Integridade, Retidão e Cuidar

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Integridade, Retidão e o Cuidar - Momentos de transformação

Prof. Dr. William Breitbart, chefe do Departamento, de Psiquiatria e Ciências comportamentais do


Memorial Sloan-Kettering Cancer Center

Eu sou médico e me formei em Medicina Interna e Psiquiatria Geral, também me especializei em uma
área chamada Medicina Psicossomática, mais especificamente, no campo da psico-oncologia. Esse é
um novo campo, desenvolvido no últimos 25-30 anos, com foco no cuidado psicossocial dos pacientes
com câncer e suas famílias.

Nos últimos 24 anos, como médico, pesquisador, educador, administrador, escritor, professor e
advogado das causas dos pacientes, me envolvi nesse grande desafio, na missão de cuidar. Em tantos
anos, estive mais presente e dedicando mais tempo aos meus pacientes, do que à minha própria
família.

Através desses anos, comecei a me interessar pelos artigos e teoria de Viktor Frankl (1959/1992), Irvin
Yalom (1980) e outros. Comecei a conceituar e então, a incorporar na minha abordagem terapêutica
com pacientes com câncer; questões existenciais universais de todos os seres humanos. Como ser
humano, (homo sapiens, que busca sentido e sabedoria e é capaz de pensamentos mais amplos), nós,
ao contrário de outras criaturas, tendemos a nos preocupar com três questões básicas:

1) De onde eu vim?

2) Por que estou aqui?

3) Para onde estou indo? (o que está além da morte)

Essas são questões centrais na experiência religiosa e espiritual. Carl Sagan (2006) diria que o ato
quintessencial do ser humano espiritual é a busca de entendimento de um lugar nesse vasto mistério
do universo. Talvez esse seja de fato, o mais básico ato religioso. A palavra “religião” vêm do latim
religio, onde a raiz re (novamente) e ligare (conectar), essencialmente refere-se ao esforço de
reconectar ou ligar junto. O esforço do ser humano para unir essas questões de onde viemos, por que
estamos aqui e para onde vamos, é a essência da questão religiosa.

A busca da transcendência ou conectividade com algo maior que nós mesmos é a maneira mais básica
e simples de uma aventura religiosa (sem importar se somos ateus ou não).

A noção de simetria também advém dessas três questões básicas, principalmente no que se refere à
“para onde estamos indo?” (o que está além da morte) e “de onde viemos?” são questões de fato
similares, senão os mesmos lugares (ou estados de ser ou de não-ser ou nada). Esse conceito de
“simetria”, primeiramente atribuído ao filósofo grego da antiguidade Epicurus (1994) sugere que nós
retornamos para onde viemos. Para os indivíduos em que o sistema de fé religiosa envolve os conceitos
de alma imortal e vida após a morte, podem ser oferecidas respostas confortantes à essas questões.

Para indivíduos que não possuem um sistema de crenças, o conceito de simetria pode ainda prover
algum conforto e amenizar alguns medos associados com a noção de ser relegado ao “Esquecimento”,
depois da morte. Epicurus não acreditava na imortalidade da alma ou na vida após a morte. Ele sentia
que depois da morte, não existia nada, nada a temer, nenhuma dor, nenhuma retribuição, nem
julgamento.

Epicurus, no entanto, acreditava na Simetria, “para onde vamos?” é similar de “De onde viemos?”,
sugerindo que a experiência da morte é a experiência mais parecida com o “antes do nascimento”.
Para a maioria dos meus pacientes que temem a morte, (especialmente, a não-existência, o
esquecimento) pensar que a experiência antes do nascimento não era tortuosa ou angustiante é algo
confortável e, que as experiências depois da morte podem ser boas.

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Eu investiguei, recentemente, a etimologia da palavra: “Esquecimento”, uma palavra frequentemente
usada para descrever o estado que entramos, quando próximos da morte. Tal palavra tem muitas
conotações negativas, como: “obliteração”, aniquilação” e “nada”, entretanto, eu trouxe uma maior
variedade de significados da palavra “Esquecimento”.

Esse significado da palavra relacionada com o conceito de esquecendo e perdoando, é uma anestesia.
Eu tenho começado a pensar em “esquecimento”, como um lugar onde tudo é perdoado e nada é
lembrado, um estado de paz, sem passado, nem futuro, somente o presente.

Yalom (1980) e outros pensadores descreveram algumas preocupações básicas da existência humana:
Morte, liberdade, isolamento e falta de sentido.

A inevitabilidade da morte é um constante temor colocado “embaixo do pano”, por toda a existência
humana. A ansiedade da morte ultrapassa nossos esforços de se adaptar a ela, particularmente nos
momentos de perda, de morte dos que estão próximos a nós, ou quando somos confrontados com as
limitações da vida como; quando somos diagnosticados de um câncer e de outros tratamentos,
durante nossa vida. Um pesadelo é descrito como um sonho fracassado, onde a ansiedade da morte
aparece. Ataques de pânico têm sido descritos similarmente, como exemplos de aparecimento da
ansiedade frente à morte.

Liberdade ou o fato de nós termos a liberdade de fazermos o que quisermos com nossas vidas, de
sermos autores da nossa própria vida, é outra fonte de angústia existencial. O conceito de liberdade
existencial sugere a ausência de estruturas externas impostas no curso e na maneira de viver, (talvez
com exceções de predisposições genéticas que nós já nascemos como: peso, altura, sexo, inteligência,
doenças, etc.), temendo ideias existenciais infundadas e que nós somos inicialmente responsáveis por
nossas vidas.

Os conceitos de responsabilidade, desejo e culpa existencial são derivados da liberdade final. A


necessidade de responder para a vida ou a “responsabilidade” vira central, quando alguém está ciente
da liberdade existencial. Isto externa nossa vontade de que nós criamos apenas a vida que teria sentido
vivermos, para nos tornar a pessoa que queremos. A culpa existencial surge, quando nos distraímos
ou somos impedidos de externar nossa vontade e responsabilidade de viver nosso potencial.

Isolamento ou nosso isolamento final é a questão existencial criticamente mais importante,


particularmente quando contemplamos a nossa morte. O isolamento existencial não se refere ao intra
ou isolamento ou solidão social interpessoal, mas ao realizar que nós devemos encarar o desafio final
da nossa existência sozinha. (ex: nascimento, morte). Esperamos estar acompanhados de todos que
nos amam, mas no final, eles não podem estar em toda a jornada conosco. O isolamento existencial é
amenizado por nossos drives como seres humanos que amamos e somos amados, que transcendemos
e nos conectamos com o que é realmente grande dentro de nós.

Os seres humanos respondem às questões existenciais da falta de significado pela vontade,


procurando e criando significados com o propósito de suportar a própria vida. Na ausência de um
sentido da vida óbvio, externamente imposto, buscamos um significado em um mundo incerto e
infundado. Essa busca de sentido gera o sentido de valor, quando existe um porquê, existe como.
Frankl (1959/1992) colocou que existem três problemas existenciais inevitáveis na vida (a tríade
trágica): sofrimento, morte e culpa (culpa existencial). A importância do significado nos cuidados no
final da vida.

Meu grupo de pesquisadores vem conduzindo uma série de estudos, examinando a importância do
significado e bem estar espiritual nos cuidados no fim da vida (Breitbart , et all 2000; Nelson, et al,2002;
McClain, Rosenfeld &Breitbart (2003). Nós demonstramos um papel central para o bem –estar
espiritual e, em particular, o significado, como um agente, protegendo contra a depressão,

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desesperança e desejo de apressar a morte no câncer. Nós também achamos que o bem estar
espiritual está significantemente associado com o desespero do final da vida. Intervenções
psicoterapêuticas devem ser desenvolvidas para ajudar pacientes com perda de sentido e
desesperança no final da vida. Nós então, desenvolvemos um jogo de intervenções utilizando os
conceitos de importância do significado na existência humana, de Viktor Frankl.

A importância do bem-estar espiritual e o papel do “significado” em depressão moderada,


desesperança e desejo de morrer em pacientes terminais nos fez focar em tratamentos que não
fossem exclusivamente farmacológicos. Desenvolvendo novas intervenções não farmacológicas
(psicoterapia) poderíamos alcançar algumas questões referentes à perda de significado e bem estar
espiritual.

Os conceitos de Viktor Frankl, de logoterapia, não foram designados focando o tratamento de


pacientes com câncer, no entanto seus conceitos de significado e espiritualidade, puderam
claramente, no nosso ponto de vista, ter aplicações no trabalho psicoterapêutico. Muitos deles,
buscam direções e ajudam a lidar com questões que apoiam o significado, esperança e entendimento
do câncer e impedem a morte no contexto de suas vidas.

A maior contribuição de Frankl para a psicologia humana foi despertar para a consciência de um
componente espiritual da experiência humana e da importância central do significado ( ou busca do
significado), como uma força propulsora ou instintiva na psicologia humana.

Os conceitos básicos de Frankl incluem:

1) sentido da vida: a vida tem sentido e nunca cessa, mesmo nos momentos finais da vida; o significado
pode mudar nesse contexto, mas nunca deixa de existir.

2) busca de significado: o desejo de encontrar um significado na existência humana é um instinto


primário e motivação básica no comportamento humano.

3) livre arbítrio: nós temos a liberdade de encontrar significado na existência e escolher a atitude frente
ao sofrimento.

4) As 3 fontes de significado na vida são derivadas da : criatividade (trabalho, dedicação a causas),


experiências (arte, natureza, amor, relacionamentos, papéis) e atitudes: as atitudes que cada um tem
frente ao sofrimento e problemas existenciais.

5) o significado existe em contexto histórico - passado, presente e futuro e é um elemento crítico para
manter ou aumentar um significado.

Integrando os conceitos de vontade, significado e cuidado eu obtive muitos ganhos e grandes


descobertas terapêuticas nos cuidados com os pacientes com câncer frente a morte, através de meu
trabalho, desenvolvendo uma forma organizada, estruturada de intervenção psicoterapêutica,
centrada no significado.

Entretanto, algo ainda persistia comigo: teria muito mais para ser aprendido e muito mais descobertas
a serem feitas, para trabalhar efetivamente com esses pacientes. Eram necessárias mais
transformações em mim e na minha abordagem junto aos pacientes, daí comecei a direcionar minha
atenção aos trabalhos de filósofos existenciais e vários textos sagrados, para me levarem mais fundo
ainda nessa jornada.

Daí, comecei a mergulhar nos textos do Livro de Jô. Eu foquei em dois temas, que para nós médicos e
profissionais de saúde, têm relevância, pois cuidamos daqueles que sofrem durante o processo da
morte. Primeiramente, fiquei estarrecido com a relevância da experiência do sofrimento de Jó.
Compartilhamos esse sofrimento com tantos pacientes de quem cuidamos.

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Quando Jó foi acometido pela doença em sua pele e ossos, a descrição de sua experiência, lembrou-
me a de um dos meus pacientes com leucemia, que fez um transplante de medula óssea e agora tinha
um sofrimento severo. Jó sentiu sua medula inchar em dor, sua pele estava quebradiça e supurada,
saiu chorando e gritando em desespero, esperando a morte para finalizar esse sofrimento e “Isto foi
exatamente o que experimentei na descrição de meu sofrimento, eu estava rezando para morrer, pois
assim esse sofrimento poderia chegar ao fim”, disse meu paciente, durante nossa conversa sobre Jó.
Em segundo lugar, eu estava perplexo diante dos repetidos conceitos de integridade, retidão,
dignidade. Tais conceitos é que quero explorar hoje aqui e sugerir como conceitos clínicos e
psicoterapêuticos úteis, nos cuidados àqueles que estão sofrendo frente a morte.

Nós, logo encontramos os termos integridade e retidão no Prólogo do poema, onde Deus diz para o
acusador (Satã), “Você reparou em meu servo Jó? Não existe ninguém na Terra como ele: um homem
íntegro e digno, que teme a Deus e evita o diabo”. Atualmente, tais conceitos são comumente
utilizados para descrever Jó como um homem que ofusca o diabo e um homem de integridade e
bondade, devoto, piedoso, que teme à Deus. Como a história do progresso de Jó, os conceitos de
integridade e retidão, retornam inúmeras vezes e, mesmo depois quando mais rico, mais força e
sabedoria são absorvidos por ele.

Nosso próximo encontro com os conceitos de integridade e retidão aparecem, quando rapidamente,
depois de ser dito a Jó, que ele tinha perdido toda a sua riqueza e saúde e todos os seus filhos e filhas
tinham sido mortos, Jó levanta-se, despe suas vestes, raspa sua cabeça e deita- se com o rosto na
poeira, jogando terra sobre sua cabeça.

Então ele diz: “nu, eu vim do ventre da minha mãe e nu, para lá, retornarei. Deus me deu e me tirou e
por Deus eu seja abençoado.” Algumas pessoas podem se fixar no desejo da aceitação de Deus.” Eu,
entretanto, fiquei perplexo com os atos iniciais de Jó:

1) Ele no chão; íntegro, humilde e resignado, na poeira da qual ele havia vindo (o húmus da
humanidade) e 2) despojando-se de suas roupas, simbolicamente, representando a desintegração ou
ruptura da integridade, que era a sua identidade antes de perder tudo o que tinha significado em sua
na vida. As ações de Jó aparentam também o ato similar judeu de “Teshuvah”, ou arrependimento por
um pecado cometido contra Deus.

É muito interessante notar que o termo “Teshuvah” também significa “retornar”, dando a entender
que as ações empreendidas por Jó o conduziram ao encontro com Deus, a reestabelecer o seu estado
primordial de integridade e retidão, apesar e através da resignação. No final, Deus lhe devolve toda a
saúde, a riqueza, provê um número ainda maior de filhos e netos e devolve a identidade de Jó e seu
relacionamento com o transcendente, ou seja, Jó reestabelece o seu estado de integridade e
totalidade.

Eu fiquei interessado em como esses conceitos de retidão e dignidade poderiam beneficiar meus
pacientes. Eu conceituei a retidão, como a manifestação da vontade: quando alguém é capaz de
externar a si mesmo mundo. Externando a livre vontade, no caso de terminalidade;” é a coragem de
continuar vivendo apesar da morte.”

É a coragem de ainda ter desejos, necessidades e pedidos, a despeito da finitude da vida. É reacessar
suas prioridades frente um prognóstico limitado e decidir focar em outras prioridades: na convivência
com a família, no desenvolvimento de um trabalho importante ou algo que lhe seja relevante). Quando
os pacientes são forçados a permanecer deitados na cama por causa de fadiga ou dor incontrolável
(não de pé, retos, mas literalmente deitados) e roubados de sua habilidade de exercer sua vontade,
eles claramente sofrem. O conceito de manter-se íntegro pelo maior tempo possível é um construto
útil de se utilizar no planejamento dos objetivos dos cuidados com o paciente.

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Eu conceituei: íntegro, como: o esforço de preservar sua própria identidade, por permanecer
conectado com tudo que tem sentido, valor e propósito em uma vida, mesmo diante da morte. Ser
íntegro então, representa o esforço de preservar a própria identidade pelo maior tempo possível, a
despeito de todas as perdas e progressão da doença.

Cuidando

Martin Heidegger foi um influente e, de alguma forma, controverso filósofo existencial alemão. Ele
elaborou mais ainda nossa compreensão da natureza (ou experiência) de “ ser”, da intencionalidade
de ser” ( consciência sobre algo), a temporalidade de nossa existência e cada conceito existencial
importante, como: ” responsabilidade” e “angst” (conflito intenso) . Heidegger também descreveu o
que ele chamava de “estrutura do cuidar” de ser (dasein) e “estar no mundo”, que seria
essencialmente o cuidar. O conceito de cuidar e a estrutura de cuidar de Heidegger é complexa, mas
compreendi o conceito de cuidar baseado em duas questões: Por um lado, cuidar , significa que nosso
ser está engajado no mundo como um agente cheio de vontade, com pessoas, causas, ideais que
cuidamos profundamente. Por outro lado, cuidar significa também cuidar de si próprio ou ter cuidado
consigo mesmo. Cuidar de si próprio é a ideia de que devemos nos preservar, de cuidar de nós mesmos
antes de oferecer cuidado ao outro.

Em algumas sessões de psicoterapia em grupo centrada no significado, realizamos um exercício que se


chamava: responsabilidade. Os membros do grupo tinham que responder à questão: “Por quem e pelo
que você é responsável?” Quase todos os pacientes responderam: “Primeiramente, sou responsável
por mim. Se eu não cuidar de mim, não posso ser responsável por mais ninguém”. Eu fiquei surpreso
com essas respostas, pois em minha lista de respostas, nunca tinha incluído cuidar de mim. Concluir
isso não era algo egoísta, eu logo aprendi, que gozando de boa saúde, frequentemente ignoramos isso;
a possibilidade da doença é que nos remete profundamente à essa reflexão.

Eu fiquei pensando muito nos conceitos de integridade, retidão, mas como incorporar o conceito de
cuidar, incluindo o cuidar de si mesmo? Um dia andando, veio em minha mente tais palavras: “Cuidar,
cheio de cuidado, cuidadosamente”. Eu sorri comigo mesmo diante da possibilidade de poder
responder uma questão profunda feita por uma paciente: “Doutor, como posso lidar com a morte?”.
A resposta: “Muito cuidadosamente”

Conclusão

Eu sou um médico, cuja missão é cuidar de pacientes com câncer e suas famílias, também, dispensando
o carinho e cuidado para com a minha própria família. No processo de busca por um significado,
integrando o conceito de vontade, sentido e cuidar dentro de uma abordagem que visa

aliviar o desespero vivido por pacientes frente à morte, tive uma experiência transformadora, a qual
me levou a apreciar a importância de cuidar de mim, da minha família e dos que amo, enquanto ainda
“eu estiver nesse mundo”.

Essas lições sobre a morte são para nos informar o valor da vida, do viver. Nós iremos morrer, mas
podemos apreciar a importância de viver.
Breitbart, W. (2009). Retidão, integridade e cuidado: Como viver frente à morte. Revista
Brasileira de Cuidados Paliativos, 3, 5-15. Recuperado em 14 de setembro, 2011,
de http://www.cuidadospaliativos.com.br/img/din/file/RBCP3.pdf

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