Cult 251 Parentabilidade e Vulnerabilidades - Varios Autores

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Sumário

coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Patrick Mariano
Wilson Gomes
entrevista Ailton Krenak
dossiê Parentalidade e vulnerabilidades
Apresentação
Reflexões sobre a parentalidade negra
Os pais chegam antes
Quando não há aldeia para criar uma
criança
Sangue não é água, convivência
também não
estante Cult Patti Smith
estante Cult Olga Tokarczuk
colaboraram nesta edição
coluna

Atirar para matar


BIANCA SANTANA

Ágatha Félix, aos 8 anos, estava ao lado da mãe no


transporte coletivo quando foi assassinada com um tiro
de fuzil, em 20 de setembro, no Complexo do Alemão,
Rio de Janeiro. Na madrugada seguinte, um grupo de 10
a 20 policiais militares invadiu o hospital onde Ágatha
foi internada em busca da bala que atingiu a menina. A
equipe médica se recusou a entregar a prova que
poderia ter apontado a autoria do crime. Entretanto, o
exame de balística não identificou de qual arma partiu o
disparo. Segundo o laudo da perícia, o vestígio estava
“inviável para o exame microcomparativo”. Ainda assim,
sabemos que o Estado brasileiro é o autor do crime,
representado por um policial militar com nome e
sobrenome protegidos, que obedecia às ordens do
governador Wilson Witzel de atirar para matar.
Os movimentos de favela do Rio convocaram uma
manifestação no sétimo dia da morte de Ágatha, 27 de
setembro, dia de Ibeji nas religiões de matriz africana, e
de Cosme e Damião no catolicismo popular. Data para
distribuir doces e celebrar a alegria da criança interna
de cada um. No mesmo dia, em São Paulo, a Coalizão
Negra por Direitos e a Convergência Negra chamaram
as pessoas para a Paulista. Havia quase dois policiais
militares para cada manifestante. Clima tenso, com
viaturas e ônibus, armas ostentadas e policiais filmando
cada pessoa. Nada da alegria dos erês.
Assim que o ato saiu do vão do Masp rumo ao
escritório da Presidência, quase na esquina da rua
Augusta, um homem com dreads, que parecia vender
artesanatos, atacou fotógrafos e manifestantes. Forte,
bom lutador, parecia mais um P2 tentando causar
tumulto.
Foi um ato pequeno. Muito pequeno. Cerca de 200
militantes do movimento negro, comissão de direitos
humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
contribuindo para assegurar o direito à manifestação,
imprensa de esquerda. Onde você estava?
Ágatha foi a quinta criança vítima fatal da violência
policial do Rio em 2019. Outras 15 já haviam sido
alvejadas antes dela, 11 sobreviveram. Um
aprofundamento do genocídio que começou muitos anos
antes de 2019. Segundo a Secretaria de Segurança
Pública do Estado do Rio de Janeiro, que registra a
letalidade policial desde 1998, foram registradas 5
mortes por dia entre janeiro e agosto de 2019, mais de
1.200 execuções em 8 meses, número 16% superior ao
de 2018 no mesmo período, o mais alto desde o início da
série histórica.
Mais de 20 anos antes, no mesmo Complexo do
Alemão, ganhou notoriedade o caso Favela Nova
Brasília. Entre 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de
1995, 26 pessoas foram executadas em ações da polícia
civil, algumas delas adolescentes. Os casos não foram
devidamente investigados, por terem sido tratados como
“autos de resistência à prisão”, atualmente chamados de
“homicídio decorrente de oposição à ação policial”.
Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos reconheceu que a violência policial representa
um grave problema de direitos humanos no Brasil e
determinou que o estado do Rio de Janeiro deveria
adotar metas e políticas de redução da letalidade
policial, o que nunca aconteceu. Pelo contrário, o atual
governador sobrevoa favelas para acompanhar os
disparos policiais feitos de helicópteros. A direita
fascista aplaude. E a esquerda nem aparece em
manifestação de repúdio à execução de uma menina de
8 anos.
coluna

Política sexual do choque


MARCIA TIBURI

Há algum tempo, vimos o conhecido apresentador e


proprietário de rede de televisão chamado Silvio Santos
constranger uma menina de cerca de sete anos
perguntando-lhe se ela preferia “sexo, poder ou
dinheiro”. Poucos dias antes, o pastor Marcelo Crivella,
prefeito do Rio de Janeiro, manifestava-se publicamente
tentando proibir a venda de uma graphic novel juvenil
chamada Vingadores porque havia um beijo entre dois
personagens masculinos. Na sequência, a pastora
Damares Alves, ministra de Estado das Mulheres, da
Família e dos Direitos Humanos, falou que depois de
passar 24 horas com alguns jovens, eles não haviam lhe
oferecido maconha, assim como nenhuma garota tinha
colocado um “crucifixo na vagina”.
Os dois pastores estão acostumados a perorar contra
a pedofilia, mas não se manifestaram sobre o empresário
midiático, cujo discurso manifesta abuso de forma
misógina e intimidadora. Já Crivella arrisca-se no
oportunismo: a fala homofóbica serve para reposicioná-
lo midiaticamente para as próximas eleições no contexto
de seu apagamento atual como prefeito. A fala de Alves
impressiona porque consegue ofender os jovens, as
jovens e o próprio cristianismo em um discurso que
incorre em exibicionismo e pornografia. Em todos os
casos, há abuso de autoridade e agressividade. Nesses
exemplos, bem como no vídeo explícito do golden
shower difundido por Bolsonaro, somos vítimas de uma
política sexual do choque.
O sexo surge nos três casos como objeto ou signo de
mistificação pelo choque. É porque o sexo foi raptado
como arma dessa política sexual que o apresentador de
TV passa incólume, assim como os dois pastores que
fazem uso semelhante do significante sexo.
Em todas as situações, eles envolvem crianças e
jovens. E então um jogo perverso se estabelece: crianças
são reduzidas a signo discursivo nas falas dos pastores
políticos, em um projeto de capitalização política.
Bolsonaro, ao defender o torturador Brilhante Ustra em
2016, não podia deixar de dizer “crianças”. A pedofilia
também se torna um tropo no discurso político. Há um
verdadeiro discurso de apelo ao sexo que, na forma
bizarra como tem sido proposto, nos obriga a perguntar
se tais discursos não correm o risco de se tornar, eles
mesmos, algo pedofílico e/ou sexual.
Há algo de autocontradição performativa no ar. Ou
seja, ao pretender denunciar uma violência sexual, o
conteúdo sexual explícito dessa suposta denúncia não
implicaria uma espécie de violência sexual? A tática da
política sexual do choque implica forma e conteúdo. Ela
combate a violência ou cria violência?
Mas o que realmente se combate? Com certeza não é
a pedofilia na qual resvalam discursivamente pela forma
agressiva com que se referem a sexo, a jovens e a
crianças. Por outro lado, o alvo do sexo como arma são
também os Estudos de Gênero, banidos das escolas. A
palavra gênero – como operador crítico, como categoria
de análise – deve ser apagada.
Sexo como fator de mistificação é usado na guerra
contra o gênero, ele mesmo fator de esclarecimento: eis
uma interface dos ataques permanentes do
obscurantismo contra a lucidez, que corresponde, ao
mesmo tempo, à guerra do autoritarismo contra a
democracia.
coluna

As crises e a encruzilhada brasileira


PATRICK MARIANO

A crise econômica que se estendeu de 2014 a 2016


desdobrou-se nas crises política, ambiental e social em
que estamos profundamente submersos. Nesse contexto,
o direito não apenas jogou um papel fundamental, como
esteve no epicentro das decisões que transferiram aos
mais pobres a fatura econômica da crise.
A crise política tem sido uma constante desde a
eleição presidencial de 2014 e também a não aceitação
do resultado por parte do candidato derrotado. O que
decorreu disso é conhecido por todos: inviabilização do
governo eleito por parte do parlamento e do judiciário;
criminalização que aumentou o descrédito e a
desesperança na política; crise de representatividade;
protagonismo e interferência de integrantes das forças
armadas; fraude eleitoral; corrupção e autoritarismo.
A crise ambiental se aprofundou com as políticas de
desmonte e sucateamento dos órgãos ambientais de
proteção e fiscalização, negação de dados científicos,
estímulo de autoridades aos crimes dos madeireiros,
expansão do agronegócio e das mineradoras,
especialmente no cerrado e na região da Amazônia. Em
curto e médio prazo, são imensuráveis e irrecuperáveis
os danos que essa forma predatória de exploração trará
para esta e futuras gerações.
Profundos, cruéis e igualmente graves são os efeitos
sociais da crise econômica para a classe trabalhadora. O
congelamento dos investimentos em saúde e educação
por vinte anos, a precarização do trabalho, o ataque à
proteção previdenciária, o estímulo e a proteção legal à
violência policial instauraram o tempo da incerteza,
medo e instabilidade na vida de milhões de brasileiros.
Essa anatomia da crise brasileira nos últimos anos foi
possível e pôde se consolidar pelo direito. O sistema de
justiça, além de permitir que os direitos sociais fossem
saqueados um a um, induziu o direcionamento do país
para que a crise econômica possibilitasse o achaque e o
avanço do capital sobre a estrutura de proteção social
da Constituição da República de 1988.
No campo do sistema de justiça criminal, foi o mesmo
Supremo Tribunal Federal (STF) que chancelou os
métodos abusivos da Operação Lava Jato, permitiu e
reforçou a criminalização da política, foi indutor do
encarceramento em massa ao restringir o instrumento
do habeas corpus e tornar obrigatória a chamada prisão
em segunda instância, mesmo que para tanto fosse
preciso negar o preceito constitucional da presunção de
inocência.
Infelizmente, a encruzilhada em que o país se
encontra está longe de ter uma saída de emergência
para a classe trabalhadora. No contexto latino-
americano, essa receita levou a Argentina ao chão e está
sendo agora rejeitada pelo voto popular. No Equador,
uma revolta popular tem bloqueado a imposição desse
receituário.
Por aqui, ainda não há sinais de retomada das lutas
populares, mas uma coisa é certa: essas crises e
contradições tendem a se agravar cada vez mais e,
quanto mais tempo o país continuar nessa rota, mais
difícil e dolorida será a solução. Esperar algo do STF (ou
do direito), ou mesmo do processo eleitoral, pode servir
para consolo de alguns, mas a triste realidade é que
essas “soluções” não passam de uma panaceia já bem
repetida nas últimas décadas. Deu no que deu.
coluna

De quantas minorias se faz o apoio


a Bolsonaro?
WILSON GOMES

Já dissemos e repetimos muitas vezes que a onda


bolsonarista, que em 2018 varreu o sistema político
brasileiro e produziu a surpreendente vitória de seu
líder, foi composta de uma curiosa convergência de
vários públicos e algumas minorias políticas, em
decorrência da identificação de alguns sentimentos e
pautas em comum e da adoção de algumas
interpretações de fatos e narrativas compartilhadas. E
continuamos sustentando que o apoio político, popular e
eleitoral a Bolsonaro e ao bolsonarismo é proveniente de
públicos bastante heterogêneos em sua natureza,
origem e pautas, mas unidos ao redor de algumas
agendas, discursos e inimigos comuns. Assim, dá-se o
fato impressionante de que Bolsonaro nem foi eleito nem
é sustentado por nenhuma maioria política ou eleitoral,
mas por várias minorias circunstancialmente ajuntadas
e, sob alguns aspectos pelo menos, precariamente
atadas entre si.
Se essa hipótese estiver correta, tanto o apoio popular
ao governo como seu futuro eleitoral dependem
substancialmente de como vão se manter ou distanciar
da plataforma bolsonarista as diferentes minorias que
eventualmente se aglutinaram para sua eleição e
governabilidade.
As minorias que sustentam o bolsonarismo podem ser
identificadas, de um lado, por pautas, causas ou
agendas, e por outro lado pelos tipos de público
prioritário de tais agendas, ou, enfim, pelos movimentos
ou sentimentos sociais dominantes que estão em sua
origem.
Notem que os sentimentos antipetista e antipolítica
perpassam todos os segmentos de públicos e são o liame
mais forte a atar todos à figura de Jair Bolsonaro, de
modo que uma eventual desagregação da base eleitoral
e popular de Bolsonaro passaria necessariamente por
desatar tais nós. Notem, além disso, que o antipetismo
também é uma pauta que atravessa todas as minorias do
espectro bolsonarista.
O bolsonarismo hardcore inclui o que chamo de
bolsonarismo ideológico e o conservadorismo de matriz
religiosa. No entanto, como se vê no infográfico, não têm
a mesma extensão no que tange às pautas prioritárias,
uma vez que os conservadores religiosos, por exemplo,
refugam ante as armas e a autorização disseminada para
matar, e não há razão para que adotem o
antiambientalismo como projeto político, enquanto o
bolsonarismo ideológico é basicamente um aglutinador
de todas as pautas de todos os públicos que aderiram ao
bolsonarismo. Assim como é fato que este último não
hesitará em abrir mão de qualquer uma de suas pautas,
fora do antipetismo, se os líderes da seita, os bolsonaros
e Olavo de Carvalho, assim o determinarem. A adesão é
à pessoa de Bolsonaro e ao que ela “representa” para
eles. O fato é que o primeiro e o segundo tipo de
bolsonarismo são que constitui a base de resistência da
extrema-direita, e estão prontos para ser seu último
bastião se os outros públicos abandonarem o governo.
Bolsonaro sabe disso e é para eles que fala.
entrevista Ailton Krenak
O tradutor do pensamento mágico
AMANDA MASSUELA

Quando Ailton Krenak pintou a cara de jenipapo, em


plena Assembleia Nacional Constituinte, em setembro
de 1987, estava produzindo uma imagem histórica,
síntese da luta dos povos indígenas pelos seus direitos
no Brasil. “Sangrei dez anos por conta daquele gesto”,
diz ele. “Aquele protesto não pode ser reproduzido,
revisitado. Mesmo nos dias de hoje.” Difícil esquecer o
contraste elegante de seu paletó branco e o rosto
pintado de preto. Foi o ponto alto da vitoriosa campanha
das mais de 300 etnias indígenas que vivem no Brasil
pelo direito simples de existir. O feito, inédito, está
inscrito na Constituição de 1988: o direito de existir
como povo, cultura, território, modo de vida.
Agora, esse direito está novamente ameaçado pela
destruição acelerada da floresta. O governo Bolsonaro
planeja grandes obras na Amazônia sem consultar os
índios, incluindo a regularização do garimpo e da
mineração em suas terras, além de promover o
desmonte ostensivo da política ambiental e dos órgãos
de fiscalização, como a Fundação Nacional do Índio
(Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio). A retórica inflamada do presidente pela
assimilação dos povos indígenas à “sociedade nacional”,
como se eles fossem ameaças à “soberania nacional”,
coloca ainda mais gasolina nessa queimada.
Aos 66 anos, Krenak segue resistindo. Lançou este
ano o livroIdeias para adiar o fim do mundo (Companhia
das Letras) e vive intensa agenda de palestras,
entrevistas e eventos. De sua aldeia Krenak, às margens
do rio Doce, em Minas Gerais – ecossistema destruído
pela lama da mineração –, o filósofo, escritor, jornalista,
ativista e líder de seu povo circula pelo mundo orientado
pela intuição e por seus sonhos, com a urgência de
traduzir para os brancos fragmentos da cosmovisão dos
povos indígenas. “Quando os índios falam que a Terra é
nossa mãe, dizem ‘Eles são tão poéticos, que imagem
mais bonita’. Isso não é poesia, é a nossa vida. Estamos
colados no corpo da Terra. Somos terminal nervoso dela.
Quando alguém fura, machuca ou arranha a Terra,
desorganiza o nosso mundo”, diz Krenak em entrevista à
Cult, realizada em outubro passado, em São Paulo.
Como é ser guiado por um pensamento mágico?
Tem um povo que vive na região do vale do Mucuri, em
Minas Gerais, os Maxacali. Eles são vizinhos dos Krenak,
que estão na bacia do rio Doce. Nosso território, nossas
florestas, foram devastados. O gado entrou lá no começo
do século 20. A única coisa que os mineiros sabiam fazer
era derrubar mata, botar boi e fazer garimpo. Os nossos
parentes Maxacali continuam até hoje cercados por
todas aquelas fazendas, sendo moídos por aquela
violência colonial em volta deles. Mas 90% deles não
falam português e se negam a aprender português –
como uma maneira de continuar vivendo neste mundo,
que são capazes de recriar todo dia. Eles dão nome a
todas as plantas e animais que existiram naquela
paisagem antes de ela ser destruída. Cantam para eles,
invocam a presença deles e criam um mundo animado
para poder habitar. Os Krenak foram várias vezes
arrancados da beira do rio e jogados em outros sítios,
outros lugares, e tivemos que fazer o mesmo. Tivemos
que criar um mundo para poder habitar, paralelo a este
que vocês habitam no cotidiano. É uma orientação que
pode ser pensada como mágica, mas na verdade é o
nosso modo de vida. Enquanto perseverarmos nele,
vamos continuar sendo quem somos. Essa experiência
de experimentar uma consciência coletiva é o que
orienta as minhas escolhas. Se alguém me chama para
fazer uma viagem a algum lugar do mundo, eu espero
sonhar com aquilo. Se eu não sonhar com a viagem ou
com um convite pra sair desse lugar, significa que eu
não vou. Nunca sei o que vou fazer. Da mesma maneira
que nunca preparo o que vou falar em lugar nenhum.
É uma “inconstância da alma selvagem”?
É uma forma de preservar de alguma maneira a nossa
integridade, a nossa ligação cósmica. Estamos andando
aqui na Terra, mas andamos em outros lugares também.
E a maioria dos parentes faz isso, todos fazem. É só você
olhar a produção de alguns desses indígenas mais jovens
que estão hoje interagindo com o campo da arte e da
cultura, publicando, falando. Você percebe neles essa
perspectiva coletiva. Não conheço nenhum sujeito de
nenhum povo nosso que saiu sozinho pelo mundo. Isso
sugere que todo mundo anda em constelação. E eu
também. É como se fosse um módulo que te conduz.
Com o que você tem sonhado ultimamente?
Tenho sonhado com uma sequência tão absurda de
desastres que me lembra quando eu era jovem e
encontrava os velhos, principalmente quando comecei a
visitar as aldeias nas florestas do Acre, de Rondônia, e
os pajés diziam: “Vocês precisam tomar cuidado porque
o mundo está invadindo a nossa existência”. Invadindo.
Eu ouvia os velhos falarem isso há 40 anos, como um
espectador. Até que também comecei a ter os mesmos
sonhos premonitórios que eles, ao olhar as estradas, os
tratores e as motosserras chegando; o barulho delas
derrubando as grandes árvores, a revolta dos rios, os
rios falando. Às vezes com raiva, bravos, às vezes com
sentimento de ofensa. Nós acabamos nos constituindo
como terminal nervoso do que eles chamam de natureza.
Meu corpo pode ter uma reação de vomitar se eu
escutar o barulho de uma motosserra. Aquele barulho
pra mim é uma ameaça. O fedor do diesel, de gasolina.
São cheiros envenenados.
Você é um tradutor entre dois mundos que estão
novamente em conflito extremo, com um deles
querendo acabar com o outro. O que é possível
traduzir neste momento?
Fazer essa mediação entre os que vivem fora e dentro
deste mundo cheio de racionalidade é ocupar um lugar
de constante conflito. Não é confortável. Acredito que
nenhum dos meus outros irmãos que tenha que fazer
isso se sinta bem. É uma constante fustigação do
espírito para ter ciência de onde se está, não se
confundir e ficar perdido, saber de onde veio e ter
alguma perspectiva de para onde se está indo. Cada um
dos nossos povos têm um conduto e, se você ficar nesse
lugar, relaciona-se com outros mundos sem tanta aflição.
Mas é uma experiência involuntária também.
Entendemos que muitos de nós nascem com essa
habilitação. Tem gente que nasceu pra ser caçador, tem
gente que nasceu pra ser guerreiro, ficar ali segurando
a porta do território convocando o povo, convocando
tudo o que ele pode para resistir nesses lugares. Esse é
o lugar de onde a gente fala e habita. A gente não fala
de qualquer lugar. No livrinhoIdeias para adiar o fim do
mundo , eu estava experimentando a ideia de
compartilhar com outras pessoas – que vivem nessa
realidade de um mundo prático – que existem outros
mundos. Se conseguirmos fazer essa comunicação, já
distendemos um pouco o lugar que habitamos. Esse
mundo pragmático em que a gente coexiste é um lugar
de passagem de outros povos, outras mentalidades e
culturas. E não existe só este mundo de concreto, ruas e
cidades; que imprime no corpo da Terra a marca dos
homens como se eles fossem a única existência
inteligente e sensível. Se você conversar com os sábios
dos Krenak, dos Guarani, dos Xavante e perguntar “O
que quer dizer o nome do seu povo?”, eles vão dizer
“ente humano”, “nós”, desmantelando a ideia de
indivíduo e dando oportunidade de conversarmos com o
rio, com a montanha, com outros seres que não são os
eletivos humanos. Porque alguém elegeu este lugar
como se fosse um clube. E, se você quiser fazer parte
desse clube, vai reforçar a predação do planeta andando
pelo mundo como se fosse a única inteligência viva da
Terra. É uma racionalização absurda do pensamento. É
isso que tem sido denunciado como uma espécie de
humanidade-zumbi, uma humanidade petrificada que
nem sabe o que está fazendo, mas continua fazendo. E
isso incide sobre o mundo de maneira tão brutal que
chegamos ao ponto de estarmos agora com esses
mundos em colisão, como se não pudesse existir mais
nenhum lugar da Terra que essa humanidade não possa
invadir. É uma mentalidade que também é alimentada
por uma cosmovisão. E não são só os povos originários
que têm cosmovisão. Os norte-americanos brancos que
foram colonizar o norte da América e vieram implantar a
semente do capitalismo, que assumiram esse lugar de
agentes colonizadores do planeta, também têm uma
cosmovisão.
Que cosmovisão seria essa?
É muito atraente porque é emoldurada pela ideia da
mercadoria que o capitalismo imprimiu na mente e no
coração das pessoas como uma religião. A principal
religião do mundo hoje é o capitalismo. O deus deles é a
mercadoria. E nas religiões dos brancos tem uma
história de que nos primórdios dessa humanidade que se
espalhou pelo planeta como uma praga, o deus deles
ficou muito bravo e destruiu aquele mundo com um
dilúvio, porque o mundo estava sujo. Criou, então, um
mundo novo, mas aquela humanidade já tinha essa
doença de buscar a mercadoria em algum lugar. Ao
longo da história desses brancos, na cosmovisão deles,
também já houve um fim de mundo, e eles olham para
nós com estranhamento quando falamos em fins de
mundo, porque não têm memória. Como diz Davi
Kopenawa no livroA queda do céu (Companhia das
Letras), os brancos escrevem livros porque têm o
pensamento cheio de esquecimento. Acho essa frase de
uma sabedoria tão maravilhosa, porque ele está dizendo
sobre uma humanidade que esqueceu quem é. Foi
cooptada. Isso que a gente chama de capitalismo, na
Idade Moderna, já existia no coração dessas pessoas,
porque o mito de origem dos brancos é um mito de
dominação da Terra. O deus deles mandou eles
dominarem a Terra. Então eles são obedientes, só estão
fazendo o que foi mandado. Os povos nativos de vários
lugares do mundo resistem a essa investida do branco
porque sabem que ele está enganado, e na maioria das
vezes tratam ele como um louco. Sempre olhei essas
grandes cidades do mundo como um implante sobre o
corpo da Terra. Como se pudéssemos fazer a Terra
diferente do que ela é, não satisfeitos com a beleza dela.
A gente deveria é diminuir a investida sobre o corpo da
Terra e respeitar sua integridade. Quando os índios
falam que a Terra é nossa mãe, dizem “Eles são tão
poéticos, que imagem mais bonita”. Isso não é poesia, é
a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra. Somos
terminal nervoso dela. Quando alguém fura, machuca ou
arranha a Terra, desorganiza o nosso mundo. EmIdeias
para adiar o fim do mundo ,eu estou invocando um
pensamento amplo que existe em muitos lugares do
planeta, naquelas vilas remotas do Pacífico Sul, lá no
Ártico, na Terra do Fogo, em toda essa extensão que a
gente acha que é o continente americano; na Europa, na
África, na Ásia, onde ainda existem muitos mundos por
vir. As ideias para adiar o fim do mundo na verdade são
uma janela para outros mundos possíveis. Lembro que
na década de 1990 eu via aquela convocatória para
aqueles encontros, o Fórum Social Mundial, com uma
esperança muito grande de que aquela concentração de
pessoas do mundo inteiro pudesse funcionar como uma
escolinha de reeducação das mentalidades. Mas aquela
proposta não teve a potência e a coragem de confrontar
o capitalismo, e o que a gente viu de lá pra cá é o
capitalismo impregnando o mundo feito a lama tóxica da
mineração que hoje vive na beira do rio Doce, onde vive
minha família, meus netos, meus filhos, as pessoas que
andam comigo.
Dá pra fazer esses mundos diferentes coexistirem
sem uma cosmovisão compartilhada?
Se você imaginar que o tempo de constituir um passo na
direção de uma cosmovisão compartilhada demora eras,
estamos com pouco tempo pra isso, porque a
constatação é que estamos diante de um colapso
socioambiental. Como se um paradigma fundamental
para a ideia extrativista dos humanos no planeta
estivesse se encerrando com um aviso: não dá mais,
vocês não podem mais arrancar petróleo, água e floresta
porque esse planeta não suporta mais a presença de
vocês aqui. Como vamos trabalhar no caminho de
integrar visões de mundo se estamos numa contagem
regressiva da nossa permanência na Terra? A fé na
ciência e na tecnologia está iludindo as pessoas.A queda
do céu , do Davi Kopenawa, eA terra inabitável , do David
Wallace-Wells (Companhia das Letras), falam da mesma
coisa, e um nasceu em Nova York e outro em uma
floresta na fronteira com a Venezuela. Eles não têm
nenhuma troca cotidiana de opinião sobre o mundo, mas
os dois, por caminhos diferentes, chegaram à mesma
conclusão: estamos num fim de mundo. Pelo menos
desse mundo que todo mundo acha que pode saquear.
Se você olhar um lago que não recebe água de fora e
acompanhar ao longo do tempo o que acontece com ele,
vai ver que aquela água apodrece. Estamos passando
por uma transformação assim no planeta, mas a maioria
das pessoas não está vendo. Se tem uma parte de nós
que acha que pode até colonizar outro planeta, significa
que eles ainda não aprenderam nada com a experiência
aqui da Terra. E eu me pergunto quantas Terras vamos
ter que consumir até essa gente entender que está no
caminho errado.
É o alerta que você faz no livroIdeias para adiar o
fim do mundo.
No livro, falei de uma inquietação que eu e o meu povo
sentimos, porque nós estamos vendo a terra fugir
debaixo dos nossos pés. O Watu, nosso rio, esse que no
mapa aparece com o nome de rio Doce, foi massacrado
ao longo de aproximadamente 200 anos até ser posto em
coma. Nós cantamos para o nosso rio, continuamos
conversando com ele – e ele, em sua cumplicidade com a
gente, entra nos nossos sonhos e vem nos curar
enquanto velamos o seu corpo, enlameado. E os
engenheiros, os brancos, ainda insistem nessa conversa
fiada de que vão bombardear o rio com remédio pra ele
sarar. Isso é mentira. Eles não sabem fazer isso. A única
potência capaz de restaurar o rio Doce é a Terra, mas
ela tem que estar com saúde. Se estiver doente, o rio
não vai se recuperar. Se continuarem agredindo o rio,
ele vai refletir a nossa agressão. É isso que o Watu
ensina aos filhos deles nos sonhos. O branco chegou e
começou a tirar a floresta, deixou o rio nu, exposto a
essa circulação humana em volta dele com estradas de
ferro, barragens, com toda essa agressão. O rio tem um
corpo igual ao meu e o seu.
Em 2015 você deu uma entrevista afirmando que
aquele era o pior momento para os indígenas no
Brasil. Continua com a mesma opinião?
Ali a gente vivia o enunciado do pior momento, com
aquela tentativa de desmanchar o reconhecimento
territorial indígena ocorrendo no campo do Legislativo,
das negociações políticas. De 2018 para 2019 entramos
numa terra sem lei. Então é pior numa terra sem lei.
Antes tinha lei. Antes eles tinham que fazer uma medida
provisória, tentar fazer uma emenda na Constituição,
mas agora não precisam de mais nada disso.
Simplesmente botam fogo na Amazônia, param de
demarcar terras, extinguem a Funai, acabam com o
ICMBio. É uma descarga de arrasar. E 2015 foi um
prenúncio disso.
Qual o tamanho da ameaça que Bolsonaro
representa para os modos de vida dos povos
tradicionais?
Eu não gosto de personalizar. O que está acontecendo é
uma ruptura institucional tão grande que personalizar
isso seria dar muito crédito a tanta mediocridade. Não
vejo ninguém com vulto de líder político nem estadista.
Se a gente tivesse um estadista que pautasse o país por
uma política radicalmente contrária a tudo o que
acredito, eu ia dizer que tem um projeto de Estado. Mas
hoje o que nós temos são pessoas violentas ofendendo,
agredindo, mentindo feito loucos e eu não vou dar
resposta a esse tipo de blasfêmia. É melhor ele ir
conversar com o Edir Macedo.
Como vê essa ameaça da assimilação cultural,
promovida em inúmeras declarações de Bolsonaro
e que visa fraturar a espinha dorsal das
comunidades?
Eu penso que cada indivíduo dessa cultura, dessa
civilização que veio para cá saquear o mundo indígena, é
um agente ativo dessa predação. E eles estão crentes,
confiantes, de que estão fazendo a coisa certa. Talvez o
que incomode muito os brancos seja o fato de que o povo
indígena quer viver colado na terra e não admite a
propriedade privada como fundamento. É um princípio
epistemológico. O pensamento vazio dos brancos não
consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo.
Acham que o trabalho é a razão da existência deles. Eles
escravizaram tanto os outros que agora precisam
escravizar a si mesmos. Não podem parar, experimentar
a vida como um dom e o mundo como um lugar
maravilhoso. O possível mundo que a gente pode
compartilhar não tem que ser um inferno, ele pode ser
um lugar bom. E o que estamos vivendo no Brasil nos
últimos anos é uma espécie de surto capitalista, como
uma metástase num organismo que adoeceu. Um
organismo que não consegue buscar água pra beber,
uma medicina saudável; então come mais veneno,
produzindo uma agricultura cada vez mais drogada.
Essa espécie de metástase do pensamento do branco
sobre a Terra é o maior engano.
Como resistir?
A longa história de resistência do nosso povo me faz
acreditar que, quando este mundo acabar, nós vamos
assistir. Porque nós sabemos onde estamos. Os nossos
netos, tataranetos, vão sobreviver a essa experiência
ruim de desencontro que a gente persiste em manter se
repetindo. Esses brancos, eles saíram algum dia, num
tempo muito antigo, do nosso meio. Conviveram com a
gente, depois esqueceram quem eram e foram viver de
outro jeito. Se agarraram às suas invenções,
ferramentas, ciência e tecnologia. Eles se extraviaram,
saíram predando o planeta. Então a gente se reencontra
e há uma espécie de ira por termos permanecido fiéis a
um caminho aqui na Terra que eles não conseguiram
manter. Ficam horrorizados e dizem que somos
preguiçosos, que não quisemos nos civilizar. Como se
“civilizar-se” fosse um destino. Isso é bobagem, uma
religião deles. A religião da civilização. Eles mudam de
repertório, mas repetem a dança. A coreografia deles é a
mesma. É pisar duro sobre a Terra. A nossa é pisar leve,
bem leve, sobre a Terra.
O perspectivismo ameríndio do antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro trata dessa integração
“homem-natureza”.
Ainda bem que no mundo dos brancos algumas pessoas
já conseguiram fazer essa travessia, e de cá, deste outro
lado, junto com o nosso povo, traduzem para o
pensamento do Ocidente visões como essa, que são
chamadas de perspectivismo indígena ou ameríndio. É
uma convocatória para pensar de outro jeito, para estar
no mundo de outro jeito, admitir outro jeito de estar no
mundo. Ou você ouve a voz de todos os outros seres que
habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra
a vida na Terra. As pessoas que estão guerreando contra
o meu povo estão guerreando contra a vida na Terra.
Quando me lembro disso, eu me fortaleço, fico forte. E
não vejo nada que pode ameaçar este lugar que nós
habitamos.
São mais de 500 anos de resistência, e vocês não
estão sós; há o cacique Raoni e o xamã Davi, e há
milhares de jovens como a sueca Greta Thunberg,
do movimento das greves climáticas.
Outro dia eu vi que alguém publicou uma matéria
extensa para ofender essa menina, dizendo que ela
estava sendo manipulada. Dizem a mesma coisa do povo
indígena. Dizem que o chefe Raoni não sabe o que fala,
que os outros mandam ele falar. É uma ofensa contra
uma pessoa, um ser coletivo, que ofende a todos nós.
Aquela menina e aquele ancião estão falando a mesma
coisa. Em línguas diferentes, em lugares diferentes.
Então, ainda bem. Já tem dissidência no mundo dos
brancos.
Você é liderança Krenak, jornalista, educador,
filósofo. Quem é Ailton Krenak hoje?
Eu não tenho essa compreensão do que faço. Assim
como não planejo o que faço, também não tenho uma
compreensão de mim mesmo. Acho que foi o Millôr
Fernandes que disse que nunca escreveria uma
autobiografia, porque acha cretino. Eu também acho.
Procuro ser o mais fiel possível ao meu coração, aos
meus ancestrais. Procuro não neutralizar esse lugar, e
entender que cada situação que a gente enfrenta desafia
a gente a ser jornalista, a pensar, a atuar no mundo,
porque estamos nele para interagir com ele. A minha
experiência tem mais interesse na vida, não nos papéis
que as pessoas interpretam. E evito de toda maneira
ficar num lugar de interpretar qualquer coisa.
Reconheço alguma continuidade nesse pensamento
porque é o que aprendi dos nossos velhos. Eles viveram
em outro tempo, mas também tiveram que se refazer pra
poder continuar entendendo o mundo e interagindo com
o mundo no sentido de expandir a vida, e não reduzi-la a
uma mediocridade. Deveria ser a profissão de fé de
qualquer pessoa. Atuar no mundo para a vida continuar
existindo, não como uma reprodução material da vida,
mas como uma continuação da experiência mágica de
existir. Em vez de afirmar “Penso, logo existo”, mudar a
frase para “Eu estou existindo”. Resistindo. É pra isso
que a gente foi feito.
dossiê Parentalidade e vulnerabilidades
Apresentação
VERA IACONELLI

O termo parentalidade surgiu no interessante texto


“Parenthood as a Developmental Phase: a Contribution
to the Libido Theory” (1959), de Therese Benedek, no
qual a psicanalista húngara propõe que a parentalidade
– e não a adolescência – seria a derradeira fase do
desenvolvimento libidinal. Embora Benedek seja a
precursora do uso do termo, ele passou a ser associado
ao psicanalista francês Paul-Claude Racamier nos anos
1960, revelando nossa habitual falha em reconhecer
autorias femininas. O termo retorna com força na
década de 1980 com René Clement e Serge Lebovici,
associado aos estudos das patologias puerperais e seus
efeitos sobre a prole. Foram as pesquisas sobre psicose
infantil e autismo que mais lançaram luz para a
importância da funções parentais na constituição do
sujeito, ao mesmo tempo que produziam efeitos
imaginários preocupantes.
O alerta sobre as condições necessárias ou desejáveis
na formação de crianças psiquicamente saudáveis
derivou para a fantasia contemporânea de uma
parentalidade capaz de oferecer garantias ou, ainda, que
pudesse ser garantida por algo. Assim, temos a
proliferação de oferta de especialistas que, por meio de
livros, palestras e intervenções, garantiriam o “ambiente
suficientemente bom” para bebês, crianças e
adolescentes.
O olhar de julgamento e controle que, segundo
Jacques Donzelot em A polícia das famílias (1977), já
incidia sobre mães e cuidadores desde o século 18,
passa a ganhar contornos surrealistas do Big Brother de
George Orwell, do livro 1984 (1949). O comportamento
de pais e mães é vigiado e comentado nos espaços
públicos por desconhecidos; a forma como educam é
postada para exibição e controle nas redes sociais; o
apelo ao profissional aparece em todas as esferas do
cuidado (alimentação, sono, higiene, comportamento…);
o Estado passa a judicializar o comportamento dos pais.
Se, por um lado, reconhecemos a necessidade de leis e
campanhas de proteção à infância, não podemos ignorar
os efeitos persecutórios e de perda de espontaneidade
que essa onipresença crítica acaba por produzir. Quando
falamos em vulnerabilidades, tenhamos em mente os
efeitos deletérios que a atual vigilância tem sobre pais,
mães e responsáveis.
Os pais vivem um desamparo ansioso, fruto da
desautorização a que estão sujeitos e se sujeitam desde
o início. Desde a concepção in vitro , passando pelo
controle gestacional e pelo parto cirúrgico, homens e
mulheres vão se convencendo de que sem ajuda da
medicina não se procria mais. As conquistas da
tecnologia oprimem sujeitos que passam a se considerar
incapazes de assumir a descendência sem a
continuidade do apoio profissional.
Desnorteados diante da avalanche de novidades, os
sujeitos perdem de vista o que funda o humano.
Inúmeros são os fenômenos sobre os quais cabe se
debruçar ao falar em parentalidade e vulnerabilidade
hoje, porém o mais importante é reconhecermos que
nem toda tecnologia do mundo ou mudança de costume
extinguirá o que precisamos para nos fazer humanos em
qualquer época: corpo erógeno, transmissão geracional,
laço social.
A impostura maniqueísta diante de uma parentalidade
performática escancara, no mínimo, dois grandes
equívocos. Um no qual se supõe que a transmissão
inconsciente entre pais e filhos pode e deve ser
controlada pela vontade – fonte de inesgotável
exploração capitalista na forma de consumo de produtos
para “garantir” a relação entre pais e filhos. Pretensão
que não esconde se basear em nossa eterna tentativa de
“higienismo” psíquico.
No outro equívoco se pensa a relação parental como
algo suspenso no tempo e no espaço, sem relação direta
com o laço social e com sua época. Curiosa suposição da
qual nem sempre os próprios psicanalistas escapam e
que ignora que reprodução de humanos é sempre
reprodução do laço social, não de corpos. Mesmo porque
corpos humanos são corpos enlaçados pela linguagem,
antes de tudo. Só existe o corpo sobre o qual se diz. São
esses os nós que nos enlaçam, nos quais tropeçamos ou
ficamos enredados.
É nesse sentido que Thais Garrafa nos lembra que
toda criança precisa ser adotada, sendo filho biológico
ou não. Adoção que se dá como assunção de um lugar de
fato junto ao outro. Mas para lidar com os ruídos
imaginários que as adoções legais podem criar, Garrafa
nos alerta para as intervenções que consideram a lógica
em jogo no ato de adotar e que exigem que estejamos
advertidos da opacidade dos fenômenos. Em outras
épocas, a criança adotada já foi alvo de suspeita e
segredo, para se tornar hoje objeto de idealização – e a
gratidão, exigida da criança, seria a prova da bondade
dos pais. Tal contexto nos obriga a permanecer atentos
em buscar distinguir os caminhos imaginários que
tentam obturar tudo o que remete às origens.
Em seu texto sobre o terceiro excluído da concepção,
Daniela Teperman nos aponta como os fantasmas
rondam as histórias que envolvem doação ou “aluguel” –
no caso do útero – de material genético. A medicina
produz realidades antes inimagináveis e que exigem
nomeações inteligíveis. Os embaraços na tentativa de
produzir a história da origem do sujeito revelam mais
sobre nossas fantasias sexuais infantis do que sobre
óvulos, espermas e úteros. A autora cria
umaoportunidade valiosa para pensarmos essa temática
antes inédita e hoje quase corriqueira, mas não menos
ansiógena. Com esses dois textos, refletimos sobre o
equívoco da transmissão livre de ruídos, livre do
estranho e, portanto, livre do próprio sujeito. Aspiração
distópica de uma transmissão geracional sem
inconsciente!
Do outro lado do equívoco, mas, de fato,
inextricavelmente associado a ele, temos a miragem da
relação pais-bebê – historicamente mãe-bebê – como
passível de ser pensada fora do tempo e do espaço.
Assim, teremos os diagnósticos que imputam à mãe o
fracasso nas relações parentais unicamente a partir de
sua singularidade ou que ignoram que, para a mãe ser a
razão última de todos os males do filho, é necessário que
ela seja a única responsável por ele. Fato que vem sendo
reiterado nos últimos séculos e que Élisabeth Badinter
denunciava – não sem causar escândalo – há 40 anos
com o incontornável Um amor conquistado: o mito do
amor materno (1980).
O que os textos de Roberta Kehdy e Daniela Roberta
Antônio Rosa nos trazem são as questões decorrentes do
esgarçamento do laço social responsável pela
sustentação da parentalidade. Vulnerabilidade social e
racial são temas que se entrecruzam e agravam, sem,
contudo, confundirem-se. Seja da perspectiva do
profissional de saúde, que tem que se defrontar com
seus preconceitos diante da mãe pobre e banal ou do
sociólogo que mapeia as condições da negritude no
Brasil, temos muito que trilhar para chegarmos mais
perto das necessidades reais de nossos cidadãos.
Não são só em relação às políticas públicas, que se
mostram contraditórias com a necessidade de garantias
mínimas para o exercício das funções parentais e que
ignoram as condições nas quais se encontram os adultos
que querem exercê-la. Muitos profissionais ainda
entendem os laços entre pais e filhos como
autoengendrados e sem conexão com os laços sociais de
onde emergem. Ainda sustentam velhos paradigmas da
boa mãe, que não levam em consideração a transmissão
geracional e os valores culturais.
Falar sobre parentalidade e vulnerabilidades é
sobrepor dois campos de fragilidades e potenciais. De
um lado temos as condições sociais nas quais pais, mães
e cuidadores se sustentam para estar lá para bebês,
crianças e jovens; de outro, temos os desafios que cada
sujeito em sua singularidade deverá enfrentar para
estabelecer essa relação.
Numa época em que somos regidos pelo discurso
capitalista, proposto por Lacan em OSeminário, livro 7: a
ética da psicanálise (1988) como o discurso que não faz
laço, há que se perguntar que tipo de laço podemos e
queremos reproduzir ao colocar sujeitos no mundo.
Ao pensar na transmissão singular que cada sujeito
imprime em sua descendência, cabe refletir sobre a
sustentação das ficções necessárias para fazermos borda
no insondável da origem. Somos feitos de histórias que
precisam ser contadas de novo e de novo e de novo, para
que o novo possa advir.
Neste dossiê buscamos discutir, do vasto campo da
parentalidade, algumas questões que o exploram muito
além da relação mãe-bebê, tão insistente quanto
dissimuladora, e das múltiplas responsabilidades em
jogo nas funções parentais.
Reflexões sobre a parentalidade
negra
DANIELA ROBERTA ANTÔNIO ROSA

Uma figura de cuidado parental bastante visível em


nossa cultura é a da mulher negra. Com grande
frequência, ela ocupa um lugar que remonta ao modelo
de exploração escravista e de objetivação de corpos
negros e que é o da mãe preta. Muito comum, se
pensarmos no que Suely Gomes Costa chamou de
“maternidade transferida”, no texto “Proteção social,
maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva”
(2002). Transferência que se fazia inclusive relegando
ao desamparo os filhos e filhas biológicos dessas
mulheres que, muitas vezes, nutriam a prole de seus
patrões em detrimento de sua própria. Essa realidade
está retratada de forma contundente em um quadro do
artista plástico piauiense Lucílio de Albuquerque (1877-
-1939) que faz parte do acervo do Museu de Belas Artes
de Salvador: Mãe preta , de 1912. Nele, uma mulher
negra amamenta um bebê branco enquanto olha
melancolicamente para uma criança negra, certamente
seu próprio filho, repousada em uma esteira ao lado.
Muitas interpretações de cenas assim falharam ao não
enxergar e ressaltar a extrema violência a que estavam
submetidos mães e filhos e filhas negros nesse tipo de
relação tão comum em nossa sociedade. Comum por
força do modelo de exploração do trabalho escravo, que
tornava tal função inerente ao papel dessas mulheres,
mas que ultrapassou as fronteiras da sociedade
escravista vindo habitar nosso cotidiano – tendo em vista
a predominância de mulheres negras no trabalho
doméstico no Brasil – e nosso imaginário – uma vez que
muitas memórias afetivas trazem as figuras das mães
pretas, amas de leite e iaiás. Vínculos que, embora
possam ter sido mediados pelo afeto, trazem em sua
gênese a relação sujeito-objeto que ainda constitui fator
determinante na expressão de nosso padrão de exclusão
social. Um padrão que se materializa em dados de
diversas ordens estratificados por cor, raça ou etnia.
Os números da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio (Pnad) de 2015 mostram que, apesar de
negros, negras, pardos e pardas representarem 54% da
população brasileira, a participação deles no grupo dos
10% mais pobres era muito maior, chegando a 75%.
Quanto à educação, a taxa de analfabetismo é maior
entre os negros e negras (9,9%) do que entre os
declarados brancos e brancas (4,2 %), ainda de acordo
com os dados da Pnad, dessa vez do ano de 2016. O
Atlas da Violência de 2019 traz dados ainda mais
estarrecedores em relação a esse cenário e nos mostra
que “a violência continua recaindo sobre os corpos
negros em um processo iniciado com a escravidão e que
chega, sem interrupção, a 2017, ano em que 75,5% das
vítimas de homicídios foram indivíduos negros. Isso é o
mesmo que dizer que, para cada indivíduo não negro
que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente 2,7
negros foram mortos”. O que atesta o uso da expressão
“genocídio da população negra”.
Os dados referentes à perinatalidade de mulheres
negras, um dos pontos de partida possíveis para o
exercício da parentalidade, surgem como mais um
exemplo de exclusão. Poucos estudos se dedicaram a
analisar o impacto da raça/cor no padrão de assistência
perinatal de mulheres negras, e uma exceção é o Nascer
no Brasil, pesquisa nacional sobre parto realizada pela
Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz) a partir da
avaliação de prontuários de 23.894 mulheres em
2011/2012, com o objetivo de observar as iniquidades
nessa perspectiva. Alguns recortes da pesquisa revelam
que as mulheres pretas têm maior risco de um pré-natal
inadequado, são mais impedidas de ter acompanhantes
durante o trabalho de parto e o parto (direito garantido
pela lei 11.108 de 7 de abril de 2005) e também são as
que mais peregrinam em busca de maternidade para o
parto. Durante o pré-natal, as pretas também foram
menos orientadas sobre o início do trabalho de parto e
sobre possíveis complicações na gravidez. Observou-se
menor probabilidade de cesariana e também de
intervenções dolorosas no parto vaginal, como a
episiotomia e uso de ocitocina, mas, em comparação
com as brancas, as mulheres pretas receberam menos
anestesia local quando a episiotomia foi realizada.
No entanto, os dados que escancaram os números da
violência contra negros e negras não representam uma
patologia ou conduta desviante de um grupo específico
de indivíduos. Quando falamos de racismo no Brasil, não
se pode apontar um sujeito racista, uma persona em que
se condensaria toda a violência a ser combatida. Essa é
a perspectiva que considera o racismo como algo
estrutural, que o compreende como algo que permeia as
relações e é elemento formador de todas as estruturas,
incluindo as institucionais. Segundo Silvio de Almeida,
no livro O que é racismo estrutural? (2018), pensar no
racismo como um fenômeno estrutural não significa
pensar em um “tipo” de racismo, mas sim concebê-lo
como um fenômeno que “fornece o sentido, a lógica e a
tecnologia para as formas de desigualdade e violência
que moldam a vida social contemporânea”. Ou seja, o
pleno exercício da parentalidade por pessoas negras tem
obstáculos concretos que aprofundam sua
vulnerabilidade.
Com base nessa concepção, a parentalidade negra
pode também ser compreendida como um campo de
disputa narrativa e simbólica. Uma disputa que se
entranha no cotidiano à medida que o cuidado precisa
ser modulado a partir da percepção da violência que
torna os corpos negros as maiores vítimas, da ausência
crônica em espaços privilegiados e em nosso currículo
escolar, por exemplo, e da representação objetificada
desses indivíduos. O cuidado parental nessas condições
se dá a partir de projetos pessoais ou coletivos com
vistas a romper com esse ciclo. Pais e mães se
estabelecem como sujeitos políticos em comunidades
presenciais e virtuais para oferecer um contraponto a
tudo o que seus filhos e filhas poderão encontrar ao
longo de sua formação. Produzem conteúdo e se
organizam a partir desse lugar de cuidadores e
cuidadoras em contextos de vulnerabilidade. Mas há um
número significativo de pessoas que, tendo sido elas
mesmas alijadas de meios materiais e culturais para
ampliar a ação parental, ocupam-se da já hercúlea tarefa
de manter filhos e filhas alimentados e longe das
estatísticas de violência.
Encontram-se amplamente registradas essas
condições de opressão, violência e exclusão a que estão
sujeitos tanto os filhos e filhas do continente africano
forçosamente trazidos para as Américas como seus
descendentes. Há também um acúmulo considerável de
análises críticas desses registros, embora sejam ainda
pouco empregadas na promoção de uma rede de cuidado
que questione nossa estrutura racista. Uma rede
formada não apenas por pessoas diretamente
vulnerabilizadas, mas também pelos grupos que gozam
de privilégios. E assim como as mães escravizadas – que,
conforme narra-se atualmente, nos porões dos navios
negreiros, durante a travessia do oceano,
confeccionavam as bonecas Abayomi (do iorubá,
“encontro precioso”) com pedaços de tecidos de suas
vestes e as ofertavam a seus filhos como forma de
acalento –, mães, pais, cuidadores e cuidadoras negras
também buscam tecer possibilidades para aqueles de
quem cuidam, reconstituindo a experiência ao longo da
travessia do desenvolvimento.
Os pais chegam antes
THAIS GARRAFA

A adoção traz à tona perguntas e fantasias infantis a


respeito do enigma da origem, das nossas heranças
gratas e non gratas e das ambivalências que permeiam
as relações familiares.O clássico “descobriu que era
adotado”, presente em tantas narrativas, exemplifica as
inquietações sobre as diferenças e os descompassos
entre pais e filhos.
A “adoção tardia”, expressão amplamente utilizada
para nomear a adoção de crianças a partir de três anos,
adiciona ingredientes a esses questionamentos. Essa
forma de nomear o fenômeno revela um preconceito,
pois sugere que o prazo “normal” para a adoção estaria
ultrapassado. Essas adoções estariam em condições
especialmente precárias? E o que dizer quando a criança
tem sete ou nove anos? Seria tarde demais para
construírem laços de parentalidade e filiação?
Casos malsucedidos, as chamadas “devoluções”, têm
efeitos devastadores sobre os envolvidos. A criança sofre
um segundo abandono, os adotantes naufragam em seu
projeto de família, técnicos que acompanharam o
processo sentem-se culpados. Envoltos em vergonha e
silêncio, esses casos alimentam um imaginário obscuro
acerca dessas adoções. Alastra-se a ideia de que adotar
crianças seria um passo demasiadamente arriscado.
Discutir os desafios da constituição da parentalidade
nas adoções de crianças é fundamental para enfrentar o
problema coletivamente. Embora em crescente desuso, o
imaginário de “fazer o bem” e a expectativa de que o
filho adotado tenha gratidão aos pais já adquiriu
tamanha consistência que, na Constituição de 1916,
apontava-se a possibilidade de a adoção ser dissolvida
caso o adotado “cometesse ingratidão contra o
adotante”. Essa marca cultural, que associa adoção à
benevolência, prejudica sobremaneira o acolhimento aos
pais que vivem a experiência. Isso ocorre não apenas
porque essa gratidão absoluta nunca se realiza, uma vez
que não existe vida familiar isenta de conflitos e
ambivalências, mas também porque o amparo social
para os desafios da parentalidade é deixado em segundo
plano.
Experiências bem-sucedidas, em que famílias se
constituem a partir da adoção de crianças em idades
variadas, trazem elementos importantes para discutir os
desafios. Atualmente, tem crescido o número de adultos
dispostos a adotar crianças com mais de três anos, e
diversas iniciativas têm sido tomadas para incentivar
essas adoções, que atenderiam 85,49% dos inscritos no
Cadastro Nacional de Adoção. Nesse cenário, proponho
nomear essa forma de entrar na parentalidade como
“adoção de crianças” – para preservar sua diferença em
relação à adoção de bebês, porém sem lhe atribuir
predicados.
A adoção de crianças coloca em cena desafios
particulares, ao lado de outros inerentes à constituição
da parentalidade em qualquer contexto. Com o intuito
de contribuir para aprimorar os cuidados que a situação
demanda, veremos como alguns desses desafios se
desenham e se articulam.
A primeira questão que costuma ser apontada nessas
adoções é se, tendo uma referência prévia de família, a
criança será capaz de conferir a outras pessoas o lugar
de pais. Esse processo costuma levar tempo, pois
implica um trabalho psíquico duplo: de um lado, o luto
em relação às expectativas de retorno à família de
origem e, de outro, o enlace com uma nova relação.
Os motivos que levam uma família a perder a guarda
de uma criança geralmente se engendram em contextos
de extrema vulnerabilidade social e envolvem situações
de violência ou negligência. Durante o período de
acolhimento institucional pelo Estado, diversas
iniciativas são tomadas para possibilitar o retorno da
criança a sua família de origem, como a articulação da
rede de serviços e equipamentos públicos, o trabalho
psicossocial para a reintegração familiar e a busca por
parentes mais distantes que assumam os cuidados com a
criança. A adoção torna-se uma alternativa nos casos em
que todas essas tentativas fracassam.
Embora a perda de esperanças na família de origem
seja trabalhada com a criança na instituição de
acolhimento, essa realidade se concretiza somente com
a adoção. Para muitas, a adoção é esperada e festejada,
porém constitui também um momento de luto. Essa
aparente contradição, frequentemente expressa na
ambivalência da criança com sua nova família, apresenta
aos pais o desafio de suportar as inseguranças para dar
ao filho o tempo necessário para se dispor a esse novo
laço. Essa disposição, conforme descrita por Freud em
1915, coincide com o fim do trabalho de luto, o qual
transcorre de modo doloroso, lento, gradual. Acolher as
dores e o tempo do luto é fundamental para permitir
essa travessia.
O anseio por ser chamado de “mãe” ou “pai” merece
uma consideração adicional. Os pais de bebês são
poupados dessa expectativa, pois seus filhos não sabem
falar! Esse despreparo biológico permite que os pais
tomem o tempo necessário para que esses lugares sejam
construídos. Assumir a posição de pai ou mãe não se
reduz, portanto, à decisão de ter um filho, por isso o
tempo para que esse passo ocorra não se define pela
cronologia dos acontecimentos.
Encontramos nas ideias de Jacques Lacan a respeito
do ato analítico, apresentadas em seu O Seminário, livro
15 , um paralelo para pensar a entrada na posição
parental como um ato que opera a partir da antecipação
de uma certeza, cuja apreensão acontece em uma lógica
interna não racionalizável. O ato não conta com apoio,
reconhecimento ou garantia; sua validação ocorre em
um segundo momento, pelos efeitos que faz operar.
O ato de entrada na posição parental envolve a
disposição para assumir o risco de uma reorganização
existencial que tem a criança como um importante ponto
de ancoragem. Pais e mães que perderam seus filhos dão
testemunho de que a elaboração dessa perda esbarra em
um aspecto intangível e inominável desse laço. Não há, a
propósito, uma palavra que funcione como “ex-mãe/pai”
ou como o correlato de “órfão”, para pais com filhos
falecidos.
A angústia inerente à posição parental muitas vezes
se expressa pelo medo de que o filho morra, desapareça,
seja roubado ou, no caso das adoções, que procure sua
família de origem ou não reconheça seus novos pais
nesse lugar. Em todo caso, porém, não há saída: os pais
chegam antes, isto é, são eles que primeiro assumem a
posição a partir da qual podem designar à criança um
lugar na cadeia transgeracional. A resposta da criança a
essa designação de lugar se apresenta em um segundo
tempo. Algumas devoluções acontecem por uma
inversão nessa temporalidade, quando o reconhecimento
dos pais adotivos pelo filho é colocado como condição
para a entrada na posição parental. Como se fosse
possível ocupar a posição de mãe ou pai sem uma dose
de risco.
A vulnerabilidade emocional vivida nos primeiros
tempos da parentalidade apresenta-se também no
encontro com o desamparo infantil. Nos casos de adoção
de crianças, o estreitamento do laço com o filho
desperta fantasias sobre seu passado: serão superáveis
os traumas de sua história?
Essa questão, embora específica dessas adoções,
coloca em evidência algo presente no campo da
parentalidade de modo geral. Freud demonstrou como o
filho é tomado pelos pais em um lugar idealizado, a
partir do qual se realizam e restauram suas feridas
narcísicas. Sabemos, porém, que essa empreitada é
exitosa e fracassada desde o início. Desde os primeiros
tempos com um bebê, os pais se deparam com as
próprias falhas: não acalmam todos os choros, não
asseguram um sono intocável, não respondem pronta e
invariavelmente a todos os chamados. O anseio por
blindar o filho da experiência de desamparo jamais se
realiza por completo. O acolhimento e o laço com o bebê
não apagam suas dores e desconfortos, porém se
colocam como condições fundamentais para seguir
adiante. Com as crianças adotadas não é diferente.
Às fantasias sobre o passado da criança também se
articulam perguntas sobre o lugar que as transmissões
anteriores terão em sua vida. Para os pais adotantes,
reconhecer-se no filho ou identificar nele traços
familiares funciona como uma espécie de certificado da
ascendência que passam a ter. Contudo o encontro com
sua radical singularidade subjetiva é vivido de forma
particular e pode remeter a elucubrações sobre a
adesividade das influências prévias.
Não é raro que os pais relacionem os traços da
criança que frustram suas expectativas às experiências
na instituição de acolhimento, às identificações com a
família de origem ou à genética. Serão as heranças
dessas relações tão determinantes? Qualquer resposta a
essa pergunta nos primeiros tempos da adoção é uma
antecipação e, nesse sentido, pode servir para
interromper o fluxo de questões abertas nesse processo.
A angústia relativa ao encontro com a alteridade da
criança está presente em qualquer relação entre pais e
filhos. Todavia, essa dimensão se apresenta de modo
mais protegido quando se tem um bebê, pois, nessa
condição, todas as palavras provêm dos pais, o que lhes
assegura um saber sobre o filho. Esse tempo de
enamoramento cria um aconchego para os
descompassos que vêm à frente.
A constituição psíquica depende dessa enxurrada de
palavras, mas também da capacidade de reconhecer que
elas não dizem toda a verdade, faculdade ainda
incipiente nos bebês. Quando começam a falar, as
crianças, via de regra, surpreendem os pais, seja por sua
sagacidade, pela agressividade ou apenas por revelarem
a falência do saber parental. Na adoção de crianças, os
pais se veem expostos a esse descompasso desde o
primeiro instante. Ao mesmo tempo que se dedicam ao
laço com o filho, deparam com a angústia inerente ao
encontro com sua alteridade. Impõe-se, nesse sentido,
uma alternância delicada e trabalhosa entre essas duas
vertentes da parentalidade.
Todos esses desafios evidenciam que, quer se trate ou
não de uma adoção, a constituição da posição parental
expõe a vulnerabilidade emocional inerente a todo
apaixonamento, com requintes de uma viagem sem
volta. Lançar-se a essa experiência envolve, pois, um
passo arriscado. Demasiadamente arriscado.
Quando não há aldeia para criar
uma criança
ROBERTA KEHDY

A psicanálise considera que a parentalidade se dá dentro


do contexto cultural de cada época e necessita do
reconhecimento social para ser exercida. Assim, cabe
perguntar quais condições de laço social temos
oferecido aos pais — mais especificamente às mulheres
— no exercício dessa função.
Em Um amor conquistado: o mito do amor materno
(1980), Élisabeth Badinter apresenta como a atual
idealização ideológica e moralizante da maternidade foi
construída socialmente a partir do século 19, ao
centralizar na figura da mãe “naturalmente devotada” o
cuidado da prole. Esse recorte ideológico se faz ainda
mais presente quando falamos de vulnerabilidade social,
como proposto por Robert Castel em seu As
metamorfoses da questão social: uma crônica do salário
(1995), no qual apresenta esse conceito não relacionado
apenas à baixa renda, mas sobretudo à precarização do
trabalho e, frequentemente, à fragilização das redes de
apoio e das relações interpessoais. Essa condição torna
as pessoas mais sujeitas às exterioridades negativas do
capitalismo. Temos, então, somado ao desamparo
fundamental do ser humano descrito por Freud, a
vulnerabilidade dos cuidadores – sobretudo das mães, a
qual, sendo de ordem social, torna-se fator de risco para
a constituição subjetiva da criança. Vivemos num
momento histórico regido pela lógica do capitalismo, no
qual os filhos ocupam lugar central e, em alguns casos,
entram como mais um item do consumo. O cuidado com
os filhos ainda se encontra muito centrado na figura dos
pais, principalmente da mulher.
Contudo, é importante ressaltar que a vulnerabilidade
social não implica impossibilidade de exercer as funções
parentais e que as condições sociais são importantes,
mas não dão garantias para a consecução dessas
funções. A psicanálise, ao apresentar o que é
minimamente necessário para a constituição subjetiva –
função materna e função paterna –, distingue que há
cuidadores que representam um risco para as crianças
não pela pobreza material, mas por impedimento
psíquico de investir amorosamente, cuidar e proteger.
Quando nos vemos diante de situações de
vulnerabilidade social no Brasil, especialmente
agravadas nos últimos anos com o avanço do
neoliberalismo e a perda de direitos, constatamos que
elas afetam principalmente as mulheres. As relações de
gênero, sabidamente desiguais em nossa sociedade,
baseiam-se em um ordenamento patriarcal,
heteronormativo e misógino e, embora a mulher tenha
pouco poder de decisão, assimetria de direitos e
autonomia reduzida, é ela a responsável pela maioria
dos lares brasileiros.
Em seu artigo “O fio de Ariadne: sobre os labirintos de
vida de mulheres grávidas usuárias de álcool e outras
drogas” (2017), Ariane Goim Rios aponta um paradoxo
entre a visibilidade e a invisibilidade feminina. É
frequente a mulher viver na invisibilidade, já que suas
condições de precarização não são reconhecidas.
Entretanto, a partir do momento em que ficam grávidas,
as mulheres se tornam ultravisíveis, pois recaem sobre
elas julgamentos desqualificantes de uma sociedade que
está mais propensa a condenar moralmente do que a
oferecer acolhimento e cuidado.
Muitas mulheres, principalmente as que são
moradoras de rua, são confrontadas com um olhar
paradoxal: num primeiro período, durante a gestação,
agentes sociais – geralmente os que trabalham nos
consultórios na rua – convocam-nas para fazer laço com
o bebê, insistem na importância do acompanhamento
pré-natal, respeitando o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), que prioriza que os filhos fiquem
com a família de origem. Contudo, frequentemente, não
há escuta para o desejo dessa mulher. Quem verbaliza a
intenção, garantida pela lei, de entregar o filho para
adoção é moralmente julgada, tornando-se a mãe
“desnaturada”. Mas no momento do parto costumam
enfrentar uma postura oposta por parte dos agentes
sociais. São consideradas sem condições de cuidar do
filho, tendo seu direito ao exercício da parentalidade
questionado.
Respaldados por uma ideologia moralizante que
“supostamente” prioriza o bem-estar da criança, alguns
agentes sociais, desconhecendo frequentemente a
história dessa relação, protagonizam situações
extremas, nas quais as mães têm seu direito de
amamentar negado ou são proibidas de ver os filhos. O
risco de serem separadas dos filhos faz com que muitas
moradoras de rua não busquem acompanhamento pré e
pós-natal.
As situações de separação judicial inicial, com os
bebês sendo encaminhados para acolhimento
institucional e as mães tendo a guarda destituída, têm
sido recorrentes no município de São Paulo.Esse
procedimento vai na contramão da legislação que
preconiza o acolhimento da mãe para assegurar-lhe
condições de subsistência e de construção de sua
autonomia, permitindo que acolha e proteja a criança
recém-nascida em condições de vulnerabilidade social.
Ao se acolherem as famílias como um todo, os direitos
da criança seriam considerados de maneira mais
coerente.
Podemos pensar que a constituição da parentalidade é
um período de crise – em seu sentido etimológico, um
momento de risco e oportunidade.E pode representar
para famílias em condição de vulnerabilidade social a
transformação da frequente sensação de impotência e a
possibilidade de encontrar novos rumos para a vida,
sobretudo se contarem com uma rede de sustentação
nessa passagem.
O texto de Sylvain Missonnier, “O início da
parentalidade, tornar-se pai, tornar-se mãe. As
interaçõesdos pais e da criança antes do
nascimento”(2006), mostra que o modo de lidar com os
intensos sentimentos que acompanham gestação, parto
e puerpério têm relação com a rede de apoio, bem como
com os recursos pessoais. Em situação de
vulnerabilidade social, observamos que há rupturas na
rede de apoio, e torna-se, então, fundamental o
fortalecimento dessa rede por meios materiais e
interpessoais. Nesse cenário, um trabalho de
sustentação da função parental a partir da escuta
psicanalítica pode promover uma ressignificação da
própria história e a assunção de novas organizações
subjetivas.
Aqui, ocupa lugar ímpar a posição ética e política da
escuta psicanalítica da singularidade do sujeito a partir
da ressignificação da sua história. Diferenciar com os
familiares e os agentes sociais que a entrega em adoção
não é sinônimo de abandono e que as condições para
exercer a parentalidade não têm relação inequívoca com
as condições materiais pode legitimar as famílias que
expressam o desejo de ficar e cuidar da criança mesmo
em condições sociais precárias e as que não desejam
fazê-lo. Ambas devem receber todo o apoio doEstado
para viabilizar seu projeto parental, como está proposto
pela lei.
Nesse contexto de acompanhamento de pais em
constituição, o psicanalista exerce uma clínica ampliada
em uma função de testemunhar a instauração de um
espaço potencial que, paradoxalmente, une (busca
integrar e dar pertencimento) ao mesmo tempo que
separa (admite uma singularidade intocável). Implica
não só acolhimento e continência, mas também
reconhecimento, pois é vital que todo indivíduo seja
visto, escutado e considerado pelo entorno. Condição
fundamental para sentir-se sujeito, validar percepções e
sentimentos.
Em um grupo de escuta para profissionais realizado
em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e coordenado
por uma psicanalista, uma agente comunitária trouxe a
situação de uma gestante na quinta gravidez que
deixava os filhos soltos pelo espaço da comunidade.
Contou que no início incomodava-se muito com a forma
como a jovem cuidava dos filhos. Os vizinhos a
consideravam uma mãe relapsa ebombardeavam-na com
orientações mal-recebidas. Um dia a agente comunitária
perguntou a essa mulher por que ela deixava os filhos
assim e surpreendeu-se quando a gestante descreveu a
maneira livre e carinhosa como a mãe criara a ela e aos
irmãos, apostando na capacidade deles e deixando-os
encontrar seus próprios caminhos. A partir desse relato,
a agente reconheceu as diferentes maneiras de cuidar e
a importância de respeitar a singularidade de cada um.
Os demais integrantes do grupo se questionaram sobre a
própria postura diante dos usuários do serviço,
reconhecendo que, muitas vezes, assumiam falas
normativas e preconceituosas em vez de possibilitar o
estabelecimento de um vínculo respeitoso.
Quando pensamos a vulnerabilidade social, é
fundamental refletir sobre a responsabilidade do Estado,
das instituições e da sociedade na garantia dos direitos
de mulheres, crianças e adolescentes, e não imputar às
mulheres e famílias a responsabilidade sobre a condição
de vulnerabilidade em que se encontram. Infelizmente,
muitas vezes deparamos com um discurso moralizante,
que isenta o Estado de sua responsabilidade, apesar de
as políticas públicas apontarem em outra direção: a
garantia das condições de vida que permitem a
dignidade e o desenvolvimento saudável.
Sangue não é água, convivência
também não
DANIELA TEPERMAN

Então ela não é do meu sangue!”, diz a avó materna ao


saber que a neta foi gerada por ovodoação. “Mas é o
sangue!”, profere uma técnica da rede de assistência à
infância ao destacar a importância de restituir às
famílias de origem as crianças acolhidas em instituições.
Recorro a situações nas quais o tema dos laços
sanguíneos aparece, escapa, transborda quando o
assunto é a família. Busco discutir a atualidade da
questão do enigma sobre as origens no campo da
família, particularmente nos casos que envolvem a
doação de material genético. Questão que sempre esteve
no seio da família e que retorna – mas será que se
modifica? – quando se trata das novas configurações
familiares e da procriação medicamente assistida.
A doação (de óvulos, de sêmen e também de barriga –
refiro-me à maternidade de substituição, popularmente
chamada barriga de aluguel) constitui uma via para
formar família. Enquanto as adoções são praticadas
desde a Antiguidade, a doação se institui como prática
mais recente, viabilizada pela evolução da ciência no
campo da procriação medicamente assistida (os dois
primeiros bancos de sêmen foram inaugurados nos EUA
e no Japão em 1964). Ambas as práticas vêm permitindo
a formação de novas famílias e o exercício da
parentalidade para homens e mulheres que muitas vezes
não poderiam ter filhos se não dispusessem desses
meios. Ambas as práticas podem ocorrer no campo da
família heteroparental e estão quase sempre na origem
das famílias homoparentais (que podem se formar a
partir de filhos resultantes de relacionamento
heterossexual anterior, da adoção ou do uso de
tecnologias reprodutivas).
A prática de adotar – bem mais absorvida pelo
imaginário social, o que não equivale a dizer que livre de
fantasias e tropeços – já esteve envolta numa atmosfera
de segredo. Quantas pessoas descobriram na
adolescência ou na vida adulta que foram adotadas e a
que custo! Há algum tempo a recomendação vem sendo
contar à criança sobre sua origem, assim como não
estabelecer a adoção como um marco zero na vida da
criança – os álbuns de história publicados pelo Instituto
Fazendo História são um ótimo exemplo de práticas que
vão nessa direção. No entanto, casais que se
submeteram à ovodoação ou à doação de sêmen muitas
vezes recebem orientação de não contar aos filhos que
recorreram a essa prática. É possível que tal orientação
remeta a uma tentativa de naturalização do processo, ou
mesmo de diminuição da importância de tal
procedimento para estabelecer laços de parentalidade e
filiação. Contudo, ao não franquear a possibilidade de
elaboração do que tais procedimentos representam e
das fantasias que suscitam em cada pai e em cada mãe,
tal orientação pode autorizar o estabelecimento de um
segredo sobre as origens da criança e mesmo a tentativa
de apagamento do processo que viabilizou a
parentalidade naquela família.
As famílias homoparentais têm a particularidade de
precisar recorrer a um terceiro para o advento dos
filhos. Nesses casos, à pergunta costumeira da criança
sobre as origens, soma-se a necessidade de encontrar
modos de fazer comparecer esse terceiro, seja uma mãe
ou um pai que não puderam ficar com a criança, seja
alguém que cedeu um óvulo ou sêmen, para que esses
indivíduos pudessem aceder à parentalidade.
Contar-se, para a criança, passa por terem lhe
contado sobre suas origens. As modalidades procriativas
às quais os pais recorreram para seu projeto de filho não
são indiferentes ao adulto, mas o modo como a criança
vai articular esses elementos na sua construção
subjetiva não está dado de antemão. Até mesmo porque
a investigação sobre as origens é tarefa de toda criança,
independentemente do modo como tenha sido
concebida. Tarefa que esbarra no que há de enigmático
no desejo do Outro, de forma que podemos dizer que o
enigma sobre as origens faz furo para todos!
E o que se passa do lado do adulto quando a
parentalidade não se constitui a partir de laços
sanguíneos? Que fantasias estão na origem do receio de
muitos pais e mães em relação aos modos como a
criança foi concebida, e que podem encontrar nas
recomendações médicas um amparo para silenciar o
mal-estar? Será que as pessoas que recorrem às práticas
de doação de material genético temem que a filiação
possa ser questionada? Será que temem que o fato de os
laços com os filhos não serem “de sangue” possa torná-
los mais frágeis, menos significativos ou mesmo menos
legítimos? Vejam que esses temores ganham
consistência quando permeados pela fantasia de que os
laços entre pais e filhos se constituiriam naturalmente
ou estariam garantidos no caso de filhos biológicos.
Elisabeth Roudinesco, no marcante A família em
desordem , publicado em 2002, vem nos lembrar que na
família não há garantias; nem mesmo na família dita
heterossexual, provoca a autora.Não existe uma forma
de organização familiar ideal que possa garantir as
condições necessárias à constituição do sujeito.
A constituição subjetiva na criança não está dada,
tampouco estaria garantida pelos laços sanguíneos entre
pais e filhos. Para que advenha um sujeito naquele que
nasce, é necessário um Outro que, assumindo um lugar
privilegiado para a criança, portando um desejo não
anônimo, ocupe-se de uma transmissão. Essa
transmissão é inconsciente. Lacan, em “Complexos
familiares”, texto publicado em 1938, já destacava o
papel primordial da família na transmissão da cultura
(atuando na primeira educação, na repressão dos
instintos e na aquisição da língua materna). A intenção
do autor, na época, era organizar o campo da família
para afastar definitivamente do acontecimento biológico
a concepção psicanalítica da família.
Podemos dizer que o ser humano nasce duas vezes:
como organismo (o primeiro nascimento refere-se à
reprodução biológica) e como sujeito (falante), o que não
está dado. Para o primeiro nascimento são necessários
progenitores, mas estes não necessariamente assumirão
as funções parentais; aqui reside o incerto, outro modo
de dizer que aqui não há garantias.
O nascimento de um filho não determina
automaticamente a constituição das funções parentais;
estas requerem um processo delicado de reordenamento
simbólico e não estão determinadas pelos aspectos
biológicos daqueles que constituem as figuras parentais.
As funções parentais independem da realidade da
reprodução, ou seja, não progenitores podem operar
como pai e mãe. O doador (de sêmen ou de óvulo) pode
ser anônimo, pois contribui para o nascimento do
organismo. Aquele que se ocupa das funções parentais,
contudo, opera a partir de um desejo especificado,
ancorado em um corpo de carne e osso, transmitindo a
relação singular que mantém com o desejo e a falta e o
testemunho da imperfeição que marca cada um nessa
relação. Como observa o psicanalista Marie-Jean Sauret:
“não há necessidade de família para fazer filhos, mas
para fazer sujeitos, sim”.
A partir das mudanças no campo da família e com os
avanços da ciência, em particular no campo da
procriação medicamente assistida, cada vez mais insiste
a pergunta acerca de como nomear quem se ocupa das
funções parentais. Nesse sentido, o termo parentalidade
é muito bem-vindo, pois permite nomear laços familiares
antes inexistentes, não regidos pela biologia e
independentemente do sexo ou da orientação sexual de
quem se ocupa das funções parentais. O que está em
jogo no termo é a vontade individual de ocupar esse
lugar. O discurso jurídico vem reconhecer e legitimar as
diferentes formas de família e de laço parental, tirando
muitas famílias da clandestinidade e de seus efeitos
desorganizadores para as crianças.
É fundamental que diferenciemos a parentalidade da
escolha de objeto sexual (confusão frequente na escolha
do termo homoparentalidade ). Para a psicanálise, a
parentalidade não é predicável. Os termos monoparental
, homoparental , heteroparental etc. referem-se aos
diferentes arranjos que podem estar na origem das
famílias – contudo, nada nos contam acerca de como os
adultos se ocuparão das funções parentais. Assim, as
famílias podem ser hétero, homo, mono, pluriparentais,
mas no que tange ao lugar que os adultos ocupam em
relação à criação da criança, trata-se sempre de
parentalidade. A pergunta sobre a importância dos laços
sanguíneos na parentalidade e na filiação não se
inaugura com as novas formas de família, nem mesmo
com as novas formas de família nas quais o recurso a um
terceiro faz-se necessário. Entretanto, cabe refletir de
que modo o anonimato que está na raiz das doações (de
sêmen ou de óvulos) pode incidir nas fantasias a respeito
dos laços entre pais, mães e filhos.
Cabe à família, aos que estão presentes na família,
dar testemunho dos ausentes, convocando-os simbolica
ou fisicamente. Introduzir os ausentes no discurso da
família possibilita circunscrever-lhes um lugar. Os
ausentes podem ser inúmeros: os que já morreram, os
que não mantêm laços com a família, os que
abandonaram e os que estiveram na concepção da
criança.
Vejam que “concepção da criança” pode ser lida como
o modo pelo qual a criança foi concebida, mas também
como a concepção que a criança tem a respeito de algo.
Que o doador não tenha um nome nem uma identidade
conhecida pode vir a servir como justificativa para
tentar fazê-lo desaparecer. Como nomear o que não tem
nome, mas que não é sem consequências para a
concepção da criança (tanto para que a criança possa
ter sido concebida como para que a criança possa ter
uma concepção do modo como foi concebida)? Penso que
aqui reside a inventividade necessária a cada família. Ao
inventar contornos para o que não tem nome – contornos
sempre provisórios, já que as perguntas insistem e
retornam conforme a criança vai organizando sua
experiência em uma narrativa –, cada pai, cada mãe vai
estabelecendo com seus filhos os laços de pertencimento
e filiação.
estante Cult Patti Smith

Conversas com fantasmas


DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES

Só garotos , primeiro livro de memórias de Patti Smith,


conta uma bela história de amor e amizade, fala da
busca romântica de dois jovens pela arte (na música, na
literatura, na fotografia), do desejo de fazer da vida um
caminho poético e descreve a excitante boêmia de Nova
York nos anos 1960 e 70. A obra ganhou o mundo e
tornou-se um talismã, um guia para outros jovens. O que
Rimbaud foi para Smith, ela foi para quem a leu, ouviu
ou assistiu, em seus shows inesquecíveis. Depois disso, a
cantora, compositora, fotógrafa e escritora se perdeu
um pouco. Aquela era sua melhor história. Linha M , o
livro seguinte, parece, em comparação, um exercício
disperso de estilo, ainda que traga momentos de rara
sensibilidade, ao falar da morte do marido, Fred “Sonic”
Smith.
Surgem agora no Brasil duas novas publicações da
pitonisa-punk de “Horses”; cada qual segue, a seu modo,
essa toada em que se misturam memória, ficção, um
grau de alucinação poética, belas polaroides e alguma
reflexão literária e filosófica. Devoção , lançado
orginalmente em 2017, é um breve ensaio em que, num
primeiro momento, Patti Smith busca entender como a
própria cabeça funciona, andando de trem pela Europa e
mesclando leituras de Patrick Modiano e Simone Weil,
reminiscências de quando foi com a irmã a Paris e
tentativas de escrever um conto, cujo manuscrito vemos
no final do volume, com uma caligrafia elegante e
sinuosa. O conto, propriamente, surge num segundo
momento: uma história com traços de narrativa infantil,
mas com conteúdo adulto. Um colecionador que adora
Rimbaud se envolve com uma lolita cuja habilidade nos
patins beira o sublime. A leitura é divertida, embora
previsível. Por fim, ela tenta, muito ligeiramente,
entender por que escrevemos.
O recente O ano do macaco é mais caótico – e às
vezes é difícil precisar se por uso consciente da escrita
automática ou por simples força do devaneio. Smith
conta o que aconteceu em 2016, ano em que se tornou
septuagenária. Seu aniversário é em 30 de dezembro e
quase coincide com os fogos da virada. Tudo começa
com um sujeito vomitando em suas botas. Em seguida,
ela conversa com a placa do hotel/motel em que está
hospedada: Dream Inn, numa associação com o gato de
Cheshire da Alice de Carroll. O clima entre a fantasia e a
realidade conduz a leitura até o final. Há muito pouco
sobre música. Quase tudo são impressões banais, um
curioso debate sobre o romance 2666 de Roberto
Bolaño, o luto em forma onírica de dois de seus
melhores amigos – Sandy Pearlman e Sam Shepard – e a
forte decepção com a eleição de Trump. O leitor levanta
os olhos do livro e não sabe bem o que leu, nem se
gostou.
estante Cult Olga Tokarczuk

Revolta dos bichos


DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES

Um história de suspense, com mortes bizarras e a


vingança dos animais contra a civilização predadora.
Elementos como esses já seriam suficientes para
prender a atenção do leitor, mas é mesmo a voz peculiar
da narradora que nos seduz. Janina, professora
aposentada de inglês, entremeia a descrição dos fatos
com despretensiosos achados filosóficos, observações
idiossincráticas da vida ao redor, um humor meio
rabugento – com o qual simpatizamos – e manias
curiosas. Não acredita que os nomes de batismo sirvam
às pessoas, por exemplo. A figura sinistra encontrada
morta nas primeiras páginas é para ela o Pé Grande, por
razões óbvias (haveria também uma conexão diabólica).
Ela mesma detesta Janina – prefere Medeia, com toda a
ressonância mitológica que isso implica. Vive solitária,
como se a natureza a permeasse e a tecnologia lhe fosse
indiferente, com a televisão sempre ligada no canal do
tempo. Presa no rigoroso inverno polonês, numa área
próxima à fronteira com a República Tcheca (área em
que vive a própria autora), a excêntrica senhora tenta
defender os animais da caça ilegal, cuida das casas
daqueles que não resistem ao frio e fogem para a
cidade, e se dedica a fazer mapas astrais em que a
morte tem tanta importância quanto os nascimentos.
Seu pensamento tem paralelo com as visões do poeta
William Blake, cujos versos traduz com ajuda de um
jovem. Volta e meia recorre a uma “filosofia da raiva”,
esse “mini-Big Bang”, único sentimento, para ela, que
traz clareza de propósito, foca intenções e simplifica as
coisas. Assim como a uma poética da dor, em que
associa os males do corpo às tragédias da história e aos
enigmas do cosmos. Mas em tudo o que afirma há ironia
– às vezes explícita, como no divertido capítulo em que
discorre sobre o “Autismo de Testosterona”. Psicóloga de
formação, ativista de esquerda, vegetariana e feminista,
Tokarczuk é autora de dez livros, apenas dois traduzidos
no Brasil. Em 2013, a Tinta Negra havia publicado Os
vagantes , misto de romance, ensaio, história e memória
que recebeu o Man Booker International Award no ano
passado. A Editora Todavia irá relançá-lo em julho de
2020. Adorada pelo público progressista num país
marcado pela divisão étnica, política e cultural, a autora
já teve de ser escoltada por guarda-costas depois de
receber ameaças de morte por integrantes da direita
radical. O motivo maior, além de sua permanente luta
pela tolerância e diversidade, foi o livro The Books of
Jakob (2014), sobre um judeu polonês do século 18 que
se declarava messias e teve muitos seguidores. O Nike,
principal prêmio literário da Polônia, calou em parte a
turba neonazi ao aclamar o romance.
colaboraram nesta edição
Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora,
doutoranda em Ciência da Informação pela USP, autora
de Quando me descobri negra (SESI-SP)
Afonso Pimenta é fotógrafo há quase 40 anos, tendo
acompanhado importantes movimentos culturais das
comunidades e periferia de Belo Horizonte
Bruno Weis é jornalista e coordenador de comunicação
no Instituto Socioambiental (ISA)
Daniela Roberta Antônio Rosa é doula e mestre em
Sociologia pela Unicamp
Daniela Teperman é psicanalista e doutora em
Psicanálise e Educação pela Usp, autora de Clínica
Psicanalítica com bebês: uma intervenção a tempo
(Fapesp/Casa do Psicólogo) e Família, parentalidade e
época: um estudo psicanalítico (Fapesp/Escuta)
João Kehl é fotógrafo e diretor de cena, ganhador do
prêmio World Press Photo
Marcia Tiburi é escritora, professora e doutora em
Filosofia pela UFRGS, autora de Delírio do poder
(Record)
Patrick Mariano é advogado criminalista, mestre em
direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de
Advogados e Advogadas Populares
Roberta Kehdy é psicanalista, professora do
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae e coordenadora da Rede Clínica do Instituto
Gerar
Thais Garrafa é psicanalista e membro da Equipe
Clínica e de Pesquisa do Instituto Gerar
Vera Iaconelli é psicanalista e doutora em Psicologia
pela Usp, autora de Mal-estar na maternidade: do
infanticídio à função materna (Annablume) e Criar filhos
no século XXI (Contexto)
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular
da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A
democracia no mundo digital: história, problemas e
temas (Edições Sesc SP)

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