O Filme Ôri
O Filme Ôri
O Filme Ôri
14393/OUV-v20n1a2024-66777
Rafael Garcia Madalen Eiras é Doutorando em Cinema pelo PPGCine/UFF -RJ, Mestre
em Humanidades, culturas e Artes (PPGHCA- UNIGRANRIO (2020). Graduado em
História pela Universidade Cândido Mendes (2015) e Graduado em Cinema e
Audiovisual pela Universidade Estácio de Sá (2007). Além de uma especialização em
Fotografia e Imagem pela Universidade Cândido Mendes (2009). Rafael tem uma
larga experiência como freelance no mercado audiovisual e no momento ele estuda
a interação entre o cinema e a educação.
Afiliação: Universidade Federal Fluminense
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9152399332013877
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8179-2606
•RESUMO
O texto analisa o filme “Ôrí” (1989) dirigido por Raquel Gerber. Obra que através de múltiplas
estratégias de olhar, discute o processo de libertação do povo negro brasileiro. Tendo como fio
condutor a vida da intelectual negra Beatriz Nascimento. Uma autoeacrita ao propor sua visão
de mundo particular, mas também é uma escrita de um povo, de um corpo negro múltiplo. Desta
forma, assumindo uma metodologia que não pretenda ser única, verdadeira, o que se propõem
é um caminho a ser percorrido, percorrido pelo corpo em movimentos de afetos, de espantos,
de dúvidas. Uma metodologia decolonial de análise fílmica, percebendo o filme como um corpo
aquilombado.
•PALAVRAS-CHAVE
Quilombo, cinema, Beatriz Nascimento, decolonial.
•ABSTRACT
The text analyzes the film “Ôri” (1989) directed by Raquel Gerber. A work that, through multiple
looking strategies, discusses the process of liberation of the Brazilian black people. Having as a
guiding thread the life of black intellectual Beatriz Nascimento. A self-author when proposing her
particular worldview, but it is also a writing of a people, of a multiple black body. In this way,
assuming a methodology that does not intend to be unique, true, what they propose is a path to
be followed, traveled by the body in movements of affection, amazement, doubts. A decolonial
methodology of film analysis, perceiving the film as a quilted body .
•KEYWORDS
Quilombo, cinema, Beatriz Nascimento, decolonial.
139
•
1
A historiadora, ativista e poeta Maria Beatriz Nascimento, teve um importante pesquisa sobre
os quilombos, reflexões acerca do racismo e da situação da mulher negra no Brasil. Formada
em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Beatriz Nascimento foi
assassinada em 1995, ao defender uma amiga de seu companheiro violento..
2
Lançado em 1989, pela cineasta e socióloga Raquel Gerber, Ôrí documenta os movimentos
negros brasileiros entre 1977 e 1988, buscando a relação entre Brasil e África, cujo fio condutor
é a história pessoal de Beatriz Nascimento. A obra traça um panorama social, político e cultural
do país, em busca de uma identidade que contemple também as populações negras . Nessa
dinamica apresenta a importância dos quilombos na formação da nacionalidade. Ôrí recupera
junto aos movimentos negros a imagem do "herói civilizador" Zumbi de Palmares para uma
identificação positiva do homem negro na modernidade. A comunidade negra aparece em sua
relação com o tempo, o espaço e a ancestralidade, através da concepção do projeto de Beatriz
que vê o "quilombo" como correção da nacionalidade brasileira.
3
Termo empregado aqui no sentido de ser uma construção narrativa “que justapõe a escrita de
si, na qual o autor manipula a sua própria percepção do tempo para construir o relato pessoal.
Nesse relato temos partes que parecem ficcionais em uma obra que demonstra não apenas a
vida e crescimento do autor, mas a própria construção como escritor. ( SILVA, 2018, p.18)
Ôri significa uma inserção a um novo estágio da vida, a uma nova vida, um
novo encontro. Ele se estabelece enquanto rito e só por aqueles que
sabem fazer com que uma cabeça se articule consigo mesma e se
complete com o seu passado, com o seu presente, com o seu futuro, com
a sua origem e com o seu momento (1989). (Transcrição do filme)
O aquilombamento fílmico
O termo ôri é de origem iorubá. 4 No entanto, o principal referencial de
Beatriz Nascimento no decorrer do filme é a cultura banto 5, como a palavra
Quilombo e suas continuidades históricas. Beatriz cita em um de seus artigos: • 144
4
O termo aplica-se a um dos maiores grupos étnicos e linguísticos da África ocidental, ligados
a uma mesma cultura e tradições, na cidade de Ifé, mas nunca constituíram uma unidade política
(VERGER, 1996).
5
“Família etnolinguística à qual pertenciam, entre outros, os escravos no Br asil chamados de
angolas, congos, cabinda, benguelas, moçambiques etc.” (LOPES, 2004, p. 98).
(...) Eu não quero me elitizar. Agora se meu colega negro quiser se elitizar,
quiser se aburguesar, morar no Morumbi, ele tem o direito. Se formos fazer
um trabalho para tirar o direito do homem ser o que ele quiser, então
faremos. A consciência do quilombo que a Beatriz levanta, não está se
levantando em termos de classes sociais, ainda que o assunto seja
paralelo. (Transcrição do filme)
6
A teorização de Anderson foi proposta no âmbito do nacionalismo europeu, em que a
sociedade europeia estava passando por profundas mudanças que permitiram essa projeção
nacional.
O corpo negro pode ser, também em parte, aquele que foge, mas que
conquista temporadas de tranquilidade, aquele que se recolhe no terreiro
e sai da camarinha refazendo, em movimento, narrativas de divindades
africanas; pode ser o jovem que dança sozinho ou em grupo ao som do
funk, pode ser a mulher ou o homem que delineia suas tranças ou seu
penteado black; pode ser igualmente aquele que se “fantasia” de africano
num desfile de escola de samba. (RATZZ, 2006, p.66)
Conclusão
Como afirma Christian León, o audiovisual pode atualizar a colonialidade
(LEÓN, 2019). Desta forma, estudos de cinema com perspectivas decoloniais
são necessários para que a lógica colonial seja ao menos problematizada, e o
filme “Ôrí” pode ser um importante instrumento para esse fim. O filme também • 152
é um quilombo, onde o espectador é afetado por essa dinâmica plural e
descentrada. Ele é um território, uma prática de olhar o mundo múltiplo, aberto.
Como diz Beatriz ao longo do filme, “é importante a imagem para se
recuperar a identidade, é importante se tornar visível, porque o rosto de um é o
reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de
todos os corpos.” A autora diz enquanto o filme mostra diversos negros e
negras dançando em um baile funk dos anos 1980.
Ponto marcante na obra, é justamente quando ela se volta para a imagem
de Beatriz, em que a narradora passa a ser também a personagem, elaborando
um complexo movimento de identidade e reflexão acerca do ser negro nessa
sociedade. Sobre muitas dessas imagens ela diz não se reconhecer, outras a
lembram momentos tristes, como a fotografia de sua primeira comunhão, que
ela revela ser a imagem de tudo o que ela buscou não ser.
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Como citar:
GARCIA MADALEN EIRAS, R. O filme "Ôri": um corpo decolonial aquilombado. ouvirOUver, [S. l.], v.
20, n. 1, [s.d.]. DOI: 10.14393/OUV-v20n1a2024-66777. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/66777.
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