Guardas! Guardas! - Terry Pratchett
Guardas! Guardas! - Terry Pratchett
Guardas! Guardas! - Terry Pratchett
Sobre a obra:
Sobre nós:
Guardas! Guardas!
1989
Título original inglês
GUARDS! GUARDS!
1989
Grupo
THE CITY WATCH
DEDICATÓRIA
E assim o Grêmio foi incentivado a sair das sombras e construir uma grande
sede, assumir o seu lugar em banquetes cívicos e montar sua própria academia
de treinamento com bolsas para cursos de aprimoramento e certificados do
Município e do Grêmio. Em troca do relaxamento da Vigilância, concordaram,
tentando manter aparência séria, em manter os números de crimes num nível a
ser determinado anualmente. Dessa forma, todos poderiam planejar com
antecedência, pensava lorde Vetinari, e parte da incerteza do caos que é a vida
foi removida.
Pouco depois, o patrício convocou todos os ladrões mais importantes
novamente e disse: – Ah, aliás, tinha mais uma coisa. O que era mesmo? Ah,
sim... Eu sei quem vocês são. Sei onde moram. Sei que tipo de cavalo vocês
cavalgam. Sei onde a esposa de vocês arruma o cabelo. Onde os seus filhos
adoráveis, quantos anos eles têm, agora, nossa, o tempo voa... eu sei onde eles
vão brincar. Então vocês não se esquecerão do nosso acordo, certo? – E sorriu.
E eles não se esqueceram, de certo modo.
De fato, a situação ficou muito satisfatória do ponto de vista de todos.
Demorou muito pouco para que os ladrões-chefes criassem barriga,
começassem a mandar fazer brasões e se reunissem em prédios apropriados, e
não em espeluncas enfumaçadas das quais ninguém realmente gostava. Um
ajuste complicado de recibos e comprovantes garantia que, pelo fato de todos
serem qualificados para receber as atenções do Grêmio, ninguém recebesse
atenção demais, e isso era perfeitamente aceitável – ao menos para os cidadãos
ricos o suficiente para pagar as taxas bastante razoáveis que o Grêmio cobrava
para que sua vida não fosse interrompida. Havia um estranho termo estrangeiro
para isso: formigas-em-tubo-de-esgoto. Ninguém sabia qual era o significado
original, mas Ankh-Morpork atribuiu o seu próprio sentido a ele.
A Vigilância havia gostado, mas a verdade pura e simples era que os ladrões
eram muito melhores em controlar o crime do que a Vigilância jamais
conseguira ser. Afinal, ela tinha que trabalhar dobrado para diminuir um pouco a
criminalidade, ao passo que o Grêmio precisava apenas trabalhar menos. E
assim a cidade prosperava enquanto a Vigilância definhava, como um acessório
desnecessário, um punhado de gente sem condições de trabalhar que ninguém
em sã consciência poderia levar a sério.
A última coisa que qualquer um queria que eles fizessem era decidir-se a
combater o crime. Mas, para ver o chefe dos ladrões incomodado, sempre valia
a pena fazer qualquer coisa – foi isso o que o patrício sentiu. O capitão Vimes
bateu na porta com muito cuidado, porque cada batida ecoava dentro do seu
crânio.
– Entre.
Vimes tirou o capacete, enfiou-o debaixo do braço e empurrou a porta. O
rangido era como uma serra sem corte na parte frontal do seu cérebro. Ele
sempre se sentia desconfortável na presença de Lupino Wonse. Como se poderia
imaginar, sentia-se desconfortável na presença de lorde Vetinari – mas era
diferente, esse desconforto era uma questão de criação. E medo, é claro. Ele
conhecia Wonse desde a infância nas Sombras. O garoto já era promissor. Nunca
foi líder de gangue. Não tinha força ou perseverança para tal. E, afinal, qual era
a graça de ser o líder de uma gangue? Por trás de todo líder de gangue havia
sempre uns dois tenentes lutando por uma promoção. Ser um líder de gangue não
é um trabalho com chances de sucesso a longo prazo. Mas em toda gangue existe
um jovem fraco que os outros deixam ficar porque é ele quem sempre tem
ideias inteligentes, geralmente relacionadas a mulheres idosas e lojas que não
ficam trancadas. Essa era a posição natural de Wonse na ordem das coisas.
Vimes tinha sido um dos que ficam posicionados no meio, o equivalente em
falsete de um homem submisso. Ele se lembrava de Wonse como um garotinho
magro, sempre seguindo os outros com uma calça que ganhara já usada
correndo de um jeito estranho – uns pulinhos que ele tinha inventado para
acompanhar os garotos maiores -, e sempre tendo ideias novas para fazê-los
parar de bater nele, o que era a distração mais comum caso não acontecesse
nada mais interessante. Foi um treino excelente para os rigores da vida adulta, e
Wonse tornou-se bom nisso.
Sim, os dois tinham começado de baixo. Mas Wonse conseguiu subir,
enquanto, como ele mesmo seria o primeiro a admitir, Vimes havia seguido em
frente. Toda vez que parecia estar chegando a algum lugar, falava o que estava
pensando ou dizia algo errado. Geralmente os dois ao mesmo tempo. Era isso o
que o fazia se sentir inquieto perto de Wonse. Era o tique-taque do mecanismo
vivo da ambição.
Vimes nunca soube lidar com a ambição. Isso era algo que as outras pessoas
tinham.
– Ah, Vimes.
– Senhor – disse Vimes, acanhado. Ele nem tentou bater continência, para não
cair. Queria ter tido tempo para beber seu jantar.
Wonse remexia nos papéis sobre a sua mesa.
– Coisas estranhas estão acontecendo, Vimes. Sérias reclamações sobre você,
infelizmente.
Wonse não usava óculos. Se usasse, estaria olhando para Vimes por cima
deles.
– Senhor? – Um dos seus homens da Vigilância Noturna. Parece que ele
prendeu o chefe do Grêmio dos Ladrões.
Vimes oscilou um pouco e tentou se concentrar. Não estava preparado para
esse tipo de coisa.
– Perdão, senhor. Pode repetir? Não entendi direito.
– Eu disse, Vimes, que um de seus homens prendeu o chefe do Grêmio dos
Ladrões.
– Um dos meus homens? – Sim.
Os neurônios dispersos de Vimes tentaram bravamente se reagrupar.
– Um membro da Vigilância! Wonse deu um sorriso alegre.
– Amarrou o líder dos ladrões e deixou-o em frente ao palácio. Está havendo
alguma reclamação a esse respeito, sinto dizer. Tinha um bilhete... Ah... Aqui
está... “Este homem é acusado de Conspiração para cometer um Crime, de
acordo com a Seção 14 (iii) da Lei Geral de Crimes Dolosos, 1678, por mim,
Cenoura Mineraferro.” Vimes olhou para ele com os olhos semicerrados.
– Catorze i-i-i? – Aparentemente sim.
– O que significa isso? – Eu realmente não faço a mínima ideia – disse
Wonse, num tom seco. – E o nome... Cenoura? – Mas nós não fazemos esse tipo
de coisa! – observou Vimes. – Não se pode sair por aí prendendo o Grêmio dos
Ladrões. Mesmo porque ficaríamos nisso o dia todo! – Parece que esse Cenoura
não pensa assim. O capitão balançou a cabeça e estremeceu.
– Cenoura? Não me soa familiar. – O tom de convicção confusa foi suficiente
até mesmo para Wonse, que ficou surpreso por alguns instantes.
– Ele foi muito... – O secretário hesitou. – Cenoura, Cenoura. Eu já ouvi esse
nome antes. Vi escrito em algum lugar. – Ele ficou pálido. – O voluntário, foi isso!
Lembra que eu mostrei a você? Vimes ficou olhando para ele.
– Não havia uma carta de, não sei, de um anão...? – Coisas sobre servir a
comunidade e manter a segurança nas ruas, é verdade. Implorando para que o
seu filho fosse aceito para uma posição modesta na Vigilância.
O secretário vasculhava seus arquivos.
– O que ele já fez? – perguntou Vimes.
– Nada. É isso. Absolutamente nada.
Vimes franziu a testa enquanto seus pensamentos se reformulavam em torno
de um novo conceito.
– Voluntário? – Sim.
– Ele não foi obrigado a se juntar à corporação? – Ele queria fazer isso. E
você disse que devia ser alguma brincadeira, e eu disse que deveríamos tentar
trazer mais minorias étnicas para a Vigilância. Lembra? Vimes tentou. Não era
fácil. Ele tinha uma vaga consciência de que havia bebido para se esquecer. O
que tornava tudo bastante sem sentido era o fato de não conseguir mais se
lembrar do’ que estava se esquecendo. No fim, ele apenas bebia para se esquecer
de beber.
Uma busca pelo conjunto de lembranças que ele nem tentava mais dignificar
chamando de memória não era capaz de fornecer nenhuma dica.
– Se eu lembro? – repetiu, sem ação.
Wonse entrelaçou as mãos sobre a mesa e se inclinou para a frente.
-Veja bem, capitão. O lorde quer uma explicação. Eu não quero ter que dizer
a ele que o capitão da Vigilância Noturna não tem a mínima ideia sobre o que
acontece entre os homens que estão, se eu puder usar o termo de modo
inapropriado, sob seu comando. Esse tipo de coisa só causa problemas, cria
necessidade de fazer mais perguntas. Nós não queremos isso, queremos?
Queremos? – Não, senhor – resmungou Vimes. Uma vaga recordação de alguém
falando com ele com um ar de seriedade no Cacho de Uvas vinha à tona com
um sentimento de culpa. Com certeza não era um anão. A menos que os
requisitos para isso tenham sido drasticamente alterados.
– E claro que não queremos – disse Wonse. – Em nome dos velhos tempos. E
assim por diante. Então pensarei em algo para dizer a ele, e você, capitão, fará
de tudo para descobrir o que está acontecendo e pôr um fim nisso tudo. Dê a esse
anão uma pequena lição sobre o que significa ser um guarda, certo? – Ha ha –
disse Vimes respeitosamente.
– Como? – Oh. Pensei que o senhor tivesse feito uma piada étnica.
– Olha, Vimes, eu estou sendo muito compreensivo. Pelas circunstâncias.
Agora quero que você vá lá e resolva o assunto. Entendeu? Vimes bateu
continência. A depressão sombria que sempre ficava espreitando, pronta para se
aproveitar do seu estado sóbrio, manifestou-se na sua língua.
– O senhor está, senhor Secretário. Farei o que for possível para que ele
aprenda que prender ladrões é contra a lei.
Ele desejou não ter dito aquilo. Se não dissesse coisas desse tipo, sua vida
estaria muito melhor agora, capitão da Guarda Palaciana, um grande homem.
Dar a ele a Vigilância Noturna havia sido uma piadinha do patrício. Mas Wonse
já estava lendo outro documento que estava sobre a sua mesa. Se ele notava o
sarcasmo, não demonstrava.
– Muito bem.
Queridíssima Mãe [Cenoura escreveu], o dia hoje foi muito melhor. Eu entrei
no Grêmio dos Ladrões, prendi o Canalha chefe e o arrastei até o Palácio do
patrício. Esse não vai mais causar problemas, imagino. E a senhora Palm disse
que eu posso ficar no sótão porque é sempre útil ter um homem por perto. Isso
porque, à noite, havia homens que tinham Enchido a Cara fazendo Estardalhaço
no quarto de uma das Meninas, e eu tive que falar com eles e eles Partiram Pra
Cima. Um deles tentou me ferir com o joelho, mas eu estava com o Protetor e a
senhora Palm disse que ele quebrou a Rótula, mas que eu não precisava pagar
por uma nova.
Eu não entendo alguns deveres da Vigilância. Eu tenho um parceiro chamado
Nobby. Ele diz que eu sou empolgado demais. E que eu tenho muito a aprender.
Acho que isso é verdade, porque eu só fui até a Página 326 de As Leis e os
Decretos de Ankh e Morpork. Lembranças a todos, Seu Filho, Cenoura. P.S.:
Lembranças a Minty.
“Não era apenas a solidão, era o modo de viver ao avesso. Era isso”, pensou
Vimes.
A Vigilância Noturna acordava quando o resto do mundo ia dormir, e dormia
quando o alvorecer pairava sobre a paisagem. Passava o tempo todo nas ruas
úmidas e escuras, num mundo de sombras. A Vigilância Noturna atraía o tipo de
pessoa que, por algum motivo, tinha uma inclinação para aquele tipo de vida.
Ele chegou à Sede da Vigilância. O prédio era antigo e surpreendentemente
grande, apertado entre um curtume e uma alfaiataria que fazia mercadorias de
couro suspeitas. Deve ter sido bastante imponente um dia, mas sua maior parte
estava agora inabitável e era patrulhada apenas por ratos e corujas. Acima da
porta, os dizeres no idioma antigo da cidade estavam quase totalmente corroídos
pelo tempo, a fuligem e o musgo, mas era possível decifrálo: FABRICATI DIEM,
PVNC A tradução – de acordo com o sargento Colon, que havia servido em
terras estrangeiras e se considerava um especialista em línguas – era “Proteger e
Servir”. Sim. Ser um guarda deve ter significado alguma coisa algum dia.
“Sargento Colon”, ele pensou, enquanto entrava cambaleando na escuridão
embolorada. Agora ele era um homem que gostava das trevas. O sargento Colon
devia seus trinta anos de casamento feliz ao fato de a senhora Colon trabalhar o
dia inteiro, e ele, a noite toda. Comunicavam-se por meio de bilhetes. Ele
preparava o chá para ela antes de sair de casa, à noite. Ela deixava um belo
café-da-manhã quentinho no forno. Tinham três filhos crescidos, todos nascidos,
Vimes presumia, do resultado de uma escrita extremamente persuasiva. E o cabo
Nobby... bom, qualquer pessoa como Nobby teria inúmeras razões para não
querer ser vista por ninguém. Não era preciso pensar muito para concluir isso. A
única razão pela qual não se podia dizer que Nobby estava perto do reino animal
era que o reino animal se afastava cada vez mais dele. E também, é claro, havia
ele mesmo. Nada além de um acúmulo de vícios magro e com a barba por
fazer, marinado em álcool. E essa era a Vigilância Noturna. Apenas os três. Já
houve um tempo em que eram dúzias, centenas. E agora... apenas três.
Vimes subiu as escadas tateando os degraus, entrou em seu escritório
apalpando a porta, jogou-se sobre a cadeira de couro ancestral com o
estofamento caído, abriu a gaveta, pegou a garrafa, mordeu a rolha, puxou-a,
cuspiu-a e bebeu. Começou o dia.
O mundo deslizou um pouco e entrou em foco.
A vida é apenas química. Uma gota aqui, um pingo ali e tudo muda. Um
pequeno fio de um líquido fermentado e, de repente, você consegue viver mais
algumas horas.
Um dia, nos tempos em que este era um bairro respeitável, o esperançoso
dono de uma taverna ao lado pagou uma quantia considerável em dinheiro a um
feiticeiro por um letreiro luminoso, com uma letra de cada cor. Agora ele não
funcionava direito e às vezes tinha curtos-circuitos por causa da umidade.
Naquele momento, o E estava rosa berrante e acendia e apagava aleatoriamente.
Vimes havia se acostumado com aquilo. Parecia fazer parte da vida. Ele ficou
olhando para o jogo trêmulo da luz sobre o gesso caindo aos pedaços durante
algum tempo e depois ergueu o pé, calçado com uma sandália, e pisou com
força nas tábuas do chão, duas vezes.
Depois de alguns minutos, uma respiração ofegante indicava, de longe, que o
sargento Colon estava subindo as escadas.
Vimes contou em silêncio. Colon sempre parava por seis segundos no último
patamar para recuperar um pouco do fôlego.
No sétimo segundo, a porta se abriu. O rosto do sargento surgiu como uma lua
cheia.
O sargento Colon poderia ser descrito da seguinte forma: era o tipo de
homem que, se seguisse carreira militar, chegaria automaticamente ao posto de
sargento. Não era possível imaginá-lo sendo cabo. Ou, pelo mesmo motivo,
capitão. Se ele não seguisse carreira militar, seria apropriado para algo como,
talvez, açougueiro. Ou algum outro emprego em que um rosto grande e
vermelho e a tendência de suar até mesmo num dia frio fossem praticamente
parte do perfil do cargo.
Bateu continência e, com certo cuidado, depositou um papel amarrotado
sobre a mesa de Vimes, alisando-o.
– Noite, capitão. Relatórios sobre o incidente de ontem e essas coisas. E você
está devendo quatro centavos ao Clube do Chá.
– Que história é essa de anão, sargento? – perguntou Vimes abruptamente.
Colon franziu a testa.
– Que anão? – O que acabou de entrar para a Vigilância. Chamado... -*
Vimes hesitou. – Cenoura ou algo do tipo.
– Ele? – O queixo de Colon caiu. – Ele é uma anão?. Eu sempre disse que não
se pode confiar nesses pestinhas! Ele me enganou direitinho, capitão, o danadinho
deve ter mentido sobre a própria altura! – Colon tinha uma fixação por tamanho,
pelo menos quando se tratava de pessoas menores que ele.
– Você está sabendo que ele prendeu o Presidente do Grêmio dos Ladrões
hoje de manhã? – Por quê? – Por ser o presidente do Grêmio dos Ladrões, ao que
parece. O sargento parecia perplexo.
– Que crime há nisso? – Acho que talvez seja melhor eu ter uma conversa
com esse Cenoura – disse Vimes.
– O senhor não o viu? – perguntou Colon. – Ele disse que vinha falar com o
senhor.
– Eu, er, devia estar ocupado na hora. Muita coisa na minha cabeça.
– Sim, senhor – concordou Colon, com educação. Vimes ainda tinha um resto
de dignidade, suficiente apenas para virar o rosto e começar a mexer nas
camadas de papéis sobre a sua mesa.
– Temos que tirá-lo das ruas o mais rápido possível – murmurou. – Só falta
agora ele querer prender o chefe do Grêmio dos Assassinos por matar pessoas!
Onde ele está? – Eu o mandei sair com o cabo Nobby, capitão. Disse que ele lhe
mostraria como as coisas funcionavam, ou algo do tipo.
– Você mandou um recruta inexperiente sair com o Nobby ? – perguntou
Vimes, aborrecido.
Colon começou a gaguejar.
– Bom, senhor, homem experiente, eu achei que o cabo Nobby poderia
ensinar-lhe muita coisa...
– Vamos torcer para que ele seja lento para aprender as coisas – disse Vimes,
enterrando o seu capacete de ferro marrom na cabeça. – Vamos. Quando saíram
da sede da Vigilância, havia uma escada encostada na parede da taverna. Um
homem corpulento no alto da escada xingava em voz baixa enquanto lutava
contra o sinal luminoso.
– Ê o E que não está funcionando direito – avisou Vimes.
– O quê? – O E. O T solta um chiado quando chove. Já estava na hora de
consertar.
– Consertar? Ah, sim. Consertar. É o que eu estou fazendo. Consertando. Os
homens da vigilância saíram chapinhando pelas poças. O Irmão Torre de Vigia
balançou a cabeça devagar e voltou a atenção novamente para sua chave de
fenda.
Homens como o cabo Nobby podem ser encontrados em qualquer força
armada. Embora o seu entendimento das minúcias do Regulamento geralmente
seja enciclopédico, eles cuidam para que nunca sejam promovidos para
qualquer coisa acima, talvez, de cabo. Ele tinha a tendência de falar com o canto
da boca. Fumava sem parar, mas o estranho, Cenoura notou, era que qualquer
cigarro fumado por Nobby virava uma bituca quase instantaneamente, mas
continuava sendo uma bituca por um tempo indefinido ou até ir parar atrás da sua
orelha, que era uma espécie de cemitério de elefantes de nicotina. Nas raras
ocasiões em que tirava um cigarro da boca, ficava segurando dentro da mão
fechada. Ele era um homem pequeno, de pernas arqueadas, com uma leve
semelhança com um chimpanzé que nunca foi convidado para chás dançantes.
Sua idade era indeterminada, mas, em termos de cinismo e cansaço geral da
vida, que são uma espécie de método de datação da personalidade, tinha cerca
de 7 mil anos.
– É moleza essa rota – disse, enquanto caminhavam por uma rua úmida no
bairro dos mercadores. Ele virou a maçaneta de uma porta. Estava trancada. –
Não saia de perto de mim – acrescentou -, eu vou cuidar de você. Agora você
vira as maçanetas do outro lado da rua.
– Ah, entendi, cabo Nobby. Temos que ver se alguém deixou de trancar a loja
– disse Cenoura.
– Você entende rápido, rapaz.
– Espero que eu consiga pegar um canalha no flagra – disse Cenoura,
fervoroso.
– Er, é – respondeu Nobby, incerto.
– Mas, se encontrarmos uma porta destrancada, imagino que tenhamos que
chamar o dono – continuou Cenoura. – E um de nós teria que ficar para tomar
conta das coisas, certo? – É? – Nobby gostou da ideia. – Eu faço isso. Não se
preocupe com isso. Assim você poderá procurar a vítima. O dono, quero dizer.
Ele virou mais uma maçaneta. Ela cedeu sob o peso da sua mão.
– Nas montanhas – disse Cenoura -, se um ladrão fosse pego, seria pendurado
lá pelos...
Ele parou e ficou virando uma maçaneta. Nobby ficou paralisado.
– Pelos o quê? – perguntou, numa fascinação aterrorizada.
– Não consigo me lembrar agora. Mas minha mãe disse que era pouco para
eles. Roubar é Errado.
Nobby havia escapado de um grande número de massacres por não viver lá.
Ele largou a maçaneta e deu um tapinha amigável nela.
– Consegui! – disse Cenoura. Nobby pulou.
– Conseguiu o quê? – gritou.
– Lembrei por onde penduramos eles.
– Ah – disse Nobby com a voz fraca. – Por onde? – Nós os penduramos lá
pelos lados da prefeitura. Às vezes durante dias. Eles não roubam nunca mais, eu
garanto. E aí é um mar de rosas. Nobby encostou a sua lança na parede e retirou
uma bituca de cigarro da orelha. “Uma ou duas coisas”, decidiu, “têm que ser
esclarecidas”.
– Por que você teve que se tornar um guarda, rapaz? – Todo mundo fica me
perguntando isso. Eu não fui obrigado. Eu quis. Isso vai me fazer virar um
Homem.
Nobby nunca olhava para ninguém diretamente nos olhos. Ele olhava
fixamente para a orelha direita de Cenoura, estarrecido.
– Quer dizer que você não está fugindo de nada? – Para que eu ia querer fugir
de alguma coisa? Nobby se atrapalhou um pouco.
– Ah. Sempre tem alguma coisa. Talvez... talvez cê tenha sido acusado de
alguma coisa injustamente. Como, talvez – ele sorriu, mostrando os dentes -,
talvez as lojas tavam misteriosamente sem alguns produtos e ce foi culpado
injustamente. Ou alguns produtos foram encontrados na sua mala e cê não sabia
como foram parar ali. Esse tipo de coisa. Cê pode contar pro velho Nobby. Ou –
ele cutucou Cenoura – talvez foi outra coisa, hein? Shershey Ia fem, ahn?
(“Cherchez la femme” (procure a mulher), frase clichê de histórias de detetive.
(N. T.)
– Causou problemas pra alguma garota? – Eu... – começou Cenoura, e depois
se lembrou que, sim, as pessoas deveriam dizer a verdade, até mesmo para
pessoas estranhas como Nobby, que não pareciam saber o que isso significava. E
a verdade era que ele estava sempre causando problemas para Minty, embora
como e por que fosse meio que um mistério. Quase todas as vezes que ele ia
embora, depois de fazer uma visita a ela na caverna Quebrapedra, ouvia o pai e
a mãe gritarem com ela. Eles eram sempre muito educados, mas, por alguma
razão, o simples fato de ser vista com ele era suficiente para causar problemas a
Minty. – Sim.
– Ah. Geralmente é isso – disse Nobby, sabiamente.
– O tempo todo. Quase toda noite, na verdade.
– Caramba – disse Nobby, impressionado. Ele olhou para o Protetor. – Então,
é por isso que eles fazem você usar isso? – Como assim? – Bom, não se preocupe.
Todo mundo tem o seu segredinho. Ou segredão, como deve ser o caso. Até
mesmo o capitão. Ele só está conosco porque foi Humilhado por uma Mulher. E o
que o sargento diz. Humilhado.
– Nossa! – espantou-se Cenoura. Parecia algo doloroso.
– Mas eu acho que é porque ele fala o que pensa. Já falou muitas vezes para o
patrício, ouvi dizer. Disse que o Grêmio dos Ladrões não passava de um bando de
ladrões, ou algo assim. É por isso que ele está com a gente. Não sei, na verdade.
– Ele lançou um olhar especulativo para o chão e disse: – Então, onde você está
hospedado, rapaz? – Tem uma moça chamada senhora Palm... – começou
Cenoura. Nobby engasgou com uma fumaça que foi para o lado errado.
– Nas Sombras? – perguntou, ofegante. – Você está hospedado lá? – Estou
sim.
– Toda noite? – Bom, todo dia, na verdade. Sim.
– E você veio para cá para virar homem? -Sim! – Acho que eu não gostaria
de morar no lugar de onde você vem – disse Nobby.
– Olha – começou Cenoura, totalmente perdido -, eu vim porque o senhor
Varneshi disse que esse era o trabalho mais admirável do mundo, preservar a lei
e tudo o mais. É isso mesmo, não é? – Bem, er. Quanto a esse... essa coisa de
preservar a Lei... Quer dizer, um dia, sim, antes de termos todos os Grêmios e
coisas assim... A lei, digamos, não é realmente, quer dizer, hoje em dia, tudo está
mais... Ah, sei lá. Geralmente é só bater o seu sino e manter a cabeça baixa.
Nobby suspirou. Depois resmungou, tirou a sua ampulheta da cintura e
observou os grãos de areia escorrerem rapidamente. Guardou-a de volta, tirou a
capa de couro do badalo do sino e tocou-o uma ou duas vezes, não muito alto.
– Meia-noite – murmurou – e está tudo bem.
– E é só isso, certo? – disse Cenoura, enquanto os minúsculos ecos
enfraqueciam aos poucos.
– Mais ou menos. Mais ou menos. Nobby deu uma tragada rápida na bituca.
– Só isso? Nada de perseguições pelos telhados ao luar? Nada de se pendurar
nos lustres? Nada do tipo? – Eu diria que não – disse Nobby, com veemência. –
Eu nunca fiz nada disso. Ninguém jamais me disse nada sobre isso.
– Ele pitou o cigarro. – Um homem pode pegar um resfriado terrível em
perseguições pelos telhados. Eu acho que vou ficar com o sino, se não tiver
problema para você.
– Posso tentar? – perguntou Cenoura.
Nobby estava se sentindo confuso. Essa seria a única razão possível para
explicar o seu erro de entregar o sino a Cenoura sem dizer uma palavra. Cenoura
examinou-o por alguns segundos. Em seguida, balançou-o vigorosamente acima
da cabeça.
– Meia-noite! – berrou. – E está tudo beeeeemmmm! Os ecos bateram com
violência dos dois lados da rua e finalmente foram dominados por um terrível e
pesado silêncio. Alguns cachorros latiram em algum lugar. Um bebê começou a
chorar.
– Pssiu! – fez Nobby.
– Bom, está tudo bem, não está? – disse Cenoura.
– Não estará se você continuar tocando esse maldito sino! Dá aqui.
– Eu não entendo! Olha, eu tenho um livro que o senhor Varneshi me deu... –
Ele pegou As Leis e os Decretos.
Nobby olhou e deu de ombros.
– Nunca ouvi falar. Agora pare com o alvoroço. Não é bom fazer muito
barulho. Você pode atrair todo tipo de gente. Venha, por aqui. Ele pegou Cenoura
pelo braço e puxou-o pela rua.
– Que tipo de gente? – protestou Cenoura, enquanto era puxado com
determinação.
– Gente ruim – murmurou Nobby.
– Mas nós somos a Vigilância. (Nada disso era verdade. A verdade é que até
mesmo grandes acervos de livros comuns distorcem o espaço, como pode ser
facilmente comprovado por qualquer um que tenha estado num sebo muito velho,
desses que parecem ter sido projetados por M. Escher num dia de pouca
inspiração e possuem mais escadas do que andares, além daquelas fileiras de
prateleiras que terminam em pequenas portas que com certeza são pequenas
demais para dar passagem a um ser humano de tamanho natural. A equação
relevante é: Conhecimento = poder = energia = matéria = massa. Uma boa
livraria não passa de um Buraco Negro civilizado que sabe ler.)
– Certíssimo! E nós não queremos nos envolver com esse tipo de gente!
Lembre-se do que aconteceu com Gaskin! – Eu não me lembro do que
aconteceu com Gaskin! – disse Cenoura, totalmente desnorteado. – Quem é
Gaskin? – Antes de você chegar – murmurou Nobby. Ele sorriu um pouco. –
Pobre coitado. Poderia ter acontecido com qualquer um de nós. – Ele olhou para
Cenoura. – Agora pare com isso, está ouvindo? Está me dando nos nervos.
Perseguições ao luar o caramba! Ele saiu andando com ar de arrogância. O
método normal de locomoção de Nobby era uma espécie de movimento lateral,
e a combinação entre andar com arrogância e de lado ao mesmo tempo criava
um efeito estranho, como um caranguejo mancando.
– Mas, mas este livro diz...
– Eu não quero saber nada de livro nenhum – rosnou Nobby. Cenoura parecia
profundamente abatido.
– Mas é a Lei... – começou.
Ele foi interrompido de forma quase definitiva por um machado que passou
pelo vão baixo de uma porta rodopiando ao lado dele e cravou com tudo na
parede em frente, seguido de sons de madeira lascando e vidro estilhaçando.
– Ei, Nobby ! – chamou Cenoura, com pressa. – Está tendo uma briga! Nobby
olhou para o vão da porta.
– É claro que está. É um bar de anões. Do pior tipo. Fique longe deles, garoto.
Os danadinhos gostam de passar rasteira e depois chutar até sair as tripas. Fica
perto do velho Nobby que ele vai...
Ele agarrou o braço de tronco de árvore de Cenoura. Era como tentar
rebocar um prédio. Cenoura ficou pálido.
– Anões bebendo? E brigando?.
– Pode apostar – disse Nobby. – O tempo todo. E eles usam um tipo de
linguagem que eu não usaria nem com a minha própria mãe querida. Não seria
bom para você se misturar com eles, são um bando de... não entre aí! Não se
sabe por que os anões, que nas montanhas levam uma vida ordeira e pacífica, se
esquecem de tudo isso quando se mudam para a cidade grande. Alguma coisa
acontece até mesmo com o minerador mais inocente e o induz a usar malhas de
ferro o tempo todo, andar com um machado, mudar o nome para
Agarragarganta Chutacanela e beber até se esquecer de tudo.
Provavelmente é porque eles realmente levam uma vida ordeira e pacífica
na sua terra. Afinal, a primeira coisa que um jovem anão deve querer fazer
quando chega à cidade grande, após sete anos trabalhando para o pai no fundo de
uma mina, é beber muito e depois bater em alguém.
Era uma dessas brigas divertidas de anões, com cerca de 100 participantes e
150 coalizões. Os gritos, as pragas e o tinido dos machados nos capacetes de ferro
se misturavam aos sons de um grupo de bêbados perto da lareira que – mais um
costume dos anões – estava cantando uma canção sobre o ouro. Nobby pulou nas
costas de Cenoura, que observava a cena horrorizado.
– Olha, aqui é assim toda noite. Não interfira, é o que diz o sargento. É o
costume do grupo étnico deles, ou algo do tipo. Não se pode mexer com
costumes étnicos.
– Mas, mas – Cenoura gaguejou – essa é a minha gente. De certo modo. É
vergonhoso agir dessa maneira. O que os outros acham disso? – Nós achamos
que eles são umas pobres criaturinhas inferiores. Agora vamos embora! Mas
Cenoura já havia se metido na massa de engalfinhados. Pôs as mãos em concha
ao redor da boca e berrou alguma coisa numa língua que Nobby não entendia.
Praticamente qualquer língua, incluindo o seu idioma nativo, teria se encaixado
nessa descrição, mas neste caso era o anonês.
– Gr’duzk! Gr’duzk! aaK’zt ezem ke bur’k tze tzim? (Lit.: “Bom dia! Bom dia! O
que é que está acontecendo aqui (neste lugar)?”
As brigas pararam. Cem rostos barbados viraram para cima para olhar o
vulto curvado de Cenoura com um misto de perturbação e surpresa. Uma caneca
quebrada bateu no peito dele. Cenoura se abaixou, sem nenhum esforço
aparente, para pegar do chão uma criatura que se debatia.
– J’uk, y dtruz-t’rud-eztuza, hudr’zddezek drez’huk, huzu-kruk’t titduz g’ke’k
me’ek titduz t’ be’tk kcedrutk ke’hkt’d. aaDtithuk. (Ouça, raio de sol [lit.: “o olhar do
grande olho quente no céu, cujo poder de penetração atinge a entrada da
caverna”], eu não quero ter que dar pancada em ninguém, então, se você jogar B
'tduz* comigo, eu jogo B 'tduz com você. Certo?”** Um jogo muito comum entre
os anões, que consiste em ficar de pé, a alguns metros de distância, jogando
pedras grandes na cabeça um do outro. Lit: “Tudo corretamente seguro
e escorado?”)
Nenhum dos anões jamais ouvira tantas palavras do Idioma Antigo da boca
de alguém com mais de 1,20 m de altura. Estavam estarrecidos. Cenoura
colocou o anão transgressor de volta ao chão. Ele tinha lágrimas nos olhos.
– Vocês são anões! Anões não devem agir assim! Olhe para vocês. Não
sentem vergonha? Cem mandíbulas caíram.
– Olhe para você! – Cenoura balançou a cabeça. – Você consegue imaginar o
que a sua pobre mãezinha de barba branca, trabalhando sem parar na sua
pequena mina, perguntando a si mesma como estará o seu filho nesta noite,
consegue imaginar o que ela pensaria se o visse agora? A sua querida mãe, que
lhe ensinou a usar uma picareta...
Nobby, parado perto da porta, aterrorizado e pasmo, percebeu um coro cada
vez mais forte de narizes sendo assoados e soluços abafados, e Cenoura
continuou: – ... ela deve estar pensando “imagino que ele esteja tranquilo,
jogando dominó ou algo assim...” Um anão que estava por perto, usando um
capacete incrustado com pregos de quinze centímetros, começou a chorar
delicadamente sobre a sua cerveja.
– E aposto como faz muito tempo que vocês não escrevem para ela, e
prometeram escrever toda semana...
Nobby pegou um lenço sujo distraidamente e passou para um anão que
estava se apoiando na parede, estremecendo de tristeza.
– Então – disse Cenoura, num tom gentil -, não quero ser duro com ninguém,
mas eu passarei aqui todas as noites, a partir de agora, e espero ver um padrão de
comportamento apropriado para anões. Eu sei como é estar longe de casa, mas
não existe desculpa para esse tipo de coisa. – Ele tocou no capacete. – Chruk, Deu
a todos um sorriso radiante e andou curvado para fora do bar. Quando apareceu
na rua, Nobby bateu de leve no seu braço.
– Nunca mais faça uma coisa dessas comigo – disse, irritado. – Você é da
Vigilância Noturna! Não me venha mais com nada que tenha a ver com lei.
– Mas isso é muito importante – respondeu Cenoura, sério, andando depressa
atrás de Nobby, que seguia andando de lado até uma rua estreita.
– Não tão importante quanto permanecer inteiro. Bares de anões! Se você
tem alguma coisa na cabeça, meu rapaz, você vai entrar aqui. E calar a boca.
Cenoura olhou para o prédio a que chegaram. Ficava um pouco afastado da lama
da rua. Os sons de bebida em grandes quantidades vinham de dentro. Havia uma
placa quebrada pendurada na porta. Ela mostrava um barril.
– Uma taverna, é? – disse Cenoura, pensativo. – Aberta a esta hora? – Não
vejo por que não – retrucou Nobby, empurrando a porta de entrada.
– Que ótima ideia. O Barril Emendado.
– E mais bebida? – Cenoura folheava o livro com pressa.
– Espero que sim – disse Nobby. Ele fez um sinal para o troll que tinha um
emprego de limpa-trilho no Barril. (É como um segurança, mas o troll usa mais
força.)
– Noite, Detritus. Estou só dando uns toques pro novato aqui.
O troll deu um grunhido e acenou com seu braço cheio de crostas. Por causa
do estado do seu interior, o Barril Emendado é hoje conhecido como a taverna
desqualificada mais famosa do Discworld, e um ponto tão importante da cidade
que, após as recentes e inevitáveis reformas, o novo dono passou alguns dias
recriando o tom esverdeado original de sujeira, fuligem e outras substâncias de
difícil identificação das paredes e importou uma tonelada de juncos pré-
apodrecidos para o chão. Os clientes eram os heróis de sempre: degoladores,
mercenários, facínoras e vilões, e apenas uma análise microscópica poderia
dizer quem era o quê. Grossos anéis de fumaça pairavam no ar, talvez para
evitar tocar nas paredes.
As conversas diminuíram de modo quase imperceptível quando os guardas
entraram, mas retornaram ao nível anterior em seguida. Alguns camaradas de
Nobby acenaram para ele.
Ele percebeu que Cenoura estava ocupado fazendo alguma coisa.
– O que cê tá fazendo? E chega de conversas sobre mãe, está certo? – Estou
fazendo umas anotações – respondeu Cenoura, sério.
– Eu tenho um caderno.
– Aqui está a comanda – disse Nobby. – Você vai gostar daqui. Eu venho
jantar aqui toda noite.
– Como se escreve “contravenção”? – perguntou Cenoura, virando a página.
– Não escrevo – respondeu Nobby, abrindo passagem na multidão. Um raro
impulso de generosidade surgiu na sua mente.
– O que você quer beber? – Acho que isso não seria muito apropriado. Além
disso, a Bebida Forte é Escarnecedora. (Na passagem bíblica: “O vinho é
escarnecedor, e a bebida forte, alvoroçadora”.(N. T.))
Ele teve a sensação de um olhar penetrante na sua nuca, virou-se e viu o rosto
grande, meigo e manso de um orangotango.
Estava sentado no bar com uma caneca e uma tigela de amendoim à sua
frente. Inclinou o copo num gesto amigável na direção de Cenoura e depois
bebeu de modo intenso e barulhento, aparentemente apenas formando uma
espécie de funil com o lábio inferior e fazendo um barulho como o de um canal
sendo drenado.
Cenoura cutucou Nobby.
– Tem um maca... – começou.
– Não diga isso! – interrompeu Nobby rapidamente. – Não diga essa palavra!
É o bibliotecário. Trabalha lá na Universidade. Sempre vem aqui para tomar um
gole antes de dormir.
– E as pessoas não acham ruim? – Por que deveriam? Ele sempre paga a
conta, como todo mundo. Cenoura se virou e olhou para o símio novamente.
Algumas perguntas exigiam a sua atenção, como: onde ele guarda o dinheiro? O
bibliotecário viu o seu olhar, interpretou outra coisa e empurrou educadamente a
tigela de amendoins na sua direção.
Cenoura se ajeitou, assumindo a sua altura impressionante e consultou o seu
caderno. A tarde que passara lendo As Leis e os Decretos tinha valido a pena.
– Quem é o dono, proprietário, locatário ou senhorio deste estabelecimento? –
perguntou a Nobby.
– Como é que é? – perguntou o guarda pequeno. – Senhorio? Bom, eu acho
que o Charley aqui é o encarregado hoje. Por quê? – Ele apontou para um
homem grande e pesado, cujo rosto era uma rede de cicatrizes. O homem fez
uma pausa antes de espalhar, com um pano úmido, a sujeira de maneira mais
uniforme em volta de alguns copos e piscou para ele com um ar conspiratório.
– Charley, este é o Cenoura. Ele está dormindo na casa da Rosie Palm.
– O quê? Toda noite? Cenoura limpou a garganta.
– Se você é o encarregado – começou –, então é meu dever informá-lo que
você está preso.
– Preso onde, amigo? – perguntou Charley, sem parar de lustrar os copos.
– Você está preso pelas seguintes acusações: 1) (i) no dia 18 de grunho, num
local chamado Barril Emendado, à rua Filigrana, você a) serviu ou b) permitiu
que fossem servidas bebidas alcoólicas após a meia-noite (zero hora), o que vai
de encontro ao dispositivo da Lei de (Abertura de) Cervejarias Públicas de 1678,
e 1) (ii) no dia 18 de grunho, num local chamado Barril Emendado, à rua
Filigrana, você serviu ou permitiu que fossem servidas bebidas alcoólicas em
recipientes de tamanho e capacidade diferentes do estabelecido pela mencionada
Lei, e 2) (i) no dia 18 de grunho, num local chamado Barril Emendado, à rua
Filigrana, você permitiu que alguns clientes portassem armas desembainhadas de
comprimento maior que 17 (dezessete) centímetros, o que vai de encontro ao que
estabelece a Seção Três da mencionada Lei, e 2) (ii) no dia 18 de grunho, num
local chamado Barril Emendado, à rua Filigrana, você serviu bebidas alcoólicas
em local aparentemente não licenciado para a venda e/ou consumo das
mencionadas bebidas, o que vai de encontro à Seção Três da supracitada Lei.
O silêncio era absoluto quando Cenoura virou mais uma página e prosseguiu:
– Também é meu dever informá-lo que é minha intenção prestar testemunho
perante os Juízes com o objetivo de validar as acusações que dizem respeito à Lei
de Congregações Públicas (Jogos), de 1567, às Leis de Locais Licenciados
(Higiene) de 1433, 1456, 1463, 1465, er, e de 1470 até 1690, e também... – ele
olhou com o canto do olho para o bibliotecário, que sabia reconhecer o perigo
quando o ouvia chegando e estava tentando terminar rapidamente sua bebida – ...
a Lei de Animais Domésticos e Domesticados (Cuidado e Proteção), de 1673. (E
mímicos. Era uma aversão estranha, mas existia. Qualquer pessoa com calças
largas e rosto pintado de branco que tentasse exercer sua arte em qualquer lugar
entre os muros caindo aos pedaços de Ankh ia parar rapidamente num poço de
escorpiões, no interior do qual lia-se o conselho: “Aprenda As Palavras”.)
O silêncio que se seguiu possuía um raro aspecto de um pressentimento que
faz as pessoas prenderem a respiração, enquanto os clientes reunidos esperavam
para ver o que aconteceria em seguida.
Charley pôs o copo sobre o balcão com cuidado – as manchas já haviam sido
polidas, dando lugar a um brilho radiante. Ele olhou para Nobby. Nobby estava se
esforçando para fingir que estava totalmente sozinho e que não tinha nenhuma
ligação de nenhum tipo com ninguém que estivesse ao lado dele e,
coincidentemente, usando o mesmo uniforme.
– O que ele quer dizer com Juízes? – perguntou a Nobby. – Não tem Juiz
nenhum.
Nobby encolheu os ombros, aterrorizado.
– Ele é novo, é? – perguntou Charley.
– Facilite as coisas para você – aconselhou Cenoura.
– Não é nada pessoal, entende? – disse Charley a Nobby. – É aquele negócio.
Tinha um feiticeiro aqui falando disso um dia desses. Uma espécie de desvio
educacional, sabe? – Ele parecia estar pensando por um momento. – Curva de
aprendizagem. Era isso. É uma curva de aprendizagem.
Detritus, tira esse traseiro inútil da cadeira e venha aqui um minuto.
Geralmente, mais ou menos a essa hora no Barril Emendado, alguém atira
um copo. E foi o que aconteceu naquele momento.
O capitão Vimes correu até a rua Curta – a mais longa da cidade, que
consegue resumir o conhecido senso de humor sutil de Morpork – com o sargento
Colon cambaleando atrás, protestando.
Nobby estava do lado de fora do Barril, pulando de um pé para o outro. Em
momentos de perigo, ele tinha uma maneira de se deslocar de um lugar ao outro
aparentemente sem se mover sobre o espaço coberto, o que poderia humilhar
qualquer teletransportador de matéria comum.
– Ele tá brigando lá dentro! – gaguejou, agarrando o braço do capitão.
– Totalmente sozinho? – perguntou o capitão.
– Não, com todo mundo! – gritou Nobby, pulando de um pé para o outro.
-Oh.
A voz da consciência disse: “Vocês são três. Ele está usando o mesmo
uniforme. Ele é um de vocês. Lembre-se do pobre velho Gaskin”. Outra parte do
seu cérebro, a parte odiada e desprezível que, no entanto, havia possibilitado a sua
sobrevivência na Vigilância durante os últimos dez anos, disse: “É falta de
educação se intrometer. Vamos esperar até ele terminar, e depois perguntamos
se ele precisa de ajuda. Além disso, não existe na Vigilância uma orientação para
interferir em brigas. É muito mais simples entrar depois e prender qualquer um
que não esteja fazendo nada”.
Houve um estrondo quando uma janela próxima explodiu e um brigão
atordoado foi parar do outro lado da rua.
– Eu acho – disse o capitão, com cuidado – que é melhor tomarmos uma
atitude imediatamente.
– Está certo – concordou o sargento Colon. – Alguém pode se machucar
ficando parado aqui.
Cuidadosamente, eles desceram um pouco a rua, andando de lado até onde o
som de madeira rachando e vidro quebrando não era tão assustador, e evitaram
olhar um para o outro. Ouvia-se um ou outro grito que vinha de dentro da
taverna, e de vez em quando um misterioso barulho de sino, como se alguém
estivesse batendo num gongo com o joelho.
Ficaram parados, com um constrangimento silencioso.
– Você tirou férias neste ano, sargento? – perguntou o capitão Vimes,
finalmente, balançando para a frente e para trás nos calcanhares.
– Sim, senhor. Mandei a esposa para Quirm no mês passado, senhor, para
visitar a tia.
– É muito bonito lá nessa época do ano, ouvi dizer.
– Sim, senhor.
– Muitos gerânios e coisa e tal.
Um vulto caiu de uma janela e se espatifou na calçada.
– É lá que tem o relógio de sol de flores, não é? – perguntou o capitão
desesperadamente.
– Sim, senhor. Muito bonito, senhor. Todo feito de florzinhas, senhor. Houve o
som de alguma coisa batendo em outra várias vezes, com algo pesado e de
madeira. Vimes estremeceu.
– Eu não acho que ele teria sido feliz na Vigilância, senhor – disse o sargento,
com voz gentil.
A porta do Barril Emendado havia sido arrancada tantas vezes em tumultos
que foram instaladas dobradiças especialmente reforçadas, e o fato de um
tremendo estrondo ter arrancado da parede a porta inteira, com batente e tudo,
serviu apenas para provar que muito dinheiro tinha sido jogado fora. Um vulto no
meio dos escombros tentou se levantar, apoiando-se nos cotovelos, resmungou e
caiu para trás.
– Bom, parece que está tudo... – começou o capitão.
– É aquele maldito troll! – interrompeu Nobby.
– O quê? – perguntou Vimes.
– É o troll! O que fica na porta! Eles se aproximaram com extrema cautela.
Era realmente Detritus, o limpa-trilho.
E muito difícil ferir uma criatura que é, para todos os efeitos, uma pedra
ambulante. No entanto, alguém parecia ter conseguido. A figura caída gemia
como dois tijolos sendo esmagados um contra o outro.
– Isso é um acontecimento para entrar nos livros – observou o sargento,
vagamente. Todos os três se viraram e examinaram o retângulo iluminado e
brilhante onde antes havia uma porta. As coisas tinham definitivamente se
acalmado lá dentro.
– Você não acha – começou o sargento – que ele está ganhando, acha? O
capitão empurrou o queixo para a frente.
– Seria justo com o nosso colega entrarmos para descobrir. Ouviram um
choro vindo de trás deles. Viraram-se e viram Nobby pulando numa perna só e
apertando o pé.
– O que você tem, homem? – perguntou Vimes. Nobby deu gemidos de dores
intensas.
O sargento Colon começou a entender. Embora a subserviência cautelosa
fosse a tendência geral de comportamento na Vigilância, não havia um membro
em todo o batalhão que não tivesse estado, em algum momento, no lado errado
dos punhos de Detritus. Nobby estava apenas tentando recuperar o prejuízo, na
melhor tradição dos policiais em todo lugar.
– Ele foi lá chutar as pedras dele, senhor.
– Vergonhoso – disse o capitão, vagamente. Ele hesitou. – Os trolls têm
pedras? – Pode ter certeza, senhor.
– Puxa vida. A Mãe Natureza tem um modo estranho de agir, não é? – O
senhor está certo, senhor – concordou o sargento, obediente.
– E agora – disse o capitão, puxando a espada –, avante! – Sim, senhor.
– Isso inclui você, sargento – acrescentou o capitão.
– Sim, senhor.
Esse foi possivelmente o avanço mais cauteloso em toda a história das
manobras militares e certamente estaria no ponto mais baixo da escala em que
coisas como a Carga da Brigada Ligeira estão no topo.
Eles examinaram cuidadosamente o vão da porta arrebentada.
Havia diversas pessoas estiradas sobre as mesas ou sobre o que sobrara das
mesas. Os que ainda estavam conscientes não pareciam gostar disso. Cenoura
estava de pé no meio do salão. Sua malha de ferro enferrujada estava rasgada,
estava sem o capacete, balançando um pouco de um lado para o outro, e um olho
já começava a inchar. Ele reconheceu o capitão, largou o cliente que estava
segurando, que protestava debilmente, e bateu continência.
– Tomo a liberdade de comunicar 31 transgressões em Criação de Tumultos,
senhor, e 56 casos de Comportamento Desordeiro, 41 transgressões em
Obstrução de um Oficial da Vigilância no Cumprimento do seu Dever, 13
transgressões em Ataque com Arma Mortal, 6 casos de Demora Maliciosa e...
e... o cabo Nobby ainda nem chegou a me dar nenhum toque...
Ele caiu para trás, quebrando uma mesa.
O capitão Vimes tossiu. Ele não tinha certeza do que deveria fazer nesse
momento. Até onde sabia, a Vigilância jamais estivera naquela posição antes.
– Eu acho que você deveria dar uma bebida para ele, sargento – disse.
– Sim, senhor.
– E traga uma para mim também.
– Sim, senhor.
– Por que você não toma uma também? – Sim, senhor.
– E você, cabo, por favor... o que você está fazendo? –
Revistandoocorposenhor – disse Nobby rapidamente, ajeitando-se. – Para
encontrar evidências incriminatórias e coisas do tipo.
– Nos sacos de dinheiro deles? Nobby colocou as mãos atrás das costas.
– Nunca se sabe, senhor.
O sargento havia encontrado no meio dos destroços uma garrafa de bebida
que, por algum milagre, não estava quebrada e fez grande parte do seu conteúdo
descer à força por entre os lábios de Cenoura.
– O que vamos fazer com esse povo todo, capitão? – perguntou por cima do
ombro.
– Não faço a menor ideia – respondeu Vimes, sentando-se. A prisão da
Vigilância comportava apenas seis pessoas bem pequenas, que geralmente eram
o único tipo de gente que era presa. Mas essas...
Ele olhou ao redor desesperado. Lá estava Nork, o Empalador, deitado
debaixo de uma mesa e murmurando algo. Lá estava também Big Henri. E
Agarrador Simmons, um dos mais temidos brigões de bar da cidade. Na verdade
havia muita gente, e não seria aconselhável estar por perto quando acordassem.
– A gente podia cortar a garganta deles, senhor – sugeriu Nobby, veterano de
um grupo de remanescentes de campos de batalhas. Ele havia encontrado um
brigão inconsciente que tinha o tamanho certo e retirou, com uma atitude
especulativa, as suas botas, que pareciam muito novas e do tamanho certo.
– Isso seria totalmente errado – observou Vimes. Na verdade ele não sabia
como cortar a garganta de alguém. Essa nunca havia sido uma alternativa até
então.
– Não. Acho que talvez possamos soltá-los com uma advertência. Ouviu-se
um grunhido que vinha de baixo do banco.
– Além do mais – disse, rapidamente –, deveríamos levar os nossos
camaradas feridos a um lugar seguro o mais rápido possível.
– Bem lembrado – concordou o sargento. Ele deu um gole na bebida para
acalmar os nervos.
Os dois deram um jeito de arrastar Cenoura e guiar suas pernas
bamboleantes pelos degraus. Vimes, cedendo sob o peso, procurou por Nobby.
– Cabo Nobby – chamou, irritado –, por que você está chutando as pessoas
que estão caídas? – É a maneira mais segura, senhor.
Há muito tempo tinham explicado a Nobby coisas sobre brigar limpo e não
atacar um adversário caído. Então ele usou a criatividade para a aplicação dessas
regras a seu caso, já que tinha 1,20 m de altura e o tônus muscular de uma tira de
elástico.
– Bom, pare com isso. Eu quero que você dê a advertência aos criminosos.
– Como, senhor? – Bom, você... – capitão Vimes parou. Ele também gostaria
de saber. Ele nunca tinha feito isso. – Faça o que tem que ser feito – gritou. – Será
que eu tenho que explicar tudo? Nobby foi deixado sozinho no alto da escada.
Gemidos e resmungos generalizados, vindos do chão, indicavam que as pessoas
estavam acordando. Nobby pensou rápido. Ele balançou um dedo repreensivo de
graveto.
– Que isso seja uma lição para vocês – disse. – Não façam isso novamente. E
saiu correndo.
de sentir que estava olhando para uma cidade que funcionava. Não uma
cidade bonita, famosa ou com um bom sistema de esgoto e, certamente, não
uma cidade favorecida pela arquitetura. Até os cidadãos mais entusiásticos
concordariam que, a partir de um ponto de observação elevado, Ankh-Morpork
dava a impressão de que alguém tentara obter com pedra e madeira um efeito
normalmente associado a calçadas em frente a estádios de futebol.
Mas ela funcionava. Rodava animada como um giroscópio na ponta de uma
curva de catástrofe. E isso, o patrício acreditava com segurança, era porque
nenhum grupo jamais chegou a ser poderoso o suficiente para derrubá-la.
Comerciantes, ladrões, assassinos, feiticeiros – todos competiam de forma
enérgica numa corrida, sem perceber que não era necessário haver corrida
nenhuma, e certamente sem confiar uns nos outros o suficiente para parar e
perguntar quem havia definido o trajeto e quem estava segurando a bandeira de
largada.
O patrício não gostava da palavra “ditador”. Era uma afronta para ele. Nunca
mandou em ninguém. Não era preciso, essa era a parte boa. Grande parte da sua
vida consistia em organizar as questões de modo a manter as coisas nesse pé.
É claro que havia diversos grupos buscando a sua destruição, e isso estava
certo, era bastante apropriado e indicava uma sociedade vigorosa e saudável.
Ninguém poderia dizer que ele era injusto quanto à questão. Ora, não tinha sido
ele o fundador da maioria desses grupos? O melhor era o modo como gastavam
quase todo o seu tempo: brigando uns com os outros.
A natureza humana, o patrício sempre dizia, era uma coisa maravilhosa.
Desde que você entendesse onde estavam suas alavancas.
Ele tinha um pressentimento desagradável sobre essa história de dragões. Se
já houve alguma criatura que não possuía nenhuma alavanca muito evidente,
essa criatura era o dragão. Isso teria que ser resolvido.
O patrício não acreditava em crueldade desnecessária (Quando comparada à
ideia de crueldade necessária, é claro.). Não acreditava em revanches inúteis.
Mas acreditava muito na necessidade de resolver as coisas. Por mais estranho
que possa parecer, o capitão Vimes estava pensando a mesma coisa. Ele viu que
não gostava da ideia de que os cidadãos, mesmo que fossem os das Sombras, se
transformassem em gravuras de cerâmica. E isso tinha sido feito diante dos olhos
da Vigilância, por assim dizer. Como se a Vigilância não fosse importante, como
se a Vigilância fosse apenas um detalhe irrelevante. Era isso o que incomodava.
E, é claro, era verdade, o que só piorava as coisas.
O que o deixava ainda mais furioso era o fato de ter desobedecido às ordens.
Tinha sido manipulado, é verdade. Mas no fundo da gaveta de sua antiga
escrivaninha, escondido sob uma pilha de garrafas vazias, havia um molde de
gesso. Ele podia sentir o seu olhar através das três camadas de madeira. Não
conseguia imaginar o que havia com ele. E agora estava se complicando cada
vez mais.
Revistou a sua, por falta de palavra melhor, tropa. Pediu à dupla mais antiga
que se apresentasse à paisana. Isso significava que o sargento Colon, que usara
uniforme a vida inteira, estava corado e sem jeito vestindo o terno que usava
para funerais. Enquanto Nobby...
– Imagino o que mais pode significar a expressão “à paisana” – disse o
capitão Vimes.
– É o que eu uso fora do trabalho, patrão – respondeu Nobby, ofendido.
– Senhor – corrigiu o sargento Colon.
– Minha voz está à paisana também. Ou melhor, minha atitude. Vimes andou
vagarosamente ao redor do cabo.
– E o seu traje à paisana não faz as senhoras idosas desmaiarem e os
garotinhos correrem atrás de você pelas ruas? Nobby se mexia, inquieto. Ele não
se sentia à vontade com ironias.
– Não, senhor, chefe. Este estilo está na moda.
Isso era totalmente verdadeiro. Havia uma tendência de estilo em Ankh de
grandes chapéus com plumas, babados, gibões curtos com galões dourados,
pantalonas boca de sino e botas com esporas decoradas. “O problema é”, refletiu
Vimes, “que a maioria das pessoas atentas à moda tinha mais corpo para
preencher o espaço entre essas peças, enquanto tudo o que pode ser dito do cabo
Nobby é que ele estava ali dentro, em algum lugar”.
Isso poderia ser vantajoso. Afinal, ninguém jamais acreditaria, quando o
vissem andando na rua, que lá estava um membro da Vigilância tentando ser
discreto.
Vimes se deu conta de que não sabia nada sobre o que Nobby fazia fora das
horas de trabalho. Não conseguia sequer se lembrar onde o homem morava.
Convivera com ele durante todos esses anos e nunca percebera que, em sua vida
particular secreta, o cabo Nobby era um pouco exibicionista. Um exibicionista
baixinho, é verdade, um exibicionista que havia sido atingido várias vezes com
algo pesado, talvez, mas ainda assim um exibicionista. Mais uma prova de que as
pessoas sempre podem nos surpreender. Voltou sua atenção para a situação
presente.
– Eu quero que vocês dois – disse a Nobby e Colon – se misturem sem
parecerem intrusos, ou como um intruso, no seu caso, cabo Nobby, com as
pessoas hoje à noite e, er, vejam se conseguem detectar alguma coisa fora do
comum.
– Fora do comum como o quê, por exemplo? – perguntou o sargento. Vimes
hesitou. Ele mesmo não tinha muita certeza.
– Qualquer coisa pertinente.
– Ah – o sargento balançou a cabeça como quem compreende uma
explicação. – Pertinente. Certo.
Houve um silêncio constrangedor.
-Talvez as pessoas tenham visto coisas esquisitas – continuou o capitão Vimes.
– Ou quem sabe tenham ocorrido incêndios inexplicáveis. Ou pegadas. Sabe
como é – terminou, desesperado -, sinais de dragões.
– O senhor quer dizer coisas tipo pilhas de ouro em que alguém tenha
dormido... – sugeriu o sargento.
– E virgens que foram amarradas a pedras – completou Nobby, sabiamente.
– Vejo que são especialistas – suspirou Vimes. – Façam o melhor que
puderem.
– Essa coisa de se misturar – disse o sargento Colon, com delicadeza –
envolveria ir a tavernas, beber e coisas do tipo, não é?
– Até certo ponto.
– Ah – disse o sargento, feliz.
– Com moderação.
– Está certo, senhor.
– E cada um paga o seu. – Oh.
– Mas, antes – disse o capitão –, algum de vocês dois conhece alguém que
possa saber alguma coisa sobre dragões? Fora o fato de dormir em ouro e a parte
da jovem amarrada, quero dizer.
– Os feiticeiros devem saber – arriscou Nobby.
– Fora os feiticeiros – disse Vimes, com firmeza. Não dava para confiar em
feiticeiros. Todo guarda sabia que não dava para confiar em feiticeiros. Eles
eram piores até do que os civis.
Colon pensou um pouco.
– Tem a lady Ramkin também. Mora na avenida Scoone. Ela cria dragões de
pântano. Sabe aquelas coisinhas que as pessoas têm como animal de estimação?
– Ah, ela – disse Vimes, desanimado. – Acho que já a vi por aí. É uma que tem
um adesivo escrito “Relinche Se Você Gosta de Dragões” na parte de trás da
carruagem? – Essa mesmo. Ela é doida – observou o sargento Colon.
– O que o senhor quer que eu faça? – perguntou Cenoura. – Er... A sua tarefa
é a mais importante – disse Vimes, rapidamente. – Eu quero que você fique aqui
e cuide do escritório.
O rosto de Cenoura se alargou num sorriso lento e descrente.
– Quer dizer que eu serei o responsável, senhor? – De certa forma, sim. Mas
você não tem permissão para prender ninguém, entendeu? – acrescentou
rapidamente.
– Nem se a pessoa estiver infringindo a lei, senhor? – Nem assim. Apenas
tome nota.
– Eu vou ler o meu livro, então – disse Cenoura. – E lustrar o meu capacete.
– Bom menino – aprovou o capitão.
“Será totalmente seguro”, pensou. “Ninguém nunca vem aqui, nem mesmo
para avisar que perdeu um cachorro. Ninguém sequer pensa na Vigilância. Só
alguém muito por fora para vir até a Vigilância pedir ajuda”, pensou com
amargura.
A avenida Scoone era uma parte de Ankh ampla, arborizada e incrivelmente
sofisticada, acima do rio a uma altura suficiente para não ser atingida pelo seu
cheiro, que impregnava tudo. As pessoas da avenida Scoone tinham dinheiro
antigo, que diziam ser muito melhor que o dinheiro novo, embora o capitão
Vimes nunca tivesse tido o suficiente de nenhum dos dois para poder notar a
diferença. As pessoas da avenida Scoone tinham o seu guarda-costas pessoal.
Dizia-se que eram tão reservadas que não falavam nem com os deuses. Isso, em
parte, era uma calúnia. Eles falavam com os deuses, mas quando se tratava de
deuses finos, de boa família.
Não era difícil encontrar a casa de lady Ramkin. Ela ficava sobre uma rocha
que lhe conferia uma visão magnífica da cidade, se essa fosse a sua noção de
beleza. Havia dragões de pedra nos postes do portão, e os jardins tinham uma
aparência desleixada de plantas crescendo sem controle. Estátuas de Ramkins
antepassados podiam ser vistas no meio da folhagem. A maioria tinha espadas e
estava coberta de hera até o pescoço.
Vimes notou que isso não se devia ao fato de a dona do jardim não ter
dinheiro para cuidar dele, e sim ao fato de a dona do jardim achar que havia
coisas muito mais importantes do que seus ancestrais, o que era um ponto de vista
bastante raro para uma aristocrata.
Também achava que havia coisas mais importantes do que a manutenção da
casa. Quando tocou a campainha, que em si era bastante agradável, no meio de
uma floresta viçosa de azaleias, diversos pedaços da fachada de gesso caíram.
Aquele pareceu ter sido o único efeito da campainha, com exceção de alguma
coisa no fundo da casa que começou a uivar: algumas coisas. Começou a chover
de novo. Depois de algum tempo, Vimes sentiu o peso da dignidade do seu cargo
e deu uma volta cautelosa ao redor da casa, mantendo-se bem afastado, para o
caso de alguma coisa mais desmoronar. Chegou a um portão de madeira pesado,
que ficava num muro de madeira pesado. Em contraste com a decrepitude geral
do local, parecia novo e bastante sólido.
Ele bateu, o que causou outro ataque de estranhos barulhos sibilantes. A porta
se abriu. Alguma coisa assustadora se avolumou diante dele.
– Ah, meu caro. Você sabe alguma coisa sobre acasalamento? – perguntou a
voz cavernosa.
Estava tudo calmo e seguro na Sede da Vigilância. Cenoura escutava o
assobio da areia na ampulheta, concentrando-se no polimento da sua couraça.
Séculos de manchas cederam ao seu ataque furioso e animado. Ela cintilava.
Uma couraça brilhante dava muita segurança. A estranheza da cidade, onde
havia todas aquelas leis e pessoas se esforçando para ignorá-las, era demais para
ele. Mas uma couraça brilhante estava pronta para tudo. A porta se abriu. Ele
observou, atento, do outro lado da escrivaninha antiga. Não havia ninguém ali.
Deu mais algumas esfregadelas compenetradas.
Ouviu-se o vago som de alguém que está cansado de esperar. Duas mãos de
unhas roxas apertaram as pontas da escrivaninha e o rosto do bibliotecário foi
subindo e aparecendo lentamente, como um coco trazido pelo mar.
– Ooook – ele disse.
Cenoura arregalou os olhos. Alguém lhe explicara cuidadosamente que,
apesar das aparências, as leis que regiam o reino animal não se aplicavam ao
bibliotecário. Por outro lado, o próprio bibliotecário nunca se preocupou muito
em obedecer às leis que governavam o reino humano. Ele era uma dessas
pequenas anomalias que têm que ser tomadas como base para qualquer
afirmação.
– Olá – disse Cenoura, incerto. (“Não o chame com assobios e nem passe a
mão na cabeça dele, ele sempre fica irritado com isso.”) – Ooook.
O bibliotecário bateu na escrivaninha com o dedo longo e cheio de juntas.
-Quê? – Ooook.
– Como? O bibliotecário revirou os olhos. Ele achava estranho que os cães,
cavalos e golfinhos, considerados inteligentes, nunca tivessem nenhuma
dificuldade em indicar aos humanos as informações vitais do momento, por
exemplo, que as três crianças estavam perdidas na caverna, ou o trem estava
prestes a pegar um trilho que levava à ponte que havia sido arrancada, ou algo do
gênero. Enquanto ele, que por apenas alguns cromossomos não usava calças,
encontrava dificuldades para convencer um ser humano mediano a sair na
chuva. Realmente não dá para conversar com algumas pessoas.
– Ooook! – ele disse, e fez um gesto com a mão.
– Não posso sair do escritório – avisou Cenoura. – Recebi ordens. O lábio
superior do bibliotecário se enrolou para cima como uma persiana.
– Isso é um sorriso? – perguntou Cenoura.
O bibliotecário balançou a cabeça.
– Ninguém cometeu um crime, cometeu? – Ooook.
– Um crime sério? – Ooook! – Como assassinato? – Eeek.
– Pior que assassinato? – Eeek! O bibliotecário deu um impulso sobre as
juntas dos dedos e ficou pulando no vão da porta, insistente.
Cenoura engoliu em seco. Ordens eram ordens, sim, mas isso era outra coisa.
As pessoas desta cidade eram capazes de qualquer coisa. Ele afivelou a couraça,
enfiou o capacete reluzente na cabeça e seguiu na direção da porta.
Depois, lembrou-se de suas responsabilidades. Voltou para a escrivaninha,
encontrou um pedaço de papel e escreveu de forma meticulosa: Saí para
Combater o Crime. Favor Ligar Novamente Mais Tarde. Obrigado.
E, aí sim, saiu para as ruas, imaculado e destemido.
O Grande Mestre Supremo ergueu os braços.
– Irmãos, comecemos...
Era tão fácil. Tudo o que precisava fazer era canalizar aquele enorme
reservatório de ciúme e ressentimento servil que os Irmãos tinham em tanta
abundância, tirar proveito do seu terrível aborrecimento mundano, o qual possuía
uma força a seu favor maior que o mal supremo, e depois direcionar a própria
mente...
... para o lugar aonde foram os dragões.
Vimes se viu agarrado pelo braço e puxado para dentro. A porta pesada
fechou atrás dele com um clique preciso.
– É o lorde Montealegre Escamavistosa Garrafiada III de Ankh – disse a
aparição, que usava uma armadura enorme e cheia de proteções acolchoadas e
alarmantes. – Sabe, acho que ele não vai poder dispensar a mostarda.
– Não vai? – perguntou Vimes, recuando.
– São necessários dois de vocês.
– É, acho que sim – sussurrou Vimes, tentando forçar a cerca para fora com
os ombros.
– Você poderia fazer um favor? – disse a coisa, com um som de trovão.
– O quê? – Ah, não seja medroso, homem. Você só tem que ajudá-lo a subir.
Sou eu que fico com a parte complicada. Eu sei que é cruel, mas, se ele não
conseguir nesta noite, vai para o “chop-chop”. Sobrevivência dos mais aptos e
essa história toda, sabe.
O capitão Vimes conseguiu se recompor. Estava claramente na presença de
alguma assassina em potencial louca por sexo, visto que o seu gênero podia ser
determinado sob a estranha vestimenta cheia de protuberâncias. Se não era do
sexo feminino, então as referências a “sou eu que fico com a parte complicada”
produziriam imagens mentais que o assombrariam por algum tempo. Ele sabia
que os ricos faziam as coisas de um jeito diferente, mas isso estava indo longe
demais.
– Madame – disse friamente -, eu sou um oficial da Vigilância e tenho que
alertá-la de que a ação que a senhora está sugerindo fere a lei da cidade... e
também de alguns deuses mais puritanos – acrescentou, em silêncio. – E tenho
que adverti-la de que seu lorde deve ser libertado ileso imediatamente... A figura
olhou para ele com assombro.
– Por quê? – disse. – É o meu maldito dragão.
– Aceita mais uma bebida, não-cabo Nobby ? – disse o sargento Colon, sem
muita firmeza.
– Eu não me importaria, não, sargento Colon.
Eles estavam levando a história de não levantar suspeitas a sério. Isso
eliminava a maioria das tavernas do lado Morpork do rio, onde eram muito
conhecidos. Estavam numa taverna muito elegante no centro de Ankh, onde
tentavam ser o mais discretos que conseguiam. Os outros clientes achavam que
eles iriam apresentar algum número de cabaré.
– Eu estava aqui pensando – começou o sargento Colon.
– No quê? – Se comprássemos uma ou duas garrafas, poderíamos ir para
casa e certamente não levantaríamos suspeitas.
Nobby pensou um pouco sobre aquilo.
– Mas ele disse que temos que ficar de orelhas em pé. Nós temos que,
segundo o que ele disse, detectar alguma coisa.
– Nós podemos fazer isso na minha casa. Nós poderíamos ficar ouvindo a
noite toda, com muita atenção.
– Bem pensado – concordou Nobby. Na verdade, a ideia soava cada vez
melhor à medida que pensava nela.
– Mas, primeiro, eu tenho que fazer uma visita.
– Eu também. Esse negócio de detectar as coisas mexe com a gente depois
de um certo tempo.
Eles correram para o beco atrás da taverna. Havia uma lua cheia no céu,
mas alguns trapos de nuvem encardida passavam na frente dela. De modo
imperceptível, os dois trombaram um com o outro na escuridão.
– É você, detector sargento Colon? – Isso mesmo! Você consegue detectar a
porta do banheiro, detector cabo Nobby ? A porta que estamos procurando é
baixa, escura e de aparência sinistra, ha, ha, ha.
Ouviram-se alguns tinidos e xingamentos abafados vindos de Nobby, que
cambaleava pelo beco, seguidos de um uivo, quando um gato da enorme
população de felinos selvagens de Ankh-Morpork passou correndo entre as suas
pernas.
– Quem ama você, gatinho? – perguntou Nobby, em voz baixa.
– A necessidade me obriga, então – disse o sargento Colon, e virou-se para
um canto acessível.
Suas reflexões privadas foram interrompidas por um grunhido vindo do cabo.
– E você aí, sargento? – Detector sargento para você, Nobby – disse, num
tom divertido. O tom de Nobby era urgente e, de repente, muito sóbrio.
– Não faça xixi por aí, sargento, acabei de ver um dragão passar voando! –
Eu já vi peixe-voador – disse o sargento Colon, soluçando de leve. – E já vi
cheque-voador. Já vi gente voar, mas nunca vi um dragão voador.
– É claro que já, imbecil – continuou Nobby, com pressa. – Olha, eu não vou
ficar de bobeira! Ele tinha asas tipo, tipo, tipo asas muito grandes! O sargento
Colon se virou com uma postura imponente. O rosto do cabo tinha ficado tão
branco que aparecia na escuridão.
– Sério, sargento! O sargento Colon virou os olhos para o céu úmido e para a
lua molhada pela chuva.
– Tudo bem, mostre pra mim.
Ouviu-se um barulho de algo deslizando atrás dele e algumas telhas se
espatifaram na rua.
Ele se virou. E lá estava o dragão, no telhado.
– Tem um dragão no telhado! – gritou, desafinado. – Nobby, é um dragão ali
no telhado! O que eu faço, Nobby ? Tem um dragão no telhado! Ele está olhando
para mim, Nobby ! – Pra começar, Você podia fechar a calça – disse Nobby, de
trás do muro mais próximo.
Mesmo sem as suas camadas de roupas protetoras, lady Sy bil Ramkin
continuava enormemente grande. Vimes sabia que os hublanders bárbaros
contavam lendas sobre grandes donzelas com coletes de malha de ferro e sutiãs
blindados, sobre grandes cavalos, que desciam aos campos de batalha e saíam de
lá carregando os guerreiros mortos para uma vida após a morte gloriosa e
agitada, enquanto cantavam num agradável mezzo-soprano. Lady Ramkin
poderia ter sido uma delas. Poderia ter sido a sua líder. Poderia ter carregado um
batalhão. Quando falava, cada palavra era como um tapa vigoroso nas costas e
ressoava com a autoconfiança aristocrática dos bem-nascidos. Somente os sons
de vogais já eram capazes de cortar mogno.
Os antepassados patéticos de Vimes estavam acostumados com vozes como
aquela, geralmente vindas de pessoas totalmente protegidas por armaduras, atrás
deles, num cavalo de batalha, dizendo por que seria uma boa ideia atacar o
inimigo e deixá-lo arrasado. Suas pernas queriam ficar em posição de sentido.
Homens pré-históricos a teriam venerado e, na verdade, conseguiram esculpir
estátuas muito fiéis dela havia milhares de anos. Ela tinha uma massa de cabelos
castanhos. Uma peruca, Vimes ficou sabendo depois. Ninguém que tivesse uma
relação próxima com dragões conseguia manter os próprios cabelos por muito
tempo.
Também tinha um dragão no ombro. Ele tinha sido apresentado como
Garrafiada Vincent Prodigioso de Quirm, chamado também de Vinny, e parecia
estar dando uma grande contribuição ao odor químico incomum que impregnava
a casa. Esse cheiro permeava tudo. Até mesmo o generoso pedaço de bolo
oferecido a ele estava com aquele gosto.
– O, er, do ombro... parece ser... muito legal – disse, desesperado para puxar
assunto.
– Bobagem – retrucou sua senhoria. – Só o estou treinando porque os que
sentam no ombro chegam a valer o dobro do preço.
Vimes murmurou que tinha visto, algumas vezes, damas da sociedade com
pequenos dragões coloridos nos ombros e achou muito, er, legal.
– Ah, parece legal. Concordo com você. Até elas perceberem que isso
significa coisas queimadas com fuligem, cabelos encrespados e merda
escorrendo pelas costas. Essas garras entram na pele também. Depois acham
que o bicho está ficando grande e fedido demais e, quando você vai ver, já estão
no Santuário Raio de Sol Morpork para Dragões Perdidos ou dentro do rio com
uma corda no pescoço, pobres coitados. – Ela se sentou, ajeitando uma saia que
daria para fazer velas para uma pequena frota. -Bom, então. Capitão Vimes,
certo? Vimes estava perdido. Os antepassados havia muito falecidos de Ramkin
perturbavam-no com seu olhar fixo do alto das molduras decoradas nas paredes
sombrias. Entre os retratos, ao redor e abaixo deles estavam as armas que teriam
usado, e pela aparência delas haviam sido bem usadas. Havia armaduras
completas enfileiradas em cavidades ao longo das paredes. Um grande número
delas, não pôde deixar de notar, tinha furos enormes. O teto era uma confusão
desbotada de estandartes comidos por traças. Não era preciso fazer um exame
de perícia para concluir que os ancestrais de lady Ramkin nunca fugiram de uma
batalha.
Era incrível que ela fosse capaz de fazer algo tão pouco bélico como tomar
uma xícara de chá.
– Meus antepassados – disse, seguindo a direção do olhar hipnotizado dele.
– Sabe, nenhum Ramkin, nos últimos mil anos, morreu deitado na cama.
– E mesmo, senhora? – Fonte de orgulho para a família, isso aí.
– E mesmo, senhora.
– Um grande número deles morreu na cama, mas não deitado, é claro. A
xícara do capitão Vimes chacoalhou no pires.
– Ê mesmo, senhora? – Capitão é um título bastante enérgico, sempre achei. –
Ela deu um sorriso brilhante e frágil. – Quer dizer, coronel e coisas assim são
sempre tão sem graça, majores são pomposos, mas as pessoas sempre sentem,
de alguma forma, que existe algo deliciosamente perigoso num capitão. O que é
que você tinha para me mostrar? Vimes apertou o seu embrulho como se fosse
um cinto de castidade.
– Eu gostaria de saber – hesitou – que tamanho os... er... – Ele parou. Algo
terrível estava acontecendo nas suas regiões mais baixas.
Lady Ramkin seguiu o seu olhar.
– Oh, não ligue para ele – disse, animada. – Bata com a almofada se estiver
incomodando.
Um pequeno dragão ancião havia saído de baixo da cadeira e colocado o
focinho com papada no colo de Vimes. Ele o encarou com um olhar comovente
e grandes olhos castanhos, babando suavemente alguma coisa bastante corrosiva,
pela sensação causada, sobre seus joelhos. E que fedia como a área ao redor de
um banho de ácido.
– Esse é o Pingo de Orvalho Mabelline Garrafiada Primeiro – disse sua
senhoria. – Campeão e progenitor de campeões. Agora acabou o seu fogo, pobre
velho babãozinho. Ele gosta que cocem a barriga dele.
Vimes fez movimentos bruscos e hostis, porém disfarçados, para expulsar o
velho dragão. A criatura piscou com tristeza para ele, com olhos aquosos, e
afastou o canto da boca, deixando à mostra uma fileira de dentes enegrecidos
pela fuligem.
– E só empurrá-lo se estiver incomodando – repetiu lady Ramkin, animada.
– Então, o que você estava perguntando? – Eu gostaria de saber o tamanho
que os dragões de pântano podem atingir – perguntou Vimes, tentando mudar de
posição. Ouviu-se um fraco rosnado.
– Você veio até aqui só para me perguntar isso? Bom... Acho que me lembro
que Almalegre Garrafiada de Ankh chegou a catorze polegares de altura, dos
dedos dos pés ao fio de cabelo -refletiu lady Ramkin.
-Er...
– Cerca de 1,10 m – acrescentou num tom gentil.
– Nada além disso? – perguntou Vimes, esperançoso. No seu colo, o velho
dragão começou a roncar suavemente.
– Credo, não. Ele era meio que uma aberração, na verdade. Em geral, eles
não crescem mais do que oito polegares.
Os lábios do capitão Vimes se mexeram num cálculo apressado.
– Sessenta centímetros? – arriscou.
– Muito bem. Os ápices, é claro. As fêmeas são um pouco menores. Capitão
Vimes não ia desistir.
– Um ápice seria um dragão macho? – Apenas após os 2 anos de idade –
disse lady Ramkin, triunfante. -Até os 8 meses ele é um pilmete, depois é frango
até os 14 meses e depois ele vira um laço...
O capitão Vimes estava extasiado, sentado comendo o bolo horrível, com a
calça se dissolvendo aos poucos, enquanto o fluxo de informações transbordava
sobre ele: que os machos lutavam com chamas, mas, na época de pôr os ovos,
apenas as fêmeas (“Fêmeas” apenas até a terceira ninhada, é claro. Depois
disso, elas são “genitoras”.) cuspiam fogo, a partir da combustão de complexos
gases intestinais, para incubar os ovos, os quais precisavam dessas temperaturas
tão violentas, enquanto os machos recolhiam lenha. Que os grupos de dragões do
pântano eram chamados de baixa ou constrangimento. Que a fêmea era capaz
de botar até três ninhadas de quatro ovos por ano, a maior parte dos quais era
esmagada por machos distraídos. E que os dragões de ambos os sexos tinham um
leve desinteresse uns pelos outros e que, na verdade, por todas as coisas, exceto
lenha e exceto uma vez a cada dois meses, quando se tornavam tão obsessivos
quanto uma serra elétrica.
Ele não teve como impedir que fosse levado aos canis nos fundos, vestido do
pescoço aos tornozelos numa armadura de couro com chapas de aço e conduzido
para o prédio longo e baixo de onde vinham os uivos. A temperatura era terrível,
mas não tão ruim quanto o coquetel de cheiros. Ele cambaleava sem rumo de
um curral revestido de metal ao outro, enquanto coisinhas horríveis de olhos
vermelhos e corpo em formato de pera guinchavam e eram apresentadas como
“Penny da Lua Duquesa Marzipan, que está prenha no momento” e “Névoa da
Lua Garrafiada II, que ganhou O Melhor da Raça em Pseudópolis no ano
passado”. Jatos de chamas verdes e opacas se agitavam nos joelhos dele.
Muitas das baias tinham distintivos de fitas e certificados pendurados.
– E este aqui, infelizmente, é o Bongaroto Troxa Pedrapena de Quirm – disse
lady Ramkin, impiedosa.
Vimes, grogue, olhou por cima da grade chamuscada para o pequeno ser
enrolado no chão. Ele estava para o resto deles assim como Nobby estava para
os outros seres humanos. Alguma coisa na sua ascendência havia lhe dado um
par de sobrancelhas que era mais ou menos do mesmo tamanho das suas asas
atarracadas, as quais não poderiam nunca sustentá-lo no ar. Sua cabeça não tinha
o formato certo, era como a de um tamanduá. Suas narinas pareciam turbinas de
um jato. Se algum dia ele conseguisse se transportar pelo ar, elas ofereceriam a
resistência de paraquedas duplos.
Ele também dirigia ao capitão Vimes o olhar mais silenciosamente inteligente
que já havia visto num animal, incluindo o cabo Nobby.
– Isso acontece – disse lady Ramkin, com tristeza. – É tudo uma questão de
genes, sabe.
– E? – perguntou Vimes. De alguma forma, a criatura parecia estar
concentrando todo o poder que os seus irmãos gastavam em chamas e barulho no
esforço para lançar um olhar que parecia um lança-chamas. Ele acabou se
lembrando do quanto queria ter tido um cachorrinho quando era menino. E, veja
bem, eles estavam passando fome, qualquer coisa revestida de carne serviria.
Ele ouviu a dona dos dragões dizer: – A gente tenta criar uma raça com uma boa
chama, escamas grossas, a cor certa e por aí vai. E, vez por outra, tem que
aguentar um que seja totalmente desbastado.
O pequeno dragão dirigiu a Vimes um olhar que teria o primeiro lugar
garantido num concurso de Dragões que os Juízes Mais Gostariam de Levar para
Casa e Usar como Acendedor de Fogão.
“Totalmente desbastado”, Vimes pensou. Ele não tinha certeza do significado
preciso da palavra, mas podia arriscar um palpite mais ou menos preciso. Soava
como qualquer coisa que sobrasse depois que se extraísse tudo o que tivesse
algum valor. “Como a Vigilância”, pensou. “Totalmente desbastados, todos eles. E
exatamente como ele. Era a saga da sua vida.” – Assim é a Natureza – disse sua
senhoria. – É claro que eu nem sonho em reproduzir a partir dele, mas também
não conseguiria mesmo.
– Por que não? – Porque os dragões têm que acasalar no ar, e ele nunca
conseguirá voar com essas asas, infelizmente. Seria uma pena perder a
linhagem, é claro. Uma de suas genitoras foi Brenda Rodley s Treebite
Escamarreluzente. Você conhece a Brenda? – Er, não.
Lady Ramkin era o tipo de pessoa que achava que todo mundo conhecia todo
mundo que ela conhecia.
– Um doce. Bom, de todo jeito, os irmãos dele estão se desenvolvendo muito
bem.
“Pobre coitado”, pensou Vimes. Em resumo, assim é a Natureza. Sempre
dando as cartas que estão no fundo do baralho. Não é à toa que a chamam de
mãe...
– Você disse que tinha algo para me mostrar... – lembrou lady Ramkin. Vimes
entregou o pacote a ela sem dizer nada. Ela tirou as luvas grossas e retirou o
papel do embrulho.
– Molde de gesso de uma pegada – ela disse, sem esconder a decepção.
– Isso te lembra alguma coisa? – Poderia ser uma ave pernalta.
– Oh. – Vimes ficou desanimado. Lady Ramkin riu.
– Ou um dragão muito grande. Você pegou isso num museu, foi? – Não,
peguei na rua hoje de manhã.
– Hã? Alguém está querendo pregar uma peça em você, meu caro.
– Er. Houve, er, uma prova circunstancial. Contou a história. Ela olhou
fixamente para ele.
– Draco nobilis – disse, com a voz rouca.
– Perdão?
– Draco nobilis. O dragão nobre. O oposto desses aí... – ela fez um gesto na
direção das filas amontoadas de lagartos sibilantes. – Draco vulgaris, um monte
deles. Mas os grandes não existem mais, sabe. Isso é realmente um absurdo. Não
tem como. Não existem mais. Eram umas coisas lindas. Pesavam toneladas. As
maiores criaturas que já se viu voar. Ninguém sabe como eles conseguiam.
Então eles perceberam. Estava tudo muito silencioso.
Pelas fileiras do canil, os dragões estavam em silêncio, com os olhos
brilhando e atentos. Olhavam fixamente para o telhado.
Cenoura olhou ao redor. Prateleiras se estendiam em todas as direções. Nas
prateleiras, livros. Ele fez uma suposição baseada na observação.
– Esta é a Biblioteca, não é? O bibliotecário continuou segurando a mão do
rapaz educadamente, mas com firmeza, e o levou pelo labirinto de corredores.
– Tem um corpo aí? – perguntou Cenoura. Tinha que ter. Pior que assassinato!
Um corpo numa biblioteca. Poderia levar a diversas hipóteses. O símio
finalmente parou em frente a uma prateleira que não parecia nem um pouco
diferente de centenas de outras. Alguns dos livros estavam presos com correntes.
Havia um espaço vazio. O bibliotecário apontou para ele.
– Ooook.
– Bem, e daí? Um buraco onde deveria haver um livro.
– Ooook.
– Um livro foi retirado. Um livro foi retirado? Você convocou a Vigilância –
Cenoura corrigiu a postura, orgulhoso – porque alguém retirou um livro? Você
acha que isso é pior do que um assassinato?
O bibliotecário dirigiu a ele um olhar que outras pessoas reservariam para
alguém que dissesse coisas como: “O que há de tão ruim no genocídio?”.
– Isso é praticamente um delito penal, desperdiçar o tempo da Vigilância. Por
que você não vai contar para o chefe dos feiticeiros ou quem quer que seja?
– Ooook.
O bibliotecário indicou com gestos surpreendentemente econômicos que
alguns feiticeiros não conseguiam sequer localizar o próprio traseiro usando as
duas mãos.
– Bom , eu não sei o que podemos fazer a respeito. Como se chama o livro? O
bibliotecário coçou a cabeça. Isso ia ser complicado. Encarou Cenoura, juntou as
mãos, com as luvas de couro, depois abriu devagar.
– Eu sei que é um livro. Qual é o nome? O bibliotecário suspirou e ergueu a
mão.
– Quatro palavras? Primeira palavra – o símio juntou as pontas de dois dedos
enrugados. – Uma palavra pequena? Um. A. Par...
– Ooook! – A? A. Segunda palavra... terceira palavra? Palavra pequena. O?
A? Um? Par... De? De. A alguma coisa de alguma coisa. Segunda palavra. O quê?
Ah. Primeira sílaba. Pequeno. Palavra muito pequena. Um. Em. O. E. E!
Segunda sílaba. Garganta? Voz. Vocal.
O orangotango rosnou e puxou com um gesto teatral a orelha peluda.
– Ah, o som é parecido. Voz? Vocal? Vocacional. Vocação! Juntar as sílabas.
Evocação? Evocação. Evocação. A Evocação de Alguma Coisa. Até que é
divertido isso! Quarta palavra. Palavra inteira...
Ele observou atentamente enquanto o bibliotecário girava com um ar
misterioso.
– Coisa grande. Coisa enorme. Bater asas. Coisa muito grande que salta e bate
as asas. Dentes. Bufar. Soprar. Coisa muito grande que bate as asas e sopra. O
suor começou a brotar na testa de Cenoura enquanto tentava obedientemente
entender.
– Chupar o dedo. Dedo queimado. Quente. Coisa muito grande e quente que
bate as asas e sopra...
O bibliotecário revirou os olhos. Homo sapiens. Até parece.
O grande dragão dançava, rodopiava e abria caminho pelos ares sobrevoando
a cidade. Tinha a cor do luar que refletia nas escamas. Às vezes mudava a
direção de repente e planava numa velocidade ilusória acima dos telhados, pelo
simples prazer de existir.
“E está tudo errado”, pensou Vimes. Uma parte dele estava maravilhada com
a beleza da visão, mas havia um pequeno grupo de neurônios insistentes e
ambíguos do lado errado das sinapses fazendo pichações nos muros do
deslumbramento.
“E um maldito lagarto gigante”, eles zombavam. “Deve pesar toneladas.
Nada desse tamanho é capaz de voar, por mais belas que sejam as asas. E não
tem nada a ver um lagarto gigante com essas escamas nas costas...” Cento e
cinquenta metros acima, uma chama azul e branca fez um estrondo no céu.
“Ele não pode fazer uma coisa dessas! Seus lábios pegariam fogo!” Ao seu
lado, lady Ramkin estava parada de boca aberta. Atrás dela, os pequenos dragões
enjaulados uivavam e gemiam.
A grande besta deu uma volta no ar e um rasante acima dos telhados. A
chama foi lançada mais uma vez. Logo abaixo dela, chamas amarelas se
espalharam. Isso tudo foi feito com tanto estilo e discrição que Vimes demorou
alguns segundos para perceber que alguns prédios estavam pegando fogo.
– Nossa! – disse lady Ramkin. – Olha! Ele está usando os termais! É para isso
que serve o fogo! Ela se virou para Vimes com os olhos vermelhos de desespero.
– Você tem noção de que estamos vendo algo que ninguém via há séculos? –
Sim, é um maldito jacaré voador botando fogo na minha cidade! – gritou Vimes.
Ela não estava ouvindo.
– Deve haver uma colônia de procriação em algum lugar. Depois de todo
esse tempo! Onde você acha que ele vive? Vimes não sabia. Mas jurou para si
mesmo que descobriria e faria algumas perguntas muito sérias a ele.
– Um ovo – murmurou a procriadora. – Se eu pudesse pôr as mãos em um
ovo...
Vimes olhou para ela com profundo espanto. Subitamente ficou claro que era
muito provável que ele tivesse algum desvio de caráter.
Abaixo deles, mais um prédio explodiu em chamas.
– Essas coisas – começou, falando muito devagar e com cuidado, como se
falasse com uma criança – conseguem voar muito longe? – Eles são animais
muito territoriais – murmurou sua senhoria. – Diz a lenda que eles...
Vimes percebeu que iria receber mais uma dose de histórias detalhadas sobre
dragões.
– Conte-me apenas os fatos, milady – disse, impaciente.
– Não muito longe, na verdade – ela respondeu, levemente surpresa.
– Muito obrigado, a senhora está sendo muito útil – retrucou Vimes, e saiu
correndo.
Algum lugar da cidade. Não havia nada do lado de fora, a não ser
quilômetros de campo e pântano. Ele tinha que estar morando em algum lugar da
cidade.
Suas sandálias batiam nas pedras do pavimento enquanto ele corria
estabanado pelas ruas. Algum lugar da cidade! O que era totalmente ridículo, é
claro. Totalmente ridículo e impossível.
Ele não merecia isso. “De todas as cidades no mundo todo para que ele
poderia ter voado”, pensou, “ele voou para a minha...” Quando chegou ao rio, o
dragão havia desaparecido. Porém, uma cortina de fumaça pairava sobre as
ruas, e diversas correntes humanas com baldes haviam se formado para passar
pequenas porções de água do rio até os prédios atingidos (O Grêmio dos
Bombeiros havia sido banido pelo patrício no ano anterior, após muitas
reclamações. A questão era que, se você assinasse um contrato com o Grêmio,
sua casa seria protegida contra incêndios. Infelizmente, o ethos geral de Ankh-
Morpork começou a se manifestar rapidamente, e a tendência dos bombeiros era
ir à casa de possíveis clientes em grupos, fazendo comentários em voz alta:
“Parece muito inflamável, esta aqui” e “Essa provavelmente iria pro alto feito
fogos de artifícios com apenas um palito de fósforo derrubado por descuido no
chão, se é que você me entende”.)
O trabalho era dificultado de forma considerável por pessoas que saíam
correndo para as ruas carregando suas posses. A maior parte da cidade era feita
de madeira e palha, e os moradores não queriam correr riscos. Na verdade, era
surpreendente, mas o risco era pequeno. Era um mistério, se você parasse para
pensar.
Vimes passara a carregar secretamente um caderno durante esses dias, e
registrou os estragos como se o mero ato de anotar as coisas fizesse do mundo, de
alguma forma, um lugar mais fácil de entender.
Hítem 1: Ua Cocheira (pertencente a um comerciante inofensivo, que
acabara de ver a carruagem nova pegar fogo).
Hítem 2: Ua pequena mercearia de verduras e legumes (com precisão
apurada).
Vimes ficou pensando naquilo. Ele havia comprado maçãs ali uma vez, e não
parecia haver nada que pudesse ofender um dragão.
“Ainda assim, foi muito bem pensado da parte do dragão”, ele pensou,
enquanto seguia para a sede da Vigilância. “Se você pensar em todos os depósitos
de madeira, montes de feno, telhados de sapé e estoques de querosene que
poderia ter atingido por acaso, ele realmente conseguiu assustar todo mundo sem
prejudicar seriamente a cidade.” Os primeiros raios de sol penetravam as
cortinas de fumaça quando ele empurrou a porta. Ali era o seu lar. Não o
quartinho quase vazio acima da loja de velas no beco de Wixon, onde ele dormia,
mas este desagradável quarto marrom que cheirava a chaminé suja, a cachimbo
do sargento Colon, a problemas pessoais misteriosos de Nobby e, ultimamente, à
cera com que Cenoura lustrava a armadura. Era quase um lar.
Não havia ninguém ali. Ele não ficou muito surpreso. Subiu para o escritório e
se recostou na cadeira, cuja almofada seria jogada para fora do cesto por um
cachorro enojado, puxou o capacete para cima dos olhos e tentou pensar. Sua
correria não tinha adiantado nada. O dragão havia desaparecido no meio da
fumaça e da confusão, tão de repente quanto surgira. Precisava armar sua
correria de uma forma que o surpreendesse. O importante era descobrir para
onde correr...
Estava certo antes. Ave pernalta! Mas por onde se começava a procurar um
maldito dragão numa cidade com um milhão de pessoas?: Ele tinha consciência
de que a sua mão direita, de forma totalmente involuntária, tinha aberto a gaveta
de baixo, e três dedos, agindo sob ordens expressas da parte posterior do cérebro,
haviam puxado uma garrafa. Era o tipo de garrafa que se esvaziava sozinha. A
razão lhe dizia que às vezes ele tinha que abrir uma, romper o lacre, ver o líquido
amarelo-âmbar reluzindo até o gargalo. Mas não conseguia se lembrar da
sensação. É como se as garrafas já chegassem com apenas um terço do
conteúdo...
Começou pelo rótulo. Parecia ser o Uísque Sangue de Dragão Envelhecido e
Selecionado de Jimkin Abraçaurso. Barato e poderoso, era possível acender
fogueiras e limpar colheres com ele. Não era preciso beber muito para ficar
bêbado, o que não fazia diferença.
Foi Nobby quem o acordou com a notícia de que havia um dragão na cidade
e de que o sargento Colon tinha feito algo vergonhoso. Vimes se sentou e piscou
feito uma coruja enquanto as palavras caíam sobre ele. A experiência de ter um
lagarto que cospe fogo olhando com interesse para as suas regiões inferiores a
poucos metros de distância parecia perturbar até o sujeito mais equilibrado. Uma
experiência como aquela poderia deixar marcas numa pessoa por um bom
tempo.
Vimes ainda estava digerindo isso quando Cenoura chegou com o
bibliotecário se balançando atrás dele.
– Vocês viram? Vocês viram? – ele perguntou.
– Todos nós vimos – disse Vimes.
– Estou sabendo de tudo! – disse Cenoura, triunfante. – Alguém o trouxe para
cá por meio da magia. Alguém roubou um livro da Biblioteca, e adivinhem qual
é o título? – Não sei nem por onde começar – respondeu Vimes, sem forças.
– O título é A Evocação de Dragões! – Ooook – confirmou o bibliotecário.
– Oh? Sobre o que é o livro? – perguntou Vimes. O bibliotecário revirou os
olhos.
– É sobre como evocar dragões. Pela magia! – Ooook.
– E isso é ilegal, aí está! – disse Cenoura, feliz. – Soltura de Criaturas Ferozes
na Rua, em desacordo com Os Animais Selvagens (Estatuto...) Vimes soltou um
suspiro profundo. Isso significava que havia feiticeiros envolvidos. E feiticeiros
sempre representam problemas.
– Eu suponho então – ele disse – que não existe outra cópia desse livro por aí.
– Ooook – o bibliotecário balançou a cabeça querendo dizer que não.
– E você não saberia, por acaso, o que estava escrito nele? – Vimes suspirou.
– O quê? Ah. Quatro palavras – disse, cansado. – Primeira palavra. O som é
parecido. Laranja. Gomo? Domo, pomo, como... Como. Segunda palavra.
Primeira sílaba. Mais, com, e... E... Ah, entendi, mas eu quis dizer com algum
detalhe. Não. Está bem.
– O que vamos fazer agora, capitão? – perguntou Cenoura, ansioso.
– Ele está lá – entoou Nobby. – Lançado ao chão, como durante as horas em
que raia o dia. Aconchegado em sua toca secreta, no alto de um grande monte de
ouro, sonhando antigos sonhos reptilianos de um tempo muitantigo, à espera do
manto secreto da noite, quando mais uma vez partirá com ímpeto... – Ele hesitou,
e acrescentou emburrado: – Por que estão todos me olhando desse jeito? – Muito
poético – disse Cenoura.
– Bom, todo mundo sabe que os dragões antigos dormiam sobre uma reserva
de ouro. Mito popular bastante conhecido.
Vimes olhava para o futuro próximo com uma expressão vazia. Por mais
desprezível que Nobby fosse, era uma boa indicação do que se passava pela
mente do cidadão comum. Poderia ser usado como uma espécie de rato de
laboratório para prever o que aconteceria em seguida.
– Imagino que você estaria muito interessado em descobrir onde está essa
reserva, não é? – perguntou Vimes, de modo experimental.
Nobby pareceu ainda mais dissimulado do que de costume.
– Bem, capi, eu estava pensando em dar uma olhadinha por aí. Sabe como é.
Quando estiver de folga, é claro – acrescentou, num tom responsável.
– Ai, meu Deus...
Vimes ergueu a garrafa vazia e, com muito cuidado, colocou-a de volta na
gaveta.
Os Irmãos Esclarecidos estavam nervosos. Uma espécie de medo passava de
irmão a irmão. Era o temor de quem, após ter experimentado com alegria a
colocação da pólvora e da bala, descobriu que puxar o gatilho causava um
barulho desgraçado e que em breve alguém chegaria para ver quem estava
fazendo o barulho.
Mas o Grande Mestre Supremo sabia que eles estavam sob seu controle.
Tanto os mansos quanto os rebeldes. Como não fariam nada muito pior do que o
que tinham feito, eles poderiam até ir em frente, acabar com o mundo e fingir
que era isso o que queriam o tempo todo. Ah, que alegria...
Apenas o Irmão Emboçador estava realmente feliz.
– Que isso sirva de lição para todos os quitandeiros opressores – continuava
dizendo.
– Sim, er – concordou o Irmão Porteiro. – Só que o negócio é o seguinte: não
existe nenhuma chance de evocarmos o dragão aqui por acidente, certo? – Eu...
quer dizer, nós... temos tudo perfeitamente sob controle – disse o Grande Mestre
Supremo, com uma voz suave. – O poder é nosso. Posso lhe garantir.
Os Irmãos se animaram um pouquinho.
– E agora – o Grande Mestre Supremo prosseguiu – tem a questão do rei. Os
Irmãos assumiram um ar solene, com exceção do Irmão Emboçador.
– Nós já o encontramos, então? Isso foi um golpe de sorte.
– Você não ouve mesmo, hein? – soltou o Irmão Torre de Vigia. – Foi tudo
explicado na semana passada, não se sai por aí encontrando ninguém. Nós
fazemos um rei.
– Eu achava que ele tinha que surgir. Por causa do destino. O Irmão Torre de
Vigia deu um risinho irônico.
– A gente meio que dá uma mãozinha pro Destino.
O Grande Mestre Supremo sorriu nas profundezas de seu manto. Era incrível
lidar com o misticismo. Você conta uma mentira e não é preciso fazer mais
nada, você conta outra mentira e diz que estão progredindo no caminho da
sabedoria. Então, em vez de rir, eles acreditam ainda mais, com esperança de
encontrar a verdade no meio de tanta mentira. E, pouco a pouco, passam a
aceitar o inaceitável. Incrível.
– Puxa vida, que ideia inteligente – disse o Irmão Porteiro. -Como é que se
faz isso, então? – Olha, o Grande Mestre Supremo disse que, se encontrarmos um
rapaz bonito que seja bom em obedecer ordens, ele mata o dragão, e aí tudo dá
certo. Simples. Muito mais inteligente do que esperar por um assim chamado rei
de verdade.
– Mas... – O Irmão Emboçador parecia estar mergulhado em suas atividades
cerebrais -, se nós controlamos o dragão, e realmente controlamos o dragão,
certo? Então não precisamos que ninguém o mate, é só parar de evocá-lo, e todo
mundo vai ficar feliz, certo? – Ah, é – rebateu o Irmão Torre de Vigia, num tom
malcriado –, está até dando pra ver. A gente simplesmente chega e diz “Olha, não
vamos mais pôr fogo nas suas casas, nós somos legais”, não é? O grande lance do
rei é que ele vai ser um, uma espécie de...
– Símbolo inegavelmente poderoso e romântico da autoridade absoluta –
completou o Grande Mestre Supremo.
– É isso aí – concordou o Irmão Torre de Vigia. – Uma autoridade poderosa.
– Ah, entendi – disse o Irmão Emboçador. – Certo. Tudo bem. É isso o que o
rei vai ser.
– É isso aí – reiterou o Irmão Torre de Vigia.
– Ninguém vai discutir com uma autoridade poderosa, vai? – Exatamente.
– Seria um golpe de sorte, então, encontrar o rei de verdade agora – disse o
Irmão Emboçador. – Uma chance em um milhão, na verdade.
– Não encontraremos o rei certo. Não precisamos do rei certo – explicou o
Grande Mestre Supremo, sem forças. – Pela última vez! Acabei de encontrar um
rapaz apropriado, que fica bem de coroa, sabe obedecer a ordens e florear as
palavras. Agora, ouçam, por favor...
“Florear, é claro, era importante. Não tinha muito a ver com governar.
Empunhar a espada”, considerou o Grande Mestre Supremo, “era simplesmente
o trabalho sujo da cirurgia dinástica. Era apenas uma questão de espetar e cortar.
Enquanto o rei tinha que florear. Tinha que captar a luz no ângulo certo, sem
deixar dúvidas aos espectadores de que lá estava o escolhido pelo Destino”. Ele
havia levado muito tempo para preparar a espada e o escudo. Tinha sido muito
caro. O escudo brilhava como um dólar no fundo de um poço, mas a espada, a
espada era magnífica...
Ela era longa e brilhante. Parecia com algo que um gênio da metalurgia – um
desses caras zen que trabalham apenas à luz do alvorecer e conseguem bater em
três camadas de placas de aço dobradas até formar algo com o gume de um
bisturi e o poder de um rinoceronte tarado numa viagem ruim de ácido – tivesse
feito e depois se aposentado com lágrimas nos olhos porque nunca, nunca mais
conseguiria fazer nada tão bom. Havia tantas joias no cabo da espada que ela
tinha que ficar numa bainha de veludo e era preciso olhar para ela através de um
vidro escurecido. Só a ação de tocá-la já fazia de alguém praticamente um rei.
Quanto ao rapaz... era um primo distante, entusiástico e vaidoso, e burro de modo
tolerável para um aristocrata. No momento, era vigiado numa fazenda distante,
com um estoque adequado de bebidas e algumas jovens, embora o rapaz
parecesse mais interessado em espelhos. “Provavelmente daria um bom herói”,
pensou o Grande Mestre Supremo, sem muita paciência.
– Imagino – disse o Irmão Torre de Vigia – que ele não seja o verdadeiro
herdeiro do trono.
– Como assim? – Bom, sabe como é. O Destino prega algumas peças. Ha, ha.
Seria motivo de riso, não seria, se no final se descobrisse que esse rapaz é o rei de
verdade. Depois de todo esse trabalho...
– Não existe mais nenhum rei de verdade! – gritou o Grande Mestre
Supremo. – O que você imagina? Pessoas que vagam pela floresta há centenas e
centenas de anos, passando com paciência uma espada e uma marca de
nascença? Alguma espécie de magia?.
– Ele disse a palavra cuspindo. Havia feito uso da magia como meio para
chegar a um fim, o fim justifica os meios e assim por diante, mas ficar
acreditando que ela tivesse alguma espécie de força moral, como a lógica,
davalhe arrepios. – Por Deus, homem, seja lógico! Seja racional. Mesmo se
alguém da antiga família real tivesse sobrevivido, a linhagem sanguínea estaria
tão rala a esta altura que deve haver milhares de pessoas reivindicando o direito
ao trono. Até...
– ele tentou pensar no pretendente menos provável – até alguém como o
Irmão Dunny kin. – Ele olhou para os Irmãos reunidos. – Não estou vendo ele
aqui, aliás.
– Engraçado isso – disse o Irmão Torre de Vigia, pensativo. -Não ficou
sabendo? – Do quê? – Ele foi mordido por um crocodilo quando estava indo para
casa ontem à noite. Pobre infeliz.
– O quê? – Uma chance em um milhão. A fera escapou de alguma coleção
particular de animais selvagens, ou algo assim, e estava deitada no quintal do
Irmão Dunny kin. Ele foi procurar a chave da porta debaixo do tapete e o
crocodilo o pegou perto dos funes. (Uma espécie de gerânio.)
– O Irmão Torre de Vigia tateou por baixo do manto e exibiu um envelope
marrom e sujo.
– Nós estamos fazendo uma vaquinha para comprar umas uvas e coisas
assim pra ele. Não sei se você gostaria de, er...
– Coloque aí 3 dólares meus – disse o Grande Mestre Supremo. O Irmão
Torre de Vigia concordou com a cabeça.
– Engraçado, já tinha colocado.
“Só mais algumas noites”, pensou o Grande Mestre Supremo. “Amanhã as
pessoas estarão tão desesperadas que vão coroar até um troll perneta se ele der
um fim ao dragão. E nós teremos um rei, e ele terá um conselheiro, um homem
de confiança, é claro, e essa plebe vai poder voltar para a sarjeta. E chega de se
fantasiar e chega de rituais.” “Chega de evocar dragões.” “Eu posso parar”,
pensou. “Eu posso parar na hora que quiser.” As ruas nas proximidades do
palácio do patrício estavam tomadas por uma multidão. Havia uma atmosfera
enlouquecida de carnaval. Vimes passou um olhar experiente pelo agrupamento
diante dele. Era a Ankh-Morpork habitual dos momentos de crise: metade das
pessoas estava ali para reclamar, um quarto delas estava ali para ver a outra
metade, e o resto estava ali para roubar, importunar ou vender salsichões para as
outras. Mas havia alguns rostos novos. Havia alguns homens de aparência austera
com grandes espadas penduradas no ombro e chicotes amarrados no cinto
caminhando no meio da multidão.
– As notícias se espalham rápido, não? – uma voz conhecida comentou ao seu
ouvido. – Bom dia, capitão.
Vimes olhou para o rosto sorridente e cadavérico de Dibbler Cava-aprópria-
Cova, fornecedor de absolutamente qualquer coisa que pudesse ser vendida às
pressas com uma mala aberta numa rua movimentada que ele sempre garantia
ter caído da traseira de um carro de boi.
– Bom dia, Cova – disse Vimes distraído. – O que você está vendendo? –
Artigo genuíno, capitão. – Cava-a-própria-Cova se aproximou ainda mais. Era o
tipo de pessoa que conseguia fazer um “bom dia” soar como uma oferta
imperdível feita apenas uma vez na vida. Seus olhos giravam de um lado para o
outro nas órbitas, como dois roedores tentando encontrar a saída. – Não dá pra
ficar sem – sussurrou. – Creme antidragão. Garantia pessoal: se você for
incinerado, pode pegar o dinheiro de volta, sem mesquinharias.
– Você está dizendo, se é que estou entendendo corretamente a colocação,
que, se eu for assado vivo por um dragão, receberei o meu dinheiro de volta? –
Se o requerimento for feito pessoalmente – observou Cava-a-própria-Cova. Ele
abriu a tampa de um pote com um unguento verde brilhante e o colocou embaixo
do nariz de Vimes.
– Feito com mais de cinquenta ervas e condimentos raros, a partir de uma
receita conhecida apenas por um grupo de monges antigos que vivem em
alguma montanha em algum lugar. Um dólar o pote, e eu estou cavando a minha
própria cova. É praticamente uma prestação de serviço para a comunidade –
acrescentou, num tom caridoso.
– A gente tem que tirar o chapéu pra esses monges antigos por conseguirem
fazer isso tão rápido.
– Velhos malandros – concordou Cava-a-própria-Cova. Deve ser a meditação
e o iogurte de manteiga.
– Então, o que está acontecendo, Cova? Quem são os caras com as espadas
grandes? – Caçadores de dragões, capitão. O patrício anunciou uma recompensa
de 50 mil dólares para qualquer um que levasse a cabeça do dragão pra ele.
Desde que não esteja presa ao dragão. O homem não é bobo.
– O quê? – Foi o que ele disse. Está tudo escrito nos cartazes.
– Cinquenta mil dólares! – Nada mal, hein? – O dragão ficaria orgulhoso –
disse Vimes. Essas palavras ainda causariam problemas, não as esqueça. – Fico
surpreso por você não ter pego uma espada e se juntado a eles.
– Eu estou mais no que você poderia chamar de setor de serviços, capitão.
Cova olhou para os dois lados com um ar conspiratório e passou um pedaço de
pergaminho para Vimes. Estava escrito:
Escudos espelhados antidragão A$ 500
Detector de tocas portátil A$ 250
Flechas que perfuram dragões A$ 100 cada
Pás A$ 5
Picaretas AS 5
Saco A$ l
Vimes devolveu o papel.
– Para que os sacos?
– Para a reserva.
– Ah, sim – disse Vimes, desanimado. – É claro.
– Negócio é o seguinte, negócio é o seguinte: para os nossos rapazes de
marrom, 10% de desconto.
– E você está cavando a própria cova, Cova? – Quinze por cento para oficiais!
– insistiu Cova, enquanto Vimes se afastava. O motivo do leve pânico na sua voz
logo ficou claro. Ele tinha muita concorrência.
O povo de Ankh-Morpork não era heroico por natureza, mas em
compensação era vendedor por natureza. No espaço de alguns metros, Vimes
poderia ter comprado uma quantidade enorme de armas mágicas com
Certificado de Oltenticidade genuíno com todo mundo, uma capa de
invisibilidade – “boa sacada”, pensou, “e ficou muito impressionado com o
vendedor, que usava um espelho sem vidro” – e, para descontrair, biscoitos de
dragões, balões e cataventos. Pulseiras de cobre que garantiam a libertação em
caso de ataques de dragões também eram uma boa ideia.
Parecia haver tantas pás e sacos quanto espadas.
O ouro, era isso. Reserva. Haha! Cinquenta mil dólares! Um oficial da
vigilância recebia trinta dólares por mês e tinha que pagar para desamassar a
própria carroceria.
O que ele não poderia fazer com 50 mil dólares...
Vimes pensou nisso por algum tempo e depois pensou nas coisas que ele
próprio poderia fazer com 50 mil dólares. Havia muito mais exemplos do
segundo, para começar.
Ele quase foi até um grupo de homens que estava perto de um cartaz preso no
muro. Dizia que, realmente, a cabeça do dragão que aterrorizava a cidade
valeria A$50.000 para o herói corajoso que a levasse até o palácio. Um dos
homens, que, pelo tamanho, armamentos e maneira como passava o dedo
lentamente sob as letras, Vimes percebeu ser o líder dos heróis, estava lendo para
os outros.
– ...a-te o pa-la-qui-o – concluiu.
– Cinquenta mil – disse um deles, pensativo, coçando o queixo.
– Trabalho barato – observou o intelectual. – Bem abaixo do padrão. Deveria
ser metade do reino e a mão da filha dele em casamento.
– Mas ele não é rei. É um patrício.
– Bom, metade do Patrimônio dele ou algo que o valha. Como é a filha dele?
Os caçadores reunidos não sabiam.
– Ele não é casado – Vimes entrou na conversa. – E não tem filha. Eles se
viraram e olharam-no de cima a baixo. Vimes pôde ver o desprezo nos olhos dos
homens. Provavelmente se deparavam com dúzias de pessoas como ele todos os
dias.
– Num tem filha? Quer que as pessoas matem dragões e num tem filha?
Vimes se sentiu, de uma forma estranha, no dever de apoiar o senhor da cidade.
– Ele tem um cachorrinho pelo qual tem muito carinho -disse, prestativo.
– Nojento maldito, nem pra ter uma filha – disse um dos caçadores. – E o que
é 50 mil dólares hoje em dia? Você acaba gastando tudo em redes.
– Certo – concordou outro. – As pessoas acham que é uma fortuna, mas não
contam com, bom, isso não dá direito a aposentadoria, tem os gastos médicos,
você tem que manter o próprio equipamento...
-... tem a desvalorização das virgens... – reforçou um caçador gordinho.
– É, e depois tem o... quê? – Minha especialidade é unicórnio – explicou o
caçador, com um sorriso sem graça.
– Ah, sim. – O primeiro homem tinha um jeito de quem morria de vontade,
havia muito tempo, de fazer esta pergunta. -Eu achava que isso fosse muito raro
hoje em dia.
– Você tem razão. Também não se vê muitos unicórnios -disse o caçador de
unicórnios. Vimes teve a sensação de que aquela era a única piada que ele havia
feito a vida inteira.
– É. Bom, as coisas não estão fáceis – respondeu o primeiro homem,
rapidamente.
– Os monstros estão ficando mais convencidos também -disse outro. – Eu
ouvi falarem que um cara matou um monstro num lago e deixou o braço dele
pendurado acima da porta...
– Pour encouray lay s ortras (Versão Discworld da frase em francês “Pour
encourager les autres”, que significa para encorajar os outros”) – disse um dos
ouvintes.
– Certo, e quer saber de uma coisa? A mãe dele veio reclamar. A mãe dele
veio mesmo até o refeitório no dia seguinte e reclamou. Reclamou mesmo. Esse
é o respeito que você consegue.
– As fêmeas são sempre as piores – disse outro caçador, desanimado. – Eu
conheci uma medusa vesga uma vez, nossa, era um horror. Ficava
transformando o próprio nariz em pedra.
– É o nosso traseiro que fica na reta, sempre – continuou o intelectual. – Quer
dizer, eu queria ter recebido 1 dólar por cada cavalo que foi devorado debaixo de
mim.
– Certo. Cinquenta mil dólares? Ele pode enfiar onde quiser. -É.
– Certo. Mão-de-vaca.
– Vamos beber.
– Certo.
Eles saíram balançando a cabeça, concordando com as justificativas uns dos
outros, e seguiram na direção do Barril Emendado, com exceção do intelectual,
que se separou do grupo discretamente e foi até Vimes com uma expressão de
inquietação.
– Que tipo de cachorro? – O quê? – Eu disse: que tipo de cachorro? – Um
terrier pelo-de-arame pequeno, acho.
O caçador pensou nisso durante algum tempo.
– Deixa pra lá – disse por fim, e saiu correndo atrás dos outros.
– Ele tem uma tia em Pseudópolis, eu acho – Vimes gritou. Não houve
resposta. O capitão da Vigilância deu de ombros e seguiu seu caminho no meio
da multidão até o palácio do patrício...
... onde o patrício estava no meio de um almoço conturbado.
– Senhores! – gritou. – Eu realmente não sei o que mais pode ser feito! Os
líderes cívicos resmungaram entre eles.
– Em momentos como este, a tradição é que um herói se apresente – disse o
Presidente do Grêmio dos Assassinos. – Um matador de dragões. Onde está ele,
é o que eu quero saber. Por que as nossas escolas não estão produzindo jovens
com o tipo de habilidade de que a sociedade precisa? – Cinquenta mil dólares não
parece muito – observou o Presidente do Conselho do Grêmio dos Ladrões.
– Pode não ser muito para o senhor, meu caro, mas é tudo o que a cidade tem
condições de oferecer – respondeu o patrício, com firmeza.
– Se ela não tem condições de oferecer mais do que isso, acho que a cidade
não existirá por muito tempo.
– E o comércio? – perguntou o representante do Grêmio dos Mercadores. As
pessoas não virão até aqui de navio com uma carga de alimentos raros para que
sejam incinerados, virão? – Senhores! Senhores! – o patrício ergueu as mãos
num gesto conciliatório.
– Parece-me – continuou, aproveitando a pausa breve – que o que temos aqui
é um fenômeno estritamente mágico. Eu gostaria de ouvir o nosso amigo erudito.
Humm? Alguém cutucou o arquichanceler da Universidade Invisível, que estava
cochilando.
– Ahn? Quê? – assustou-se o feiticeiro, subitamente desperto.
– Nós estávamos nos perguntando – repetiu o patrício em alto e bom som – o
que você pretende fazer com esse seu dragão? O arquichanceler era velho, mas
uma vida inteira de sobrevivência no mundo competitivo da feitiçaria e da
política bizantina da Universidade Invisível significava que ele sabia rebater um
argumento em frações de segundo. Não se permanecia arquichanceler por muito
tempo deixando esse tipo de comentário inocente passar batido pelo seu ouvido.
– Meu dragão? – É fato muito conhecido que os grandes dragões estão
extintos – disse o patrício, bruscamente. – E, além disso, seu habitat natural era,
sem dúvida, rural. Então, parece-me que este deve ser mág...
– Com todo o respeito, lorde Vetinari – começou o arquichanceler -, sempre
se afirmou que os dragões estavam extintos, mas a presente evidência, se é que
posso tomar a liberdade de dizê-lo, tende a lançar certa dúvida sobre a teoria.
Quanto ao habitat, o que estamos vendo é uma simples mudança no padrão de
comportamento, ocasionada pela expansão das áreas urbanas para o interior, o
que levou muitas criaturas até então rurais a se adaptarem a, e em muitos casos
até mesmo adotarem de forma positiva, um modo de existência mais citadino, e
muitas delas são bem-sucedidas nas novas oportunidades que lhes são dadas
dessa forma. Por exemplo, as raposas sempre conseguem roubar as minhas latas
de lixo.
Ele sorriu. Conseguiu completar todo o raciocínio sem precisar fazer uso do
cérebro.
– Você está dizendo que o que temos aqui é o primeiro dragão urbano! –
perguntou o assassino? – Assim é a evolução – respondeu o feiticeiro, feliz. – E
ele deve se dar bem. Diversos locais para fazer ninho e uma provisão de
alimentos mais do que adequada.
Essa afirmação foi recebida pelo silêncio, até que o mercador disse: – O que
exatamente eles comem? O ladrão deu de ombros.
– Parece que eu me lembro de histórias com virgens acorrentadas a pedras
enormes – sugeriu.
– Então ele vai morrer de fome por aqui – disse o assassino. -Nós estamos
devendo.
– Eles costumavam sair dando voos de rapina – observou o ladrão. – Não sei
se isso esclarece alguma coisa...
– Bom, de qualquer jeito – disse o líder dos mercadores -, o problema parece
ser seu mais uma vez, milorde.
Cinco minutos depois, o patrício estava percorrendo todo o Salão Oblongo a
passos largos, enfurecido.
– Eles estavam rindo de mim, dava para perceber! – O senhor sugeriu um
grupo de trabalho? – perguntou Wonse.
– É claro que sugeri! Não resolveu o assunto desta vez! Quer saber, estou
bastante inclinado a aumentar o valor da recompensa.
– Acho que isso não iria funcionar, milorde. Qualquer matador de monstros
competente sabe o valor do seu trabalho.
– A-ha! Metade do reino – murmurou o patrício.
– E a mão da sua filha em casamento – disse Wonse.
– Imagino que uma tia seja aceitável... – disse o patrício, esperançoso.
– A tradição exige uma filha, milorde.
O patrício concordou com tristeza.
– E se nós o subornássemos – ele disse, alto. – Os dragões são inteligentes? –
Acredito que tradicionalmente a palavra usada seja “astuto”, milorde. Creio que
eles tenham uma queda por ouro.
– Sério? E com que eles gastam? – Eles dormem nele, milorde.
– Colocam no colchão? – Não, milorde. Eles dormem sobre ele.
O patrício analisou essa informação.
– Não se incomodam com as protuberâncias? – Eu imagino que sim, senhor.
Mas acho que ninguém nunca perguntou isso a eles.
– Humm. Eles sabem falar? – Parece que são bons nisso, milorde.
– Ah. Interessante.
O patrício estava pensando: “se ele puder falar, ele pode negociar. Se ele
puder negociar, vou mantê-lo sob rédeas... sob escamas curtas, ou o que ele
tiver”.
– E dizem que a língua deles é de prata – disse Wonse. O patrício se recostou
na cadeira.
– Só prata? Houve um som de vozes caladas na antessala, e Vimes foi
conduzido para dentro, – Ah, capitão, algum progresso? – Perdão, milorde? –
perguntou Vimes, enquanto a chuva pingava da sua capa.
– Em relação à apreensão do dragão – disse o patrício, com firmeza.
– A ave pernalta.
– Você sabe muito bem do que estou falando.
– As investigações estão sob controle – disse Vimes, num tom automático. O
patrício bufou.
-Tudo o que vocês têm que fazer é encontrar a toca. Quando você encontrar
a toca, vai encontrar o dragão. Isso é óbvio. Metade da cidade parece estar
procurando.
– Se é que existe uma toca. Wonse olhou rápido para ele.
– Por que você diz isso? – Estamos considerando diversas possibilidades –
respondeu Vimes, um pouco tímido.
– Se ele não tem toca, onde passa o tempo? – Estamos tentando obter
informações.
– Então tente com vontade. E encontre a toca – disse o patrício, irritado.
– Sim, senhor. Tenho permissão para sair, senhor? – Muito bem. Mas eu
esperarei progressos até a noite, entendeu? “Por que eu questionei se ele tem
uma toca?”, pensou Vimes, enquanto saía para a luz do dia e para a praça lotada.
“Porque ele não parecia real, por isso. Se ele não for real, não precisa fazer
nenhuma das coisas que esperamos. Como ele pode sair andando de um beco no
qual não entrou?” “Uma vez que se descarte o impossível, qualquer coisa que
sobrar, por mais improvável que seja, deve ser a verdade. O problema está em
descobrir o que é impossível, é claro. Esse é o truque, é verdade.” “Houve
também o curioso incidente do orangotango à noite...” Durante o dia, a Biblioteca
ficava agitada em seu funcionamento normal. Vimes movia-se com
desconfiança dentro dela. Estritamente falando, poderia ir a qualquer lugar da
cidade, mas a Universidade sempre era considerada pertencente à lei
taumatúrgica, e ele achava que não seria uma boa ideia fazer inimigos contra os
quais você precisaria de muita sorte para permanecer com a mesma
temperatura, quanto mais com a mesma forma.
Ele encontrou o bibliotecário debruçado na escrivaninha. O macaco ergueu a
cabeça com um olhar esperançoso.
– Ainda não encontramos. Desculpe. As investigações prosseguem. Mas você
pode me dar uma pequena ajuda.
– Ooook – Bom, esta é uma biblioteca mágica, certo? Quer dizer, esses livros
são meio que inteligentes, não é assim? Então eu tenho pensado: aposto que, se eu
entrasse aqui à noite, eles logo fariam um escarcéu. Porque eles não me
conhecem. Mas, se eles me conhecessem, provavelmente não se importariam.
Então, quem quer que tenha pegado o livro teria que ser um feiticeiro, não é? Ou
pelo menos alguém que trabalhe para a Universidade.
O bibliotecário olhou de um lado para o outro, depois pegou a mão de Vimes
e o levou até o isolamento de algumas estantes de livros. Só então balançou a
cabeça afirmativamente.
– Foi alguém que eles conhecem? Ele encolheu os ombros e balançou a
cabeça mais uma vez.
– Por isso você foi nos contar, não é? – Ooook.
– E não para o Conselho Universitário.
– Ooook.
– Alguma ideia de quem seja? O bibliotecário encolheu os ombros, um gesto
extremamente expressivo para um corpo que consistia basicamente de um saco
entre um par de omoplatas.
– Bom, já é alguma coisa. Avise-me se acontecer mais alguma coisa
estranha, está bem? -Vimes olhou para as muralhas de prateleiras.
– Quer dizer, mais estranha que o habitual.
– Ooook.
– Obrigado. É um prazer conhecer um cidadão que considera um dever seu o
auxílio à Vigilância.
O bibliotecário lhe deu uma banana.
Vimes se sentiu curiosamente orgulhoso quando voltou a pisar nas ruas
movimentadas da cidade. Ele, com certeza, estava detectando as coisas. Eram
pequenos pedaços das coisas, como um quebra-cabeça. Nenhum deles fazia
sentido algum, realmente, mas todos faziam alusão a uma imagem maior. Tudo o
que precisava fazer agora era encontrar um canto, ou um pedaço da borda... Ele
tinha certeza de que não se tratava de um feiticeiro, por mais que o bibliotecário
pudesse pensar assim. Não um feiticeiro típico, engajado. Esse tipo de coisa não
fazia parte do estilo deles.
E tinha, é claro, a questão da toca. A atitude mais sensata seria esperar, ver se
o dragão aparecia à noite e tentar ver onde. Isso significava um lugar alto. Havia
alguma maneira de detectar os dragões? Ele tinha visto o detector de dragões de
Dibbler Cava-a-própria-Cova que consistia apenas de um pedaço de madeira
numa barra de metal. Quando a barra queimava, era porque você tinha
encontrado o dragão. Assim como vários aparelhos de Cava-a-própria-Cova, era
completamente eficiente ao seu próprio modo e totalmente inútil ao mesmo
tempo.
Tinha que haver uma forma de encontrar algo que fosse melhor do que
esperar até queimar os dedos.
O sol se pôs, espalhando-se no horizonte como um ovo levemente mole. Dos
telhados de Ankh-Morpork, mesmo em tempos menos conturbados, brotava uma
bela variedade de gárgulas, mas agora eles estavam repletos de uma variedade
de rostos medonhos, jamais vistos – a não ser numa xilogravura sobre os males
do consumo de gim entre os não compradores de xilogravuras. Muitos dos rostos
estavam presos a corpos que traziam uma variedade de armas caseiras
assustadoras que haviam sido passadas de geração em geração durante séculos,
geralmente por algum motivo.
Deste poleiro no telhado da Sede da Vigilância, Vimes podia ver os feiticeiros
formando filas nos telhados da Universidade e as gangues de oportunistas atrás da
reserva de ouro sobre as quais os dragões dormiam aguardando nas ruas, com as
pás na mão. Se o dragão realmente tivesse uma cama em algum lugar da cidade,
no dia seguinte iria dormir no chão. De algum lugar abaixo, ouviu-se o grito de
Dibbler Cava-a-própria-Cova, ou de um de seus colegas de profissão, vendendo
salsichões. Vimes teve uma sensação repentina de orgulho cívico. Devia haver
alguma coisa na coletividade dos cidadãos que, diante de uma catástrofe, fazia
nascer a necessidade de vender salsichas para os participantes.
A cidade esperava. Algumas estrelas surgiram.
Colon, Nobby e Cenoura também estavam no telhado. Colon estava de mau
humor porque Vimes o havia proibido de usar o seu arco-e-flecha. Essas armas
não eram bem vistas na cidade, uma vez que a flecha lançada de um arco longo
de cima de um telhado poderia atravessar um transeunte inocente a 100 metros
distância do transeunte inocente que era o alvo principal.
– Está certo – disse Cenoura. – Armas Projéteis, Segurança Urbana, Lei
1634.
– Não fique citando todas essas coisas – interrompeu Colon, de repente. – Não
temos mais nenhuma dessas leis! Isso é tudo coisa velha! Hoje é tudo aquele
negócio. Pragmático! – Lei ou não – disse Vimes, – eu estou pedindo para
guardar isso.
– Mas, capitão, eu era um perito no arco-e-flecha! – protestou Colon. – Além
do mais – acrescentou, num tom impertinente -, um monte de gente está usando.
Isso era bem verdade. Os telhados vizinhos estavam eriçados feito porcos-
espinhos. Se o infeliz aparecesse, ia pensar que estava voando sobre uma
madeira sólida com fendas. Quase dava para sentir pena dele.
– Eu disse para guardar. Não vou admitir que meus guardas atirem em
cidadãos. Então, guarde.
– Isso é bem verdade – concordou Cenoura. – Estamos aqui para proteger e
servir, não estamos, capitão? Vimes encarou-o com um olhar ambíguo.
– Ahn? Sim. É. É isso mesmo.
No telhado de sua casa na montanha, lady Ramkin ajeitou uma cadeira
dobrável e bastante inadequada para um telhado, acertou o telescópio, a garrafa
de café e os sanduíches no parapeito à sua frente e se preparou para esperar. Ela
tinha um caderno no colo.
Meia hora se passou. Chuvas de flechas saudaram uma nuvem passageira,
alguns morcegos infelizes e a lua nascendo no horizonte.
– Pra mim chega desse jogo – disse Nobby, finalmente.
– Ele está assustado.
O sargento Colon baixou sua lança.
– Parece que sim – admitiu.
– E está ficando frio aqui em cima – observou Cenoura. Ele cutucou com
educação o capitão Vimes, que estava apoiado na chaminé, olhando melancólico
para o espaço.
– Talvez devêssemos descer, senhor. Muita gente já está descendo.
– Humm? – disse Vimes, sem mexer a cabeça.
– Pode ser que chova também.
Vimes não disse nada. Durante alguns minutos, observou a Torre da Arte, que
era o centro da Universidade Invisível e famosa por ser o prédio mais antigo da
cidade. Com certeza, era o mais alto. O tempo, as condições climáticas e as
reformas haviam conferido a ela uma aparência nodosa, como a de uma árvore
que já passou por muitas tempestades.
Ele estava tentando se lembrar de sua forma original. Como acontece com
muitas coisas que são totalmente conhecidas, não olhava para ela havia anos.
Agora estava tentando se convencer de que a floresta de pequenas torres e
ameias que ficava no topo estava exatamente igual no dia anterior. Estava
encontrando alguma dificuldade.
Sem tirar os olhos da torre, segurou o ombro do sargento Colon e o posicionou
suavemente na direção certa.
Disse: – Você está vendo alguma coisa estranha no topo da torre? Colon olhou
com atenção durante algum tempo, depois deu um riso nervoso.
– Bom, parece que tem um dragão sentado nela, não parece? – Sim, foi o que
eu achei.
– Só, só, só quando você meio que olha direito, você vê que ele é formado por
sombras e moitas de hera e tal. Quer dizer, se você fecha um olho até a metade,
parece que são duas velhas e um carrinho de mão.
Vimes insistiu: – Nada disso. Ainda parece um dragão. Enorme. Meio
encurvado e olhando para baixo. Olha, dá para ver as asas fechadas.
– Perdão, senhor. Isso é só uma torrinha quebrada dando um efeito. Eles
ficaram olhando mais um pouco. Então, Vimes disse: – Diga uma coisa, sargento,
e pergunto com espírito de investigação: o que o senhor acha que está causando o
efeito de um par de asas enormes se abrindo? Colon engoliu em seco.
– Acho que esse é o efeito causado por um par de asas enormes, senhor.
– Exatamente, sargento.
O dragão se deixou cair. Não foi uma descida rápida. Ele simplesmente saiu
do topo da torre, meio caindo, meio voando reto para baixo, desaparecendo do
campo de visão atrás dos prédios da Universidade.
Vimes ficou esperando para ouvir o baque.
E depois o dragão pôde ser visto novamente, fazendo um movimento como o
de uma flecha, como uma estrela-cadente, como algo que transformou um
mergulho a mil metros por segundo numa subida irrefreável. Ele planou acima
dos telhados a uma distância um pouco maior do que uma cabeça, que foi mais
horrível ainda por causa do som. Era como se o ar estivesse sendo cortado ao
meio com cuidado e devagar.
A Vigilância se jogou no chão de uma vez. Vimes viu de relance os traços que
lembravam de leve um cavalo antes de ele passar deslizando.
– Babacas malditos – disse Nobby, de algum lugar entre as calhas. Vimes
redobrou a força com que segurava a chaminé e se colocou de pé.
– Você está usando o uniforme, cabo Nobby – disse, com a voz quase
inalterada.
– Desculpe, capitão. Babacas malditos, senhor.
– Onde está o sargento Colon? – Aqui embaixo, senhor. Me segurando neste
cano de esgoto, senhor.
– Ai, meu Deus. Ajude-o a subir, Cenoura.
– Nossa – disse Cenoura -, olha como ele voa! Era possível saber a posição do
dragão pela agitação das flechas atravessando a cidade e pelos gritos e gemidos
de todos aqueles atingidos pelos erros e ricochetes.
– Ele ainda nem bateu as asas! – gritou Cenoura, tentando se equilibrar no
cano da chaminé. – Olha como ele voa! “Não deveria ser tão grande”, Vimes
pensou consigo mesmo, olhando para a enorme forma voando em círculos
acima do rio. Ele é do comprimento da rua!” Houve um sopro de chama acima
das docas e, por um momento, a criatura passou em frente à lua. Depois bateu as
asas uma vez, com um som que parecia o couro cru e úmido de um rebanho
com pedigree sendo atirado de um desfiladeiro.
Virou-se num círculo apertado, empurrou o ar algumas vezes para ganhar
velocidade e voltou.
Ao passar acima da Sede da Vigilância, tossiu, esguichando uma coluna de
fogo branco. As telhas abaixo não apenas derreteram, mas também entraram
em erupção, lançando gotículas incandescentes. O cano da chaminé explodiu e
os tijolos foram cair do outro lado da rua.
Asas imensas martelavam o ar enquanto a criatura pairava sobre o prédio em
chamas, com o fogo avançando para baixo no que se transformou rapidamente
numa montanha em brasa. Então, quando tudo o que restava era uma poça
espalhada de pedras derretidas com listras e bolhas, o dragão se ergueu dando
uma chicotada desdenhosa com as asas e voou para longe, acima da cidade.
Lady Ramkin baixou o telescópio e balançou a cabeça devagar.
– Isso não está certo – sussurrou. – Isso não está nada certo. Ele não deveria
ser capaz de fazer nenhuma dessas coisas.
Ela ergueu as lentes de novo e apertou os olhos, tentando ver o que tinha
pegado fogo. Logo abaixo, em seus grandes canis, os dragõezinhos uivavam.
Tradicionalmente, ao despertar de um estado inconsciente sossegado e feliz, você
se pergunta: “Onde estou?”. Isso provavelmente faz parte da consciência de raça
ou algo assim.
Vimes disse isso.
A tradição permite a escolha de falas secundárias. Um ponto-chave no
processo é um exame para verificar se o corpo possui todas as partes que havia
até o dia anterior.
Vimes checou.
Em seguida vem a parte torturante. Agora que a bola de neve da consciência
está começando a rolar, vai descobrir que está despertando dentro de um corpo
deitado na sarjeta com alguma coisa múltipla – o substantivo não importa,
quando vem acompanhado da palavra “múltiplo”; nada de bom jamais vem
“múltiplo” -, ou será o caso de lençóis limpos, uma mão suave e uma figura
prática e eficiente vestida de branco e abrindo as cortinas para um dia novo e
radiante? Está tudo acabado, sem nada pior para esperar do que um chá fraco,
uma papa nutritiva e caminhadas curtas e revigorantes no jardim, e talvez um
caso de amor platônico e passageiro com uma alma caridosa, ou será que tudo
isso foi apenas o blecaute de um momento e algum desgraçado está se
aproximando lentamente para entrar em ação com a ponta mais grossa do cabo
de uma picareta? Vai haver, a consciência quer saber, uvas? A essa altura,
estímulos externos são úteis. “Vai ficar tudo bem” é o favorito, enquanto
“Alguém anotou a placa?” é definitivamente um mau sinal. No entanto, os dois
são melhores que “Vocês dois, segurem as mãos dele atrás das costas”.
Na verdade, alguém disse: – Vocês quase foram um caso perdido, capitão.
As sensações de dor, que haviam aproveitado o estado inconsciente de Vimes
para dar uma saída para um rápido cigarrinho metafórico, voltaram correndo.
Vimes disse: – Arrgh.
Depois abriu os olhos.
Havia um teto. Isso eliminava um conjunto específico de opções
desagradáveis e era muito bem-vindo. Sua visão embaçada também revelou a
presença do cabo Nobby, o que não era tão agradável. O cabo Nobby não
provava nada, era possível estar morto e ver algo como o cabo Nobby. Ankh-
Morpork não tinha hospitais. Todos os Grêmios mantinham os seus próprios
sanatórios, e havia alguns estabelecimentos públicos de saúde administrados por
organizações religiosas esquisitas, como os Monges Indecisos, mas, em geral, a
assistência médica era inexistente e as pessoas tinham que morrer sem a ajuda
dos médicos. Era comum a ideia de que a existência de curas estimulava a
negligência e era, de qualquer forma, contra a lei da Natureza.
– Eu já disse “onde estou”? – perguntou Vimes, com fraqueza. -Já.
– Obtive resposta? – Não sei que lugar é este, capitão. Pertence a alguma
ricaça. Ela disse para trazer o senhor aqui em cima.
Embora a mente de Vimes parecesse estar cheia de mel cor-de-rosa, ele
ainda conseguiu pegar duas pistas e as colocou para lutar. A combinação entre
“rica” e “aqui em cima” significava algo. Assim como o estranho cheiro
químico na sala, que chegava a se sobrepor aos odores mais cotidianos de Nobby.
– Não estamos falando de lady Ramkin, estamos? – perguntou, cauteloso.
– Pode ser que sim. Uma senhora grandona. Louca por dragões. – O rosto de
roedor de Nobby foi tomado pelo sorriso esperto mais horrível que Vimes tinha
visto. – Você está na cama dela.
Vimes espiou ao redor, sentindo os primeiros sinais de um pânico vago.
Porque, agora que ele conseguia começar ajustar o foco, notou uma certa falta
de meias no local. Havia um leve toque de talco.
– Parece um boudoir – disse Nobby, com ar de conhecedor do assunto.
– Espere aí, espere um minuto. Tinha um dragão. Ele estava bem acima de
nós...
A lembrança surgiu e o atingiu como uma ressaca repentina.
– Você está bem, capitão? – ... as garras, esticadas, do tamanho de um
homem. O estrondo e o baque das asas, maiores que velas de navios. O fedor de
substâncias químicas, só os deuses sabiam que espécie de...
Ele tinha passado tão perto que o capitão podia ver as pequenas escamas das
patas e o brilho vermelho dos olhos. Eram mais do que simples olhos de réptil.
Eram olhos nos quais era possível se afogar.
E o hálito, tão quente que não era como o fogo, mas como algo quase sólido,
que não queimava as coisas, mas as esmagava...
Por outro lado, estava ali, vivo. Seu lado esquerdo parecia ter levado uma
pancada com uma barra de ferro, mas estava definitivamente vivo.
– O que aconteceu?
– Foi o jovem Cenoura, senhor. Ele agarrou o senhor e o sargento e pulou do
telhado antes que o bicho nos acertasse.
– Minhas costelas estão doendo. Ele deve ter me acertado.
– Não. Acho que isso foi quando o senhor bateu no telhado do banheiro
externo. E depois o senhor desceu rolando e bateu no balde de água.
– E o Colon? Ele se machucou? – Não se machucou. Não está exatamente
machucado. Caiu numa coisa meio que mais macia. Por ser tão pesado,
atravessou o telhado do banheiro. Foi uma verdadeira chuva de...
– E o que aconteceu depois? – Bom, nós meio que colocamos o senhor numa
posição confortável e depois todo mundo saiu cambaleando e gritando pelo
sargento. Até descobrirem onde ele estava, claro, então só ficaram onde estavam
e gritaram. E depois essa mulher veio correndo e berrando.
– Você está se referindo a lady Ramkin? – perguntou Vimes friamente. Suas
costelas estavam doendo de forma realmente impressionante agora.
– É. A grande e gorda – respondeu Nobby, indiferente. – Nossa, como ela
sabe dar ordens! “Oh, pobre homem querido, vocês têm que levá-lo para a
minha casa imediatamente.” Então nós o trouxemos. É o melhor lugar mesmo.
Todo mundo está correndo pela cidade, feito galinhas com a cabeça cortada.
– Quanto estrago ele fez? – Bom, depois que todos vocês estavam fora, os
feiticeiros o acertaram com bolas de fogo. Ele não gostou nem um pouco. Só
pareceu deixá-lo mais forte e nervoso. Arrancou toda a ala Invertida da
Universidade.
– E...? – Foi isso, na verdade. Ele incendiou mais algumas coisas e depois
deve ter saído voando no meio da fumaça.
– Ninguém viu para onde ele foi?
– Se viram, não estão dizendo. – Nobby se recostou na cadeira e fez um olhar
malicioso. – Repugnante mesmo, morar num quarto assim. Ela tem vasos de
dinheiro, o sargento disse, não tem nenhum motivo para morar em cômodos
ordinários. Qual é a graça de não querer ser pobre se os ricos podem sair por aí
morando em cômodos ordinários? Deveria ser de mármore. – Ele torceu o nariz.
– Bom, mas ela pediu para eu chamá-la quando você acordasse. Está dando
comida prós dragões agora. Esquisitinhos, hein, aqueles dragões? E incrível ela
ter permissão pra ter essas coisas.
– Como assim? – Sabe como é. Farinha do mesmo saco e tal.
Depois que Nobby saiu bamboleando, Vimes deu mais uma olhada no quarto.
Ele realmente não tinha as folhas de ouro e o mármore que Nobby sentia ser
obrigatórios para pessoas de posição social elevada. Todos os móveis eram
velhos, e os quadros na parede, por mais valiosos que devessem ser, pareciam o
tipo de quadro que é colocado nas paredes do quarto porque as pessoas não
conseguem pensar em nenhum outro lugar para colocá-los. Havia também
algumas aquarelas de dragões de estilo amador. No geral, tinha a aparência de
um quarto ocupado por apenas uma pessoa, e que foi moldado de acordo com
ela, sem muita atenção, ao longo dos anos, como se tivessem colocado um teto
sobre uma pilha de roupas.
Percebia-se que era um quarto de mulher, mas de uma mulher que havia
levado uma vida animada, sem se entristecer com coisas pequenas, enquanto
todas as histórias de romances sentimentais estavam acontecendo com outras
pessoas em outro lugar, e ela era muito grata por ter boa saúde. As roupas
visíveis tinham sido escolhidas por sua praticidade e resistência, possivelmente
pela geração anterior, a julgar pela aparência. Não pareciam ter sido escolhidas
pela sua utilidade como artilharia leve na guerra dos sexos. Havia garrafas e
potes bem arrumados sobre a penteadeira, mas certa dureza nos traços sugeria
que nos rótulos estaria escrito algo como “Esfregar toda noite”, e não “Apenas
um toque atrás das orelhas”. Dava para imaginar que a ocupante deste quarto
havia dormido nele a vida toda e que tinha sido chamada de “minha garotinha”
pelo pai até os 40 anos.
Havia um grande e prático vestido azul pendurado atrás da porta. Vimes
sabia, sem precisar olhar, que havia o desenho de um coelho no bolso. Em
resumo, era o quarto de uma mulher que nunca esperou que algum homem visse
o seu interior.
O criado-mudo tinha uma pilha alta de papéis. Sentindo culpa, mas fazendo-o
assim mesmo, Vimes deu uma espiada neles.
O tema eram os dragões. Havia cartas do Comitê de Exibições do Clube da
Caverna e da Liga dos Lançadores de Fogo Amigáveis.
Havia panfletos e solicitações do Santuário Luz do Sol para Dragões Doentes
– “o fogo do pobre VINNY estava quase Extinto após Cinco anos de Maus Tratos,
sendo usado como Removedor de Tinta, mas agora...” E havia pedidos de
doação, palestras e coisas que procuravam seu espaço num coração grande o
bastante para acolher o mundo todo, ou pelo menos a parte dele que tinha asas e
soltava fogo.
Se você deixasse a sua mente vagar sobre quartos como este, poderia acabar
com uma tristeza esquisita e cheio de compaixão difusa e estranha, que o
levariam a acreditar ser uma boa ideia eliminar toda a raça humana e começar
de novo com amebas.
Ao lado do monte de papéis havia um livro. Vimes virou-se, apesar da dor, e
olhou para a lombada. Estava escrito: As Doenças do Dragão, de Sy bil Deidre
Olgivanna Ramkin.
Ele virou as páginas enrijecidas com uma fascinação horrorizada. Elas
levavam a outro mundo, um mundo de problemas bastante espantosos. Garganta
Petrificada. Os Ovelhas Negras. Pulmão Seco. Proteção da Ninhada. Vertigem,
Asma, Choro, Cálculo Renal. “É impressionante”, concluiu, depois de ler
algumas páginas, “que um dragão do pântano sobreviva para ver um segundo
nascer do sol. O simples fato de atravessar uma sala deveria ser reconhecido
como um triunfo biológico”.
Passou rapidamente pelas ilustrações com minúcias de detalhes. Não dava
para aguentar a visão de muitas vísceras no mesmo dia.
Alguém bateu à porta.
– Alô? Você está decente? – lady Ramkin gritou, animada. -Er...
– Eu trouxe uma coisa supernutritiva para você.
Por algum motivo, Vimes imaginou que seria sopa. Em vez disso, ela entrou
com um prato cheio de bacon, batatas fritas e ovos. Ele ouviu suas artérias
entrarem em pânico só de olhar para aquilo.
– Eu fiz pudim de pão também – disse lady Ramkin, levemente tímida. – Não
costumo cozinhar muito, só para mim. Sabe como é, moro sozinha. Vimes pensou
nas refeições do seu alojamento. Por algum motivo, a carne era sempre cinza,
com uns tubos misteriosos.
– Er-ele começou, pouco acostumado a se dirigir a senhoras estando deitado
na cama delas.
– O cabo Nobby me disse que...
– Que homenzinho divertido ele é! – observou lady Ramkin. Vimes não tinha
certeza se podia lidar com aquilo.
– Divertido? – disse com fraqueza.
– Uma verdadeira figura. A gente está se dando bem demais.
– Vocês? – Ah, sim. Ele tem uma ótima reserva de piadas.
– Ah, sim. Tem mesmo.
Vimes sempre ficou perplexo com a facilidade com que Nobby fazia
amizade com quase qualquer pessoa. “Deve ter algo a ver”, concluiu, “com o
denominador comum. Em todo o mundo da matemática não pode haver nenhum
denominador mais comum que Nobby ”.
– Ahnn... – ele disse, e depois achou que não poderia deixar essa notícia
estranha passar despercebida. – Você não acha a linguagem dele um pouco, é...
indecente? – Apimentada – corrigiu lady Ramkin alegremente. – Você devia ter
ouvido o meu pai falar quando ele estava aborrecido. Bom, de qualquer jeito, nós
descobrimos que temos muito em comum. E uma coincidência impressionante,
mas uma vez o meu avô mandou chicotearem o avô dele por demora deliberada.
“Isso deve fazê-los se sentir praticamente da mesma família”, pensou Vimes.
Mais uma fisgada de dor no seu lado atingido fez com que ele se contorcesse.
-Você está com uns machucados muito feios e provavelmente uma ou duas
costelas fraturadas. Se você se virar, vou passar mais um pouco disso. – Lady
Ramkin exibiu um pote com unguento amarelo.
O pânico tomou conta da expressão de Vimes. Num gesto instintivo, ele puxou
o lençol até o pescoço.
– Não seja tolo, homem. Não verei nada que não tenha visto antes. Os
traseiros são muito parecidos uns com os outros. A diferença é que os que eu já vi
geralmente têm rabo. Agora, vire-se e levante o camisão. Ele era do meu pai,
sabe.
Não era possível resistir àquele tom de voz. Vimes pensou em pedir para
trazerem Nobby para que fosse seu acompanhante, mas depois decidiu que isso
seria ainda pior.
O creme queimava feito gelo.
– O que é isso? – Todo tipo de coisa. Vai aliviar os hematomas e promover o
crescimento de escamas saudáveis.
– O quê? – Desculpa. Provavelmente não de escamas. Não fique tão
preocupado. Estou quase totalmente certa quanto a isso. Pronto, terminamos. –
Ela deu um tapinha nas nádegas dele.
– Madame, eu sou um capitão da Vigilância Noturna – observou Vimes,
sabendo, enquanto dizia, que era uma grande tolice dizer aquilo.
– Que está seminu na cama de uma dama – disse lady Ramkin, impassível. –
Agora, sente-se e tome o seu chá. Temos que deixá-lo bom e forte. O olhar de
Vimes se encheu de pânico.
– Por quê? Lady Ramkin enfiou a mão no bolso do seu paletó encardido.
– Eu fiz algumas anotações ontem à noite. Sobre o dragão.
– Ah, o dragão. – Vimes relaxou um pouco. Naquele exato momento o
dragão parecia uma questão muito mais segura.
– E fiz uns cálculos também. Vou lhe dizer uma coisa: essa fera é muito
esquisita. Não deveria ser capaz de se locomover pelo ar.
– Nisso você está certa.
– Se ele tiver a mesma estrutura dos dragões do pântano, deve pesar cerca de
20 toneladas. Vinte toneladas! Isso é impossível. Ê tudo uma questão de peso e
envergadura das asas, sabe.’ – Eu o vi descer da torre como uma andorinha.
– Eu sei. Era para ter perdido as asas e deixado um maldito buraco enorme
no chão. Não se pode brincar com a aerodinâmica. Não se pode simplesmente
aumentar as medidas proporcionalmente e deixar por isso mesmo, sabe. É tudo
uma questão de potência muscular e movimento dos membros.
– Eu sabia que havia alguma coisa errada – disse Vimes, sentindo-se melhor.
– E as chamas também. Nada pode andar por aí com aquela espécie de calor por
dentro. Como é que os dragões do pântano lidam com isso? – Ah, isso é uma
questão de química – respondeu lady Ramkin, sem dar muita atenção. – Eles
apenas destilam alguma coisa inflamável de algo que tenham comido e acendem
a chama enquanto a substância está saindo pelos dutos. Na verdade, nunca há
fogo dentro deles, a menos que tenham um caso de contrassopro.
– O que acontece nesse caso? – Você tem um dragão saindo de cena – disse
lady Ramkin, animada. – Infelizmente, não são criaturas muito bem planejadas,
os dragões. Vimes ouviu.
Eles jamais teriam sobrevivido se não fosse pelo fato de seus pântanos de
origem serem isolados e terem poucos predadores. Não que o dragão seja bom
para comer – depois de retirado o couro da pele e os enormes músculos de vôo,
tudo o que sobrava devia ser como morder uma usina química mal administrada.
Não era de se estranhar que os dragões estivessem sempre doentes. Contavam
com problemas estomacais permanentes para obter estoques de combustível. A
maior parte do seu poder cerebral era consumido no controle das complexidades
do seu processo digestivo, que envolvia a destilação de combustíveis produtores
de chamas a partir dos ingredientes mais improváveis. Eram capazes até mesmo
de reorganizar seu encanamento interno de um dia para o outro para lidar com
processos mais difíceis. Viviam o tempo todo numa corda bamba química. Um
soluço fora do lugar, e viravam adubo.
E, quando se tratava de escolher os locais para o ninho, as fêmeas tinham
todo o bom senso e o instinto maternal de um tijolo.
Vimes se perguntou por que as pessoas teriam se preocupado tanto com os
dragões nos tempos antigos. Se houvesse um dragão numa caverna perto de
você, tudo o que era preciso fazer era esperar até que ele se autoincendiasse,
explodisse ou morresse de indigestão aguda.
– Você estudou sobre eles, mesmo, hein? – Alguém tinha que fazê-lo.
– Mas e os grandes? – Nossa, é mesmo. Eles são um grande mistério, sabe – a
expressão de lady Ramkin foi ficando extremamente séria.
– Sim, você disse.
– Eles são lendas, sabe. Parece que uma espécie de dragão começou a ficar
cada vez maior e depois... simplesmente desapareceu.
– Entrou em extinção, você quer dizer? – Não... Eles reapareceram algumas
vezes. De algum lugar. Cheios de energia e vigor. E então, um dia, pararam de
aparecer de vez. – Ela lançou um olhar triunfante para Vimes. – Eu acho que
encontraram algum lugar onde eles realmente podiam ser.
– Podiam realmente ser o quê? – Dragões. Onde eles pudessem realmente
realizar o seu potencial. Alguma outra dimensão ou algo assim. Onde a gravidade
não é tão forte ou algo assim.
– Eu pensei, quando o vi... Eu pensei: “Não dá para existir algo que voe e
tenha escamas como essas”.
Eles se entreolharam.
– Nós temos que encontrá-lo na sua toca – disse lady Ramkin.
– Nenhuma maldita salamandra voadora põe fogo na minha cidade.
– Pense apenas na contribuição para o folclore sobre os dragões.
– Olha, se alguém algum dia botar fogo nesta cidade, serei eu.
– E uma oportunidade maravilhosa. Há tantas perguntas...
– Nisso você está certa. – Uma frase de Cenoura passou pela cabeça de
Vimes. – Isso pode nos ajudar em nossas investigações.
– Mas só amanhã de manhã – disse lady Ramkin, com firmeza. A expressão
de determinação implacável desapareceu.
– Eu dormirei no andar de baixo, na cozinha – ela continuou, animada. –
Costumo deixar uma cama portátil montada lá embaixo quando os dragões estão
botando ovos. Algumas das fêmeas sempre precisam de assistência. Não se
preocupe comigo.
– Você está sendo muito prestativa – murmurou Vimes.
– Eu mandei o Nobby à cidade para ajudar os outros a preparar o seu
quartel-general – disse lady Ramkin.
Vimes havia se esquecido completamente da Sede da Vigilância.
– O estrago deve ter sido muito grande – arriscou.
– Perda total – disse lady Ramkin. – Restou apenas um pedaço de pedra
derretida. Por isso estou deixando vocês ficarem com uma casa no Jardim
Pseudópolis.
– Perdão? – Ah, meu pai tinha propriedades por toda a cidade. Não são nada
úteis para mim, mesmo. Então, eu disse ao meu agente para dar ao sargento
Colon as chaves da velha casa no Jardim Pseudópolis. Vai ser bom para dar uma
arejada no ambiente.
– Mas essa região... Quer dizer, as pedras têm paralelepípedos de verdade...
Só o aluguel, quer dizer, lorde Vetinari não vai...
– Não se preocupe com isso – disse, dando-lhe um tapinha amigável. –
Agora, você realmente precisa dormir um pouco.
Vimes ficou deitado, mas sua mente não parava. O Jardim Pseudópolis ficava
no lado Ankh do rio, num bairro bem caro. A visão de Nobby ou do sargento
Colon andando pelas ruas à luz do dia provavelmente teria o mesmo efeito na
área que a abertura de um hospital para tratamento da peste. Ele cochilou,
entrando e saindo de um sono no qual dragões gigantes o perseguiam com potes
de unguento...
E acordou ao som de uma multidão.
Lady Ramkin levantando-se com indignação não era uma visão para se
esquecer, por mais que você tentasse. Era como assistir à separação dos
continentes ao contrário, com os vários subcontinentes e ilhas unindo-se para
formar uma única, compacta e irada protomulher.
A porta quebrada da casa dos dragões balançava nas dobradiças. Seus
ocupantes, já altamente excitados, como uma harpa sob efeito de anfetaminas,
estavam enlouquecendo. Pequenas gotas de fogo estouravam nos pratos de metal
enquanto eles corriam de um lado para o outro em seus cercados.
– O que significa isso? – ela perguntou.
Se algum Ramkin fosse dado a introspecções, ela teria que admitir que a frase
não era muito original. Mas era funcional. Dava conta do recado. A razão pela
qual os clichês se tornam clichês é que eles são os martelos e as chaves de fenda
na caixa de ferramentas da comunicação. A multidão ocupou a passagem
deixada pela porta quebrada. Alguns agitavam diversos tipos de ferramentas
afiadas para cima e para baixo, num movimento típico dos revoltosos.
– Ô – disse o líder -, o dragão tá aí dentro? Houve um coro de concordância
murmurada.
– Do que você está falando? – perguntou lady Ramkin.
– Ô. Ele tá botando fogo na cidade. Eles não voam para longe. Você tem
dragões aqui. Poderia ser um deles, não poderia? -É! – Isso aí.
– QED.20 – Então o que nós vamos fazer é o seguinte, nós vamos acabar com
eles.
– Isso aí. – É! – Pro bono publico.
O peito de lady Ramkin subiu e caiu como um império. Ela esticou o braço e
pegou o garfo de revolver esterco que estava pendurado no gancho da parede.
– Mais um passo, estou avisando, e vocês se arrependerão. O líder olhou,
atrás dela, para os dragões desvairados.
– É? – disse, num tom malcriado. – E o que você vai fazer, hein? A boca de
lady Ramkin abriu e fechou uma ou duas vezes.
– Eu chamarei a Vigilância! A ameaça não teve o efeito que ela esperava.
Nunca prestou muita atenção às partes da cidade que não tinham escamas.
– Bom, isso é uma pena. Isso realmente nos preocupa, sabia? Me faz ficar
com as pernas bambas, isso aí.
Ele retirou um longo facão do cinto.
– E agora, vá para o canto, moça, porque...
– Quod Erat Demonstrandum. Alguns desordeiros são muito cultos. Um raio
de fogo esverdeado partiu dos fundos do galpão, passou meio metro acima da
multidão e queimou uma rosa de madeira enegrecida acima da porra.
Em seguida, veio uma voz que era um ronrom adocicado de pura ameaça
mortal.
– Este é lorde Montealegre Garrafiada Invernoafora IV, o dragão mais
quente da cidade. Ele é capaz de queimar a sua cabeça toda de uma vez. O
capitão Vimes saiu das sombras mancando.
Um pequeno dragão dourado, extremamente assustado, estava sendo
segurado com firmeza debaixo do seu braço. Sua outra mão o segurava pela
cauda.
Os desordeiros observavam, hipnotizados.
– Eu sei o que vocês estão pensando agora – prosseguiu Vimes, com a voz
suave. – Vocês se perguntam, depois de toda essa agitação, se ainda sobrou
alguma chama. E, sabe de uma coisa, eu mesmo não tenho tanta certeza... Ele se
inclinou para a frente, mirando entre as orelhas do dragão, e sua voz zuniu como
a lâmina de uma faca.
– O que vocês têm que se perguntar é: “Será que estou com sorte hoje?”. Por
alguns instantes, o único som era o do estômago de lorde Montealegre Garrafiada
Invernoafora IV fazendo um ronco medonho à medida que o combustível
derramava para dentro das cavidades de chamas.
– Olha, veja, er... – disse o líder, com os olhos fixos de modo hipnótico na
cabeça do dragão – Não há necessidade disso...
– Na verdade, ele pode muito bem decidir lançar fogo sem a minha ajuda –
explicou Vimes. – Eles têm que fazê-lo para impedir que o gás se acumule. O gás
se acumula quando ficam nervosos. E, sabe como é, eu acho que vocês os
deixaram bastante nervosos agora.
O líder fez o que esperava ser um vago gesto conciliatório, mas que,
infelizmente, foi feito com a mão que ainda estava segurando a faca.
– Solte – disse Vimes, no mesmo instante -, ou você já era.
A faca bateu no chão com um tinido. Houve um tumulto mais atrás, na
multidão, em que algumas pessoas, metaforicamente falando, estavam muito
distantes e não sabiam de nada.
– Mas antes que o restante desses bons cidadãos comece a dispersar com
calma e ir cuidar da sua vida – disse Vimes de modo expressivo -, eu sugiro que
olhem bem para esses dragões. Algum deles parece ter 15 metros de
comprimento? Vocês diriam que suas asas têm 25 metros de envergadura? Qual
é, vocês diriam, a intensidade do calor de suas chamas? – Sei lá – respondeu o
líder.
Vimes ergueu um pouco a cabeça do dragão. O líder revirou os olhos.
– Sei lá, senhor – ele se corrigiu.
– Você quer descobrir? O líder balançou a cabeça. Mas conseguiu encontrar
sua voz.
– Quem é você, afinal? Vimes se endireitou.
– Capitão Vimes, Vigilância Municipal.
Isso resultou num silêncio quase completo. A exceção foi uma voz animada,
em algum lugar no fundo da multidão, que disse: – Traje de plantão noturno, é?
Vimes olhou para o seu camisão. Na pressa de sair do seu leito de doente, havia
calçado sem perceber os chinelos de lady Ramkin. Pela primeira vez, viu que
tinham pompons cor-de-rosa.
E foi nesse momento que lorde Montealegre Garrafiada Inver-noafora IV
resolveu arrotar.
Não era mais um golpe de fogo estrondoso. Era apenas uma bola quase
invisível de chama fraca, que rolou para cima da multidão e chamuscou algumas
sobrancelhas. Mas o efeito, sem dúvida, foi impressionante.
Vimes se refez com grandiosidade. Ninguém poderia ter notado o seu breve
momento de puro terror.
– Essa foi só para chamar a sua atenção – disse, com cara de pau. – A
próxima será um pouco mais abaixo.
– Er...Você está certo. Não tem problema. A gente já estava indo mesmo.
Não tem dragão grande aqui, está certo. Desculpe ter incomodado.
– Ah, não – disse lady Ramkin, triunfante. – Vocês não vão escapar assim tão
fácil! – Ela estendeu o braço até uma prateleira e pegou uma latinha. Havia uma
fenda na tampa. Fazia um barulho de chocalho. Ao lado havia um rótulo:
Santuário Raio de Sol para Dragões Doentes.
A primeira volta da latinha pela multidão arrecadou 4 dólares e 31 centavos.
Depois que o capitão Vimes fez um gesto sugestivo com o dragão, outros 25
dólares e 16 centavos apareceram milagrosamente. A multidão fugiu.
– Pelo menos tivemos o lucro do dia – disse Vimes, quando ficaram sozinhos
novamente.
– Você foi supercorajoso! – Vamos só torcer para que não vire moda –
respondeu Vimes, colocando, com muito cuidado, o dragão exausto de volta ao
cercado. Ele estava bastante descontraído.
Mais uma vez, sentiu que havia um olhar fixo na sua direção. Olhou para os
lados e viu o rosto longo e bicudo de Bongaroto Troxa Pedrapena empinando-se
numa pose que seria bem descrita como O Último Cachorrinho da Loja.
Para sua surpresa, pegou-se fazendo carinho atrás das suas orelhas, ou pelo
menos atrás das duas coisas espetadas ao lado da cabeça que supostamente eram
as orelhas. Ele respondeu com um barulho estranho, que parecia um entupimento
complicado nos tubos de uma cervejaria. Vimes tirou a mão rapidamente.
– Está tudo bem – acalmou-o lady Ramkin. – São os estômagos dele
roncando. Significa que gosta de você.
Para seu espanto, Vimes percebeu que ficou bastante contente com isso. De
tudo que conseguia se lembrar, até então nada na sua vida o havia considerado
digno de um arroto.
– Achei que você fosse, er, se livrar dele.
– Suponho que eu tenha que fazê-lo – ela respondeu. – Mas você sabe como
é. Eles nos olham com esses olhos grandes e comoventes... Houve um breve
silêncio, mútuo e constrangedor.
– Como seria se eu...
– Você não acha que gostaria de...
Eles pararam.
– Seria o mínimo que eu poderia fazer – disse lady Ramkin.
– Mas você já está nos dando a nova sede e tudo o mais! – Isso foi apenas o
meu dever de boa cidadã. Por favor, aceite Bongaroto como... como um amigo.
Vimes sentiu que estava sendo empurrado para um abismo muito profundo
sobre uma prancha muito fina.
– Eu nem sei o que eles comem.
– Eles são omnívoros, na verdade. Comem tudo, exceto metais e rochas
vulcânicas. Não se pode ser enjoado, sabe, quando se evolui num pântano.
– Mas eles não têm que sair para caminhar? Ou voar, ou qualquer coisa? –
Ele parece dormir a maior parte do tempo. – Ela coçou a coisa feia que ficava
no alto da cabeça cheia de escamas. – Devo dizer que é o dragão mais sossegado
que eu já criei.
– E quanto a, er, sabe? – Ele indicou o garfo de esterco.
– Bom, é basicamente gás. Apenas mantenha-o num local bem ventilado.
Você não tem nenhum tapete valioso, tem? É melhor não deixá-lo lamber o seu
rosto, mas eles podem ser treinados para controlar as chamas. São muito úteis
para acender lareiras.
Bongaroto Troxa Pedrapena se enrolou entre uma infinidade de barulhos de
encanamento.
“Eles têm oito estômagos”, Vimes lembrou. Os desenhos do livro eram
bastante detalhados. E há muitas outras coisas, como tubos de destilação
fracionária e estranhos mecanismos alquímicos.
Nenhum dragão de pântano jamais poderia aterrorizar um reino, exceto por
acidente. Vimes se perguntou quantos teriam sido mortos por heróis ousados. Era
terrivelmente cruel fazer algo assim com criaturas cujo único crime era se
autoexplodir sem querer no meio de um voo, o que não era algo que nenhum
dragão fizesse com frequência. Ele ficava nervoso só de pensar. Uma raça de, de
desbastados, é o que os dragões eram. Nascidos para o fracasso. Viva rápido,
morra de várias maneiras. Omnívoros ou não, na verdade tinham que viver de
sua intrepidez, batendo as asas pelo mundo com um medo mortal do seu próprio
sistema digestivo. A família estaria acabando de se recuperar da explosão do pai,
e algum imbecil vestido com uma armadura entraria no pântano arrastando os
pés para enfiar a espada num saco de vísceras que estava a apenas um passo da
autodestruição de qualquer maneira.
Seria interessante ver como os grandes matadores de dragões do passado
enfrentavam o grande dragão. Armadura? Melhor não usá-la. No final daria tudo
no mesmo, e pelo menos as suas cinzas não viriam pré-embaladas nas suas
próprias lâminas de metal.
Ele ficou olhando fixamente para a coisinha malformada, e a ideia que
andara batendo na sua cabeça, pedindo atenção durante os últimos minutos,
finalmente conseguiu entrar. Todo mundo em Ankh-Morpork queria encontrar a
toca do dragão. De preferência vazia. Pedaços de madeira numa barra de metal
não ajudariam muito, tinha certeza. Mas, como diziam, nada melhor que um
ladrão... (A expressão “Nada melhor que um ladrão para pegar um ladrão” havia
substituído, a esta altura (após duros protestos por parte do Grêmio dos Ladrões),
um provérbio muito mais antigo e representativo da essência de Ankh-Morpork,
que era “Nada melhor que um buraco fundo com molas nas laterais,
fios detonadores de bombas, lâminas de facas giratórias movidas a energia
hidráulica, cacos de vidro e escorpiões para pegar um ladrão”.)
Ele disse: – Um dragão poderia farejar outro? Quer dizer, seguir um cheiro?
Queridíssima Mãe [escreveu Cenoura]. Aconteceu algo que não está no gibi.
Ontem à noite o dragão incendiou o nosso Quartel-General e, Veja Só, Graças a
Deus, ganhamos outro melhor, que fica num lugar chamado Jardim Pseudópolis,
em frente ao Teatro Lírico. O sargento Colon disse que nós Subimos na Vida e
disse a Nobby para não tentar vender os móveis. Subir na Vida é uma metáfora,
coisa que estou aprendendo, é como Mentir, só que mais decorativo. Aqui
existem carpetes próprios para cuspir. Hoje, grupos de pessoas tentaram revistar
as celas duas vezes à procura de dragões. É impressionante. E elas desenterram
coisas da privada das pessoas, e de sua vida privada, e se metem nos sótãos, e nos
assuntos dos outros. É como uma Febre. Uma coisa é certa, as pessoas não têm
tempo para mais nada e, o sargento Colon disse que, quando você sai nas Rondas
e grita Meia-Noite e Está Tudo Bem enquanto um dragão derrete a rua, você
sente que está tentando abafar alguma coisa. Eu saí da pensão da senhora Palm
porque aqui tem dúzias de quartos. Foi triste, elas fizeram um bolo, mas acho que
é melhor assim, embora a senhora Palm nunca tenha me cobrado um aluguel, o
que foi muito gentil da parte dela, considerando-se que é viúva com tantas boas
filhas para criar, além dos dotes etcetera.
Também fiz amizade com um símio, que fica vindo aqui para ver se nós
encontramos seu livro. Nobby diz que ele é um idiota carregado de pulgas porque
ganhou 18 dólares dele jogando Aleije o Senhor Cebola, que é um jogo de azar
de cartas, o qual eu não jogo. Eu informei Nobby sobre as Leis (de
Regulamentação) dos Jogos, e ele disse Não Enche, o que eu acho que é uma
violação dos Decretos sobre a Decência de 1389, mas eu decidi usar o meu
próprio critério.
O capitão Vimes está doente e está sendo cuidado por uma lady. Nobby disse
que todo mundo sabe que ela é Louca, mas o sargento Colon diz que é só por
morar numa casa grande cheia de dragões, mas ela vale uma Fortuna e ainda
bem que o capitão está botando as manguinhas de fora. Eu não sei o que a roupa
dele tem a ver com isso. Hoje de manhã eu saí para dar uma volta com a Reet e
mostrei a ela muitos exemplos diferentes de ornamentos em ferro que podem ser
encontrados na cidade. Ela disse que achou muito interessante. Disse que eu era
muito diferente de todas as pessoas que já conheceu. Seu filho afetuoso, Cenoura.
P.S.: Espero que Minty esteja bem.
Ele dobrou o papel com cuidado e colocou dentro do envelope.
– O sol está se pondo – disse o sargento Colon. Cenoura parou de lacrar a
carta com a cera.
– Isso significa que logo será noite – continuou Colon, mais preciso.
– Sim, sargento.
Colon passou o dedo por dentro da gola da camisa. Sua pele estava
extremamente rosada, resultado de uma manhã esfregando-se com a bucha.
Mas as pessoas ainda se mantinham a uma distância respeitosa.
Alguns nascem para comandar. Alguns conquistam uma posição de
comando. Outros têm a posição de comando imposta a eles. O sargento estava
agora incluído nessa categoria, e não estava muito feliz com isso. A qualquer
momento, ele sabia, seria obrigado a dizer que estava na hora de fazer a patrulha.
Ele não queria sair para a patrulha. Queria encontrar um bom porão em algum
lugar. Mas o dever chama – se ele estava no comando, tinha que fazê-lo.
Não era a solidão do comando que o incomodava. Era ser fritado vivo no
comando o que lhe causava problemas.
Ele também tinha muita certeza de que, a menos que pensassem em algo a
fazer em relação ao dragão, muito em breve o patrício ficaria infeliz. E, quando
o patrício ficava infeliz, tornava-se muito democrático. Ele encontrava maneiras
complexas e dolorosas de espalhar aquela infelicidade da forma mais abrangente
possível. “A responsabilidade”, pensou o sargento, “é algo terrível”. Assim como
ser torturado sem piedade. Pelo que sabia, um fato levava ao outro muito
rapidamente.
Portanto, sentiu-se terrivelmente aliviado quando uma pequena carruagem
parou em frente ao Jardim. Era muito velha e gasta. Havia um brasão desbotado
na porta. Pintada na traseira, e muito mais recente, uma pequena mensagem:
“Relinche Se Você Gosta de Dragões”.
Dela desceu o capitão Vimes, com movimentos trêmulos. Atrás dele veio a
mulher que o sargento conhecia como Louca Sy bil Ramkin. E, finalmente,
pulando de modo obediente na ponta da correia, vinha um pequeno... O sargento
ficou nervoso demais para reparar no tamanho real.
– Caramba! Eles conseguiram pegá-lo! Nobby olhou de onde estava, à mesa
do canto, onde continuava incapaz de aprender que era quase impossível jogar
um jogo de ilusão e blefe com um adversário que sorri o tempo todo. O
bibliotecário aproveitou a distração para se servir de algumas cartas do fundo do
baralho.
– Não seja maluco. Isso é apenas um dragão do pântano -disse Nobby. – Ela,
com certeza, é a lady Sy bil. Uma lady de verdade.
Os outros dois guardas se viraram e olharam para ele. Afinal de contas, era o
Nobby.
– Vocês dois, podem parar com essa bobagem. Por que eu não poderia
reconhecer uma lady quando vejo uma? Ela me deu uma xícara de chá numa
xícara fina que nem papel e com uma colher de prata – disse, falando como se
tivesse experimentado o suprassumo da distinção social. – E eu devolvi pra ela,
então vocês pode parar de me olhar desse jeito! – O que é que você realmente
faz nas suas noites de folga? -perguntou Colon.
– Nada que seja da sua conta.
– Você realmente devolveu a colher? – perguntou Cenoura.
– Devolvi a droga da colher, sim! – respondeu Nobby, esquentado. Atenção,
rapazes – interrompeu o sargento, transbordando de alívio. Os outros dois
entraram na sala. Vimes olhou para seus homens com seu costumeiro olhar de
desânimo.
– Meu esquadrão – murmurou.
– Bela tropa – observou lady Ramkim. – Os bons e velhos soldados, hein? –
Pois é, os soldados.
Lady Ramkin deu um sorriso encorajador. Isso provocou uma estranha
agitação entre os homens. O sargento Colon, com algum esforço, conseguiu fazer
o peito ficar maior que a barriga. Cenoura endireitou a postura normalmente
caída. Nobby vibrou com a sua posição de soldado, mãos retas junto à lateral do
corpo, polegares apontando para a frente com precisão, peito de pombo tão
inflado que os pés corriam o risco de se afastar do chão.
– Eu sempre penso que todos nós podemos dormir mais seguros na minha
cama sabendo que esses bravos homens estão cuidando de nós – disse lady
Ramkin, andando calmamente ao longo da fileira de soldados, como um galão de
carga passando por uma brisa suave. – E quem é este? E difícil para um
orangotango manter-se em posição de sentido. O corpo domina a ideia geral,
mas a pele, não. Porém, o bibliotecário estava dando o melhor de si, uma espécie
de saco parado e respeitoso ao final da fila e mantendo o tipo de saudação
complexa que só é possível executar quando se tem um braço de um metro e
vinte.
– Ele tá à paisana, senhora – disse Nobby, esperto. – Serviços Especiais de
Símios.
– Muito ousado. Muito ousado mesmo. Há quanto tempo você é um símio,
meu caro? – Ooook.
– Muito bem. – Ela se virou para Vimes, que parecia, sem dúvida, incrédulo.
– Crédito para você. Um belo corpo de homens...
– Ooook.
– ... antropóides – corrigiu lady Ramkin, quase sem mudar a entonação. Por
um momento a tropa se sentiu como se tivesse acabado de retornar da conquista,
sem nenhuma ajuda, de uma província distante. Eles realmente se sentiam muito
felizes, que é como lady Ramkin quase certamente os teria descrito naquele
momento, mas a palavra que define seu sentimento na maior parte do tempo era
bem diferente, apesar de começar com a mesma letra. Até o bibliotecário se
sentia mais animado, e deixou a palavra “homem” passar sem comentários uma
vez.
O barulho de algo pingando e um forte cheiro químico fizeram com que eles
olhassem ao redor.
Bongaroto Troxa Pedrapena estava agachado com ar de inocência tímida ao
lado de algo que não era exatamente uma mancha no carpete; mais parecia um
buraco no chão. Algumas nuvens de fumaça subiam em espirais. Lady Ramkin
suspirou.
– Não se preocupe, madame – apresentou-se Nobby, animado. – Logo será
limpo.
– Infelizmente, eles costumam ficar assim quando estão excitados – ela
explicou.
– Belo exemplar a senhora tem, madame – prosseguiu Nobby, divertindo-se
com a recém-descoberta experiência das relações sociais.
– Não é meu. Ele agora pertence ao capitão. Ou a todos vocês, talvez. Uma
espécie de mascote. O nome dele é Bongaroto Troxa Pedrapena. Bongaroto
Troxa Pedrapena congelou numa pose estoica sob o peso do nome, depois
cheirou o pé da mesa.
– Ele se parece com o meu irmão Errol – observou Nobby, fazendo uma
jogada engraçadinha e insolente, mas com alguma reserva. – Tem o mesmo
nariz pontudo, desculpe-me por dizê-lo, milady.
Vimes olhou para a criatura, que estava investigando seu novo ambiente, e
sabia que ela passara a ser, irrevogavelmente, Errol. O pequeno dragão deu uma
mordida experimental na mesa, mastigou por alguns segundos, cuspiu fora,
acomodou-se e dormiu.
– Ele não vai botar fogo em nada, vai? – perguntou o sargento, ansioso.
– Acho que não. Ele parece não ter entendido ainda para que servem os seus
dutos de chamas – respondeu lady Ramkin.
– Mas não é possível ensinar a ele nada sobre como relaxar -disse Vimes. –
Bom, agora, homens...
– Ooook.
– Eu não estava falando com o senhor. O que isso está fazendo aqui? -Er...-
disse o sargento Colon, apressando-se. – Eu, er... o senhor estando afastado e tudo
o mais, e como era provável que ficássemos com falta de mão de obra... O
Cenoura disse que está tudo dentro da lei e tal... Eu o fiz prestar o juramento,
senhor. O símio, senhor.
– Fez ele prestar que juramento, sargento? – Para ser um Guarda Especial,
senhor – respondeu Colon, corando.
– Sabe como é, senhor. Espécie de Vigilância dos Cidadãos. Vimes ergueu as
mãos.
– Especial? Totalmente exclusivo, isso sim.
O bibliotecário deu um grande sorriso para Vimes.
– E algo temporário, senhor. Para durar, tipo... – começou Colon, em tom de
súplica. – Nós precisamos da ajuda, senhor, e... bom, ele é o único que parece
gostar de nós.
– Eu acho que é uma ideia assustadoramente boa – interveio lady Ramkin. –
Boa pedida, esse símio.
Vimes encolheu os ombros. O mundo já estava enlouquecido o bastante, o
que poderia fazê-lo piorar? – Tudo bem. Tudo bem! Eu vou ceder. Ótimo! Dêem
um distintivo a ele, embora eu não queira nem saber onde ele vai usá-lo! Ótimo!
Sim! Por que não? – O senhor está bem, capitão? – perguntou Colon, todo
preocupado.
– Ótimo! Ótimo! Bem-vindos à nova Vigilância! – gritou Vimes, caminhando
com passos vagos pela sala.
– Ótimo! Afinal, nós pagamos uma mixaria, não é? Então, também podemos
contratar um mac...
A mão do sargento bateu com respeito sobre a boca de Vimes.
– Er... Só uma coisa, capitão – disse Colon com urgência, diante do olhar
espantado de Vimes. – Não se usa a palavra que começa com “M”. Ele fica
muito aborrecido, senhor. Não consegue se segurar, perde o autocontrole. É
cutucar a onça com aquele negócio, senhor. “Símio” tudo bem, senhor, mas não
a palavra que começa com “M”. Porque, senhor, quando ele fica nervoso, não
fica emburrado num canto, se é que o senhor compreende. Ele não dá nenhum
trabalho, a não ser por isso, senhor. Está bem? Só não diga macaco. Merda! Os
Irmãos estavam nervosos.
Ele ouvira uma conversa entre eles. As coisas estavam indo rápido demais.
Tentou introduzi-los na conspiração aos poucos, nunca dando a eles mais verdade
do que o seu pequeno cérebro aguentaria, mas, ainda assim, os superestimara.
Era preciso pulso firme. Firme, porém justo.
– Irmãos – disse o Grande Mestre Supremo -, as Algemas da Veracidade
foram devidamente suspensas? – Quê? – perguntou o Irmão Torre de Vigia, num
tom vago. – Ah, as Algemas. Sim. Suspensas. Certo.
– E os Martinetes do Aceno, foram adequadamente despojados? O Irmão
Emboçador teve um sobressalto de culpa.
– Eu? O quê? Ah. Tudo bem, sem problemas. Despojado. Sim. O Grande
Mestre Supremo fez uma pausa.
– Irmãos. Estamos tão perto. Só mais uma vez. Apenas algumas horas. Mais
uma vez, e o mundo será nosso. Vocês entendem, Irmãos? O Irmão Emboçador
arrastou o pé no chão.
– Bem. Quer dizer, é claro. Sim. Sem perigo quanto a isso. Apoiamos o
senhor 110%...
“Ele vai dizer só que”, pensou o Grande Mestre Supremo.
– ... só que...
“Ah.” – ... nós, quer dizer, todos nós aqui, temos nos sentido... é estranho
mesmo, a gente se sente tão diferente depois de ter evocado o dragão, meio
que...
– Esgotados – interveio o Irmão Torre de Vigia, querendo ajudar. – ... é, é
como se... – o Irmão Emboçador esforçava-se para se expressar... – tivessem
tirado algo de nós...
– Totalmente sugados – disse o Irmão Torre de Vigia.
– E, isso mesmo, e nós... bom, talvez seja meio arriscado...
– Como se alguma coisa tivesse sido puxada do seu cérebro por criaturas
sinistras do Além – continuou o Irmão Torre de Vigia.
– No meu caso, eu diria que é mais como uma enxaqueca -corrigiu o Irmão
Emboçador, precisando de ajuda.
– E a gente tava pensando, sabe, em toda essa coisa de equilíbrio cósmico e
tal, porque, bom, olha o que aconteceu com o pobre Dunny kin. Poderia ser uma
espécie de sinal. Er...
– Era apenas um crocodilo enlouquecido escondido num canteiro de flores –
disse o Grande Mestre Supremo. – Poderia ter acontecido a qualquer um. Mas eu
entendo os seus sentimentos.
– Entende? – perguntou o Irmão Torre de Vigia.
– Ah, sim. Eles são muito naturais. Todos os grandes feiticeiros se sentem um
pouco ansiosos antes de se dedicar a um trabalho importante como este. – Os
Irmãos ficaram orgulhosos. Grandes feiticeiros. Somos nós. É. – Mas, após
algumas horas, estará tudo terminado, e tenho certeza de que o rei os
recompensará enormemente. O futuro será glorioso.
Isso normalmente resolvia o assunto. Não parecia estar funcionando dessa
vez.
– Mas o dragão... – começou o Irmão Torre de Vigia.
– Não haverá dragão nenhum! Não precisaremos dele. Olhe, é muito
simples. O rapaz terá uma espada maravilhosa. Todo mundo sabe que os reis têm
espadas maravilhosas.
– Essa seria a espada maravilhosa sobre a qual o senhor tem nos contado, é? –
perguntou o Irmão Emboçador.
– E, quando ela tocar o dragão, será...fum!
– É, eles fazem assim – confirmou o Irmão Porteiro. – Meu tio chutou um
dragão do pântano uma vez. Ele o pegou comendo as suas abóboras. A coisinha
maldita quase arrancou a perna dele fora.
O Grande Mestre Supremo suspirou. Mais algumas horas, sim, e não haveria
mais nada disso. A única coisa que ele não havia decidido era se os deixaria
sozinhos – quem acreditaria neles, afinal? –, ou se mandaria os Guardas prendê-
los por serem casos de burrice irreversível.
– Não – disse, impaciente -, quero dizer que o dragão desaparecerá. Nós o
mandaremos de volta. Fim do dragão.
– As pessoas não vão ficar um pouco desconfiadas? – perguntou o Irmão
Emboçador.
– Não vão esperar pedaços de dragão por todos os lados? – Não, porque um
toque da Espada da Verdade e da Justiça destruirá totalmente a Fonte do Mal! Os
Irmãos ficaram olhando para ele.
– É nisso que elas vão acreditar, de qualquer forma – acrescentou. – Nós
podemos providenciar um pouco de fumaça mística na hora.
– Obvio demais, fumaça mística – disse o Irmão Dedos.
– Sem pedaços, então? – repetiu o Irmão Emboçador, um pouco
decepcionado.
O Irmão Torre de Vigia tossiu.
– Não sei se as pessoas vão aceitar isso. Parece meio certinho demais.
– Ouçam – começou o Grande Mestre Supremo –, elas aceitarão qualquer
coisa! Elas verão tudo acontecer! As pessoas ficarão tão comovidas ao ver o
rapaz vencer que não pensarão duas vezes sobre o que viram! Contem com isso!
Agora... comecemos...
Ele se concentrou.
Sim, era mais fácil. Cada vez mais fácil. Ele conseguia sentir as escamas,
sentir a ira do dragão enquanto ia para o lugar aonde os dragões foram parar e
tomava o controle.
Isso era poder, e o poder era dele.
O Sargento Colon estremeceu. -Ai.
– Não seja um grande medroso – disse lady Ramkin, animada, apertando o
curativo com uma habilidade de anos de prática passada a muitas gerações de
mulheres da família Ramkin. – Ele quase não o tocou.
– E ele sente muito – disse Cenoura, de modo enfático. – Mostre ao sargento
que você sente muito. Vai.
– Ooook – confirmou o bibliotecário, encabulado.
– Não deixe ele me beijar! – gritou Colon.
– Você acha que segurar alguém pelos tornozelos e bater com a cabeça dele
no chão se encaixa em Golpear um Oficial Superior? – perguntou Cenoura.
– Não vou prestar queixa – disse o sargento rapidamente.
– Podemos prosseguir? – perguntou Vimes, impaciente. – – Veremos se Errol
consegue farejar a toca do dragão. Lady Ramkin disse que vale a pena tentar.
– O senhor quer dizer cave um buraco fundo com molas nas laterais, fios
detonadores de bombas, lâminas de facas giratórias movidas a energia
hidráulica, cacos de vidro e escorpiões para pegar um ladrão, capitão? –
perguntou o sargento, em dúvida. – Ai! – Sim, é melhor não perder o cheiro –
respondeu lady Ramkin. – Deixe de ser um bebê, sargento.
– Brilhante ideia, a de usar Errol, madame, se é que a senhora me permite
dizer – disse Nobby, enquanto o sargento corava sob os curativos. Vimes não tinha
certeza de quanto tempo seria capaz de suportar Nobby, o alpinista social.
Cenoura não disse nada. Estava aceitando aos poucos o fato de
provavelmente não ser um anão, mas ter sangue de anões correndo em suas
veias, de acordo com o conhecido princípio da ressonância mórfica, e de seus
genes emprestados lhe dizerem que nada seria tão simples assim. Encontrar uma
reserva de ouro, mesmo quando o dragão não estivesse em casa, era bastante
arriscado. De qualquer modo, estava certo de que saberia se houvesse uma por
perto. A presença de grandes quantidades de ouro sempre fazia a palma de um
anão coçar, e a dele não estava coçando.
– Começaremos pelo muro nas Sombras – disse o capitão.
O sargento Colon olhou com o canto do olho para lady Ramkin e achou
impossível demonstrar covardia diante de quem o encorajava. Ele simplesmente
sugeriu: – Isso é prudente, capitão? – É claro que não. Se fôssemos prudentes, não
estaríamos na Vigilância.
– Querem saber? Tudo isso é tremendamente excitante – disse lady Ramkin.
– Oh, eu acho que a senhora não deveria vir, milady... – começou Vimes.
– Sy bil, por favor!...
– ... é uma área muito desconceituada, sabe.
– Tenho certeza de que estarei perfeitamente segura com os seus homens.
Tenho certeza de que os vagabundos derretem só de olhar para vocês.
“Ela confundiu com dragões”, pensou Vimes. “Eles derretem quando veem
dragões, e deixam apenas as sombras no muro.” Sempre que ele sentia que
estava indo mais devagar, ou que estava perdendo o interesse, lembrava-se
daquelas sombras, e era como se um fogo-fátuo descesse pela sua espinha. Não
deveriam permitir que coisas como essa acontecessem. Não na minha cidade.
Na verdade, as Sombras não eram o problema. Muitos de seus habitantes tinham
saído de lá para caçar, e os que tinham ficado estavam muito menos inclinados
do que antes a espreitar em becos escuros. Além disso, os mais sensatos
reconheciam que lady Ramkin, caso fosse tocaiada, diria ao indivíduo para tomar
jeito e deixar de ser bobo com uma voz tão acostumada a mandar que ele
provavelmente acabaria fazendo isso.
O muro ainda não havia sido derrubado e ainda apresentava o seu afresco
terrível. Errol farejou ao redor do muro, correu pelo beco uma ou duas vezes e
foi dormir.
– Trabalho árduo – disse o sargento Colon.
– Mas a ideia era boa – reconheceu Nobby, fiel.
– Pode ter sido a chuva e as pessoas andando por aqui, suponho – disse lady
Ramkin.
Vimes pegou o dragão do chão. Havia sido uma esperança vã, de todo modo.
Apenas era melhor fazer alguma coisa do que não fazer nada.
– É melhor voltarmos. O sol está se pondo.
Eles caminharam de volta em silêncio. “O dragão conseguira amansar até as
Sombras”, pensou Vimes. Ele está dominando toda a cidade mesmo quando não
está aqui. As pessoas vão começar a amarrar virgens às pedras a qualquer
momento.
“E uma metáfora da maldita existência humana, o dragão. E, se isso já não
fosse ruim o suficiente, ele também é uma coisa quente, enorme e voadora.”
Vimes pegou a chave do novo quartel-general. Enquanto tentava encontrar o
buraco da fechadura, Errol acordou e começou a choramingar.
– Agora, não – disse Vimes. Ele sentiu uma pontada na lateral. A noite mal
começara e já se sentia cansado demais.
Um pedaço de ardósia escorregou pelo telhado e se espatifou nas pedras da
calçada ao lado dele.
– Capitão – sussurrou o sargento Colon.
– O quê? – Ele está no telhado, capitão.
Vimes notou alguma coisa na voz do sargento. Não era um tom animado. Não
era assustado. Era apenas um tom de pavor.
Ele olhou para cima. Errol começou a espernear debaixo do seu braço. O
dragão – o dragão – estava olhando para baixo com interesse, por cima das
calhas. Seu rosto era maior que um homem. Seus olhos eram do tamanho de
olhos muito grandes, de um vermelho em combustão, repletos de uma
inteligência que não tinha nada a ver com seres humanos. Para começar, era
muito mais antiga. Era uma inteligência que havia sido regada ao molho da
fraude e conservada em astúcia desde o tempo em que um grupo de macacos se
perguntou se andar sobre duas pernas seria uma boa jogada para a sua carreira.
Não era uma inteligência que tivesse alguma relação com as artes da diplomacia
ou que sequer as compreendesse.
Ele não brincaria, nem apresentaria enigmas a serem resolvidos. Mas sabia
tudo sobre arrogância, poder e crueldade, e se possível queimaria a cabeça de
alguém. Porque gostava de fazê-lo.
Estava ainda mais irado do que de costume naquele momento. Sentia algo
atrás de seus olhos. Um mente minúscula, fraca e alheia a sua vontade, inchada
de auto satisfação. Era enlouquecedora, como uma coceira que não pode ser
aliviada. Ela o obrigava a fazer coisas que não queria... e o impedia de fazer
coisas que queria muito fazer.
Os olhos estavam, naquele momento, concentrados em Errol, que estava
ficando fora de si. Vimes se deu conta de que tudo o que o separava de um
milhão de graus de calor era o vago interesse do dragão em saber por que Vimes
teria um dragãozinho embaixo do braço.
– Não façam nenhum movimento brusco – disse a voz de lady Ramkin atrás
dele. – E não demonstrem medo. Eles sempre percebem quando você está com
medo.
– Tem mais algum conselho que você possa dar neste momento? – perguntou
Vimes devagar, tentando falar sem mexer os lábios.
– Bom, fazer cócegas atrás da orelha geralmente funciona.
– Oh – disse Vimes, de leve.
– E um “não”com firmeza. E retirar o prato de comida.
– Ahn? – E bater no nariz dele com um jornal enrolado é o que eu faço em
casos extremos.
No mundo lento, desesperado e de contornos brilhantes que Vimes habitava
agora, e que parecia girar ao redor de narinas íngremes a alguns metros de
distância dele, percebeu um som suave e sibilante.
O dragão estava respirando fundo.
A entrada de ar foi interrompida. Vimes olhou para a escuridão de dutos de
chamas e se perguntou se havia visto alguma coisa, se haveria algum pequeno
brilho branco ou algo assim, antes que o esquecimento ardente o varresse.
Naquele momento, soou uma corneta.
O dragão ergueu a cabeça, confuso, e fez um barulho que soava vagamente
interrogativo, sem chegar a ser, de modo algum, uma palavra. A corneta soou
novamente. O som parecia ter diversos ecos que ganhavam vida própria. Parecia
um desafio. Se não era isso, então a pessoa que estava tocando a corneta teria
problemas em breve, porque o dragão lançou um olhar combustível para Vimes,
abriu as asas enormes, deu um salto pesado para o ar e, contrariando todas as
regras da aeronáutica, voou lentamente na direção do som.
Nada no mundo deveria ser capaz de voar daquele jeito. As asas batiam para
cima e para baixo com um barulho que parecia um trovão dentro de um pote
fechado, mas o dragão se movia como se estivesse remando a esmo pelo ar. Se
parasse de bater as asas, o movimento sugeria que ele simplesmente deslizaria
até parar. Ele não voava, flutuava. Para uma coisa do tamanho de um celeiro
com a pele blindada, tratava-se de um truque muito bom.
Ele passou acima das cabeças como uma barca, seguindo para a Praça das
Luas Quebradas.
– Sigam-no! – gritou lady Ramkin.
– Isso não está certo, ele voar desse jeito. Tenho certeza de que existe algo
sobre isso numa das Leis de Bruxaria – comentou Cenoura, pegando seu caderno.
– E danificou o telhado. Ele está realmente acumulando violações, sabe.
– Você está bem, capitão? – perguntou o sargento Colon.
– Eu pude ver lá dentro do nariz dele – disse o capitão Vimes, em transe. Seus
olhos focalizavam a expressão de preocupação do sargento. – Para onde ele foi?
– perguntou. Colon apontou na direção da rua.
Vimes olhou fixamente para a forma que desaparecia acima dos telhados.
– Sigam-no! A corneta soou novamente.
Outras pessoas também corriam em direção à Praça. O dragão deslizava
diante delas como um tubarão seguindo um alvo, com a cauda batendo
lentamente de um lado para o outro.
– Algum maluco vai enfrentá-lo! – disse Nobby.
– Eu achei que alguém iria tentar – observou Colon. – O pobre infeliz vai ser
assado na própria armadura.
Essa parecia ser a opinião da multidão enfileirada na Praça. O povo de Ankh-
Morpork tinha uma visão de entretenimento direta e absurda, e, ao mesmo tempo
que estavam ansiosos para ver a morte de um dragão, ficariam felizes em ter
que se contentar em ver alguém ser assado vivo dentro de sua própria armadura.
Não era todo dia que se tinha a chance de ver alguém ser assado dentro da
própria armadura. Seria algo inesquecível para as crianças. Vimes foi
acotovelado e atropelado pela multidão à medida que mais pessoas se dirigiam à
praça.
A corneta soou o terceiro desafio.
– Essa é uma corneta acústica, isso mesmo – disse Colon, com ares de
conhecedor. – Como uma trombeta bastarda, só que mais sonora.
– Tem certeza? – perguntou Nobby.
– Sim.
– Deve ter sido uma corneta grande pra caramba.
– Amendoim! Tranha! Salsicha quente! – gritou uma voz atrás deles. – Olá,
rapazes. Olá, capitão Vimes! Na cena da morte, hein? Pegue uma salsicha. Por
conta da casa.
– O que está acontecendo, Cova? – perguntou Vimes, segurando-se à bandeja
do vendedor enquanto mais gente aparecia em volta deles.
– Um garoto chegou à cidade dizendo que ia matar o dragão – disse Cava-a-
Própria-Cova. -Tem uma espada mágica, ele disse.
– Ele tem pele mágica? – Você não tem um pingo de romantismo na alma,
capitão – disse Cova, retirando um garfo de tostar muito quente da pequena
frigideira que estava em cima da bandeja e encostando-o com delicadeza no
traseiro de uma mulher grandona na sua frente. -Dá licença, madame, o
comércio é a força vital da cidade, muito obrigado. Claro que – ele continuou -,
por direito, deveria haver uma donzela acorrentada a uma pedra. Só que a tia não
aceitou. Esse é o problema de algumas pessoas. Não têm nenhum senso de
tradição. Esse rapaz também disse que é o edero legítimo.
Vimes balançou a cabeça. O mundo ao seu redor estava definitivamente
enlouquecendo.
– Não estou entendendo mais nada.
– Edero – disse Cova, paciente. – Sabe como é. Edero do trono.
– Que trono? – O trono de Ankh.
– Que trono de Ankh? – Sabe como é. Tem os reis e tal. – Cova parecia estar
refletindo. – Queria saber qual é o nome dele. Eu fui à olaria noturna que vende
por atacado de ígneo, o troll, e fiz um pedido de três grosas de canecas da
coroação, e vai ser um saco ter que pintar o nome em todas elas depois. Posso
separar duas pro senhor, capitão? Pra você, 90 centavos, e eu estou cavando a
minha própria cova. Vimes desistiu. Voltou empurrando a multidão e usando
Cenoura como farol. O policial-lanceiro se destacava no meio da multidão, e o
resto dos soldados se ancorava nele.
– Está tudo uma loucura – gritou. – O que está acontecendo, Cenoura? – Tem
um rapaz num cavalo no meio da praça. Ele tem uma espada cintilante, sabe.
Mas não parece estar fazendo muita coisa agora. Vimes abriu caminho até o
abrigo de lady Ramkin.
– Reis – suspirou. – De Ankh. E tronos. Existem? – Quê? Ah, sim. Existiam –
disse lady Ramkin. – Centenas de anos atrás. Por quê? – Tem um garoto dizendo
que é o herdeiro do trono! – Isso mesmo – confirmou Cova, que havia seguido
Vimes na esperança de conseguir uma venda. – Ele fez um grande discurso sobre
como ia matar o dragão, derrubar os usurpadores e corrigir todas as injustiças.
Todo mundo aplaudiu. Salsicha quente, duas por 1 dólar, feitas de galinha, por que
não compra uma para a lady ? – O senhor quer dizer frango, não é? – perguntou
Cenoura, cuidadosamente, encarando os tubos brilhantes.
– E maneira de dizer, maneira de dizer-disse Cova, rapidamente.
– Com certeza é produto de frango. Frango legítimo.
– Todo mundo aplaude qualquer discurso nesta cidade – rosnou Vimes. – Isso
não significa nada! – Peguem suas salsichas de galinha, cinco por 2 dólares! –
gritou Cova, que nunca deixava uma conversa atrapalhar as vendas. -Poderia ser
bom para os negócios, a monarquia. Salsichas de galinha! Nupão! E corrigir
todas as injustiças, também. Parece uma ideia séria para mim. Com cebola! –
Posso pegar uma salsicha pra senhora, madame? – perguntou Nobby. Lady
Ramkin olhou para a bandeja pendurada no pescoço de Cova. Milhares de anos
de boas maneiras lhe prestaram auxílio, e a sua voz indicava apenas um leve
sinal de terror quando ela disse: – Nossa, elas devem estar ótimas. Que
esplêndidos gêneros alimentícios.
– Elas são feitas por monges em alguma montanha mística? -perguntou
Cenoura.
Cova olhou para ele com estranheza.
– Não – disse, com paciência. – Por galinhas.
– Que injustiças? – perguntou Vimes.
– Vamos, me diga. Que injustiças ele vai corrigir? – Bo-om... Tem... bom... os
impostos. Isso é injusto, para começar. – Ele teve a dignidade de demonstrar um
leve constrangimento. Pagar impostos era algo que, no mundo de Cova,
acontecia apenas aos outros.
– Isso mesmo – disse uma mulher perto dele. – E uma coisa horrível vaza da
calha da minha casa, e o proprietário não faz nada. Isso é injusto.
– E a calvície precoce? – comentou o homem na frente dela. – Isso é injusto
também.
O queixo de Vimes caiu.
– Ah, os reis podem curar isso, sabia? – disse um outro protomonarquista com
ares de especialista.
– Na verdade – começou Cova, vasculhando a sua sacola -, eu tenho uma
última garrafa de um unguento surpreendente que é feito... – ele encarou
Cenoura -... por monges antigos que vivem numa montanha...
– E eles não podem dizer desaforos, sabia? – continuou o monarquista.
– E assim que dá para perceber que são nobres. Completamente incapazes
disso. Tem a ver com o fato de serem corteses.
– Luxuosos – disse a mulher da calha com vazamento.
– O dinheiro também – continuou o monarquista, gostando da atenção. – Eles
não andam com dinheiro. É assim que se reconhece um rei.
– Por quê? Não é tão pesado – observou o homem cujos fios de cabelo
restantes estavam espalhados sobre o topo da sua cabeça, como os restos de um
exército derrotado. – Eu consigo carregar centenas de dólares sem problema
algum.
– Ser rei deve deixar os braços fracos – explicou a mulher, sabiamente. –
Deve ser por causa dos acenos.
– Eu sempre achei – disse o monarquista, pegando um cachimbo e
começando a enchê-lo de fumo com o ar cansativo de quem vai começar uma
palestra – que um dos maiores problemas de se ser rei fosse o risco de sua filha
se arranjar com um canalha.
Houve um silêncio carregado.
– E cair no sono por cem anos – continuou o monarquista, impassível.
– Ah – disseram os outros, aliviados sem saber bem por quê.
– E depois tem o desgaste e a perda de valor das ervilhas -acrescentou.
– Bom, teria – disse a mulher, na dúvida.
– Tendo que dormir em cima delas o tempo todo.
– Sem mencionar as centenas de colchões.
– Certo.
– É mesmo? Eu acho que posso conseguir para ele por atacado – disse Cova.
Ele virou-se para Vimes, que estava ouvindo tudo isso com uma depressão
pesada. – Está vendo, capitão? E você iria para a guarda real, imagino. Ia ter
umas plumas no capacete.
– Ah, a pompa – disse o monarquista, apontando com o cachimbo. – Muito
importante. Muitos espetáculos.
– O quê, de graça? – perguntou Cova.
– B-bem, acho que talvez você tenha que pagar pela decoração – disse o
monarquista.
– Vocês estão todos doidos! – gritou Vimes. – Vocês não sabem nada sobre
ele, e ele nem sequer ganhou ainda! – Um pouco de formalidade, eu espero –
disse a mulher.
– É um dragão que cospe fogo! – gritou Vimes, lembrando-se das narinas. – E
ele é apenas um sujeito num cavalo, pelo amor de Deus! Cova cutucou-o de leve
no escudo do peito.
– Você não tem alma, capitão. Quando um estranho vem para a cidade com
a missão de acabar com o dragão e o desafia com uma espada reluzente, só
existe um resultado, não é? Deve ser o destino.
– Missão!? – gritou Vimes. – Missão!? Seu malandro desonesto, Cova, você
estava fazendo propaganda de dragões de pelúcia ontem! – Isso são apenas
negócios, capitão. Não é preciso se exaltar assim – disse Cova, num tom
agradável.
Vimes voltou para perto dos soldados numa ira sombria. Digam o que
quiserem sobre o povo de Ankh-Morpork, eles sempre foram firmes em sua
independência, sem jamais conceder a homem algum o seu direito de roubar,
trapacear, desfalcar e assassinar em bases iguais. Isso parecia absolutamente
certo, no modo de pensar de Vimes. Também não havia nenhuma diferença
entre o homem mais rico e o mendigo mais pobre, excetuando-se o fato de que o
primeiro tinha muito dinheiro, comida, poder, roupas finas e boa saúde. Mas pelo
menos ele não era nem um pouco melhor. Apenas mais rico, mais gordo, mais
poderoso, mais bem vestido e saudável. Era assim havia centenas de anos.
– E agora eles sentem o cheiro do manto de pele de arminho e ficam todos
bobos – resmungou.
O dragão circundava a praça devagar e cauteloso. Vimes estendeu o pescoço
para ver acima das cabeças à sua frente.
Da mesma forma como diversos predadores possuem a silhueta da sua presa
quase programada em seus genes, era possível que a forma de alguém sobre um
cavalo segurando uma espada acionasse alguns interruptores no cérebro do
dragão. Ele demonstrava um interesse vivo, porém prudente.
No meio da multidão, Vimes deu de ombros.
– Eu nem sequer sabia que éramos um reino.
– Bem, não somos há séculos – disse lady Ramkin. – Os reis foram expulsos,
e isso foi muito bom também. Eles eram assustadores às vezes.
– Mas você é, bom, de uma família bacan... nobre. Eu esperava que você
fosse totalmente a favor de reis.
– Alguns deles eram uns cafajestes medonhos, sabia? Esposas por toda parte,
arrancavam a cabeça das pessoas, travavam guerras sem sentido, comiam com
a faca, jogando coxas de galinha meio comidas para trás, esse tipo de coisa. Não
eram o nosso tipo de gente.
A praça ficou em silêncio. O dragão havia voado devagar até o canto mais
distante e estava quase parado no ar, sem considerar o bater das asas. Vimes
sentiu alguma coisa arranhar levemente as suas costas e, em seguida, Errol
estava no seu ombro, segurando-se com suas garras traseiras. As asas curtas
batiam no mesmo compasso das do espécime maior. Ele assobiava e seus olhos
estavam fixos na massa suspensa.
O cavalo do garoto, nervoso, agitava-se sobre as lajes da praça enquanto ele
descia, exibia a espada e se virava para encarar o inimigo distante.
“Ele realmente parece confiante”, Vimes pensou consigo mesmo. “Por outro
lado, como é que a habilidade para matar dragões provaria que alguém está apto
a ser rei nestes tempos e nesta era?” A espada realmente era muito brilhante. Isso
ele tinha que admitir. E agora eram 2 horas da madrugada. E estava tudo bem,
fora a chuva. Estava chuviscando novamente.
Existem algumas cidades no multiverso que pensam que sabem se divertir.
Lugares como New Orleans e Rio acham que sabem não apenas pintar e bordar,
como botar fogo no bordado também. Mas, comparados a Ankh-Morpork num
momento de descontração, parecem uma aldeia galesa às 2 da tarde de um
domingo chuvoso.
Fogos de artifício estouravam e reluziam no ar úmido acima da lama turva do
rio Ankh. Vários animais domésticos estavam sendo assados nas ruas. Dançarinas
dançavam a conga de casa em casa, geralmente conseguindo segurar qualquer
adorno solto enquanto o faziam. Havia muita gente virando o caneco. Pessoas
que em circunstâncias normais jamais pensariam em fazê-lo gritavam “Ueba!”.
Vimes caminhava melancólico pelas ruas lotadas, sentindo-se uma cebola em
conserva no meio de uma salada de frutas. Tinha dado a noite de folga para os
soldados.
Ele não estava se sentindo nem um pouco monarquista. Não pensava ter nada
contra os reis em si, mas a visão dos ankh-morporkenses agitando bandeiras era
misteriosamente perturbadora. Era algo que apenas povos dominados e
ignorantes faziam, em outros países. Além disso, a ideia de plumas reais no seu
capacete o revoltava. Ele sempre tivera uma cisma com as plumas. As plumas
meio que, bem, entregavam a pessoa, diziam a todo mundo que você não era
dono de si. E ele se sentiria como um passarinho. Seria a gota d’água. Seus pés
errantes o levaram de volta ao Jardim. Afinal, aonde mais ele poderia ir? Seu
alojamento era deprimente, e a proprietária já havia reclamado dos buracos que,
apesar dos gritos, Errol continuava fazendo no carpete. E o cheiro que Errol
soltava. E Vimes não poderia beber numa taverna nesta noite sem ter que ver
coisas que o aborreceriam ainda mais do que as que ele normalmente via quando
estava bêbado.
Lá estava agradável e silencioso, embora os sons distantes da folia pudessem
ser ouvidos da janela.
Errol desceu do seu ombro com dificuldade e começou a comer o carvão da
lareira.
Vimes se recostou e pôs os pés sobre a mesa.
Que dia! E que luta! As esquivas, o cavalo inquieto, os gritos da multidão, o
jovem parecendo minúsculo e desprotegido, o dragão respirando fundo de uma
maneira que não parecia familiar para Vimes...
E sem soltar chamas. Isso surpreendeu Vimes. Surpreendeu a multidão. E,
certamente, surpreendeu o dragão, que tentou olhar para o próprio nariz e
agarrou, desesperado, os dutos de chamas. Ele continuou surpreso até o momento
em que o rapaz se abaixou sob uma das garras e enfiou fundo a espada.
E depois veio um trovão.
Esperava-se que houvesse alguns pedaços de dragão caídos por ali, na
verdade.
Vimes puxou um pedaço de papel para perto. Ele olhou as anotações que
havia feito no dia anterior: Hítem: Dragão pesado, mas ainda assim consegue
voar multo bem; Hítem: Ophogo é multo quente, mas hemitidopor hum Ser Vivo;
Hítem: Os Dragãos do pântano são mesmo uns Pobres Coitados, porém esta
Phorma monstruosa é grandiosa e totalmente poderosa; Hítem: De onde ele vem
ninguém sabe, nem aonde vai, nem onde se encontra nos entretempos; Hítem:
Por que ele queima tão destramente? Ele puxou a pena e a tinta para perto e,
com movimentos demorados, acrescentou: Hítem: Pode um dragão ser destruído
e virar um nada completo? Pensou um pouco e continuou: Hítem: Por que ele
explodiu de modo que ninguém possa encontrá-lo, por mais que busquem? Um
enigma, isso. Lady Ramkin disse que, quando um dragão do pântano explodia,
havia dragão por toda parte. Há de se concordar que as suas vísceras devem ter
sido um pesadelo alquímico, mas os cidadãos de Ankh-Morpork deveriam estar
até agora retirando dragões das ruas com pás. Ninguém parece ter se
preocupado com isso. Mas a fumaça violeta foi bastante impressionante. Errol
terminou o carvão e passou para os instrumentos de ferro. Até aquele momento,
naquela noite, havia comido três parale-lepípedos, uma maçaneta, alguma coisa
inidentificável que encontrou na calha e, para espanto geral, três das salsichas de
miúdos de galinha legítima de Cava-a-Própria-Cova. O barulho do atiçador de
fogo sendo mastigado e engolido se misturava à batida da chuva nas janelas.
Vimes voltou o olhar fixo para o papel e escreveu: Hítem: Como podem os
Reis surgir do nada? Ele não tinha sequer visto o rapaz de perto. Parecia bem-
apessoado, não exatamente um grande pensador, mas definitivamente tinha o
tipo de perfil que não ficaria mal nas moedas de 10 centavos. E, veja bem,
depois de ter matado o dragão ele poderia até ser um trasgo vesgo que não
haveria problema. A multidão o carregara em triunfo até o palácio do patrício.
Lorde Vetinari fora trancado em seus próprios calabouços. Ele não havia
resistido muito, pelo que consta. Apenas sorriu para todos e foi em silêncio. Que
feliz coincidência para a cidade. Bem no momento em que precisava de um
campeão para matar o dragão, surge um rei.
Vimes virou seus pensamentos do avesso. Depois, colocou-os no lugar. Pegou
a pena e escreveu: Hítem: Que chance feliz não é, para um rapaz que seria Rei,
que haja um Dragão a ser morto para que se prove, para além de quaisquer
dúvidas, sua bôafé. Era muito melhor que marcas de nascença e espadas, isso
com certeza. Ele girou um pouco a pena, e depois rabiscou: Hítem: O dragão não
era um dispositivo Mecânico, porém, certamente nenhum pheiticeiro tem o
poder de criar uma besta daquela magui. magueni. maginit. Grandeza.
Hítem: Por quê, naquela hora, não pôde soltar phogo? Hítem: De onde ele
veio? Hítem: Para onde phoi? A chuva batia mais forte na janela. Os sons da
comemoração ficaram claramente úmidos e depois se foram de vez. Havia um
murmúrio de trovoadas. Vimes sublinhou phoi diversas vezes. Após refletir um
pouco mais, acrescentou dois pontos de interrogação: ?? Depois de olhar para o
efeito por algum tempo, fez uma bola com o papel e jogou na lareira, onde foi
apanhado e engolido por Errol.
Um crime havia sido cometido. Sentidos que Vimes não sabia possuir,
sentidos antigos de policial, eriçaram os cabelos de sua nuca e lhe disseram que
um crime havia sido cometido. Provavelmente era um crime tão esquisito que
não figurava em nenhuma parte do livro de Cenoura, mas tinha sido cometido,
sim. Um punhado de assassinos em alta temperatura era apenas o começo. Ele
descobriria e daria um nome a ele.
Então, levantou-se, pegou a sua capa de chuva de couro do gancho atrás da
porta e saiu para a cidade desprotegida.
Aqui é o lugar aonde os dragões foram parar.
Eles repousam...
Nem mortos, nem dormindo. Nem esperando, porque esperar implica ter
expectativa. É possível que a palavra que procuramos aqui seja...
... irados.
O dragão podia se lembrar da sensação do ar sob as suas asas e do simples
prazer da chama. Havia céus vazios acima e um mundo interessante abaixo,
cheio de estranhas criaturas correndo de um lado para o outro. A existência tinha
uma textura diferente ali. Uma textura melhor.
E bem quando ele estava começando a gostar foi aleijado, impedido de
lançar chamas e enxotado como se fosse um mamífero canino e peludo. O
mundo havia sido retirado dele.
Nas sinapses répteis da mente do dragão, acendeu-se a ideia de que era
possível tomar o mundo de volta. Ele havia sido evocado e depois expulso com
desprezo. Mas talvez houvesse um vestígio, um cheiro, um fio que o levasse para
o céu...
Talvez houvesse até mesmo um trajeto de pensamento...
Ele se lembrou de uma mente. A voz rabugenta, tão cheia de sua própria
importância diminuta, uma mente quase igual à de um dragão, mas numa escala
minúscula.
A-ha.
Ele abriu as asas.
Lady Ramkin preparou uma xícara de chocolate e ficou ouvindo a chuva
gorgolejar nos canos do lado de fora.
Tirou os sapatos de dança odiados que até ela mesma estava pronta para
admitir que pareciam um par de canoas cor-de-rosa. Mas a nobreza obriga,
como o sargento engraçadinho diria. Como a última representante de uma das
famílias mais antigas de Ankh-Morpork, ela teve que ir ao baile da vitória para
demonstrar boa-vontade.
Lorde Vetinari raramente promovia bailes. Havia uma canção popular a esse
respeito, na verdade. Mas agora os bailes viriam um atrás do outro. Ela não
suportava bailes. Nem se comparava ao trabalho de limpar o esterco dos
dragões. Quando você limpava o esterco, tinha um objetivo. E não ficava rosada
e com calor, nem tinha que comer coisas idiotas em espetinhos, ou usar um
vestido que a fazia parecer uma nuvem cheia de querubins. Os pequenos dragões
não estavam nem aí para a sua aparência, desde que você tivesse um prato de
comida nas mãos.
É engraçado, realmente. Ela sempre achou que fossem necessárias semanas,
meses, para organizar um baile. Convites, decoração, salsichas no espeto, pastas
horrorosas de frango para serem enfiadas nas formas com massas. Mas tudo
havia sido feito em questão de horas, como se já estivessem esperando por isso.
Um dos milagres do buffet, obviamente. Ela havia até dançado com o, por falta
de palavra melhor, novo rei, que dissera algumas palavras gentis para ela
embora tivessem ficado bastante abafadas.
E a coroação no dia seguinte. Alguém diria que seriam necessários meses
para resolver tudo.
Ela ainda estava refletindo sobre essas questões enquanto misturava a ração
noturna dos dragões, que consistia em petróleo com turfa, salpicado com flores
de enxofre. Ela não se deu ao trabalho de tirar o vestido do baile, apenas vestiu o
avental pesado por cima, pôs as luvas e o capacete, baixou o visor sobre o rosto e
correu sob a chuva forte até o barracão, segurando firmemente os baldes com o
alimento.
Ela sabia, desde o momento em que abrira a porta. Normalmente, a chegada
de comida era recebida com pios, zunidos e breves explosões de chamas. Os
dragões, cada um no seu cercado, estavam de pé num silêncio apreensivo,
olhando para o alto através do telhado.
De algum modo aquilo era assustador. Ela bateu os baldes um no outro.
– Não precisam ficar com medo, o dragão grande e infame foi embora pra
sempre! – ela disse, num tom animador. – Fiquem perplexos com isto aqui,
vocês! Um ou dois deles deram uma olhada rápida para ela e logo voltaram para
o seu...
O quê? Eles não pareciam estar assustados. Apenas muito concentrados em
alguma coisa. Era como uma vigília. Esperavam que algo acontecesse. O trovão
soou novamente.
Alguns minutos depois, ela estava a caminho da cidade úmida. Existem
algumas canções que jamais são cantadas no estado sóbrio.
“Nellie Dean” é uma delas. Assim como uma canção que começa assim:
“Enquanto eu ia andando...”. Na área ao redor de Ankh-Morpork, a melodia
favorita é “O Cajado de um Feiticeiro é Arredondado na Ponta”. Os soldados
estavam bêbados. Pelo menos dois dos três soldados estavam bêbados. Alguém
havia convencido Cenoura a experimentar um shandy, mas ele não tinha gostado
muito. Ele não conhecia todas as palavras usadas por um policial, e muitas das
que conhecia não compreendia.
– Ah, entendi – disse, finalmente. – É uma brincadeira cômica com as
palavras, não é? – Sabem de uma coisa? – começou Colon, num tom saudoso,
observando a névoa espessa que rolava do rio Ankh. – É em momentos como
este que eu sinto a falta do velho...
– Você não pode dizer isso – disse Nobby, pendendo um pouco para o lado. –
Você concordou, não diríamos nada. Não é bom ficar falando sobre isso.
– Era a música predileta dele – continuou Colon, com tristeza.
– Ele era um bom contratenor.
– Ora, sarge...
– Ele era um homem íntegro, o nosso Gaskin.
– Nós não podíamos ter evitado – disse Nobby, mal-humorado.
– Poderíamos – disse Colon. – Poderíamos ter corrido mais rápido.
– O que aconteceu, então? – perguntou Cenoura.
– Ele morreu – respondeu Nobby – no comprimento do seu dever.
– Eu disse a ele – começou Colon, dando um trago na garrafa que haviam
trazido para ajudá-los a passar a noite. – Eu disse a ele. Vá devagar, eu disse.
Você vai se dar mal, eu disse. Não sei o que deu nele, correndo na frente daquele
jeito.
– Eu culpo o Grêmio dos Ladrões – interveio Nobby. – Por permitirem
pessoas como aquela nas ruas...
– Tinha um sujeito que nós vimos fazer um roubo uma noite – disse Colon,
sentindo-se infeliz. – Bem na nossa frente! E o capitão Vimes, ele disse:
“Vamos”, e nós corremos, só que a questão é que não se deve correr rápido
demais, sabe. Ou você pode apanhá-los. Gera vários tipos de problemas, apanhar
as pessoas...
– Eles não gostam – explicou Nobby. Houve um murmúrio de trovão e uma
rajada de chuva.
– Eles não gostam – concordou Colon.
– Mas Gaskin se esqueceu. Ele saiu correndo, virou a esquina e bom, esse
sujeito tinha dois companheiros esperando...
– Na verdade, foi o coração dele.
– Bom, enfim. E lá estava ele – disse Colon. – O capitão Vimes ficou muito
perturbado. Não se deve correr rápido na Vigilância, rapaz – disse num tom
solene. – Você pode ser um guarda rápido ou um guarda velho, mas nunca será
um guarda rápido e velho. Pobre velho Gaskin.
– Não deveria ser assim – observou Cenoura. Colon deu um gole da garrafa.
– Bom, é assim.
A chuva batia no seu capacete e escorria pelo seu rosto.
– Mas não deveria ser – repetiu Cenoura, no mesmo tom.
– Mas é – insistiu Colon.
MAIS ALGUÉM
FIM
Fontes
Reformatação .ePub
2013