50anos Cap05
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Título do capítulo
REFORMA URBANA
Volume 6
Série -
Cidade Brasília
Editora Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
Ano 2024
Edição -
ISBN 978-65-5635-068-4
DOI https://dx.doi.org/10.38116/978-65-5635-068-4
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CAPÍTULO 5
1 INTRODUÇÃO
As metrópoles navegam à deriva na trajetória do nosso desenvolvimento capitalista.
O padrão fragmentado e fragmentador da intervenção pública sobre seus territórios
evoca a hipótese de A Marcha da Insensatez, formulada pela historiadora Bárbara
W. Tuchman (2003). Baseada em vários acontecimentos históricos nos quais se
observou a adoção pelos governos de políticas contrárias aos seus próprios interesses,
da guerra de Tróia à guerra do Vietnam, a historiadora catalogou situações nas quais
uma espécie de cegueira coletiva conduziu os governantes a atitudes desastrosas,
plenamente evitáveis se a sensatez prevalecesse como critério na tomada de decisão.
Por exemplo, logo no início do seu livro, Tuchman interroga-se sobre as razões
que explicariam o fato de os dirigentes de Tróia terem permitido o ingresso dentro
de seus muros daquele cavalo de madeira, portador de todos os sinais de que algo de
muito errado e ameaçador estava anunciado. Com base em outros exemplos his-
tóricos, ela constata que, apesar dos enormes progressos da ciência e da tecnologia
com os quais os seres humanos vêm conseguindo controlar a natureza; a despeito
das condições hoje disponíveis para prever e antecipar os acontecimentos; apesar,
portanto, do aumento da capacidade de governabilidade das sociedades, verificamos
inúmeros casos de desgoverno que muitas vezes resultam em catástrofes que atingem
os próprios interessados, aqueles que detêm os mandatos. Por que os governos são
incapazes de tomar decisões, até mesmo quando estas são úteis à manutenção do
poder? A autora propõe quatro razões: tirania ou opressão; ambição desmedida;
incompetência; e, finalmente, a insensatez. Esta última se manifesta sob duas for-
mas: por uma situação na qual ocorre uma decisão equivocada; ou por uma não
decisão diante de um problema percebido como tal pela coletividade, ao mesmo
tempo que existe uma alternativa viável para enfrentá-lo.
As reflexões, a partir dos resultados das pesquisas e das reflexões desenvolvidas
pela rede Observatório das Metrópoles, indicam a existência de claros sinais da
cegueira das nossas elites econômica e política quanto aos desafios colocados pelos
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3 AS METRÓPOLES BRASILEIRAS
O Censo Demográfico, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),1
referente a 2022 revelou que a população brasileira superou os 203 milhões de pes-
soas. Ao mesmo tempo, é provável que seus resultados reforcem também o fato do
Brasil como um país predominante urbano, confirmando uma taxa de urbanização
superior àquela detectada pelo Censo Demográfico 2010 (IBGE, 2012), 85%. Se
considerarmos o comentado anteriormente sobre a relação entre a urbanização
e o desenvolvimento econômico, trata-se de uma boa notícia, especialmente se
consideramos a presença das metrópoles na rede urbana.
No entanto, o que são metrópoles? Em primeiro lugar, é necessário distin-
guir essa categoria de cidade da realidade institucional designada como regiões
metropolitanas (RMs) no país. Obedecendo a Constituição Federal de 1967
(CF/1967), as primeiras RMs no Brasil foram criadas em 1973, por meio da
Lei Complementar (LC) no 14. Naquela época, foram instituídas as RMs de
São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém, Curitiba e Porto
2. Pode ser que, no momento da divulgação deste capítulo, a tabela já tenha se alterado, em virtude da própria dinâmica
de institucionalização de RM por parte de cada estado. Esse dado corresponde ao número de unidades territoriais urba-
nas institucionalizadas na data de referência do último levantamento disponibilizado pelo IBGE: 31 de julho de 2021.
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TABELA 1
População e taxa de crescimento em metrópoles, RMs, Rides e AUs, bem como nos
demais municípios do país (2010-2022)
2010 2022 2010-2022
TABELA 2
Participação no PIB e no VA da indústria nas metrópoles, RMs, Rides e AUs e demais
municípios do país (2010 e 2022)
(Em %)
2010 2020
Recorte espacial
PIB VA da indústria PIB VA da indústria
15 metrópoles 50,0 41,8 44,9 37,7
Núcleo 32,0 20,1 27,2 15,0
Entorno do núcleo 18,0 21,7 17,7 22,8
69 RMs, Rides ou AUs 21,1 24,1 23,0 25,6
Núcleo 10,1 10,3 10,3 9,8
Entorno do núcleo 11,0 13,8 12,6 15,9
Demais municípios do país 28,9 34,1 32,1 36,6
Total 100,0 100,0 100,0 100,0
6. Esse quase conceito vem sendo debatido na literatura internacional nas áreas da economia e da geografia e decorre de
algumas interpretações a respeito dos impactos da globalização e da reestruturação produtiva nas grandes metrópoles
que foram berço do desenvolvimento industrial anterior. Estas passam a constituir-se em centros de serviços e comando
da economia global em diversas escalas, por abrigarem atividades financeiras, de serviços à produção, comercializáveis
a distância. Geralmente, as atividades que conferem as novas funções das antigas metrópoles estão concentradas nas
áreas mais centrais, mas conformam um território econômico em nova escala e com nova configuração; elementos
novos que criariam um território articulado com rede de interações econômicas. Parte dessa rede seria formada pelas
atividades que dão suporte a essa função de comando, coordenação e direção da economia globalizada. Vale a pena
a observação de Diniz (2006) sobre a necessidade de considerar, no exame das tendências, a conformação desse novo
modelo de cidade, não apenas as decorrentes das transformações do sistema socioprodutivo, mas também as encarnadas
pelos atores econômicos e por suas estratégias políticas na apropriação do território.
As metrópoles brasileiras | 107
FIGURA 1
Brasil: núcleos das metrópoles e capitais regionais
4 OS PASSIVOS METROPOLITANOS
Nas metrópoles brasileiras, estão concentrados também os históricos passivos
decorrentes do nosso modelo de desenvolvimento concentrador, desigual e com
um Estado com frágil capacidade de planejamento. Deste, resultou um modelo de
urbanização organizado essencialmente pela combinação entre as forças de mercado
e um Estado historicamente autoritário, mas flexível e permissivo com todas as
formas de apropriação privatistas das cidades. Não se trata de constatar e procurar
entender a ausência do planejamento governamental no intenso e acelerado pro-
cesso de urbanização. A omissão planejadora do Estado decorreu da utilização da
cidade como uma espécie de fronteira amortizadora dos conflitos sociais7 inerentes
ao capitalismo concentrador e excludente que aqui se implantou.
Por esse motivo, as metrópoles estão hoje despreparadas, material, social e
institucionalmente para o crescimento econômico baseado na dinâmica da inovação
e na economia do conhecimento, que demandam não apenas as forças produtivas
geradas por relações mercantis, mas também aquelas que decorrem da densificação
das relações sociais e de ambiente institucional favorável. Nas metrópoles brasileiras,
está conformado um conjunto de passivos cujo enfretamento é imperativo para que
forças produtivas consteladas na complexidade de nossa rede urbana possam ala-
vancar o desenvolvimento nacional. Examinaremos três dimensões desses passivos.
7. Essa ideia encontra amparo em trabalhos clássicos de autores que pensaram a formação do capitalismo brasileiro,
como Maria Conceição Tavares. Em curto texto pouco conhecido, mas com grande poder de síntese sobre os meca-
nismos que anularam as possibilidades da emergência do conflito de classes pela gestão política do território, Tavares
assim se expressou.
O recurso periódico a uma ordem autoritária busca suas razões de Estado tanto na preservação do território nacional
quanto ao apoio à expansão capitalista, em novas fronteiras de acumulação, onde lhe cabia impedir a luta de classes
aberta, dos senhores da terra e do capital entre si, e garantir a submissão das populações locais ou emigradas, que se
espraiaram pelo vasto território brasileiro. Por sua vez, o processo de deslocamentos espaciais maciços das migrações
rural-urbanas das nossas populações e as mudanças radicais das condições de vida e de exploração da mão de obra
não permitiram, até hoje, a formação de classes sociais mais homogêneas, capazes de um enfrentamento sistemático
que pudesse levar a uma ordem burguesa sistemática (Tavares, 1985, p. 457).
As metrópoles brasileiras | 109
quarto do novo salário mínimo. Sem nenhum tipo de integração tarifária, esse
custo pode ser ainda maior, uma vez que muitos passageiros são obrigados a fazer
baldeação, com o objetivo de acessar as estações ou chegar aos seus destinos. Esse
é um dos muitos exemplos que colocam a metrópole do Rio de Janeiro como um
dos espaços onde os claros sinais da crise da mobilidade urbana se manifestam de
forma bastante evidente. O gráfico 1 é eloquente na evidência do colapso do seu
sistema de transporte.
GRÁFICO 1
Movimento médio diário de passageiros segundo os transportes rodoviário e ferroviário –
município do Rio de Janeiro (1995-2020)
GRÁFICO 2
Percentual acumulado de população, da massa de renda pessoal e da moradia em
favela segundo a distância ao centro metropolitano
Observamos que nas quinze metrópoles quase três quartos dessas moradias
consideradas subnormais pelo IBGE distribuem-se por um raio de até 10 km
a partir dos seus núcleos. As características dessas moradias são a ilegalidade, a
irregularidade, a construção em solos pouco propícios à função residencial, o
adensamento da ocupação da moradia e, em muitos casos, o emprego de parcelas
consideráveis da renda no aluguel.
Essas características não estão homogeneamente presentes em todas as me-
trópoles, pois são altamente influenciadas pela história das formas de produção
da moradia popular e do regime político de gestão do território urbano. Em São
Paulo, por exemplo, as favelas apresentam maior precariedade quanto ao tipo de
terreno ocupado e maior afastamento das áreas centrais. Ermínia Maricato (1996)
estima que 49,3% das favelas da cidade de São Paulo estão localizadas em beira
de córrego; 32,2%, em terrenos sujeitos a enchentes; 29,3% foram construídas
em terrenos com declividade acentuada; e 24,2%, em terrenos sujeitos à erosão.
Os mapas de localização das favelas de São Paulo evidenciam seu distanciamento
em relação ao núcleo econômico e social da metrópole, mas em áreas que per-
mitem o acesso. Em compensação, os cortiços parecem constituir estratégia de
proximidade, em razão de sua localização nas áreas mais centrais. Por sua vez,
na RM do Rio de Janeiro, o regime urbano permite um modelo de proximidade
das favelas com os bairros que concentram as moradias dos segmentos superiores
da estrutura social.
TABELA 3
Taxa de homicídio geral e da população entre 15 a 29 anos nas metrópoles, RMs, Rides
e AUs, bem como nos demais municípios do país (2010 e 2019)
Fonte: Atlas da Violência do Ipea. Disponível em: https://ipea.gov.br/atlasviolencia/. Acesso em: 7 nov. 2023.
Obs.: Tabela cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos originais
(nota do Editorial).
8. A indústria global do divertimento inclui o complexo de serviços associados ao turismo de todo o tipo, que atualmente
contém os circuitos de acumulação que promovem os megaeventos como a forma mais organizada.
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