, apareciam no centro da janela como se fosse um
processo de busca. As imagens escultóricas e de instalações não
possuíam tridimensionalidade, o que era uma falha para o bom projeto
de busca e apresentação que tem o MD.
O ludismo era todo desenvolvido para a Exposição, com páginas
musicadas e com elementos de interação para crianças e adultos. (v.
figura 7)

Figura 7. MAC VIRTUAL. Ludismo em uma das exposições


Fonte: http://www.mac.usp.br/
Acesso em 2004
130
Museologia e Património – Volume 1

Além do ludismo, o MAC VIRTUAL trazia uma série de projetos


que contemplavam o MAC presencial e o virtual. Era o caso da
curadoria virtual 3D, “um Projeto de Pesquisa desenvolvido no
Laboratório de Tecnologias Interativas do Departamento de
Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da USP com
apoio do MAC USP e do Banco Santander”. (http://www.mac.usp.br/)
Era necessário se cadastrar. O usuário, após o fácil e rápido cadastro,
podia selecionar obras e criar uma exposição, que poderia ser visitada
por novos cadastrados. A seleção e a análise dos objetos tornavam-se
uma espécie de curadoria.
Ao analisar sites de “museus virtuais” na net, Maria Piacente,
em sua tese de Masters of Arts nos Estados Unidos, enumera três tipos
de websites de museus. (PIACENT Apud SABBATINI, 2002, 2 p.) (21) O
primeiro tipo de sites é o folheto eletrônico, cujo objetivo é a
apresentação do museu. Este tipo de site funciona como uma
ferramenta de comunicação e de marketing. O internauta tem acesso à
história do museu, aos horários de funcionamentos e às vezes ao corpo
técnico do museu. É o tipo mais comum em quase todos os museus, e
que foram os primeiros alvos da crítica de Pierre Lévy. Alguns são mais
bem elaborados, dependendo dos recursos existentes no museu, mas
todos têm como objetivo principal ser uma apresentação visual, tal
como um folheto, do museu. Nesse caso, a Internet funciona como uma
forma de tornar o museu mais conhecido e também possibilitar um
acesso mais fácil pelos utilizadores da rede mundial de computadores.
(grifos do autor)
O Museu do Automóvel de Floriano, Floriano, Piauí, Brasil,
aportado no portal www.floriano.net (22), foi um dos melhores
exemplos para esse tipo. O MP é de tipo edifício convertido e traz uma
categoria voltada para o Automobilismo. (v. figura 8)

21 A autora trabalha o termo “categoria” e não “tipo”. Aqui “categoria” é


sinônimo de espécie de coleção ou acervo.
22 Não mais disponível. Em 18 de março de 2019

131
Museologia e Património – Volume 1

Figura 8. HOME Museu do Automóvel de Floriano – Piauí.


Acesso em junho de 2004
Não mais disponível. Em 18 de março de 2019

Apenas seis imagens de objetos e cenas eram apresentadas


nesse MD. Tratava-se de fotografias, sem qualquer efeito, portanto sem
tridimensionalidade, sem possibilidade de ampliar, apenas “salvar”.
Não havia vídeo. E a qualidade dos textos sobre o objeto era
muito ruim, apenas nome e data. Por exemplo, em uma das fotos há o
nome da atriz Ana Paula Arósio grafado de forma incorreta, e o
comentário de uma foto “Um Chevrolet Belair 1956 com uma terrível
Gata: Ana Paula Arozes”. (v. figura 9) Sem qualquer interface com o
sistema de documentação.
O site trazia doze links para portais sobre carros antigos. E o
internauta podia entrar em contato pelos endereços: Sítio Jacilândia
perto da Escola Técnica Federal do Piauí e do Parque de Exposição
Agropecuária. Bairro Meladão – Floriano – PI – Brasil. 0xx86 522-1406
e 522-1656. E-mail: sobral@florianonet.com.br
O segundo tipo trabalhado por Piacente (Idem) é o museu no
mundo virtual. Neste tipo a instituição apresenta informações mais
detalhadas sobre o seu acervo e, muitas vezes, através de visitas
virtuais.

132
Museologia e Património – Volume 1

Figura 9. Museu do Automóvel de Floriano.


Imagens do museu. No verbete o nome errado da atriz.
Fonte: www.floriano.net/museudoautomóvel
Acesso em 2004

O site acaba por projetar o museu físico digitalmente e muitas


vezes apresenta exposições temporárias que já não se encontram mais
montadas em seu espaço físico, fazendo da Internet uma espécie de
reserva técnica de exposições. Além disso, muitos deles disponibilizam
bases de dados do seu acervo, mostrando objetos que não se
encontram em exposição naquele momento ou mesmo disponibilizam
informações sobre determinado assunto. (grifos do autor)
Nesse tipo pode-se encontrar alguns sites de museus
brasileiros e portugueses. Entre eles destaca-se o site do Museu
Nacional de Arqueologia, tutelado pelo Instituto Português de Museus
de Portugal.
O Museu Nacional de Arqueologia está localizado em Lisboa,
Portugal. É um MP de tipo convertido, com categoria voltada para a
arqueologia e gênero tradicional. A sua URL, correspondente ao MP, é o
http://mnarqueologia-ipmuseus.pt/ em inglês, português e francês. (v.
figuras 10 e 11)

133
Museologia e Património – Volume 1

Figura 10. HOME Figura 11. HOME


http://mnarqueologia- http://mnarqueologia-
ipmuseus.pt/ ipmuseus.pt/
Acesso em junho de 2004 Acesso em março de 2019

O MD disponibilizava muitos objetos do acervo, principalmente


porque havia interface entre sistemas. Um sistema de busca rápido e
ágil que encaminhava o pesquisador ao SDM do museu. A qualidade
das imagens, a partir da busca deixava a desejar, já que havia pequena
ampliação sem tridimensionalidade.
A busca era feita escrevendo uma palavra combinada com a
categoria que se queria procurar. Pesquisa nas coleções por: coleções
(geral), proveniência, categoria, tipologia e cronologia. Pesquisa por
categoria: coleções (geral), armas, arquitetura, artefatos de metal,
artefatos ideotécnicos, bronze figurativo, cerâmica, epigrafia, escultura,
instrumentos e utensílios, mobiliários fúnebre, mosaicos, numismática,
objetos de uso pessoal, ourivesaria, utensílios líticos e subprodutos e
vidros. Era possível pesquisar nas exposições: exposições (geral),
permanente e temporária. Pesquisa na biblioteca por: pesquisa global,
índice OAP e edições do MNA. Havia também a pesquisa geral por
palavra.
O museu também disponibilizava – parcamente e
periodicamente eleitas – cinco imagens em flash com rotatividade de

134
Museologia e Património – Volume 1

360º inteirada com o mouse. Um passo para o museu que pretendia


articular esse esquema com a totalidade do acervo.
Com o mouse, a imagem se movimentava em uma giratória
horizontal, sem qualquer alteração do texto, que possui a mesma
característica dos demais buscados.
As rotativas eram as únicas em tridimensão. Não podiam ser
salvas diretamente no clique do mouse, apenas com a utilização da
tecla print screen. As demais imagens do acervo vinham em duas
dimensões, assim sendo: em tamanho menor no resultado da pesquisa
e na sua ampliação.
Não havia vídeo, mas era possível ver alguns espaços do museu
em ângulo 360 graus em Macromedia Flash Player 6 a partir do link
“visita virtual”. O cibernauta podia obter uma imagem aproximada do
Átrio do Museu, de onde podia se dirigir para qualquer das áreas
expositivas.
Sobre o acervo da biblioteca se podia obter: título, autor, série e
ano (índice OAP- O Arqueólogo Português) e título, edição, autor, ano,
número de páginas, ISBN e preço para as edições MNA (Museu
Nacional de Arqueologia). Também com sistema de busca.
Em termos de Comunicação Museológica (exposição), o site não
se limitava a mostrar vitrines e prateleiras com objetos, mas “linkava”
tematizações trabalhadas no passado e no presente, com textos e
imagens que mostravam e relatavam os eventos, além de disponibilizar
temáticas em buscas que revelam textos sobre o acervo.
Havia links para o Instituto Português de Museus
(www.ipmuseus.pt), para o ministério da cultura (www.min-
cultura.pt), para um site de arqueologia brasileira
(http://www.itaucultural.org.br/arqueologia/) e diversos outros sites.
Era possível comprar on-line os produtos da loja do museu, ou
seja, o site também presta uma espécie de serviço de e-commerce para
o museu. Além disso, o MNA é também um site de informações sobre
arqueologia em Portugal. Premiado pela Unesco em 2002 com ‘Web
Art d'Or’, de melhor site de museus do mundo, o Museu Nacional de
Arqueologia foi um bom exemplo de um site de museu no mundo
virtual.
O MNA fica também no passado, pois hoje conta apenas com
um site que reflete somente numa propaganda do museu, com tão
somente informações do que presencialmente possui, e uma abertura
135
Museologia e Património – Volume 1

palaciana na sua página inicial. Na verdade, um retrocesso museológico


desta instituição no ciberespaço.
O terceiro tipo classificado por Piacente (Ibidem) é o que ela
denomina de museus realmente interativos. Neste tipo de site, pode
até existir uma relação entre o MD e o MP, mas são acrescentados
elementos de interatividade que envolvem o visitante. Às vezes, o
museu reproduz os conteúdos expositivos do MP, e em outros casos, o
MD é bem diferente do museu físico. O que torna estes museus
interativos é a forma como eles trabalham o público. A interatividade é
a alma desse tipo de site de museu, pois permite que o público possa
interagir com e no museu. Neste caso, é importante salientar que o
museu na Internet não perde as suas características essenciais e que
pode adquirir novas facetas. Ou seja, os objetivos dos sites e Apps não
são necessariamente diferentes do museu físico, mas complementos
deles. (grifos do autor)
Um bom exemplo, entre outros, é o Museum of Childhood, cujo
MP está localizado em Londres, Inglaterra, e sua URL no
https://www.vam.ac.uk/moc/ em inglês. O MP é de arquitetura
concebida e abriga uma categoria voltada para brinquedos. Em seu
especo presencial o gênero é tradicional. (v. figuras 12 e 13)

Figura 12. HOME. Figura 13. HOME.


https://www.vam.ac.uk/moc/ https://www.vam.ac.uk/moc/
Fonte: Fonte:
https://www.vam.ac.uk/moc/ https://www.vam.ac.uk/moc/
Acesso em junho de 2004 Acesso em 18 de março de 2019

136
Museologia e Património – Volume 1

Tal qual em 2003-2004, hoje o MD não disponibiliza imagens


do acervo. Ele apenas informa as suas atividades, mesmo tendo um link
para “exposição”. Disponibiliza dois arquivos em PDF que referenciam
o acervo permanente, novas aquisições e o total de objetos, e outro que
fala do número Recorde de visitantes à exposição.
Havia, por outro lado, um ótimo campo para o ludismo. No link
“build a toy” (criar um brinquedo), o internauta podia construir um
personagem e jogar com ele. O jogo possuía três níveis e era disponível
para as faixas etárias a partir dos cinco anos de idade, com
possibilidade do emprego de cálculo, conhecimento de ângulos,
velocidade e perigo. Bastante interativo.
Em “Moving toys”, o internauta podia escolher uma figura de
um brinquedo, disponível em várias formas, como um sapo, o Fredy e
Barney dos Flintstones, Pernalonga e outros, e vê-la cantando. Era
necessário ter o programa Quick Time. Havia também um link para
uma página sobre o acervo de ursos de pelúcia, mas com imagens
meramente ilustrativas, sem caráter de acervo.
E o Museu das Crianças hoje é mais um que demonstra uma
alteração para o somente informativo das suas programações e dos
seus programas presenciais. A interatividade e a apresentação de
acervos não mais existem on-line.
Entre os autores que trabalharam a questão dos museus
virtuais, destaca-se Bernard Deloche, que discute a questão sob um
prisma filosófico, museológico e comunicacional, com mais
profundidade. Em sua obra ‘Le musée virtuel’, publicada em 2001,
Deloche estuda a questão da virtualidade no processo museológico.
Debruçando-se basicamente sobre os museus de arte, Deloche
estuda o que ele chama de tripla reciprocidade da arte. Para ele, a arte
está ligada a três termos fundamentais: o estético, o museal e o virtual.
O estético teria como processo o sentir, o museal expor e o virtual
substituir.
Para Deloche, o virtual é onipresente e possibilita a emergência
de outra cultura, pois “Le virtuel a, d´un seul coup, élargi sans
restriction le champ de l´expographie”. (23) (2001, p.17) Em sua

23- Tradução livre: “O virtual alargou, de um só golpe e sem restrições, o


campo da expografia.”
137
Museologia e Património – Volume 1

definição de arte “la présentation du sensible par un artefact”. (24)


(2001, p. 47).
O “museu virtual” permite a dessacralização da arte, do objeto
sensível. Mas não se deve, afirma Deloche (2001), fazer do museu um
depósito de arte. Deve-se também evitar a fetichização da arte pelos
museus. Para este autor, o museu tem uma dupla função estética:
comunicar e analisar. O museu é um lugar privilegiado de experiências
sensoriais. Deloche afirma que o museu é um templo da imagem,
utilizando o conceito de museu paralelo, ou seja, o museu virtual é
aquele que existe na virtualidade, quase como um substituto, um
museu sem lugar e sem paredes. No entanto, para ele, não há
incompatibilidade entre o museu paralelo e o físico, a que ele dá o
nome de institucional. O exemplo trabalhado a partir de Battro
corresponde à noção que Deloche trabalha sobre os museus da web.
(Grifos do autor)

“(...)l´histoire montre qu´un deuxième musée a sans cesse


doublé le musée officiel, il s´agit du musée de substitus,
d´un musée virtuel si l´on veut, géneralement sans lieu et
sans murs, et cependant tout aussi réel et certainement
plus efficace que ne l´est le musée institutionnel 25”.
(Deloche, 2001, p. 162) (grifos do autor)

Em relação à posição de Deloche sobre os MDs, embora se


concorde aqui que o MD seja um museu sem lugar e sem paredes,
discorda-se quando ele diz que se trata de um museu substituto. Ora,
quando o MD é uma vertente digital de um museu físico, ele não é um
museu substituto. Ele pode, sim, ser um museu complementar, como
fala Battro, pois pode existir fisicamente e ter uma vertente virtual.

24 - Tradução livre: “a apresentação do sensível através de um artefato”.


25 - Tradução livre: “(…) a história mostra que um segundo museu duplica o
museu oficial, sem dúvida, trata-se do museu dos substitutos, de um museu
virtual se quisermos, geralmente sem espaço e sem paredes, mas, entretanto,
tão real e certamente tão eficaz quanto o museu institucional”. (grifos do
autor) Observação: não concordamos com o termo institucional, pois pode
gerar confusão, dando a entender que o museu virtual não é uma instituição.
No entanto, ele também pode ser uma instituição. Para referenciar o museu
físico falamos do museu presencial (MP)
138
Museologia e Património – Volume 1

Nesse sentido, o MD pode ser tão ou mais eficaz do que o museu físico,
mas não substituirá o MP, pois se trata de cultura, estética, sistemas e
ambientes diferenciados (LUHMANN, 1992, p. 100)
Os bancos eletrônicos não substituem o banco presencial, com
atendimento face a face; lojas, livrarias não são diferentes dos
shoppings eletrônicos na web e na compra por telefone. A escolha do
produto, a circulação pela loja e os contatos são casos que se diferem
do ambiente na web. Assim são os museus. Passear em um ecomuseu
requer esforço físico que se diferencia da visão de um vídeo sobre o
mesmo ecomuseu virtualizado na net. A contemplação na tela, no
ambiente eletrônico, difere-se da contemplação na galeria presencial.
Tanto Antonio Battro (1999) quanto Bernard Deloche (2001)
trabalham com a concepção de museu virtual, baseados no conceito do
museu imaginário defendido por André Malraux, que propunha a
criação de um museu que serviria para abrigar todas as obras de arte
do mundo, devidamente fotografadas e publicadas em álbuns que se
podiam adquirir em qualquer livraria.
O museu virtual é uma espécie de um museu imaginário porque,
em primeiro lugar, ele trabalha com a reprodução, e em segundo lugar,
porque ele é uma referência patrimonial. Mas segundo Battro (1999),
“El museo virtual es mucho más que poner fotos en Internet de las
reservas, colecciones permanentes y muestras temporarias. Se trata de
concebir un museo totalmente nuevo”. (26)
Bernard Deloche diferencia o museu virtual do cibermuseu.
Para ele, o museu virtual é um museu paralelo, aberto às novas
sensações. Os sites ou os CD-ROMs dos museus são, para Deloche,
cibermuseus, pois modificam ou complementam o museu físico. Já o
museu virtual é uma nova concepção do mesmo patrimônio,
apresentada de forma virtual. (grifos do autor)
A partir desses vários conceitos trabalhados pelos diversos
autores, distinguir-se-á aqui dois tipos de museus na web. Os Museus
Digitais (MDs) e os Cibermuseu (CMs), e por museu virtual entender-
se-á aqueles expressos em suportes que criam uma virtualidade
potencial dos museus presenciais (MP) que possuem limites na sua

26 - Tradução livre: “O museu virtual é muito mais do que por fotos na Internet

das reservas, coleções permanentes e exposições temporárias. Trata-se de


conceber um museu novo”.
139
Museologia e Património – Volume 1

apresentação. São, portanto, museus virtuais os pequenos recortes


espelhados do MP. Uma fase com objetivo básico de recorte sobre
determinado aspecto do MP. Nesse caso, e.g., o museu imaginário de
Malraux, trabalhado sobre fotografia, com respaldo para catálogos e
livros. A fita VHS também é um recorte e virtualização do museu. O
recorte temporário que o vídeo traz com narrativas em áudio e
imagens que apresentam espaços abertos e fechados dos museus. CD
ROMs e DVDs são reproduções off-line em mídias digitais, com sistema
multimidiático e hipertexto, porém fechados, sem links para o
ciberespaço. Os CDs funcionam como uma exposição que se instala e se
mantém ad eterna com aquela mesma informação e estética. A
diferença entre um CD ou DVD da fita VHS, analógica com resolução a
partir de linhas, está na qualidade da imagem e no circuito – randômico
nos discos em detrimento da seqüencialidade das fitas. (grifos do
autor)
Os MDs, ao contrário do que foi definido logo acima como
museu virtual, são ambientes digitais no ciberespaço, acompanhados
pela interface presencial, com aberturas para fóruns de debates, em
salas reservadas, sobre questões da museologia e temas que refletem o
próprio museu; contato aberto em e-mail; eventualmente com suporte
explicativo (entrevistas) sobre temas, com curadores de exposições e
pesquisadores de assuntos específicos (com links para contato em e-
mails e telefones); a possibilidade de comprar na loja; e a possibilidade
de linkar a outros museus. Além disso, com poucas ressalvas, há os
MDs que disponibilizam a pesquisa em seus SDMs e Banco de Dados
Iconográficos (BDIs), proporcionando resultados com dados que
ajudam a elucidar a procura do pesquisador.
A ótica dos MDs é quebrar a barreira tempo-espaço. No
entanto, todos restringem ao pesquisador e ao público que pretende
explorar mais a fundo o acervo. Podem estar despertando apenas para
a lógica de mercado, de uma cultura de massa, e acrescentando novos
recursos para seduzirem os internautas/visitantes, como forma de
atraí-los ao MP. (LÉVY, 1999a)
Os CMs possuem uma estrutura bastante diferenciada dos MDs.
Aqui CMs são definidos como aqueles digitalmente criados e colocados
na web sem uma interface presencial, i.e., sem ambientes presenciais
de visitação e pesquisa. No CM os ambientes museísticos funcionam
apenas na net, dando aval à criação e informação de histórias de
140
Museologia e Património – Volume 1

qualquer pessoa, de objetos artísticos (de artistas renomados e de


iniciantes) e não artísticos (de artistas, iniciantes e leigos), poemas e
debates, tudo que compõe os acervos digitais, quebrando as barreiras
do tempo-espaço, dos horários de visita, da comunidade local, do
silêncio e mostrando textos que partem das mais simples pessoas de
um lugar qualquer.
Todavia, vale lembrar que os CMs possuem os seus ambientes
de execução presencial, com escritórios, arquivos e softwares para
digitalização de documentos e objetos entregues presencialmente para
a digitalização e posterior inserção na rede. O que não acontece no
ambiente presencial é a exposição, a busca (pesquisa) e a apresentação
do museu. Na verdade, quando se visita o espaço onde trabalham os
profissionais que desenvolveram o CM, depara-se com centrais de
dados e arquivos que processam para inserção no ciberespaço.
De toda forma, agora não é o viajante que se desloca ao Museu,
mas sim as suas informações, enviadas a um endereço eletrônico. O
visitante vai ao museu sem sair do seu espaço geográfico, visita um
museu cujo referencial é comum em um espaço sem limites, sem
demarcações ou barreiras, um espaço não extramuros – como o
fizeram o museum bus e o museu comunitário – mas simplesmente sem
muros. Uma ótica que reflete na própria estética do mundo
contemporâneo, a da velocidade. (VIRILIO, 2000, p. 3).

Na sociedade global a moeda forte é a informação


disponibilizada de forma universalmente acessível, just in
time. As mudanças daí decorrentes terão enorme impacto
nos modos de aprender e fazer do ser humano. A revolução
da informação poderá modificar de forma permanente a
educação, o trabalho, o governo, os serviços públicos, o
lazer, as formas de organizar a sociedade e, em última
análise, a própria definição e o próprio entendimento do
ser humano. A nova sociedade caminha para a
multidisciplinaridade, para a flexibilidade operacional,
para a velocidade, a precisão e a pontualidade da
informação. A humanidade está entrando na era da
socialização da informação e da democratização de seu
acesso. (Jambeiro, 2000, p. 207)

141
Museologia e Património – Volume 1

Para Jesús Cáceres, “Otra sociedad apareció; el texto


permaneció como figura que obliga, que ordena, que organiza, pero la
lectura se liberó. Otro mundo emergió de las posibilidades de
interpretar, de significar. El control sobre la mente se mantuvo gracias
a la textualidad como imagen de la disciplina que permite avanzar. La
gramática ocupó el lugar del texto para leer y ser leído. En principio
cualquiera que tuviera acceso a las normas de construcción podría leer
lo armado a partir de ellas, y podría escribir. Pero no fue así, muchos
tuvieron la oportunidad de leer, pero pocos tuvieron la oportunidad de
escribir y de ser leídos. El control sobre el texto garantizó aún cierto
control, más sutil, con menos gasto energético, con mayores
posibilidades de manejo de la apariencia de la nueva libertad
gramatologica”. (27) (CÁCERES, 1999, p.2)
Os cibermuseus são mais uma criação que se revelou e vem se
desenvolvendo no ciberespaço. Atualizando temas sobre a arte, a
biografia, a sociedade, o mundo globalizado e o mundo pessoal
daqueles que não têm voz para contar a sua história em um grande
museu. Cáceres observa que “La revolución de la cibersociedad trajo
nuevos cursos metafóricos; ahora es posible leer y escribir, y hacerlo
en grupo y colectivamente, no sólo la interactividad sino la
multinteractividad, no sólo la escritura sino la hipertextualidad. El
tiempo pasó y la sociedad cambió, el ciberespacio social inaugura la
metáfora de la configuración de mundos distintos desde la interacción
real en el espacio virtual.” (28) (Idem, p. 3)

27 Tradução livre. “Outra sociedade que apareceu; o texto permaneceu como


figura que obriga, que ordena, que organiza, porém a leitura se libertou. Outro
mundo emergiu das possibilidades de interpretar, de significar. O controle
sobre a mente se manteve graças à textualidade com imagem da disciplina que
permite avançar. A gramática ocupou o lugar do texto pra ler e para ser lido.
Em princípio, qualquer um que tivesse acesso às normas de construção
poderia ler a estrutura a partir delas, e poderia escrever. Porém, não foi assim,
muitos tiveram a oportunidade de ler, porém poucos tiveram a oportunidade
de escrever e de se lidos. O controle sobre o texto garantiu, inclusive, certo
controle, mais sutil, com menos gasto enérgico, com maiores possibilidades de
manejo da aparência da nova liberdade gramatológica”.
28 Tradução livre: “A revolução da cibersociedade trouxe novos cursos

metafóricos; Hoje é possível ler e escrever, e fazê-lo em grupo e coletivamente,


não apenas a interatividade, mas também a multinteratividade, não somente a
142
Museologia e Património – Volume 1

Tudo isso, mais a inserção do cidadão comum no museu, trouxe


conteúdo que desmistifica o museu, primeiro, enquanto lugar
reluzente, depois como espaço que coletiviza as produções (LÉVY,
1999b) que, vale enfatizar, são culturas, história e patrimônio cultural,
num ambiente que oportuniza a criação do acervo à distância, cujas
imagens, disponíveis a qualquer comunidade, permitem que as
informações “antes reprimidas participem na condução social"
(STOCKINGER, 2001). Seria também a ótica do lugar comum (AUGÉ) e
da quebra do personalismo e da história dos “grandes nomes”.
Desta maneira, os conceitos de virtual, digital e ciber, tendo
como foco os museus se classificam da seguinte forma. (v. quadro 2)

Características Formas
Catálogos e
Alguns apenas abrigam imagens e livros de
Museus textos dos Museus, outros trazem sons. papel. CD
Virtuais São portáteis, utilizados em estudos de ROMs, DVDs e
exposição, arquitetura e divulgação. VHS. Apps de
tablets e
smartphones
MDs Sempre on-line. Desenvolvidos a partir Sites
da forma presencial. Possuem a
característica de divulgação do acervo,
embora haja interatividade na maioria
dos casos.
CMs Sem interface presencial de uma Sites
arquitetura tradicional. Cria o acervo a
partir do observador e projetos de arte
e história oral.
Quadro 2. Diferenciação entre Museus virtuais, Museus digitais
e Cibermuseus.

escrita, mas também a hipertextualidade. O tempo passou e a sociedade


mudou, o ciberespaço social inaugura a metáfora da configuração de mundos
distintos desde a interação real no espaço virtual.
143
Museologia e Património – Volume 1

4. Conclusões

Desde quando os museus se abriram para experiências em


novos ambientes, os seus espaços foram se transformando e se
aproximando das novas estéticas, categorias e dos perfis paisagísticos
e sociais que os cercam. Além disso, os museus passaram também a
acompanhar a evolução tecnológica e enquadrar suas linhas de
trabalho e desenvolvimento científico em novas perspectivas, e.g., a
informatização dos SDMs e BDIs de grandes museus, que facilitou a
criação de mídias como CD-ROMs e totens multimídia, e o
reconhecimento do ciberespaço como caminho para a inserção de nova
arquitetura museística.
Da diversidade existente entre os museus pode-se verificar a
permanência dos tradicionais Museus-Casa e dos Museus-Jardim, numa
demonstração de continuidade da estética museística que remonta à
antiguidade clássica. (BARRETO, 2000) Dentro dessa observação, e
ainda verificando o campo arquitetônico, pode-se notar o grande
empreendimento das instituições museísticas em construir edifícios
que consolidam uma proposta que objetiva a arte e os ambientes.
Nesse sentido, uma nova concepção museográfica envolve hoje
projetos que preveem filiais institucionais em vários cantos do mundo,
a exemplo das redes Guggenheim e Louvre.
A partir do inicio dos anos 1990, com o advento da Internet, a
museologia passou a verificar um possível espaço para exposições,
pesquisa e divulgação: o ciberespaço. Com isso, surge um novo
conceito de museu que “decorre do nascimento de uma nova
sociedade: a sociedade da informação, e da sua cultura. Estas se
definem por uma mudança contínua que afeta todas as esferas da vida
e, decorrentemente, também a uma mudança continua do sentido e do
valor”. (LLUSSÀ, 2002). Além disso, levando em conta essa mudança
sóciocomunicacional, na “sociedade em rede é o espaço, não mais
físico, mas de fluxos de informação, que passa a organizar o tempo”.
(LEMOS 2001, p.17)
A WWW abriga todo tipo de publicação. Um MP que cria a sua
interface digital on-line torna-se muito mais que uma publicação
tradicional, uma vez que aufere os benéficos do hipertexto, da
hipermedia e do ciberespaço.

144
Museologia e Património – Volume 1

Portanto, os museus, como qualquer instituição, estão


presentes na rede mundial de computadores. A criação de sites de
museus proliferou a partir da década de 1990, mas muitos museus
ainda nem possuem sites institucionais. E muito deles possuem sites
cujo único objetivo é divulgar atividades da instituição.
O seu acesso pela Internet, possibilita ao espectador todas as
vantagens decorrentes da informação dos processos comunicacionais.
Um MD é parte deste grande hipertexto eletrônico que é o ciberespaço.
(HAUPT, 1998, p.12).
Resumindo, a extensão do ciberespaço acompanha e acelera
uma virtualização geral da “economia da sociedade” (LÉVY, 1999a,
p.49), mas que também agrega formas comportamentais quando se
pensa nas possibilidades existentes na “quebra” da barreira tempo-
espaço que está além do rádio e da televisão tradicionais.
Este novo mundo construído sobre as redes de
telecomunicações abriu aos museus uma era de grandes
possibilidades. Sabe-se que os museus são na atualidade um dos
empreendimentos culturais mais bem sucedidos, principalmente
quando se fala dos grandes museus na Europa, EUA, México, Egito e de
alguns Estados do Brasil, que, além de atraírem milhões de turistas
todos os anos, exaltam a imagem de cada nação através da arte, da
história, etnologia e criações diversas acontecidas em cada lugar, fonte
para a identidade cultural e incursões científicas. Eles se constituem
naturalmente em objeto de interesse público, uma vez que são
guardiões e zeladores do patrimônio cultural.
Quando se visita os MDs tem-se a possibilidade de se
transportar imediatamente a outros lugares, construir um percurso
original, investigar, gravar textos, sons e imagens. O visitante do MD é
um leitor ativo que traça seu caminho sem se restringir a um roteiro
pré-existente. Ele organiza o seu próprio circuito dentro dos seus
interesses. Nesse sentido, trabalha a questão autopoiética, onde em um
sistema/ambiente a sua organização se desenvolve – a partir da sua
observação – numa “varredura” hipertextual que é a tentativa de
organizar o seu mundo perceptivo em um caminho que indica a ligação
de tudo, o ciberespaço. (LUHMANN apud STOCKINGER, 2001)
Essa razão autopoiética enquadra-se em dois sistemas: o
psíquico, que se baseia em processos de pensamento – observação,
percepção, inclusão ou exclusão – sentimentos etc., e o social baseado
145
Museologia e Património – Volume 1

em processos de comunicação, já que o visitante do museu receberá


mensagens, informações e formas bi e tridimensionais impulsionadas à
contemplação, criticidade, apreensão ou estranhamento.
Isso equivale dizer que o museu, visto como sistema, é
planejado para disponibilizar ao público comum e específico, ao
turismo e universidades, uma organização partilhada de objetos,
textos, circuito e espaço, para que o impulso do observador ao museu
não se perca diante da imensidão museal, como acontecia no século
XVIII e até meados do XIX, a miscelânea dos gabinetes de curiosidade,
onde tudo era acumulado sobre tudo, em poucas salas, sem
sistematização.
Hoje, ainda se percebe algumas miscelâneas em museus pelo
mundo e até no ciberespaço. São certamente lugares museais em que o
pesquisador teria de iniciar uma autopoiese, além de imaginar como
seria a do museu. É comum em arquivos e museus, no Brasil,
pesquisadores, além de fazerem os seus próprios trabalhos,
“ajudarem” na organização de subsistemas, fundos, séries e arquivos.
Apesar de novas realidades espaciais e temporais perpetuarem
o dia a dias das pessoas, oferecidas pelas novas tecnologias, os MPs,
com suas construções sólidas, continuam sendo os locais que abrigam
obras que pretendem ser vistas e fruídas lá onde estão. “Jamais, em
proporção, as obras de arte atingiram tão elevado preço, jamais se viu
tantos consumidores comprimirem-se nos museus”. (DEBRAY, 1994, p.
239) Prova disto é o aumento quantitativo dos MPs no mundo, assim
como se pode observar com a imprensa, livros, TVs, etc.
Além disso – e aqui cabe talvez o ponto mais crítico – os MPs
possuem um caráter hipertextual mais rico do que o MD. Pode ser uma
ilogicidade, mas é um fato. O pesquisador, em um MP, pode ter uma
biblioteca e um SDM que proporcionem suporte às informações sobre
o seu objeto de pesquisa. Embora tenha que sair de casa, viajar e
obedecer aos horários do museu. Isso porque o MD ainda não abriga
conteúdos informativos e perceptivos dos (e sobre os) objetos de uma
forma totalizadora. Os museus disponíveis na net ainda não possuem
um terço de seus objetos disponíveis, o que é uma contradição com a
mídia museu.
A hipertextualidade nos MDs possui um baixo valor
quantitativo de informações sobre uma peça do acervo. Os objetos
mais prejudicados são os tridimensionais, sem a tridimensionalidade
146
Museologia e Património – Volume 1

que o observador poderia perceber, analisar etc. Além de ainda não


dispor de fontes bibliográficas em hipertexto sobre o acervo.
Sem dúvidas que o ciberespaço encurta tempo e espaço e nos
faz partilhar relações à distância. Nesse sentido, o MD, parte integrante
de um cibersistema estaria diretamente ligado ao que seria a própria
visitação e pesquisa ancoradas na percepção do
observador/pesquisador. (29)
O uso dos computadores nos museus veio revolucionar os
métodos de documentação e da exposição. Há uma evolução no campo
da documentação, nas redes internas, na forma documental, que levou
os museus sistematizados a “abandonarem” a ficha de identificação e o
inventário de papel, além de outros requisitos eletrônicos que se
acompanham hoje nos museus.

Bibliografia

AUGÉ, Marc. (1994). Não lugares: introdução a uma antropologia da


supermodernidade. São Paulo: Papirus

BARRETO, Margarita. (2001). Turismo e legado cultural. Campinas:


Papirus.

BATTRO, Antonio. (1999). Del museo imaginario al museo virtual. La


Nación. Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/opinion/del-
museo-imaginario-al-museo-virtual-nid151411. Acesso em 30 de maio
de 2019

BELLIDO GANT, Maria L. (2001). Artes, museos y nuevas


tecnologías. Gijón: Trea, p. 342.

CÁCERES, Jesús Galindo. (1999) Cibercultura, ciberciudad,


cibersociedad. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/index.php/intexto/article/view/3368. Acesso
em 30 de abril de 2019

29 STOCKINGER, G. O paradigma sistêmico. Para uma visão holística da


comunicação e da sociedade. Tópicos de aula. Em PPT. Salvador:
Facom/UFBA, 5/5/2001.
147
Museologia e Património – Volume 1

DEBRAY, Régis. (1993). Vida e morte da imagem: uma história do


olhar no ocidente. Tradução de Guilherme Teixeira. Petrópolis: Vozes,
373 p.

DELEUZE, Gilles. (2000). Diferença e Repetição. Lisboa: Relógio


D´Água, p. 493.

DELOCHE, Bernard. (2001). Le musée virtuel: vers un éthique des


nouvelles images. Paris: Presses Universitaires de France, p. 261
(Questions actuelles)

GUBERN, Román. (1999). Del bisonte a la realidad virtual: la escena


y el laberinto. 2 ed. Barcelona: Editorial Anagrama, 193 p.

HAUPT, Gerhard. (1998). Os museólogos exploram um novo meio. É a


internet uma alternativa adequada para a difusão das artes e da cultura
no mundo inteiro? A América Latina avança ousadamente pela rede
global. São Paulo: Humboldt, n 76, p. 12-16, 1998.

HOPTMAN, Glen H. (1998). The virtual museum and related


epistemological concerns. In: Zimmermann, Harald H.; Schramm, Volker
(Hg.): Knowledge Management und Kommunikationssysteme,
Workflow Management, Multimedia, Knowledge Transfer.
Proceedings des 6. Internationalen Symposiums für
Informationswissenschaft (ISI 1998), Prag, 3. – 7. November 1998.
Konstanz: UVK Verlagsgesellschaft mbH, 1998. S. 185 – 200. Disponível
em:
https://pdfs.semanticscholar.org/9e33/a47afcc9ce8f64c71e85cfd9c2
8e1ade502a.pdf. Acesso em 28 de maio de 2019

JAMBEIRO, Othon. (2000). Gestão e tratamento da informação na


sociedade tecnológica. In: LUBISCO, Nídia M. L. et al. (Org.) Informação
e informática. Salvador: EDUFBA, p. 207-232.

LEMOS, André, PALÁCIOS, Marcos. (2001). As janelas do ciberespaço


(org.). Porto Alegre: Sulina, 277 p.

148
Museologia e Património – Volume 1

LÉVY, Pierre. (1999a). Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da


Costa. Rio de Janeiro: 34, p. 145-155

LÉVY, Pierre. (1999b). As tecnologias da inteligência. Tradução de


Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: 34. 203 p.

LUHMANN, Niklas. (1992). A improbabilidade da comunicação.


Tradução de Anabela Carvalho. S/l: Vega Limitada, 156 p.

LUSSÀ, Xavier. (2002). O design do museu na sociedade da informação.


Salvador, FACOM/UFBA, jun.. Disponível em:
http://museusvirtuais.blogspot.com/2006/05/o-design-do-museu-na-
sociedade-da.html. Acesso em 10 de maio de 2019

PERNIOLA, Mário. (1994). Enigmas: o momento egípcio na


sociedade e na arte. Lisboa: Bertrand Editora, p. 248.

QUÉAU, Philippe. (1995). Lo virtual: virtudes y vértigos. Barcelona:


Paidós, p. 207 (Hipermidia, 1)

SABBATINI, Marcelo. (2003). Centros de ciencia y museos científicos


virtuales: teoría y práctica. Teoría de la Educación: educación y
cultura en la sociedad de la información. Salamanca, v. 4,.
Disponível em:
http://www3.usal.es/~teoriaeducacion/rev_numero_04/n4_art_sabba
tini.htm Acesso em abril de 2019.

SCHWEIBENZ, Werner. (1998). The virtual museum: new perspectives


for museums to present objects and information using the Internet as a
knowledge base and communications systems. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/221315497_The_Virtual_
Museum_New_Perspectives_For_Museums_to_Present_Objects_and_Inf
ormation_Using_the_Internet_as_a_Knowledge_Base_and_Communicati
on_System/download. Acesso em 28 de Maio de 2019

TOTA, Anna L. (2000). A sociologia da arte: do museu tradicional à


arte multimídia. Lisboa: Editorial Estampa, 231. p

149
Museologia e Património – Volume 1

VIRILIO, Paul. (2000). Speed and information: cyberspace alarm!


Interview. Ctheory. Disponível em:
http://ctheory.net/ctheory_wp/speed-and-information-cyberspace-
alarm-2/. Acesso em 28 de maio de 2019.

150
Museologia e Património – Volume 1

MUSEU DE SERRALVES:
VISITANTE COMO PATRIMÔNIO CULTURAL

Robson Xavier da Costa


Universidade Federal da Paraíba, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-3012-3741

1. Introdução

Este artigo consiste em um recorte da minha tese de doutorado,


intitulada “Percepção ambiental em museus paisagens de arte
contemporânea: a legibilidade dos museus Inhotim/Brasil e
Serralves/Portugal avaliada pelo público/visitante”, sob orientação da
Profª. Drª. Gleice Azambuja Elali e defendida junto ao Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU), da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com bolsa sanduíche pelo
Programa Erasmus Mundus 17, da União Europeia, junto ao
Doutoramento em Arquitectura, da Universidade do Minho, em
Portugal, sob a supervisão do Prof. Dr. Pedro Bandeira.
Trabalhei com a tipologia Museu Paisagem de Arte
Contemporânea (MPAC), que associa as duas classificações anteriores
de museus de arte, Museu de Arte Contemporânea (MAC) e Museu
Paisagem (MP), em uma única tipologia, correspondente à instituição
museológica que agrega as características de qualquer MAC, em
relação intrínseca com as características do MP (já que nem todo MAC
estabelece esse tipo de relação). Ou seja, MPACs são instituições
culturais dedicadas à arte contemporânea que abrigam um
parque/jardim significativo e que tem como meta a inter-relação
constante entre o percurso galerístico e a paisagem no entorno.
Os Museus de Arte Contemporânea (MACs) despertaram minha
atenção por conjugarem arquitetura e arte. Neste contexto, uma
tipologia mostra-se ainda mais específica e instigante: a dos Museus
Paisagem de Arte Contemporânea (MPACs), nos quais estes dois
fatores anteriores se somam a questões ambientais. Trabalhei com a
relação das pessoas com a arte contemporânea no contexto específico
151
Museologia e Património – Volume 1

do patrimônio cultural, o Museu de Arte Contemporânea da Fundação


de Serralves, Porto, Portugal.

A evolução do conceito de património cultural nas últimas


décadas, deslocando-se progressivamente da esfera dos
monumentos e sítios para a esfera das paisagens culturais,
visou acomodar a crescente diversidade e divergência de
interesses socioculturais, tentando oferecer a cada um
deles o direito à coapropriação de um conjunto de
marcadores territoriais, na esperança de que tal evitasse
rupturas e novos conflitos de fronteira. (Campos, Preve e
De Souza, 2015, p. 38).

Os museus são classificados em tipologias variadas, dentre as


quais temos como foco a tipologia de Museu de Arte (MA), instituição
museológica especializada em conservar, investigar, interpretar e
expor a produção artística em suas mais diversas abordagens. Por sua
vez, ao longo dos séculos XIX e XX estas instituições foram se
especializando na conservação e divulgação de períodos específicos da
história da arte, surgiram museus especializados em arte antiga,
medieval, moderna, contemporânea, etc.
Nesse contexto, surgiram os Museus de Arte Contemporânea
(MACs), instituições museológicas inseridas na categoria de MA, cujo
interesse se volta para aquisição de acervos e práticas expograficas da
arte contemporânea, produção artística que emergiu nos anos 1960
nos EUA e na Europa a partir da Pop Art, incluindo as poéticas
artísticas subsequentes.
Visando a diluição das fronteiras entre as linguagens artísticas,
os MACs incluem a concepção de obra aberta, a desmaterialização do
objeto de arte, o uso de novas tecnologias digitais, instalações,
videoarte, videoinstalações, arte híbrida, arte conceitual, performance e
outras manifestações artísticas contemporâneas, atualizando as
maneiras de documentar, catalogar, preservar e expor a arte em
parceria com a intervenção direta do artista e do visitante.
Por sua vez, o Museu Paisagem (MP) é um conceito definido
pelo Arquiteto Nuno Grande no livro “Museomania: museus de hoje,
modelos de ontem”, publicado pela Fundação de Serralves, em 2009,
como uma das tipologias de museus. O autor estabelece que essa
152
Museologia e Património – Volume 1

categoria de museu foi inaugurada na década de 1950, a partir da


criação do Lousiana Museum of Modern Art, em Copenhague. O museu
paisagem deve abrigar ou surgir a partir de um parque/jardim,
respeitar as condições ambientais do lugar, integrar os espaços
expositivos com a paisagem e estabelecer percursos para o visitante
deambular entre galerias, pavilhões, obras ao ar livre em diálogo com a
paisagem. Nessa tipologia de museu “(...) a relação entre interior e
exterior dilui-se, tornando, muitas vezes, o espaço natural num artifício
complementar ao percurso galerístico” (Grande, 2009, p. 57).
Na minha tese considerei o conceito amplo de “paisagem”,
conforme proposto por Cauquelin (2008), que define “paisagem
inventada”. Ao afirmar que o mundo contemporâneo sofre influências
da mestiçagem de territórios e da ausência de fronteiras entre saberes,
a autora explicita que a compreensão do conceito de paisagem alargou-
se, incluindo paisagens naturais (“natura naturans”, composta apenas
por elementos naturais arranjados ‘espontaneamente’), paisagens
surgidas a partir da interferência humana (ação de paisagistas,
jardineiros, e mesmo de pessoas leigas, ao modificarem algum aspecto
do meio) e paisagens virtuais. Segundo a autora para identificar a
“paisagem inventada” devemos considerar que:

O de jardim, cuja moda aumenta; murado, pormenorizado,


específico, ele evoca e invoca uma natureza trabalhada, à
qual corresponde um trabalho de jardineiro, passo a passo,
se me é permitido dizê-lo. Se este trabalho desperta o
interesse dos homens pela sua habitação (ecologia provém
de oikos, casa) e lhes revela sempre com antecedência os
segredos de uma natureza profusa, ele fornece a prova
cabal de que uma “paisagem natural” é um produto de um
artifício laborioso, e como que uma criação continuada.
Para Rousseau, o jardim de Julie não era natural, a menos
que se tivesse o cuidado – trabalho redobrado – de apagar
os vestígios da jardinagem (...) outro exemplo, retirado das
artes visuais, é o da Land Art (...) os artistas da Land Art
procedem como o próprio ambiente, utilizando os recursos
da arte da paisagem (Cauquelin, 2008, P. 10).

153
Museologia e Património – Volume 1

A arte contemporânea está intimamente relacionada com a


necessidade de interação com os visitantes e os MPACs, geralmente,
são instituições dedicadas ao estabelecimento de experiências
compartilhadas, instigando e fomentando o comportamento ativo e
desafiando a participação permanente dos visitantes. É por meio das
experiências que os seres humanos constroem relações de significação
com o espaço, dotando-o de valores e significados para compreender e
relacionar-se com a realidade.

Em certas exposições os vazios e anteparos entre as obras


e a arquitetura são maneiras de conexão/transição e não
barreiras, permitindo a continuidade e o tempo
necessários ao usufruto da obra. Por sua vez, sons, cheiros
e elementos táteis, reforçam os elementos visuais das
obras contemporâneas, permitindo a formação de imagens
totais do espaço expositivo, o que corrobora e reforça seu
entendimento a partir de elementos ambientais
característicos de um contexto mais amplo (Costa, 2014, p.
11).

A relação de cada visitante com o espaço do museu ocorre de


maneira singular ou conceitual. Algumas vezes relacionam a visita aos
conhecimentos adquiridos no catálogo, nas fichas de identificação ou
na fala do monitor, mas nem sempre os visitantes tem facilidade em
expressar o que sentiu durante a visita. A frequentação possibilita ao
visitante aprender por meio da experiência. Ao acumular informações
e sensações os visitantes podem inferir sobre arquitetura e arte
contemporânea, tornando a sensação vivida no MPAC conhecimento
adquirido.
É a partir da experiência de frequentação ao MPAC que o
ambiente indiferenciado transforma-se aos poucos em espaço
significativo para os visitantes, a partir da experimentação, o espaço
torna-se vivo, mas acima de tudo, valorizado. As qualidades espaciais
dos MPACs são percebidas pelos visitantes a partir da experiência da
fruição, a cada nova visita a um mesmo museu os visitantes podem
identificar as permanências e usufruir as transformações, mediadas
pelas experimentações fomentadas pela arte contemporânea.

154
Museologia e Património – Volume 1

Nesta pesquisa objetivamos analisar a experiência dos


visitantes com o Museu e o Parque de Serralves, na cidade do Porto,
Portugal, entre dezembro de 2010 a agosto de 2012, quando estive
realizando a pesquisa de campo para a elaboração da minha tese de
doutorado.

2. Os visitantes do MPAC e a ressignificação do patrimônio

Assim, gostaria de afirmar que a experiência do visitante


do museu não é nem sobre os visitantes, nem sobre
museus e exposições, mas sim que ele está situado na
mesma coisa - os visitantes são o museu e o museu é o
visitante. Esta nova forma de pensamento sugere que
devemos parar de pensar em exposições em museus e
conteúdo como entidades fixas e estáveis destinadas a
alcançar resultados singulares e em vez disso, pensar em
como termos recursos intelectuais capazes de ser
experimentados e usados de diferentes maneiras para
fins múltiplos e igualmente válidos. Isso obriga-nos a
parar de pensar em visitantes como definíveis por
alguma qualidade ou atributo permanente como a idade
ou raça/etnia. Em vez disso, precisamos compreender
que cada visitante é um indivíduo único, e cada um é
capaz de ter uma grande variedade de tipos muito
diferentes de experiências (mesmo que a maioria dos
visitantes atualmente só selecione a partir de uma paleta
muito limitada de experiências possíveis). Por fim, exige
que venham a aceitar que os significados de longo prazo
criado pelos visitantes no museu são em grande parte
moldados pelo curto - prazo pessoal, relacionados com
identidade, necessidades e interesses do que pelos
objetivos e intenções do pessoal do museu (Falk, 2009, p.
35)30.

30 Tradução livre do autor do original em Língua Inglêsa – “Thus, I would


assert that the museum visitor experience is neither about visitors nor about
museums and exhibitions, but rather it is situated within one and the same -
visitors are the museum and the museum is the visitor. this new way of
155
Museologia e Património – Volume 1

Num museu de arte a continuidade do movimento e a


visibilidade são essenciais para o bom funcionamento da expografia.
Não basta apenas um bom artista, com obras importantes, é necessário
uma montagem adequada das obras expostas e do espaço físico
disponível. Portanto, a montagem reflete a curadoria, que deve saber
lidar com o espaço construído (a arquitetura) com o espaço simbólico
(a obra) e com o espaço expográfico (a montagem). Assim, em certas
exposições os vazios e anteparos entre as obras e a arquitetura são
maneiras de conexão/transição e não barreiras, permitindo a
continuidade e o tempo necessários ao usufruto da obra. Por sua vez,
sons, cheiros e elementos táteis, reforçam os elementos visuais das
obras contemporâneas, permitindo a formação de imagens totais do
espaço expositivo, o que corrobora e reforça seu entendimento a partir
de elementos ambientais característicos de um contexto mais amplo.
Caminhando no espaço construído do museu (salas/galerias e
parque/jardim) os visitantes percebem o entorno e compreende os
trajetos possíveis, construindo mapas mentais em torno dos caminhos
propostos pela curadoria e criando seus próprios percursos, sua
própria experiência como fruidor e visitante, estimulado pelo percurso
ou pelo monitor na visita guiada, os visitantes constroem rotas e
caminhos para sua compreensão e prazer estético. Ao mudar de lugar,
ao caminhar no museu, cria um sentido de direção, o espaço ganha
significado a partir das experiências acumuladas.

thinking suggests that we stop thinking about museum exhibitions and


content as fixed and stable entities designed to achieve singular outcomes and
instead, think of term as intellectual resources capable of being experienced
and used in different ways for multiple and equally valid purposes. It requires
us to stop thinking about visitors as definable by some permanent quality or
attribute such as age or race/ethnicity. Instead, we need to appreciate that
every visitor is a unique individual, and each is capable of having a wide range
of very different kinds of visitor experiences (even though currently most
visitors only select from a very limited palette of possible experiences).
Finally, it demands that we come to accept that the long-term meanings
created by visitors from their in the museum are largely shaped by short -
term personal, identity-related needs and interests rather than by the goals
and intentions of the museum's staff” (Falk, 2009, p. 35).
156
Museologia e Património – Volume 1

O ato de mover-se é uma necessidade básica para os visitantes


no museu, é movendo-se que se tem acesso aos espaços, pode-se tomar
contato com as obras expostas, descobrem-se entradas, passagens e
caminhos, nesses contextos a experiência com a arquitetura e a arte
acontece. Mas a significação do movimento no espaço dos MPACs está
ligada a construção de valores simbólicos sobre o espaço, ou seja, a
criação de significados a partir do espaço vivenciado.

(...) a mente, uma vez iniciado o caminho exploratório, cria


grandes e complexos esquemas espaciais, que vão muito
além do que o indivíduo pode abranger através da
experiência direta. (...) a habilidade espacial se transforma
em conhecimento espacial quando podem ser intuídos os
movimentos e as mudanças de localização. Andar é uma
habilidade, mas, se eu puder me “ver” andando e se eu
puder conservar esta imagem em minha mente que me
permita analisar como me movo e que caminho estou
seguindo, então eu também tenho conhecimento. Este
conhecimento pode ser transferido para outra pessoa
através de uma instrução explícita em palavras, em
diagramas e em geral mostrando como o movimento
complexo consiste em partes que podem ser analisadas ou
imitadas (Tuan, 1983, p. 76-77).

O museu de arte contemporânea pode e deve ser resignificado


a cada visita, é um espaço pensado e preparado para receber os
visitantes e convidá-los para interagir com o que está sendo exposto,
portanto, essa relação dialógica entre arquitetura/arte contemporânea
e os visitantes compreendem a discussão central do pensamento
museológico voltado para os MPACs. O espaço configura-se a partir do
movimento dos visitantes atraídos ou repelidos para a arquitetura e os
objetos, “por isso o espaço pode ser experenciado de várias maneiras:
como a localização relativa de objetos ou lugares, como as distâncias e
extensões que separam ou ligam os lugares, e – mais abstratamente –
como a área definida por uma rede de lugares” (Tuan, 1983, p. 14).
Durante uma visita a um MPAC os visitantes estabelecem
relações consigo mesmo, com os outros visitantes, com as obras de
arte, a arquitetura e o parque/jardim, resignificadas a cada nova visita,
157
Museologia e Património – Volume 1

a partir das mudanças na expografia das exposições e na própria


interferência das estações do ano na paisagem do parque/jardim e nos
edifícios construídos.
As relações entre os visitantes e o museu não se dão a priori,
elas são construídas com a frequentação, com o hábito de ver,
compreender e analisar a produção da arte contemporânea ao longo do
tempo. Somando diferentes experiências de frequentação a museus e
galerias, o visitante define seu olhar, educa-se visualmente, e é capaz
de perceber detalhes e nuances pouco compreensíveis ao leigo. O
processo de frequentação também leva a criação de links entre obras e
conceitos anteriormente vistos, tornando a pessoa capaz de olhar uma
obra e, por contraste ou semelhança, relacioná-la a outras.
Assim como qualquer outro tipo de relação estabelecida entre o
ser humano e o meio, a experiência adquirida permite uma maior
qualidade em termos de percepção e apropriação de saberes. Para o
visitante de primeira viagem o MPAC pode se mostrar um campo
amplo e embaçado, muitas informações aparentemente desconectadas
são disponibilizadas quase ao mesmo tempo, apreender o desenho
geral do museu requer a identificação de espaços significantes, curvas,
entradas, obras, galerias, referenciais arquitetônicos que possam
direcionar o olhar do visitante, atraindo ou afastando os visitantes do
objeto de apreciação. No entanto, o espaço aparentemente estranho e
pouco legível em uma primeira visita, pode vir a tornar se
extremamente identificável com a vivência e experimentação.
Os frequentadores de MPACs geralmente apresentam
interesses em arte contemporânea e costuma buscar informações
sobre ela. Além das informações e do contato com as obras originais, o
MPAC permite que se estabeleçam experiências únicas, possíveis
apenas naquele contexto e na presença de determinadas obras,
organizadas de uma maneira específica e em um espaço construído
com características próprias.
Na ação se constrói o ato de ler o museu, a partir dos
referenciais perceptivos e sensoriais vivenciados pelo visitante e da
posição do seu corpo no espaço, a legibilidade é fomentada a partir do
movimento e da posição do corpo no espaço, bem como dos modos de
interação desenvolvidas por ele. Para vivenciar um MPAC, o corpo é
mantido em movimento em seus eixos frente-trás, direita-esquerda,

158
Museologia e Património – Volume 1

vertical-horizontal, em cima e em baixo, ou seja, o espaço é articulado


com seu esquema corporal e as relações com o meio.
A partir dos indicadores visuais e sinestésicos construímos os
referenciais necessários para a locomoção no espaço, muitas vezes essa
resposta espacial é fruto da aprendizagem consciente automatizada.
Este é o caso de um visitante que frequenta usualmente o mesmo
museu, de modo que, a priori já automatizou alguns trajetos específicos
neste espaço, que garantem sua mobilidade sem muito esforço mental.
No entanto, quando se trata de um novo visitante, se faz necessária à
aprendizagem da percepção visual do espaço do museu, e a
interiorização dos indicadores visuais como referenciais para a
mobilidade.
No entanto, em um museu de arte contemporânea esses
indicadores visuais são mutáveis, dependem de cada montagem,
embora os marcos estruturais arquitetônicos quase sempre estejam a
mostra, o que facilita o reconhecimento por parte dos visitantes, a
cenografia das galerias apresentam mudanças de acordo com a
proposta artística exposta, mas não descaracteriza totalmente a
configuração arquitetônica da edificação em si. Museu e curador
mediam as necessidades do artista e da obra, diante das possibilidades
do edifício, sem descaracterizar o conjunto arquitetônico, permitindo
que os visitantes se encontrem no espaço do museu e construa sua
própria rota de visitação.
Embora inerente ao ser humano à habilidade espacial para
localizar-se e locomover-se no espaço também é aprendida ao longo da
experiência, numa visita a um MPAC essa habilidade é posta à prova: os
visitantes são desafiados a traçar roteiros a partir de um mapa
esquematizado do museu, ou a seguir roteiros traçados pelos
monitores, mesmo que, nos quais sempre exista um momento no qual a
pessoa possa escolher livremente aonde quer ir e o quer visitar.
Nos MPACs mesmo identificando rotas e traçando caminhos
nas galerias dos museus e nos parques em seu entorno, e elaborando
mapas mentais desses trajetos, cujo reconhecimento dos locais seja
baseado nos indicadores visuais identificados ao longo do trajeto,
muitas vezes os visitantes tem dificuldade para transmitir esse
conhecimento ou transferi-lo para um papel.
Os indicadores visuais tem um papel fundamental na
orientação das pessoas ao transitar em um ambiente desconhecido, ou
159
Museologia e Património – Volume 1

pouco conhecido, favorecendo a compreensão do espaço e das rotas


possíveis, embora em um MPAC as principais rotas estejam traçadas e
indicadas por meio de caminhos pré-definidos, os visitantes podem
transgredir essas rotas, criando seus próprios caminhos e
estabelecendo um conhecimento espacial que pode ser utilizado na
próxima visita ao mesmo ou a outro museu.
Dentre tais indicadores, a literatura aponta os indícios visuais
como os mais fortemente atuantes (pelo menos entre pessoas que
enxergam), salientando-os como principal base para que os visitantes
estipulem seus roteiros, sem perder a noção do todo do museu. Desta
maneira, mesmo em um museu labiríntico é possível encontrar
caminhos para chegar à saída, a partir de experiências anteriores de
visitação e identificação de imagens. Na verdade, podemos imaginar o
museu como um microcosmo da cidade, como uma intrincada trama de
passagens, entradas, salas, saídas e espaços abertos, onde o visitante
deve colocar em prática suas habilidades de construir referentes
espaciais.

Embora não tenha sido sempre assim, a maioria dos


museus hoje existe, a fim de atrair e servir os visitantes -
quando possível muitos. Apesar dos museus há muito se
perguntarem sobre quem visita suas instituições, por que e
com que fim, hoje eles se sentem economicamente,
socialmente e politicamente obrigados a fazê-lo. O museu
de hoje não tem escolha, tem de pensar seriamente sobre
quem são os seus visitantes e por que eles vêm, bem como
sobre quem não visita e porque não (Falk, 2009, p. 20)31.

Diante dessas constatações me perguntei: qual o impacto do


patrimônio (material e imaterial) do Museu e Parque de Serralves no

31Tradução livre do autor do original em Língua Inglêsa – “Although it was not


always true, today most museums exist in order to attract and serve visitors -
as many possible. Although museums have long wondered about who visits
their institutions, why and to what end, today they feel economically, socially,
and politically compelled to do so. today´s museum has no choice but to think
seriously about who their visitors are and why they come, as well as about
who does not visit and why not” (FALK, 2009, p. 20).
160
Museologia e Património – Volume 1

seus visitantes? Foi em busca da resposta a esta questão específica que


fiz esse recorte na minha tese.

3. Serralves e seus visitantes

A Fundação de Serralves é um marco da cidade do Porto,


considerado um dos principais pontos turísticos da cidade, com a Casa
Art Decó e o Museu projetado por Álvaro Siza, tem sido incluído nos
roteiros turísticos locais, anunciado por meio de cartazes em todos os
pontos importantes da cidade, começando pelo aeroporto e estações de
metrô. O fato de ser um parque/jardim urbanizado encravado no
coração da cidade atrai tanto turistas, quanto moradores da região,
sendo uma das passagens obrigatórias de todos os visitantes da cidade.
Consiste em um espaço de lazer e cultura para a população, com uma
vasta programação cultural de qualidade internacional e um jardim
convidativo para um dia de sol em família, Serralves é um dos lugares
preferidos pela população para curtir um dia de sol no Porto.
O complexo arquitetônico da Fundação de Serralves no Porto,
Portugal, é formado pelo conjunto da casa, do parque/jardim e do
museu de arte contemporânea. A história da casa tem início nos anos
1920, quando o segundo Conde de Vizela, Carlos Alberto Cabral (1895-
1968) herdou a quinta de veraneio da sua família, em 1923, comprou a
Villa Velleda, nos arredores do Plateau do Phare, na França, onde teve
contato com a arquitetura moderna e Art Decó, o que muito o
impressinou.
O jardim original da Casa de Serralves, chamado Jardim da
Quinta do Lordelo, ficava na parte de trás da casa com canteiros
orgânicos de inspiração inglesa. Com a ampliação sucessiva do terreno,
e a aquisição da Quinta do Mata-Sete, o terreno total chegou aos atuais
18 hectares. Em 1925 após a visita a Exposição Internacional em Paris
o Conde de Vizela, ocorreu a intervenção com o projeto do paisagista
Jacques Gréber32, inspirado nos jardins franceses (figuras 127 e 128).
Em 1986, após a aquisição da quinta pelo governo português foi
realizada uma intervenção sob os cuidados da paisagista Teresa

32Jacques Gréber (1882 -1962) arquiteto e paisagista francês, especializado


em projetos de jardins privados executados principalmente nos Estados
Unidos e Canadá, autor dos Jardins de Serralves.
161
Museologia e Património – Volume 1

Andersen, primeira diretora do parque. Em 1996 uma nova


intervenção coordenada pelo paisagista João Gomes da Silva33, visando
adaptar a estrutura do parque/jardim existente ao novo programa
incorporando o novo prédio do museu.
A intervenção no parque/jardim em 1996 foi necessária para
compor a unicidade do conjunto da obra, João Gomes da Silva em
colaboração com Erika Scabar, ocuparam o espaço onde estava
instalada a antiga horta e o laranjal da antiga quinta no entorno do
novo prédio do museu objetivando integrar o edifício de Siza ao
conjunto do parque/jardim de Serralves, garantindo a continuidade
visual da percepção ambiental.
O Museu de Serralves é um projeto do renomado arquiteto
português Álvaro Siza, convidado na década de 1990, pelo Governo
português para criar um edifício que abrigasse exposições temporárias,
levando em consideração a relação com o parque/jardim e a Casa de
Serralves, sem descaracterizar o contexto arquitetônico. Em 1991 Siza
começou a pensar o museu, vindo a iniciar a construção em 1996. O
edifício, situado a cerca de 500m da Casa de Serralves, foi construído
no espaço da antiga horta da quinta de Serralves, cujo terreno em
declive permitiu alocar o edifício em desnível em relação ao muro
lateral da construção, fato que leva a não observação da obra do lado
externo, na rua, já que o edifício parece estar deitado sobre o terreno.
O Museu de Serralves nasceu como fruto de uma antiga
reinvindicação dos artistas portugueses para criação de um MAC em
Portugal. Em novembro de 1996 foi lançada a pedra inaugural do
prédio do Museu, sob a Direção Artística de Vicente Todoli e Direção
Adjunta de João Fernandes. Em 1999 o Museu foi inaugurado com a
exposição “Circa 1968”, mostra que definiu a proposta de
internacionalização da coleção de Serralves e o recorte temporal do
acervo com obras realizadas a partir de meados dos anos 1960 até a
atualidade. Em 2003, Vicente Todoli assumiu a direção da Tate Modern
em Londres e João Fernandes tornou-se Diretor de Serralves, cuja
Direção Adjunta foi assumida por Ulrich Look. Com o afastamento de
João Fernandes para assumir a direção do Museu Reina Sophia, em

33João Gomes da Silva, atuante arquiteto paisagista português, com vários


projetos de jardins realizados em Portugal.
162
Museologia e Património – Volume 1

Madrid, em novembro de 2012, Suzanne Cotter foi nomeada Diretora


de Serralves, assumindo o cargo em janeiro de 201334.
Serralves é um dos museus de arte mais relevantes do Norte de
Portugal, todos os anos o aumento do número de visitas é significativo,
em 2011 o número de visitantes foi de 473.903 aumentando até 2015
para 524.727, desses 116.406 são estrangeiros, com 73% das entradas
gratuitas.

Gráfico 01 – Origem dos visitantes estrangeiros em Serralves –


2011 a 2015.
Fonte:
https://www.serralves.pt/documentos/STATS/estatisticas%20para%
20site.pdf.

Em março de 2013 a Fundação de Serralves, publicou o


resultado do “Estudo dos Públicos”, pesquisa científica coordenada
pelo Prof. Dr. Carlos Melo Brito, no âmbito do Projeto

34 O curador João Fernandes foi Diretor do Museu de Serralves no Porto,

Portugal (2003 a 2012), Subdiretor do Centro Reina Sophia em Madrid,


Espanha (2012 a 2019) e atualmente é Diretor do Instituto Moreira Salles, em
São Paulo.
163
Museologia e Património – Volume 1

Improvisações/Colaborações, do Setor Educativo da Fundação, com o


objetivo de desenhar o perfil sociodemográfico dos visitantes e
identificar as formas de relação com o museu e seu patrimônio,
visando:
1. Compreender as atitudes e comportamentos dos
visitantes em Serralves;
2. Identificar a percepção que os visitantes têm da
estratégia que vem sendo seguida;
3. Analisar as fontes de valor da marca Serralves no nível
da notoriedade, imagem e lealdade (Brito, 2013, p. 20).
Considerado um dos mais bens sucedidos empreendimentos
culturais de Portugal, Serralves é detentor de um importante acervo
histórico sobre arte contemporânea, arquitetura e paisagem, que é um
verdadeiro oásis no coração do Porto. Apresentando uma vasta e
diversificada programação, com exposições temporárias realizadas em
parceria com a Tate Modern (Londres); MoMA (Nova York) e o Museu
Ludwig (Colônia). Seu potencial de maximização da atração de
visitantes é inegável, ao longo dos seus mais de 20 anos de existência
Serralves tem cumprido sua missão, desde 1999, ano de sua fundação,
foi visitado por mais de três milhões de pessoas, o museu mais visitado
em Portugal. Além das exposições, da loja, da livraria e da biblioteca,
Serralves organiza todos os anos, uma série de eventos:

O Serralves em Festa, o Jazz no Parque, os ciclos de cinema


e vídeo, as mesas redondas sobre temas da actualidade, as
conferências e colóquios, os espectáculos de dança e
performance de alcance internacional, os cursos de
história de arte, os ciclos de estudos contemporâneos, as
viagens de turismo cultural constituem um conjunto
significativo de actividades paralelas às exposições que
muito valorizam a programação e diversificam os públicos
(Marto, 2008, p 2).

Alguns fatores são responsáveis pelo sucesso de visitantes em


Serralves: a) a alta qualidade das propostas artísticas apresentadas; b)
as mudanças constantes na cenografia do museu, que se transforma a
cada exposição; c) a diversificação das ofertas de lazer; d) a localização;
e) o marketing e a publicidade inteligente; f) as parcerias firmadas com
164
Museologia e Património – Volume 1

empresas de turismo e outros centros culturais no mundo; essas e


outras variáveis procuram otimizar, atrair e fidelizar os visitantes
residentes ou turistas da cidade do Porto.
A pesquisa de campo para minha tese foi realizada junto aos
visitantes do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves
durante o período de dois anos, entre setembro de 2010 a agosto de
2012, durante minha mobilidade como bolsista Erasmus Mundus 17,
da União Europeia.
A pesquisa em Portugal consistiu na coleta de dados sobre o
referido museu, a partir das bibliotecas setoriais da Escola de
Arquitectura da Universidade do Minho, da Escola de Arquitetura da
Universidade do Porto, da Escola de Belas Artes da Universidade do
Porto e da Universidade de Lisboa, da Biblioteca Central da
Universidade de Coimbra e da Biblioteca da Fundação de Serralves.
No primeiro momento fiz o levantamento das publicações,
livros, artigos, teses, dissertações, catálogos, vídeos sobre a arquitetura
de Serralves e seus visitantes. O material disponibilizado foi
xerocopiado ou fotografado, para posterior avaliação. Algumas teses
não publicadas tiveram de ser consultadas na própria biblioteca,
devido à falta de autorização para retirar ou copiar o documento. Em
alguns casos, essa consulta exigiu viagens a Lisboa e Coimbra.
Fui autorizado a aplicar questionários no Museu de Serralves
nos meses de julho e agosto de 2012, devendo abordar os visitantes em
locais de repouso no parque/jardim e nas áreas externas do museu
incluindo a saída, para evitar constrangimento durante a visita.
Apliquei os questionários em dias da semana alternados,
presencialmente e online (disponibilizados durante um mês na página
do facebook do Museu de Serralves). Obtive maior retorno dos
questionários aplicados presencialmente. A cada dez pessoas
abordadas, apenas duas aceitavam responder. Obtivemos 100
questionários respondidos, dos quais 80% foram respondidos
presencialmente e 20% online, destes, 96 apresentaram resultados
satisfatórios e 04 desconsiderei por estarem incompletos ou rasurados.

4. Relação dos visitantes investigados com Serralves

De acordo com os questionários tabulados, os visitantes


femininos representaram 59% e o masculino 41% do total. Destes 04
165
Museologia e Património – Volume 1

mulheres estão entre 18 e 25 anos; 44 são mulheres e 32 homens na


faixa etária entre 25 a 40 anos, 8 mulheres entre 40 e 50 anos; e 4
homens e 4 mulheres com mais de 50. Os visitantes são relativamente
jovens, a maioria está concentrada entre a faixa etária de 25 a 40 anos,
com predomínio das mulheres.
Entre os visitantes investigados em Serralves, 79% declarou
que já havia visitado o museu anteriormente. Entre esses 20% dez
vezes; 10% trinta vezes; 5%, respectivamente, 5, 30 e 50 vezes, 55%
não responderam (gráfico 02). 80% afirmaram que fizeram a última
visita em menos de 3 meses; 10% em menos de seis meses e 10% entre
6 meses e 1 ano (gráfico 03). Os dados demonstram que voltar a
Serralves é um hábito dos visitantes, que costuma frequentar
regularmente Serralves, que tem garantido com sua política cultural a
fidelização dos visitantes.

Gráfico 02 - Havia visitado Serralves anteriormente e quantas vezes?


Fonte - acervo pessoal do autor.

166
Museologia e Património – Volume 1

Gráfico 03 - Ultima visita a Serralves


Fonte - acervo pessoal do autor.

Ao responder qual o motivo da sua visita a Serralves hoje? 82%


afirmaram que voltava a visitar e 18% que visitava pela primeira vez.
25% visitaram por motivo de trabalho escolar e universitário; 24%,
respectivamente, para mostrar a um amigo/familiar ou por
lazer/festas/turismo; 12% para ocupar o tempo livre; 9% por motivos
profissionais; e 3%, respectivamente, por que a entrada é grátis ou não
respondeu (gráfico 04). Deduzimos a partir dos dados coletados que
boa parte dos visitantes voltam à Serralves ou frequentam o museu
atraído pelas festas ou pelo lazer, para cumprir uma atividade
estudantil ou para mostrar a um amigo/parente; poucos têm maior
interesse em revisitar Serralves pela sua própria programação
artística, com exceção das festas (gráfico 05).

167
Museologia e Património – Volume 1

Gráfico 04 - Motivo da visita a Serralves hoje?


Fonte - acervo pessoal do autor

168
Museologia e Património – Volume 1

Gráfico 05 - Pensa em voltar a visitar Serralves? Qual o motivo?


Fonte - acervo pessoal do autor.

A partir das respostas aos questionários aplicados em


Serralves em 2012, defini o perfil dos usuários e identifiquei como
essas pessoas percebem o espaço e definiram seus caminhos durante a
visita ao museu. A maioria dos visitantes costumam incluir no seu
roteiro de viagem a visita a museus, 59% dos arguidos afirmaram ter
visitado outro museu em Portugal, embora a parcela dos que não
visitaram ainda seja significativa (33%), o número dos que costumam
visitar museus em Portugal é expressivo. Entre os outros museus que
foram visitados no país destacam-se o “Museu Soares dos Reis”, no
Porto; o “Museu de Arte Antiga”, em Lisboa e o mais citado o “Centro
Cultural de Belém”, Lisboa (gráfico 06). Me chamou a atenção que o
museu mais visitado depois de Serralves tenha sido o Centro Cultural
de Belém, um espaço dedicado a arte contemporânea, o que justifica o
interesse dos visitantes na visita ao Museu de Serralves. Segundo os
dados citados podemos inferir que existe um público que costuma fruir
arte contemporânea em Portugal.
169
Museologia e Património – Volume 1

Gráfico 06 - Outros museus visitados em Portugal


Fonte - acervo pessoal do autor.

O tempo de duração da visita completa a Serralves, incluindo o


Museu, o parque/jardim e a casa, costuma ter uma duração
aproximada de 1h30m à 2h confirmando a disponibilidade dos
visitantes para caminhar nos espaços em Serralves, aspecto importante
da proposta curatorial do museu.
Quando se trata de visitas realizadas a museus fora de Portugal,
54% responderam que habitualmente visitam museus em outros
países, 42% responderam que não, o que significa que mais da metade
dos visitantes, tem o hábito de visitar museus durante suas viagens de
negócios ou férias, no contexto europeu visitar museus é um hábito
adquirido ao longo da vida a partir da formação escolar e familiar.
Entre os museus visitados fora de Portugal, foram citadas
instituições em cinco países, Espanha, Inglaterra, França, Holanda e
Vaticano. O Museu Reina Sophia em Madrid e o Britânico em Londres
foram os mais citados, demonstrando o interesse em museus que tem
alguma relação com arte, caracterizando interesse dos visitantes
arguidos por essa categoria de museus, entre as 14 instituições citadas
12 são museus de arte (ver gráfico 07).

170
Museologia e Património – Volume 1

Gráfico 07 - Museus mais visitados fora de Portugal.


Fonte - acervo pessoal do autor.

Quanto ao conforto oferecido aos visitantes em Serralves, 23%


das pessoas atribuiram nota 10, 16% atribuíram 6 e respectivamente
15% atribuíram 9, 8 e 7, enquanto 8% 5 e 4. Portanto, a satisfação dos
visitantes em relação ao conforto oferecido pelo museu pode ser
considerada regular. O horário de funcionamento também foi bem
avaliado pelos visitantes, 28% deu nota 8 e 27% nota 10, chama a
atenção que 9% dos visitantes tenha avaliado o horário com notas 7, 6
e 3, que considero muito baixas e motivo de insatisfação dos visitantes.
Ao avaliar o acolhimento dos funcionários/estagiários e monitores em
Serralves, 34% dos visitantes arguidos atribuiu nota 8, enquanto 33%
9 e 22% 10, o que implica que 89% dos arguidos consideram bom ou
muito bom o atendimento ao visitante em Serralves (gráfico 08).

171
Museologia e Património – Volume 1

Gráfico 08 - Avaliação do conforto, horário e acolhimento dos


funcionários/estagiários em Serralves.
Fonte - acervo pessoal do autor.

Outra questão importante para esta pesquisa foi saber a


opinião dos visitantes em relação à identificação das direções durante
a visita ao Museu de Serralves, 27% atribuíram respectivamente notas
10 e 8; 20% 9; 7% 7 e 6; 6% 5 e 3. O que implica afirmar que 47% dos
arguidos consideram satisfatórias as informações sobre as direções a
seguir em Serralves, com avaliação acima de 9, demonstrando que a
sinalética e os indicadores visuais em Serralves surtem o efeito
desejado, facilitando a orientação do visitante nas salas de exposição e
nos espaços abertos do parque/jardim. A maioria das pessoas arguidas
informou que não utilizou o serviço de guias, 63% dos questionários
respondidos. Entre os que participaram de visita guiadas, 25% avaliam
com nota 8 e 12% com 9, ou seja, o serviço foi avaliado como bom.

172
Museologia e Património – Volume 1

5. Considerações finais

A maioria dos estudantes abordados (79%) afirmaram que não


tiveram dificuldades para identificar as direções durante a visita à
Serralves. Entre os 21% que afirmou ter tido algum problema na
identificação de direções, 40% afirmou que não encontrou
identificações coerentes, e, respectivamente, 20% que teve dúvida
quanto ao percurso a seguir; que o excesso de pessoas dificulta a
identificação ou não responderam. Diante das respostas aos
questionários inferi que a maior parte do público conseguiu encontrar
espontaneamente os caminhos para visitar as galerias e o
parque/jardim sem muita dificuldade, guiando-se pela sinalética ou
pelo mapa.
Quanto à arquitetura do complexo da Fundação de Serralves,
incluindo a Casa, os Jardins e o Museu, 46% do público arguido
atribuíram nota 10; 27% 9. 9%,respectivamente, avaliaram com 8, 7 e
5. 82% do público/visitante avaliou a arquitetura de Serralves como
boa ou excelente (notas 8, 9 e 10), demonstrando alto grau de
satisfação e interesse neste aspecto.
Quanto aos elementos arquitetônicos avaliados pelo
público/visitante em Serralves, 20% destacaram o paisagismo, 19% a
área livre, 14% a aparência externa dos edifícios, 11% as dimensões
das galerias, 10% a aparência interna dos edifícios, 5%,
respectivamente, as cores dos edifícios, a localização do museu, o
bar/lanchonete; enquanto 4% destacou a iluminação; 2% a acústica e
1%, respectivamente, o piso, ventilação e a biblioteca. Dentre os
elementos arquitetônicos destacados, chamou a atenção à área livre, o
paisagismo e a aparência externa dos edifícios, demonstrando que de
forma geral o público/visitante procura vivenciar o espaço do
parque/jardim e da arquitetura do museu (gráfico 09).

173
Museologia e Património – Volume 1

Gráfico 09 - Avaliação da arquitetura de Serralves.


Fonte - acervo pessoal do autor.

Entre os visitantes arguidos em Serralves 85% afirmaram que


lembravam de alguma sensação emocional vivenciada durante a visita;
12% que não e 3% não respondeu. Entre os que responderam sim,
45% sentiu paz; 12% tranquilidade, 10, respectivamente, liberdade e
conexão com a natureza; 8% harmonia e deslumbramento; 7% prazer.
A partir destes dados identifiquei que o público lembrava das emoções
vivenciadas durante a visita a Serralves, e que conseguiu estabelecer
conexões entre arquitetura, arte e paisagem, mobilizando o visitante
para usufruir e vivenciar o delicado equilíbrio entre o espaço natural e
o construído (gráfico 10).

174
Museologia e Património – Volume 1

Gráfico 101 - Sensação emocional vivenciada em Serralves.


Fonte - acervo pessoal do autor.

A tese demostrou que o ambiente construído e a paisagem


investigada no Museu de Serralves estão inter-relacionados, embora
funcionem de maneira diferenciada em cada caso. Em Serralves, as
amplas janelas do museu, frutos da arquitetura de Siza e também casa
pré-existente, parecem emoldurar (literalmente) a paisagem do
parque/jardim e trazê-la para o interior das salas de exposição,
tornando-a parte integrante do espaço interno, exceto em casos
específicos, quando a fenestração é recoberta por tapumes e/ou
paredes falsas.
Os dados coletados indicaram que a avaliação do público com
relação ao Museu de Serralves é favorável, a instituição foi bem
avaliada nos quesitos arquitetura, conforto ambiental, legibilidade e
programação. A frequência do público é bastante variada, com
predominância da presença feminina.
175
Museologia e Património – Volume 1

Identifiquei como uma variável fundamental o envolvimento


emocional do público com o patrimônio cultural local, a arquitetura e a
arte, uma vez que identificamos em vários depoimentos alusões as
sensações emocionais relativas à interação com o espaço da casa, do
museu ou do parque de Serralves, tais como: harmonia, tranquilidade,
paz de espírito, sossego, equilíbrio, deslumbramento, integração com a
paisagem, o que demonstra a importância para o público da relação
emocional vivenciada no espaço do museu.
De maneira geral o método utilizado foi adequado à pesquisa
proposta, algumas das questões poderiam ter sido investigadas de
modo mais objetivo e outros métodos/técnicas de pesquisa
complementares poderiam ser utilizadas para analisar a percepção
ambiental dos visitantes, tais como filmagens das visitas, gravações in
loco do circuito definido pelo público durante a visita, rastreamento do
trajeto por meio de GPS, entre outras. Tais evidências apontam
possibilidades de coleta de dados que podem ser utilizados em novas
pesquisas.
Ressalto que um MPAC é um complexo museal, composto de
múltiplas variáveis que precisam estar inter-relacionadas, o que
depende, entre outras coisas, da política cultural por trás da marca e da
fachada do museu, dessa maneira, a concepção de arte e cultura dos
seus dirigentes e patrocinadores reflete-se na programação e atuação
da instituição diante dos visitantes. A questão do público para os
MPACs é fundamental, além das cotas estatísticas necessárias para a
manutenção dos financiamentos para estes museus, sua fidelização cria
uma rede de pessoas interessadas na sua conservação, divulgação e
fruição, que podem tornar-se futuros multiplicadores.
A questão da formação continuada dos visitantes nos MPACs
reflete-se em dados maiores do que o próprio museu, relacionando a
concepção de sustentabilidade, de equilíbrio ambiental, de qualidade
de vida, instigando uma estreita relação entre arte e paisagem,
compondo um importante eixo do espectro da política cultural
internacional contemporânea, na qual o contato do ser humano com a
produção intelectual e a paisagem não só é desejável, como necessária,
aspecto que Serralves cumpre em todas as suas dimensões.

176
Museologia e Património – Volume 1

Bibliografia

BRITO, Carlos Melo (Org.) (2019). Estudos de Público da Fundação


de Serralves no Âmbito do Projeto Improvisações/Colaborações.
Disponível em:
https://www.serralves.pt/FLIPBOOK/Estudo_Publicos/files/assets/ba
sic-html/index.html#page5. Acesso em: 19.08.2019.

CAMPOS, Juliano Bitencourt; PREVE, Daniel Ribeiro e DE SOUZA,


Ismael Francisco (Orgs.) (2015). Patrimônio Cultural, Direito e Meio
Ambiente: um debate sobre a globalização, cidadania e
sustentabilidade. Curitiba: Multideia.

CAUQUELIN, Anne (2008). A invenção da paisagem. Lisboa –


Portugal: Edições 70.

COSTA, Robson Xavier da (2014). Percepção ambiental em museus


paisagens de arte contemporânea: a legibilidade dos museus
Inhotim/Brasil e Serralves/Portugal avaliada pelo público/visitante.
Tese de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo, defendida no PPGAU
UFRN. Orientadora Profª. Drª. Gleice Azambuja Elali.

FALK, John Howard (2009). Identity and the museum visitor


experience. Walmut Creek – Califórnia: Left Coast Press inc.

FUNDAÇÃO DE SERRALVES (2019). Estatísticas para site. Disponível


em:
https://www.serralves.pt/documentos/STATS/estatisticas%20para%
20site.pdf. Acesso em: 19.08.2019.

GRANDE, Nuno Alberto Leite Rodrigues (2009). Arquitecturas da


cultura: política, debate, espaço – gênese dos grandes equipamentos
culturais da contemporaneidade portuguesa. Tese de Doutoramento
em Arquitectura. Orientador: Dr. Mário Júlio Teixeira Krüger.
DARq/FCTUC/Lisboa.

177
Museologia e Património – Volume 1

GRANDE, Nuno Alberto Leite Rodrigues (Editor) (2009). Museumania:


museus de hoje, modelos de ontem. Colecção de arte contemporânea
público de Serralves. Nº 12. Porto, Portugal: Fundação de Serralves.

MARTO, Bárbara (2008). Fundação Serralves. Apresentação em


“mesa redonda actores de sucesso na organização de produtos
turísticos nacionais”. Seminário Internacional Touring e Patrimônio.
Tomar – Portugal, 2008. Disponível em:
http://www.turismodeportugal.pt/touringepatrimonio/userfiles/file/
Barbara_Marto.pdf. Acesso em: 30.07.2013.

TUAN, Yi-Fu (1983). Espaço & Lugar – a perspectiva da experiência.


Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel.

178
Museologia e Património – Volume 1

PATRIMÔNIO E EMPODERAMENTO
DOS ATORES DE DESENVOLVIMENTO LOCAL

Manuelina Maria Duarte Cândido


Universidade Federal de Goiás, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-9695-3807

1. Introdução

O recente movimento de renovação dos museus seria a terceira


revolução na Museologia?
Muitos autores consideram que a primeira revolução na
Museologia ocorreu com a profissionalização do campo, entre os anos
1880 e o começo do século XX. A segunda revolução teria iniciado em
1960, com a chamada Nova Museologia (Davis, 1999; Van Mensch,
1992). Em determinado momento, a atitude dos fundadores do
Movimento Internacional por uma Nova Museologia (MINOM) foi de
dissidência e afastamento do Conselho Internacional de Museus
(ICOM). Esta realidade foi se alterando. Inclusive, a revista Museum
International dedicou seu primeiro número após a transferência para o
ICOM, em 2013, justamente a um país, o Brasil, que se destaca no
horizonte das experiências recentes de uma Museologia radicalmente
comprometida com a mudança social. Uma Museologia que em certo
momento para florescer se afastou do ICOM por considerar seu perfil
muito conservador, agora encontra nele ou em alguns de seus setores,
uma possibilidade maior de acolhimento e atenção.
Diversos fatores contribuíram para esta ênfase no Brasil: o
novo papel dos países emergentes no cenário global; a recente
realização da 23ª Conferência Federal do ICOM no Rio de Janeiro; e
outros importantes eventos internacionais no País, como a Copa do
Mundo FIFA 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Além disso, a força das
ações brasileiras em termos de modelos de desenvolvimento de
museus como ecomuseus, museus comunitários, museus de rua,
museus indígenas, museus de favela, museus de percurso, museus de
vizinhança e museus itinerantes, entre outros, mostra grande
179
Museologia e Património – Volume 1

imaginação no campo museal (Chagas, 2011) e desejos de memória


capazes de atrair visibilidade internacional. Além disso, outras ações
mais ou menos identificadas com os conceitos museológicos, tais como
pontos de memória, educação patrimonial, clubes de negros e
inventários participativos, fervilham em nosso vasto país, criando um
cenário incomparável, que precisa ganhar atenção à altura.
Trabalho aqui com a ideia de que todo museu é um processo de
musealização e que os processos de musealização, mesmo que em
construção e marcados por uma interpretação criativa e singular da
cadeia operatória museológica (salvaguarda e comunicação
patrimoniais) podem ser tomados como museu, venham a se
institucionalizar ou não (Duarte Cândido, 2014).
Estas iniciativas ganham especial destaque na Década do
Patrimônio Museológico (2012-2022) aprovada pelos Ministros de
Cultura Ibero-americanos na Conferência de Assunção (Paraguai,
2001), uma referência aos 40 anos da Mesa Redonda de Santiago do
Chile (1972).
Neste contexto, é impossível referir-se ao patrimônio sem
relacioná-lo ao empoderamento da comunidade local porque, de
acordo com Hugues de Varine, “o desenvolvimento local, mesmo se
considerado em sua dimensão econômica, é primeiramente uma
questão de atores, e, sobretudo, de atores locais” (De Varine, 2012, p.
18, grifo do autor). O autor prossegue dizendo: “a gestão do patrimônio
deve ser feita o mais próximo possível dos criadores e dos detentores
desse patrimônio, de modo a não separá-lo da vida.” (ibid., p. 19). Ele
também afirma que o patrimônio deve ser tomado como um quadro,
uma moldura, um recurso para o desenvolvimento. Mas o maior valor
está nas pessoas. O patrimônio ou os acervos atuam como pretextos
para o empoderamento dos atores do desenvolvimento local e estas
pessoas são consideradas não apenas em seu direito de entrar/visitar
museus, mas de serem protagonistas da criação de museus, a seu
modo (Duarte Cândido & Lima, 2014).
O Brasil tem sido pródigo na geração de memórias e
patrimônios em primeira pessoa, estruturando discursos que remetem
à noção antropológica de alteridade mínima (Peirano, 1999). Para além
de suas conhecidas grandes cidades, o país inteiro é um universo
patrimonial e museológico aberto à descoberta e às trocas de
experiências com acadêmicos e profissionais do campo dos museus.
180
Museologia e Património – Volume 1

Temos 8,5 milhões de quilômetros quadrados de área, uma população


em torno de 200 milhões de habitantes, distribuídos em 5.561
municípios. A diversidade cultural é uma marca forte que exige falar de
memórias e identidades plurais. Portanto, quem desejar conhecer esta
realidade deve estar preparado e com tempo para grandes distâncias e
muitas diferenças. No total, possuímos 3.118 museus mapeados pelo
Instituto Brasileiro de Museus (Ibram, 2011), sendo que apenas 21,9%
dos municípios possuem museus. Há ainda uma grande concentração
das instituições em alguns estados e regiões do país, especialmente no
litoral, e, em cada estado, nas capitais. Este artigo busca mostrar uma
situação mais diversa e apresentar outros cenários.

2. Redes para promover o diálogo

Uma particularidade que tem contribuído para o fortalecimento


das experiências e circulação de informações – sempre um desafio
proporcional a nossas dimensões, é a prática museológica largamente
fundamentada em redes e sistemas estaduais, municipais, regionais ou
temáticos de museus, sejam eles fomentados pelo poder público ou de
iniciativa da sociedade civil. A forte característica de associativismo, no
que tange a museus comunitários e ecomuseus, tem como precursora a
Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários
(ABREMC), fundada em 2004 durante a 3ª Conferência Internacional
de Ecomuseus e Museus Comunitários no 10º Workshop Internacional
do MINOM. A criação formal da ABREMC como pessoa jurídica
respondeu a uma demanda por representação dos ecomuseus e dos
processos de musealização de base comunitária no Conselho Gestor do
Sistema Brasileiro de Museus, do Ministério da Cultura. Numerosas
outras redes desempenharam papel chave no diálogo com o Estado e
entre si, como a Rede de Museus Comunitários do Ceará, a Rede de
Pontos de Memória e Iniciativas de Memória e Museologia Social do
Rio Grande do Sul, a Rede de Ponto de Memória do Rio Grande do
Norte, a Rede de Ponto de Memória do Pará, a Rede LGBT35 de
Memória e Museologia Social, a Rede de Museus Indígenas, a Rede de
Iniciativas de Memória em Icapuí (Ceará), a Rede Baiana de Pontos de
Memória, a Rede de Museus e Pontos de Memória do Sul da Bahia, a

35 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros.


181
Museologia e Património – Volume 1

Rede Museus, Memória e Movimento Social e Clubes Sociais Negros do


Brasil36. A dinâmica dessas redes é muito fluida, e atualmente várias
outras delas estão em desenvolvimento ou sendo criadas. Tem-se
notícia da criação em breve de uma rede de museus e memória dos
povos de terreiros.
Além disso, redes de educadores em museus (REMs) existem
atualmente em quase todos os Estados brasileiros. Essas redes
aproximam as pessoas que trabalham nos setores educativos e
também outros trabalhadores de museu, educadores, pesquisadores e
outros indivíduos interessados no potencial educativo dessas
instituições, em suas relações com a educação formal e no poder
transformador dos museus para educação permanente e não-formal37.

36 O acesso aos sites e blogs destas redes pode ser o primeiro passo para
conhecer a diversidade das experiências e planejar um roteiro de visitas:
Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários (ABREMC)
http://www.abremc.com.br/; Rede Cearense de Museus Comunitários
(RCMC) http://museuscomunitarios.tumblr.com/, Rede de Pontos de
Memória e Iniciativas de Memória e Museologia Social do Rio Grande do Sul
(REPIM-RS) http://redepontors.blogspot.com.br/, Rede de Pontos de
Memória do Rio Grande do Norte, Rede de Pontos de Memória do Pará, Rede
LGBT de Memória e Museologia Social
http://redelgbtmemoriamuseologia.blogspot.com.br/ (que possui uma revista
já com chamadas abertas para sua terceira edição), Rede de Museus Indígenas,
Rede de iniciativas de memória de Icapuí (CE), Rede Baiana de Pontos de
Memória, Rede Museus, Memória e Movimento Social
http://redemuseusmemoriaemovimentossociais.blogspot.com.br/, Clubes
Sociais Negros do Brasil http://www.clubessociaisnegros.com.br/.
37 Existem REMs em quase todos os estados do Brasil. Em geral suas ações

consistem em encontros presenciais para discussões e palestras, realização de


seminários, organização de listas de discussão na internet, eventualmente
publicações. Quase todas possuem sites ou blogs, como Redes de Educadores
em Museus de Goiás (REM-Goiás) http://remgoias.blogspot.com.br/; Redes de
Educadores em Museus do Rio de Janeiro (REM/RJ)
http://remrj.blogspot.com.br/; Rede de Educadores em Museus do Ceará
REM-CE (REM-CE) http://rem-ce.blogspot.com.br/; Rede de Educadores em
Museus e Instituições Culturais (REMic) http://remic-pe.blogspot.com.br/;
Rede de Educadores em Museus da Bahia (REM/BA) http://rem-
bahia.blogspot.com.br/; Rede de Educadores em Museus do Rio Grande do Sul
(REM-RS) http://remrgs.blogspot.com.br/; Rede de Educadores em Museus
182
Museologia e Património – Volume 1

A quantidade de experiências é imensa e é preferível deixar


seus protagonistas falarem por si mesmos. O melhor caminho para se
tornar próximo dessas comunidades e dos protagonistas desses
processos de musealização é encontrá-los e ouvir suas experiências.
Uma visão externa e sintética pode fornecer pequenos insights no
processo, que são tanto únicos como complexos. Esse artigo prioriza
dados que oferecem uma visão geral, representando apenas alguns
casos específicos, fora dos maiores centros urbanos. Os estudos de
casos selecionados são de museus ou processos de musealização
encontrados fora das capitais e que demonstram fortes perfis
comunitários. Eles estão localizados em diferentes Estados e se
ancoram em três diferentes perfis: o primeiro é o museu indígena, o
segundo é o museu de território e o terceiro é o museu ligado à
memória dos clubes negros.

3. Museu Indígena Kanindé

Fundado por José Maria Pereira dos Santos, conhecido como


Cacique Sotero, o Museu Indígena Kanindé localiza-se no Sítio
Fernandes, Aratuba, a 114 km de Fortaleza (CE). O próprio Cacique
coletou os objetos, doou o prédio, organizou o espaço e agora trabalha
para manter o museu. Devido aos conflitos étnicos que prevaleceram
nesse período, o museu foi mantido em segredo até 1995, ano em que
as disputas pela terra Kanindé e sua luta por reconhecimento
tornaram-se mais agressivas e quando museu foi aberto ao público
(Gomes & Vieira Neto, 2009). De acordo com Gomes e Vieira Neto, este
grupo indígena é um dos menos estudados no Ceará, o que significa
que o museu é um centro de documentação extremamente

da Paraíba (REM-PB) http://remparaiba.blogspot.com.br/; Rede de


Educadores em Museus e Instituições Culturais do Distrito Federal (REMIC-
DF) http://remic-df.blogspot.com.br/; Rede de Educadores de Museus
Instituições Culturais, Museus - Casas e Casas Históricas do Estado de São
Paulo (REM-SP) http://remsp.blogspot.com.br/; Rede de Educadores em
Museus e Patrimônio de Mato Grosso (REMP-MT)
https://www.facebook.com/rempmtcuiaba; Rede de Educadores em Museus
de Santa Catarina (REM/SC) http://remsc.blogspot.com.br/; Rede de
Educadores em Museus de Sergipe (REM-SE) http://rem-
sergipe.blogspot.com.br/.
183
Museologia e Património – Volume 1

significativo. Com o apoio da Associação da Missão Tremembé (AMIT),


os Kanindé se engajaram no movimento indígena local e trabalharam
para conseguir um sistema escolar diferenciado – que combina
educação formal com os costumes e tradições indígenas – e auxílio de
saúde por meio da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).

Figura 1: Cacique Sotero e o Museu Indígena Kanindé (Foto:


Alexandre Gomes, 2011)

O Museu foi a primeira iniciativa de representação da


identidade cultural criada pelo grupo, mesmo antes da Associação e do
sistema escolar diferenciado serem estabelecidos. Ele recebeu apoio do
Projeto Historiando e do Sistema Estadual de Museus do Ceará, em
2009, e foi reconhecido como Ponto de Memória38 em 2011, já com o
suporte da Associação Indígena Kanindé de Aratuba (AIKA), criada em
1998. Em 2013, o Museu foi reaberto após reforma e ampliação de sua

38O reconhecimento como Ponto de Memória faz parte de um programa do


Instituto Brasileiro de Museus do Ministério da Cultura (Ibram/MINC) que
apoia iniciativas de valorização da memória social, e será detalhado mais
adiante neste texto.
184
Museologia e Património – Volume 1

sede, onde são desenvolvidas exposições temáticas, oficinas e rodas de


conversa sobre práticas tradicionais como a produção da farinha,
competições esportivas indígenas e desfiles de pintura corporal, entre
outros. Todo um trabalho de documentação e conservação preventiva
do acervo foi realizado por jovens indígenas com orientação de
Alexandre Gomes durante o trabalho de campo para sua pesquisa de
mestrado (GOMES, 2012). Atualmente o museu passa por um processo
de grande fortalecimento com um núcleo gestor formado pelos
próprios membros do grupo indígena capaz de grande autonomia na
obtenção de recursos, como por exemplo, a elaboração de projetos que
já venceram três editais públicos.
Além deste museu, outras experiências de musealização de
iniciativa de grupos indígenas chamam atenção para a potência da
memória destes povos considerados desaparecidos do estado por força
da Lei de Terras de 1850. O estado do Ceará, cuja historiografia
“nasceu sob o signo da negação da presença indígena” (idem, p. 29),
tem nesses museus importantes bases de seu processo de emergência
étnica39.
Após um primeiro encontro em 2011, o segundo encontro para
treinamento de gestores de museus indígenas foi realizado em 2012 no
Ceará, na vila indígena da Lagoa Encantada, município de Aquiraz.
O Brasil possui hoje mais de 230 povos indígenas. Outras
experiências de musealização e preservação da memória pelos
próprios povos indígenas podem ser mencionadas, tais como o Museu
Maguta, dos índios Ticuna do Alto Solimões (Benjamin Constant,
Amazonas, a 1.200 km da capital Manaus) e o Museu dos Povos
Indígenas do Oiapoque-Kuahí (Oiapoque, Amapá). Sem pretender um
levantamento exaustivo, cito também processos de revisão dos
discursos museológicos em instituições públicas e mais tradicionais

39O Memorial Cacique-Perna-de-Pau dos Tapeba, em Caucaia, construído em


2005; o Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz (2010), a Oca da
Memória, organizada a partir de 2008 pelos Kalabaça e pelos Tabajara, em
Poranga; a Abanaroca (Casa do Índio) dos
Potyguara/Gavião/Tabajara/Tubiba-Tapuia, no município de Monsenhor
Tabosa; a Casa de Apoio dos Pitaguary, em Monguba (Pacatuba); e a primeira
sede da Escola Maria Venância, em Almofala (Itarema), preservada pelos
Tremembé (Gomes e Vieira Neto, 2009, p. 19), além do museu dos Kariri em
Crateús.
185
Museologia e Património – Volume 1

com uma escuta e construção partilhada com os grupos indígenas. É o


que ocorre, por exemplo, no Museu Índia Vanuíre, que trabalha para a
criação de um Centro de Referência Kaingang e desenvolve outras
ações com grupos Guarani, Krenak e Terena (na cidade de Tupã, estado
de São Paulo). O Museu Antropológico da Universidade Federal de
Goiás (Goiânia, Goiás) realizou pesquisa e obteve, a pedido do grupo
indígena, o registro das bonecas Karajá como patrimônio imaterial
brasileiro em trabalho conjunto com o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O Museu de Arqueologia e
Etnologia da Universidade de São Paulo (SP) tem trabalhado
juntamente com os índios Assurini do Xingu para identificação de
peças do acervo, em ações com inúmeros desdobramentos tanto na
sede do museu em São Paulo e em outro local de guarda da coleção em
Campinas, como na aldeia (ver Freire, 1999; Vidal, 2008; Cury et al.,
2012, entre outros).

4. Museu do Alto Sertão da Bahia (MASB)

Um novo museu de território está sendo estabelecido em uma


área que abrange, incialmente, os municípios de Caetité, Guanambi e
Igaporã, no Alto Sertão da Bahia. Esta região, localizada no semiárido
brasileiro, tem reservas abundantes de minerais e paisagens
características da caatinga e do cerrado. Habitada desde o período pré-
colonial, possui uma cultura diversificada, rica em tradições indígenas,
europeias, sertanejas e africanas. Desde 2009, um estudo de impacto
ambiental para o estabelecimento de parques eólicos identificou 76
sítios arqueológicos e 389 sítios históricos, levando à criação de uma
coleção que já chega a 30 mil objetos (Zanettini Arqueologia, 2013;
Moraes, 2013). A população dos municípios abrangidos pelas
pesquisas se mobilizou pela permanência destas referências
patrimoniais que sairiam da região devido à ausência de uma
instituição museológica naquele território. A empresa de energia
responsável (de acordo com a legislação brasileira) pela contratação
dos arqueólogos e demais profissionais necessários para os trabalhos
de resgate do patrimônio na área de intervenção do empreendimento
passou a investir também na criação do museu desejado.

186
Museologia e Património – Volume 1

Figura 2: Comunidade Quilombola Pau Ferro do Joazeiro, um dos


núcleos museológicos do MASB (Foto: Manuelina Duarte, 2012)

A constituição de uma equipe técnica comprometida com os


conceitos de museu e patrimônio como uma construção coletiva levou
à adoção de metodologias que dariam ao processo de criação do museu
um caráter comunitário, envolvendo na discussão e elaboração do
plano museológico do MASB 2.376 pessoas e 28 comunidades. Ao
longo de um ano e meio de trabalho foram realizados 11 seminários de
capacitação museológica, um ciclo de debates, palestras, minicurso,
entre outras ações (idem). Há um Grupo de Trabalho permanente
formado por participantes dos três municípios e cujas reuniões são
sempre divulgadas e abertas a quem mais desejar participar. Todas as
tomadas de decisão que envolvem ou envolveram a definição da
missão, da sede, e do nome do museu, assim como elaboração de
documentos como a lei municipal de criação e o regimento da
instituição são feitas por este grupo de trabalho. A sede do museu é a
Casa da Chácara, uma edificação do séc. XIX de grande significação para
a população local, cedida por uma família que se sensibilizou com o
projeto. No momento a casa se encontra em processo de restauração e
construção dos anexos indicados no programa arquitetônico do museu
187
Museologia e Património – Volume 1

e a ação continua sendo realizada com a parceria entre equipe técnica,


grupo de trabalho e comunidades tanto do entorno da sede como de 10
núcleos museológicos que marcam sua atuação descentralizada. Estes
núcleos, distribuídos em todo o território, são: sede do Movimento de
Mulheres Camponesas, comunidade quilombola Pau Ferro do Joazeiro,
Instituto de Educação Anísio Teixeira, escola municipal de Caldeiras e
sítio arqueológico Moita dos Porcos, em Caetité; comunidades rurais de
Curral de Varas e Pajeú do Josefino, em Guanambi; Centro de Cultura
de Igaporã, comunidade quilombola Gurunga e escola do Tamboril, na
área rural de Igaporã.
Este processo emergiu por inciativa da comunidade. A
demanda por um museu veio através de um grupo de professores da
rede de escolas municipais de Caetité e da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), que se recusou a permitir a transferência dos materiais
arqueológicos para outra região e solicitou ajuda para o governo local.

5. Museu Treze de Maio

Conhecido como Museu Comunitário Treze de Maio ou


simplesmente Treze, a origem deste museu está relacionada à antiga
Sociedade Cultural Ferroviária 13 de Maio40, criada em 1903 por
trabalhadores negros da extinta rede ferroviária de Santa Maria (Rio
Grande do Sul). Os Clubes Sociais Negros surgiram antes da abolição da
escravidão no Brasil, como lugares para socialização em oposição aos
clubes para pessoas brancas, onde a população negra era proibida de
entrar. Sua história também é marcada por ações contra a escravidão e
a discriminação racial, incluindo o levantamento de fundos para a
alforria de trabalhadores negros escravizados e despesas com
educação de seus integrantes (Escobar, 2010). Seguindo o exemplo de
Santa Maria, clubes deste tipo eram organizados em diversas cidades
brasileiras. Hoje existe o Comitê Nacional de Clubes Sociais Negros,
formado por representações do Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ele mapeia e organiza

40O nome 13 de Maio é uma referência à data da assinatura da Lei Áurea.


Outros clubes adotaram também o nome Princesa Isabel, legitimando
personagens e fatos do período monarquista e tornando mais complexo o jogo
entre resistência e reverência, memória e esquecimento.
188
Museologia e Património – Volume 1

a memória e ajuda a elaborar políticas públicas para o setor (ibid., p.


61). Estas políticas incluem a criação de um Cadastro Nacional, de um
portal e um pedido ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) de Registro como Patrimônio Imaterial Brasileiro.
Sua transformação em museu comunitário começou em 2001,
por inciativa da comunidade negra, de estudantes do curso de
especialização em Museologia do Centro Universitário Franciscano
(UNIFRA) e de antigos sócios. Em 2002 o projeto foi incluído no
Programa de Preservação e Revitalização da Área da Mancha
Ferroviária de Santa Maria. Em 2004, por iniciativa do grupo que se
mobilizou pela criação do museu, o Treze foi reconhecido como
Patrimônio Histórico Municipal e, logo em seguida, foi incluído na lista
de bens tombados do Estado. O processo de criação envolveu desde
restauração e adaptação da edificação, até uma vasta pesquisa
histórica sobre o clube que coletou documentos e gerou outros, como
fotografias e depoimentos.

Figura 3: Roda de Lembranças do Museu 13 de Maio, 2010.


Fonte: Acervo fotográfico do Museu 13 de Maio.

Hoje a forte atuação do Treze no Movimento Clubista


Negro ocorre em paralelo à realização de rodas de lembranças,
189
Museologia e Património – Volume 1

exposições temáticas, oficinas de dança afro, capoeira, percussão e


samba. O Museu é local de encontro do Movimento Negro em seus
diversos segmentos como grupo de mulheres negras, coletivos de
jovens universitários negros, religiosidades de matriz africana e
outros. Tem um intenso trabalho de valorização da cultura e da estética
negra, com especial ênfase no feminino. Consiste, portanto, em um
espaço de resistência à identidade cultural hegemônica no Rio Grande
do Sul, comumente associada às ascendências alemã e italiana.

6. Pontos de Memória e outros pontos

A origem do Programa Pontos de Memória (2010) resultou de


uma parceria entre programas de diferentes ministérios: o Programa
Pontos de Cultura, do Ministério da Cultura, e o Programa Nacional de
Segurança Pública e Cidadania (PRONASCI), do Ministério da Justiça,
com apoio da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). Nesse
momento comunidades caracterizadas por indicadores de
vulnerabilidade social e violência foram privilegiados.
Doze pontos de memória pioneiros foram estabelecidos pelo
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), distribuídos por capitais das
cinco regiões político-administrativas do país (Norte, Nordeste, Centro-
Oeste, Sul e Sudeste), a partir de indicações do Ministério da Justiça:
Os pontos de memória são basicamente uma ação de apoio
metodológico e encorajamento a “iniciativas de reconhecimento e
valorização da memória social” (Ibram, 2013) desenvolvidas por
diferentes grupos sociais que atuam no fortalecimento de tradições
locais e laços de pertencimento com base na gestão participativa. De
acordo com a Tabela a seguir, alguns Pontos de Memória se
reconhecem e se denominam como museus, outros não.

Tabela 1 – Pontos de Memória pioneiros identificados pelo IBRAM41


Região Experiências
Norte Ponto de Memória Bairro de Terra Firme – Belém/PA
Nordeste Ponto de Memória Grande Bom Jardim – Fortaleza/CE

41 O 12º Ponto de Memória selecionado na época, na comunidade de


Brasilândia, São Paulo, não teve continuidade.
190
Museologia e Património – Volume 1

Museu Ponto de Memória Mangue do Coque –


Recife/PE
Museu de Cultura Suburbana – Ponto de Memória
Comunidade do Jacintinho – Maceió/AL
Ponto de Memória Beiru – Salvador/BA
Centro- Ponto de Memória Estrutural – Brasília/DF
Oeste
Sudeste Museu e Ponto de Memória Taquaril – Belo
Horizonte/MG
Ponto de Memória Grande São Pedro – Vitória/ES
Ponto de Memória Pavão-Pavãozinho-Cantagalo
(Museu de Favela – MUF) – Rio de Janeiro/RJ
Sul Museu e Ponto de Memória Sítio Cercado –
Curitiba/PR
Ponto de Memória Museu Comunitário Lomba do
Pinheiro – Porto Alegre/RS
Fonte: IBRAM

Estes primeiros pontos caracterizaram-se por serem, portanto,


urbanos e periféricos, um perfil que se diversificou com a abertura do
1º edital público para selecionar outras iniciativas, em 2011, e recebeu
retorno também de iniciativas indígenas, quilombolas, ribeirinhas,
ciganas, afrodescendentes, litorâneas, rurais, artísticas e de gênero.
Os Pontos de Memória também passaram a ser reunidos em
Teias da Memória, encontros para discutir temas como a memória
social e seu poder transformador, além de traçar estratégias e
compartilhar experiências.
Por intermédio do edital, relançado nos anos seguintes, entre
premiados ou apenas inscritos, o Instituto já conseguiu mapear cerca
de 300 iniciativas no Brasil e duas dezenas entre comunidades de
brasileiros no exterior. A quantidade é ainda maior, com grande
dinâmica de surgimento de novas iniciativas, que o IBRAM e vem
procurando conhecer.
Além do Programa Pontos de Memória do IBRAM há outras
iniciativas tomando a ideia de pontos e percursos de memória. É
possível mencionar o Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico
Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no
Brasil, promovido pela UNESCO e com participação da Universidade
191
Museologia e Património – Volume 1

Federal Fluminense, que pesquisou e elaborou com a colaboração de


diversos pesquisadores, uma lista dos 100 locais mais significativos da
memória do tráfico negreiro e da história dos africanos escravizados
no Brasil. Os 100 itens, considerados, evidentemente, não exaustivos,
foram distribuídos em sete categorias que cobrem um território entre
o Maranhão e o Rio Grande do Sul.

1. Portos de chegada, locais de quarentena e venda


2. Desembarque ilegal
3. Casas, Terreiros e Candomblés
4. Igrejas e Irmandades
5. Trabalho e Cotidiano
6. Revoltas e Quilombos
7. Patrimônio Imaterial
Os Pontos de Memória Pioneiros e as três experiências
analisadas estão indicados no mapa a seguir, que também incluiu o
número de iniciativas por região reconhecidas pelo IBRAM até 2013,
quando os dados foram apresentados na 23a Conferência Geral do
Conselho Internacional de Museus (ICOM).
Pode-se perceber que apesar do esforço de descentralização,
muitas experiências ainda se encontram concentradas na porção
oriental do Brasil. Algumas outras iniciativas e redes mencionadas ao
longo do texto encontram-se também fora desta área e como impulso
para que o leitor se interesse em adentrar mais e mais no território
brasileiro para conhecer nossas práticas de memória social e
empoderamento, elencarei a seguir mais um grande número de
experiências. Esta lista nem pretende e nem pode ser exaustiva visto o
surgimento constante de novas iniciativas42.

Ecomuseu da Amazônia (Belém, PA)


Museu Sacaca (Macapá, AP)
Ponto de Memória Casa de Izidória Lopes (Catanhede, MA)

42 As experiências em regiões onde existem redes foram mais facilmente


mapeadas e podem, por isto, predominar numericamente na lista. Entre as
iniciativas surgidas após a publicação original do artigo, destaco o Museu das
Remoções, no Rio de Janeiro.
192
Museologia e Património – Volume 1

Figura 4: Mapa do Brasil com distribuição das experiências


museológicas analisadas e pontos de memória (Elaboração:
Manuelina Duarte e Samuel O. Gomes, 2013)

Museu Comunitário Memorial do Divino de Porto Grande (São Luiz,


MA)
Museu Comunitário da Cultura Popular Tambores e Maracás (São Luiz,
MA)
Ecomunseu Comunitário Graciliano Ramos (Tabuleiro do Martins, AL)
Casa do Samba de Dona Dalva (Cachoeira, BA)
Memorial da Cultura Viva do Recôncavo Baiano (Cachoeira, BA)
Museu Indígena de Coroa Vermelha (Santa Cruz de Cabrália, BA)
Centro de Memória Arca do Axé (Salvador, BA)
Museu Comunitário Mãe Mirinha do Portão (Lauro de Freitas, BA)
Museu Vivo Olho do Tempo (João Pessoa, PB)
Ponto de Memória Camará (Camaragibe, PE)
Ponto de Memória Estrela de Ouro (Recife, PE)
Ecomuseu de Maranguape (Maranguape, CE)

193
Museologia e Património – Volume 1

Colônia Z8 de Pescadores (Fortaleza, CE)


Associação de Moradores do Titãnzinho (Fortaleza, CE)
Ponto de Memória Social do Dias Macedo (Fortaleza, CE)
Comunidade Moura Brasil (Fortaleza, CE)
Eco Museu Natural do Mangue (Fortaleza, CE)
Museu Indígena Pitaguary (Maracanaú, CE)
Museu da Miniatura (Tauá, CE)
Memorial Comunitário Caetanos de Cima (Amontada, CE)
ONG Caldeirão (Crato, CE)
Museu Comunitário da Serra do Evaristo (Baturité, CE)
Memorial da Paróquia de Santana do Acaraú (Santana do Acaraú, CE)
Memorial Prainha do Canto Verde (Amontada, CE)
Museu Vivo da Memória Candanga (Brasília, DF)
Ecomuseu do Ferreiro (Goiás, GO)
Ecomuseu da Serra de Ouro Preto (Ouro Preto, MG)
Museu de Quilombos e Favelas Urbanos - MUQUIFU (Belo Horizonte,
MG)
Ponto de Memória Morro da Carapina/Cidade do Futuro (Gov.
Valadares, MG)
Museu Capixaba do Negro - MUCANE (Vitória, ES)
Museu Vivo de Duque de Caxias (Duque de Caxias, RJ)
Ecomuseu de Manguinho (Rio de Janeiro, RJ)
Museu do Horto (Rio de Janeiro, RJ)
Museu da Maré (Rio de Janeiro, RJ)
Ecomuseu de Santa Cruz (Rio de Janeiro, RJ)
Ecomuseu de Sepetiba (Rio de Janeiro, RJ)
Museu de Bangu (Rio de Janeiro, RJ)
Museu Sankofa (Rocinha, Rio de Janeiro, RJ)
Aldeia Sapukai - Povo Guarani Sapukai (Angra dos Reis, RJ)
Ecomuseu de Ilha Grande – Memorial do Cárcere (Angra dos Reis, RJ)
Museu do Folclore de São José dos Campos (São José dos Campos, SP)
Museu Histórico e Arqueológico de Lins (Lins, SP)
Ponto de Cultura e Memória Ibaô (Campinas, SP)
Ecomuseu de Itaipu (Foz do Iguaçu, PR)
Ponto de Memória Roda de Memória (Londrina, PR)
Terra Indígena Apucaraninha (Tamarana, PR)
Museu Comunitário Engenho do Sertão (Bombinhas, SC)
Ponto de Memória Missioneira (São Miguel das Missões, RS)
194
Museologia e Património – Volume 1

Ponto de Memória de São Leopoldo (São Leopoldo, RS)


Ponto de Memória TV OVO (Santa Maria, RS)
Ecomuseu da Ilha da Pólvora (Rio Grande, RS)
Museu Comunitário de Percurso de Picada Café (Picada Café, RS)

Alguns destes museus, ecomuseus e Pontos de Memória


constituíram um importante mapa de atividades de pós-conferência
para os delegados na 23a Conferência Geral do ICOM. O mapa pode ser
consultado no site da Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus
Comunitários (ABREMC), que também traz outras informações como o
endereço dos sites das iniciativas mapeadas, seus blogs e seus perfis
em redes sociais. Este artigo, em sua versão original, foi também um
convite para que elas fossem visitadas pessoalmente.

Agradecimentos

Este texto foi originalmente publicado em inglês na revista


Museum International, do Conselho Internacional de Museus, ICOM,
em 2014. Agradeço à editora Taylor & Francis a permissão para a
presente publicação da versão em português. Ela também foi possível
graças ao exercício de tradução realizado por Giane Vargas Escobar,
Cristiane Miglioranza e os alunos das Disciplinas “Museus e
Diversidade Cultural” e “Arquitetura e Espaços em Museus” (2016.1)
do Curso de Bacharelado em Museologia da UFRGS. Esta versão foi
revisada pela autora, com pequenos ajustes para melhor expressar
suas ideias, não sendo mais uma tradução literal do texto já publicado.
Porém, não foi feita uma atualização do mapeamento de redes e
iniciativas de memória e Museologia comunitária, que se expande
exponencialmente ano a ano.

Tradução: Giane Vargas Escobar; Cristiane Miglioranza et alli

Bibliografia

Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários [Abremc]


(2013). (s. d.). http://www.abremc.com.br/. Acesso em 23 de outubro
de 2013.

195
Museologia e Património – Volume 1

Baptista, Jean & Silva, Claudia Feijó da (orgs.). (2013). Práticas


Comunitárias e Educativas em Memória e Museologia Social. Rio Grande
(RS): Editora da FURG.

Chagas, Mário. (2011). “Museus, memórias e movimentos sociais”. In:


Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias [ULHT].
Questões Interdisciplinares na Museologia. Lisboa: ULHT. p. 5-15.
(Cadernos de Sociomuseologia, 41)

Davis, Peter. (1999). Ecomuseums – A sense of place. London, New York:


Leicester University Press. (Leicester Museum Studies)

Cury, Marília Xavier; Vasconcellos, Camilo de Mello & Ortiz, Joana


Montero (Coords.). (2012). Questões indígenas e museus: debates e
possibilidades. Brodowski, SP: ACAM Portinari: Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP: Secretaria de Estado da Cultura (SEC). (Coleção
Museu Aberto).

De Varine, Hugues. (2012). As raízes do futuro: o patrimônio a serviço


do desenvolvimento local. Porto Alegre, Medianiz.

De Varine, Hugues. (2005). “O museu comunitário é herético?” In: site


da ABREMC. Disponível online em
http://www.abremc.com.br/artigos1.asp?id=9 . Acesso em 23 de
outubro de 2013.

Duarte Cândido, Manuelina Maria. (2014). Gestão de museus, um desafio


contemporâneo: diagnóstico museológico e planejamento. 2a Ed. Porto
Alegre: Medianiz.

Duarte Cândido, Manuelina Maria & Lima, Nei Clara de. (2014). “Ocupe
o museu (com) memórias de Goiânia: O público como construtor de
conteúdos”. In: Revista MIDAS – Museus e estudos interdisciplinares. V.
3, 2014. Varia e dossier temático: "Museos y participación biográfica".
p. 01-12. Disponível online em http://midas.revues.org/505 Acesso em
02 de julho de 2019.

196
Museologia e Património – Volume 1

Escobar, Giane Vargas. (2010). Clubes Sociais Negros: lugares de


memória, resistência negra, patrimônio e potencial. Santa Maria: UFSM.
(Dissertação do Mestrado Profissionalizante em Patrimônio Cultural).

Freire, José R. Bessa. (1999). “A descoberta do museu pelos índios”. In:


Terra das Águas - Revista semestral do Núcleo de Estudos Amazônicos da
Universidade de Brasília, ano 1, n.. Disponível online em:
http://pt.scribd.com/doc/58829252/A-Descoberta-Do-Museu-Pelos-
Indios. Acesso em 24 de outubro de 2013.

Gomes, Alexandre Oliveira. (2012). Aquilo é uma coisa de índio: objetos,


memória e etnicidade entre os Kanindé do Ceará. Recife: Universidade
Federal do Pernambuco. (Dissertação de Mestrado em Antropologia)
Gomes, Alexandre Oliveira & Vieira Neto, João Paulo. (2009). Museus e
memória indígena no Ceará: uma proposta em construção. Fortaleza:
Secult.

Instituto Brasileiro de Museus [Ibram]. (2011). Museus em Números.


Brasília: IBRAM. Disponível online em http://www.museus.gov.br/wp-
content/uploads/2011/11/museus_em_numeros_volume1.pdf Acesso
em 26 de outubro de 2013.

Instituto Brasileiro de Museus [Ibram]. (2011). Programa Pontos de


Memória. Brasília: IBRAM. Disponível online em
http://www.museus.gov.br/programa-pontos-de-memoria/. Acesso
em 25 de outubro de 2013.

Mattos, Hebe; Abreu, Martha & Guran, Milton. (2013). Inventário dos
Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos
Africanos Escravizados no Brasil. Niteróis, RJ: Laboratório de História
Oral e Imagem (LABHOI) da Universidade Federal Fluminense /
Comitê Científico Internacional do Projeto da UNESCO “Rota do
Escravo: Resistência, Herança e Liberdade”. Relatório, abril de 2013.
Disponível online em http://www.seppir.gov.br/.arquivos/inventario-
dos-lugares-de-memoria-do-trafico. Acesso em 24 de outubro de 2013.

Moraes, Camila. (2013). A construção coletiva do Museu do Alto Sertão


da Bahia: o planejamento museológico como processo educativo e de
197
Museologia e Património – Volume 1

mudança social. Rio de Janeiro: CECA/ICOM. (Comunicação


apresentada na 23a Conferência Geral do ICOM)

Peirano, Marisa. (1999). “Antropologia no Brasil (alteridade


contextualizada)” In: Miceli, Sérgio (Org.) O que ler na ciência social
brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré/ANPOCS.

Van Mensch, Peter. (1992) Towards a methodology of museology.


Zagreb (Croácia): University of Zagreb. (Tese de doutorado)

Vidal, Lux Boelitz. (2008). “O Museu dos Povos Indígenas do Oiapoque-


Kuahí: gestão do patrimônio cultural pelos povos indígenas do
Oiapoque, Amapá”. In: Bruno, Maria Cristina Oliveira & Neves, Kátia
Regina Felipini (orgs.). Museus como agentes de mudança social e
desenvolvimento: propostas e reflexões museológicas. São Cristóvão:
Museu de Arqueologia de Xingó. p. 173 a 181.

Zanettini Arqueologia (equipe técnica: Bernardo de Carvalho, Camila A.


de Moraes Wichers, Louise Prado Alfonso, Manuelina Maria Duarte
Cândido, Paulo Zanettini). (2013). Plano Museológico do MASB. São
Paulo: Zanettini Arqueologia.

198
Museologia e Património – Volume 1

MUSEUS, PATRIMÔNIOS E EXPERIÊNCIA CRIADORA:


ENSAIO SOBRE AS BASES DA MUSEOLOGIA EXPERIMENTAL

Bruno Brulon Soares


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-1037-8598

“[...] que o museu não é de nenhum modo um lugar de


armazenamento, mas que se encontra numa ‘linha de
passagem’ que faz da recordação um documento válido para
o futuro.”
(Mathilde Bellaigue & Michel Menu, ICOFOM LAM, 1997)

1. Introdução

O que fazem os museus? Numa primeira tentativa de responder


tal pergunta, é possível afirmar que os museus guardam experiências.
O trabalho dos museus, como o da imaginação, é o de oferecer à nossa
experiência um presente a partir de fatos ausentes. É o da produção
das heranças que desejamos reviver e manter, para transmitir à
posteridade. Logo, o museu é um dispositivo do tempo. Ele transmite
nossos próprios valores, anseios e medos para aqueles que ainda virão,
atuando diretamente na experiência de futuro. Graças aos museus, ou à
transmissão por meio da musealização, exercemos poder divino
atuando sobre o devir, gerando devir, moldando a experiência
daqueles que virão.
O desenvolvimento, no último meio século, de uma disciplina
dedicada à teorização sobre os processos museais nos levou a
compreender os laços entre as museologias que praticamos e as
experiências de dentro para fora dos sujeitos e grupos envolvidos no
processo da musealização. A virada experimental, de um enfoque sobre
as coisas materiais a um enfoque sobre a experiência vivida a partir do
patrimônio, nos leva a aceitar a ação museológica ou musealização
como um ato social de produção de valores e criação de realidades.
199
Museologia e Património – Volume 1

Não há nada de acabado nos museus que são feitos por pessoas, antes
mesmo da vontade ou da autoridade do especialista. Da experiência
museológica, anterior ao próprio dispositivo museu, provém a criação
do que existe como presença valorada pela ação humana, ligada à
imaterialidade do que está por vir.
Como diversos estudos em Museologia já apontaram43, nas
últimas décadas, viu-se um nítido deslocamento do foco de interesse da
disciplina das obras e coleções e seus criadores para a experiência
sensível do público, seus receptores, e, mais recentemente, para a
sociedade e para a diversidade dos usuários do patrimônio.
Caminhamos, então, em direção a uma disciplina que estuda o próprio
processo criativo da musealização como experiência coletiva cujo foco
se encontra na passagem à obra, que Daniel Fabre chamou de
“passagem criadora” (2014), envolvendo tanto a experiência dos
produtores quanto aquela dos receptores que tomam parte no ato da
criação. Propomos pensar os museus, portanto, em sua capacidade
própria de criar o futuro, por meio das experiências que nós, vivendo e
atuando sobre o presente, legamos para as gerações vindouras.
Concebido como instrumento ou meio para se alcançar
determinado fim (Stránský, 1965), o “museu” ganha valor no presente
na medida em que sua finalidade é associada à sua função social. Esta,
amplamente debatida pelos órgãos normativos criados no pós-guerra,
cujo sentido já se mostrava político, social e econômico, foi
redirecionada, nas décadas seguintes, para abarcar a diversidade das
experiências museais em distintas sociedades, após os movimentos de
descolonização dos museus nas diferentes localidades do mundo pós-
colonial.
A criação, como ato social experimental, torna-se o objeto de
estudo e aplicação da Museologia, na medida em que se rompe com a
transmissão de uma instituição de cunho eurocêntrico para se admitir
outras formas de se fazer museus e de produzir patrimônios nas
margens. Hoje, testemunhamos uma diversidade nos modos de

43 Ver, por exemplo, Desvallées, André; De Barry, Marie Odile & Wasserman,

Françoise (coord.) (1992). Vagues: une antologie de la Nouvelle Muséologie


(vol. 1). Collection Museologia. Savigny-le-Temple : Éditions W-M.N.E.S.; e,
também, Mairesse, François (2002). Le musée temple spetaculaire. Paris:
Presses Universitaires de Lyon.
200
Museologia e Património – Volume 1

engajamento e apropriação na atividade patrimonial (Tornatore &


Paul, 2003) que buscam romper com os modelos instituídos de museus
e de patrimônio, realizando a passagem a uma museologia
experimental, socialmente comprometida e aberta aos diferentes
regimes de valor. Ela direciona o trabalho museológico para o ato
contínuo de criação e transformação das realidades sociais em que
vivem os diversos atores da musealização. Se o museu, em si, é uma
criação, desconstruir a ideia de que um único museu é possível vem
sendo, nos últimos anos, o objetivo teórico-prático da museologia
experimental.
O presente ensaio parte da apresentação de alguns traços
marcantes dos museus na Contemporaneidade buscando identificar
bases teórico-metodológicas para o que entendemos sob a
nomenclatura, aberta e variante, de Museologia Experimental.
Tomando como objeto empírico da análise a experiência criadora da
musealização, voltamos o nosso olhar para as práticas e metodologias
experimentais que marcaram o campo museal, sobretudo no contexto
latino-americano da segunda metade do século XX, e que influenciaram
subsequentemente os trabalhos de intelectuais e museólogos desta
região. A abertura de um campo museológico renovado na América
Latina e no Caribe, assim, se vê atrelada, por um lado, a ideias e
conceitos disseminados a partir da Europa e re-apropriados em
momentos centrais para a construção do campo museal na região,
como a Mesa Redonda de Santiago do Chile, de 1972, organizada pelo
ICOM e pela UNESCO. Por outro, ela decorre de experiências locais que
conjugavam o patrimônio, as identidades e os territórios, fazendo dos
processos memoriais objetos de lutas e conflitos (Bondaz; Isnart &
Leblon, 2012), decorrentes dos jogos políticos de um contexto marcado
pelo fim de regimes autoritários em muitos dos países seguido do
processo de redemocratização a partir dos anos 1980.
A Museologia Experimental existe onde a disputa social pelos
sentidos investidos às referências culturais locais produz regimes de
valor imprevisíveis e inerentes aos próprios grupos que passam a
atuar em sua automusealização. Ao longo dos diversos momentos da

201
Museologia e Património – Volume 1

história moderna, em que a musealização44 teve que provar a sua


validade social, os museus mostraram que servem para criar
experiências, e atuam sobre aquelas existentes para além de suas
paredes. Funcionando como dispositivos sociais experimentais eles
apresentam relevância no presente, tendo atravessado nos dois
últimos séculos às transformações necessárias para sua integração no
mundo atual.

2. Quando os museus são feitos de coleções: o enfoque sobre o


objeto

A Museologia, constituindo-se a partir da produção conceitual e


metodológica de outras disciplinas estabelecidas, é desafiada, desde as
primeiras tentativas de organizar-se como ciência ou disciplina
acadêmica, a definir o seu olhar próprio sobre as atividades do museu,
em meio a um campo de disputas multidisciplinar. Como consequência
mais imediata, o olhar dos profissionais de museus ou museólogos, a
partir de uma formação específica na Museologia, voltou-se aos
processos museais, e acarretou a fragmentação daquilo que
entendemos integralmente como a experiência museológica ou o ato de
criação, que pretendemos recompor no presente ensaio.
Primeiro foram os objetos, em seu estatuto de musealia (ou
objeto de museu), que estiveram no centro do interesse daqueles que
pretendiam lançar um olhar museológico específico sobre o trabalho
em museus. Na história dessas instituições culturais, durante o vasto
período em que os museus tradicionais na Europa estabeleciam para
quase todo o mundo um padrão de organização do conhecimento
produzido pelas disciplinas científicas, a entrada de um objeto na
cadeia museológica45 representava inevitavelmente a sua afiliação a
uma ou outra corrente disciplinar. Tal conexão visceral do objeto à
disciplina-mãe responsável por sua coleta, interpretação e

44 Aqui musealização compreende também a patrimonialização, mas se


distingue deste último termo por apresentar uma vocação de transmissão de
valores por meio da comunicação museológica.
45 Uma cadeia museológica é o enquadramento teórico que podemos dar aos

procedimentos organizados em cadeia por meio dos quais se desenvolve o


processo de musealização que perpassa os museus mas que não se limita a
essas instituições.
202
Museologia e Património – Volume 1

documentação propiciava a sua “consagração mágica”, nas palavras de


Pierre Bourdieu (2009 [1982], p.123), que lhe confere efeitos
simbólicos no contexto museal.
Tomando como exemplo os objetos de arte, tem-se que a
história da arte se legitimou como disciplina científica por meio da
valorização dos objetos pertencentes ao seu domínio de estudos como
documentos únicos e que também transmitiam significados singulares.
A “obra” e o monumento são, então, admirados por sua unicidade e
originalidade, responsáveis por documentar a verdade. Sujeitos à
crítica e a outros tipos de julgamento sobre sua legitimidade, estes
deviam ser discriminados para se chegar à verdade como finalidade
científica. Logo, a busca pela verdade na arte necessitava de um
trabalho fundado sobre a autenticidade dos documentos (Mairesse &
Deloche, 2011, p.392), concepção esta fundada no Iluminismo
racionalista.
Essas disciplinas e seus museus foram responsáveis não apenas
por criar nomenclaturas ou categorias classificatórias, mas serviam
também para disciplinar a diversidade das experiências possíveis a
partir dos objetos uma vez organizados em coleções. Tal reflexão
permite identificar como as formas tradicionais de classificar estavam
atreladas a uma museologia específica, ligada aos sistemas de
organização do conhecimento moderno e que desconsiderava a
variabilidade da experiência humana sobre as coisas às quais se podia
atribuir valor. Nesse contexto restritivo e normativo, a musealização
era compreendida como a mera identificação e classificação do valor
existente nas obras apresentadas pelos museus, ignorando-se os
processos sociais que levavam à criação do valor em regimes
específicos.
Foi apenas a partir da segunda metade do século XX, com um
processo em cadeia de ruptura com os modelos estabelecidos de
instituições culturais e políticas públicas para a cultura, que passam a
se definir “novas alianças entre a cultura e a criação” (Tornatore &
Paul, 2003, p.299). Uma tal ruptura, como demonstraram Tornatore e
Paul (2003), foi decorrente do questionamento da autonomia da arte
no campo da cultura e da busca, em diversos contextos incluindo o
europeu, por relações renovadas entre a arte e a sociedade – o que
faria dos museus, palcos de performances inacabadas, e dos objetos,

203
Museologia e Património – Volume 1

suportes para dinâmicas sociais transformadoras das relações com o


patrimônio.

3. Quando os museus são feitos pela sociedade: o enfoque sobre os


criadores e o processo de criação

É inicialmente no âmbito dos museus de arte, que o valor


documental, de testemunho, investido nos objetos, passa a ser
questionado em função de uma sociologia dos valores. A abordagem
processual, num primeiro momento dos estudos no campo da
sociologia da arte, desloca o olhar centrado sobre os objetos como
“portadores” de informação, ou das obras de arte como “provas”
singulares da autenticidade genial, para os processos de sua criação e
seus criadores.
Até o presente, a ideia de processo é priorizada como um
método de análise das ciências humanas e sociais, na medida em que
estas passam a prolongar a própria concepção da “obra”. Esta última,
como já mencionado, imobiliza aquilo que é movimento, “incessante
reconfiguração da parte de quem a produz”, bem como,
posteriormente, daqueles que a percebem e a interpretam, num
engajamento infinito que torna toda obra propriamente “sempre
inacabada e inacabável” (Fabre, 2014, p.5). Para Fabre, falar de
“processo criador” em vez de “criação” afasta a concepção ocidental do
misterioso gênio individual que se definiu desde o último século da
Idade Média, abrindo as portas para toda forma de ação criadora,
incluindo as coletivas. No presente texto, iremos nos referir à “criação”
como experiência criadora, que mais do que envolver a ação coletiva,
prioriza a experiência dos atores em detrimento da criação em si
mesma.
Para se compreender a experiência criadora que funda os
museus, em seu caráter sociocultural e político, é preciso recorrer ao
mundo da arte, e ao pensamento sobre o valor de obra, buscando
reconhecer como se configurou na história ocidental uma gramática
museal moderna. O primeiro movimento da história da arte em direção
a uma sociologia da arte se deu com a substituição das tradicionais
interpretações espiritualistas ou estéticas (a religiosidade, o gosto) por
uma explicação das causas exteriores à arte e logo menos “legítimas”.
Tratou-se, segundo Heinich (2008, p.29), de um movimento de
204
Museologia e Património – Volume 1

desautonomização (a arte não pertence apenas à estética) e


desidealização (ela não é um valor absoluto) que constituem, em si,
dois momentos fundadores da sociologia da arte apoiados numa crítica
mais ou menos explícita da tradição estética, vista como sinônimo de
elitismo, de individualismo e de espiritualismo.
Na Museologia, tal movimento teve reflexos importantes sobre
as noções pouco aprofundadas de “musealidade” e de “musealização”.
Ao sofrer diversas críticas, ainda nos anos 1970, Stránský irá
progressivamente deixar de interpretar a musealidade como uma
categoria de valor para pensa-la como “a própria orientação específica
do valor” (Van Mensch, 1992). Se a Museologia estuda o valor existente
nas coisas, ou sua qualidade museal, ela estaria mais próxima de um
ramo de conhecimento prescritivo do que de uma ciência social. No
entanto, segundo o próprio Stránský, o papel do museólogo não devia
ser o de apontar o valor nas coisas, mas o de compreender como e por
que um objeto adquire valor por meio do processo de musealização.
Como resultado dessa “virada processual”, no mundo da arte,
os próprios artistas, conscientes dela, passam a explicitar as operações
inventivas e os estados sucessivos de sua produção, como prova do seu
trabalho, priorizando o processo criador em detrimento da noção
anterior de “obra acabada”. A experiência criadora é incorporada à
própria obra, fazendo da arte um produto da sociedade. A relativização
da obra pela própria arte contemporânea, acarretada pelo estudo dos
contextos de sua produção, tem expressiva aderência por autores das
ciências sociais que se voltam para os processos da criação artística em
sentido amplo, tais como Howard Becker (1982), em seu Os mundos da
arte, que vê a “arte como ação coletiva” produzida no interior de
mundos sociais específicos46.
O campo da arte não demorou a reconhecer que os objetos, ao
passarem pela musealização, não se encontram necessariamente

46 Análises como esta contribuem para a desconstrução de conceitos


sociológicos anteriormente propostos que levam à cristalização das obras de
arte, tais como a noção de aura, proposta por Walter Benjamin (1994) para
designar a unicidade da obra, em contraposição à sua reprodutibilidade
técnica. Tal noção tende a ocultar o fato de serem essas técnicas de
reprodução justamente a condição de existência da aura: é porque a fotografia
multiplica as imagens que os originais ganham um status privilegiado
(Heinich, 2008, p.35).
205
Museologia e Património – Volume 1

cristalizados ou reificados em seu novo estatuto, podendo ser muito


facilmente remobilizados nos dispositivos culturais que os re-
produzem ou reajustados a novos regimes de valor. Uma mudança se
dá quando os estudiosos dos museus de arte passam a se interessar,
não apenas pelas obras em seu valor absoluto, mas pelo estatuto do
artista (os produtores). Ao se aproximarem das condições próprias da
produção, contribuem para o rompimento com a ideia obsoleta de uma
exterioridade do “social” em relação à “arte” (Heinich, 2008, p.56), que
eximiria os próprios artistas de qualquer preocupação que não a
estética.
Apesar do enfoque predominante sobre os processos, esses
estudos colocam questões quanto a um possível método de análise social
para a musealização. A ideia de “processo” pode adquirir nas ciências
sociais características que a ligam à antropologia funcionalista. Ao mesmo
tempo, ela remete ao contexto da psicanálise freudiana, segundo a qual
“os processos do sistema inconsciente são atemporais, o que quer dizer
que não são ordenados no tempo, não são modificados pelo fluxo do
tempo, não têm absolutamente nenhuma relação com o tempo” (Freud,
1968 [1915], p.97 apud Fabre, 2014, p.6). O deslocamento de que
tratamos anteriormente alcança, portanto, o nível da subjetividade do
produtor – ou no caso da arte, do artista; no caso do museu, do
museólogo ou curador – que se vê, nessa perspectiva, deslocado do
contexto social e histórico em que está inserido.
Aqui Fabre irá propor a substituição do termo “processo” por
“passagem”47, uma vez que a noção mal nomeada de “processo criador”
apresenta uma concepção linear ou dialética, visto que o “processo”
segue um certo curso. O processo deixa de se dar conta do
acontecimento experienciado em si mesmo enquanto algo está em
passagem de um estado para outro, que é, de fato, passagem
ininterrupta. Ele ignora, ainda, a experiência do tempo no processo
criador; “uma experiência tão singular, tão perturbadora, tão intensa
quanto aquela à qual nos dão acesso, por vezes, nossos sonhos”
(Pontalis, 1997, p.57 apud Fabre, 2014, p.9).

47O termo em francês utilizado pelo autor é “traversée” que também pode
designar “cruzamento”, mas aqui julgamos que mais adequado seria usar
“passagem” (Fabre, 2014, p.7).
206
Museologia e Património – Volume 1

Na noção da “passagem criadora”, explorada por Fabre, o foco


ainda se encontra na passagem que é inerente ao criador ou ao artista,
no ato da criação – em que uma obra é criada ao mesmo tempo que se
cria o autor. A obra, neste sentido, coletiva ou individual, reflete em
seus desvios e contornos as impressões deixadas sobre ela por seus
criadores. Em análises que perseguem tal viés, o público ou os
receptores, ainda que essenciais para a existência da obra, são
coadjuvantes na experiência da criação (ou experiência do criador), e
os objetos de museu são valorizados na medida em que se identifica a
sua origem imaginada e autoria.

4. Quando a sociedade está nos museus: o enfoque sobre a


recepção e os consumidores

As transformações estruturais pelas quais passavam alguns


museus em meados do século XX eram, em parte, geradas como reflexo
de mudanças que vinham ganhando ênfase no campo das artes
modernas e contemporâneas. A questão do público e sua experiência
sensível não é mais entendida como decorrente das obras ou tampouco
do gênio do artista investido nelas. Pouco a pouco, passa a fazer parte
da passagem criadora aquilo que o público traz de experiência vivida
para modelar a sua experiência sensível nos museus.
Nos anos 1960, no âmbito de alguns museus dos Estados
Unidos, uma renovada preocupação com a educação é instaurada
nessas instituições que se veem como mediadoras das experiências que
os seus públicos podem desempenhar com o patrimônio, material ou
imaterial, intelectual ou sensível. O desenvolvimento dos museus
exploratórios de ciências, juntamente com o aparecimento dos
primeiros museus de vizinhança, e a importância do papel dos
children’s museums48 – estes últimos já existentes desde o fim do século
XIX – somada a uma revalorização da experiência no campo artístico,
iriam reformular as linguagens museográficas priorizando
irrevogavelmente os sujeitos aos objetos.

48 Sobre estes diferentes modelos de museus, que conferiram certo


protagonismo às experiências humanas no ambiente museal, ver Brulon
Soares (2009).
207
Museologia e Património – Volume 1

Na América Latina, os anos 1960 seriam marcados pela


circulação das ideias do pedagogo brasileiro Paulo Freire,
primeiramente em países como o Brasil e o Chile, a partir da definição
de seu método de educação popular, que propunha, em primeira
instância, a valorização dos saberes populares e das leituras de mundo
ligadas às experiências de vida dos oprimidos e às suas realidades
culturais. Tendo a educação como “prática libertadora”, Freire
desenvolveu, nos contextos em que atuou, estratégias que visavam a
participação popular na vida social e o engajamento por meio da ação
cultural que leva à “percepção crítica da realidade” (Freire, 1981
[1969], p.35) – uma ideia contestada pelos regimes totalitários da
época, nos países onde ele atuou. Suas ideias chegariam ao campo dos
museus a partir dos anos 1970, no bojo de uma transformação social
sem precedentes, que envolvia a renovação das práticas educativas em
direção aos públicos e a introdução da noção de participação das
“comunidades”.
Corroboram com tal mudança na relação com os públicos dos
museus as análises sociológicas que passam a denunciar o museu como
instituição geradora de barreiras sociais, evidenciando-se em primeiro
plano as disposições culturais, próprias dos atores, mais do que as
propriedades estéticas, próprias das obras (Heinich, 2008, p.75). Para
Bourdieu e Darbel (2011 [1969]), o “sistema de disposições”
incorporadas pelos atores, que lhes permite julgar a qualidade de uma
obra, ou orientar-se em um museu é o que os autores chamam de
“habitus”, um conjunto coerente de capacidades, de hábitos e de
marcadores corporais, que forma o indivíduo pela inculcação não
consciente e a interiorização de modos de ser próprios do meio. O
impedimento da entrada em uma instituição cultural provém não tanto
de uma falta de meios financeiros, nem mesmo de conhecimentos, na
maioria das vezes, mas da falta de naturalidade e de familiaridade com
os códigos da cultura que é exibida.
Contrapondo-se à sociologia do consumo das obras de arte nos
museus desenvolvida por Bourdieu e Darbel, que visava livrar a arte de
funções sociais colocando em relação as formas genéricas da escolha
artística com as categorias de público, estudos posteriores, como o
desenvolvido por Jean-Claude Passeron e Emmanuel Pedler (1991), se
apresentam como uma

208
Museologia e Património – Volume 1

[...] sociologia da recepção das obras [que] visa a objetivar,


nos comportamentos de admiração ou de prazer do
espectador, os atos sêmicos de descrição, de exploração ou
de segmentação de uma pintura que estão diretamente em
relação com a iconografia ou a estrutura formal de uma
obra em particular (Passeron & Pedler, 1991, p.XI).

Os autores colocam em primeiro plano o ato de interpretação


do observador, reconhecendo a particularidade da significação na
imagem observada. A consequência é a identificação de uma grande
variedade de modalidades de recepção segundo os observadores de
uma mesma obra ou os visitantes de um mesmo museu.
Os estudos de recepção que se desenvolvem no interior do
campo da arte passam, ainda no final do século XX, a entender as
diferentes categorias de público, incluindo o não-público. Esses
estudos relativizam oposições e limites entre essas categorias e
buscam compreender como a recepção atua sobre a própria
experiência criadora. Tais perspectivas contribuem para incorporar na
passagem à obra, ou passagem a objeto de museu, os laços sociais que
se encontram fora dos circuitos tradicionais da distribuição cultural
(Ancel & Pessin, 2004, p.7) e do consumo das obras.
A primazia da experiência do visitante sobre as características
intrínsecas das obras e a própria interpretação dos especialistas, aliada
a um novo sentido dado à cultura sob influência da Antropologia
cultural, leva os museus a colocarem em cheque a própria autoridade
científica por detrás da constituição de coleções e do sentido da
preservação baseado numa ideia de “cultura erudita” das elites. A
transformação da experiência museal iniciada, ainda que de forma
tímida, nos museus de arte, assumia expressões variadas e apresentava
aberturas inéditas nos museus científicos de antropologia e sobretudo
nos chamados “museus de sociedade” que se configuravam na França,
desde as últimas décadas do século XX, como alternativa aos museus de
arte clássicos, os primeiros com viés notadamente antropológico.
Organizada a partir do contexto francês, no início dos anos
1980, a Nova Museologia, como um movimento de ruptura com a dita
“museologia tradicional”, também propõe uma revisão radical da noção
de público e da relação da sociedade com o patrimônio (Desvallées,
1992). Não se tratava, com efeito, de pensar o museu meramente como
209
Museologia e Património – Volume 1

uma instituição aberta ao público, mas de considerar, mesmo nos


museus tradicionais, a diversidade das experiências do público em seu
entendimento mais amplo, e os meios de apropriação do patrimônio
por esse mesmo público. A crítica à museologia hegemônica
preconizava, assim, uma revisão da função comunicacional dos
museus, que iria se tornar ainda mais profunda em contextos de
grande desigualdade social. O movimento, entretanto, era a expressão
ideológica de rupturas que já vinham se dando em museus tanto na
Europa quanto no contexto das ex-colônias. Tais mudanças levaram a
análises que deixavam de priorizar o estudo dos públicos em termos de
“frequentação” ou “recepção”, para propor uma reflexão sobre a
operatividade social e simbólica de formas específicas da atividade
cultural e artística (Tornatore & Paul, 2003) que incluíam os museus
em suas diversas acepções.
Configuram-se, assim, novas abordagens no estudo dos
públicos de museus nos diferentes contextos experimentais, e a partir
de relações da Museologia com outras disciplinas, nas quais a
musealização passa a ser entendida como a construção do valor por
meio da experiência subjetiva e compartilhada dos visitantes de
museus e atores do patrimônio.
Hoje, ao falarmos em experiências museais, associamos o
dispositivo museu a uma cadeia complexa de construção de sentidos
que antecede à própria criação da obra ou à musealização, por um lado,
e ultrapassa a experiência sensível do visitante, por outro. Os museus
do presente se veem no interstício entre o mundo das experiências
sociais que levam à criação dos objetos que expõem e os mundos
experienciais dos públicos participantes. Mas um museu voltado ao
público e preocupado com a experiência particular de seus visitantes
não é visto necessariamente como um museu experimental. Assim,
poderíamos nos perguntar: o que faz um museu poder ser entendido
como um museu experimental?

5. Quando a sociedade faz os museus: Museologia e experiência


criadora

A transformação eminente que se observa na história dos


museus europeus nas últimas décadas do século XX decorria de um
reconhecimento, no centro do campo museal internacional, da
210
Museologia e Património – Volume 1

existência de museus experimentais nas ex-colônias, e da reivindicação


por outras museologias que rompessem com o modelo hegemônico
disseminado com a colonização. A passagem à chamada
“descolonização” dos museus na Europa, não teve um centro efetivo
das mudanças que foram observadas de forma progressiva em diversas
partes do mundo museal, subvertendo as lógicas de poder entre
metrópoles e colônias mantidas pelos sistemas capitalistas e pelas
ditaduras militares até o final do século.
A circulação internacional das ideias inovadoras de pensadores
como Mario Vázquez (México), John Kinard (Estados Unidos), Pablo
Toucet (Niger), Stanislas Adotevi (Benin), entre outros, e a inspiração
de figuras como a do brasileiro Paulo Freire (Varine, 2005, p.3),
fomentaram as novas interpretações sobre o papel social dos museus
nesse período. Impulsionados, ainda, pelos ecos mais imediatos da
Mesa Redonda de Santiago do Chile e pela noção de “museu integral”,
novas experiências museológicas com viés marcadamente pedagógico
e democrático ensaiavam uma virada experimental inédita na
museologia.
Tal “virada experimental” foi o resultado de ao menos dois
movimentos distintos e paralelos, que tinham início na prática museal
para desenvolver formas específicas de se pensar o museu na teoria.
Enquanto se desenvolviam, na França, a partir do início dos anos 1970,
os ecomuseus – museus em que os grupos sociais atuam em sua
própria musealização – também nas ex-colônias se apresentavam, com
menos visibilidade no contexto do Norte global, outras experiências
inovadoras de “museologias subalternas” (Moreno, 2012),
participativas e educativas, que visavam a ruptura com o modelo
hegemônico de museu europeu.
Os ecomuseus, criados no contexto de reformulação do
discurso sobre a cultura na França, adotaram de forma explícita a
experimentação social como metodologia para um tipo de
musealização que mantém a ações museais no seio dos grupos sociais,
isto é, possibilitando àqueles que reivindicam um papel social na
cultura, a apropriação dos meios de gerir o seu próprio patrimônio.
Quando é proposto, entre 1972 e 1973, o primeiro museu desse tipo, o
Ecomusée Creusot-Montceau, na região da Borgonha, o processo de
criação museal abarca um alargamento progressivo do campo nocional
dos objetos do patrimônio avaliados e/ou valorados pela população,
211
Museologia e Património – Volume 1

que deixava de interpretar os seus próprios bens a partir de um


sistema de valores disseminado pelas elites das metrópoles culturais,
para interpretá-los de acordo com os seus próprios valores e a sua auto
avaliação mediada pelos agentes do museu.
O ecomuseu é previsto como um instrumento por meio do qual
as populações podem se tornar, elas mesmas, objetos de sua
investigação. Ele é, portanto, segundo Georges Henri Rivière (1989),
um instrumento de autoconhecimento para a prática de uma
museologia experimental com base no patrimônio local. Neste sentido,
o museu se faz um instrumento de apropriação patrimonial, por meio
do qual é possível reparar danos do passado e reformular as narrativas
em que as pessoas estão historicamente inseridas e a partir das quais
se constroem os valores do grupo. Os ecomuseus franceses foram – não
apenas no Creusot-Montceau, mas em diversas outras localidades49 – a
expressão de rupturas que afetavam diretamente o corpo social,
provocando demandas por reparação, no sentido de se realizar um
trabalho de luto, que é, por consequência, um trabalho de memória
(Tornatore & Paul, 2003, p.300), e que foi possível graças à re-
articulação ecomuseal entre o patrimônio e a criação cultural.
É também nos anos 1970, em paralelo ao desenvolvimento da
primeira geração de ecomuseus franceses, que diversos pensadores da
América Latina passam a se posicionar de forma crítica em relação às
hegemonias europeias que direcionavam as práticas museais na região.
Um “olhar mestiço” (Moreno, 2012) se constrói para explorar a
modernidade da museologia em contextos atravessados pela
colonização. Segundo Luis Gerardo Morales Moreno, o museu herdado
nas colônias foi concebido pelos europeus como uma forma de
“regulação racional das óticas estéticas e descritivas do mundo” (2012,
p.215). A ruptura ideológica e prática com tal premissa permitiu o
aparecimento tímido de museologias locais, em consonância com as

49 Tornatore e Paul apontam que o caso do Écomusée du Creusot-Montceau é


emblemático por tratar de um “patrimônio grandioso” ligado à história da
siderurgia na França e hoje denominado de “polo da economia do
patrimônio”. Contudo, diversos outros exemplos de apropriação do
patrimônio cultural, que não tiveram a mesma centralidade no campo dos
museus, poderiam ser observados neste período. Ver Tornatore e Paul (2003).
212
Museologia e Património – Volume 1

lógicas e valores dos grupos sociais excluídos dos centros de poder


instaurados.
Alguns exemplos de museus que subverteram a ordem
estabelecida da museologia e do patrimônio, em contextos em que
relações de poder coloniais persistiam nas ações estatais, podem ser
identificados. No caso do Brasil, é destacável a criação do Museu do
Índio, em 1953, ligado à Fundação Nacional do Índio – FUNAI, por
iniciativa do antropólogo Darcy Ribeiro. O primeiro museu indígena do
país configurou uma experiência singular de museologia, cujas
dimensões políticas e educativas, envolvendo a participação indígena
nas ações de um museu tradicional, se mostraram sem precedentes
para o contexto museal latino-americano. Seu minucioso contato com a
sociedade, por meio de um trabalho constante junto às escolas públicas
e aos jovens, teve destaque na cultura e na política brasileiras muito
antes de que se falasse na Nova Museologia francesa.
Outro exemplo que marcou a museologia, no México, ainda em
meados dos anos 1970, foi o projeto La Casa del Museo, desenvolvido
pelo museógrafo Mario Vázquez. A partir de uma ação museográfica
crítica, tratava-se de um museu local na periferia da Cidade do México,
propondo ao público uma mudança de percepção sobre o passado
colonial, por meio da reinterpretação de coleções pré-colombianas do
Museu Nacional de Antropologia do México. No contexto complexo dos
anos 1970, em que muitas instituições latino-americanas buscavam
integrar os museus “na vida cotidiana de sua comunidade, colocando o
passado em função do presente” como forma de resistência política e
social, Vázquez propunha a criação de “um projeto experimental [...],
com intenção de dirigir-se às áreas marginais da zona metropolitana
do Distrito Federal” (Antúnez, 2015, p.53). Essa experiência forneceu
as bases para a investigação e a aplicação museológicas voltadas para a
ideia do museu como plataforma de transformação social.
Outras experiências de ação museal, para além da museologia
dominante, podem ser recuperadas desse cenário de trocas culturais e
de novos aportes sobre o patrimônio na América Latina. Na década de
1970, no Rio de Janeiro, o projeto popular de memória intitulado Varal
de lembranças, coordenado pela professora Lygia Segala (1983) na
favela mais populosa do Brasil, a Rocinha, representou um dos marcos
da prática experimental que viria a influenciar à criação de “museus de
favela”, algumas décadas depois. O projeto consistiu na elaboração de
213
Museologia e Património – Volume 1

uma memória coletiva a partir das lembranças partilhadas entre um


grupo heterogêneo e das experiências vividas na Rocinha por parte dos
habitantes da favela50. A construção da narrativa do grupo perpassou a
definição dos “tempos da Rocinha”, rompendo com a história oficial e
produzindo novos marcos no território de favela a partir do
patrimônio vivido.
Surge, nas periferias do campo museal, uma museologia
participativa e experimental que tem como propósito declarado a sua
oposição aos discursos estatais e essencialistas presentes nos
primeiros museus nacionais instalados nas colônias (Ruiz, 2008, p.90).
A Museologia Experimental, ao apontar como uma nova tendência em
contextos não-hegemônicos do mundo pós-colonial, apresentava teor
analítico e reflexivo sobre a prática museal e, por meio dos órgãos
internacionais, estabelecia diálogos com a museologia pensada e
praticada nos países centrais. Pouco a pouco, os museus passavam de
meros adereços coloniais destinados a reificar um passado cristalizado
para servir como dispositivos de mudança nos processos de
transformação social que tinham o patrimônio como suporte de novas
experiências. A libertação dos museus dos entraves coloniais e a
“revolução” promovida pelos novos agentes do patrimônio levaram à
passagem a outras realidades museais ainda não experimentadas.
Nos anos 1980, a Museologia Experimental reforça a sua
dimensão política, a partir da demanda social crescente por direitos à
cultura em setores desvalorizados, que ganham ênfase sobretudo após
os movimentos pelo fim das ditaduras em países da América Latina e
da América Central. Nesse momento, se amplia a gama de organizações
indígenas e populares que exigem ter elas mesmas o controle do seu
patrimônio cultural (Ruiz, 2008, p.91), e as novas museologias, por trás
da própria Nova Museologia europeia, passam a ter a sua maior
expressividade em países periféricos e cujas intenções patrimoniais
subalternas visam a mudança de quadros sociais desiguais. As
narrativas das minorias, indizíveis nos discursos de museus centrais,
se apropriam, desde então, do dispositivo museu e do instrumento

50 Essa experiência foi retomada a partir do ano de 2009, por iniciativa de


lideranças locais em articulação com o Laboratório de Educação Patrimonial
da Universidade Federal Fluminense (UFF), tendo culminado na criação do
Museu da Rocinha – Sankofa naquele mesmo ano.
214
Museologia e Património – Volume 1

patrimonial para darem usos contestatórios ao patrimônio,


mobilizando aquilo que Julien Bondaz et al (2012, p.11) chamaram de
“contra-patrimonializações” ou contra-musealizações.
Baseando-se nas mais diversas formas de experiência sobre os
patrimônios, o museu, como um dispositivo cultural que ao longo da
Modernidade europeia esteve constantemente associado ao passado,
mudou a sua imagem historicamente construída, de um lugar cuja
finalidade era a fixação das coisas e dos valores nelas investidos, para
ser pensado, em algumas instâncias culturais, como um lugar de
transformação dos valores por meio da experimentação social e das
negociações de sentido sobre o patrimônio.

6. Quando os museus fazem a sociedade: o museu experimental


como dispositivo para a mudança social

Um dos marcos que antecedenram o movimento da Nova


Museologia, na França, data de 1982, quando um grupo de
conservadores apresentou, em Marselha, o estatuto de uma nova
associação que receberia o nome de “Muséologie nouvelle et
expérimentation sociale”51 (MNES). Esta se baseava em ideias já
apresentadas por alguns críticos da museologia tradicional na época, e,
sobretudo, nos pensamentos de Georges Henri Rivière, Hugues de
Varine e André Desvallées. Ela foi, de fato, o reflexo das rupturas e
transformações da lógica museal instaurada, percebidas por alguns
profissionais franceses atuantes no cenário dos ecomuseus. Segundo
seu estatuto, a associação MNES nasce com o objetivo de colocar em
prática “os princípios da nova museologia no contexto da
experimentação social” (MNES, 1983, p.78), servindo como “um
instrumento de reflexão e de pesquisa” para uma forma de museologia
que buscava romper com a prática museal estabelecida, a partir da
introdução da ecomuseologia. Uma nova ênfase é atribuída aos
públicos não habituados aos museus, bem como a experiências
regionais e locais. Volta-se, ainda para a formação de profissionais, de
professores e de aprendizes, denunciando uma ausência, nos cursos de

“Museologia nova e experimentação social”. A MNES seria a antecedente do


51

Movimento Internacional por uma Nova Museolgia (MINOM).


215
Museologia e Património – Volume 1

formação existentes, da apresentação do “papel do museu no seio das


coletividades locais” (MNES, 1983, p.79).

Ouverte aux professionnels de la culture, aux responsables


des collectivités locales, l'Association Muséologie Nouvelle
et Expérimentation Sociale veut rassembler tous ceux qui
souhaitent répondre à une demande sociale déjà
expérimentée, dans les domaines de la création et du
patrimoine.52 (MNES, 1983, p.79)

Essa associação, baseada no pensamento de museólogos que


atuavam no âmbito do ICOM e estavam em contato direto com
experiências internacionais de cunho contestatório, pode ser percebida
como a primeira formulação concreta de um discurso ‘novo’ que parte
da experimentação para conceber a mudança social por meio do
dispositivo museu. Apesar de originária do contexto francês, sua
genealogia pode estar no pensamento de profissionais e teóricos que
olhavam para práticas irruptivas nas antigas colônias. Museólogos
como o já citado Mario Vázquez, do México, ou Marta Arjona, de Cuba, e
Waldisa Rússio, do Brasil, já vinham, desde os anos 197053, produzindo
reflexões críticas sobre a prática museal vigente, e proposições teóricas
a partir da experimentação museológica.
A tendência à experimentação leva muitos museus a adotarem
novas linguagens museográficas, buscando inovar em suas práticas e
envolver os públicos nos mais diversos níveis, o que se mostrava até
então impensado para os museus de administração “tradicional”. Como

52 “Aberta aos profissionais da cultura, aos responsáveis das coletividades


locais, a Associação Museologia Nova e Experimentação Social almeja reunir
todos aqueles que desejam responder à uma demanda social já
experimentada, nos domínios da criação e do patrimônio.” Tradução nossa.
53 Vale apontar que esses três autores estiveram presentes na 11ª Conferência

Geral do ICOM de 1977, em Moscou, na antiga URSS, e em seguida, no México,


na 12ª Conferência Geral de 1980, ocasião em que foram os primeiros latino-
americanos eleitos para compor o board do Comitê Internacional de
Museologia (ICOFOM), criado em 1978, e de onde provêm as ideias
internacionais que fundamentaram a Nova Museologia, disseminada a partir
de 1983. Cf. Herreman, Yani (2015). De personajes y otros mitos del ICOM: el
guru Mario. Gaceta de Museos, n. 60, pp.28-39.
216
Museologia e Património – Volume 1

dispositivos que geram reflexividade, levando os grupos sociais a


pensarem sobre as suas próprias experiências de criação de suas
identidades e do valor atribuído ao território, os museus
experimentais, mais do que configurarem meros “espelhos” do social,
têm a própria mudança social como objeto de interesse. Tal
perspectiva, em termos de uma Museologia Experimental, nos conduz,
como museólogos e estudiosos do museu, a perguntar sobre como esse
dispositivo funciona de maneira pragmática.
Percebendo os museus como uma “tecnologia do patrimônio”,
noção atribuída por Jean Davallon (1995, p.249 sq.), a Museologia
Experimental também atua no âmbito da “produção de conhecimento
sobre o patrimônio” (Tornatore, 2007, p.11, grifos nossos) e sobre os
museus. É neste sentido que, em seu aspecto mais estritamente ligado
à produção de conhecimento, ela não está desvinculada da prática
museal, de modo que toda reflexão museológica, por mais teórica que
seja, se constrói com base na experimentação.
No Brasil, as práticas museais experimentais que – como já
demonstrado – tiveram início muitos anos antes da disseminação da
Nova Museologia, já no início dos anos 2000, fomentaram uma maior
sistematização e profissionalização implementada primeiramente pelo
Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN, e, a partir de
sua criação em 2009, pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). A
conciliação entre a teoria produzida na academia e a experimentação
social do fenômeno museu (Scheiner, 1999), se daria por meio do
incentivo da criação e valorização de práticas em museus em pequenos
e médios municípios, em estados e localidades onde não havia mão de
obra qualificada ou uma formação específica. Os debates gerados
nesses encontros entre o saber técnico e os saberes-fazeres locais
levaram a um interesse mais apurado dos participantes, envolvendo
pessoas de diferentes formações, e provando a superação de um antigo
estágio de amadorismo (Almeida, 2006, p.182), que marcou, durante
décadas, o cenário de muitos museus. Como resultado, uma gama de
práticas experimentais e sociais reconfiguram as relações com os
patrimônios locais e inventam novos modos de se imaginar museus
(Chagas, 2003). Essas experiências, em sua maioria, estão hoje ligadas
à Rede de Museologia Social espalhada de forma descentralizada por
todo o território brasileiro.

217
Museologia e Património – Volume 1

Em países como o Brasil, ou mesmo na França, sobrevivem hoje


algumas práticas comunitárias realizadas por museus em pequenos
municípios ou nos subúrbios (nas favelas ou no banlieue), que se
configuram como experimentais na medida em que apresentam
discursos reivindicativos e alternativos sobre o patrimônio, e fazem da
ausência de recursos um meio de buscar alternativas museográficas na
experimentação. Esses museus atualmente fazem uso de termos e
métodos ligados à já antiga “Nova Museologia”, ganhando com
frequência o título de “ecomuseus” ou de “museus sociais”. Para
exemplificar tal tendência contemporânea inspirada nas correntes
experimentais, evocamos os casos do Écomusée de Fresnes, no banlieue
sul de Paris, e do Museu das Remoções, na Zona Oeste do Rio de
Janeiro, dos quais trataremos brevemente buscando esboçar um
possível modelo teórico-prático com base em traços comuns aos
museus experimentais do presente.

a) Écomusée de Fresnes (atualmente, Écomusée du Val de


Bièvre), França:
Criado em 1979, e diretamente inspirado pelos ideais da
associação MNES, o Écomusée de Fresnes foi concebido por Françoise
Wasserman como um centro de recursos voltado à história local,
dedicado à coleta de patrimônio material e oral, e organizando
exposições sobre a vida social dos grupos que se identificavam com o
projeto de museu “comunitário”. Em 2006, a sua administração é
transferida para a Comunidade d’Agglomération de Val de Bièvre, e o
museu se torna o Écomusée du Val de Bièvre, estendendo as suas ações
para um território amplificado que abarca as comunas de Arcueil,
Cachan, Fresnes, Gentilly, Le Kremlin-Bicêtre, L’Haÿ-les-Roses e
Villejuif – todas localidades periféricas à metrópole parisiense, e
habitadas por populações de baixa renda e de imigrantes. O ecomuseu,
ainda no presente, desenvolve suas exposições voltadas para tópicos
que dizem respeito às populações locais e sobre os seus modos de vida
no território (como por exemplo, o processo de urbanização, o
trabalho, a TV, a imigração, a condição feminina, os objetos individuais
e a memória neles investida...). A condição do seu sucesso é a
participação da população local em todas as fases da musealização
(que é automusealização), produzindo uma imagem coletiva que

218
Museologia e Património – Volume 1

almeja a transformação social e permite a percepção crítica da


realidade no seio dos grupos.
Neste sentido, o museu estabeleceu uma rotina de exposições
temporárias e atividades culturais realizadas com os próprios
habitantes, e tendo apoio em pesquisas científicas e experimentais
sobre o espaço social do banlieue. No ano 2000, ainda como Écomusée
de Fresnes, os atores locais desenvolveram a exposição intitulada
Résonances ou Le musée au risque de l’art (“Ressonâncias ou O museu
sob a ameaça da arte”, em português), relacionando arte local, criação e
território. A exposição, baseada na experiência artística das crianças
em fase escolar, teve como ponto de partida as atividades
desenvolvidas no “atelier do imaginário”, um trabalho educativo do
museu, associado às escolas locais, que preconizava a experiência
artística como uma experiência de aprendizado e transformação social.
O museu servia para introduzir as crianças – do maternal ao ensino
fundamental – no papel de atores culturais, criadores do seu próprio
patrimônio e atores da musealização. O objetivo das atividades
propostas era o de propiciar às crianças “inventar dispositivos
pluridisciplinares” que permitissem, ao mesmo tempo, “interrogar o
lugar do museu e problematizar/experimentar certos dados plásticos
inerentes ao trabalho dos artistas” (Coutas, 2000, p.28).
Num outro momento da história desse ecomuseu, em 2016, a
exposição colaborativa entre pesquisadores e habitantes, intitulada
Vidas daqui e de lá, teve o apoio do Atelier Sociolinguístico (ASL) de
AVARA, um centro sociocultural de Vallée aux Renards, e apresentou o
trabalho resultante de um curso de francês para imigrantes locais.
Esses imigrantes escreveram, na língua estrangeira, a história de
objetos dos seus países de origem e objetos que representavam a vida
recente na França. A partir dos relatos escritos em primeira pessoa, e
dos objetos que materializam seus afetos, suas perdas e as novas
conquistas longe de casa, a trajetória desses dezesseis indivíduos se fez
uma lição para os demais imigrantes que ali vivem e para o público
externo àquelas comunidades periféricas. A valorização das
experiências individuais dando novo sentido social à realidade dos
imigrantes produz uma performance museal baseada em trocas
culturais e nos laços rompidos com o passado. O ecomuseu, baseando-
se na ideia de museu-laboratório proposta por Rivière (1971-1980),
mas também no exemplo dos museus de vizinhança desenvolvidos nos
219
Museologia e Património – Volume 1

Estados Unidos desde os anos 1960, serve de instrumento discursivo


para a reflexão crítica e a restituição de laços que compõem as
diferentes identidades dos habitantes/criadores.

b) Museu das Remoções, Brasil:


Em um contexto distinto, mas também evocando ideias que se
referem ao pensamento da Nova Museologia ou Museologia Social,
como é mais comumente referida no Brasil, o Museu das Remoções foi
criado em 2016, na Vila Autódromo, onde vive, desde os anos 1970,
uma comunidade de baixa renda localizada na Zona Oeste do Rio de
Janeiro, às margens da Lagoa de Jacarepaguá, onde originalmente havia
uma colônia de pescadores. Num contexto de vulnerabilidade social
provocada pelo processo de urbanização que visava construir o Parque
Olímpico para as Olimpíadas de 2016, a criação de um “museu social”
representou, para a Associação de Moradores da Vila Autódromo, um
instrumento de reivindicações sociais e resistência política diante da
ameaça das remoções. Entre os anos de 2009 e 2015, mais de 700
famílias foram desabrigadas para que acontecesse a construção do
Parque Olímpico na região que abarca o território onde está localizada
a Vila. Entretanto, ao longo de um processo intenso de negociações e
luta pelo direito à permanência e barganha por parte dos agentes do
Estado para a desocupação do espaço habitado, um grupo de vinte
famílias, decide resistir, e dessa resistência nasce o Museu das
Remoções. Dos escombros da antiga Vila como a conheciam, esses
moradores ergueram a sua resistência, que vem até o presente se
configurando por meio da mobilização política aliada à musealização
do território e da memória que nele sobrevive.
Durante vinte anos, os membros dessa comunidade lutaram
contra o processo de remoção, que tinha como argumento oficial o
dano urbano, estético e ambiental ao território habitado. Ignorava-se,
entretanto, o histórico daquela comunidade em seu engajamento pela
preservação do meio ambiente local, em um território arborizado, com
projetos de saneamento baseado no trabalho de conscientização dos
próprios moradores e em parceria com cientistas de diversas áreas. A
partir de 2009, quando o Rio de Janeiro foi escolhido como a sede das
Olimpíadas de 2016, as ameaças de remoções no local se
intensificaram (FAULHABER & AZEVEDO, 2015) e estas começaram a
ser uma realidade para a comunidade que testemunhou a destruição
220
Museologia e Património – Volume 1

progressiva de seu patrimônio privado mais imediato. Mas da luta se


fez museu e dos destroços do passado se fez arte e um novo
patrimônio. A performance coletiva de uma Vila Autódromo
reconstituída das cicatrizes de uma história recente dolorosa, um
museu experimental e emocional, se faz uma presença a partir das
ausências.
Diante do sistemático apagamento social e simbólico de certas
populações às margens do projeto de cidade almejado pelos
governantes locais no Rio de Janeiro, a concepção do museu como
dispositivo de luta e ferramenta política de contestação e denúncia
serve para construir uma outra narrativa sobre o território, baseada
nas vidas individuais, promovendo o reconhecimento social do grupo
em sua luta pelo direito à moradia e pela representação de um
patrimônio subalterno nos regimes patrimoniais legitimados. Essa
mesma luta e os moradores da Vila Autódromo configuram “objetos”
de uma musealização em curso, passagem criadora à Vila que desejam
ter após as remoções.
Nos dois exemplos, brevemente explorados neste ensaio, a
musealização se vê pautada na re-encenação do valor humano no seio
dos grupos que se contrapõe à supressão das identidades subalternas
pelos jogos políticos dominantes. A musealização nesses territórios
marginalizados, na França ou no Brasil, cria novos espaços sociais de
negociações, acordos e conflitos sobre a cultura e o patrimônio, e
produz para os grupos envolvidos a patrimonialização da vida
ameaçada nas margens das políticas estatais.
Ao engendrar novos regimes de atribuição de valor, ou de
valoração do patrimônio, o ecomuseu, o museu social, e as diversas
formas de museus experimentais deflagram a arbitrariedade das
escolhas sobre o patrimônio no interior da gramática museal. O que se
pode observar nos exemplos aqui evocados é uma mudança nos
regimes de valor dominantes, isto é, uma transformação axiológica que
realiza a passagem de um “regime de singularidade”, que valorizava
aquilo que é raro, excepcional e fora do comum (como nos museus de
arte ou de história tradicionais), a um “regime de comunidade”
(Heinich, 2012, p.31), que valorizaria o que é amplamente
compartilhado no grupo (como os hábitos cotidianos da comunidade,
seus meios de subsistência, sua relação com o trabalho e as formas
locais de se produzir cultura).
221
Museologia e Património – Volume 1

Atualmente, propomos que a Museologia Experimental seja


entendida como um método empírico, interdisciplinar e dinâmico, para
o desenvolvimento e o estudo das experiências museais não instituídas
socialmente e definidas a partir de lógicas “subalternas” em relação aos
regimes museais estatais. Ela decorre de uma teoria reflexiva, ou
metamuseologia, voltada para a investigação de todos os atores
envolvidos no processo social da musealização, e logo comprometida
com um posicionamento crítico sobre a produção de valores museais,
ou musealidade. Ela entende a mudança e a passagem criadora como
objetos centrais da prática museal, e está, logo, menos comprometida
com os produtos e sua preservação estática inalcançável.
Com este propósito, desenvolvemos um modelo54 de aplicação
pragmático para a Museologia Experimental, entendendo que a
experimentação social nos museus pressupõe:

(1) Experiência individual e coletiva no espaço socialmente


construído;
(2) Avaliação permanente e crítica das práticas museais;
(3) Emancipação dos grupos locais;
(4) Mudança social visando novas práticas.

Sendo assim, podemos esboçar o seguinte esquema:

54 Modelo elaborado a partir dos projetos de pesquisa desenvolvidos


atualmente pelo Grupo de Pesquisa Museologia Experimental e Imagem – MEI,
da UNIRIO, pensado como protótipo metodológico a partir das experiências
práticas analisadas.
222
Museologia e Património – Volume 1

Fig. 1: Esquema retroalimentar da Museologia Experimental

Baseada, ao mesmo tempo, na prática museal decolonial que se


desenvolveu a partir das apropriações do museu nas ex-colônias e na
ideia teórica do “museu-laboratório” de Rivière (1992, p.442), a
Museologia Experimental tem como condição o campo, no sentido
antropológico, considerando que uma parte fundamental da pesquisa
museológica acontece fora do museu. Neste sentido, Rivière
desenvolve uma crítica aos museus de arte que tradicionalmente não
se pautam em pesquisa para realizar julgamentos de valor (Rivière,
1989). Não é possível, do ponto de vista de uma prática e teoria
experimentais, imaginar a construção de significado sem uma base em
pesquisa de campo, que passa pela investigação dos grupos em sua
produção coletiva de valores e sentidos. Logo, confrontar uma tal
perspectiva implica em constatar que não há modelo pronto de
museologia ou de museu. Todos os modelos criados são válidos, pois
não há hierarquias em termos de experiências.
A experiência criadora desierarquizada pressupõe que uma
parede cheia de informações pode parecer um “erro” museográfico
para alguns, mas, em certos casos, configura o resultado do trabalho
coletivo da musealização de referenciais do grupo, e não cabe ao
223
Museologia e Património – Volume 1

museólogo, em nome de uma linguagem que se pretende universal,


censurar aquilo que para o olhar condicionado do curador pode
parecer incomunicável. A “verdade”, para os novos museus
experimentais, está na experiência mesma dos atores envolvidos nas
micro-histórias que garantem a ancoragem do patrimônio na vida social
local, e ela raramente pode ser prevista pelos profissionais ou experts que
dão suporte à mediação patrimonial.

Fig. 2: Exposição Il va y avoir du Sport. Écomusée du Val de


Bièvre, Fresnes, 2016. Foto do acervo pessoal do autor.

A experiência museal, que é experiência da passagem ao “fato


museal” (Rússio, 1981) ou, como vislumbrou Scheiner (1999),
experiência do fenômeno Museu, considera a singularidade do
visitante como inserida na sociabilidade do grupo (região, nação,
comunidade) pela ação cultural do dispositivo museu. O seu principal
instrumento de medida é a pessoa, que para Paul Ricœur (1990, p.39),
224
Museologia e Património – Volume 1

é aquilo que nos distingue por “referência identificante”, o que faz a


mediação entre subjetividade e objetividade nos sujeitos. Entendendo
tal mediação entre sujeito e objeto, que está na base de todos os
museus, como uma criação artificial e construída por uma dada
apropriação do patrimônio, somos, portanto, levados a desconstruir as
verdades sustentadas no passado por essas instituições para pensa-las
sob o viés da encenação da verdade para os seus públicos ou atores. A
performance museal (Brulon Soares, 2011) se faz aqui um instrumento
do método experimental, de modo que o improviso e o erro passam a
ser entendidos como matéria dos museus.
A Museologia Experimental, assim, nos leva a conceber o museu
como um dispositivo social que parte das experiências individuais para
formular enunciados coletivos, moldando as subjetividades e criando
novas experiências do real. Seu objeto principal de investigação é a
experiência criadora e é, então, nesse processo ritualizado da passagem
que o indivíduo se torna o protagonista da experimentação, ao se
deixar permear, ao mesmo tempo, pelos valores do grupo no estado
liminar criado pela performance museal, que é performance coletiva. É
a pessoa, enquanto ator social da performance, e suas representações
que têm importância para o museu experimental; são os atores em
suas atuações compartilhadas, apropriando-se do seu patrimônio,
dando nova vida às memórias do grupo, tornando-se aptos a subverter
a ordem do mundo social, produzindo novas realidades autônomas e
experiências emancipatórias.

7, Compreender a passagem, estudar a experiência

Tomando como metáfora a arte contemporânea, podemos


explorar a experiência que propõe o artista e poeta Hélio Oiticica com o
seu Parangolé. Obra inacabada que funciona como dispositivo de
movimento, portado ou vestido pelo espectador fazendo parte do seu
corpo, o Parangolé se faz obra de arte na medida em que o espectador
desempenha o seu papel de experimentador. É a experimentação da
obra que faz a obra, e não existe arte sem participação. O “espectador”
ator é parte integral da manifestação da obra. É ele ou ela que realizam
o acontecimento artístico, atribuindo sentido ao dispositivo concebido
pelo artista/criador. O ato expressivo faz a obra na medida em que o
ator/autor está em movimento; ele corre, ele dança, a obra acontece.
225
Museologia e Património – Volume 1

Ela não se encontra de fato estagnada no tempo e no espaço (Oiticica,


1986, p.70), porque a obra é, ela mesma, experiência.
A ruptura que realiza o artista é uma ruptura com a relação
tradicional entre sujeito e objeto, inerente a todos os museus. Oiticica
pensa a obra como experiência e o espectador se torna “participante”.
Essa violação do sujeito como indivíduo em detrimento da participação
é responsável por alterar o estatuto do sujeito na estrutura da obra.
Nessa nova relação de experimentação não é mais a contemplação que
objetiva a obra assim como o seu espectador. Trata-se de se instaurar
uma nova dimensão subjetiva-experimental. O Parangolé, segundo
Oiticica (1986, p.71), desempenha um papel importante: ele é abrigo
do “participante”; ele é a ação mesma do “participante”, e então o
participante-obra se torna obra-ação. A obra e o ator que gera o
movimento são experiência constante, em vias de se criar, um
inseparavelmente do outro, como algo permanentemente novo,
inacabado.
Mais do que romper com a estética europeia, Oiticica transpõe
a ruptura ocidental entre sujeito e objeto para criar algo diferente, não
classificado ou passível de ser definido. Segundo ele, “a antiga posição
diante da obra de arte não é mais produtiva” (Oiticica, 1986, p.74). Esta
que é uma importante revelação para o mundo da arte, muda também
as relações que constituem a práxis museal.
Diante da constante passagem à experiência museal que é
experiência criativa, sem que se espere de fato pela criação acabada, o
desafio analítico que se coloca para aqueles que desejam entender a
passagem é como devemos submetê-la a instrumentos de análise que
nos permitam estuda-la sem, entretanto, engendrar a sua cristalização.
Devemos voltar o nosso olhar à musealização como passagem, ou como
cadeia de experiências cambiantes entre experiências sociais e
experiências individuais que se alternam produzindo a performance
museal.
Na perspectiva experimental, a musealização é a própria
passagem da coisa desprovida de performance à objeto de museu, e
logo produto performativo da cultura. Tal passagem se dá a partir de
um ato de mediação material e sensível entre a experiência da
produção e a experiência da recepção. Portanto, em vez de atuar sobre
o valor da obra, os profissionais de museus ou museólogos são aqueles
que se voltam para o entendimento pragmático dos processos sociais
226
Museologia e Património – Volume 1

que levam a obra a adquirir valor – o museu sendo apenas um dos


dispositivos que atuam nesses processos. Tomando por objeto, assim, o
ato mesmo da criação museológica, por meio da musealização, deixa-se
de olhar a obra para observar a progressão complexa da execução da
obra (sua vida, que é também a sua morte).
A musealização, então, torna-se o fio condutor da experiência
museal, ou museológica, composta por atos sucessivos de repetição que
ajustam a participação coletiva a uma ação comum de produção dos
valores e sentidos que irão moldar a própria experiência social. Tais
atos de execução da obra, como nas artes da performance que também
se dão de modo coletivo, se apresentam como atos cerimoniais, como
as festas, liturgias ou ritos, estudados por meio da etnografia. Como
num ritual, as distinções comuns entre o palco e as coxias, os atores e o
público, aqueles que desempenham o papel principal e os coadjuvantes
da encenação, se repetem na criação museal tanto quanto nos ritos
religiosos. A performance que leva à criação só pode ser entendida na
medida em que consideramos a descrição de todas as experiências em
jogo.
Nesta acepção da performance museal importa tanto a obra
quanto o seu esboço, o rascunho ou o ensaio. Todos os meios e
mediações da obra fazem parte da experiência criadora. O documento é
tão relevante quanto o objeto documentado. As cópias também têm
valor como cópia, assim como sua fotografia, sua descrição e sua
história, que por sua vez também têm valor litúrgico. Pois a ficção
desempenha papel fundamental no discurso museal. Suas diversas
representações ampliam e explodem a criação para níveis impensáveis
por meio da agência dos museus, que está para além de suas paredes.
O museu, apropriado como obra inacabada, rascunho do que
podemos vir a ser, reveste o social da potência criadora que permite
aflorar experiências inortodoxas. A experiência criadora é o seu motor
e é também a sua finalidade. Como a obra de arte construtivista, o
museu se constrói na experiência do ser que se permite, uma vez
emancipado, mudar a si e ao que toca os seus sentidos. A experiência
sensível não pode ser definida nem em seu princípio tampouco em sua
finitude; enquanto revestida do humano, ela se move sendo
movimento ela mesma, passagem para um outro estágio do museu
inalcançável.

227
Museologia e Património – Volume 1

Bibliografia

Almeida, Cícero Antônio F. de (2006). Museologias possíveis: “a


novidade do Brasil não é só litoral”. pp.178-187. Musas, N. 2, Instituto
Brasileiro de Museus – IBRAM.

Ancel, Pascale & Pessin, Alain (2004). Avant-Propos. In : _____. (dirs.).


Les non-publics. Les arts en réceptions. Tome I. Paris : L’Harmattan, pp.
7-8.

Antúnez, Cristina (2015). Al admirado y muy querido Mario Vázquez


en su Casa del Museo: lugar sagrado de las diosas de la memoria.
Gaceta de Museos, n. 60, pp.52-59.

Becker, Howard (1982). Art Worlds. Berkeley LA-Londres: University


of California Press.

Bellaigue, Mathilde & Menu, Michel (1997). Museologia e as formas da


memória. ICOFOM LAM, Museus, memória e patrimônio na América
Latina e no Caribe, Museo de los metales, Equador, pp.71-79.

Benjamin, Walter (1994). A obra de arte na era de sua


reprodutibilidade técnica. In: _____. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.

Bondaz, Julien; Isnart, Cyril & Leblon, Anaïs (2012). Au-delà du


consensus patrimonial. Résistances et usages contestataires du
patrimoine. Civilisations, vol. 61, n. 1, pp.9-21.

Bourdieu, Pierre & Darbel, Alain (2011) [1969]. L’amour de l’art. Les
musées d’art européens et leur public. Paris: Les Éditions de Minuit.

Bourdieu, Pierre 2009 [1982]. Ce que parler veut dire. L’économie des
échanges linguistiques. Paris : Fayard.

Brulon Soares, B. C. (2009). The museological experience: concepts for


a museum phenomenology. ICOFOM Study Series – ISS, Museology: back
to basics, n. 38, pp. 131-148.
228
Museologia e Património – Volume 1

Brulon Soares, B. C. (2011). Experiencing dialogue: behind the curtains


of museum performance. ICOFOM Study Series – ISS, The dialogic
museum and the visitor experience, n. 40, pp. 33-41.

Chagas, Mário (2003). A imaginação museal: museu, memória e poder


em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, UERJ (tese de
doutorado).

Coutas, Évelyne (2000). Autour du processus créateur. In: Delarge,


Alexandre & Coutas, Évelyne. (dirs.). Résonances ou Le musée au risque
de l’art. Fresnes: Écomusée de Fresnes, pp.28-29.

Davallon, Jean (1995). Introduction. In : Musées et Recherche, actes du


colloque du MNATP (Paris 29 nov.-1er déc. 1993), Paris, Ministère de la
Culture et de la Francophonie, Ministère de l’Enseignement supérieur
et de la Recherche, OCIM, pp.245-256.

Desvallees, André. Présentation. In: Desvallees, André; De Barry, Marie


Odile & Wasserman, Françoise (coord.) (1992). Vagues: une antologie
de la Nouvelle Muséologie (vol. 1), Collection Museologia, Savigny-le-
Temple : Éditions W-M.N.E.S.

Fabre, Daniel (2014). Introduction : comprendre la création, entendre


la fiction. Gradhiva 20, pp.4-21.

Faulhaber, Lucas & Azevedo, Lena (2015). SMH 2016: remoções no Rio
de Janeiro olímpico. Rio de Janeiro: Mórula.

Freire, Paulo (1981). Ação cultural para a liberdade e outros escritos.


São Paulo: Paz e Terra.

Heinich, Nathalie (2012). Les émotions patrimoniales : de l’affect à


l’axiologie. Social Anthropology / Anthropologie Sociale, n.20, vol.1,
pp.19-33.

Heinich, Nathalie (2008). A sociologia da arte. Bauru, SP: EDUSC.

229
Museologia e Património – Volume 1

Herreman, Yani (2015). De personajes y otros mitos del ICOM: el guru


Mario. Gaceta de Museos, n. 60, pp.28-39.

Mairesse, François (2002). Le musée temple spetaculaire. Paris: Presses


Universitaires de Lyon.

Mairesse, François & Deloche, Bernard (2011). Objet [de musée] ou


muséalie. In: Desvallees, André & Mairesse, François (dirs.).
Dictionnaire encyclopédique de muséologie. Paris : Armand Colin, pp.
385-419.

MNES – Muséologie Nouvelle et Expérimentation sociale (1983). In:


Bulletin de l'Association française des anthropologues, n°12-13,
Septembre 1983. Ethnologie de la France, pp. 78-79.

Moreno, Luis Gerardo Morales (2012). Museología subalterna (sobre


las ruinas de Moctezuma II). Revista de Indias, vol. LXXII, núm. 254,
pp.213-238.

Oiticica, Hélio (1986). Anotações sobre o Parangolé. In: _____. Aspiro ao


grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco.

Passeron, Jean-Claude & Pedler, Emmanuel (1991). Le temps donné aux


tableaux. Documents CERCOM/IMEREC.

Ricœur, Paul (1990). Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du


Seuil.

Riviere, Georges Henri (1992). L’écomusée, un modèle évolutif (1971-


1980). In: DESVALLEES, André ; DE BARRY, Marie Odile E
WASSERMAN, Françoise (coords.). Vagues: une antologie de la Nouvelle
Muséologie (vol. 1). Collection Museologia. Savigny-le-Temple :
Éditions W-M.N.E.S.

Riviere, Georges (1989) Henri. La muséologie. Textes et témoignages.


Paris : Dunod.

230
Museologia e Património – Volume 1

Ruiz, Maya (2008). Lorena Pérez. La museología participativa: ¿tercera


vertiente de la museología mexicana? Cuicuilco, n. 44, septiembre-
diciembre, pp.87-110.

Rússio, Waldisa (1981). Interdisciplinarity in museology. Museological


Working Papers - MuWoP 2, pp.56–57.

Scheiner, Tereza C (1999). As bases ontológicas do Museu e da


Museologia. In Simpósio museologia, filosofia e identidade na América
Latina e Caribe. Coro, Subcomitê Regional para a América Latina e
Caribe/ICOFOM LAM, pp.133-143.

Segala, Lygia (1983). Varal de Lembranças – Histórias da Rocinha. 1.


ed. Rio de Janeiro: Editora Tempo e Presença/SEC/MEC/FNDE, v. 1.

Stránský, Zbyněk Z (1965). Predmet muzeologie. pp. 30-33. In Sborník


materiálu prvého muzeologického sympozia. Brno: Museu da Morávia.

Tornatore, Jean-Louis (2007). Qu’est-ce qu’un ethnologue politisé ?


Expertise et engagement en socio-anthropologie de l’activité
patrimoniale. ethnographiques.org, n. 12. Disponível em:
http://www.ethnographiques.org/2007/Tornatore. Consulta em:
8.05.2015.

Tornatore, Jean-Louis & Paul, Sébastien (2003). Publics ou populations


? La démocratie culturelle en question, de l'utopie écomuséale aux
«espaces intermédiaires». In: Donnat, Olivier & Tolila, Paul (dir.). Le(s)
publie(s) de la culture. Politiques publiques et équipements culturels.
Paris, Presses de Sciences Po, vol. Il (CD-ROM), p. 299-308.

Van Mensch, Peter (1992). Towards a methodology of museology (PhD


thesis). University of Zagreb.

Varine, Hugues de (2005). Decolonising Museology. ICOM News, n. 3,


p.3.

231
Museologia e Património – Volume 1

CUIABÁ 300 ANOS:


A CIDADE, O ESPAÇO PÚBLICO E O PATRIMÔNIO CULTURAL

Giordanna Laura da Silva Santos


Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-3401-5126

Ana Vittori Frigeri


Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-0121-7300

1. Contextualização

Com 300 anos de fundação completados em 08 de abril de


2019, Cuiabá é a capital do estado de Mato Grosso, na região Centro
Oeste do Brasil e faz parte da Região Metropolitana do Vale do Rio
Cuiabá, ficando à margem esquerda do rio Cuiabá. É um dos principais
polos de desenvolvimento da região Centro Oeste e tem o maior
Produto Interno Bruto (PIB) do Estado, sendo de R$ 36.556,40 bilhões
em 2015 (Brasil, 2018). Centro Geodésico da América do Sul, a capital
mato-grossense foi e continua sendo chamada, principalmente a partir
da Copa de 2014 (Cuiabá, 2014), pelo poder público municipal e
Estadual como “Capital do Pantanal e do Agronegócio”.
Infere-se que, com base nesses “títulos”, unilateralmente
criados pelo poder público, a biodiversidade e a economia são fatores
destacados, apesar da cidade ter também significativos e diversos
aspectos que compõem seu patrimônio cultural, sejam eles bens
materiais ou imateriais, espaços culturais institucionalizados - como
alguns museus - ou não.
Intensificamente a partir de 2017, iniciaram-se ações em nome
dos 300 anos de Cuiabá, pautadas nos supostos discursos de
valorização da cultura regional e de um “planejamento urbano
estratégico”. Nesse sentido, é preciso questionar: quais são, de fato, os
valores culturais que de alguma forma se manifestam na Cuiabá
contemporânea? Qual a imagem (ou imagens) dessa cidade? Olhando
232
Museologia e Património – Volume 1

para a cidade que celebra sua história tricentenária com a reprodução


de pastiches e uma série de descasos com o seu patrimônio histórico,
uma cidade que briga constantemente com o seu passado colonial
versus um projeto distópico de metrópole, percebe-se uma política
desconexa e insensível à(s) cultura(s) urbana(s) cuiabana(s). Nesse
contexto, é importante destacar o atual descaso com os museus
localizados na cidade, visto que a maioria dos que estão situados em
Cuiabá, sejam municipais ou estaduais, estão atualmente fechados.
De acordo com o Perfil dos Estados e dos Municípios Brasileiros
2014 – Suplemento Cultura, Cuiabá possui os seguintes equipamentos
culturais municipais: três (03) museus, um (01) teatro ou sala de
espetáculos, um (01) centro cultural, dois (02) centros de artesanato e
não possui nenhuma galeria de artes pública (Brasil, 2014).
Com relação aos museus administrados pelo poder público
municipal, são eles: Museu do Morro da Caixa D’Água Velha, que estava
fechado e foi reaberto em abril de 2019 (G1 MT, 2019), Museu da
Imagem e do Som (MISC) e Museu do Rio. Como essa relação é de 2014,
destaca-se que também há outros museus e uma galeria de arte que
são vinculados ao Estado, bem como também existem galerias de arte
privadas e dois museus vinculados à Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT).
No que diz respeito à manutenção e ao funcionamento desses
espaços museais, é possível notar o descaso que, recorrentemente,
esses locais enfrentam. Por exemplo, em maio de 2018, por exemplo,
sete museus e uma biblioteca estavam sem atividades, por motivos
diversos, sendo, principalmente, por conta de questões burocráticas e
financeiras com o processo de contratação da Organização da
Sociedade Civil, para administrar esses espaços culturais. Naquele
período, estavam fechados: Museu de Imagem e Som (municipal),
Museu do Rio (municipal), Museu de Arte Sacra (estadual), Casa dos
Governadores (estadual), Museu Histórico de Mato Grosso (estadual),
Galeria Lava Pés (estadual) e o Museu de Arte de Mato Grosso
(estadual) (Fujimori, 2018a). Temos também o Museu de Pedras Ramis
Bucair, que está fechado desde 2011 (Fujimori, 2018b). E também a
biblioteca da Casa Barão de Melgaço (estadual).
No segundo semestre de 2018, foi reaberto o Museu da Imagem
e Som. Em 2019, quem voltou a funcionar foi o Museu de Arte Sacra,
pois o contrato de gestão foi assinado após pouco mais de dois anos de
233
Museologia e Património – Volume 1

espera. Para se ter ainda dimensão da importância dada aos museus


em Cuiabá e em Mato Grosso, na edição da 17ª Semana de Museus,
realizada em 2019, apenas três museus integraram a programação, os
estaduais Museu de Arte Sacra e Museu de História Natural – Casa de
Dom Aquino e o Museu de Arte e Cultura Popular (MACP), vinculado a
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Além disso, observamos que os planos estratégicos de Cuiabá,
elaborados com duração de até 10 anos, em três gestões municipais
diferentes, também têm poucas metas relacionadas ao patrimônio
cultural e, sobretudo, aos museus Dessa forma, temos o Plano de 2012-
2019, elaborado na gestão do ex-prefeito Francisco Bello Galindo Filho,
conhecido como Chico Galindo, em 2012 (figura 1); o de 2013-2023,
elaborado na gestão Mauro Mendes (figura 1) e 2017-2023, feito na
gestão do atual prefeito Emanuel Pinheiro (figura 2), sendo que nos
três há poucas ações voltadas ao patrimônio e aos museus e, mais
grave, como apontamos acima, até mesmo o que se propôs não vem se
efetivando no desenvolvimento de políticas públicas municipais.
Nesses planos estratégicos, é notável a importância que alguns
eventos têm, a exemplo da Copa do Mundo de 2014 e das
comemorações de 300 anos de Cuiabá, mas essa relevância não tem o
mesmo peso para a cultura na cidade.

No ambiente externo, a Copa 2014 é a variável propulsora


principal, pois o evento ensejará na aplicação de recursos
federais e estaduais nas obras de mobilidade urbana, além
da exposição da cidade na mídia nacional e internacional,
trazendo consequentemente o fortalecimento da economia
local a partir da ampliação do turismo e ecoturismo e a
geração de emprego e renda. [...]. (Cuiabá, 2012, p.22).

Apesar de ter acontecido a aplicação de recursos federais e


estaduais, boa parte das obras de mobilidade urbana ou foram mal
feitas, e consequentemente tiveram que ser refeitas, ou não foram
entregues até a Copa, tendo, inclusive, algumas que ainda estão em
andamento ou estão paradas, mesmo cinco anos após a realização do
megaevento esportivo.

234
Museologia e Património – Volume 1

Figura 5 Planos estratégicos de Cuiabá de 2012, gestão Chico


Galindo (esquerda); de 2013-2023, gestão Mauro Mendes.

235
Museologia e Património – Volume 1

Fonte 1 (Cuiabá, 2012; Cuiabá, 2013).

236
Museologia e Património – Volume 1

Figura 6 Plano estratégico de Cuiabá 2017-2023, gestão do atual


prefeito Emanuel Pinheiro

Fonte 2 (Cuiabá, 2017).

Vale destacar o fato de que, em função da Copa do Mundo,


foram flexibilizadas algumas condições de licitação - principalmente a
exigência de projeto executivo - e por isso muitas obras foram
malfeitas e muitas empresas abandonaram as obras. Um exemplo disso
são as obras do veículo leve sobre trilhos (VLT) e as do Centro Oficial
de Treinamento (COT) da UFMT.
Dessa maneira, é notável o impacto, em sua maioria negativo,
que a Copa de 2014 teve na cidade de Cuiabá, sem deixarmos de
apontar os reflexos na cultura local, que deveriam ser positivos, mas só
ocorreram ações pontuais durante o megaevento esportivo e,
posteriormente para o Cuiabá 300 Anos. O governo local, na gestão do
atual prefeito Emanuel Pinheiro, tentou “moldar” a cidade
(unilateralmente) para ter ares de modernidade, tomando referências
externas de culturas de outros lugares nos projetos propostos,
sobretudo, tomando inspiração em megalópoles como Nova Iorque ou
Seattle, a exemplo do projeto de “Time Square Cuiabana” e Restaurante
237
Museologia e Património – Volume 1

Giratório no Morro da Luz, uma área verde que consiste no primeiro


parque urbano de Cuiabá. Por meio desse restaurante giratório – a
exemplo da torre que há em Seattle – tinha-se também o projeto de
circuito de igrejas, que ligaria a Mesquita de Cuiabá, localizada na
região atrás do Morro da Luz, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito, também próxima à área.
Passados sete anos da elaboração do já citado Planejamento
Estratégico e cinco da realização do megaevento esportivo, o cenário
atual da cidade é muito distinto do que se planejava. De igual forma,
passados alguns meses após o tricentenário da capital mato-grossense,
cremos que situação parecida pode ocorrer com relação aos inúmeros
projetos, com referências externas como os citados acima, propostos
pela gestão de Pinheiro. Ademais, o próprio espaço urbano – e,
consequentemente, as formas de viver e ocupar a cidade – foi
totalmente transformado, visto as obras ainda inacabadas ou
desproporcionais ao porte da capital mato-grossense. Em tempos em
que os vestígios da nossa memória e cultura cuiabanas estão reféns
dessas sucessivas políticas “modernizadoras”, em que os discursos
estão desconexos dos valores culturais contemporâneos, é preciso nos
vestirmos das lentes do presente para entender a cultura
contemporânea materializada no espaço urbano. É preciso também
reconhecer e evidenciar o patrimônio cultural cuiabano que ainda
resiste. (Frigeri, 2018).
Nesse sentido, o conceito de patrimônio que consideramos para
estas análises

busca se aproximar de toda e qualquer manifestação que,


aqui é lida como patrimônio cultural (material) de Cuiabá,
independente de ser registrado formalmente como tal. [...]
Não é uma questão de patrimônio vinculada apenas às
expressões formais ou "legítimas", mas incluir uma leitura
de outras formas de expressão culturais ainda não
apontadas oficialmente. (Frigeri, 2018, p.7-8).

2. Processos de identificação na Cuiabá contemporânea

A imagem da Cuiabá 300 revela, principalmente pelos anúncios


publicitários e ações oficiais, constitui-se a partir de um conjunto de
238
Museologia e Património – Volume 1

imagens e símbolos muito bem delimitados e que se associa quase que


exclusivamente ao centro antigo de Cuiabá. Constrói-se, então, uma
cidade do espetáculo que, somada à cidade-mercadoria intensifica as
tensões entre passado e futuro.
No entanto, o que isso nos fala sobre o sentido de lugar, de
pertencimento? É presente essa questão de “origem” no momento de
“caracterizar” um cuiabano, se é um cuiabano tradicional - e talvez
associado à imagem da Cuiabá do passado - de “chapa e cruz” ou talvez
um cuiabano que vem de fora e aparece num determinado momento
histórico - o “pau-rodado”. Mas será que essas imagens não fortalecem
ainda mais essa tensão? Talvez um não se identifique com os símbolos
de uma “Cuiabá tradicional” ou talvez não se identifique com os
símbolos de transformação/ modernização.
Tendo isso em vista, é possível reconhecer nos processos de
identificação (ou nos processos de não-identificação) a relação com o
sentido de lugar. E por que isso é importante? Porque talvez esse seja o
sentimento que sustenta o nosso papel enquanto agente no processo
de produção do espaço urbano. Dessa forma, este artigo busca nos
modos de ocupar o espaço público em Cuiabá pistas sobre o nosso
modo de viver na cidade e possibilidades de sobreviver na cidade
contemporânea, especialmente observando a relação das políticas
públicas para pensar o patrimônio local e os espaços culturais
institucionais - como museus - ou não institucionais.
Investigar os modos de ocupar o espaço público em Cuiabá,
aqui, faz-se a partir de três premissas: ocupação do espaço público é
manifestação cultural; ler a cidade é ler as dinâmicas do/no espaço
público e o conceito de agência e apropriação do conceito de cultura
são fundamentais para pensar a cidade.
A partir desse contexto e questionamentos iniciais, passamos a
fazer uma breve explanação sobre cultura em Cuiabá, bem como sobre
Cuiabá 300 anos, a fim de analisar as ações culturais propostas pela
Prefeitura Municipal de Cuiabá em comemoração ao tricentenário da
capital mato-grossense e com foco em analisar o espaço público
enquanto manifestação cultural, bem como ações de políticas públicas
voltadas para patrimônio cultural. Tais análises foram feitas a partir da
análise de documentos oficiais do governo local, bem como
identificando qual o papel destinado ao patrimônio e espaços culturais,

239
Museologia e Património – Volume 1

sejam eles museus ou outros espaços não institucionalizados, como


feiras, praças, entre outras manifestações da cultura urbana.
Desse modo, a metodologia utilizada foi por meio de pesquisa
documental e bibliográfica e também foram feitas pesquisas em fontes
secundárias, como: legislações e documentos infralegais, disponíveis
no portal da Transparência de Cuiabá55. Dentre as categorias analíticas
que nos auxiliam neste trabalho estão: espaço público, patrimônio,
processos de identificação e políticas públicas. Tais escolhas se devem
pelo fato de utilizarmos como base para nossa análise a mensagem do
Prefeito no Plano Estratégico, a qual traz elementos de identidade local
(ser cuiabano) e fala ainda sobre reformas e obras, relativas à cultura
local.
O interesse em pesquisar tal temática, usando a metodologia
referida acima, justifica-se por trazer uma análise de políticas públicas
locais, considerando que o fazer cultural está inserido em uma
conformação da cultura, que deveria incluir todos atores sociais e não
só aqueles que estão produzindo arte e cultura, nem somente os
gestores públicos. Nesse sentido, é centralidade neste artigo pensar os
diversos espaços públicos como potenciais locais para fruição cultural
e que são (ou deveriam ser) usados por todos os moradores da cidade.
Por conta disso, cabe questionarmos como esses espaços são pensados,
organizados, construídos e utilizados.

3. Políticas Públicas e processos de identificação na cidade


contemporânea

Primeiramente, destacamos que nossa concepção de políticas


públicas tem por base a conceituação de Amorim et. al (2018).

Políticas públicas são ações sob responsabilidade do


Estado, decorrentes de garantias constitucionais e que
ultrapassam ações de governos específicos. Sua oferta e
qualidade devem ser fiscalizadas e cobradas pelos
cidadãos e cidadãs. A mídia, sobretudo, em sociedades
democráticas, deve desempenhar papel decisivo nesse

55 http://www.portaltransparencia.gov.br/localidades/5103403-cuiaba.

240
Museologia e Património – Volume 1

acompanhamento, por isso suas ações devem ser


observadas com cuidado. (Amorim et. al., 2018, p. 1-2).

Salienta-se ainda que a participação social é um item que,


necessariamente, deveria estar presente para construção e avaliação
das políticas públicas. Afinal, falar em “pública” não teria sentido se for
apenas uma ação unilateral de governos, por meio de gestores públicos
e suas equipes.
É importante pontuar também que em “democracias estáveis, o
que o governo faz ou não faz é passível de ser formulado
cientificamente e, principalmente, analisado por pesquisadores”
(Santos, 2015, p.85). Tendo isso em vista e para analisar as ações
dessas políticas relacionadas aos espaços públicos e a Cuiabá 300 anos,
considera-se que

além de uma forma de gestão pública, o conceito [políticas


públicas] é também um processo de formulação de
políticas no qual os governos traduzem seus propósitos em
programas e ações, que produzem resultados ou as
mudanças desejadas. Nesse contexto, o diálogo com a
sociedade e com os diferentes grupos de pressão pode e
deve ocorrer na elaboração e no acompanhamento das
ações. (Santos, 2015, p.85).

Seguindo essa lógica, as políticas públicas se desdobram em


planos, programas, projetos, entre outras formas de ação para atingir
os objetivos e as metas propostas pelo governo. Ademais, após essas
ações serem colocadas em prática, devem ser acompanhadas, por meio
de monitoramentos, e, posteriormente, devem ser avaliadas. Assim, o
Cuiabá 300 Anos é um desdobramento de políticas municipais,
algumas resultantes de várias gestões anteriores, mas que na gestão de
Emanuel Pinheiro ganhou centralidade.
Desse modo, consideramos que – em sua maioria – o que
analisamos aqui, de fato, não se constitui como políticas públicas, pois
suas ações vinculam-se a gestões de governos específicos, com um viés
político-partidário, e a participação, por vezes, não é um fator
considerado; por fim, a maioria da mídia local não desempenha papel
decisivo no acompanhamento de políticas locais (Amorim et. al., 2018).
241
Museologia e Património – Volume 1

Mas é somente a partir da concepção e desenvolvimento de


políticas públicas (de fato e com efetividade) é que podemos rever as
questões acerca do direito à cidade, pois elas dão base para que se
possa anunciar as sobreposições e as tensões da cidade
contemporânea e apontam para um caminho de se estudar o que os
modos de ocupar o espaço público dizem sobre Cuiabá e sobre a cidade
contemporânea. E, partindo daí, poderemos desenhar caminhos de
como sobreviver na Cuiabá contemporânea.
Qual é a imagem da nossa cidade e o que representa em nossa
bagagem cultural? São os casarões antigos preservados, pintados,
imaculados? São as avenidas, viadutos e trincheiras que facilitam a
circulação de automóveis? O que diz o cotidiano na construção dessas
imagens? Na construção da nossa maneira de nos relacionarmos com o
espaço?
Cuiabá se encontra num ponto de questionamento, a
comemoração é um olhar para os 300 anos que passaram ou aos 300
por vir? Esse é um esforço para enxergar os processos na atual Cuiabá,
partindo do olhar sobre a cidade enquanto produto da cultura
contemporânea. De forma a percebermos que, mesmo em época de
intervenções questionáveis, muito ainda persiste em Cuiabá e cabe a
nós e - em parte - a esta análise aqui brevemente apresentada56,
evidenciar que as pistas das nossas culturas estão por toda parte. Pois
elas estão associadas às nossas experiências cotidianas no espaço
público, e é esse o nosso patrimônio.
O exercício de identificação é um importante passo para a
construção de leitura da cidade. E ler cidade talvez nos indique
maneiras de entender diferentes cotidianos e, principalmente,
(re)conhecer a cidade em nosso cotidiano. E está aí a ação importante:
ler a cidade. E, para além da nossa experiência cotidiana da cidade, a
nossa leitura também é resultante da maneira de como ela está sendo
representada. Dessa forma, como construímos as nossas leituras
quando ficamos reféns de uma representação da cidade

56 Este trabalho apresenta apontamentos iniciais da pesquisa de Mestrado


"Onde fica Cuiabá: poéticas e cartografias no território cuiabano", iniciada
neste ano, pela mestranda Ana Vittori Frigeri; bem como com dados
analisados de uma pesquisa sobre planejamentos estratégicos de Cuiabá e sua
relação com o tricentenário da capital mato-grossense (Santos, 2018).

242
Museologia e Património – Volume 1

contemporânea caótica, da Cuiabá sem planejamento, da Cuiabá de 300


anos, entre outros discursos que tomam contam e simulam as nossas
experiências (e, portanto, cotidianos) na cidade?
Além disso, a questão de representação da cidade feita pelo
poder público local, por meio da cultura, em geral, baseia-se em
divulgar maciçamente apenas alguns tipos de expressão cultural, por
exemplo as “culturas populares” – siriri e cururu – como é possível ver
na imagem 3. (Santos, 2018). Ademais, podemos observar outras
contradições quando a pauta é cultura local, sendo que tal fato não se
restringe unicamente a uma gestão de governo local, pois se nota esse
fato, por exemplo, entre políticas desenvolvidas entre 2014 e 2017.

Figura 7 Capa do subitem Identidade Organizacional, que compõe


o Plano Estratégico 2017-2023, que reforça a imagem da dança
siriri como cultura cuiabana

Fonte 3 (Cuiabá, 2017).

Ainda falando sobre as contradições e cultura local, questiona-


se o lugar ocupado pela cultura nas "políticas públicas". Cuiabá é um
243
Museologia e Património – Volume 1

dos municípios brasileiros que não fez adesão ao Sistema Nacional de


Cultura, bem como, tomando por base a estrutura organizacional, não
tem uma secretaria específica para a pasta, sendo essa dividida com
Esporte e Turismo. Por consequência, o orçamento para a cultura
também, assim como programas e projetos, é dividido com essas áreas
(Santos, 2018). Por outro lado, pensando no tricentenário da Capital,
foi criada uma secretaria extraordinária, a Secretária Extraordinária
Cuiabá 300 anos, no qual a cultura foi um dos itens de ação desse
órgão. Porém, qual é a importância da cultura nessa data
comemorativa? Aliás, a cultura, como quaisquer outras áreas de
políticas sociais, deve ocupar um lugar apenas em eventos e/ou
celebrações esporádicas? (Santos, 2018).
Como apontamos anteriormente, a ideia de comemorar o
tricentenário da capital mato-grossense já constava em planejamentos
de gestões municipais anteriores a 2017. Pois “Cuiabá 300 Anos” foi
usada pela primeira vez no Plano Estratégico 2012-2019, da gestão do
ex-prefeito Francisco Bello Galindo Filho, sendo o documento
intitulado “Cuiabá 300 Anos: capital moderna, de oportunidades e
sustentável” (Cuiabá, 2012). Na gestão do ex-prefeito Mauro Mendes o
tricentenário também teve um papel em suas ações, porém, menor,
pois a Copa de 2014 foi a centralidade. Já na atual gestão do Executivo
Municipal, a do prefeito Emanuel Pinheiro, volta-se colocar como um
dos pilares de políticas municipais a celebração dos 300 anos. Nesse
sentido, aponta-se que Cuiabá ratificou a adesão ao Programa de
Desenvolvimento Institucional Integrado, criado em 2012 pelo TCE-
MT.

Este Plano Estratégico é fruto da adesão da Prefeitura de


Cuiabá ao Programa de Desenvolvimento Institucional
(PDI) do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso
(TCE-MT) e dimensiona objetivos e metas a serem
alcançados pela administração municipal, para que
Cuiabá, seja reconhecida como cidade acolhedora,
humanizada, moderna e de oportunidades. O Programa
de Desenvolvimento Institucional Integrado (PDI), do
TCE-MT, foi ratificado em nossa gestão e pretende elevar
o padrão da administração pública visando a melhoria na
qualidade dos serviços prestados para uma forma
244
Museologia e Património – Volume 1

humanizada, fundamentado no modelo gerencial e com


foco em resultados – para o cidadão e sociedade (Cuiabá,
2017, p.11).

Figura 8 Planejamento estratégico de Cuiabá 2017-2023,


elaborado na gestão do atual prefeito Emanuel Pinheiro

245
Museologia e Património – Volume 1

Fonte 4 (Cuiabá, 2017)

Seguindo essa linha de pensamento, e segundo a Prefeitura


Municipal de Cuiabá, um dos eixos de visão de futuro da gestão
Pinheiro é “Fortalecer o turismo e cultura cuiabana”. Apesar disso, bem
como em vários outros pontos do Planejamento Estratégico, enfatiza-
se o turismo e a cultura cuiabana e se reforçam elementos de cultura
local como cenário e/ou pano de fundo desses documentos. A cultura
não é apontada como “oportunidade” nem como “força” (Santos, 2018).
Muito menos se destacam ações para pensar: patrimônio, museus,
direito à cidade, participação social para se construir essas políticas em
comemoração aos 300 anos. Questiona-se: quem melhor do que os
próprios cidadãos para pensar e propor, junto ao poder público e
outros atores sociais, o que significa o tricentenário da Capital?
Em alguns momentos, os cuiabanos e os que moram na capital
mato-grossense deparam-se com propostas para os espaços públicos e
a cultura com elementos, ações e políticas, em geral, alheias a própria
realidade e sentimento de pertencimento local. Exemplo disso é a
catedral de Cuiabá, a Catedral Basílica Senhor Bom Jesus de Cuiabá,
246
Museologia e Património – Volume 1

que foi fundada em 1722 e sua história se mescla com o próprio


desenvolvimento de Cuiabá, mas que passou por diversas reformas,
sendo em 1968 implodida e reconstruída em 1973.

Esse movimento de renovação destrutiva atinge seu


paroxismo aos 14 de agosto de 1968, quando uma
multidão se reúne em torno da praça da matriz por ocasião
de um lastimável espetáculo: a demolição da catedral do
Senhor Bom Jesus de Cuiabá, construção tão antiga quanto
a cidade nascida sob sua proteção. À população coube
decidir, num plebiscito, o estilo da nova igreja. Clássico ou
moderno? A julgar pela obra do arquiteto Benedito Calixto,
inaugurada em 1973, deu empate. Terminava sem
vencedores a primeira fase de modernização da
arquitetura regional, com um templo de formas duras,
pesadas, pseudomodernas roubando o lugar do
monumento que balizava a identidade histórica da cidade -
sua pedra Muiraquitã. À dinamitação da catedral seguiu-se
o boom da arquitetura moderna pelo interior de Mato
Grosso. (Castor, 2010, p.11).

Nessas várias mudanças, às vezes sem levar em conta os


contextos locais (sejam eles sociais, culturais ou históricos), objetos
culturais que compuseram os vários momentos dessa história foram
perdidos, mas há ainda algumas peças e obras que integram o acervo
do Museu de Arte Sacra de Cuiabá. No entanto, esse Museu, como
informado anteriormente, passou quase dois anos fechado ao público,
tendo retomado suas atividades em 2019 e possui parte de seu acervo
– incluindo peças da antiga Catedral – que necessitam constantemente
de manutenção e/ou restauro, porém o dinheiro destinado ao local, por
vezes, só é suficiente para manutenção do espaço físico. Ademais, a
própria Catedral não havia tido nenhuma reforma por 40 anos, mas foi
pintada e passou por adequação do acesso às pessoas com deficiência,
obras iniciadas em 2017 e concluídas em 2019. (Soares, 2018).
Voltando as ações relativas ao tricentenário de Cuiabá, notamos
que elas ganharam uma dimensão muito maior do que um programa.
Além da criação da Secretaria Extraordinária para ações
comemorativas, que integrou diversas áreas como infraestrutura e
247
Museologia e Património – Volume 1

sociais, Cuiabá 300 anos virou um verdadeiro slogan da gestão


Emanuel Pinheiro. Podemos verificar isso no item “Oportunidades” do
Planejamento Estratégico, que lista “Cuiabá 300 anos” nessa categoria,
bem como vários outros pontos desse documento, nos quais o
tricentenário é repetidamente enfatizado. Mas, afinal, de qual Cuiabá e
visão acerca do espaço público que esse “programa-slogan” fala?
Algumas respostas para essa questão podem ser pensadas a partir do
Plano Estratégico (Cuiabá, 2017).

O maior desafio para a Cuiabá dos 300 anos é o de


proporcionar aos cidadãos cuiabanos um atendimento
digno e respeitoso em todas as áreas e serviços de
responsabilidade da Prefeitura, na direção de sua
humanização. Assim, propomos essa Agenda Estratégica
para resgatar a sua identidade histórico-cultural de
uma Cuiabá tricentenária, que eleve a autoestima das
pessoas, da sociedade, reavivando o orgulho de ser
cuiabano – de quem escolheu para viver na capital mais
calorosa do território nacional. Dessa forma, inúmeras
obras estruturantes, estratégicas e impactantes estão
previstas para a Capital, nesse momento tricentenário, a
despeito da crise atual, que assola nosso País, como a
reestruturação do Mercado do Porto e do Mercado
Municipal, implantação de novos parques florestais,
reestruturação do Horto Florestal, trincheira no
cruzamento entre a avenida Itália e a avenida das Torres,
viaduto na avenida Beira Rio, próximo à ponte Sérgio Mota,
e torre com restaurante giratório com vistas para toda a
Capital, no Morro da Luz. Por fim, a maior obra será o
Contorno Leste, com 18 quilômetros de extensão, ligando o
Coxipó à Rodovia Emanuel Pinheiro (MT-251) e
beneficiando diretamente a 21 bairros, entre outras.
(Cuiabá, 2017, p.07, grifos nossos)

Complementamos ainda que, ao final da mensagem do prefeito


Emanuel Pinheiro no Plano Estratégico, essas ações são apresentadas
como “presentes à querida Cuiabá que se aproxima de completar seus
300 anos”. Por esse e outros trechos que analisamos essas ações estão
248
Museologia e Património – Volume 1

mais vinculadas a objetivos pontuais de governo, para dizer o mínimo,


e não como políticas (de fato) públicas, bem como reforçarmos que a
opção por referir-se a serviços de reestruturação da infraestrutura
urbana como “presentes” é totalmente contrária a nossa visão de
políticas públicas e, até mesmo, de política de governo. Afinal, tais
ações deveriam integrar o programa político (e quiçá de políticas
públicas) de quaisquer gestões municipais, pois se referem ao
desenvolvimento da cidade, em suas várias perspectivas, tais como
infraestrutura predial, estrutura viária, ações de melhoria do espaço
público, de atenção à cultura e seus patrimônios, ao direito à cidade,
entre outras ações correlatas em prol do bem-estar e desenvolvimento
cultural local.
Salientamos também que, mesmo essa mensagem referindo-se
prioritariamente às obras de infraestrutura, foram anunciadas e
constam no Plano Estratégico – e outros documentos como LOA e
Plano Plurianual (PPA) – ações culturais comemorativas aos 300 anos
(Santos, 2018). É a partir disso que buscamos fazer a análise sobre
espaço público, patrimônio e cultura nas propostas e iniciativas dos
300 anos de Cuiabá.
A comemoração do tricentenário da capital mato-grossense
reforçou as imagens da cidade antiga, visto a necessidade de
reprodução de ícones da arquitetura colonial para representar o
evento. No entanto, o que isso representa e revela sobre as nossas
experiências na cidade? Acreditamos que “quando o real já não é o que
era, a nostalgia assume todo o seu sentido. Sobrevalorização dos mitos
de origem, e dos signos de realidade” (Baudrillard, 1981, p.14).
Assume-se assim um discurso unilateral da realidade, em que a
nostalgia predomina, congelando as representações da cidade numa
imagem parada no tempo. “Mas em que é que se torna quando se
divulga em ícones, quando se desmultiplica em simulacros?”
(Baudrillard, 1981).
Falando sobre cidade, é preciso entender que forças atuam
tanto sobre a produção do espaço quanto nas formas em que ela é
representada, abrindo espaço para a imposição de discursos - e a
simulação também é em si constituída de um discurso que dispensa a
realidade - a simulação se torna a própria realidade. Os discursos da
realidade sobrepõem um possível entendimento de cotidiano – e,
portanto, ofuscam as nossas leituras de cidade.
249
Museologia e Património – Volume 1

A ideologia não corresponde senão a uma malversação da


realidade pelos signos, a simulação corresponde a um curto-circuito da
realidade e à sua reduplicação pelos signos. A finalidade da análise
ideológica continua a ser restituir o processo objetivo, é sempre um
falso problema querer reinserir a verdade sob o simulacro.
(Baudrillard, 1981).

4. A cidade ‘planejada’ versus cartografias do cotidiano

A partir dos problemas expostos brevemente, e da


problemática central (análise das propostas de políticas para cidade
em função dos 300 anos de Cuiabá), acreditamos que o lugar destinado
para o patrimônio e para museus é restrito a uma parte da cidade -
centro antigo - e, mesmo assim, em sua maioria as ações não levam em
consideração o próprio contexto local, processos de identificação e
pertencimento dos cuiabanos e/ou moradores da capital mato-
grossense. A ideia de uma cidade moderna e "planejada", por vezes,
sobrepõe-se aos modos de sentir o espaço público, sobretudo,
reconhecendo e destacando o pertencimento com o patrimônio
cuiabano que resiste às políticas modernizadoras. Por outro lado,
defendemos aqui a hipótese de se pensar políticas para cidade,
incluindo para patrimônio, a partir da ideia de cartografias do
cotidiano.
Quando se fala em representação da cidade, além da
reprodução das imagens “representativas da cidade”, podemos falar
também da cartografia - tanto como reprodução quanto como
simulação. “O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É
agora o mapa que precede o território - precessão dos simulacros - é
ele que engendra o território cujos fragmentos apodrecem lentamente
sobre a extensão do mapa”. (Baudrillard, 1981).
No planejamento urbano, por exemplo, não se busca
representar uma realidade pela cartografia, pelo contrário são os
mapas que irão ditar o zoneamento, as áreas de expansão, é uma visão
“macro” de fora em que os próprios mapas simulam a cidade vivida em
forma de uma cidade planejada, mas onde fica o cotidiano nessas
representações - e consequentemente nas políticas públicas para a
cidade?

250
Museologia e Património – Volume 1

E para além do discurso do “planejamento urbano estratégico”,


que outras leituras e discursos poderíamos incluir na construção de
cartografia? Talvez a experiência cartográfica poderia trazer também
novas luzes sobre como entender (e representar) o cotidiano. Seria
então uma experiência de cartografias do cotidiano? É preciso
repensarmos a dimensão da simulação na cartografia, assim como no
entendimento de cotidiano para transformar a maneira como estamos
lendo a cidade e, portanto, a maneira como estamos nos apropriando
dela.
Seria possível incluir a leitura de cotidiano na produção de
cartografia? Pensar sobre a cartografia enquanto simulação, mas para
além disso, talvez como possibilidade de representações - incluindo-se
outros discursos que não “oficiais” e principalmente as dimensões da
vida cotidiana. Repensar a dimensão do discurso nas produções de
cartografias, e consequentemente na produção de leitura sobre a
participação individual no território presente - na cidade: o território
do espaço público - é uma possibilidade de (re)apropriação.

Bibliografia

Amorim, A. et. al. (2018, junho). Burocráticas, acríticas e distantes da


sociedade: um olhar sobre as notícias de políticas públicas na mídia
local de Uberlândia/MG. Anais do XXIII Congresso de Ciências da
Comunicação na Região Sudeste, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Recuperado em 15 julho, 2019, de
http://portalintercom.org.br/anais/sudeste2018/resumos/R63-0529-
1.pdf.

Baudrillard, J. (1981). Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D'Água.


Brasil. Ministério do Turismo. (2015). Índice de Competitividade do
Turismo Nacional: Cuiabá. Recuperado em 08 julho, 2019, de
http://www.turismo.gov.br/sites/default/turismo/o_ministerio/publi
cacoes/Indice_competitividade/2015/Cuiaba_RA_2015.pdf.

Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. (n.d). IBGE


Cidades - Cuiabá. Recuperado em 20 junho, 2019, de
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mt/cuiaba/pesquisa/38/47001?tip
o=ranking.
251
Museologia e Património – Volume 1

Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE. (2014).


Perfil dos Estados e dos Municípios Brasileiros. Recuperado em 15 julho,
2019, de
https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/20
14/default.shtm.

Brasil. Ministério do Turismo. (2018). Programa de Regionalização do


Turismo: Metodologia. Recuperado em 07 julho, 2019, de
http://regionalizacao.turismo.gov.br/index.php?option=com_content&
view=article&id=88&Itemid=271.

Brasil. Ministério do Turismo. (2017). Mapa do Turismo no Brasil:


Programa de Regionalização do Turismo. Recuperado em 07 julho,
2019, de http://www.mapa.turismo.gov.br/mapa/init.html#/home.

Cuiabá (2014). Mapa Turístico: roteiros de fé, cultura e sabores


cuiabanos – Cuiabá: capital do Pantanal e do agronegócio. Recuperado
em: 17 junho, 2019, de
http://www.cuiaba.mt.gov.br/storage/webdisco/2014/07/09/outros
/a0a1b90ec7f32d4b27a9833ae2c414c2.pdf.

Cuiabá. Prefeitura Municipal de Cuiabá. (2012). Plano Estratégico 2012-


2019: Cuiabá 300 Anos. Recuperado em 20 junho, 2019, de
http://transparencia.cuiaba.mt.gov.br/transparencia/servlet/wmcont
aspublicas?PM.

Cuiabá. Prefeitura Municipal de Cuiabá. (2013). Plano Estratégico 2013-


2023: Cuiabá: Capital do Pantanal e do Agronegócio. Recuperado em 20
junho, 2019, de
http://transparencia.cuiaba.mt.gov.br/transparencia/servlet/wmcont
aspublicas?PM.

Cuiabá. Prefeitura Municipal de Cuiabá. (2017). Plano Estratégico 2017-


2023. Recuperado em 20 junho, 2019, de
http://transparencia.cuiaba.mt.gov.br/transparencia/servlet/wmcont
aspublicas?PM.

252
Museologia e Património – Volume 1

Costa, Ricardo Silveira. (2010, novembro). Modernidade e primitivismo


na arquitetura de Mato Grosso. Confrontos da segunda metade do
século 20. Vitruvirus. Ano 11, n. 126.05. Recuperado em 15 julho, 2019,
de
http://ww.arquiteturismo.com.br/revistas/read/arquitextos/11.126/
3637.

Frigeri, Ana Vittori. (2018, fevereiro). Guia de Identidades de Cuiabá


Contemporânea. Registro de um olhar sobre a cidade em busca de
vestígios de novas identidades. Trabalho Final de Graduação.
Universidade Federal de Mato Grosso, Faculdade de Arquitetura,
Engenharia e Tecnologia. Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Recuperado em
12 julho, 2019, de https://issuu.com/anafrigeri/docs/merged.

Fujimori, Bianca. (2018a, maio 31). Sete museus e uma biblioteca estão
fechados em Cuiabá. Mídia News. Cuiabá, Mato Grosso, Brasil.
Recuperado em 11 julho, 2019, de:
https://www.midianews.com.br/cotidiano/sete-museus-e-uma-
biblioteca-estao-fechados-em-cuiaba/325300.

Fujimori, Bianca. (2018b, abril 29). Família vê descaso e diz que vai
manter Museu de Pedras fechado. Mídia News. Cuiabá, Mato Grosso,
Brasil. Recuperado em 11 julho, 2019, de:
https://www.midianews.com.br/cotidiano/familia-ve-descaso-e-diz-
que-vai-manter-museu-de-pedras-fechado/323087.

G1 MT. (2019, abril 24). Museu do Morro da Caixa D'Água Velha em


Cuiabá deve ser reaberto nesta 4ª após passar por revitalização.
Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Recuperado em 15 julho, 2019, de
https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2019/04/24/museu-
do-morro-da-caixa-dagua-velha-em-cuiaba-deve-ser-reaberto-nesta-
4a-apos-passar-por-revitalizacao.ghtml.

Lei nº 6252, de 11 de janeiro de 2018. (2018). Estima a receita e fixa a


despesa do município de Cuiabá para o exercício financeiro de 2018.
Lei Orçamentária Anual. Cuiabá, MT, Recuperado em 17 jun. 2019, de:
http://transparencia.cuiaba.mt.gov.br/transparencia/servlet/wmcont
aspublicas?LOA.
253
Museologia e Património – Volume 1

Lei nº 6248, de 21 de dezembro de 2017. (2017). Dispõe sobre o Plano


Plurianual para o Quadriênio 2018-2021. Plano Plurianual 2018-2021.
Cuiabá, MT: Câmara Municipal de Cuiabá.

Santos, Giordanna Laura da Silva. (2015). Participação social no


Colegiado Setorial de Culturas Populares, do Ministério da Cultura
(MINC): uma análise dos canais comunicacionais e participativos, de
2010 a 2014. Tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia,
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos,
Salvador, Bahia, Brasil.

Santos, Giordanna. (2018, setembro). Mídia local, museus e turismo:


quais os legados a marca ‘Cuiabá 300 Anos’ deixará? Revista
Iberoamericana de Turismo- RITUR. V. 04. p.115-137.

Soares, Denise. (2018, abril 05). Igreja mais antiga de Cuiabá guarda
cripta com restos mortais de personalidades, arte de polonês e
histórias curiosas. G1 MT. Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Recuperado 14
julho, 2019, de: https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/igreja-
mais-antiga-de-cuiaba-guarda-cripta-com-restos-mortais-de-
personalidades-arte-de-polones-e-historias-curiosas.ghtml.

254
Museologia e Património – Volume 1

A EXPANSÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DIANTE DAS


TECNOLOGIAS DIGITAIS: ENTRE O ATUAL E O VIRTUAL

Carmen Lucia Souza da Silva


Universidade Federal do Pará, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-2487-1823

1. Introdução

Experienciar o patrimônio cultural, na contemporaneidade,


constitui-se, cada vez mais, um movimento de transformação, de
contínuo processo, com as afetações dela decorrentes, já que a
passagem por universos simbólicos que se cruzam pressupõem fusões,
hibridismos, mutações. Ao mesmo tempo algo que precisaria ser
compreendido como outra forma de vivenciar o patrimônio para além
dos códigos representativos para os quais foram concebidos. Portanto,
propõe-se aqui refletir sobre a vivência do patrimônio cultural em
tempos e espaços expandidos, entendidos como sobrepostos, não-
lineares e dinâmicos. Mais especificamente, pensar sobre o caráter
transcendental do patrimônio cultural tensionado pelas tecnologias
digitais e em rede, seja em reconfigurações da materialidade e da
imaterialidade, mas também devir em fluxo em sociedades complexas.
O encontro entre as tecnologias digitais e o patrimônio cultural
evidencia o caráter transitório deste diante de outro paradigma
motivado por aquelas. Evidencia posto que os bens culturais estão
sujeitos ao movimento contínuo do mundo, e passam por constantes
contestações, já que as sociedades se transformam e podem inclusive
questionar ou ampliar seu estatuto social, enquanto patrimônio
cultural, resultante de processos identitários e de memória coletiva.
Quem poderia dizer, quando da criação, no Brasil, do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, que
precedeu o atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), que o Samba do Rio de Janeiro e o Carimbó do Pará se
tornariam Patrimônios Culturais Imateriais do País, em 2007 e 2014,
respectivamente, mais de um século depois de serem considerados
255
Museologia e Património – Volume 1

contravenções punidas com multas e prisões? Ou o Círio de Nazaré, de


Belém do Pará, em 2013, e a Roda de Capoeira, em 2014, serem
inseridos na Lista Representativa de Patrimônio Cultural Imaterial da
Humanidade, segundo a UNESCO, quando em suas origens eram
vivenciados, em maioria, pela população de baixa renda e excluída?
Conquistas resultantes das lutas, e da resistência identitária, de
grupos marginalizados que até então não tinham suas origens,
manifestações e tradições reconhecidas como patrimônio e dignas de
salvaguarda. O próprio reconhecimento oficial do patrimônio imaterial
é historicamente recente, e tem como alguns de seus marcos, no Brasil,
a Constituição de 1988 e o decreto 3.551/2000 que instituiu o Registro
dos Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial. Mundialmente, a Convenção para a
Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial em 2003.
A trajetória do reconhecimento do patrimônio cultural
imaterial pode servir de referência para refletirmos sobre novas
concepções de patrimônio. Diante do digital, o patrimônio cultural
segue em transformação, assim como ocorreu com a categoria ou
dimensão imaterial, mas de forma mais dinâmica e acelerada. Mesmo
que haja controvérsias sobre o seu presente estatuto e
reconhecimento, o patrimônio mobilizado pelas tecnologias digitais se
vê diante de questionamentos sobre o devir, mais do que o ser. O devir,
ou o sempre vir a ser, está na própria reflexão sobre o virtual, como
aborda Lévy (1996), quando trata das mudanças em curso na
sociedade, ainda na década de 1990:

Certamente nunca antes as mudanças das técnicas, da


economia e dos costumes foram tão rápidas e
desestabilizantes. Ora, a virtualização constitui justamente
a essência, ou ponta fina, da mutação em curso. Enquanto
tal, a virtualização não é nem boa nem má, nem neutra. Ela
se apresenta como o movimento do ‘devir outro’ - ou
heterogênese - do humano. (Lévy, 1996, p. 11-12).

Nesse processo de mutação, Deleuze argumenta que o “virtual


não se opõe ao real, mas somente ao atual. O virtual possui uma plena
realidade enquanto virtual” (Deleuze, 1988, p. 196-197). Em oposição
ao atual, define o virtual “como uma estrita parte do objeto real - como
256
Museologia e Património – Volume 1

se o objeto tivesse uma de suas partes no virtual e aí mergulhasse


como numa dimensão objetiva” (Deleuze, 1988, p. 196-197). Para a
questão do patrimônio, e sobretudo diante do digital, a compreensão
do virtual como parte do real auxilia no entendimento dos elos entre
materialidade e da imaterialidade, e seus desdobramentos, diante de
outras possibilidades de expansão cultural. Contudo, como podemos
relacionar a oposição entre ato e potência para os estudos sobre o
patrimônio diante do digital e do virtual? Antes de prosseguirmos com
essa problematização propomos ir ao empírico como um percurso
necessário para sua melhor compreensão. Resultante de pesquisa, este
percurso, antes de ser visto como uma aplicação de tecnologias digitais
em experimentos com patrimônio cultural, deve ser observado como
um caminho investigativo de transcodificações urbanas que nos
fornece elementos para pensar o patrimônio diante deste outro
paradigma. Compreensões que, portanto, retomaremos mais adiante.

2. Além dos códigos

Há quase dez anos iniciamos a pesquisa sobre o patrimônio


cultural presente nas praças de Belém do Pará, no Brasil, e sua
virtualização, como abertura para outros usos, na internet, visando o
diálogo interdisciplinar entre as áreas da Museologia, Educação e
Turismo. Através do projeto denominado Transcodificações Urbanas57
realizamos pesquisa sobre os monumentos em documentos, em parte

57 Desenvolvido desde 2011 na Universidade Federal do Pará e vinculado ao

curso de Museologia, o projeto Transcodificações Urbanas: virtualização dos


monumentos de Belém já realizou a virtualização de dez ambientes de
patrimônio cultural da capital paraense, monumentos erguidos em praças
públicas. Para as virtualizações são utilizados modelagem 3D e criação de
cenários interativos, onde é possível navegar em primeira pessoa, como em
um game. Nestes ambientes imersivos, construídos em parceria com o curso
de Engenharia da Computação, também da UFPA, por meio de bolsas
concedidas através do projeto a estudantes e cooperação de docentes, são
ainda inseridas informações resultantes de pesquisa histórica e artística, que
podem ser consultados pelo usuário. Às dez virtualizações desenvolvidas pelo
Transcodificações Urbanas somam-se outras duas realizadas pelo projeto
Museus e Patrimônio, igualmente vinculado ao curso de Museologia, todas
disponíveis em: <www.monumentosdebelem.ufpa.br>. Diversos 2011-2019.
257
Museologia e Património – Volume 1

restritos a Bibliotecas e Arquivos Públicos, como leis, relatórios de


gestão, estudos para restauração e conservação, além de textos de
jornais de época. Em paralelo, outra frente desenvolvia estudos em
tecnologia, para criação dos espaços interativos que permitissem não
só ter acesso às informações documentadas, através de consulta on
line, mas permitissem ainda novas formas de vivenciar o patrimônio
cultural em ambiente imersivo. Chamamos então as visitações virtuais
dos monumentos, em ambiente interativo com modelagem 3D, de
virtualização, termo que mais adiante problematizaremos.
No projeto, o primeiro ambiente a ser virtualizado foi o
conjunto de elementos monumentais da Praça Floriano Peixoto,
localizada no bairro de São Brás, erguidos em homenagem a antigo
governador do Estado, Lauro Sodré, em projeto do arquiteto Francisco
de Paula Lemos Bolonha e obras comandadas pelo engenheiro Nicholas
Chase, cuja inauguração ocorreu em 1959. As cinco esculturas,
distribuídas em três grupos, são do artista modernista Bruno Giorgi,
que naquele mesmo ano, 1959, também desenvolvia projetos na cidade
que se tornaria capital federal, como a escultura “Os Guerreiros”,
localizada na Praça dos Três Poderes, em Brasília, inaugurada no ano
seguinte. Conhecida ainda como “Os Candangos”, esta escultura e os
grupos escultóricos da Praça Floriano Peixoto em Belém são da mesma
fase artística do autor.
Para modelagem e construção do ambiente interativo,
disponível para visitação no site do projeto
(www.monumentosdebelem.ufpa.br), partimos do conjunto
monumental no espaço, composto pelos três grupos escultóricos até
então presentes no local, em 2011. Entre eles, os três elementos em
bronze que formavam o segundo grupo escultórico, que
representavam o “Trabalho”, à esquerda do ponto de vista do
observador, a “República”, ao centro, e as “Artes”, à direita. Na figura 1,
o triádico aparece parcialmente encoberto por tapume, em processo
inicial de recuperação da praça e do conjunto monumental, em 2011.
Naquele momento, percebe-se que as esculturas estão com as partes
superiores completas. Meses depois desaparece a cabeça da escultura
“Trabalho”.

258
Museologia e Património – Volume 1

Figura 1: Mural com as três figuras em bronze, cercado por tapume, no


processo inicial de recuperação.
Fonte: Carmen Silva, 2011

A virtualização do conjunto monumental ocupou quase todo o


ano de 2012, já que era necessário não só realizar pesquisa histórica e
artística sobre este e outros patrimônios, até então com registros
dispersos e de acesso limitado, mas, concomitantemente, desenvolver
investigação em tecnologia, pois se tratava do primeiro a ser
virtualizado, para criação de ambiente imersivo que permitisse o

259
Museologia e Património – Volume 1

deslocamento do visitante de forma mais livre, com possibilidade de


“paradas” para observação e maior interação.
Optamos pela modelagem 3D para simular ao máximo as obras
originais. Enquanto realizávamos o processo de virtualização (figura
2), a Prefeitura da capital finalizava a recuperação da praça, e quando
foi reinaugurada um dos elementos do segundo grupo escultórico, a
figura em bronze que representava o “Trabalho”, já não estava
presente (figura 3). No seu lugar, uma placa indicava que tinha sido
retirada para restauro, e estava no Museu de Arte de Belém.

Figura 2: virtualização do conjunto de elementos monumentais da


praça Floriano Peixoto. Em destaque o mural com o segundo grupo
escultórico.
Fonte: Transcodificações Urbanas

260
Museologia e Património – Volume 1

Figura 3: Mural com a ausência da escultura “Trabalho”


Fonte: Carmen Silva, 2011

No decorrer dos anos não só a escultura o “Trabalho” não


retornou ao seu ambiente, a praça pública, assim como os outros
elementos deste conjunto escultórico igualmente desapareceram. A
segunda a sair de cena foi a escultura “Artes”, deixando a figura central,
a “República” (figura 4), seguir sozinha como observadora das
manifestações públicas que rotineiramente acontecem no também
conhecido como Complexo de São Brás, por abarcar outros
monumentos de patrimônio cultural, o Mercado do bairro e a Caixa
d’água de ferro, inaugurados, respectivamente, em 1911 e em 1885.

261
Museologia e Património – Volume 1

Figura 4: Até então remanescente da tríade, elemento escultórico


“República”, abaixo no mural com pichações, ainda presente na
manifestação das mulheres intitulada “Ele não”, em outubro de 2018,
às vésperas das eleições presidenciais.
Fonte: Carmen Silva, 2018
262
Museologia e Património – Volume 1

No prosseguimento do processo de apagamento do patrimônio


cultural, e por que não dizer em metáfora do tempo político, a figura da
“República” teve o mesmo destino que as demais, igualmente
sucumbiu, desaparecendo do espaço público nos nubilosos dias de
novembro de 2018, restando apenas o mural, onde ficava o triádico,
agora repleto de mensagens de uma época, em pichações (figura 5). O
desaparecimento das duas esculturas, “República” e “Artes”, e de parte
da outra, “Trabalho”, é atribuído a furtos e vandalismo, mas
principalmente ao descaso do Poder Público com a preservação do
patrimônio cultural. Resistentes, seguem os dois grupos escultóricos
restantes, inclusive a escultura Vitória (ao fundo da figura 5), que do
alto do obelisco parece testemunhar a ausência de salvaguarda, que os
atinge.
A ausência das esculturas no espaço físico nos remete à
presença na virtualização. Como a recuperação das obras é quase
impossível, já que não se sabe qual destino tiveram, passam a existir
unicamente no plano virtual, onde a memória pode encontrar
ambiente representativo para além do mural vazio na praça. Assim, a
virtualização passa a ser a camada mais evidente do patrimônio
fisicamente não mais existente, mas presente na memória e em outro
espaço sobreposto à camada física.
Virtualização que é, portanto, fortalecida, posto que é acelerado
e contínuo o processo de atualização, a partir da ausência material que
torna o virtual ainda mais presente. Não só na WEB, onde é navegável a
partir site do projeto, a virtualização do conjunto de elementos
monumentais que ora abordamos está também acessível à palma da
mão, através do aplicativo igualmente desenvolvido no interior do
Transcodificações Urbanas, denominado Patrimônio Urbano Virtual
(PUV), disponível para android (figura 6). Elaborado com os princípios
imersivos da versão para WEB, o aplicativo dispõe de navegação mais
interativa, com botões para contato direto na tela, e outros recursos,
como mapas de localização dos monumentos.

263
Museologia e Património – Volume 1

Figura 5: Ausência do triádico no mural, que também compunha o


segundo grupo escultórico. Ao fundo, a escultura Vitória “observa” do
alto o descaso do poder público com o patrimônio cultural da cidade.
Fonte: Carmen Silva, 2019

264
Museologia e Património – Volume 1

Figura 5: Virtualização do conjunto escultórico disponível no aplicativo


PUV
Fonte: Transcodificações Urbanas

No PUV, foram disponibilizados sete monumentos de Belém


para visitação virtual. Contiguidades que adquirem outras
265
Museologia e Património – Volume 1

propriedades através de mobile app, ainda mais próximo das pessoas,


pelos recursos oferecidos nos smartphones, que associa, por exemplo, a
possibilidade de deslocamento nos espaços, virtual e físico, em
movimentos simultâneos de toque na tela e caminhar, no sentido
amplo de contato com os lugares, como ressignificação do flaneur de
Baudelaire, agora rizomático, por vezes disperso, mas em busca de
vivências e de conhecimento.
Após quase uma década de estudos, e diante do inesperado,
mas ao mesmo tempo previsível abandono que resultou na destruição
do segundo grupo escultórico do conjunto monumental, em face do
descaso do Poder Público com o patrimônio cultural, a virtualização
torna-se também resistência, ou (re)existência, em potência que se
renova, ressignificada ainda mais pela memória do objeto ausente do
ambiente urbano. Assim, Transcodificações Urbanas, nesta e nas outras
virtualizações de monumentos, pela quebra dos códigos, pela mutação,
pela ruptura nas representações. Virtualizações que tensionam as
atualizações do patrimônio cultural, enleando espaços e tempos, em
contínuos movimentos de expansão. É para onde iremos, ou
retomamos, a seguir.

3. Entre o virtual e o atual

É na oposição entre ato e potência que a relação entre espaço e


tempo, tão significativa quanto à memória, se torna ainda mais
produtiva em seu enlace com o patrimônio cultural. Para compreender
essa questão, recorremos a Bergson (1999), quanto reflete sobre a
“imagem-lembrança” e a qualifica como “virtual”, só podendo “tornar-
se atual através da percepção que a atrai”. E o filósofo ressalta:
“Impotente, ela retira sua vida e sua força da sensação presente na qual
se materializa” (Bergson, 1999, p. 148). Portanto, é no movimento no
tempo, através de percepções e sensações, que as afetações entre o
virtual e o atual se realizam, por espaços. Percurso que também se
lança o patrimônio, ao se fortalecer no fluxo da memória.

A verdade é que a memória não consiste, em absoluto,


numa regressão do presente ao passado, mas, pelo
contrário, num progresso do passado ao presente. É no
passado que nos colocamos de saída. Partimos de um
266
Museologia e Património – Volume 1

‘estado virtual’, que conduzimos pouco a pouco, através de


uma série de planos de consciência diferentes, até o termo
em que ele se materializa numa percepção atual, isto é, até
o ponto em que ele se torna um estado presente e atuante,
ou seja, enfim, até esse plano extremo de nossa consciência
em que se desenha nosso corpo. Nesse estado virtual
consiste a lembrança pura. (Bergson, 1999, p. 280)

Um estado virtual que ativa memória, ponto de partida que a


impulsiona, em propulsão por camadas que estão interligadas. Pensa-
se, contudo, na coexistência entre tempos e espaços, que são
dinamizados e fortalecidos pela relação que os liga, pelas trocas entre o
virtual e o atual, ou através do deslocamento entre eles. Na relação com
o patrimônio cultural, este movimento opera de forma bastante
produtiva, já que o deslocamento pelo fluxo da memória pode ocorrer
por rotas não-lineares, em camadas de tempos e espaços, cuja
coexistência revigora a transmutação entre virtual e atual. Deleuze
defende que “não há objeto puramente atual”, e detalha que: “Todo
atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais. Essa névoa eleva-se
de circuitos coexistentes mais ou menos extensos, sobre os quais se
distribuem e correm as imagens virtuais” (Deleuze, 1996, p. 49). E, a
partir de Bergson, Deleuze conclui:

Com efeito, como mostrava Bergson, a lembrança não é


uma imagem atual que se formaria após o objeto
percebido, mas a imagem virtual que coexiste com a
percepção atual do objeto. A lembrança é a imagem virtual
contemporânea ao objeto atual, seu duplo, sua ‘imagem no
espelho’ (Deleuze, 1996, p. 53).

Logo, o patrimônio cultural, material e imaterial, se constituiria


através deste sistema de trocas e mutações entre virtual e atual, por
tempos e espaços que, ao coexistirem e se interligarem, se expandem.
Assim, as virtualizações seriam o processo que tornaria mais evidente
esta “imagem virtual” que coexiste com o “objeto atual”, este por vezes
ainda mais dinâmico que aquela, como podemos perceber no relato
sobre o triádico. Imagem virtual compreendida em sentido complexo,
de multiplicação de imagens que também coexistem, se confrontam e
267
Museologia e Património – Volume 1

atravessam os espelhos, se sobrepõem, se misturam no fluxo das


camadas, se interconectando ainda mais, em redes. Portanto,
virtualizar o patrimônio cultural está além da criação de novas
representações, de somente digitalizar objetos e espaços públicos, de
disponibilizar acervos agora compostos por bytes, de migrar para
internet ou estar em oposição ao físico ou presencial. A virtualização
dinamiza a memória e é dinamizada por ela.
Por ser dinâmica, a virtualização implica em
desterritorialização, deslocamento, passagem pelo “ponto virtual”, ser
potência pela possibilidade de se tornar atual. Os ambientes imersivos
do projeto objetivam, desta forma, propiciar ao visitante a
possibilidade de passar pelo “ponto virtual”, de vivenciar um espaço
potencial em seu duplo atual, como espelhamento. Intuito que nos
confronta ao dinamismo da passagem pelo ponto virtual, proposto por
Foucault (2009, p. 415) ao trazer a metáfora do espelho:

O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar.


No espelho, eu me vejo lá onde não estou, em um espaço
irreal que se abre virtualmente [itálico nosso] atrás da
superfície, eu estou lá longe, lá onde não estou, uma
espécie de sombra que me dá a mim mesmo minha própria
visibilidade, que me permite me olhar lá onde estou
ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma
heterotopia, na medida em que o espelho existe realmente,
e que tem, no lugar que ocupo, uma espécie de efeito
retroativo; é a partir do espelho que me descubro ausente
no lugar em que estou porque eu me vejo lá longe. A partir
desse olhar que . . . se dirige para mim, do fundo desse
espaço virtual [itálico nosso] que está do outro lado do
espelho, eu retorno a mim e começo a dirigir meus olhos
para mim mesmo e a me constituir ali onde estou; o
espelho funciona como uma heterotopia no sentido em que
ele torna esse lugar que ocupo, no momento em que me
olho no espelho, ao mesmo tempo absolutamente real, em
relação com todo o espaço que o envolve, e absolutamente
irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a passar
por aquele ponto virtual [itálico nosso] que está lá longe.
(Foucault, 2009, p. 415).
268
Museologia e Património – Volume 1

É na passagem, no fluxo, no confronto entre os tempos, e na


tensão entre os espaços que a virtualização se processa. A passagem
pelo ponto virtual permite atravessar o espelho, vivenciar o virtual que
coexiste com o objeto atual. Mas, se partirmos do relato que aqui
trazemos, pode ocorrer também em contrafluxos, ao sugar, através do
espelho, a percepção do objeto, diante do contraponto de que não está
mais presente no espaço físico, mas permanece em outro espaço
coexistente. Pelos tempos, também múltiplos, atravessa a memória,
decantando e enredando os espaços de ausência e presença.
Para refletir sobre as multiplicidades em questão, seguimos
recorrendo a Foucault (2009, p. 411-422) que, ao explicar os conceitos
de heterotopias e heterocronias, lembra do “entrecruzamento fatal do
tempo com o espaço”. Em oposição às utopias, que são
“posicionamentos sem lugar real” ou “essencialmente irreais”, detalha
o filósofo, as heterotopias são “lugares reais”, mas são também “espécie
de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam
efetivamente localizáveis”, que poderiam ser estudados, através da
“contestação simultaneamente mítica e real do espaço que em
vivemos”, segundo quatro princípios. O primeiro princípio
fundamental da heterotopia, apontado por Foucault, é que todas as
culturas criam algum tipo de heterotopia e que elas são uma constante
em todos os grupos humanos. Seriam reminiscências desses lugares:
colégios internos, o serviço militar para jovens. O segundo princípio
aborda diversos usos que a sociedade faz de determinada heterotopia,
podendo fazê-la funcionar de forma diferente, como o cemitério, que
quase sempre existiu nas sociedades ocidentais, mas que sofreu
mutações, se afastando do espaço sagrado da igreja para se instalar em
espaços periféricos, “‘outra’ cidade onde cada família possui sua
morada sombria” (Foucault, 2009, p. 418).
O terceiro princípio trata da justaposição “em um só lugar
vários espaços”. Foucault cita como exemplo o teatro e o cinema, com
seus cenários justapostos e projeções de narrativas. Mas poderíamos
inserir neste terceiro princípio a encenação do patrimônio cultural nos
museus e demais espaços públicos, já que também justapõe lugares de
memória e narrativas em um só ambiente. Patrimônio que também
pode ser considerado segundo os dois outros princípios, por ser alvo
de criação e de mutações em diferentes culturas. Pode ser estudado
269
Museologia e Património – Volume 1

ainda segundo o quarto princípio, que trata do funcionamento das


heterotopias. Estas só aconteceriam plenamente quando há ruptura
absoluta com a tradição temporal. Assim, têm início e estão ligadas,
através de recorte temporal, com a heterocronia, que se forma na
acumulação de vários tempos em um único espaço. Os museus e as
bibliotecas seriam, segundo o filósofo, heterotopias do tempo, nas
quais este “não cessa de se acumular e de se encarapitar no cume de si
mesmo” (Foucault, 2009, p. 419).
A partir desse quarto princípio, por evidenciar mais fortemente
o encontro do espaço e do tempo, em camadas interligadas, mas
também considerando os princípios anteriores, podemos avançar no
estudo do patrimônio cultural diante do virtual, que questiona o seu
estatuto eternizante, típico do patrimônio acumulado nos museus
tradicionais, para conduzi-lo em um tempo crônico, mas passageiro. O
patrimônio diante do virtual se vê em face da volatibilidade do tempo,
como estar sujeito ao desenvolvimento constante da tecnologia, que o
pressiona a transformações, e ao ainda frágil armazenamento digital,
que o coloca em face do risco eterno da efemeridade e da perda da
memória.
Por outro lado, o patrimônio virtual ou virtualizado expande o
saber, para tempos e espaços que coexistem, que se encontram e que
permitem outros encontros, busca eterna da humanidade, que se vê
também atingida pelas transformações aceleradas das vivências
contemporâneas, fortemente afetadas pelas redes digitais. Philippe
Hert já defendia, em 1999, a “internet como dispositivo heterotópico”,
por ser “este espaço outro, que tem, entretanto uma realidade efetiva, e
que nos dá a oportunidade de construir formas alternativas de
encontro” (Hert, 1999, p. 98, tradução nossa). Em outro projeto, o
Cartografias na Internet58, também estudamos estes “(des)encontros”,
seja através das redes sociais e locais de fala na internet, sobre
patrimônio cultural, seja através de outros mapeamentos, como a
aproximação dos museus brasileiros com as tecnologias digitais
emergentes, ainda apreensiva e pouco explorada pela maioria.

58 Estudos realizados no âmbito do projeto de pesquisa Cartografias na


Internet: entre Memórias e Patrimônio, também desenvolvido sob nossa
coordenação no curso de Museologia, da Faculdade de Artes Visuais da UFPA.
270
Museologia e Património – Volume 1

Encontros, desencontros, reencontros que ocorrem na relação


entre as pessoas com essa realidade efetiva, na vivência do patrimônio
cultural e virtual, a qual também tem “sistema de abertura e
fechamento que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis”,
quinto princípio da heterotopia, segundo Foucault (2009, p. 420). A
vivência do patrimônio diante do virtual pede passagem por interfaces,
como a abertura e o fechamento de plataformas digitais, permissão ou
interdito de acesso, o que renova o recorrente debate que atravessa
épocas sobre a inclusão e a exclusão.
Dessa tensão podemos partir para o sexto princípio da
heterotopia, a partir da reflexão sobre o patrimônio e o virtual.
Segundo Foucault (2009), as heterotopias “têm, em relação ao espaço
restante, uma função” (p. 420). Qual seria a função do patrimônio
cultural, em especial diante do virtual e percebido como uma
heterotopia? Seria uma heterotopia de ilusão, que denunciaria como
mais ilusório os outros espaços de patrimônio, ou de compensação,
outro espaço real, que, meticuloso, evidenciaria ainda mais as tramas
na sociedade que o institucionaliza, em relações de poder, mas também
de resistência?
Questões abertas ao entendimento, sobretudo se tensionadas
por situações trágicas como a que relatamos, onde o descaso com o
patrimônio cultural torna mais explícita a relevância do virtual para a
preservação e salvaguarda. Quem poderia imaginar que as
digitalizações de algumas peças estão entre o pouco que restou do
acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro destruído no incêndio de
setembro de 2018, após 200 anos de existência? Neste e naquele
exemplo as figuras virtuais tridimensionais não foram criadas com o
objetivo de substituir os objetos materiais, nem a visita presencial, mas
acabaram tomando outro destino. Tornaram-se experiências no
processo transcendental de estudos sobre o patrimônio e o virtual, que
têm espaço exploratório em diversas áreas do conhecimento, inclusive
na Cibermuseologia, com novos questionamentos epistemológicos para
o campo, diante da Cultura Digital e ciberconectada.
Processo que segue em devir, já que, como constata Hert
(1999), há sempre o desejo de fazer “outras máquinas para criar e
explorar as heterotopias” (p. 105). Desejos que estão nas
subjetividades, nas sociabilidades, no poder e na resistência,
hiperconexões em rede, que transcodificam o patrimônio cultural, em
271
Museologia e Património – Volume 1

tempos e espaços expandidos. Mas também são por ele


transcodificados, feito sobreviventes que ao emergir nas virtualidades
das lembranças tomam consciência da atualidade da existência,
desestabilizante.

Bibliografia

Bergson, H. (1999). Matéria e Memória - Ensaio sobre a relação do


corpo com o espírito. São Paulo, Martins Fontes.

Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Rio de Janeiro, graal.

Deleuze, G. (1996). O atual e o virtual. In: Alliez, Éric. Deleuze Filosofia


Virtual. (trad. Heloísa B.S. Rocha). São Paulo: Ed.34, pp.47-57.

Foucault, M. (2009). Estética: literatura e pintura, música e cinema.


Ditos e Escritos. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Hert, P. (1999). Internet comme dispositif hétérotopique. In: Le


Dispositif. Entre usage et concept. Hermès, Paris, n. 25, p. 93-103.

Iphan. (2019). Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.


Disponível em: http://portal.iphan.gov.br. Acesso em: diversos 2019.

Lévy, P. (1996). O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34.

Ufpa. (2019). Universidade Federal do Pará. Monumentos de Belém –


Transcodificações Urbanas. Disponível em:
http://www.monumentosdebelem.ufpa.br/. Acesso em: diversos 2019.

272
Museologia e Património – Volume 1

MUSEU EM REVISTA.
A SEÇÃO ‘RELÍQUIAS BRASILEIRAS’ DA REVISTA SELECTA
(1929-1930)

Aline Montenegro Magalhães


Museu Histórico Nacional, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-9453-5107

1. Introdução

O presente capítulo tem por objetivo identificar a imagem do


Museu Histórico Nacional (MHN) que foi construída entre os anos de
1929 e 1930, quando o mesmo ocupou a seção "Relíquias Brasileiras"
da Revista Selecta. Está em jogo conhecer a importância do periódico
na época, bem como a da seção na qual foram publicadas reportagens
sobre o MHN e seu acervo. Interessa-nos saber quais aspectos da
instituição foram sublinhados de modo a atrair o interesse do público
leitor. O trabalho integra um projeto de pesquisa dedicado à presença
do MHN na imprensa a partir do acervo da Hemeroteca Gustavo
Barroso, constituída pelo próprio intelectual cearense que dirigiu o
Museu por 35 anos e pela museóloga Nair de Moraes Carvalho. O
principal propósito do projeto é compreender a contribuição da
imprensa na construção de memórias sobre a instituição. Ou seja, de
que maneira, notícias, citações reportagens sobre o MHN tiveram
responsabilidade sobre um imaginário a respeito do Museu. Assim, o
trabalho se inicia com a caracterização da Hemeroteca Gustavo
Barroso preservada na biblioteca do MHN e a análise dessa prática
colecionista tão comum a intelectuais, políticos e artistas da sua época.
Em seguida, procura compreender a coleção de recortes de periódicos
como fonte para a produção do conhecimento sobre os variados temas
que aborda, em especial, o MHN sob a direção de Gustavo Barroso. Por
fim, a seção “Relíquias Brasileiras” da Revista Selecta passa ao foco,
sendo compreendida como um espaço de divulgação do MHN através
do qual se construiu uma imagem institucional que agora passa a ser
nosso alvo de investigação. Por meio dos artigos publicados nessa
273
Museologia e Património – Volume 1

coluna, se têm acesso a uma série de informações sobre como se


constituía o Museu, entre 1929 e 1930, e a história contada em suas
exposições.

2. Hemeroteca Gustavo Barroso

Na biblioteca do Museu Histórico Nacional (MHN) há uma


coleção de recortes de jornais organizada em cadernos e em maços de
folhas soltas, somando um total de 100 volumes. Essa coleção pode ser
divida em três grupos diferenciados pelo tipo de origem do
colecionamento.
O primeiro grupo é caracterizado por um "arquivamento da
própria vida" (Artiéres, 2013) que Gustavo Barroso realizou
pessoalmente. É formado por 26 álbuns abarcando o período de 1907,
quando iniciou sua carreira jornalística, ainda em Fortaleza, até 1942.
São cadernos, livros-caixa e agendas reutilizados pelo colecionador,
que colou, sobre as páginas usadas, os recortes de artigos e
reportagens de sua autoria juntamente com notícias e matérias
publicadas sobre si e suas obras. O álbum correspondente ao período
de 1909 a 1911, por exemplo, foi o livro de atas da república de
estudantes "Consulado da China", da qual Barroso foi um dos
integrantes quando estudava Direito em Fortaleza. Os manuscritos da
"Ata nº 2 da Sessão extraordinária realizada em 07 de agosto de 1909"
foram ocultados para sempre com os papéis impressos recortados e
pacientemente colados nas páginas da encadernação por Barroso.
Entretanto, seu conteúdo foi reproduzido e difundido no terceiro
volume de memórias do escritor, Consulado da China (1941).
Os álbuns são organizados em ordem cronológica e, em muitos
deles, há numeração das páginas, num esforço de construir uma
narrativa dos acontecimentos a partir do estabelecimento de uma
sequência das notícias selecionadas. Acima de cada recorte, Barroso
escreveu à mão o nome do jornal, a cidade e a data da publicação. Há
indícios de que parte da organização do arquivo foi realizada em finais
da década de cinquenta, pois, entre as páginas dos cadernos, foram
encontrados fragmentos de uma agenda de 1957, onde se lê: “Copiar
‘As festas do Diário do Estado’ em homenagem ao dr. G. Barroso”. É
possível que se tratasse de reportagens a serem colhidas para a
coleção. Entretanto, d. Nair de Morais Carvalho, museóloga do Museu
274
Museologia e Património – Volume 1

Histórico Nacional e colaboradora do colecionador que deu


prosseguimento à coleção, afirma que Barroso já fazia esse trabalho
muito antes da década de 1950 e que foi ele próprio quem a ensinou a
fazer os álbuns de recortes. Talvez ele sempre tenha se preocupado em
coletar as notícias e crônicas publicadas e só posteriormente se
dedicado a organizá-las de forma sistemática e sequencial.
O segundo grupo da coleção conta 33 maços de recortes soltos,
ganhou novo formato e não foi mais realizado pelas mãos do
colecionador. O trabalho de recolher recortes de periódicos
relacionados a Barroso passou a ser feito por empresas especializadas
em clipping, que apenas enviava notícias e artigos colados em folhas
avulsas, tamanho padrão A5, com a sua logo no cabeçalho e o nome de
Barroso sublinhado com lápis vermelho na matéria selecionada. Este
grupo contém maços relativos ao período de 1940 a 1966,
extrapolando o tempo de vida de Barroso.
O arquivo se estende até 1973 graças ao trabalho de Nair de
Morais Carvalho, que continuou recolhendo e guardando tudo o que
encontrava sobre o Museu Histórico Nacional, Barroso e seus escritos
na imprensa. Seu trabalho deu origem ao terceiro grupo da coleção de
recortes, que se inicia em 1943 e somam 40. São mais organizados do
que os do próprio Barroso. Todos foram numerados, contendo um
recorte por página. Alguns possuem índice.
Colecionar recortes era uma prática comum entre os homens
letrados. O ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em seu
"arquivamento de si", guardava álbuns de recortes junto às
correspondências e outros documentos que serviriam ao seu projeto
autobiográfico (Fraiz, 2007) Já Pedro Nava relatou em seu Baú de
ossos:

Tudo isto intimidade que está comprovada na curiosa


coleção de recortes e de retratos de meu Pai – uma
daquelas miscelâneas bem do seu tempo e das quais
possuo a sua, a de minha mãe, as de meu tio Antonio Salles.
Curiosos repositórios para estudo de uma personalidade,
onde ainda surpreendo, por parte de meu Pai... (Nava,
1972 p. 99)

275
Museologia e Património – Volume 1

Ao organizar fragmentos de periódicos, Barroso parecia


recolher-se ao passado de forma solitária, uma vez que seus cadernos
não eram compartilhados com leitores, como foram suas memórias de
infância. Pode-se dizer que se trata de um arquivo privado sobre a vida
pública, onde buscou reunir tudo que a imprensa publicou de sua
autoria e sobre sua vida nas letras e na política.
Não há comentários escritos sobre o que estava sendo
guardado. Era como se os recortes pudessem falar por si sobre uma
trajetória individual. Teria ele a intenção de deixar um arquivo
completo de si para ser consultado após a sua morte, talvez com vistas
à escrita de uma biografia? Ou estaria apenas “passando a vida a limpo”
ao “reviver” seu passado em manchetes? Acreditamos que entre seus
objetivos estavam as duas possibilidades, que merecem ser mais
aprofundadas em outra ocasião. Um projeto autobiográfico (Lejeune,
2008) justificaria a ânsia colecionista barroseana.
Vale destacar aqui a importância dessa hemeroteca como fonte
de informação. Seja para análise da escrita de si ou arquivamento do eu
produzidos por Barroso, seja para conhecimento e compreensão da sua
trajetória pública. Nessa perspectiva procuramos olhar para a coleção
de recortes de jornais de Barroso não apenas como uma fonte sobre os
acontecimentos ali noticiados ao longo de sua vida, mas como um
indício do que o seu autor desejou legar para a posteridade.
Enfatizamos não apenas o que foi selecionado na vastidão de papéis
reunidos, mas a forma com que serviram a um projeto autobiográfico, à
construção de memória e de identidade de um homem público que
considerava o esquecimento um castigo, bem nos moldes do que foi
identificado na obra de Dante Aliguieri, A Divina Comédia, por Harold
Weinrich (2001).59

59 O autor alemão em seu estudo sobre o esquecimento, analisa como essa


parte constitutiva da memória se apresenta nas obras de diversos autores da
literatura mundial. Ao interpretar a Divina Comédia de Dante Alighieri,
Weinrich identifica a escuridão do inferno dantesco com o esquecimento.
Nessa perspectiva, o esquecimento é visto como castigo dado aos mortos que,
em vida, tinham se esquecido de Deus. Assim, os mortos pecadores suplicam
aos vivos que se lembrem deles e as lembranças cheguem a Deus em forma de
oração, e que, assim, Deus se compadeça diminuindo o sofrimento daqueles
que se encontram nas sombras do esquecimento. (Cf. Magalhães, 2009)
276
Museologia e Património – Volume 1

Foi contra o esquecimento que Barroso produziu uma escrita


de si em diferentes suportes. A seguinte carta nos ajuda a compreender
como Barroso se relacionava com o esquecimento e a falta de
reconhecimento pelas suas obras:

O Ceará não se lembra mais de mim. O oficialismo honra-


me com o seu desdém, com a sua antipatia. Somente Matos
Peixoto, quando Presidente do Estado, me penhorou com
as suas homenagens [...] À Pátria tudo se deve dar. À Pátria
nada se deve pedir, nem mesmo a compreensão [...] Tenho
absoluta certeza que um dia, quando se apagarem com o
tempo as paixões de caráter pessoal e político, ser-me-á
feita a devida justiça. (Apud Girão, 1987 p. 8 e34)

3. O Museu em revista

Chama atenção o fato de a Hemeroteca ter se estendido por um


período de 14 anos após a morte de Barroso. São notícias sobre
homenagens póstumas, comentários sobre obras do escritor e alusão a
iniciativas suas como o Museu Histórico Nacional e o Curso de Museu,
por ele dirigidos até o final de sua vida. Essa característica da coleção
nos leva a refletir sobre sua potencialidade como fonte para outros
estudos além da produção autobiográfica de Gustavo Barroso. Uma
possibilidade de exploração é a reflexão e a análise sobre a presença do
Museu Histórico Nacional na imprensa, uma vez que as referências à
instituição são muito recorrentes, de modo a apresentar uma relação
simbiótica entre o museu e aquele que foi seu diretor por 35 anos.
Integram a hemeroteca, por exemplo, farta cobertura sobre a criação,
em 1922, com críticas, comentários e notícias a respeito; reportagens
sobre as atividades realizadas ao longo do tempo, bem como informes
sobre a política institucional durante o período barroseano e
posteriormente.
Ao lançarmos esse olhar para a hemeroteca, propusemos à
FAPERJ, em 2014, um projeto de pesquisa sobre a escrita da história
produzida por Gustavo Barroso na imprensa, procurando caracterizar
a historiografia barroseana e o papel do Museu Histórico Nacional
nesse investimento. Que imagem a coleção de recortes permite
construir sobre o Museu Histórico Nacional na imprensa. Que tipo de
277
Museologia e Património – Volume 1

perfil institucional é produzido a partir da seleção e preservação de


matérias publicadas em periódicos ao longo de mais de meio século de
atividades contínuas (1922-1973).
Para se ter uma ideia, nos primeiros 38 volumes da coleção,
sendo os 26 produzidos pelo próprio Barroso e os 10 formados por
recortes de empresas de clippings, foram encontrados 157 recortes
diretamente relacionados com o Museu Histórico Nacional. Nos
cadernos confeccionados por d. Nair de Moraes Carvalho a presença do
MHN na imprensa permanece intensa.
A realização dessa pesquisa tem contribuído para análises
sobre a escrita da história realizada no Museu, bem como dos
diferentes processos de construção da memória institucional. Temos
como exemplo um trabalho sobre a produção historiográfica
barroseana publicada na seção "Segredos e Revelações da História do
Brasil" da revista O Cruzeiro entre 1948 e 1960, no qual se identificou a
promoção do Museu Histórico Nacional nos artigos que tinham por
objetivo tornar a história mais atraente ao grande público, “revelando”
curiosidades históricas que não se conhecia nos compêndios didáticos,
nem nos bancos escolares. O Museu Histórico Nacional se fazia
presente tanto a partir da referência a seus acervos para ilustrar ou
comprovar o argumento do autor, quanto nas vezes em que era
apresentado como objeto de análise. (Magalhães; Bojunga, 2014)
Ainda como parte do projeto, estamos analisando os escritos
sobre história de Gustavo Barroso na revista Fon-Fon! na qual Barroso
foi diretor de redação entre 1916 e 1947. Há indícios de que Barroso
republicou textos lançados anteriormente, na seção “Segredos e
Revelações da História do Brasil”, o que nos leva à hipótese de que as
revistas que circulavam entre 1920 e 1930, nas quais Barroso atuava,
seja como diretor, redator ou colaborador, serviram como uma espécie
de “ensaio” do projeto historiográfico que veio a público na O Cruzeiro
entre 1948 e 1960. Um dos indícios é o artigo "Amor e Política: D.
Pedro I e a Marquesa de Santos" (Barroso, 11 abr. 1925), publicado em
Fon-Fon!, na década de 1920, relançado anos depois nas páginas de
"Segredos e Revelações da História do Brasil" sob o título "Amor e
Política: as três fases da vida amorosa do imperador d. Pedro I
documentadas em três preciosas relíquias" (Barroso, 13 nov. 1948).
Aqui nos dedicaremos aos escritos de Barroso na seção
“Relíquias Brasileiras” da Selecta, revista ilustrada lançada em 1914, no
278
Museologia e Património – Volume 1

Rio de Janeiro — então Capital Federal — seguindo o modelo da Fon-


Fon!, do mesmo grupo editorial, criada em 1907, e seguida pelo
periódico Para Todos, de 1918 que integrava os mesmos padrões.
Segundo as autoras Cláudia de Oliveira, Mônica Pimenta Velloso e Vera
Lins, essas revistas "ocuparam lugar marcante na história editorial
brasileira, ajudando a moldar as percepções cotidianas e a nossa
própria cultura política" (2010: 12). Barroso colaborou para as três
que, "desempenharam o papel de mediadoras de saberes, de práticas
sociais e de linguagens. Nem tão imediata quanto a matéria trazida
pelos jornais, nem tão reflexiva quanto a sugerida pelos livros" (Id.
Ibid.).
Segundo Ana Maria Mauad, as revistas ilustradas de princípios
do século XX caracterizam-se por ser:

Um veículo que, por meio de uma composição editorial


adaptada ao seu próprio tempo e às tendências
internacionais, criavam modas e impunham
comportamentos, assumindo a estética burguesa como a
forma fiel do mundo que representavam.
Janelas que se abriam para o mundo retratado na foto, tais
revistas contribuíram, em grande medida, para a
generalização do mito da verdade fotográfica, na medida
em que, por meio de suas crônicas e notas sociais,
impunham valores, normas e criavam realidades, num
processo que transformaria a cidade em cenário e as
frações da classe dominante, associadas às agências do
Estado e às atividades urbanas, tais como setor de serviços,
comércio de exportação e capital financeiro, em seus
atores principais. Assim, foram importantes instrumentos,
desse grupo social, no empenho de naturalizar suas
representações pela imposição de uma determinada forma
de ver e reproduzir o mundo, sobre todas as outras
possíveis.
Consumidas por quem era o seu conteúdo principal, [a
burguesia em ascensão] tais revistas auxiliaram também a
coesão interna do grupo em ascensão social. Com efeito,
veiculavam comportamentos tidos como necessários para
se tornar um bom cidadão, atuando como modelos a serem
279
Museologia e Património – Volume 1

copiados e exemplos a serem seguidos. (Mauad, 2005


p.152-3)

Cláudia de Oliveira60 explica que a modernidade propagada por


Fon-Fon!, Selecta e Para Todos combinava o entusiasmo pelo “novo”
com a melancolia provocada pela perda do passado, sentimentos
partilhados pelos intelectuais que colaboravam para essas revistas
ilustradas, afinados com o simbolismo europeu de inspiração
baudelairiana. Segundo a autora “’ser moderno’ não significava um
rompimento com o passado, porque o futuro representava para eles
um horizonte em transformação, através de uma ação do presente que
se firmava nos exemplos do passado” (Id. Ibid.). Isso significa que
nessas publicações, o presente só se construía na sua relação com o
passado, bem como o nacional em diálogo com o universal. (Oliveira,
2003: 108)
É nessa perspectiva que devemos compreender as
contribuições de Gustavo Barroso sobre o passado e as referências ao
Museu Histórico Nacional, como um lugar de contato com tempos
remotos na cidade do Rio de Janeiro em transformação. Estavam em
sintonia com imagens que remetiam a lugares e práticas que não mais
existiam na cidade moderna, como as fotografias das "palmeiras do
Mangue", publicadas na Fon-Fon!, "representando outra face da
modernidade [...] a memória metafórica de um passado da cidade [...]
memorabília - 'pequenas relíquias da memória pátria'" (Oliveira,
Velloso e Lins, 2010, p. 231). Mas também assumiam o papel de
divulgar práticas modernas que garantiriam distinção aos leitores do
periódico. Seja a visita a museus, conforme costumavam fazer as
“civilizadas populações” do Velho Mundo que se tinha como modelo,
seja o apoio, geralmente via doações de objetos, para um lugar que
buscava preservar vestígios desse passado que estava sendo perdido e
que a coleção de fotografias publicadas na Fon-Fon! apresentava,
gerando "melancolias e recordações, 'provocando saudades e
animando ruínas'" (Idem: 232).

60Recuperado em: http://www.studium.iar.unicamp.br/15/06.html. Acesso


em 30.jan.2018.

280
Museologia e Património – Volume 1

4. A revista Selecta e a divulgação da história contada no MHN

Segundo Cláudia Oliveira, a narrativa de Selecta, assim como a


de Fon-Fon! e Para todos… combinava imagens, como fotografias,
desenhos e caricaturas, com textos em forma de crônicas, poemas,
cartas e notas, conformando uma “narrativa fragmentada metafórica e
irônica que sugere colagem e montagem, na construção de uma
visualidade jornalística moderna” (Oliveira, 2003:82). Selecta, segundo
Sérgio Lamarão, “dava grande atenção ao público feminino –
publicação de receitas, novelas, informações sobre a moda em Paris
etc. – e compartilhava da superficialidade típica da maioria das revistas
da época. Lamarão (2012, p. 133). Acrescentaria aqui o cinema como
um dos temas mais abordados nos exemplares pesquisados, dos anos
1929 e 1930. Comparada à sua irmã mais velha, Fon-Fon!, teve vida
efêmera, circulando entre 1914 e 1930.
A seção “Relíquias Brasileiras” fomentava o que Gustavo
Barroso denominou de “Culto da Saudade” (Barroso, 1912). Em tempos
de perda e apagamento de referenciais do passado, divulgava a história
do Brasil como uma possibilidade de contato com seus vestígios
preservados no MHN, onde os leitores poderiam encontrar com o
pretérito. Embora, o artigo “Symbolos Imperiaes”, publicado no dia 02
de outubro de 1929, seja o primeiro da seção encontrado nos recortes
de Barroso, em exemplar pesquisado na Biblioteca Nacional do dia 25
de setembro do mesmo ano, encontra-se contribuição de sua pena, “A
lança de um Herói”. Ao divulgar um objeto que pertenceu ao Marechal
Osório e encontrava-se em uma das vitrines do MHN, Barroso parecia
não apenas inaugurar a seção “Relíquias Brasileiras”, mas também
participar de uma mudança editorial da revista, conforme escrito:
“SELECTA, na nova vida que hoje inicia, saúda os grandes nomes da
cinematographia brasileira que ornamentam esta página de honra”.
(Selecta, 25/09/1929. Grifo nosso). A referida página é ilustrada com
fotos de 17 homens, entre os quais, Francisco Serrador, da Companhia
Brasil Cinematográphica e Conde Matarazzo, do Programma
Matarazzo.61

61Nesse novo formato, a revista aumenta de tamanho e amplia o leque de


assuntos tratados. Há uma seção voltada para crianças, “Jardim de infância” e
geralmente, trazia em sua primeira página, uma crônica de autoria feminina,
281
Museologia e Património – Volume 1

Ao cotejar exemplares de Selecta da Biblioteca Nacional com o


que foi reunido na Hemeroteca de Gustavo Barroso, podemos afirmar
que a seção Relíquias Brasileiras durou menos de um ano, pois o artigo
“El Cristiano”, publicado em 02 de julho de 1930, encerra as aparições
da coluna na revista. Vale sublinhar que não havia regularidade da
seção no periódico. Ao longo desse período, contamos com 32
contribuições, das quais 24 são encontradas na hemeroteca. Oito
números não contam com a coluna, em datas alternadas
aleatoriamente. Do total, apenas quatro não se referem ao MHN. O
primeiro deles, "Casas Notáveis", divulga a ação do Governo do Ceará
na preservação do patrimônio ao adquirir imóveis antigos e conservá-
los. Entre as casas citadas, há aquela onde nasceu José de Alencar, em
Mecejana. (Barroso, 19/03/1930). Já o segundo, não tem título, mas
sim duas imagens de pedras do sítio arqueológico de “Sete Cidades”, no
município de Piracuruca, Piauí. Consiste em uma resposta a uma
matéria publicada no mesmo periódico, sobre lugares na Europa, nas
Ilhas do Pacífico, na África e no norte da América onde se encontram
formações rochosas com silhuetas de seres humanos e animais,
esculpidas naturalmente. Seu intento era alertar os leitores para
exemplares semelhantes existentes no Brasil, como os sete grupos de
rochas lembrando pequenas cidades, no nordeste do país. Desejava,
com isso, incentivar a valorização do patrimônio nacional. Os outros
dois, “Uma relíquia perdida - a espada de Andresito” (11/06/1930) e
“Outra relíquia perdida - o canhão de Tiraparé” não contam com
imagens, por tratarem de armas que sumiram após tomadas como
troféus aos combatentes derrotados na que ficou conhecida “Guerra de
Artigas” (1816-1820).
Cada edição de “Relíquias Brasileiras” ocupa apenas uma
página. É encimada pelo cabeçalho que a identifica e geralmente
ilustrada com imagens dos objetos ou das salas de exposição do MHN.
O texto relaciona os objetos apresentados com a história do Brasil e
com seus doadores. Na série identificada, vinte e cinco artigos abordam
o período monárquico. Sete são relacionados ao Primeiro Reinado, em

acompanhada da fotografia da escritora, ao centro do texto. As principais


páginas da revista vinham no miolo em papel couchet, ou seja, de qualidade
melhor do que o papel jornal das outras páginas. O cinema ainda ocupava o
espaço nobre da revista.
282
Museologia e Património – Volume 1

especial às campanhas militares da Independência (1822-1823) e da


Cisplatina (1825-1828). Os outros dezoito dedicam-se ao Segundo
Reinado, enfatizando as glórias militares, a biografia dos oficiais da
Marinha e do Exército e aspectos da personalidade e do governo de D.
Pedro II. Em “O exílio do imperador”, Barroso (23/10/1929)
demonstra profundo pesar pelo banimento da família imperial após a
proclamação da República: “O Museu Histórico Nacional relembra em
algumas relíquias a dor dessa separação. Ali se veem reunidos em
pequena sala tudo quanto possa bem recordar a viagem triste do
Alagoas”. Ao mencionar os objetos expostos na sala, enaltece seu
caráter relicário por terem tido contato direto com alguém a ser
cultuado (Pomian, 1983: 59), a exemplo “das cadeiras em que o
Imperador e a Imperatriz se sentavam nos seus camarotes ou na sala
de jantar”. Tais cadeiras, inclusive, estão entre as imagens que ilustram
o artigo. Barroso refere-se ainda à primeira bandeira republicana, que
tremulou no Vapor onde a Família Imperial seguiu para a Europa,
expressando tristeza pela ruptura com um passado considerado
louvável, que o objeto representava: “A nova bandeira de sua pátria
antiga [...] em que somente as cores relembravam o glorioso pavilhão
imperial vencedor em cem batalhas e que cobria de glórias a nação”. O
caráter nostálgico com que aborda esse período indica um desejo pelo
passado, visto como mais estável e próspero, em meio à crise na cena
política republicana. A saudade dos tempos monárquicos no Brasil será
eterna companheira de Barroso em seus escritos sobre história.
Na edição do dia 25 de fevereiro de 1930, Gustavo Barroso
assina o artigo "Lembranças Maçonicas" com foto do gladio maçônico
de d. Pedro I. Comenta a importância da maçonaria no momento da
Independência do Brasil e expõe objetos maçônicos da coleção do
Museu Histórico Nacional que pertenceram a D. Pedro I, como a faixa
bordada a seda e a ouro, o avental de grão-mestre, o malhete de sinais
e o espadim. "Este uma peça finíssima. Lâmina de Toledo. Punho de
metal dourado e filigranado. Todas essas relíquias foram oferecidas [...]
pela benemérita Viscondessa de Cavalcanti" (Barroso, 26 fev. 1930).
Além de procurar utilizar os objetos citados como prova de que a
atividade maçônica no Brasil do primeiro Reinado não foi pequena,
barroso exalta a ação benemérita da Viscondessa de Cavalcanti como
doadora, contribuindo para que o Museu possa preservar objetos que
"contam" a história nacional. A referência à doação não apenas era uma
283
Museologia e Património – Volume 1

forma de homenagear a Viscondessa, mas sobretudo um meio de


incentivar o público leitor a repetir gestos semelhantes, estimulando
um habitus (Bourdieu, 2011) de relacionamento com o museu como
marca de distinção em atendimento a uma “necessidade cultural”
(Bourdieu, Darbel, 2003). Já havia a prática de agraciar os doadores
com o nome das salas de exposição que abrigavam as coleções doadas
(Abreu, 1996). Com o auxílio da imprensa, a homenagem aos patronos
ganhava novos espaços sendo conhecida por um público mais amplo
do que aquele que visitava o MHN.
Nessa mesma direção, o artigo “As armas de nossos avôs”
informa sobre a benemérita ação de Arnaldo Guinle que deveria ser
exemplo para os leitores. Nesse caso, não se tratou da doação de
objetos para o acervo, mas sim recursos financeiros que foram
empregados em melhorias na sala de exposição de armaria.

A sala de armas do Museu Histórico Nacional contém uma


riqueza, é um verdadeiro tesouro para a história das
guerras que o nosso país sustentou com glória no passado,
desde os remotos tempos coloniais. Mobiliada, ladrilhada,
forrada e pintada graças a uma generosa doação particular,
ela se orna com o nome de um benemérito – o Dr. Arnaldo
Guinle. (Barroso, 23 abr. 1930)

Na sala que abrigava as armas dos “nossos avôs” os leitores


deveriam se identificar com um passado comum a todos. Não à toa foi
usado um tom de aproximação familiar no título do artigo,
domesticando a história em uma concepção orgânica de nação que
deveria ser compreendida como uma grande família. Finalizando sua
descrição sobre a sala, Barroso escreveu: “Enfim, toda a história do
armamento no Brasil, permitindo reconstruir épocas brilhantes e sua
técnica militar” (idem). E o Museu seria o lugar de reviver essas
“épocas brilhantes”.
Há dois artigos não divulgam o acervo do MHN, mas sim
objetos que Barroso gostaria que fossem doados para a instituição. São
verdadeiras campanhas para o enriquecimento das coleções. Em "Os
paramentos do Padre Feijó", de 26 de março de 1930, ele comenta que
o Museu fez todos os esforços para adquirir o acervo citado, sob a
guarda da Catedral de Campanha, em Minas Gerais, não obtendo
284
Museologia e Património – Volume 1

sucesso. O artigo é ilustrado com foto — da "casula, da estola e


manípulos com que o Padre Feijó celebrou a missa na cidade, onde
passou a funcionar a Escola Normal Oficial" (Idem) —, doada por
Gastão Penalva ao Museu, o mesmo que escreve sobre sua experiência
ao contato com os objetos, transcritas por Barroso no artigo.
“Lembranças do Conde de Porto Alegre” é mais um artigo sem
imagem. Trata-se da divulgação de uma coleção que Barroso desejava
adquirir para o MHN, junto à família do General Manuel Marques de
Sousa. Dizia ele tratar-se de “um verdadeiro museu de relíquias
históricas que pertenceram a esse herói quase lendário” (Barroso, 25
jun 1930). O artigo era uma forma de compartilhar com os leitores o
esforço “da diretoria do museu junto aos poderes competentes para a
aquisição dessas preciosidades” (Idem). Seis anos após a publicação do
artigo, Barroso alcançou seu objetivo. O Museu Histórico Nacional
recebeu a doação dos objetos listados pelas mãos de Zeno Marques de
Souza Zielinski, um dos descendentes do Conde de Porto Alegre que
também foi militar e dirigiu a Casa da Moeda na década de 1940.62
No conjunto de artigos, há um que se refere à participação
indígena na História do Brasil e outro dedicado aos negros
compreendidos de forma restrita pela chave da escravidão. No
primeiro, “Tacape de Tibiriçá” — que veio a ganhar versão ampliada e
atualizada na seção "Segredos e Revelações da História do Brasil" da
Revista O Cruzeiro — Barroso parte de um objeto do acervo do MHN, a
arma indígena em tela, para enaltecer a biografia do indígena como um
exemplo a ser seguido: "Testemunha e personagem dessas épocas de
grandeza moral, o morabixaba foi o laço que uniu no mesmo desejo de
progresso moral e material o índio bravo e o aventureiro lusitano sob
os braços luminosos da Cruz". (Barroso, 05 mar 1930). Essas palavras
revelam um pouco da ideia barroseana de nação que se funda com a
"civilização" dos índios, via conversão para o catolicismo. Trata-se de
um elogio à colonização como mensagem pedagógica.
Em “lembranças da escravidão”, Barroso divulga a sala Antônio
Prado Júnior do Museu Histórico Nacional, assim denominada não
apenas em homenagem ao então prefeito da cidade do Rio de Janeiro,

62 Conferir Processo de Entrada de Acervo, n. 17/1936. Disponível em:


http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=MHN&pasta=&pesqui
sa=processos. Acesso em 30 jul. 2018.
285
Museologia e Património – Volume 1

Distrito Federal (1926-1930), mas também a seu pai, o Conselheiro


Antônio Prado que integrou o Gabinete de João Alfredo, autor do
projeto da Lei Áurea, recém falecido em 1929. Embora mantendo o
mesmo formato gráfico, a coluna se afasta de um padrão de divulgação
da história a partir dos objetos do acervo do MHN, para se aproximar
de um guia do visitante em fascículos. Ao colecionar as edições de
“Relíquias Brasileiras”, o leitor poderia encadernar e formar um guia
de visitação.63 A imagem dos objetos dá espaço a uma tomada das
galerias. O texto deixa de ser uma narrativa de fatos da história do
Brasil ou sobre seus personagens, tendo os objetos museológicos como
ilustração ou comprovação, para tomar a forma de uma descrição do
ambiente com rápidas citações aos objetos ali expostos. No caso
específico desse artigo, é perceptível certo incômodo em abordar o
tema, pois não condiz com o passado glorioso e civilizado que inundava
as páginas da seção e as galerias do museu:

A escravidão foi um fato de tal relevância na vida brasileira


que não pode ser esquecido nem apagado. No estudo do
nosso passado temos de contar com ele e se sua duração
fez com que nos acoimassem de escravocratas, a culpa não
foi propriamente da nação em si, mas das circunstâncias
que envolveram o seu nascimento, o seu crescimento e a
sua libertação. Enfim, a mancha foi de todo lavada pela
lei de 13 de maio e a ausência de preconceitos de cor e
raça fundiu já na mesma comunhão de pensamento e
ideal os brasileiros de todos os matizes. (BARROSO, 28
mai 1930 - grifo meu)

A citação demonstra o quanto Barroso tenta negar as tensões


na história. Exime a “nação” de qualquer responsabilidade sobre a
escravidão ao culpar as circunstâncias e formula um presente no qual a

63 A produção dos artigos coincide com o trabalho de produção de um Guia


dos visitantes para o Museu Histórico Nacional, conforme informação
prestada no Relatório de Atividades de 1930: “Também a diretoria do Museu
fez um ‘Guia’ para os visitantes, destinado a suprir, temporariamente, a falta
do ‘Catálogo Geral’ em elaboração.” (Museu Histórico Nacional, 1930)

286
Museologia e Património – Volume 1

“mancha” teria sido apagada a partir da Lei Áurea, que teria fundado
uma sociedade igualitária sem “preconceitos de cor”. Na passagem em
negrito se percebe o esforço de pacificação social com base na ideia de
união das raças em prol de um ideal comum. Apesar do desconforto
que o tema provoca, Barroso enfatiza a importância de não se esquecer
esse período:

Entretanto, as recordações dos séculos em que o africano e


seus descendentes arrotearam o nosso território e deram
ao nosso progresso a força de seus braços, devem ser
conservadas para o estudo dos caracteres das
personalidades, dos hábitos, dos costumes, das maneiras
da vida, em suma nas épocas pretéritas. (Idem – grifos
nossos)

Ao comentar sobre a importância da preservação dos vestígios


da escravidão para estudo, Barroso impõe uma clara distinção entre
nação e povo; história e folclore. Coloca-se como parte da nação
quando se refere ao “nosso território” e “nosso progresso”, excluindo
“o africano e seus descendentes” que teriam arroteado a terra,
contribuindo apenas com a “força de seus braços”. A nação se estudava
pela via da História, já os escravizados, “o outro” dessa nação
(Guimarães, 1988: 7), por meio do folclore (Bittencourt, 2003: 164).
Afinal, eram considerados povos sem história, mas com “hábitos,
costumes, maneiras de vida” a serem catalogados, estudados,
conhecidos e divulgados, sob o medo da perda dessa “alma da
nacionalidade”, diante das transformações sociais impostas em nome
modernidade. Processo marcado pela violência (Certeau, 2012)
simbólica e física, especialmente sobre aqueles que resistiam ao
“projeto civilizador” a exemplo dos descendentes de escravizados. É
possível que a sala dedicada às “Lembranças da escravidão” fosse uma
parte do que viria a ser o Museu Ergológico esquematizado na década
de 1940 (Barroso, 1942).

A Sala Antônio Prado Júnior no Museu Histórico foi


destinada às relíquias da escravidão: ídolos africanos,
caxambus, cerâmicas [...] São documentos dum longo
período de nossa existência, característicos, embora
287
Museologia e Património – Volume 1

dolorosos alguns, recordando as fazendas e os senhores


feudais do ciclo do açúcar e do ciclo do café, no
desenvolvimento de nossa existência econômica. E um
pensamento domina esse relicário da escravidão: o de
perpetuar o papel que o negro pelo trabalho e pela dor
representou na constituição da nacionalidade. (Idem)

Com essas palavras, Barroso acaba encontrando um sentido


para a escravidão na justificativa do desenvolvimento econômico dos
grandes latifundiários da cana de açúcar e do café. Por meio dos
objetos ligados à cultura afro-brasileira e à escravização, todos
compreendidos de forma restrita como sendo da “escravidão”, é a
memória da aristocracia “à européia” que está sendo valorizada, tal
como na referência ao indígena Tibiriçá.
O incômodo demonstrado no tratamento do tema na revista
traduz-se, no Museu, em um tímido espaço onde o referido acervo
estava exposto. Não se tratava de uma sala propriamente dita, mas do
vão de uma escada em uma área de passagem, — como é possível
observar na imagem (Figura 1) divulgada no artigo — que anos depois
será apresentado como “Sala Luiz Gama”, no Guia do viajante Rio de
Janeiro e arredores (1939)64. Ali, estava exposto um retrato do
abolicionista que integrava a coleção JJ Raposo, comprada pelo MHN
em 1923. O primeiro catálogo de exposição do MHN (Barroso, 1924)
informa a presença da imagem de Gama na sala “Abolição e exílio”. Por
essas mudanças de espaços e nomenclaturas é possível perceber as
disputas de memória que ocorriam na produção do passado no MHN.
Ora está em jogo exaltar a monarquia pelo seu “bondoso ato de abolir a
escravidão”, ora os louros ficam com um político do presente e a seu
pai, indiretamente, ora a homenagem é prestada a um negro letrado
abolicionista, filho de escravizada liberta.

64 Em trabalho sobre a representação do Museu Histórico Nacional no Guia do

viajante Rio de Janeiro e arredores, apresentado por mim no XXVII Simpósio


Nacional de História da ANPUH, realizado em 2013 em Natal – RN, inferimos
que o texto do Guia foi produzido no Museu, pois caracteriza-se por ser um
texto institucional. (Ver Magalhães, 2013).
288
Museologia e Património – Volume 1

Figura 1: Fotografia da matéria “Lembranças da escravidão”

289
Museologia e Património – Volume 1

Figura 2: Fotografia da “Sala Antônio Prado Júnior” que ilustra o artigo


“Lembranças da escravidão”

5. Algumas considerações

A coluna “Relíquias Brasileiras” circulou durante um período


marcado por uma crise econômica e política no cenário republicano,
muito sentida pelo Museu Histórico Nacional que padeceu com falta de
recursos e com ataques à sua existência. O relatório institucional das
atividades de 1922 (Museu Histórico Nacional, 1923) relata que logo
no início da administração do Presidente Arthur Bernardes, chegou ao
Congresso Nacional uma proposta, elaborada pelo deputado Francisco
de Sá Filho. Sob a justificativa de enxugar os gastos públicos, estava em
jogo a supressão de repartições públicas inauguradas depois de 10 de
agosto de 1922. A proposta não foi aprovada, e Barroso interpretou-a
como uma tentativa de fechamento do Museu, cuja criação não obteve
boa aceitação de alguns setores da sociedade, os quais o consideravam
“mero pretexto para empregos”. O próprio deputado partilhava da

290
Museologia e Património – Volume 1

idéia de que o MHN era uma “onerosa criação do governo Epitácio


Pessoa”.
Nessa perspectiva é possível interpretar as colaborações de
Barroso para a revista Selecta como um meio de conquistar o apoio dos
leitores para a instituição, ao divulgar a história do Brasil situando-a no
MHN com seu acervo. A coluna acabou por se constituir em um espaço
de publicidade do MHN, onde se vendia uma efetiva possibilidade de
visualização do passado, como se fosse possível vivê-lo ao contato com
seus vestígios, bem nos moldes dos museus franceses oitocentistas
analisados por Manoel Luiz Salgado Guimarães:

Os objetos, dispostos segundo um princípio historicista,


assegurariam ao visitante a certeza do passado,
possibilitando assim uma visibilidade do invisível e,
sobretudo, a certeza de sua realidade passada. [...] A
imagem [...] deveria não apenas ensinar, parecendo
agregar o poder de ressuscitar o passado [...] Tornar os
homens do passado novamente presentes ao olhar dos
contemporâneos do século XIX era organizá-los segundo
uma nova visibilidade: aquela que os transformava em
grandes homens a serem lembrados no movimento de
produção de uma identidade nacional francesa.
Ressuscitados pela lembrança, tornam-se os elos de uma
cadeia que articula os homens do presente e do passado
numa associação pela história, necessária à produção de
uma identidade específica. (Guimarães, 2007, p. 26).

Nessa perspectiva, os leitores deveriam ter o seu interesse


despertado para frequentar a instituição, não apenas com o objetivo de
conhecer os testemunhos da história sobre os quais falavam os artigos,
mas também imbuídos da missão de contribuir de alguma forma para a
produção dessa narrativa, caso se interessassem também por algum
tipo de distinção. Contava-se com poucos museus no Brasil, sendo o
MHN o único museu de história na cidade do Rio de Janeiro, então
Distrito Federal. Logo, esperava-se que, da mesma forma que se
visitava e valorizava museus em viagens ao exterior, se passasse a
frequentar o MHN como demonstração de orgulho patriótico. E assim,
Barroso intentava fazer com que seus leitores se tornassem visitantes,
291
Museologia e Património – Volume 1

doadores ou patrocinadores, contribuindo para a consolidação da


instituição que dirigia e, ao mesmo tempo, possibilitando a criação de
uma rede de sociabilidade que para além de garantir a legitimidade
desse projeto de produção do passado, rendia a Barroso capital
simbólico para além dos muros do conhecido “complexo militar do
Calabouço”. As relações de troca formaram um dos principais pilares
da interação do MHN com seus doadores. Esse aspecto foi muito bem
contemplado em estudo de Regina Abreu em A fabricação do imortal ao
valer-se das reflexões de Marcel Mauss sobre a dádiva, para analisar a
doação da Coleção Miguel Calmon pela viúva do político, Alice Calmon
(Abreu, 1996).
Ao conciliar seu ofício de jornalista com sua farta produção
literária e seu cargo de diretor do MHN, Barroso agregava atributos
que lhe conferiam autoridade de especialista (V. BEZERRA, 2014) para
defender e propagar seu projeto de construção do passado e, a partir
dele, o de identidade nacional. Dessa maneira, atuava como um
intelectual mediador (Gomes e Hansen, 2016) divulgando aspectos da
história nacional junto a um público não especializado, abrangente e
heterogêneo, como o que consumia revistas ilustradas como Selecta.
Com esse investimento, os leitores deveriam se sentir atraídos para o
MHN de modo a saciar a curiosidade e a vontade de experiência com
tempos remotos não mais possível no cotidiano, “vendido” nas páginas
do periódico de grande circulação.
A análise da contribuição de Barroso à revista Selecta,
assinando a coluna “Relíquias brasileiras” nos possibilita conhecer a
prática museológica vigente no MHN, o que acabou sendo
caracterizada na historiografia como uma “marca barroseana”.
Conhecemos as escolhas e os processos de musealização dos objetos, o
passado produzido e organizado nas salas de exposição
correspondendo a um projeto de identidade nacional. Percebemos as
estratégias para a projeção institucional com base na divulgação da
instituição junto a um público amplo, bem como as táticas para lidar
com os obstáculos políticos e econômicos para o desenvolvimento da
instituição.
Partindo-se da premissa de que grande parte das fontes
impressas aqui analisadas foram coletadas e organizadas por Barroso
em sua hemeroteca, constatamos o quanto esse intelectual cearense
acabou por atrelar a instituição ao seu perfil pessoal, articulando sua
292
Museologia e Património – Volume 1

trajetória à do Museu que dirigiu por mais de 30 anos. Contribuiu,


dessa forma, não apenas para uma projeção da instituição, mas
buscava o fortalecimento de seu papel como diretor e “intelectual
mediador”, o que deveria lhe render reconhecimento como autoridade
para falar sobre o passado nacional. Passado deveria provocar orgulho
nos leitores e servir de exemplo, um refúgio para se viver numa
República em crise.

Fontes

BARROSO, Gustavo (1925). Amor e política: D. Pedro I e a Marquesa de


Santos. Fon-Fon!, 11 abr. 1925. Cadernos de recortes Gustavo Barroso,
n. 14. Biblioteca do MHN.

BARROSO, Gustavo (1948). Amor e política: as três fases da vida


amorosa do imperador d. Pedro I documentadas em três preciosas
relíquias. O Cruzeiro, 13 nov. 1948. Cadernos de recortes Gustavo
Barroso, n. 60 (vol. 1). Biblioteca do MHN.

BARROSO, Gustavo (1950). D. Pedro I e a Marquesa de Santos. A


Pompadour do Primeiro Reinado – A paixão imperial dita uma carta de
amor e política – Uma sátira em verso do mesmo autor. O Cruzeiro 23
set. 1950. Cadernos de recortes Gustavo Barroso, n. 60 (vol. 2).
Biblioteca do MHN.

BARROSO, Gustavo (1912). Culto da saudade. Jornal do Commércio,


22 dez 1912. Republicado nos Anais do Museu Histórico Nacional, v.
29, p. 32-34, 1997.

BARROSO, Gustavo (1929). Symbolos Imperiaes. Selecta, 02 dez. 1929.


Cadernos de recortes Gustavo Barroso, n. 18. Biblioteca do MHN.

BARROSO, Gustavo (1930). Casas Notáveis. Selecta, 19 mar. 1930.


Cadernos de recortes Gustavo Barroso, n. 19. Biblioteca do MHN.

BARROSO, Gustavo. O exílio do Imperador. Selecta, s/d. Cadernos de


recortes Gustavo Barroso, n. 18. Biblioteca do MHN.

293
Museologia e Património – Volume 1

BARROSO, Gustavo (1930). Lembranças Maçônicas. Selecta, 26 fev.


1930. Cadernos de recortes Gustavo Barroso, n. 19. Biblioteca do MHN.

BARROSO, Gustavo (1930). Os paramentos do Padre Feijó. Selecta, 25


jun. 1930. Cadernos de recortes Gustavo Barroso, n. 19. Biblioteca do
MHN.

BARROSO, Gustavo (1930). O Tacape de Tibyriçá. Selecta, 05 mar.


1930. Cadernos de recortes Gustavo Barroso, n. 19. Biblioteca do MHN.

BARROSO, Gustavo (1930). Lembranças da escravidão. Selecta, 28 mai.


1930. Cadernos de recortes Gustavo Barroso, n. 19. Biblioteca do MHN.

BARROSO, Gustavo (1924). Catálogo geral. 1ª seção: archeologia e


história. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, 1924.

MUSEU HISTÓRICO NACIONAL (1923). Relatório das atividades do


Museu Histórico Nacional, emitido para o Ministro da Justiça e
Negócios Interiores, 1923. Museu Histórico Nacional, Núcleo de Gestão
de Documentos. Catálogo Geral, AS/DG.

MUSEU HISTÓRICO NACIONAL (1930). Relatório das atividades do


Museu Histórico Nacional, emitido para o Ministro da Justiça e
Negócios Interiores, 1930. Museu Histórico Nacional, Núcleo de Gestão
de Documentos. Catálogo Geral, AS/DG.

Bibliografia

ABREU, Regina (1996). A fabricação do imortal: memória, história e


estratégia de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco/Lapa.

ARTIÈRES, Philippe (2013). Arquivar a própria vida. In: TRAVANCAS, I.


ROUCHOU, J & HEYMANN, L. (Org.) (2013). Arquivos pessoais:
reflexões multidisciplinares e experiência de pesquisa. Rio de
Janeiro: Editora FGV.

294
Museologia e Património – Volume 1

BARROSO, Gustavo (1942). Museu ergológico brasileiro. Anais do


Museu Histórico Nacional Rio de Janeiro: Imprensa Nacional/Museu
Histórico Nacional, v. 3, p. 433-448.

BEZERRA, Rafael Zamorano (2014). A Invenção das relíquias.


Dispositivos de autoridade na musealização do acervo do Museu
Histórico Nacional. 2014. Tese (Doutorado em História Social) –
Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, p. 185.

BOURDIEU, Pierre (2011). A Distinção: crítica social do julgamento.


2ed. Porto Alegre: Zouk.

BOURDIEU, Pierre & DARBEL, Alain (2003). O amor pela arte: os


museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre, Zouk.

CERTEAU, Michel de (2012). A beleza do morto. In: CERTEAU, Michel


de (2012). A cultura no plural. Campinas: Papirus, p. 55-85.

FRAIZ, Priscila (1998). A dimensão autobiográfica dos arquivos


pessoais: o arquivo de Gustavo Capanema. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 11, n. 21. Disponível em:
http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/237.pdf. Acesso em 22 out.
2007.

GIRÃO, Rimundo (1987/1988). “Minha saudade de Gustavo Barroso”.


In: Revista da Academia Cearense de Letras. N. 47.

GOMES, Angela de Castro & HANSEN, Patrícia Santos (2016).


Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.

GRAZZIOTIN, Francine (2007). Imprensa: considerações para seu


uso como fonte histórica. Disponível em www.semina.clio.pro.br/4-
1-2006/Francine%20Grazziotin.pdf. Último acesso em 15 ago. 2007.

295
Museologia e Património – Volume 1

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (1988). Nação e Civilização nos


trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de
uma história nacional. Revista Estudos Históricos, n. 1, p. 5-27.

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (2007). Vendo o passado:


representação e escrita da história. Anais do Museu Paulista, São
Paulo , v. 15, n. 2, p. 11-30.

LEJEUNE, Philippe (2008). O pacto autobiográfico: de Rousseau à


Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG.

MAGALHÃES, Aline Montenegro (2012). Gustavo Barroso e o


colecionamento de si. In: Livro do Seminário Internacional Coleções e
Colecionadores. Rio de Janeiro, p.60-68.

MAGALHÃES, Aline Montenegro (2013). Um roteiro a percorrer. O


Museu Histórico Nacional no Guia turístico Rio de Janeiro e arredores.
Anais Eletrônicos do XXVII Simpósio Nacional de História. Natal:
UFRN. Disponível em:
http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1517948154_A
RQUIVO_ANPUH2013.pdf . Acesso em 06 fev 2018.

MAGALHÃES, Aline Montenegro & BOJUNGA, Cláudia Barroso


Roquette-Pinto (2014). Segredos da História do Brasil revelados por
Gustavo Barroso na Revista O Cruzeiro (1948-1960). Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 27, n. 54, p. 345-364.

MAUAD, Ana Maria (2005). Na mira do olhar: um exercício de análise


da fotografia nas revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do
século XX. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 133-174,.

NAVA, Pedro (1972). Baú de ossos. Memórias. Rio de Janeiro: Sabiá.

OLIVEIRA, Cláudia de (2010). VELLOSO, Mônica Pimenta. LINS, Vera. O


moderno em revistas. Representações do Rio de Janeiro de 1890 a
1930. Rio de Janeiro: Garamond.

296
Museologia e Património – Volume 1

NAVA, Pedro (2003). A arqueologia da modernidade: fotografia, cidade


e indivíduo em Fon-Fon!, Selecta e Para Todos…, 1907-1930. Rio de
Janeiro, UFRJ, Tese de doutorado em História Social.

POMIAN, Krzysztof (1983). Coleção. In: ROMANO, Rugiero (org.).


Enciclopédia Einaudi, (vol. 1 – Memória/história), Lisboa: Casa da
Moeda/ Imprensa Nacional.

WEINRICH, Harald (2001). Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira.

297
ISBN 978-989-8797-35-3
©2019, Escola Superior de Educação e Ciências Sociais | Politécnico de Leiria

Você também pode gostar