A Construção Social Da Cor - José D'Assunção Barros

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José O'Assunção Barros

A construção social da cor


Diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Barros, José D'Assunção


A construção social da cor : diferença e desigualdade na
formação da sociedade brasileira / José D'Assunção Barros. ~
Petrópolis, RJ : Vozes, 2009.
Bibliografia
ISBN 978-85-326-3824-3
1. Brasil- Civilização 2. Brasil- História
3. Cultura - Brasil 4. Desigualdade social
5. Escravidão - Brasil- História 6. Identidade
social 7. Negros - Brasil- Condições sociais
8. Preconceitos 9. Racismo l. Título.

09-00292 CDD-981

Índices para catálogo sistemático: • EDITORA


1. Brasil : Diferença e desigualdade : Y VOZES
História social 981
Petrópolis
© 2009, Editora Vozes
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ
Internet: http://www.vozes.com.br SUMÁRIO
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qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
Apresentação, 7
Diretor editorial A construção social da cor - Diferença negra e desigualdade escrava na
Frei Antônio Moser formação histórica da sociedade brasileira, 17
Editores 1. Igualdade, desigualdade e diferença: três conceitos em interação, 19
Ana Paula Santos Matos 2. Deslocamentos entre desigualdade e diferença: introduzindo a
José Maria da Silva questão escravocrata, 29
Lídio Peretti
Marilac Loraine Oleniki 3. Negro, africano, escravo: pequena história de um entrelaçamento, 39
4. A construção social da cor, 50
Secretário executivo
5. Um mapa das diferenças africanas no início do período moderno, 54
João Batista Kreuch
6. A incorporação da "guerra das diferenças tribais" ao sistema do
tráfico, 66
Editoração: Sheila Ferreira Neiva
Projeto gráfico: AG.SR Desenv. Gráfico 7. A cor escrava: noção reapropriada pelo Tráfico Atlântico cristão, 73
Capa: Eduardo Evangelista 8. Das etnias africanas às novas diferenças negras, 78
9. Novas diferenças: crioulos e mulatos, 92
ISBN 978-85-326-3824-3 10. O lugar do mulato: paraíso ou purgatório colonial?, 99
11. Entre festejos e irmandades: alguns mecanismos para reforço da
diferença negra, 112
Editado conforme o novo acordo ortográfico.
12. Desigualdade escrava e diferença escrava: um olhar complexo, 124
13. Alforria: controle sobre a passagem da diferença escrava à
desigualdade liberta, 128
14. O emancipacionismo: recusa em discutir como diferença a
desigualdade escrava, 145
15. O abolicionismo: proposta de supressão imediata da
desigualdade escrava, 156
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.
16. Joaquim Nabuco: fragmentos de um discurso abolicionista, 170
17. Rebeliões e quilombos: primórdios de uma consciência negra, 183
18. O xadrez das diferenças e desigualdades no Brasil e na África da APRESENTAÇÃO
contemporaneidade, 200
19. Políticas de afirmação: desconstruindo a indiferença, 212
20. Final: Raça, identidade, consciência negra, palmeiras e camélias, 217

Referências bibliográficas, 225 Das imponentes palmeiras às mais delicadas camélias, dos grandes
Índice remissivo, 245 Impérios aos pequenos objetos que adornam as residências, tudo tem uma
história, assim como as palavras, as ideias, as maneiras de ver e de conceber
Índice onomástico, 251 o mundo. Assim ocorre, por exemplo, com os modos de perceber as dife-
renças humanas, ou mesmo de construí-Ias, e não há como não reconhecer
que a história das diferenças é de algum modo indissociável da história das
desigualdades e das lutas pela liberdade e pela igualdade social.
Neste livro buscaremos refletir sistematicamente sobre uma impor-
tante questão relacionada à formação histórica da sociedade brasileira.
Trata-se de examinar como, em determinado momento de nossa história,
a construção social de um certo modo de perceber diferenças com base na
cor da pele esteve associada a um sistema impositivo de desigualdades so-
ciais. Referimo-nos aos tempos da escravidão moderna, quando milhões
de africanos foram transplantados para o Brasil para serem submetidos à
mais radical e cruel forma de imposição de desigualdades sociais. Mas
também estaremos examinando como começou a ser construída uma
identidade negra a partir daí, a custa de outras formas de identidade que
já existiam no continente africano, e como essa história também pode ser
considerada uma história de resistências e acirradas lutas que mais tarde
levariam à superação do sistema escravocrata e conduziriam ao ambiente
moderno de luta contra os preconceitos de cor.
Será difícil imaginar uma aproximação mais adequada para esta in-
trinca da problemática histórica que não se faça ancorar em uma atenta
análise conceitual sobre o que são, afinal, desigualdades e diferenças, e
sobre o que elas representam na própria vida social e cotidiana. Com vis-
tas a isto, e como ponto de partida para nossas reflexões, imaginaremos
neste momento uma pequena cena:

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É noite. Ele está bem trajado; e tem dinheiro para adquirir in- que se estabelecem em torno das percepções sociais desta mesma diferen-
gressos. Ainda assim, à porta de uma boate (que também poderia ça' e das ações sociais e individuais possíveis relativamente a estas per-
ser um restaurante, um clube, um hotel), este homem bem em- cepções. A diferença em questão é a pigmentação ou não da pele, ou, para
pregado e socialmente bem situado tem sua passagem impedida utilizarmos uma linguagem mais popular, aquilo que habitualmente é re-
pelo porteiro. Indignado, o homem exige que chamem o gerente, ferido como "diferenças de cor".
e aparece o próprio dono do estabelecimento. Este lhe diz que o Tudo na narrativa proposta está impregnado de uma dimensão social.
porteiro está apenas cumprindo ordens, as que ele mesmo deu, e
A tentativa de vedar a um homem de "cor negra" o acesso ao estabeleci-
que não adianta insistir porque nos seus estabelecimentos "preto
mento não se dirige na verdade contra um indivíduo, mas sim contra todo
não entra". O homem que sofreu a discriminação faz uma liga-
um grupo humano que para muitos pode ser definível como "raça negra".
ção telefônica para o seu advogado. Dali a pouco aparece uma
O dono do estabelecimento, diga-se de passagem, formulou uma propo-
viatura da polícia, desenrolam-se discussões, surgem do nada al-
sição geral: "neste estabelecimento não entram pretos". Ele expressa-se
gumas câmeras de TV, e no fim das contas o dono do estabeleci-
aqui contra um grupo social, não contra um indivíduo específico, embora
mento é intimado a ir até a delegacia com base na "Lei 7.716" -
tenha sido sobre um indivíduo singularizado que recaiu a discriminação
lei brasileira datada de 5 de janeiro de 1989 que define e estabe-
lece punições para os crimes resultantes de preconceito de raça
social. Possivelmente, este homem que se manifestou através de ditos e
ou de cor. Da multidão, que já se comprimia para assistir à pe- ações racistas também não fala de um ponto de vista isolado, mas vê a si
quena confusão que se estabelecera, partem alguns aplausos, e mesmo acompanhado por outros que partilham de suas mesmas ideias,
alguns silêncios. embora não estejam necessariamente presentes.
O homem que foi vítima da discriminação, por seu turno, acha-se am-
Pode ser que um episódio como o que foi acima narrado nem sempre parado pelo pertencimento a um grupo, pela conscientização de seus di-
termine desta maneira na dura realidade da vida, e que só l?1aisraramente reitos sociais e políticos. Possui um advogado, e dele pôde se valer para
confluam para uma punição rápida e exemplar os atos de racismo. Pode afirmar e representar os seus direitos. Neste caso, poderia argumentar
ser também que a cena descrita não seja assim tão comum, se for conside- um leitor mais crítico, o que teria acontecido se fosse um homem pobre,
rado que muito mais habitualmente é o cidadão pobre quem é realmente com menos acesso à representação jurídica? De todo modo, a escolha de
atingido pelos problemas relacionados ao racismo, e não o rico. Pode ser um indivíduo bem-sucedido economicamente para vítima do preconceito
mesmo que a polícia não se mostre sempre tão ágil para atender a chama- não foi gratuita, e através desta escolha a narrativa deixa bem claro que se
dos como este; e que, além do mais, nenhum dono de estabelecimento trata de discriminação racial, e não de discriminação socioeconômica.
ousasse, nos dias de hoje, ser tão explícito no que se refere a preconceitos Os próprios aplausos e silêncios que pontuam o final da narrativa, en-
de cor. De todo modo, o importante para as reflexões que desenvolvere- fim, manifestam ou ocultam certos significados sociais - desfavoráveis,
mos é considerar que o caso imaginado, meramente a título ilustrativo, favoráveis ou indiferentes ao racismo ou à punição do racismo - enquan-
gira essencialmente em torno da percepção de uma diferença, e da tenta- to o interesse de repórteres de TV em registrar a cena é sintoma de que
tiva - vinda da parte de um dos atores sociais nele envolvidos - de impor a aquela é uma questão social significativamente importante, que poderá
esta diferença um tratamento socialmente desigual. render um bom assunto para o noticiário noturno.
De diversas maneiras, o episódio nos fala de mecanismos criadores de Vale lembrar ainda que, se o caso fosse outro, e um homem conside-
identidade cultural e de exclusão social que se constroem em torno desta rado branco tivesse a sua entrada em um estabelecimento impedida por
diferença, de leis que foram instituídas para regular as relações sociais uma questão meramente pessoal, não poderia evocar nenhuma lei a seu

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favor. A Constituição Brasileira não protege cidadãos, em casos como no da percepção social das diferenças produzidas por estes quatro ou cin-
este, contra discriminações no nível pessoal. Ela se direciona muito espe- co genes. Eis aqui, do ponto de vista ético e filosófico, um fato bastante im-
cificamente para o combate contra as discriminações sociais, e esse ponto pressionante: guerras as mais sangrentas, massacres vários, cruéis sistemas
merece alguns esclarecimentos. de escravização, impiedosos processos de apartheid e segregação foram ou
A Lei 7.716, que integra a Constituição Brasileira e é evocada no pe- têm sido movimentados por distintas leituras sociais estabelecidas sobre as
queno relato, legisla na verdade em torno de "crimes resultantes de dis- diferenças naturais produzidas por aqueles quatro ou cinco genes, ou por
criminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência na- outras diferenças análogas. Ao mesmo tempo, se quisermos nos ater ao
cional". Não estão incluídas nesta lei discriminações contra os gordos ou exemplo da ideia de "negritude", belíssimas realizações culturais - no nível
muito magros, contra os feios, contra os altos ou baixinhos. Discrimina- da arte, da música, da literatura - bem como grandes correntes de solidarie-
ções contra indivíduos obesos, por exemplo, certamente existem - mas dade e magníficos esforços de associação têm se organizado em torno da
não constituem na maior parte das vezes preconceitos de âmbito social, e percepção de uma "identidade negra" no mundo moderno.
sim, quando e "se" ocorrem, caracterizam rejeições no nível das relações Na verdade, em torno da percepção social daquelas pequenas diferen-
interindividuais. Estas diferenças, de todo modo, não são percebidas so- ças que se expressam no nível biológico sob a forma de distintas tonal ida -
cialmente. Melhor dizendo, a percepção de diferenças como a espessura des da pele humana, existem centenas de anos de história a serem consi-
do corpo, a beleza ou fealdade física, a altura, não estão a priori carrega- derados. Há, por exemplo, uma complexa história por trás da ideia de que
das de maiores implicações sociais (a não ser que queiramos considerar os homens podem (ou não) serem divididos em raças relacionadas à cor
como relações sociais as relações interindividuais, o que não será o caso da pele, e existe igualmente muita história por trás de aspectos como "ra-
no presente ensaio). Enquanto isto, "ser negro" em uma sociedade que cismo", "identidade negra", discriminações contra o negro, e obviamente
beneficia os que são considerados "brancos", "ser mulher" em uma so- em torno das resistências, formas de luta e legislações que se estabelecem
ciedade machista ou que favorece preponderantemente oshomens em re- contra as discriminações já evocadas.
lação ao nível de remuneração e acesso ao emprego, ser estrangeiro resi- Mas o que é perceber ou ser percebido como um "negro", ou, na con-
dente em um outro país, ou pertencer a uma minoria religiosa em uma so- trapartida, ser percebido como um "branco"? Na verdade, não se enxerga
ciedade que possui uma outra religião dominante ... Eis aqui diferenças um homem como negro ou branco porque este homem é negro ou branco.
que são socialmente percebidas, por vezes socialmente construídas, e que Enxerga-se um homem (ou a si mesmo) como negro ou branco porque se
geram implicações sociais específicas - implicações relativas a grupos hu- aprendeu a enxergar os homens como negros ou brancos, ou outras cate-
manos, e não apenas a indivíduos tomados isoladamente. gorias mais. De igual maneira, ninguém nasce negro ou branco, aprende-se
Consideraremos neste ensaio, mais especificamente, a questão das a ser negro ou branco no seio de determinadas sociedades que, através de
"diferenças de cor". Para colocar a questão em termos biológicos, é inte- indeléveis e complexos processos culturais, terminaram por implantar esta
ressante ressaltar que a cor da pele é determinada pela quantidade e tipo forma de percepção na mente de cada um dos indivíduos que a constituem.
do pigmento melanina presente na derme, e que sua variação é controla- Quando lembramos que uma grande pensadora feminista como Si-
da por apenas quatro a seis genes (STURM, 1998). Este número de ge- mone de Beauvoir afirmou certa feita que "não se nasce mulher, torna-se
nes poderia ser considerado extremamente insignificante, ao menos do mulher" (BEAUVOIR, 1976), essa ideia parece ser facilmente compre-
ponto de vista quantitativo, diante dos 35 mil genes existentes no genoma endida nos dias de hoje, sem mais provocar grandes polêmicas. Mas se
humano. No entanto, alguns dos problemas sociais mais enfáticos e insis- for dito que ninguém nasce negro ou branco, mas que se aprende isto, ou
tentes das democracias e ditaduras modernas giram precisamente em tor- que o indivíduo torna-se negro, a ideia provavelmente despertará uma po-

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lêmica mais acirrada, uma vez que existem movimentos sociais bastante De outro lado, os historiadores e cientistas sociais não podem se fur-
atuantes que fundamentam por vezes a sua própria existência nesta ideia tar à tentativa de compreender, enquanto complexas construções históri-
fundamental de que as pessoas são naturalmente negras ou brancas. cas e culturais, os esquemas sociológicos que adquirem realidade na vida
Esta dicotomia, particularmente no seio das sociedades que incorpo- cotidiana e nos sistemas sociopolíticos. Compreender como a sociedade
raram a mistura de populações europeias e africanas na sua constituição constrói a si mesma a partir de determinadas condições concretas e obje-
histórica, pode ser politicamente afirmada para o bem ou para mal, por tivas e como esta mesma sociedade constrói a percepção de si mesma é
assim dizer. Em um caso, a dicotomia pode atuar de forma benéfica para certamente uma das tarefas fundamentais das ciências humanas. Com-
a estruturação de identidades sociais e culturais que funcionarão como preender o que está por trás destas construções na sua origem, e como es-
formas de lutar contra a desigualdade social, ou como resistências contra tas mesmas construções podem ou puderam ser retomadas para novos
opressões e preconceitos. Tal é o caso, por exemplo, dos movimentos ne- propósitos pelos homens que fazem e fizeram a sua história, é também
gros. Em outro caso, a mesma dicotomia poderá estar na base de movi- uma tarefa para os que estudam o mundo humano.
mentos obviamente questionáveis como o nazismo e o neonazismo. Di- Este livro se propõe a isto. A ideia mais elementar que o anima é preci-
remos então que enxergar o mundo humano a partir de dicotomias ou de samente a de que percepção da cor da pele, assimilada em diversas socieda-
esquemas que seccionam a humanidade em grupos distintos não é essen- des modernas como dimensão trazida a primeiro plano para compor a sin-
cia~mente nem bom nem mal. Trata-se apenas de uma certa maneira de gularização do indivíduo humano, é sobretudo uma percepção socialmente
ver as coisas, e que pode ser empregada para libertar ou para oprimir,
construída - uma peculiar forma de apreensão da realidade humana que
para fazer arte ou para impor destruição.
possui origens e atualizações históricas bastante específicas. Dito de outra
Mas existe uma outra maneira de ver as coisas que pode trabalhar com forma, se um homem é percebido por um outro como negro ou branco, ou
a desconstrução das dicotomias tradicionais. Não se trata de negar a rea- se ele se autopercebe de sua parte como negro ou branco - vale dizer, se a
lidade sociológica de certas dicotomias no seio de sociedades antigas e cor da pele apresenta-se na mútua percepção entre diversos indivíduos e
modernas. O preconceito racial, por exemplo, é uma realidade sociológi- grupos sociais como um traço social ou etnicamente relevante para distin-
ca efetiva nos dias de hoje e ontem. Ocorre em maior ou menor grau no guir seres humanos - é porque um extenso e persistente trabalho histórico
interior de sociedades que na sua formação histórica assistiram ao con- foi feito e tem sido feito sobre a sociedade para que essa forma de perceber
fronto ou interpenetração de populações muito distintas (ou aparente- as diferenças humanas se apresente e se afirme cotidianamente. Tudo isto,
mente muito distintas) como as europeias e as africanas.
em que pese que possa parecer óbvio (ou paradoxal?) em uma primeira
Deve-se lutar contra os preconceitos, isto é um fato. As desigualdades formulação, constitui uma questão extremamente complexa que, para a
sociais precisam ser enfrentadas com firmeza. Os efeitos da discrimina- adequada compreensão, deve envolver uma reflexão interdisciplinar imbri-
ção racial devem ser corrigidos, até o momento em que esta mesma dis- cando diversificados campos de estudo como a História, a Sociologia, a
criminação racial ou outras formas de opressão social possam ser defini- Antropologia, a Geografia Humana, a Psicologia Social.
tivamente suprimidas da história da humanidade. Isto é o sonho de qual-
Para incorporar esta interdisciplinaridade necessária, assumiremos
quer ser humano que paute seu comportamento pela busca de justiça so-
como fio condutor e ponto de partida de nossas reflexões a história de uma
cial. Do mesmo modo, uma sociedade rica em misturas étnicas e em con-
sociedade concretamente localizada: a sociedade brasileira desde o período
tribuições culturais fará bem em aproveitar a seu favor esta riqueza possi-
de sua formação nos tempos do escravismo colonial. Assim, se dizíamos
bilitando as suas livres possibilidades de expressão. Quanto da arte e da
atrás que um indivíduo não nasce "negro" ou "branco", pois o que ocorre é
música brasileiras não devem o melhor de si à extraordinária riqueza étni-
ca que atuou na formação histórica de seu povo? que ele aprende a ser negro ou branco, e sobretudo a se ver como negro ou

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branco, tal assertiva mostra-se particularmente válida e ainda mais efetiva manidade, e como, em contrapartida, a mesma "construção social da cor"
em uma perspectiva coletiva e historicamente mais ampla. Para que uma começou a ser incorporada concomitantemente aos mecanismos forma-
parte da população brasileira pudesse passar a se ver como negra, foi preci- dores de identidade de modo a encaminhar a resistência contra as desi-
so que o africano trazido ao Brasil como escravo deixasse de enxergar a si gualdades sociais impostas por este sistema e por seus desdobramentos
mesmo como zulu, mandinga ou nuer. Ou foi preciso, ao menos, que uma posteriores, já no período subsequente à abolição da escravatura.
nova identidade recobrisse as outras identidades, estas ancestrais, que os Em vista disto, entre as diversas temáticas abordadas no decurso desta
africanos já traziam de suas localidades originais. análise histórica e sociológica, buscou-se discutir à partida a própria cons-
Como foi construída a noção de "negro" (e "branco") na sociedade trução do conceito de "escravo" no Brasil colonial e imperial, bem como os
brasileira? Qual a história desta construção desde os remotos tempos de modos através dos quais esta desigualdade radical que era a escravidão foi
formação da sociedade colonial brasileira, e como seus posteriores des- transformada em diferença de modo a dar sustentação a este sistema econô-
dobramentos prosseguiram tecendo a nossa história contemporânea? mico-social que foi o escravismo colonial. Mais adiante, tratou-se de mostrar
Que processos instituidores de desigualdade acompanharam a constru- como foi necessário ocorrer uma posterior rediscussão e desconstrução da
ção social destas diferenças, a começar pela introdução da escravidão de ideia de escravidão pelos movimentos abolicionistas e pelas resistências ne-
africanos no Brasil? Que formas de resistência e luta - e no interior de que gras, novamente em termos de "desigualdade social", para que pudesse ser
práticas e discursos - surgiram desta história e para se contrapor a esta adequadamente enfrentado e superado o sistema escravista.
mesma história? Como se comporta a variedade cultural e corporal do Sem pretensões maiores que não a de discutir alguns dos principais
povo brasileiro nos quadros desta história e contra o pano de fundo desta desdobramentos da questão analisada, este ensaio procura examinar todo
dicotomia estabelecida ou imposta historicamente? O que pode ainda ser dito um sistema de dominação e de preconceitos que perpassam a história da
em termos de "raça negra", sem que se cometa um anacronismo científi- sociedade brasileira, mas ao mesmo tempo considerando as lutas que
co no nível das mais recentes descobertas da antropologia e da biogené- passaram a ser travadas no interior desta mesma história, expressando-se
tica, e sem que, ao mesmo tempo, se veja afrontado um conceito sociolo- em processos que vão desde a organização dos movimentos negros às po-
gicamente bem estabelecido no nível dos processos formadores de identi- líticas de ação afirmativa, passando pela permanente reconstrução e in-
dade tão caros a diversos movimentos sociais que têm tido um papel im- trodução de novos modos de ser percebida esta população diversificada
portante e relevante na luta contra desigualdades bem reais? que constitui o povo brasileiro.
Buscando discorrer mais sistematicamente sobre questões como es-
tas, o presente livro apresenta como proposta central a de discutir como,
a partir dos fundamentos do sistema colonial e da escravidão africana no
Brasil, foi socialmente construída a ideia de uma raça negra por oposição
à ideia de uma raça branca, ao mesmo tempo em que iam sendo descons-
truídas no Brasil as antigas diferenças étnicas e tribais que existiam (e que
ainda existem) no continente africano. Neste sentido, procura-se mostrar
como a Construção social da cor, aqui entendida como esta complexa his-
tória da construção e percepção social de diferenças relacionadas à cor da
pele, foi incorporada a princípio como elemento fundamental no interior
de um cruel sistema de sujeição e domínio sobre toda uma parcela da hu-

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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA COR

DIFERENÇA NEGRA E DESIGUALDADE


,.. "
ESCRAVA NA FORMAÇAO HISTORICA DA
SOCIEDADE BRASILEIRA
~ Ig;taldade,. desigu~ldade ~ diferença:
_ tres conceitos em ínteraçao

Na História e nas Ciências Humanas, quanto mais precisos se tornam


os conceitos, mais responsabilidade social eles carregam. Há certas pala-
vras que, dotadas de um conteúdo apropriado, podem ajudar a mudar o
mundo, e outras que parecem ameaçar perdê-lo. Igualdade, desigualdade
e diferença são destas noções complexas que interagem entre si de diver-
sas maneiras, e já tivemos a oportunidade de discutir em um ensaio ante-
rior! a ideia fundamental de que a confusão ou conversão de certas dife-
renças em desigualdades, e vice-versa, pode gerar problemas sociais es-
pecíficos de maior ou menor gravidade. Antes de avançar na questão que
conduzirá este ensaio - a da aplicação daquele referencial conceitual ao
desenvolvimento da temática da desigualdade escrava e da diferença ne-
gra na formação histórica da sociedade brasileira - será oportuno recolo-
car alguns desenvolvimentos teóricos importantes.
Partiremos de algumas exemplificações, de modo a favorecer uma
maior compreensão sobre o que são, efetivamente, "diferenças" e "desi-
gualdades". Negro e branco, homem e mulher, brasileiro e americano,
idoso e jovem, cristão e muçulmano, operário e camponês ... todos estes
são exemplos bastante claros de "diferenças". Quando se considera o par
igualdade x diferença (ou "igual" x "diferente"), tem-se em vista algo da
ordem das essências', ou das modalidades de ser: uma coisa ou é igual a

I. o ensaio em questão foi publicado no número 175 da revista portuguesa Análise Social
(BARROS, 2005: 345-366) e em versão ampliada em outra obra do autor, com o título Desigual-
dade e diferença (BARROS, 2007). Uma comunicação sobre o tema foi proferida no XII Encontro
Regional de História da Anpuh, em 14/08/2006.
2. Estaremos aqui muito longe das teorias essencialistas. Por "essências" estaremos entendendo
modalidades de ser construídas e em construção, como logo ficará claro.

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outra (pelo menos em um determinado aspecto) ou então dela difere. Por As contradições, este é o núcleo da questão, são sempre circunstanci-
exemplo, relativamente ao aspecto da nacionalidade, "ser brasileiro" ou ais, enquanto os contrários necessariamente se opõem no nível das moda-
"ser americano" são diferenças muito bem delineadas. Um.indivíduo, em lidades de ser. Vale dizer, as contradições são geradas no interior de um
alguns casos extremamente excepcionais, pode até ser as duas coisas - se processo, aparecem ou se explicitam em um determinado momento ou si-
pensarmos nos casos de "dupla nacionalidade" - mas não pode ser "meio tuação' e, de resto, pode-se dizer que os pares contraditórios integram-se
brasileiro" e "meio americano", a não ser que estejamos utilizando uma dialeticamente dentro dos processos que os fizeram surgir. Por seu turno,
figura de retórica, e tampouco é possível encontrar uma situação inter- os contrários não se misturam (amor e ódio, verdade e mentira, igual e di-
mediária entre "ser brasileiro" e "ser americano". No universo de inúme- ferente), e desta forma fixam muito claramente o abismo de sua contra-
ras nacionalidades possíveis, "ser brasileiro" e "ser americano", enfim, riedade. Esta distinção entre "contrários" e "contradições" traz impor-
não são realidades ou polos que se opõem, mas sim diferenças que se con- tantes implicações, e disto dependerá toda a argumentação que desenvol-
frontam' cada uma conservando seu próprio espaço de delimitação com veremos neste ensaio.
referência a uma certa unidade geopolítica, a uma determinada identida- A implicação mais importante da radical circunstancialidade das desi-
de histórico-cultural, a uma cidadania legalmente aceita, e, sobretudo, a gualdades' por contraste em relação ao que ocorre com as diferenças que
um certo local de nascimento ou relações de filiação. se afirmam como modalidades de ser, refere-se à alta reversibilidade que
Já para aventar exemplos relativos às desigualdades, podemos opor afeta ou pode afetar estas desigualdades.
adjetivos como "forte" e "fraco", "instruído" e "analfabeto", "rico" e "po- Para melhor entendermos isto, será preciso considerar antes de mais
bre", ou mesmo substantivos como "liberdade" e "escravidão", de modo nada que as diferenças são inerentes ao mundo humano - para não falar
a evidenciar mais claramente que o contraste entre igualdade e desigual- do mundo natural. De modo geral, a ocorrência de diferenças de toda a
dade refere-se quase sempre não a um aspecto "essencial", mas sim a ordem não pode ser evitada através da ação humana. Vale ainda dizer que
uma "circunstância". Distintamente da oposição por "contrariedadc'' a ocorrência de diferenças no mundo social está atrelada à própria diver-
que se estabelece entre igualdade e diferença, a oposição entre igualda- sidade inerente ao conjunto dos seres humanos, seja no que se refere a ca-
de e desigualdade é da ordem das "contradições". Não se considera um racterísticas pessoais (sexo, etnia, idade) seja no que se refere a questões
homem pobre ou rico, e tampouco muito instruído ou pouco instruído, externas (pertencimento por nascimento a esta ou àquela localidade, ade-
senão por comparação com um outro homem. E entre o homem mais são a certa religião, ou então a cidadania vinculada a este ou àquele país,
instruído e o menos instruído, ou entre o homem mais forte e o mais fra- por exemplo).
co' se for hipoteticamente possível imaginá-los, existem inúmeros graus O reconhecimento da inevitabilidade da ocorrência de diferenças re-
(e não degraus) que podem ser percorridos. De igual maneira, o homem flete-se no fato de que são bem raros os projetos políticos que se propo-
mais prestigiado pode passar rapidamente a ser socialmente execrado, e nham a lutar para eliminar certos tipos de diferenças como as sexuais,
a riqueza pode ser revertida em pobreza de uma para outra hora. Todos etárias ou profissionais (não estamos falando ainda da possibilidade de
estes pares que tomamos como exemplos remontam a âmbitos relacio- eliminar ou reduzir as desigualdades sexuais, etárias ou profissionais, o
nados às desigualdades: são aspectos circunstanciais e contraditórios, que seria uma questão de outra ordem). Com relação às diferenças étni-
mutuamente reversíveis, somente compreensíveis do ponto de vista re- cas, existem no limite os projetos de extermínio, que seguem no entanto
lativizador. As desigualdades, reforçaremos esta ideia, presidem em to- sendo excepcionais. Neste extremo, pode-se exemplificar com o projeto
dos os casos possíveis a relações contraditórias, e não a meras oposições de eugenia proposto por dirigentes do nazismo alemão, que preconizava
por contrariedade. abolir diferenças seja por meio do extermínio (de judeus, negros, ciganos,

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eslavos) ou mesmo por meio de experiências genéticas para atingir o tipo grandes â~bitos em que se pode estabelecer uma hierarquia social de
"ariano puro", além de programas de esterilização de indivíduos com ca- qualquer tipo - portanto, os três âmbitos que regem o mundo da desi-
racterísticas não desejáveis. No Brasil da primeira metade do século XX, gualdade humana - são a riqueza, o poder e o prestígio (pode-se discutir
ideais eugênicos chegaram a encontrar abrigo no discurso médico atra- a.inda, a c~ltura, no sentido institucionalizado). Mas o que é falar hoje d~
vés da liderança de Renato Kehl (1923). De todo o modo, a despeito das nqueza? E por certo falar também de propriedade. Estas noções estão en-
distopias e projetos de extermínio gerados por pesadelos totalitários, trelaçadas na modernidade capitalista: a riqueza encobre a propriedade,
pode-se prever que sempre existirão homens e mulheres, diversas varia- abrangendo-a, mesmo que não se reduzindo a ela. Vale dizer, se toda a ri-
ções étnicas ou identitárias, indivíduos de variadas faixas etárias, bem queza, no mundo moderno, não se expressa necessariamente sob a forma
como profissões as mais diversas. Mas pode-se sonhar que um dia estas de propriedade ... não há como negar, por outro lado, que a propriedade é
diferenças serão tratadas socialmente com menos desigualdade. Por isto, na. atualidade uma das formas mais poderosas de expressão da riqueza
as lutas sociais não se orientam em geral para eliminar as diferenças, mas (dito de outra forma, a riqueza compra a propriedade; é a forma de aces-
sim para abolir ou minimizar as desigualdades. so, por excelência, à propriedade).
Enquanto pensar diferenças significa se render à própria diversidade Nem s~mpre foi assim. Na Antiguidade Helênica, por exemplo, rique-
humana, já abordar a questão da desigualdade implica considerar a multi- za e propnedade eram noções perfeitamente desentrelaçadas. Portanto
plicidade de espaços em que esta pode ser avaliada. Avalia-se a desigualda- os critérios para a avaliação da desigualdade deveriam considerar cada
de no âmbito de determinados critérios ou de certos espaços de critérios: ~ma desta~ noções em separado (como espaços diferentes que integra-
renda, riqueza, liberdade, acesso a serviços ou a bens primários, capacida- nam a. de.slgualdade no sentido complexo). Na GréciaAntiga, a proprie-
des. Indagar sobre a desigualdade significa sempre recolocar uma nova dade significava que o indivíduo possuía concretamente um lugar no mun-
pergunta: Desigualdade de quê? Em relação a quê? Conforme foi ressalta- do (napólis), e que, portanto, pertencia ao mundo político com os conse-
do, a desigualdade é sempre circunstancial, seja porque esta estará necés- quentes direitos à cidadania (ARENDT, 1989: 71). Por isto, a riqueza de
sariamente localizada social e historicamente dentro de um processo, seja um estrangeiro, ou mesmo de um escravo, não substituía esta proprie-
porque estará obrigatoriamente situada dentro de um determinado espaço dade que era exclusiva dos cidadãos, e não lhe conferia obviamente um
de reflexão ou de interpretação que a especificará (um determinado espaço acesso ao mundo político.
teórico definidor de critérios, por assim dizer) . Falar sobre desigualdade Percebe-se aqui que o poder entrelaçava-se então com a propriedade,
implica nos colocarmos em um ponto de vista, em um certo patamar ou es- e ambos situavam-se em um espaço de conexões em separado da riqueza.
paço de reflexão (econômico, político, jurídico, social, e assim por diante). Além de poder, propriedade e riqueza, havia um quarto critério gerador
Mais ainda, implica arbitrarmos ou estabelecermos critérios mais ou me- de espaços de desigualdade, que era o da liberdade. No mundo da escra-
nos claros dentro de cada espaço potencial de reflexão. vidão antiga, como no mundo da escravidão moderna (o Brasil ou a Amé-
Deve-se acrescentar, também, que qualquer noção de desigualdade ~ica. Colonial, por exemplo), a liberdade ou a escravidão seriam noções
não pode ser senão circunstancial em parte porque estão sempre sujeitos óbvias para serem consideradas em uma avaliação mais sistemática da de-
a um incessante devir histórico os próprios critérios diante dos quais a de- sigualdade humana.
sigualdade poderia ser pressentida ou avaliada. As noções que afetam o Hoje a liberdade de todos os indivíduos, como valor ideal e no sentido
mundo das hierarquias sociais e políticas transfiguram -se, entrelaçam -se lato, é fundo comum para qualquer sociedade moderna que se declare de-
e desentrelaçam-se de acordo com os processos históricos e sociais. Um mocrática. Deixa, portanto, de ser um critério a partir do qual se possa
exemplo será particularmente elucidativo. Nos tempos modernos, os três pensar a desigualdade (mas é claro que podemos pensar na "liberdade de

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expressão" ou na "liberdade de ir e vir", conforme veremos depois). Por A metáfora das cores pode ajudar a compreender o universo social.
outro lado, não é preciso pontuar a propriedade como critério hierárqui- Uma etnia pode marcar suas diferenças (físicas ou culturais) em relação a
co (como faziam os antigos gregos) já que na modernidade capitalista a uma outra, mas ao mesmo tempo ocorre que uma determinada sociedade
riqueza abrange a propriedade. Este contraste entre o mundo antigo e o pode produzir igualdade ou desigualdade conforme se atribua a cada uma
mundo moderno será suficiente, por ora, para registrar a circunstanciali- destas etnias maior ou menor espaço social ou político. As colisões tam-
dade dos próprios critérios a partir dos quais se pode pensar a questão da bém podem ocorrer aqui: é possível tratar um determinado grupo social
desigualdade social. com igualdade política, mas ocorrendo por outro lado uma nítida desi-
De resto, o que obriga a falar em circunstâncias para as questões rela- gualdade econômica. De todo modo, é preciso ainda acrescentar que no
cionadas à desigualdade é o fato de que qualquer desigualdade que esteja mundo humano o objeto que reflete a diferença ou a desigualdade não é
sendo imposta a um grupo ou a um indivíduo está sujeita ela mesma à já simplesmente como uma cor na paleta de um artista, mas sim um ser pen-
mencionada circunstancialidade histórica, sendo em primeira ou última sante, capaz de refletir sobre a diferença que o caracteriza ou sobre a de-
instância reversível. O grupo humano que está privado de determinados sigualdade que o atinge. Esse aspecto é fundamental porque torna as di-
direitos pode reverter a sua situação através da ação social - sua e de ou- ferenças e desigualdades no mundo humano muito mais complexas, já
tros. Pelo menos em tese, não existem desigualdades imobilizadas no que sujeitas a autorreferências: as diferenças podem ser afirmadas ou re-
mundo social. Enquanto isto, no mundo das diferenças teríamos situa- jeitadas (como traços de identidade individual ou coletiva), e as desigual-
ções mais francamente estáveis, ou mesmo, em alguns casos, parâmetros dades podem ser contestadas ou sofridas passivamente.
praticamente permanentes. Assim, na oposição biológica entre homem e Com vistas a explorarmos mais profundamente as implicações do fato
mulher tem-se uma realidade contundente, ainda que esta possa se mos- de que a relação igualdade x desigualdade é da ordem das contradições,
trar mais complexa através da ocorrência de outros diferenciais sexuais utilizaremos como exemplo significativo a oposição entre pobreza e rique-
que não poderão ser discutidos nos limites deste ensaio. Da mesma for- za. "Ser pobre" ou "ser rico" - desigualdades relacionadas ao plano eco-
ma, os seres humanos mostram-se todos sujeitos a atravessarem diferen- nômico - são polarizações que trazem algumas implicações imediatas.
tes faixas etárias sem reversibilidade possível, e não há como lutar contra Para começar, rigorosamente falando ninguém "é pobre" ou "é rico"; na
isto, mesmo que seja possível minimizar ou adiar os graduais efeitos da verdade, o que seria mais adequado dizer é alguém "está pobre" ou "está
passagem do tempo sobre o corpo humano individual. rico", pois a riqueza ou a pobreza são circunstâncias reversíveis, como já
Enfim, para resumir esta primeira aproximação, pode-se dizer que em foi dito anterio,:mente. Além disso, "ser pobre" ou "ser rico" implica uma
geral a diferença se coloca no âmbito do "ser", enquanto a desigualdade relatividade. "E-se pobre" em relação a certo patamar de comparação:
pertence ao mundo do "estar" ou das circunstâncias. Vermelho é diferen- um indivíduo pode ser mais pobre em relação a outro indivíduo, e ao mes-
te do azul, mas um pintor pode dispensar um tratamento desigual ao uso mo tempo mais rico em relação a um terceiro (contrariamente ao que
destas duas cores em uma pintura, conforme enfatize mais uma ou outra. Ocorre mais habitualmente no plano das diferenças, já que um indivíduo
Para este exemplo, acabamos de falar em desigualdade relativamente a não pode ser mais brasileiro do que outro, mais cristão, ou mais mulher).
um espaço de critérios específico, que é o da utilização quantitativa de co- De resto, entre a "riqueza absoluta" e a "pobreza absoluta" - se quiser-
res diferentes pelo artista. Mas poderíamos falar de uma desigualdade en- mos postular hipoteticamente estas posições extremas relativas à desi-
tre duas cores no que se refere ao espaço simbólico que o artista atri- gualdade econômica - poderemos encontrar inúmeras nuances. Assim,
buiu-lhe em uma determinada obra (mesmo que a cor valorizada não seja se não há nuances intermediárias possíveis entre o brasileiro e o america-
aquela que é mais utilizada conforme o critério quantitativo). no, entre o russo e o chinês, ou entre o mexicano e o indiano - todas dife-

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mens modernos descendem de uma matriz comum oriunda de certa região
renças referentes ao campo das nacionalidades - já entre o miserável e"o
da Etiópia pré-histórica - ou seja, existe apenas uma única "raça humana"
milionário, marcadores tipicamente relacionados à desigualdade econo-
(OLSEN, 2001: 48; TEMPLETON, 1999)3. Porém, o que mais particu-
mica, encontraremos todas as nuances possíveis.
larmente interessa a nossa presente discussão é que existem inúmeras e
Igualdade - - _. Diferença indefinidas tonalidades de pele (e não três ou quatro), e que estas se so-
mam a inúmeros tipos de cabelo e constituições labiais, a diversificados
padrões cranianos e tendências de estrutura óssea, e a tantas e tantas ou-
Desigualdade tras distinções biológicas que a bem da verdade não nos permitiriam falar
em absoluto em um tipo unificado de negro ou de branco.
(Triângulo Semiótico da Igualdade)
Assim mesmo, quando é construída culturalmente uma dicotomia en-
tre negros e brancos, são de imediato constituídas duas essências , sem
Construiremos em seguida um esquema visual, de modo a melhor ex- mediações. Se quisermos interpor um tipo intermediário - o pardo ou
plicitar a distinção entre as desigualdades e diferenças. Trata-se de um mulato - ele será uma nova essência (na verdade uma essência tão "cons-
quadrado semiótico no qual a noção de "igualdade" relaciona-se hori- truída" como a dos negros ou brancos, se assim pudermos nos expres-
zontalmente com a "diferença" (em uma coordenada dos contrários que sar). Mas essas essências serão sempre ambíguas, e contra esta realidade
se refere ao plano das essências), ao mesmo tempo em que se relaciona empírica terão de se defrontar os sistemas de classificação que tentarem
diagonalmente com a "desigualdade" (em um eixo das contradições que estabelecer uma tipologia fundada predominantemente na cor da pele'.
se refere ao plano das circunstâncias). A indicação de bilateralidade no Para além da tipificação em branco, mulato ou negro, poderemos ten-
eixo contraditório da relação entre igualdade e desigualdade (uma linha tar desdobrar novas tentativas de classificações, e criar os conceitos de
com duas setas) indica, como já foi dito, que esses polos são autorreversi-
veis, e também que é possível um deslocamento em uma e outra direções 3. As evidências da origem única e africana do homem moderno afirmaram-se nas últimas déca-
ao longo do eixo da desigualdade. Já para a coordenada de contrariedade das. Desde os trabalhos pioneiros de pesquisadores da Universidade da Califórnia liderados por
Allan Wilson (CANN, 1987), até os recentes resultados obtidos por uma confluência de pesquisa-
relacionada com os polos igualdade e diferença não há de modo geral re-
dores americanos e franceses coordenados por [un Li, da Universidade Stanford (LI, 2008), os
versibilidade possível. Trocando em miúdos, as desigualdades são rever- meticulosos estudos baseados no DNA mitocondrial começaram a chegar a árvores filogenéticas
síveis no sentido de que se referem a mudanças de estado; as diferenças, que mostram invariavelmente uma primeira bifurcação separando as populações africanas das de-
mais. Do mesmo modo, árvores construídas a partir de conjuntos de marcadores localizados nos
de um modo geral, não. cromos somos sexuais X e Y apresentam tipologias muito semelhantes. Tudo aponta para uma fi-
Uma questão bastante complexa, e que nos interessará mais especifica- Iíação africana de todos os grupos humanos conhecidos, e só vem a confirmar outra evidência que
já aponta o continente africano como o provável berço da humanidade moderna: o fato de que os
mente neste ensaio, refere-se às chamadas "diferenças raciais", ou melhor, maiores níveis de diversidade genética do planeta são precisamente encontrados na África (quanto
às "diferenças de cor". Quando se busca estabelecer por exemplo uma di- mais antiga uma população, mais tempo esta teve para o acúmulo de mutações em suas estruturas
genéticas; deste; modo, as populações com maior variabilidade devem ser as mais antigas, sendo
cotomia entre brancos e negros, é fixado imediatamente um contraste entre este o caso da Africa).
duas essências. Isto será sempre um problema, pois do ponto de vista cien- 4. As inúmeras variações e oscilações nos sistemas classificadores de raças são bastante eloquen-
tífico as raças não existem enquanto realidades biológicas bem definidas. tesoNo Brasil, os censos de 1872 e 1890 propunham 4 divisões: os brancos, os negros, os caboclos
(ameríndios puros e seus fenótipos), e por fim os mulatos - categoria para a qual empurravam to-
Por um lado a diversidade humana é tão múltipla e aberta a misturas e su- dos os que "pela pigmentação da pele, não podendo incorporar-se a nenhuma das raças originá-
perposições que não sustenta a noção da existência de "raças", e por outro rias, formavam um grupo à parte". Para o Censo de 1872, ver Recenseamento da população do
lado as pesquisas do Projeto Genoma já demonstraram que todos os ho- Brazil a que se procedeu no dia r de agosto de 1872 (1873-1876).

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mulato escuro e mulato claro. Mas em todos estes casos estarem~s ape-
nas criando novas categorias essenciais'. No plano essencial das dlf~ren-
ças não existem gradações (ou estados) '.~as si~ categori.as.dif:renc!~das E)~if:-'M Deslocamentos entre desigualdade e
umas das outras. E aqui temos uma das ja mencionadas distinções básicas
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entre as diferenças e as desigualdades. Enquanto o homem mais rico é o
outro polo do mais miserável, ou o homem plenamente livre é o outro polo
do escravo mais privado de liberdades - sempre considerando o espectro
_9 diferença: introduzindo a questão
escravocrata
de gradações que existe nestes dois casos - o negro não é o outro polo ?o
branco, nem o inglês é o outro polo do indiano, e nem sequer o homem e o
outro polo da mulher. Aqui se deve falar respectivamente em "diferenças de
cor", "diferenças de nacionalidade" e "diferenças de sexo". As relações entre desigualdade e diferença, já o dissemos, constituem
A compreensão das distinções fundamentais entre diferenç~ e d~si: de fato um capítulo bastante complexo na história das sociedades huma-
gualdade, que buscamos desenvolver mais sistematicamente ate _aqU1; e nas, e uma das questões mais intrigantes no âmbito destas relações refe-
de fato imprescindível para que se possa perceber como estas noçoes tem re-se às possibilidades de que uma determinada "contradição" relaciona-
se relacionado entre si no âmbito social, e de que modo cada uma delas se da com desigualdade passe a ser lida socialmente como uma "contrarie-
relaciona com a noção de igualdade. Somente a partir disso podere~os dade" relacionada com diferenças. O exemplo que estaremos examinan-
iniciar um maior esforço para a compreensão de certos aspectos relacio- do mais sistematicamente neste ensaio é o da oposição entre Liberdade e
nados à escravidão e às diferenças de cor. Desde já, contudo, pontuare- escravidão, e a sua posterior relação com as diferenças de cor no âmbito
mos a complexidade do tema da escravidão, uma vez ~ue ~sta noçã~ tem do escravismo colonial do período moderno.
sido alternativamente postulada como pertencente ao âmbito da desigual- Naturalmente que, se considerarmos que a escravidão implica, em
dade ou diferença conforme os interesses sociais envolvidos e os desen- uma primeira instância, privação de liberdade, deveremos tendencial-
volvimentos históricos que podem ser examinados. mente localizar este par de contraditórios no eixo circunstancial da desi-
gualdade. O escravo é aquele que perdeu a liberdade. A escravidão ou a
condição de homem livre constitui cada qual um "estado", uma circuns-
tância (a princípio, pode-se postular, estas duas noções interagem reci-
procamente como contradições, e não como diferenças).
Para traduzir com mais intensidade o que é esta desigualdade social
constituída pela escravidão, podemos dizer que aqui estamos diante de
uma desigualdade radical. A escravidão é de fato a desigualdade radical
por excelência. Com a escravidão - principalmente se o escravo estiver
5. Esse foi o caso da classificação proposta em 1890 por Nina Rodrigues, na obra, Os ~esti~o: bra-
sileiros, onde se tenta um enquadramento da população brasileira: A obra preve a tnpartrçao da
sujeito a todos os rigores que a escravidão potencialmente lhe impõe, ao
categoria dos mulatos: os de primeiro sangue, 0S que puxavam mais para o negro, e os que puxa- passo em que neste caso o senhor estará em pleno exercício de todos os
vam mais para o branco (RODRIGUES, t 890). As categorias propostas, ~lém do ~ulato, era~: seus poderes e privilégios relacionados à posse do escravo - podemos di-
branco, negro, mame1uco (caboclo), cafuso (neg~o + índio) e pardos ~ últlmo~ refend.os a me~:~~
ços complexos que associam os caracteres das tres raças. Portanto, Nina Rodngues cna uma zer que este escravo está privado de tudo, de todos os seus direitos sobre
tinção entre os mulatos (branco + negro) e os pardos.

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ciências sociais. Neste particular, ressalta o fato de que o trabalhador livre
si. Naturalmente que, nas situações históricas concretas, ocorreram mui-
tas formas de abrandamento da escravidão no que concerne aos rigores - por mais que seja superexplorado na sua vida produtiva e cotidiana -
impostos ao escravo. Mas quando isto ocorre, como veremos adiante, é sofre apenas coações de âmbito exclusivamente econômico para realizar
por complacência deste ou daquele senhor, ou então em decorrência de o seu trabalho em certas condições (a pressão do mercado de trabalho, a
situações específicas, já que stricto sensu a escravidão se impõe ao escra- necessidade de possuir uma renda para satisfazer as exigências vitais mí-
vo, do ponto de vista legal, como uma desigualdade radical que política e nimas no mundo capitalista). Enquanto isto, o escravo, entre outros tra-
juridicamente deixa ao indivíduo escravizado muito pouco dos efetivos balhadores compulsórios, é forçado ao trabalho ou ao serviço de outrem
com base em coações de ordem extraeconômica - basicamente fundadas
direitos sobre a sua irredutível humanidade.
na captura, violência física ou ameaças de violência física e morte (além
Se quisermos ultrapassar o nível mais abstrato das definições genera-
disto, a ameaça de venda a qualquer instante e outros deslocamentos para
lizantes, será preciso deixar por estabelecido que a ideia de "liberdade"
condições ainda piores de trabalho constituíam uma coerção adicional
sempre se coloca necessariamente em um certo patamar: "liberdade" em
presente no horizonte de vida do escravo) 6. A "coação extraeconômica" é,
relação a algo. Liberdade de ir e vir, liberdade para dispor de sua própria
portanto, um primeiro aspecto a considerar quando buscamos entender o
vida, liberdade para negociar a sua própria força de trabalho, liberdade de
que é a escravidão'.
se afirmar no âmbito social não como a propriedade de outrem, mas
como alguém que detém uma razoável parcela de autonomia sobre o seu Outro contraste que poderia particularmente nos ajudar a iluminar a
próprio destino -liberdade, enfim, de tecer ou conservar a sua trama de singular condição do escravo, será oportuno lembrar neste momento, é
pertencimentos com algum nível de escolhas possíveis. A ideia de liberda- aquele que situa o "trabalho escravo" diante de outras formas de trabalho
de, compreendida como um complexo de irredutíveis direitos e poderes compulsório que existiram na Antiguidade, no Período Medieval e na
do indivíduo sobre si mesmo, pode naturalmente ser contraposta a um Idade Moderna. Apenas para dar um exemplo bastante significativo, e
certo número de tipos de escravidão e de servidão. Sabe-se que existiu que remonta à Grécia Antiga, o contraste entre o "escravo" propriamente
uma considerável variedade de tipos de "escravo" e de outros "trabalha- dito e o "hilota" permite lançar luz sobre um importante aspecto que ca-
dores compulsórios" tanto na Antiguidade como na África do início do racteriza a escravidão de modo geral. Os hilotas correspondiam, na Gré-
período moderno, e que o escravo das Américas coloniais introduz-se cia Antiga, a populações ou grupos de populações submetidas pelos es-
singularmente como um escravo de novo tipo. Esta variedade de tipos é,
obviamente, uma questão a se considerar. Assim, de modo a contornar o
6. Após um estudo estatístico sobre as (segundas) vendas de escravos estabelecidos no sul dos
risco da imobilidade conceitual, enquadraremos alguns destes vários ti- Estados Unidos, Paul David (1976: 110) ressalta que "a ameaça de venda era grande o bastante
pos (embora não todos) na rubrica da "escravidão", sem nos perdermos para afetar a vida de um escravo".
nas intermináveis aventuras teóricas de tentar encontrar um nome dife- 7. A caracterização da oposição entre liberdade e escravidão como pertinente ao eixo das desigual-
dades fortalece-se, inclusive, quando pensamos na dicotomia entre trabalho livre e trabalho escra-
rente para cada tipo de escravo que seja mais adequado às diversas for- vo. No limite, pode-se pensar no escravo como aquele que em tese não possui qualquer liberdade
mações sociais antigas ou modernas. para negociar seja sua própria força de trabalho, seja o produto desta força de trabalho. Contudo,
abund.am_exemplos de escravos do período moderno que possuíam precisamente uma margem de
O escravo, definido por oposição ao homem livre - com ênfase nas im- negoctaçao de parte da sua força de trabalho, bem como acham-se registradas as possibilidades
plicações socioculturais desta oposição - será nosso ponto de partida, que ~e apresentava~ a certos escravos para acumular ganhos que, inclusive, poderiam Ihes abrir
caminho para postenor compra da alforria. Veremos nestes casos o discreto preenchimento da dia-
ainda que o contraste mais economicamente direcionado de "escravidão" gonal que vai do trabalho escravo ao trabalho livre com as várias nuances que se estabelecem entre
por oposição a "trabalho livre" pudesse render ainda outro circuito de o "escr~vo-limite" - aquele que não teria a princípio qualquer direito sobre sua força de trabalho e
considerações, igualmente rico de reflexões úteis para a história e para as sobre SI mesmo - e o trabalhador plenamente livre.

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parta nos e obrigadas, a partir daí, a uma forma específica de trabalho aliás, ocorrer eventualmente na escravidão moderna, tal como certamente
compulsório. Uma de suas características essenciais é que eles eram de- ocorria na escravidão antiga) 10. Esta participação na produção decorren-
pendentes coletivos, em contraste, por exemplo, com o escravo ateniense te do seu trabalho, contudo, mesmo que possível de ocorrer eventual-
do período clássico, que via de regra estava preso a um destino individual
mente em função da generosidade senhorial ou de estratégias motivacio-
de dependência", Enquanto o hilota insere-se em um grupo "escravizado"
nais, não existe certamente referida em nenhuma definição jurídica do
por uma comunidade de senhores, o escravo propriamente dito passa a "escravo" propriamente dito". Em tese, o escravo é propriedade indivi-
pertencer a um indivíduo: ele é propriedade de alguém. Este aspecto é ob-
dual, e tudo aquilo que produz pertence àquele que o possui formalmente.
viamente da maior importância na definição do escravo",
A ausência de liberdade estende-se aqui ao direito de dispor minimamente
Ser propriedade de alguém é inseparável da ideia de escravidão. Dizer do próprio trabalho, eliminando-o, e é oportuno lembrar a definição de es-
que alguém está privado de liberdade, obviamente, não definiria o escravo cravidão proposta por Petterson, segundo a qual a escravidão é "aquela
em todos os seus aspectos, já que o prisioneiro condenado a viver confi- condição na qual há uma alienação institucionalizada dos direitos sobre o
nado aos limites de uma cela também estará privado de liberdade e nem trabalho e o parentesco" (PETTERSON, 1977: 431). Enquanto um de-
por isto poderá ser definido como escravo. Mas estar privado da liberdade pendente de qualquer tipo paga um certo tributo àquele que o submete, ou
(nos âmbitos mais acima considerados), estar sujeito a trabalho compul- mesmo é obrigado a colocar amplamente sua força de trabalho ao dispor de
sório através de coações extraeconômicas, e, particularmente, estar sujei- outro mas conservando formalmente um minimum que pode ser revertido
to a ser classificado como "propriedade" de um outro, que passa a deter para si, o trabalho do escravo a este não pertence em absoluto".
poderes de definir os destinos do indivíduo escravizado em uma totali-
A oposição entre liberdade e escravidão, conforme se vê, pode ser ilu-
dade de aspectos ... isto já nos aproxima de uma percepção mais comple- minada através do contraste do "trabalho escravo" propriamente dito em
ta do que é o escravo. relação ao "trabalho livre", de um lado, e a outras formas de trabalho
O fato de que o escravo é propriedade de um outro - mais especifica- compulsório, de outro. Por outro lado, quaisquer destas formas de traba-
mente de um indivíduo que é o seu senhor - traz-nos algumas implicações lho, inclusive o trabalho livre, podem estar sujeitas a processos de desi-
adicionais que podem também ser iluminadas através do já mencionado gualdade e de acentuado grau de exploração econômica.
contraste entre o escravo-mercadoria e o hilota da Antiguidade Espartana.
Enquanto este último detinha o direito a uma parte formalmente definida
1O. Além de caracterizar o hilota a partir do aspecto fundamental da "dependência coletiva", e de
do produto do seu trabalho (FINLEY, 1991: 170), em tese o escravo não ressaltar .as implicações do direito do hilota a uma parte formalmente estabelecida do produto,
possui qualquer direito formal a uma parte sequer do produto de seu pró- Moses Fmley também ressalta a autorreprodução dos hilotas como um aspecto importante do
contraste destes em relação aos escravos-mercadoria da Atenas clássica. Assim, em consequência
prio trabalho, a não ser que o seu senhor lhe conceda isto (o que veremos, dos .direitos muito ~aiores destes dependentes na esfera familiar, "hiloras, clientes e outros repro-
duziam-se automaticamente, ao contrário das populações escravas, e não requeriam esforços ex-
tremos para se manter em número necessário; além disto eram encarados e temidos, por seus se-
8. "Dificilmente se poderia negar que os hilotas fossem 'dependentes coletivos', ou seja, uma po- nhores, como potencialmente revoltos os enquanto grupo, diria quase enquanto uma comunidade
pulação inteira (ou várias) submetida à dependência, enquanto os escravos, por dívida ou nã~, submetida" (FINLEY, 1991: 74).
eram submetidos individual e separadamente. Esta distinção é válida tanto para as centenas de mi-
lhares de escravos vendidos por Júlio César, quanto para os carregamentos de escravos trazidos 11. "O malogro de qualquer proprietário em exercer plenamente seus direitos sobre seus escra-
para as Américas: seu destino era individual, não coletivo" (FINLEY, 1991: 73). vos-propriedade foi sempre um ato unilateral de sua parte, nunca obrigatório e sempre revogável.
Este fato é crucial. Assim como seu reverso, a concessão de uma benevolência ou privilégio especí-
9. A "Convenção sobre Escravidão" da Liga das Nações, em 1926, já amparava sua definição de fico sempre foram revogáveis e igualmente unilaterais" (FINLEY, 1991: 76).
escravo em relação ao aspecto da propriedade: "A escravidão é um status ou condição de uma pes-
soa sobre a qual alguns ou todos os poderes ligados ao direito de propriedade são exercidos" 1.2. De acordo com Moses Finley, pode-se afirmar que "todas as categorias de trabalho cornpulsó-
(GREENIDGE, 1958: 224). no, excetuan?o~se o es~ravo, .possuíam, em graus variados, alguns restritos direitos de propriedade
e, em geral, direitos muito maiores na esfera do casamento e da lei familiar" (FINLEY, 1991: 74).

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Posto isto, a reflexão sobre a escravidão como complexo cultural outras formas de desigualdade, e ao tempo em que propunham a abolição,
leva-nos, como já postulamos, a posicionarmos esta noção de maneira preconizavam também reformas fundiárias e jurídicas. Destronada do pla-
bastante singular no âmbito do eixo fundador das desigualdades: aden- no imobilizado r das diferenças em que fora assentada durante o processo
tra-se a escravidão quando se tem por perdido um certo número de liber- de formação e implantação do escravismo colonial, a escravidão passava a
dades - e do ponto de vista semiótico aqui teremos uma circunstância, coabitar no discurso abolicionista com outras desigualdades, e algumas
um estado reversível (mesmo que não se reverta nunca). Contudo, con- destas desigualdades podiam ser enfrentadas naquele momento pelas mes-
forme veremos oportunamente, será bastante comum diante das situa- mas práticas, pelos mesmos discursos, pelas mesmas ações sociais.
ções concretas a possibilidade de visualizarmos o reenquadramento da
É muito interessante observar que estas oscilações do conceito de es-
escravidão no eixo de contrariedades que opõe as diferenças à igualdade: cravidão entre os planos da desigualdade e da diferença já podiam ser
o escravo passa a ser aqui, então, o "estrangeiro absoluto", aquele que identificadas na Antiguidade. Assim, a "escravidão por dívida", que podia
perdeu todos os direitos sobre si e já não possui praticamente nenhuma ser infligida aos atenienses empobrecidos do período anterior às reformas
familiaridade com relação ao homem livre, a não ser a sua humanidade de Sólon, situava-se claramente referida ao plano das desigualdades (das
mínima, que mesmo assim por diversas vezes é negada. O escravo torna- circunstâncias), e já a escravidão imposta ao estrangeiro bárbaro com-
do diferença, perde até mesmo o mais simples elemento que poderia pre- prado ou capturado em guerra, que conflui no período posterior a Sólon
servar para a afirmação desta humanidade mínima: o parentesco". para a ideia do "escravo-mercadoria", mostra-se mais claramente vincu-
A estratificação social no Brasil Colonial (embora isto também ocorra lada à categoria das diferenças". Por outro lado, é também particular-
em outras sociedades e tempos) fundou-se no deslocamento imaginário mente interessante observar que o primeiro capítulo do livro I da Política
da noção desigualadora de "escravo" para a coordenada de contrários de Aristóteles desenvolve-se em torno da dificuldade de se pensar a escra-
fundada sob a perspectiva da diferença entre homens livres e escravos. vidão como uma questão de essência (de diferença) e não de circunstân-
Nesta perspectiva, um indivíduo não está escravo, ele é escravo. Toda a cia (de desigualdade). Aristóteles tenta contornar estas contradições ela-
violência maior do modelo de estratificação social típico do Brasil Colo- borando uma distinção entre "escravos legais" e "escravos naturais?". Os
nial esteve alicerçada neste deslocamento, nesta transformação de uma "escravos legais" seriam aqueles que não nasceram para serem escravos-
contradição em contrariedade, nesta estratégia social imobilizadora que são, portanto, homens livres por natureza que foram escravizados equivo-
transmudava uma circunstância em essência. É digno de nota que os abo-
licionistas tenham se empenhado precisamente em reconduzir o discurso I~. ':Os escravos por dívida de Atenas ou Roma arcaicas nos oferecem um exemplo extremo (e
sobre a escravidão para o plano das desigualdades, recusando-se a discu- e~lstlam, ta.lvez, classes semelhantes de dependentes em outras comunidades antigas, das quais
tir a oposição entre livres e escravos no plano das diferenças. Alguns pas- nao temos mformações). Conseguiram libertar-se en bloc, restabelecendo automaticamente sua
posição como membros plenos em suas respectivas comunidades. Foi um conflito civil uma luta
saram inclusive a discutir a desigualdade da escravidão em conexão com n.ointerior da comunidade, não uma revolta de escravos: estes últimos visavam emancipar-se indi-
vidualmente, não se incorporar à comunidade do seu senhor, ou transformar a estrutura social.
Nesse contexto, vale recordar que, quando os hilotas messênicos foram libertados (de novo en
13. "O escravo, como tal, sofria não apenas uma 'perda total do controle sobre o seu trabalho', bloc) pelos tebanos após a vitória sobre Esparta em Leuctra (371 a.C.), os messênicos foram ime-
mas também do controle sobre sua pessoa e personalidade. [...] Além disso, essa perda de controle diatamente aceitos, pelo conjunto dos gregos, como uma comunidade devidamente grega" (FINLEY
estendia-se infinitamente no tempo, até seus filhos e os filhos dos seus filhos - a menos que, por 1991: 74). '
um ato novamente unilateral, o proprietário rompesse essa corrente através de uma manumissão 1.5.~STÓTELES. Política: 1260. "Entretanto, é fácil ver que aqueles que sustentam o contrá-
incondicional [...] essa totalidade de direitos do proprietário era facilitada pelo fato de o escravo rIO tem razão em algum sentido, pois as palavras 'escravidão' e 'escravo' podem ser usadas em
ser sempre um estrangeiro desenraizado - estrangeiro, primeiramente, no sentido de ser originá- duas acepções diferentes. Existem o escravo e a escravidão por lei, bem como por natureza. A lei a
rio de fora da sociedade na qual fora introduzido como escravo; em seguida, porque lhe era nega- qual nos referimos é uma espécie de convenção segundo a qual aquele que é vencido na guerra
do o mais elementar dos laços sociais: o parentesco" (FIN LEY, 1991: 77). pertence ao vencedor" (2006: 62).

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cadamente ou circunstancialmente - e em seu horizonte pairaria a possibi- uma categoria relacionada ao "trabalho" ou à "política" (ou seja, uma "de-
lidade de conquistarem a liberdade por merecimento (isto é, de reverterem sigualdade"), e tampouco de uma categoria "racial" (o que dela faria uma
a sua posição no eixo das desigualdades). Já os "escravos naturais': s~riam "diferença" de natureza social ou coletiva). Situar o escravo como uma
aqueles que teriam nascido para serem escravos - e neste ponto Anstoteles categoria ético-psicológica faz da escravidão aristotélica uma "diferen-
é levado a considerar algo como uma condição sub-humana do escravo, ou ça", de fato, mas uma diferença individual, que remete ao espírito de cada
ao menos uma concepção do escravo (natural) como possuindo uma espé- ser humano singularizado.
cie de qualidade humana deficiente, ao invés de falar de um huma~o trata- Este esforço de enxergar o escravo sob a ótica de uma natureza defici-
do de maneira desumana (isto é, um ser humano tratado com deSigualda- ente estaria presente em toda uma tradição do pensamento socrático que
de). O escravo será visto aqui como mera propriedade privada, uma "coisa remonta à Memorabilia de Xenofonte (1, 5, 5-6) (BARRERA, 2007:
que fala" (mais do que uma "coisa que sente"), um desenraizado, um "es- 101). De alguma maneira, embora se referindo a uma questão diversa, o
trangeiro absoluto" (isto é, diferença plenamente realizada) 16. que teríamos na República de Platão senão este esforço de enxergar nos se-
No que tange à questão escravocrata, portanto, a concepção aristo~é- res humanos diferenças de espírito, suficientemente clivadas para que Pla-
lica gira em torno deste esforço, e, ao mesmo tempo, em torno desta difi- tão se veja autorizado a falar em "almas de ouro", "almas de prata", "almas
culdade' de enxergar o escravo como diferença. O filósofo grego c~ega : de bronze" e "almas de ferro"?" Uma clivagem, diga-se de passagem, que
reconhecer a humanidade do escravo, mas afirma que este escravo (Isto e, se vai manifestando ou se explicitando na medida em que o indivíduo avan-
o "escravo natural", e não o "escravo legal") é um homem que possui uma ça no processo da educação, considerando-se ainda a propósito que Platão
natureza distinta, embora humana, em relação ao homem pleno (ARIS- está se referindo aqui aos cidadãos, e não aos escravos, o que os colocaria
TÓTELES, 2007, capo V, 1)17. A qualidade que singulariza o "escravo na- ainda em um nível mais inferior desta escala de diferenças.
tural" refere-se então a um certo aspecto do seu espírito, a uma natureza Veremos, no decorrer deste ensaio, que a proposta do moderno siste-
humana deficiente. E é neste sentido, para acompanhar de perto uma refle-
ma escravocrata implantado pelos europeus na América, a partir da força
xão de Jorge Martínez Barrera (BARRERA, 2007: 1.01;cf. tb.$HO~! ~
africana de trabalho, encontra-se fundamentalmente organizada em tor-
STAM, 2006: 119), que se pode dizer que em Anstoteles a escravidão e
no de um modo ainda mais radical de enxergar a escravidão como dife-
apresentada como uma categoria de natureza éti~o-psicol?gi~a (ARIS-
rença. A "racializaçâo da escravidão", nesta nova ótica que será a moder-
TÓTELES, 2007: 14-17rs• Não se trata, no seu nucleo mais smgular, de
na, implica que a escravidão possa ser vista como uma diferença coletiva.
Não seriam certos indivíduos de natureza humana deficiente, como pro-
16. Para Aristóteles, o escravo é uma ferramenta animada, do mesmo modo que a ferramenta é
um escravo inanimado (ARISTÓTELES, 2000: 60).
17. "Mas haverá ou não um homem assim? O escravo está conforme a natureza, Fara,a ~ual a sua 19. "[ ...] mas o deus que vos modelou, àqueles dentre voz que eram aptos para governar, mistu-
condição é justa e útil, ou a escravidão é uma violação da nature~a? / De resto, n~o ha dificuldade rou-Ihes ouro na sua composição, motivo pelo qual são mais preciosos; aos auxiliares, prata; ferro
em responder a essa questão, conduzindo-nos no terreno da razao ~ ~os fatos. POI~q~e.alguns de- e bronze aos lavradores e demais artífices. Uma vez que sois todos parentes, na maior parte dos
vem comandar e outros obedecer não é uma coisa somente necessana, mas tambem útil. Entre os casos gerareis filhos semelhantes a vós, mas pode ocorrer que do ouro nasça uma prole argêntea, e
seres, desde o nascimento. alguns são destinados ao comando, e outros à obediência" (ARIS- da prata, uma áurea, e assim todos os restantes, uns dos outros. Por isso o deus recomenda aos
TÓTELES, 2006: 60). chefes, em primeiro lugar e acima de tudo, que aquilo em que devem ser melhores guardiões e
exercer mais apurada vigilância é sobre as crianças, sobre a mistura que entra na composição das
18. "Onde quer que se observe a diferença que há entre alma e corpo, entre o homem e o animal,
suas almas, e se a própria descendência tiver qualquer porção de bronze ou de ferro, de modo al-
verificam-se as mesmas relações: aqueles que não têm nada melhor a oferecer que a sua força cor-
gum se compadeçam, mas Ihes atribuam a honra que compete à sua conformação, atirando-os aos
poral são destinados, por natureza, à escravidão, e para eles é vantajoso estar sob o comando ~e
artífices ou aos lavradores; e se, por sua vez, nascer destes alguma criança com uma parte de ouro
um senhor. Por natureza é assim o escravo: pode pertencer a um senhor (e de fato pertence), e n~o
ou prat~, que Ihes deem as devidas honras, elevando-se uns a guardiões, outros a auxiliares [...]"
participa da razão mais que o grau n,ecessário para modificar sua sensibilidade, mas não pOsSUIa
(PLATAO, 2000: 109-110).
razão em sua completude" (ARISTOTELES, 2006: 101).

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punha Aristóteles, que deveriam estar destinados à escravidão, mas sim
um grupo humano específico, que traria na cor da pele os sinais de uma
inferioridade da alma. Esta concepção, também veremos, ver-se-ia auto-
rizada por certas releituras de algumas passagens bíblicas, que buscariam
conceber a escravização coletiva dos africanos como resultado do peca-
do. Deus não havia criado os homens diferentemente - já diziam os Pa-
- 3 Negro, africano, escravo: pequena
história de um entrelaçamento
dres da Igreja na Antiguidade, preparando aqui uma sutil correção ao
pensamento aristotélico - mas os próprios homens é que teriam criado
esta diferença a partir do pecado cometido por alguns deles (veremos
mais adiante o episódio bíblico da "maldição a Cam"). Com isto, se a es-
cravidão não era natural, como propunha Aristóteles (o que seria mais di- Para avançarmos na questão que nos interessa, será preciso conside-
fícil de sustentar a partir da ideia de igualdade humana aos olhos de Deus, rar que, se as desigualdades são sempre construções históricas as dife-
proposta pelo Cristianismo), ao menos seria legítima. renças também podem sê-Io. Existem obviamente as diferenças' naturais
A questão da escravatura, veremos até o final deste ensaio, permi- que impõem a sua evidência ao mundo humano (como o sexo ou as dife-
te-nos-á sustentar que as releituras de uma desigualdade como diferen- ren~as etárias). Mas existem também as diferenças culturais propriamen-
ça podem, de um lado, implicar opressão ou dominação. Por outro lado, t~ ditas, e algumas delas precisam ser examinadas no plano de sua histori-
pode-se também produzir libertação com a desconstrução do desloca- cidade porque eventualmente produzem desigualdade social. Discutire-
mento opressor no sentido inverso, como veremos ser o caso dos discur- mos um :onjunto de noções historicamente construídas que se entrelaça-
sos abolicionistas que reconduziriam a noção de escravatura do plano das ram no seculo XVI em torno da prática da escravidão moderna: negro, es-
diferenças ao plano das desigualdades. É preciso fazer compreender a es- cravo e africano.
cravidão como desigualdade para, ato contínuo, propor sua extinção atra- Liberdade e escravidão, como já foi notado, cor respondem a estados
vés de uma ação social. que tendencialmente deveriam ser dispostos no eixo contraditório das de-
sigualdades, e não na coordenada de contrários das diferenças. "Escra-
vo", neste caso, seria uma noção referente à desigualdade que se estabele-
ce relativamente à liberdade (ser escravo é estar privado da liberdade é
ser vítima de uma desigualdade social relacionada ao direito de agir livre-
~ente). Ser negro, por outro lado, é hoje uma diferença marcante nas so-
ciedades modernas. Mas esta diferença tem também uma história. E em
a~gum momento esta história foi obrigada a entrelaçar-se com a ideia de-
sigual ~e escrav~dão para dar suporte a esse cruel regime de dominação
que fOIo escravismo colonial.
Entre os séculos XVI e XIX, os "negros" não se viam na África em
~bsolut~, co~o "negros". "Negro" foi de algum modo uma construção
branca - ja que os povos africanos enxergavam a si mesmos como

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pertencentes a grupos étnicos bem diferenciados e em certos casos reci- . A.rep~esent~çã~ da Europa como centro do mundo caminha a par da
procamente hostis. Na verdade, o aspecto diferencial "negro" foi grosso rmagmaçao da Africa como periferia incivilizada - ora uma terra de dife-
modo construído no Ocidente Europeu a partir da superação de diver- rença e selvageria, ora uma vasta região perigosamente sujeita à influên-
sas diferenciações que existiam (e existem até hoje) nas sociedades tri- cia islâmica na parte norte do continente - e isto começa a já aparecer na
bais africanas. Dito de outro modo, a diferença "negro" foi construída a cartografia de fins do século XVI, não raro com a utilização de recursos
partir da igualização (ou da indiferenciação, seria melhor dizer) de uma iconográficos alegóricos". No mapa de Heinrich Bünting, elaborado em
série de outras diferenças étnicas que demarcavam as identidades locais 1581, a Península Ibérica, ponta de lança da expansão europeia, recebe a
no continente africano, sendo importante ressaltar que isto não ocorreu equivalência imagística de uma coroa. Seu posicionamento (sobretudo
repentinamente, mas sim no decurso de um processo de quatro séculos simbólico) acima do continente africano, marcando nítida separação da
que envolveu a implantação, realização e superação do escravismo - Europa em relação a este continente que já começava a fornecer escravos
um processo que a princípio "mescla, sem as confundir, as etnias, tri- negros em quantidade para a exploração econômica a ser encaminhada
bos e clãs" (MATTOSO, 1982: 23), mas que ao mesmo tempo supri- pelos europeus, seria bastante típico acerca do modo como a cristandade
me gradualmente todas estas diferenças na consolidação da represen-
tação de "negro". Para entender as bases iniciais deste complexo pro-
cesso, discutiremos mais adiante a própria diversidade afro-negra à
época que precede a implantação do tráfico negreiro. Por ora, avance-
mos na análise do combinado de noções que se forma em apoio ao pro-
jeto escravocrata colonial.
Se a ideia de "negro" foi construída por supressão ou miriimização
das diferenças tribais, é preciso salientar que os negros africanos tampou-
co se viam como "africanos". A "África" foi também uma construção da
"Europa". O norte, o centro, o sul, a banda oriental, o litoral atlântico,
para apenas falar das macrorregiões da África, eram pressentidas pelos
povos que as habitavam como regiões geográficas e culturais bem dife-
renciadas. Quem pela primeira vez avaliou estes povos a partir de uma
identidade étnica e continental - enquadrada em um lugar único - foi o
próprio homem "branco" europeu, já que esta questão não se colocava
então para os "negros africanos" da época".

Mapa Europa-Rainha de Heinrich Bünting (1581)

20. Em época bem anterior a África do Norte pertencera politicamente ao Império Romano, e des-
te ponto de vista todas as regiões europeias e norte-africanas em torno do Mar Mediterrâneo - o
Mare N~strum - constituíam uma unidade. Esse é apenas um exemplo para deixar claro que a vi-
_ "SlilãO_da",--Africa
como uma realidade continental não se impõe como dado evidente, e sim como
construção histórica. 21. Sobre representações cartográficas do início da modernidade ver Broc, 1986.

4n 41
europeia passaria a se autoperceber diante de um mundo de novas terras que estavam também outras humanidades "indesejáveis", como a dos
que iam sendo descobertas ou exploradas". berberes e outros povos africanos islamizados (negros ou não), e inves-
Diante da necessidade de representar um mundo que se expandia ex- tia-se no esquecimento de que a parte norte da África estava relacionada a
traordinariamente com a descoberta de novas terras e com a crescente fa- um outro circuito, o islâmico, formando com a Ásia muçulmana um outro
miliarização europeia em relação aos continentes já conhecidos, a imagi- conjunto de interações econômicas e de relações políticas. Com a insis-
nação da África como um grande e indiviso bloco continental que con- tente ênfase no imaginário sobre a África como um grande e indiviso blo-
tinha os negros era, naturalmente, uma perspectiva geográfica que se co continental, tinha-se para a humanidade negra uma geografia perfeita-
adaptava bastante bem àquela ideia generalizadora a respeito das popula- mente adequada. A noção de uma África selvagem e a ideia de uma huma-
ções negras, esta outra perspectiva que se construía a partir de um des- nidade negra mais atrasada começavam a se entrelaçar no imaginário que
prezo pelas multivariadas etnias africanas. Desprezar os ambientes ~t~r- deveria dar suporte à empresa do tráfico negreiro e à exploração impiedo-
nos africanos, e também a complexidade de espacialidades que a Afnca sa de uma nova força de trabalho submetida às mais degradantes condi-
podia apresentar, era de certa maneira um gesto análogo ao desprezo pe- ções' tudo com as devidas bênçãos papais".
las etnias africanas de modo a construir, imaginariamente, uma única e Por fim, a adaptação do próprio conceito de "escravo", transforman-
indiferenciada população negra. Um grande continente para uma grande do-o simultaneamente na base de um determinado sistema de produção
e única categoria de negros, esta era a fórmula. Naturalmente que, para e, sobretudo, em peça central definidora de um comércio extraordinaria-
além do gesto de ignorar imaginariamente as diversas áreas geográficas e mente rendoso nos moldes modernos foi também uma derradeira cons-
culturais da África, esta perspectiva se prestava também a desprezar as in- trução branca. Bem entendido, a escravidão era uma forma de desigual-
tersecções complexas que recobriam já naqueles tempos a espacial~dade dade que já vinha existindo desde a Antiguidade, mas de modo geral apre-
africana". Aproveitava-se por exemplo para enfatizar que era n~~.taAfrica sentava outras singularidades. Em boa parte dos casos, a Escravidão
Antiga constituía-se em um produto da guerra: o escravo podia ser por
22. A noção de "Europa", na verdade, já vinha sendo gestada desde per~o~os anteriores, mas o~v~a.- exemplo um homem livre que fora vencido e capturado belicamente.
mente que aqui passa a se delinear por sobre um novo plano de opo~lçoes e contrastes. Sera útil
contrapor este novo momento do conceito de Europa a quadros antenores, e o~servar que, em s~u
A
Também em diversas sociedades da Antiguidade apresentava-se, ao lado
cuidadoso estudo sobre Carlas Magno, Jean Favier assim descreve a emergencra desta nova noçao da escravização surgida da guerra, o caso menos frequente da escravidão
por ocasião da consolidação do Império Carolíngio: "Alguns intelectuais sentem bem _adificulda-
por dívidas, novamente uma circunstância, e já desde a Mesopotâmia
de dessa definição [a de cristandade ocidental] e começam a recorrer a uma outra noçao que, pelo
fato de a unidade do mundo romano ser dada pelo Mediterrâneo, até então não pudera desenvol-
ver-se: a de Europa. Um clérigo louva o imperador por ter recebido de Deus 'o gover~o. da Euro-
pa'. Num longo poema bastante bajulatório, Angilberto vai alé:n' .chamando Ca,rlos de CImovene-
rável da Europa', 'rei e pai da Europa', 'senhor do mundo e ver:l~e da Eu~opa . Qu~ ~ssa Europa os outros, na maioria dos casos; ao contrário, elas formam uma série de intersecções comple-
se definia principalmente por oposição às terras gregas do Impeno do Onente, e ate as terras do- xas" (LACOSTE, 2005: 67-68). Os atuais conflitos entre hútus e tútsis em Ruanda, por exem-
minadas pelos muçulmanos da Espanha, não há a menor dúvida" (FAVIER, 2004: 511). Para es- plo, são produtos da reunião em um mesmo país de tribos cujas mútuas hostilizações vinham
tudos já clássicos sobre a "ideia de Europa", ver: Hay, 1957; Curcio, 1958; Shabod, 1964: D~r~- crescendo desde o período colonial/Sobre a diversidade africana ver o ensaio de Davidson Basil
selle, 1965, e, mais recentemente, um ensaio no qual Peter Burke se pergunta: A Europa tera existi- (1981). Sobre os violentos conflitos entre tútsis e hútus que adquiriram sua expressão mais san-
do antes de 1700?" (BURKE, 1992). grenta em abril de 1994 com o massacre de cerca de 50.000 tútsis, ver o ensaio jornalístico de
23. A respeito de uma compreensão mais complexa das espacialidades geográficas, lembremos HATZFELD (2005).
as palavras de Yves Lacoste em um livro que reflete sobre os usos políticos da geografia: "Basta 24. A Bula Romanaus Pantifex, ditada por Nicolau V, em 1454, autorizava a exploração escrava de
folhear um atlas ou um manual consagrados a um mesmo continente, a um mesmo estado, ou a pagãos, fossem nativos ou africanos. Em 1537, em uma bula papal promulgada por Paulo III, a
uma porção qualquer do espaço terrestre, para se perceber que as configurações espaciais dos Igreja desaconselha a escravidão indígena, mas conserva posição de indiferença com relação à es-
fenômenos geológicos, climáticos, demográficos, econômicos, culturais não coincidem uns com cravidão negra.
ção que desconsidera origens étnicas e locais, a uma diferença socialmen-
comprovam-se ainda os casos de escravização de crianças abandonadas e
da venda de familiares como escravos". te selecionada que será a cor da pele".
Assim como na Antiguidade, a escravidão sempre existira na África. Neste novo contexto, se antes a escravidão apresentava-se amiúde
Porém, na realidade africana pré-colonial tinha-se uma escravidão de im- como um subproduto ou um contraponto da guerra, agora o objetivo de
portância periférica, e que além disto assumia conotações diversas que capturar escravos é que passaria, essencialmente, a produzir a guerra. O
serão discutidas mais adiante. A contribuição do homem branco europeu escravo passou a ser um produto tão valorizado na nova realidade econô-
para esta triste prática hoje oficialmente abolida foi introduzir a escravi- mica que os próprios grupos tribais africanos organizavam expedições
dão, a partir do século XVI, em um comércio transoceânico de âmbito para capturar escravos para depois vender aos europeus". Ocorreu mes-
mundial, e também transformá-Ia em peça-chave dos sistemas econômi- mo que estados e reinos africanos que eram estáveis antes da chegada dos
cos coloniais até sua abolição nos vários países da América. Para isto, o europeus desaparecessem, particularmente a partir de meados do século
traficante europeu precisou interagir com a "ponta negra" do tráfico - da XVII, para dar lugar a novos estados "nascidos do tráfico e vivendo dele"
qual participavam por exemplo os chefes africanos das etnias litorâneas, (MATTOSO, 1982: 27). A esta questão voltaremos mais adiante, pois ela
que organizavam nos séculos XVII e XVIII guerras e expedições de cap- nos forçará a examinar os vários modelos de escravidão que já existiam na
tura para obter no interior africano homens de etnias várias para serem África pré-colonial do ponto de vista de sua relação com os conceitos de
vendidos como escravos. desigualdade e diferença.
Enquanto as formas de escravidão até então conhecidas contrastam Por ora, registremos que a desconstrução da diversidade de etnias ne-
com a escravidão moderna por terem se apresentado menos extensas, gras e das realidades culturais africanas, mergulhando-as dentro de uma
menos comerciais e mais heterogêneas (o escravo na Grécia ou na Roma grande raça localizada em um espaço geográfico único e imaginariamen-
Antiga podia vir de procedências diversas), na instalação do sistema es- te homogêneo - e a simultânea visão desta parte da humanidade como
cravista colonial estaremos diante de um novo sistema escravista que "inferior", ao mesmo tempo em que se encarava o continente africano
abarca uma extensão oceânica, apresenta muito mais intensidade comer-
cial e vai se nutrir de escravos trazidos exclusivamente da África (BLA- 26. A vinculação da escravidão moderna à cor da pele passou a desempenhar tal central idade, que
a percepção social da cor negra passaria a estigmatizar mesmo os libertos. Finley, comparando a
CKBURN, 2002: 19) -vinculando esta origem, ela mesma uma constru- escravidão moderna ao mundo antigo, sintetiza este aspecto com precisão, fazendo notar que "os
libertos no Novo Mundo carregavam, na cor da sua pele, um sinal externo de sua origem escrava,
mesmo após várias gerações, com gravíssimas consequências econômicas, sociais, políticas e psi-
cológicas. Os libertos antigos simplesmente desapareciam no conjunto da população em uma ou,
no máximo, duas gerações" (F1NLEY, 1991: 101). Sobre os estigmas da escravidão na afrodes-
25. A escravidão contraída por dívidas, bastante comum na Atenas anterior às reformas de Sólon
cendência, ver Cohen e Greene (1972).
(594 a.C.), mostra claramente a ideia de escravidão vista como circunstancialidade. Sólon a abo-
liu, ao mesmo tempo em que proibiu a escravização de um ateniense por outro. Isso traz a questão 27. A organização de expedições de pirataria para aquisição de escravos não era obviamente des-
para o plano das desigualdades, pois "os escravos atenienses tinham continuado atenienses; agora conhecida na Antiguidade, e sabe-se que em certos povos - como os fenícios, etruscos, cretenses,
reafirmavam seus direitos como atenienses e forçavam o fim da instituição - servidão por dívida etolios, ilírios, cilícios - surgiam grupos que "se especializavam em raptar pessoas e transportá-Ias
[...]. Não se opunham à escravidão como tal, somente à sujeição de atenienses por outros atenien- em seus barcos para vendê-Ias em portos francos, como o era a Ilha de Delos depois de 168 a.C."
ses" (FINLEY, 1988: 125). Outro exemplo pode ser encontrado na Antiga Babilônia, onde a es- (CARDOSO, 1987: 41). Mas com o modelo de escravidão introduzido pelos europeus do início
cravidão por dívidas era reversível e limitada a três anos ("Se alguém tem um débito vencido e ven- do mundo moderno isso pas~a a ocorrer em larga escala, tornando-se a regra, e inserindo-se em
de por dinheiro a mulher, o filho e a filha, ou lhe concedem descontar com trabalho o débito, aque- um comércio transatlântico. E disto que aqui tratamos para considerar as singularidades da escra-
les deverão trabalhar três anos na casa do comprador ou do senhor, no quarto ano este deverá li- vidão moderna. Já na Antiguidade grega o que ocorria é que, em geral, "os exércitos eram segui-
bertá-los" (HAMMURAPI: 117». Já a escravidão-mercadoria, surgida na Atenas posterior a SÓ- dos de mercadores de escravos que compravam em massa os prisioneiros e depois os encaminha-
lon, identificava o escravo ao "estrangeiro absoluto", e portanto trazia a questão para o plano das vam aos pontos de venda" (CARDOSO, 1987: 41). Ou seja, nestes casos surgia um comércio de
diferenças. Aqui o escravo surge como o "outro", desmerecedor de qualquer proteção legal. escravos em função da guerra, e não o contrário: a guerra em função do comércio de escravos.
como lugar exterior à "civilização" - tudo isto, juntamente com uma nova do século XVIII por Dom Fernando José de Portugal, na qual alerta a
noção de "escravo", constituiu o fundo ideológico da montagem do siste- Luís Pinto de Souza para o fato de que não convinha juntar em uma ca-
ma escravista no Brasil. Desigualdades e diferenças várias, neste caso pitania um número preponderante de africanos oriundos da mesma na-
construídas historicamente, entrelaçaram-se para dar apoio a um dos mais ção ou estoque, sob o risco de que disto "facilmente podem resultar per-
cruéis sistemas de dominação que a história conheceu. niciosas consequências?".
Os primeiros portugueses que procederam à montagem do sistema De fato, as revoltas dos malês na Bahia, lideradas por negros sudane-
escravista no Brasil estavam cientes da diversidade africana, e portanto ses maometanos em nove oportunidades entre 1807 e 1835, esta última a
das possibilidades de afirmação de diferenças a partir desta diversidade". maior de todas, veio a mostrar às autoridades provinciais o perigo, para
Mas eram diferenças que, no caso, não lhes interessavam. Motivar as ri- a estabilização local do sistema escravocrata, da concentração em um
validades étnicas no próprio continente africano, como veremos mais adi- mesmo lugar de africanos unidos por uma identidade suficientemente
ante, era extremamente interessante para os traficantes negreiros, já que forte. Vale notar ainda que os líderes dos movimentos malês na Bahia, na
era da massa de vencidos nas guerras e conflitos intertribais que os trafi- verdade, além da proximidade étnica, possuíam outro forte elemento for-
cantes negreiros obtinham os indivíduos que seriam transformados em mador de identidades, que era a adesão ao islamismo".
escravos. Mas permitir que estas identidades étnicas se fortalecessem já A formulação de uma política e de uma prática colonial de misturar et-
nas colônias onde os africanos seriam submetidos à escravidão, isso já era nias africanas, com vistas a desconcentrá-Ias espacialmente e diluí-Ias
particularmente perigoso. Por isto os compradores de escravos para a culturalmente, e os perigos que foram expressos pelas sublevações negras
empresa agrícola ou para as atividades urbanas costumavam separar es- em algumas oportunidades em que esta diluição de identidades foi con-
trategicamente os indivíduos provenientes de uma mesma etnia e região tornada ... Eis aqui sintomas bastante significativos da importância para
cultural, misturando escravos de diferentes procedências e etnias - tudo os colonizadores portugueses de lidar adequadamente com a diversidade
isto visava evitar que fossem revividos certos padrões de identidades lo- africana, vertendo-a a seu favor com vistas a transformá-Ia posteriormen-
cais africanas que não estavam assim tão distantes (e, consequentemen- te em uma unidade escrava. Construir a ideia do "negro" como realidade
te, prevenir potenciais revoltas).
Para além da prática mais imediata de misturar estrategicamente et-
29. Gilberto Freyre também cita um observador francês chamado Adolphe D'Assier, autor de um
nias por ocasião do embarque e da aquisição de escravos, levada a cabo livro de 1867 que buscou retratar o Brasil, e que teria elogiado "a perspicácia da política portugue-
pelos comerciantes e senhores coloniais, há mesmo indícios de uma po- sa nos tempos coloniais, importando negros de nações diversas e até antagônicas" (D'ASSIER,
1867; FREYRE, 2002: 484). Por outro lado, também o naturalista inglês George Gardner, que
lítica mais ampla, já no nível dos governos metropolitano e provincial,
esteve na Bahia em 1836 e escreveu Travels in the interior of Brazil, parece sugerir uma relação en-
de não acumular africanos de uma determinada procedência em uma tre a tendência à insubmissão da escravaria baiana - onde de fato eclodem no século XIX diversas
mesma capitania. Como sinal desta política, Nina Rodrigues (1932) e revoltas malês - e o fato de que "quase a população inteira daquela província é originária da Costa
do Ouro" (GARDNER, 1846). Relaciona também, é verdade, que os africanos predominantes na
Gilberto Freyre (1933) chamam atenção para uma carta escrita em fins escravaria baiana tinham "energia mental superior" devido às suas "íntimas relações com os rnou-
ros e árabes".

30. Conforme registra Ramos (1979: 214), acompanhando as pesquisas desenvolvidas em fins do
28. Na verdade, as diversidades tribais existem ainda hoje na África, e os atuais conflitos entre hú- século XIX por Nina Rodrigues (1932: 83), os principais líderes e responsáveis pelas sublevações
tus e tútsis em Ruanda são produtos da reunião em um mesmo país de tribos cujas mútuas hostili- malês na Bahia foram negros sudaneses das etnias Houssá, Tapa e Nagô, unidos pela religião islâ-
zações vinham crescendo desde o período colonial/Sobre a diversidade africana ver o ensaio de mica (RAMOS, 1979: 214). São bem significativos e sintomáticos os documentos apreendidos
BASIL (1981). Sobre os violentos conflitos entre tútsis e hútus que adquiriram sua expressão pela polícia por ocasião da repressão à revolta malê de 1835, que incluíam "papéis escritos em ca-
mais sangrenta em abril de 1994 com o massacre de cerca de 50.000 tútsis, ver o ensaio jomalísti- racteres árabes, mandingas, contendo versículos do Alcorão, palavras e rezas cabalísticas, etc."
co de HATZFELD (2005). (RAMOS, 1979: 215). Ver ainda Verger, 1987; Reis, 1996.

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que transcende todas as etnias, que as supera ou mesmo as cancela, era para a coordenada essencial dos contrários que pontuam as diferenças. E
precisamente o procedimento-chave. que a seu tempo as ideias abolicionistas passaram novamente a discutir a
Por outro lado, se para fins de censo e controle era preciso classificar escravidão como desigualdade, e não mais como diferença, marcando o
de algum modo os negros despejados pelo tráfico no Brasil, também se r~torno dis;~ursivo de uma noção ~ue já havia pertencido ao plano da de-
operava a construção de novas diferenças, muito pouco coincidentes com sigualdade . Este processo de releitura das noções que haviam dado su-
as realidades étnicas originais. Incorporava-se à identidade do negro uma porte ao sistema colonial, e o seu redesligamento umas das outras, mostra
procedência geográfica que via de regra relacionava-se aos portos africa- como as desigualdades ou diferenças estão sujeitas a deslocamentos que
nos de tráfico que os haviam exportado para o Brasil, independente de correspondem a transformações sociais mais profundas que se proces-
sua verdadeira origem. Cabindas e congos, por exemplo, eram designa- sam na sociedade.
ções que tinham origem em portos ou circuitos de tráfico específicos,
como veremos oportunamente. Angolanos, benguelas, ou mesmo minas,
eram referências a circuitos geográficos onde apareciam embaralhadas
muitas etnias.
Mas à parte as classificações impostas por necessidades práticas, o
delineamento de uma dimensão racial "negra" por oposição ao "branco"
firmou-se mesmo como a peça-chave de um novo constructo ideológico.
Com isto, o negro no Brasil e no resto da América passou a ser visto como
uma realidade única e monolítica, e com o tempo foi levado a enxergar a
si mesmo também desta maneira. Perdidos os antigos padrões de identi-
dade que existiam na África, o negro afro-brasileiro sentiu-se 'compelido a
iniciar a aventura de construir para si uma nova identidade cultural, adap-
tando-a à própria cultura colonial. Com isto iriam surgir novos padrões
religiosos, diversificadas alternativas sincréticas, uma nova arte e uma
nova música, e tantas outras contribuições que já não são propriamente
africanas. Daí que não se pode falar propriamente de uma componente
cultural africana de nossa sociedade, mas sim de uma componente afro-
brasileira, inauguradora de novas especificidades.
Conforme se vê, ocorreu neste processo histórico o entrelaçamento
de uma noção que habita ou deveria habitar o plano da desigualdade so-
31. Conforme veremos oportunamente, há um sinal claro de que nas duas últimas décadas escra-
cial (a noção de escravo) com estas duas diferenças culturais que foram a
vocratas começa a se impor um discurso da "escravidão como desigualdade" contra os discursos
negritude e o pertencimento africano (ou pelo menos a procedência ou a da "escravid~o ~o~o dife:ença", entre estes aquele que se apoiava na representação da diferença
ancestralidade africana). Obviamente que, mais tarde, estas noções fo- negra como indicativo de inferioridade. Referimo-nos ao fato de que, para os abolicionistas e mes-
~o outros, a a~ol~ção deveria passar a ser discutida dentro de um conjunto de outras reformas que
ram se desentrelaçando. Já mencionamos o fato de que fez parte da mon- vlsa~a~ a su~nmlr ou minimizar desigualdades sociais. Por exemplo, discute-se a abolição da es-
tagem ideológica do sistema colonial o deslocamento da ideia de escravi- cravidão conjuntamente com a reforma do sistema fundiário. Sobre isto ver a análise do brasilia-
nista Richard Graham (1979), e também um artigo específico de Cláudia Andrade dos Santos so-
dão, que passou do eixo circunstancial e contraditório da desigualdade bre esta questão (2005).

48 49
nova descida através da segunda diagonal, e retorno ao vértice inicial
através da vertical esquerda)".
Um exemplo de percurso através do "esquema negativo" poderia ilus-
,. A construção social da cor trar o processo de construção da moderna diferenciação entre negros e
brancos nas sociedades pós-coloniais. Na realidade africana pré-colonial
tinha -se as várias diferenças intertribais (vértice superior direito). O tráfi-
co negreiro embaralhou estas diferenças percebidas pelos africanos e, a
partir de uma indiferenciação, igualizou todos os negros (descida pela se-
gunda diagonal e subida pela vertical esquerda até o vértice da igualda-
Quando esquematizamos em momento anterior as relaç~es."entre de). O restante do percurso é já conhecido: produção de desigualdade
igualdade, diferença e desigualdade, havíamos ress~ltado que o tnangu- através da escravidão e, na sequência, transformação desta desigualdade
10 semiótico da igualdade" era ainda um esquema incompleto. ~le pode em diferença entre negros escravos e brancos livres (retorno ao vértice
ser espelhado, de modo a se tornar um quadrado semióti~o ~erfelto, bas- superior direito, agora configurando um novo tipo de diferenciação).
tando para isto acrescentarmos uma nova noção: ~ d~ mdiferença .(p~r Desconstruída a escravidão pelo posterior processo abolicionista, a per-
oposição contraditória em relação à diferença). A .•ndl~erença (ou indi- cepção de uma diferenciação "racial" entre negros e brancos continuou
ferenciação) corresponde a ignorar, contestar, rediscutir ou des~rezar as contudo a fazer parte das percepções sociais mais significativas. A cor, na
diferenças. Completo, o quadrado semiótico das igualdades e diferenças realidade brasileira pós-colonial, passou então a constituir uma diferença
que habita o plano da essencialidade social e política. Mas a verdade é que
ficaria assim:
a percepção deste tipo de diferença enfaticamente calcada na cor é uma
questão cultural (embora a cor, ou a pigmentação da pele, constitua um
Igualdade
--------- Diferença
aspecto natural no sentido biológico)".

Indiferença
>< - - - • Desigualdade

(Quadrado Semiótico da Igualdade)


A "construção social da cor" deu-se e dá-se de modo tão particular-
mente intenso no mundo moderno que todos - "negros" e "brancos", ou
outras cores que se queira acrescentar - aprendem de um modo ou de ou-
tro a enxergar o mundo a partir desta e de outras diferenciações, as quais

32. Segundo Greimas e Courtés (idealizadores do quadrado semiótico) o segundo percurso previs-
to é o "esquema negativo": do vértice superior direito ao inferior esquerdo através da segunda dia-
o quadrado completo ajuda por um lado a c~arificar a leitura ~e al- gonal, daí ao vértice superior esquerdo através de um movimento vertical, nova descida através da
primeira diagonal e retorno vertical ao vértice superior direito (GRElMAS & COURTÉS, 2002).
guns dos processos histórico-sociais atrás descnto_s, com~ o da ongem
33. É sempre importante ter em vista que - dentro do quadro mais amplo dos sistemas humanos
da escravidão como desigualdade, sua transmudaçao em diferença atra- que selecionaram a cor como aspecto relevante a ser socialmente percebido - cada sociedade pro-
vés do discurso escravocrata, e a não-diferença depois proposta pelo duz o seu próprio sistema de percepção da cor, com seus critérios e modos de percepção. Confor-
me veremos oportunamente, muitos indivíduos que no Brasil não se veem ou que não são vistos
discurso abolicionista de modo a reconduzir a discussão ao eixo da como negros ou pardos podem se surpreender ao se sentirem percebidos ou identificados como
igualdade. Este é o percurso semiótico através do chamad~ "es~ue.ma negros nos Estados Unidos. É suficiente lembrar a chamada One drop rufe, a "regra de uma gota
positivo" (descida pela primeira diagonal, subida pela vertical direita, de sangue", que foi estabelecida pela legislação da Virgínia e que definia como negro todo aquele
que tivesse, pelo menos, uma gota de sangue negro ou então um ancestral negro conhecido.

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acabam se tornando por isto mesmo socialmente significativas e~ ~etr~- Estas inúmeras distinções, como já se deu a perceber, podem ser de or-
mento de diferenças que só aparecem como relevantes no âmbito indi- dem natural ou cultural. Mas nem todas as diferenças naturais e culturais
vidual (cor dos olhos, altura, desenho do rosto, espessura do corpo). A são selecionadas como diferenças sociais. Vale dizer, muitas vezes elas
criança contemporânea, "negra" ou "branca", se quisermos permanecer permanecem apenas como distinções que não chegam a gerar a formação
nesta dicotomia, cedo é ensinada a apreender a realidade humana de .um.a de agrupamentos, estratificações, processos de discriminação, processos
determinada maneira, a dirigir olhar para a percepção da cor e a atribuir de afirmação de identidade social, e assim por diante.
um valor social a esta cor (a enxergá-Ia como distintivo de identidade, e a
Será nosso objetivo nas próximas linhas refletir sobre a construção
devotar a ela orgulho, simpatia ou preconceito). Mas seria perfeitamente
social da cor neste Brasil que remete à montagem do sistema escravis-
possível imaginar um mundo em que a diferença de cor aband~na~se o
ta-colonial, verificando inicialmente que diferenças foram sacrificadas no
plano das relevâncias sociais e se deslocasse para o plano das significa-
altar desta diferença maior que se relaciona à cor socialmente percebida,
ções individuais. Este deslocamento encontra-se, no limite imaginári~,
e que materiais históricos e culturais foram remodelados para a constru-
com o fim das chamadas desigualdades raciais. Mas, de qualquer manei-
ção dos ídolos da pigmentação e despigmentação. Em seguida, será o
ra, permanece como questão polêmica a definição de qual seria o ~e.lh~r
momento de examinar o processo de desigualdade social que se instaura
caminho para conquistar o tão sonhado fim das desigualdades SOCIaiSh-
nesta construção, que a ampara, que absorve ou supera, através do escra-
gadas à percepção da cor da pele: a afirmação das "identidades raci~is"
vismo colonial, outras formas de desigualdade escrava que o precederam
para lutar concomitantemente pela "igualdade entre as ~aças.", ou srm-
na própria África. Processo desigualador, enfim, que prossegue para de-
plesmente a diluição do conceito de raça de modo a extinguir gradual-
pois da própria abolição, mas já fugindo aos horizontes de análise que
mente a percepção social da cor?
aqui propomos. Retornemos, por ora, aos primórdios, à realidade africa-
Não importa o caminho que seja tomado coletivamente p~ra enfrenta- na que precede o tráfico.
mento desta que é possivelmente uma das mais complexas ~questões das
sociedades democráticas, será sempre papel dos cientistas sociais e hu-
manos chamar atenção para a historicidade de algumas das diferenças
que se tornaram basilares nas sociedades modernas. A este propósito, é
muito importante lembrar que, mesmo no que se refere aos chamados as-
pectos naturais, a própria seleção social daquilo que será destacado como
diferença relevante é também um produto histórico. Tirando as d.iferen-
ças sexuais e etárias, que se impõem naturalmente - e~bo/r~ com nt~os e
intensidades distintas nas várias sociedades e épocas históricas - existem
dezenas de especificidades biológicas que não são percebidas ou valora-
das socialmente, e outras que podem sê-Io. Por que as diferenças de pig-
mentação da pele são selecionadas socialmente como diferenças, inclusi-
ve motivando preconceitos e formação de identidades, e não as diferenças
de tipos sanguíneos, por exemplo? Na sua enorme diversidade dentro da
espécie humana, todos os homens apresentam inúmeras diferenças de
uns em relação aos outros, e inúmeras possibilidades de agrupamentos.
nente africano;'. Falando em diversidade, aliás, à altura da chegada dos
invasores europeus o continente também abrigava cinco das seis grandes
divisões da humanidade. Povos caucasianos diversos (hamitas e semitas)
_ Um mapa das diferenças habitavam o norte. Os povos negros, com divisões que logo discutiremos,
5 africanas no início do estavam espalhados em toda a África ao sul do Equador. A matriz asiática,
misturada à negra, fazia-se representar através de uma singular população
dSfil período moderno que habitava Madagascar, como consequência de uma migração indoné-
sia que ocorrera muito tempo antes da chegada dos europeus à África. Pig-
meus e bosquímanos eram duas outras divisões bem singulares, sendo que
estas só podiam ser encontradas mesmo na própria África. A rigor, apenas
a sexta matriz que é apontada como uma das seis grandes divisões de tipos
populacionais humanos, a dos aborígines australianos, não se fazia repre-
Vimos em exemplo firmado anteriormente que na África pré-colo- sentar de algum modo no mosaico africano já nos primórdios da era mo-
nial os africanos percebiam diferenciações intertribais que eram muito derna. A África, além do mais, conforme hoje se sabe com razoável preci-
claras para eles, gerando padrões de solidariedade e hostilidade. Dife- são através das pesquisas de DNA, era na verdade a mãe da humanidade.
renciações de altura, de espessura labial, de contorno do rosto ou de Ali, em alguma região da Etiópia, há 6.000 anos, se constituíra o habitat de
tipo de cabelo podiam ser tão ou mais importantes para compor a distin- um Adão e de uma Eva etíope, metaforicamente falando, dos quais descen-
ção de etnias do que o tom da pele - sem contar que as várias sociedades dem todos os seres humanos modernos (enquanto isto outras "raças hu-
tribais acrescentavam a estas diferenças naturais outras de ordem cultu- manas", como os homens neanderthais, desapareceram da história da huma-
ral, como um corte de cabelo, o uso de brincos, a utilização' de determi- nidade em algum momento sem deixarem descendências genéticas).
nada indumentária, e assim por diante. A empresa do tráfico negreiro Será oportuno considerar o forte impacto que esta rica diversidade
embaralhou estas percepções e, ao mesmo tempo em que deslocava par- humana deve ter causado nos portugueses, primeiros povos europeus a
te da humanidade africana para as Américas, favoreceu a percepção de percorrerem mais sistematicamente o continente africano. A parte seten-
uma nova dicotomia a partir da pigmentação ou não da pele. Muitas das trional da África, com povos diversos que vão dos berberes aos egípcios,
comunidades tribais africanas foram então igualadas, no imaginário já desde os tempos antigos e medievais oferecia aos europeus uma diver-
ocidental, em função do único aspecto que algumas delas pareciam ter sidade bem conhecida - embora não ainda uma diversidade negra, já que
em comum: uma certa semelhança na cor, quando postas em contraste neste norte-africano mais imediato predominavam os povos hamitas e se-
mitas de matriz caucasiana. Contudo, na medida em que, a partir do sé-
com o padrão europeu.
culo XV, os europeus começam a avançar no litoral africano e a adentrar
Tudo isto está intensamente impregnado de história, e o material hu-
mano sobre o qual se construiu esta história é certamente o mais rico em
diversidade do planeta. Na verdade, nenhum outro continente abrange 34. Cabe a Greenberg (1963) o mais detalhado panorama das aproximadamente 1900 línguas
africanas, que de acordo com o autor acham-se divididas em quatro troncos linguísticos: con-
uma diversidade análoga à da África, e só para registrar um dos sintomas go-cordofaniano, nilo-saariano, afro-asiático e coissã. O tronco congo-cordofaniano divide-se
desta impressionante variedade humana vale lembrar que um quarto das em duas grandes famílias: a niger-congo, que reúne mais de mil línguas, e o ramo cordofaniano. A
maior parte dos africanos trazidos ao Brasil estão relacionados a dois dos ramos da família ni-
atuais línguas em uso no planeta concentram-se precisamente no conti- ger-congo: as famílias linguísticas banto e kwa (esta ligada ao circuito sudanês).

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' . para além das regiões que já lhes eram mais imediatam~nte c~: As partes superiores da região" 1" e "2", naturalmente, correspon-
a Af rIca ,. . 1" o - Ja
hecidas da época das províncias romanas e do domínio lS.amlc. . dem a regiões bem conhecidas dos europeus de longa data, pois muitas
n em busca de ouro e de homens -lá encontrariam à partida dOISCl~- delas haviam sido inclusive províncias do Império Romano, mais tarde do
agora " b m os quars Império Bizantino, e depois áreas sob o controle dos povos islâmicos,
cuitos de civilização mais evidentes, o sudanes e o anto, co
ainda não estavam familiarizados. com os quais os países do ocidente europeu já travavam contatos de inter-
O quadro abaixo apresenta um mapa bastante simplificado das gran- câmbio e hostilidades desde a Idade Média. Toda a vasta área inferior da
des áreas culturais africanas, válido para o momento em que os po:tugue- área" 1" corresponde ao deserto do Saara, e a civilização mais célebre da
- . - om a Africa Ne- área "2" é evidentemente o Egito. Como se disse, os povos que à altura da
ses estabelecem suas primeiras incursoes e ínteraçoes c
, 1 XV e XVI As áreas em sombreado conforme veremos, expansão ibérica habitavam estas áreas do norte, dos berberes aos egíp-
gra nos secu os· ' , b
cor~espondem àquelas que mais ofer~ceram escravos .ao trafi~_o, em ora cios, eram na verdade de matriz caucasiana, e não estamos portanto ain-
mais tardiamente a costa oriental da Africa e em especl~~ ~,regIao sudoes- da no âmbito da África Negra.
te correspondente a Moçambique (centro-sul da zona 8 ), tenha:e ~~r- A África Negra começa mais propriamente ao sul destas duas grandes
nado também uma região igualmente importante no que se refere a diás- regiões que eram mais conhecidas dos europeus. Tinha-se à noroeste da
pora de negros em direção ao Novo Mundo. costa africana, logo abaixo da região saariana, e entrando pelo interior
africano na direção leste, o circuito de civilização dos sudaneses (zonas
"4" e "5", correspondentes à região sudanesa ocidental e à região suda-
nesa oriental), e mais ao sul o circuito de civilização dos bantos, para a
qual podemos dar como referência a área do Congo e de Angola (zona
"7")'6. Esta zona cultural, aliás, apresenta importância primordial para a
afrodescendência brasileira, uma vez que pesquisas recentes de rastrea-
mento do DNA puderam comprovar que foi precisamente desta região
que veio a maior parte dos negros submetidos à escravidão no Brasil".
Por outro lado, o circuito sudanês forneceu maior número de elementos
para a área da Bahia, além de ter trazido uma contribuição cultural mais
intensa para o país inteiro, através da difusão excepcional de uma cultura

36. Na verdade, os povos bantos estão espalhados por uma vasta região do continente africano, e
sabe-se que há cerca de 3.000 anos teria ocorrido um interessante fenômeno de migração popula-
cional que ficou conhecido como "expansão dos bantos". Os primeiros bantos teriam saído de al-
gum lugar perto do atual Camarões para terminar por ocupar, em um processo de expansão bas-
tante rápido, quase todo o centro, sudeste e sul da África.
. . . d M d ( daptado de um mapeamento proposto 37. A pesquisa em questão - objetivando estimar o predomínio dos povos de diferentes regiões
Mapa de zonas culturais africanas, no irucso da Ida e o ema a íts) (RAMOS 1979' 33)35
por Arthur Ramos, com base nas "áreas de cultura" de Malville Herskovlts ,.' africanas relativamente à ancestralidade das populações negras das três Américas - foi encami-
nhada por pesquisadores diversos na Universidade de Santiago de Compostela, sob a coordena-
ção do biólogo Antonio Salas. Se o circuito banto congolês-angolano mostrou-se a principal fonte
A lturas negras do Novo Mundo de ancestralidade para os afrodescendentes brasileiros, já com relação aos Estados Unidos e Amé-
35. O mapeamento cultural proposto por Art hur Ramo~ em seu. kovits em "A reli-
(RAMOS 1979: 33) corresponde às proposições antenores de ~elvllle Hers. P rica Central (representada por Panamá, Belize e República Dominicana) mostrou-se uma presen-
manry consideration of the culture areas of Africa" in The Amenean Anthropologlst, XXVI. ça bem maior de povos do oeste da África (golfo da Guiné e zona sudanesa ocidental).

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de base yorubana, que acabou se transformando em uma mediação deci- gião da Guiné iremos encontrar algumas interpenetrações relevantes en-
siva para a formação da cultura afro-brasileira". t~~ sudaneses e bantos, mas sendo preciso notar que os povos desta re-
A região da Guiné (zona "6") - ao sul do circuito sudanês ocidental e giao expre~sam-se habitualmente em línguas que os filólogos e antropó-
a oeste do Congo - veio também a se constituir de máxima importância logos relacionam com o circuito Iinguístico sudanês (família linguística
para as origens negras dos povos brasileiros, já que de lá veio a segunda kwa), sendo a este circuito, em última instância, que se deve associar os
africanos que habitam a Costa da Guiné.
maior parte dos escravos africanos exportados para o Brasil. Contudo,
cresce ainda mais a importância desta região quando se atenta para o fato Duas regiões que devem ser associadas ao circuito de expansão dos
de que algumas das mais marcantes contribuições para a cultura afro- bantos são as zonas "8" e "9". Esta última, através da região mais ao sul, e
brasileira provém desta parte da África Ocidental, como é o caso do Can- que corresponde a Moçambique, tornar-se-ia mais tardiamente também
domblé' de origem iorubana". Além disso, nunca é demais lembrar que um importante circuito exportador de população negra para o Brasil, so-
nesta mesma região se encontram os grandes berços de uma arte negra bretudo a partir do momento em que o tráfico começa a ser proibido e os
que seria tomada como uma descoberta renovadora pelos artistas euro- circuitos negreiros da África Ocidental começam a se desativar". Por ou-
peus do século XX - e nesta direção é oportuno lembrar as máscaras e es- tro lado, tanto a documentação histórica como a pesquisa de DNA de-
culturas do Benin, do Daomé, da Costa do Marfim". Densamente povoa- monstram-no, a parte mais ao norte da banda africana oriental- corres-
da, interessa mais particularmente à nossa discussão o fato de que na re- pondente ao Ouênia e à Tanzânia - contribuíram bastante modestamente
para o tráfico negreiro com destino às Américas". Da mesma forma, a
38. A preponderância de bantos ou sudaneses na realidade escravista brasileira já foi palco para zona "3", a "ponta oriental" ao norte, apresenta ainda menor importância
acirradas polêmicas, Spix e Martius, à época em que viajaram pelo Brasil, deram início a uma para o tráfico negreiro, incluindo as áreas das atuais Etiópia e Somália.
crença de que os escravos brasileiros eram oriundos quase que exclusivamente do circuito banto.
Na passagem do século XIX para o XX, Nina Rodrigues, o primeiro investigador a tentar empre-
Contudo, será conveniente lembrar que pesquisas recentes envolvendo
ender uma pesquisa efetiva das origens negras do povo brasileiro, estabeleceu' a tese da "prepon- uma ampla investigação acerca da herança genética da humanidade che-
derância sudanesa" ao chegar à conclusão radicalmente oposta de que a maior parte dos escravos garam a conclusões de que é precisamente aí que se encontra, em cer-
brasileiros tinha origem sudanesa, uma vez que seu universo de análise era a Bahia, onde isto de
fato ocorrera. Arthur Ramos, embora seguidor de Nina Rodrigues, e escrevendo já na primeira ta região da Etiópia, o berço de toda a humanidade moderna, há 60.000
metade do século XX, procurou situar-se equidistantemente do que ele chamou de "exclusivismo anos. Mas esta é certamente uma outra questão.
banto" e "exclusivismo sudanês". A verdade é que hoje, já de posse das informações relativas às
pesquisas do DNA, os estudiosos puderam confirmar que no Brasil (ao contrário dos Estados ~ara completar um quadro mais amplo da diversidade afro-negra, é
Unidos e Antilhas) a preponderância foi mesmo banta, embora de fato a Bahia tenha registrado preCISOressaltar ainda que, no centro do continente africano, também se-
uma excepcional concentração de etnias ligadas ao circuito sudanês. Sobre a preponderância su-
danesa na Bahia, ver Verger, 1987; Reis, J 986 e Andrade, 1988.
39. Os yoruba - ou nagôs, como se tornaram conhecidos de acordo com uma denominação mais
geral- praticamente emprestariam o tom de mediação cultural que daria uma certa unidade às et- 41 ..No Congresso de Viena, em 1814, a Inglaterra iria atuar decisivamente no sentido de influenciar
nias sudanesas puras que encontraram seu lugar na Bahia. Entre outras expressões culturais, o ou Impor aos demai~ ~a~es europeus a política de abolição do tráfico de escravos. A partir daí, sur-
Candomblé se origina desta cultura de mediação que tem nos yorubas os seus personagens princi- gem tratados de proibição e repressão ao tráfico negreiro: o Tratado de Ashburton - assinado em
pais. Por outro lado, autores como Robin Law (1977) e Lorand Matory (1998) chamam atenção 1842 entre Inglaterra e Estados Uni~os - propunha que, cada um destes países conservasse uma es-
para o fato de que yoruba é ainda uma construção identitária posterior, no nível transatlântico quadra ~e poh~lamento na costa da Africa, para reprimir o tráfico. Mas antes disto, já em 1810 a In-
e não propriamente africano, envolvendo a posteriori povos diversos como os ljêbú, os Egbá, os ~Iate.rraI~pona a D. João VI a declaração da ilegalidade do tráfico, o que, como efeito reverso, aca-
Egbádà, os Ondó, os Ekiti, os Oyó_ ou Implicando o aumento do contrabando de escravos para o Brasil, sendo que estes passaram a
ser desembarcados em lugares escondidos e pouco visados, e vendidos no próprio desembarque.
40. Na verdade, desde o início do século XVII os comerciantes portugueses e holandeses já ha-
viam levado para a Europa os primeiros objetos de marfim e bronze provenientes da arte Benin, de 42. Para estas regiões, de acordo com a pesquisa da Universidade de Santiago de Compostela, os
modo que o que ocorreu no princípio do século XX foi uma redescoberta destes objetos pelos ar- genes confirmam que em nenhuma região das Américas a contribuição populacional do Quênia
tistas fauvistas e cubistas. da Tanzânia, e da Etiópia, ultrapassa 4,5%_ '

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ria possível encontrar uma linha de humanidade bem singular, a dos pig- vos negros por vezes de tonalidade mais clara 4<, mas englobando etnias de
meus, e no extremo sul da África (áreas" 1O" e "1 1") os bosquímanos e ~parênci~ muito ~iversificada, talvez em decorrência de interações gené-
hotentotes, notando-se que todos estes povos de baixa estatura corres- ticas de diversos tIpOS, em momentos vários de sua história genética, com
pondem a matrizes genéticas bem diferenciadas em relação aos povos ne- os povos hamitas, semitas ou mesmo com os negrilhos (pigmeus). Diver-
gros relacionados aos circuitos civilizacionais sudanês e banto. sificada também, certamente, em virtude de um complexo jogo de muta-
Concentremo-nos por ora nos sudaneses e nos bantos. Dentro destes ções no nível dos cromossomos e das mitocôndrias, pois estamos aqui fa-
dois grandes grupos - cujas regiões em sombreado correspondem à parte lando de milhares de anos de desenvolvimentos genéticos e do berço con-
da África que mais ofereceu ancestrais africanos para o Novo Mundo - tinental da própria humanidade. Por outro lado, o circuito de civilização
encontraremos na verdade inúmeras etnias, com diversas aparências, lín- dos sudaneses, em particular nas áreas que começam a se aproximar dos
guas distintas, hábitos diversificados, maneiras de se enfeitar e vestir, e povos do norte da Africa, deve ser compreendido ainda como uma área
modos próprios de expressar a religiosidade ou a relação com o mundo onde em diversos pontos se confrontam as culturas locais com o circuito
natural e sobrenatural. Rica de ambientes geográficos e paisagens várias, islâmico. Neste sentido, deve-se entender tanto o circuito sudanês como
a África permitia que estas etnias também se distribuíssem um espaço o banto enquanto territórios de diversidades, de encontros genéticos, ét-
multidiversificado, das savanas e densas florestas aos mais ásperos de- nicos e civilizacionais vários".
sertos. Esta multiplicidade de ambientes geográficos e ecológicos, aliás, De qualquer modo, ainda que possam ser estabelecidas aquelas duas
também deixou a sua contribuição para a diversidade de povos africanos e divisões mais gerais entre sudaneses e bantos, as etnias internas a estes
de etnias negras, em particular. O meio físico e o ambiente natural, não há dois grupos são de uma multidiversidade que impressiona, não apenas no
como negar, bem como as possibilidades de interação do homem com es- que se refere a caracteres físicos como, sobretudo, do ponto de vista cul-
tes, são linhas de força inquestionavelmente importantes para a formação tural. De igual maneira, há uma história de diversidade política, de reinos
da variedade humana, em especial quando estamos falando ,de séculos de e impérios que existiram nestes dois circuitos, com considerável diversifi-
história genética e de uma riquíssima história da adaptação do homem a
diversificados ambientes", É neste quadro de ampla variedade natural que
se produziram as várias etnias africanas, algumas das quais conviven- 44. Apoiando-se dos estudos de Haddon (1925) e buscando encetar uma descrição mais generali-
do menos ou mais harmoniosamente entre si, outras se enfrentando em zante da aparência física dos bantos, o que certamente é extremamente difícil dada a sua diversi-
dade de grupos internos, Gilberto Freyre os descreve do seguinte modo: "na cor, de um pardo-es-
guerras por vezes brutais. curo, chocolate, diferente do amarelo-sujo ou do pardo-claro, avermelhado, dos fulos, tanto
À parte esta diversidade de modos de convivência, o que importa do quanto da cor de couro dos hotentotes e dos boxímanes ou do preto-retinto dos naturais da Gui-
né: dolicocéfalos (havendo entretanto grupos de mesocéfalos): menor prognatismo que o dos ne-
ponto de vista da autopercepção dos diversos povos africanos em relação gros considerados 'puros', o nariz mais proeminente e estreito" (FREYRE, 2002: 412).
às suas próprias etnias é que elas eram singulares e únicas. De saída, res- 4.5.Apenas para dar um exemplo entre tantos, citaremos o caso dos lembas - um povo negro que
salta muito claramente a distinção física dos grupos sudaneses - constituí- vl~e.ao s~1d~ Rio.Limpopo, na parte sul do continente africano, e que segundo suas próprias me-
monas tribais teria como ancestrais judeus vindos do norte. As pesquisas genéticas realizadas em
dos de indivíduos altos e de pele mais escura - em relação aos bantos, po- 1997 confirmaram estes relatos e verificaram que de fato os lembas possuem um terço dos seus
cr~~ossomos Y ligado a material genético de origem banta, e dois terços originários do Oriente
MedIO (OLSON, 2003: 134). Possivelmente (esta é uma hipótese bem plausível) os lembas des-
cendem de um grupo de judeus que teria migrado para a África durante a diáspora, ali se relacio-
43. "A diversidade dos povos da África resultou de sua geografia variada e de sua longa pré-histó- nando com um grupo banto e produzindo esta etnia que é hoje conhecida pela denominação "lern-
ria. A África é o único continente que se estende da zona temperada do norte ao sul. Também b~". Este exemplo, e outros que poderiam ser dados, mostra bem claramente que a África Negra
abrange alguns dos desertos mais secos do mundo, as maiores florestas tropicais, e as montanhas nao era um compartimento fechado, e que algumas das etnias negras certamente se originaram de
equatoriais mais altas" (DlAMOND, 2006: 378). contatos com povos hamitas e semitas.

60 61
cação. Apenas para mencionar o circuito sudanês, ali se ergueram reinos As fontes da época e as pesquisas mais sistemáticas sobre o escravis-
e impérios como os reinos de Songoi e de Mali, o império de Ghana, a he- mo-colonial dão a perceber que em diversas situações, estas marcas - que
gemonia dos Bambaras; e, mais abaixo, na região da Guiné, despontaram certamente representavam questões vitais no contexto original africano
os célebres reinos do Benin, do Daomé, do Ashanti. de alianças e hostilidades étnicas - foram preservadas mesmo na descen-
Vamos nos ater por ora aos aspectos étnicos, e culturais de modo ge- dência africana do novo mundo escravista, e não é por acaso que encon-
ral. Entre os chamados sudaneses, nada mais diverso do que um uolof traremos em dicionários do início do século XIX esclarecimentos como o
oriundo da região senegalesa em relação a um bambara ou a um mandin- de que o nagô era um "negro iorubano que usava três lanhos no rosto"
ga do oeste sudanês. Difícil enquadrar em um unificado grupo dos "ne- (MORAIS SILVA, 1922). Da mesma forma, oufons - negros proceden-
gros", ou mesmo em um grupo negro apenas bipartido em sudaneses e tes do Daomé central que podiam ser encontrados na Bahia - tinham esta
bantos, etnias tão diversas como as dos zulus, ibos, guissamas, peuls, tan- designação que significava "de cara queimada" porque usavam como ta-
gas, mabingelas, baçumbis, tantas outras. tuagem étnica uma queimadura na fronte (RAMOS, 1979: 202).
As diferenças entre as diversificadas etnias negras, inclusive, não se As "escarificações", estes cortes com lâminas que em diversas etnias
afirmavam apenas através dos caracteres físicos herdados geneticamente. africanas eram aplicados na face de cada indivíduo já desde os cinco ou
A cultura, de acordo com a perspectiva antropológica, faz parte do dife- seis anos de idade, passavam de fato a integrar a fisionomia de cada mem-
renciador étnico tanto quanto os índices biológicos. Tanto as fontes da bro da comunidade étnica e a constituir um forte designativo de identida-
época como as conclusões de pesquisas já clássicas ou mais recentes têm de. Se por alguma razão mais grave a coletividade decidia banir definiti-
contribuído para ressaltar o peso dos índices culturais na constituição das vamente o indivíduo, renegando-o socialmente, impunha-se inclusive um
identidades africanas e, logo, na sobrevivência de algo destas identida- processo inverso, e doloroso, de retirar a escarificação do rosto. Com isto
des na realidade do escravismo colonial. Paul Lovejoy (LOVEJOY, 2002: o indivíduo que deixava de pertencer à nação perdia a identidade, de um
9-39; LIBANO et aI., 2003: 34) já observava que as nações negro-africa- modo visível a todos.
nas tinham (e ainda têm) seus modos diferentes de cortar o cabelo e eram Cortes de cabelo, marcas faciais, tatuagens, vestimentas, objetos de-
reconhecidas por estas marcas, que identificavam a que etnia ou a que corativos ... todos estes sinais, enfim, assim como uma infinidade de ou-
parte do território pertenciam alguns indivíduos. Assim, para alguém fa- tros, eram muito visíveis e portadores de significado para os africanos, e
miliarizado nos tempos coloniais com os diferentes cortes, não haveria também para os traficantes europeus que precisavam lidar diretamente
qualquer dificuldade em reconhecer a que lugar este ou aquele homem com os povos da África.
pertencia. Do mesmo modo, a presença de certo tipo de bracelete, de Havia ainda os sinais oriundos de infiltrações ou transferências cultu-
determinada peça de vestuário ou de algum tipo de tatuagem na testa - e rais diversas, que já haviam se superposto a certas etnias na África, e que
mesmo já em terras brasileiras - também podia identificar a pertença a são depois conservados pelos escravos africanos no Brasil ou repassados
certa nação (LIBANO SOARES et aI., 2003: 34). No norte do Zaire, para também aos escravos afrodescendentes ligados a estes grupos. O exemplo
registrar outro exemplo, os tios (tekes) usavam "cinco ou seis linhas rasas mais notório pertence ao campo da religião. Os negros islamizados que
paralelas desenhadas das sobrancelhas ao queixo, passando pelos ossos foram introduzidos no Brasil, tal como já lhes ocorria na África, costuma-
da face" (KARASH, 2000: 53r6• vam usar um pequeno cavanhaque, bastante característico. Em vista dis-
to, frequentemente era possível reconhecer o negro islamizado nos seus
primeiros tempos de escravidão através do cavanhaque, pelo menos até
46. Os tekes foram chamados no período colonial de angicos.

62
que esse sinal característico não desaparecesse no cadinho indiferencia- ainda são hoje em certas regiões da África Acomodar lado a lado, em
4H

dor da escravidão do Novo Mundo. Via de regra, algumas das etnias de uma única designação, algumas das mais diferentes etnias negras seria
sudaneses maometanos não se misturavam com os negros não-islamiza- análogo a colocar no mesmo "barco caucasiano" os berberes líbios e mar-
dos, e por isto o cavanhaque e outros indicadores se transmitiam d~ indiví- roquinos, os hamitas egípcios e os dinamarqueses do início do período
duo a indivíduo como um elemento distintivo a ser observado. E o que moderno, sob o pretexto de que todos estes povos participariam da mes-
ocorre, por exemplo, com os haúças, um pequeno grupo de negros islami- ma matriz caucasiana, isto é, dos tons de pele considerados de raça bran-
zados que foi introduzido na Bahia, e que teria um papel decisivo na lide- ca. A qualquer um parece ocorrer de modo mais imediato que não apenas
rança de outros negros sudaneses - como os tapa e os nagô - terminando ..berberes, antigos egípcios e dinamarqueses são bem diferentes nas suas
por se destacar nas célebres sublevações malês (RAMOS, 1979: 214)47. aparências, como também, sobretudo, diferenças culturais são muito
Alguns dos diversos sinais trazidos pelos africanos escravizados, em- marcadas nestes três povos - os berberes com seu modo de vida específi-
bora não todos e nem sempre, perderão ocasionalmente sua maior signi- co e sua forma particular de adesão ao islamismo, os egípcios com uma
ficação no mundo escravista das Américas, e os barbeiros ambulantes das mais singulares histórias do planeta, os dinamarqueses com seu pas-
(eles mesmos negros) que Debret descreve na sua Viagem pitoresca e his- sado vicking e sua cultura ambientada nas frias regiões do norte europeu.
tórica ao Brasil parecem ter já o direito de elaborar criativamente cortes Sintomaticamente, o que fez a empresa do tráfico no período moderno
diversificados nos cabelos dos negros - cortes que já perderam suas prer- foi isto: criar e limitar uma noção de "branco" à Europa Ocidental, des-
rogativas como sinalizadores de etnias negras, ao que parece: considerando outros povos caucasianos, e ao mesmo tempo condensar
Alguns, entretanto, mais hábeis, dotados mesmo do gênio do de- todas etnias da África Negra dentro do rótulo de "raça negra".
senho, distinguem-se pela variedade que sabem dar ao corte de
cabelo dos negros de ganho, sobre a cabeça dos quais desenham
divisões pitorescas, formadas por chumaços de cabelos cortados
com a tesoura e separados uns dos outros por pedaços raspados
a navalha e cujo colorido mais claro lhes traça o contorno de ma-
neira nítida e harmoniosa (DEBRET, s.d.: 185)

De todo modo, discursos e práticas das diferenças étnicas eram muito


eloquentes no continente africano do início do período moderno, como 48. Mesmo nas Américas, já se estendendo para o período pós-escravista, pós-colonial e chegan-
do à modernidade, ainda será possível encontrar em meio às populações negras da América Latina
grupos que se identificam com "nações" que remetem às origens africanas. Geralmente, a conser-
v~ção destas autopercepções de pertenças a "nações" foram buscar seu refúgio no plano das ma-
n~festações religiosas. Assim, no Brasil, conforme registram Roger Bastide (1978) e Vivaldo Costa
47. As insurreições dos haúças e nagôs na Bahia ocorrem em diversas oportunidades entre 1807 e Lima (1976), o universo nas nações de Candomblé conservam referências às naçõesjeje, nagõ e
1835, constituindo-se esta última na maior delas - uma revolta de fundo religioso envolvendo di- co~go-angola (na verdade, conforme veremos no decorrer de nossa argumentação, as duas pri-
versas nações negras islamizadas, entre as quais os nagôs, haúças, nupês, jejes, bornus e baribas. ~~Iras são etnias africanas já contemporâneas ao período de implantação do tráfico negreiro; já a
O movimento malê foi estudado por Nina Rodrigues no ensaio O africano no Brasil, publicado em última traz uma referência geográfica). De maneira análoga, Alfred Métraux, em seus estudos so-
edição póstuma (1932). Bem antes, contudo, foi examinado com especial enfoque na liderança bre o vodu haitiano, identifica as nações rada, nagõ e congo. Para outros casos, e também uma re-
muçulmana pelo abade Ignace Brazil Étienne, que o publicou em 1909 em um artigo para a revista ferência a autores que examinaram a preservação do sentimento de pertença a "nações" no Novo
Anthropos intitulado "A seita muçulmana dos malês do Brasil e sua revolta em 1835" (ÉTIENNE, Mundo, ver o ensaio "leje: repensando nações e transnacionalismo" de Métraux (1999). Por ou-
t 909). A referência definitiva sobre o tema é hoje a obra de João José Reis (1986). A palavra "ima- tro lado, vale registrar que alguns autores argumentam que na verdade estas nações assistiram a
lê", diga-se de passagem, significa "moslim" no idioma de yoruba, o que assinala o caráter islamita uma espécie de deslizamento de sua conotação política original para "um conceito quase exclusi-
do movimento. vamente teológico e ritual" (COSTA LIMA, 1977: 21).

64 65
traficante inglês do século XVIII, chamado George Hamilton, que depois
de comentar o momentâneo bloqueio do tráfico em certa localidade afri-
cana em virtude de uma violenta guerra entre os fantis e os elmines, dá a
A incorporação da "guerra das entender que investira todas as suas expectativas nos primeiros:

6
~oiS!i.'.ta",t~$;
diferenças tribais" ao sistema Se os fantis tivessem vencido, teríamos obtido à nossa conta oi-
tocentos a mil escravos em condições muito vantajosas; mas
iài:_,lRi'i:~
do tráfico como foram derrotados e mesmo obrigados a fugir, tivemos pre-
juízos realmente consideráveis, pois eu tinha sido extremamente
generoso com os chefes a fim de obter deles a garantia de, no seu
regresso, me concederem a prioridade dos escravos que trouxes-
A pasteurização das múltiplas etnias negras em um único grande grupo sem da guerra .
49

chamado de "raça negra" naturalmente só interessava - e ainda sim apenas


em parte - à ponta colonial do tráfico, ao sistema de recepção e aclimata- As diferenças étnicas, deste modo, interessavam em muito aos trafi-
ção do contingente de escravos africanos à América. Na África, os trafican- cantes que tinham de lidar na própria África com as operações de nego-
tes negreiros sempre souberam lidar com o jogo das etnias. Os conflitos in- ciação, compra e exportação de escravos. Estas diferenças, tal como eram
tertribais - já antiquíssimos no continente africano - eram frequentemente percebidas socialmente pelos próprios africanos, constituíam o seu mate-
ambíguos em seus resultados no que diz respeito à movente geografia do rial básico para insuflar conflitos e, a partir destes, gerar o consequente
tráfico negreiro, mas, no fim das contas, é fato inconteste que conservar as apresamento de escravos entre os perdedores destes mesmos conflitos.
divisões da humanidade negra na África interessava aos traficantes de es- As guerras tribais, deste modo, eram fundamentais para os interesses dos
cravos tanto quanto fomentar um novo tipo de unidade para a humanidade traficantes, e, embora não tenham sido inventadas por estes, caíam como
negra das colônias do Novo Mundo. O sutil paradoxo da empresa do tráfi- se fossem malhas bem ajustadas no corpo de práticas e estratégias reque-
co, cuidadosamente manipulado, era exatamente este: conservar as "dife- ridas pelo tráfico. Um analista inglês do início do século XIX, tomando
renças negras" (étnicas e intertribais) na ponta africana do tráfico, e dissol- por base os depoimentos de Mungo Park (1771-1806ro - viajante inglês
ver estas mesmas diferenças na "unidade negra" que ia sendo construída
na ponta colonial do tráfico, esta última já nas terras das três Américas 49. Por vezes, os próprios traficantes podiam participar da guerra, embora fosse mais fácil esperar
(mas na verdade já nos porões dos navios negreiros). que ela aflorasse sem sua participação direta. Um cirurgião inglês do século XVIII, autor de um
relato registrado sob a forma de livro em 1778, recolhe um esclarecimento preciso sobre o que um
A propósito da ambiguidade das guerras tribais para o andamento do certo traficante considerava uma "guerra" ~ uma operação que consistia em esperar a noite cair,
comércio negreiro, convém notar que, de um lado, durante a ocorrência atear fogo às aldeias e prender tantas pessoas quanto possível (RODRlGUES, 2005: 80).
de alguma guerra mais violenta poderia de fato ocorrer um momentâneo 50. Mungo Park viajante escocês que se celebrizou por suas viagens pela África em 1795 e 1805,
bloqueio do fluxo desta ou daquela linha de tráfico. Mas, por outro lado, publicou em 1799 as suas Travels in the interiordistricts of África (PARK, 2000). Nas viagens de
1795 e 1796 acompanhou o curso do Rio Niger, e nas viagens de 1805 e 1806 alcançou Bamako,
era destes mesmos conflitos - destas guerras que visavam de cada lado sendo porém assassinado na viagem de retorno. Duas décadas depois, Thomas Clarkson base-
precisamente capturar homens para negociar como cativos - que vinha o ou-se nos relatos de Mungo Park e no Livro das evidências (publicado pelo Parlamento Inglês com
principal contingente de futuros escravos. Os vencidos capturados vivos base em depoimentos de pessoas que estiveram na África), para escrever um opúsculo antiescra-
vagista intitulado Os gemidos dos africanos por causa do tráfico da escravatura (1822). Embora
seriam invariavelmente repassados ao tráfico negreiro, que desta forma carregado das necessárias cores dramáticas que vinham ao encontro dos interesses da Inglaterra
depositava nos conflitos interétnicos mais violentos muitas expectativas. antiescravagista que já havia decretado o fim da escravidão em 1807, esta última obra descreve as-
Joseph Inikori (1981) e Jaime Rodrigues (2005) registram em suas pes- pectos importantes do circuito africano do tráfico negreiro. Vale lembrar que os relatos de Mungo
Park também foram utilizados por Robert Southey, historiador e poeta inglês que escreveu uma
quisas (INIKORI, 1981: 91; RODRIGUES, 2005: 84) uma carta de um História do Brasil entre 1806 e 1819 (SOUTHEY, 1865).

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que havia percorrido a África para conhec.er Ano~seus a~pe~tos ~a~s con- Esta descrição mostra-nos bem como a economia do tráfico pôde trans-
eretos o circuito do tráfico - esclarece a existência de dOIStipos básicos de formar em pouco tempo a política belicista dentro da qual passaram a se
guerra na África. Em primeiro lugar, havia as "guerras públicas ou dec!a- movimentar as diversas tribos e etnias africanas, organizando-se recipro-
radas", muito próximas ao conceito europeu de guerra entre duas naçoes camente para o apresamento de escravos umas das outras visando poste-
soberanas. Nestes casos, a guerra era declarada por motivos vários e cos-
rior revenda aos traficantes europeus". As rivalidades étnicas, aliás, se an-
tumava se resolver em uma única campanha, sendo que da desordem do
tes já se opunham no continente africano como diferenças contrastantes,
exército vencido no campo de batalha procedia-se à recolha de prisionei-
agora se viam potencializadas agressivamente sob a égide do tráfico escra-
ros para posterior escravização. Mas o material mais substancial para a
vagista. Clarkson segue explicando que as "correrias" acabavam gerando
escravidão ainda não vinha daqui, e sim de um segundo tipo de guerra
retaliações posteriores dos grupos que antes haviam sido atacados, todos
chamado Tegria, ou "Correria", e que era precisamente este tipo de guer-
operando dentro do mesmo sistema de ambições escravistas e com a práti-
ra que nascera do tráfico e para o tráfico. Tal como assinala Thomas
ca de infindáveis retaliações recíprocas. De alto a baixo, das nações às et-
Clarkson, era este tipo de guerra que consistia a peça principal do sistema
nias, tribos e famílias, era este o resultado do entrechoque de diferenças
de escravização de africanos:
interafricanas habilmente explorado pelos mercadores europeus:
a Tegria, que em língua africana quer dizer roubo, consiste de ex-
cursões e correrias que se fazem de uns povos contra outros, sem ódios que se tornam hereditários e perpétuos entre as nações,
nenhuma notificação prévia, e somente para o fim de roubar. tribos, e aldeas, e mesmo simplices famílias, tudo consequência
Essa espécie de guerra é a que fornece principalmente os merca- d'aquella irresistível tentação que o mercado da escravatura ofe-
dos da escravatura" (CLARKSON, t 823: 1)" rece aos povos para satisfazerem as suas vinganças particulares,
e obterem hum lucro momentâneo (CLARKSON, 1823: 2),
Thomas Clarkson (1760-1846) - que juntamente com WilIiam Wil-
A "ponta africana do tráfico", deste modo, era carregada de diferen-
berforce (1759-1833) pode ser considerado um dos primeir~s,abolicionis-
ças explosivas que o comentarista europeu se empenha em descrever, em-
tas ingleses - segue esclarecendo que estas Tegrias, ou "Correrias;', podiam
bora oscilando ambiguamente entre o reconhecimento das diferenças in-
mobilizar grupos de diversos tamanhos, desde "bandos de quinhentos ho-
terafricanas e o mergulho na "indiferenciação negra" que já surge por
mens de cavallo, armados de arco e flecha, e capitaneados por um chefe", a
oposição aos mercadores brancos da Europa:
"bandos d'ahi para baixo, destinados para o mesmo fim, até rematar num
simples indivíduo armado com seu arco e settas" (CLARKSON, 1823: 2). Os commerciantes pretos que os conduzem aos europeus, espe-
ram de ordinário por ajunctar hum numero sufficiente, que lhes
mereça o trabalho de emprehenderem a jornada; e em estando
51. A carreira de Thomas Clarkson (1760-1846) como escritor abolicionista principia em 1785, promptos, põe-se a caminho, mercadores, escravos, jumentos e
com seu sucesso em obter o primeiro prêmio em um concurso de ensaios sobre o tema "Is it rights guardas, todos juntos num só bando (CLARKSON, 1823: 20),
to rnake men slaves against their wills?" Em 1787, participa da fundação da Sociedade para a
Abolição do Comércio de Escravos (nove dos doze membros do comitê central d,est,asocIC~a,de
eram quackers, uma seita religiosa que se envolvera pioneira e diretamente com as ideias ~bohclO-
nistas na Inglaterra), A missão de Clarkson nesta sociedade foi precisamente a de coletar m,fo~ma- 52. Por outro lado, conforme se vê por meio dos comentários de Clarkson, os empreendimentos
ções que dessem suporte à campanha de abolição dos escravos, e com este fito ele elaborou mume- individuais de captura de escravos também tinham o seu lugar na economia da escravização, e o
ras entrevistas com pessoas envolvidas diretamente nas operações do tráfico ou testemunhos das comentarista inglês assim descreve a técnica empregada por um destes indivíduos que partia para
mesmas, de modo geral. Em 1797 publicou o panfleto A summary viewoftheslave tra~eaAndofthe a experiência do tráfico apenas munido do seu "arco e settas": "escondendo-se por de trás das ár-
probable consequences of its abolition. No mesmo ano da instituição pel~ parlamento ~nglesdO,At,o vores, e por entre as brenhas, espreita a ocasião de algum rapaz, ou pessoa desarmada, passar por
da Abolição do Tráfico de Escravos, em 1807, Clarkson publicou seu rnais detalhado livro, a Histá- alli: e então, à maneira de um tigre, lança-se sobre a presa, e arrebata-a para os matos, d'onde à
ria da Abolição do tráfico de escravos africanos, noite se retire com elIa para casa feita escrava" (CLARKSON, 1823: 2),

68 69
Eis aqui, após a acumulação de um número suficiente de cativos apre- mento de lucros extremamente significativos aos diversos intermediários.
sados em algum lugar no interior da África, o momento em que se iniciaria Nesta tentação de superar com ganhos ocasionais a miséria sazonal e ain-
a nova etapa de um cruel processo de condução dos indivíduos tornados da reduzir o número de bocas, podia mesmo ocorrer o caso de venda de
cativos ao seu destino escravo. Iniciava-se então a longa trajetória de uma familiares por alguns chefes de clãs. Numa passagem de comovente dra-
Cáfila (assim se chamava a expedição onde mercadores e guardas condu- maticidade, Clarkson descreve a passagem de uma cáfila por uma aldeia:
ziam uma verdadeira multidão de escravos para os postos de venda locali- O dono [da cáfila] (que era hum cantor) propôs a um dos mora-
zados na costa ocidental africana). Quando partindo do interior africano, dores da vila trocar-lho [a um escravo adulto] por huma rapariga
uma expedição como estas podia chegar a durar vários meses, não apenas pequena. A pobre rapariga ignorava a sorte que hia ter, até pela
pela distância a ser percorrida como também pelo fato de que estas expe- manhãa quando se amarraram as trouxas, e a cáfila se pôs para
dições também eram interrompidas por esperas várias, de modo a acu- partir, A esse tempo, vindo ella com outras raparigas a ver partir
mular um maior número de escravos que justificasse a empresa". a cáfila, seu dono pegou-lhe pela mão, e entregou-a ao cantor.
Mungo Park - este viajante inglês que acompanhou, debaixo de todos Nunca hun rosto sereno se vio mudar com tal repente num ar de
profunda afflição. O terror que mostrou ao pôrem-lhe o carrego
os rigores de uma penosa viagem de vários meses por terra, o percurso de
à cabeça e a corda ao pescoço, e a mágoa com que se despedi o
uma destas cáfilas do interior da África até o litoral do continente - forne-
das suas companheiras, excitavam a maior compaixão (CLARK-
ce ao comentarista inglês Thomas Clarkson todo o material descritivo
SON, 1823: 25).
necessário para um detalhado retrato dos processos de apresamento e
transporte encaminhados na ponta africana de uma expedição escravis- Depois de dias, semanas ou meses de viagem pelas florestas, desertos
ta (CLARKSON, 1823: 20-25). Neste percurso, para o que se refere aos ou cerrados, uma nova etapa do percurso de escravização se iniciava com
cativos aprisionados, as diferenças étnicas ou tribais como que iam já se a chegada de uma cáfiLa ao litoral, ocorrendo neste momento a repassa-
dissolvendo, à espera do destino comum de indiferenciação .que encon- gem aos traficantes europeus dos homens e mulheres que haviam sido
trariam mais adiante nos porões dos navios negreiros. apresados e até ali conduzidos pelos mercadores africanos. Este é o mo-
Movido pelo entusiasmo antiescravagista do qual é na verdade um dos mento exato, arriscaremos dizer, em que começa a se afirmar mais inten-
pioneiros na própria Inglaterra, o que talvez o leve eventualmente a exa- samente o processo de "indiferenciação negra" do cativo africano captu-
gerar nas cores da drama ticidade, Thomas Clarkson mostra nos seus Ge- rado, por exemplo, no interior do continente. Se as diferenças étnicas ha-
midos africanos por causa do tráfico da escravatura (1822) que, mesmo viam interessado tanto aos mercadores nesta ponta de origem do tráfico,
no interior de um grupo ou família, poderia ocorrer eventualmente venda pois delas procediam os conflitos capazes de produzir como resultado de-
de africanos aos traficantes que conduziam cáfilas com vistas à posterior zenas ou centenas de homens e mulheres escravizados, logo em seguida-
revenda nos entrepostos de traficantes europeus. Seus relatos procuram já às portas do embarque nos navios negreiros - estas mesmas diferenças
dar visibilidade ao fato de que diversas das sociedades locais africanas étnicas deixavam de interessar aos procedimentos subsequentes do tráfi-
terminavam por deteriorar seus antigos padrões de economia e sociabili- co, que deveria gerenciar a partir daí uma massa propositadamente indi-
dade diante da difusão do tráfico negreiro, que com seus bem articulados ferenciada de seres humanos escravizados.
tentáculos se embrenhava pelo interior do continente a partir do ofereci- Já no próprio embarque dos cativos nos navios, os traficantes come-
çavam a se empenhar em separar estrategicamente os indivíduos perten-
53. "Os que sam feitos escravos no interior do paiz, tem longa jornada a fazer, e muitas vezes su-
centes às mesmas etnias, e costumavam pôr a ferros os chamados "cabe-
cede que dura meses" (CLARKSON, 1823: 20). ças quentes" de modo a desmobilizar lideranças e se prevenir de revoltas,

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pois o perigo delas era constante. Já em sol~ ame.ri~ano, seja nas colônias
portuguesas, espanholas ou americanas, na~ maI~ ~nter~ssavam de ~o~o
geral, senão eventualmente por questões mais práticas ~Ig_adas.aopropno A cor escrava: noção reapropriada
trabalho escravo, estas mesmas etnias cuja contraposiçao alImentava?
tráfico no seu nascedouro africano. Então era hora de embaralhar d~fin~- ~~ pelo Tráfico Atlântico cristão
.,0 '.' . ~~.;;J
tivamente os tipos étnicos, evitar a formação de grupos, for:alecer a ideia
de que todos eram "negros", uma raça talhada para o serviço escravo.

Deve-se ressaltar que os comerciantes portugueses e espanhóis não


foram propriamente os primeiros na história a propor a ideia de uma es-
cravidão racial ou baseada em critérios de cor, mesmo para o caso dos ne-
gros. Impõe-se o exemplo do comércio islâmico de escravos, que já vinha
se desenvolvendo no norte da África séculos antes da chegada dos primei-
ros comerciantes ibéricos ao continente africano. A história do escravis-
mo islâmico começa na verdade com uma primeira concepção da escravi-
dão como diferença, já quando se tem em conta a permissão de Maomé
para que os muçulmanos escravizassem estrangeiros, desde que estes es-
trangeiros a serem escravizados não fossem fiéis ao Alcorão antes do mo-
mento da escravização. Assim, a uma diferença que atrelava ao escravo o
"estrangeiro" - que de resto era bem comum na Antiguidade - os islâ-
micos acrescentavam uma diferença de cunho religioso: o não-pertenci-
mento à fé no período que precedera a escravização. Contudo, já em uma
longa história de ação dos comerciantes islâmicos no tráfico de escravos
negros através do norte da África, veremos gradualmente se consolidar
uma outra diferença, agora relacionada à pigmentação da pele. Já no sé-
culo X podia ser perfeitamente percebida em algumas áreas linguísticas
do mundo árabe e muçulmano a associação entre pele negra e escravidão,
e nestas regiões a palavra abd - isto é, "preto" - chegou a se converter em
sinônimo de escravo (BLACKBURN, 2003: 102; 2003: 26).
De qualquer maneira, esta escravização pela diferença que já se insi-
nua no mundo islâmico, bem mais localizada e em todo o caso pouco teo-
rizada, não pode ser comparada em termos de abrangência e significação
social àquela que logo se desenvolveria no mundo cristão. Se as primeiras
autoridades ibéricas do período moderno justificaram a escravidão como

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meio de converter os povos pagãos da África, em pouco tempo o caráter ampla difusão. Podemos retomar mais uma vez os comentários de Tho-
racial da escravidão dirigida para o mercado atlântico se afirmaria de for- mas Clarkson, este analista que escreve dramaticamente sobre o sistema
ma determinante, e na própria Bíblia seriam encontradas as sanções para do tráfico escravista desde a sua ponta africana, um tanto amparado em
uma escravização que não raro procurava difundir a ideia de que "os afri- uma perspectiva simultaneamente romântica e detalhista que o leva a
canos, como 'filhos de Cam', haviam sido condenados a este destino, acompanhar passo a passo as suas diversas etapas - desde a captura de
mesmo que se tornassem cristãos" (BLACKBURN, 2003: 102; 2003: africanos no interior do continente, seu transporte até os portos escravis-
26). Invocava-se neste caso, como mito fundador e legitimador para a es- tas na costa ocidental africana, sua travessia atlântica desumana através
cravização dos povos negros - ali considerados como os descendentes di- dos navios negreiros e finalmente o desembarque nas Américas. Assim se
retos de Cam, um dos três filhos de Noé - a maldição paterna que lhe ro- refere Clarkson à construção europeia de uma pretensa "inferioridade"
gara o patriarca diluviano ao se sentir desrespeitado pelo filho: do negro africano:
Maldito seja Canaã
Os traficantes europeos, conhecendo muito bem a sua culpa, e
que ele seja, para seus irmãos
sabendo que as vozes da natureza haviam de bradar contra os
o último dos escravos
seus crimes, têm-se precavido, há muitos tempos, com argu-
(Gn 9,18-27).
mentos em sua defesa. Como sabem que nada mais poderia justi-
Cam e Canaã (este último filho do primeiro) têm neste versículo do ficar a sua conduta têm espalhado no público e continuam a es-
Gênesis toda a sua descendência irremediavelmente comprometida pela palhar, que os africanos sam creaturas d'outra espécie, que não
impiedosa maldição paterna, referendada por todo o seu peso bíblico. tem as faculdades, nem o sentimento dos homens; que estão no
mesmo nível dos brutos [...] (CLARKSON, 1823: 10-11).
"One drop ruie" avant ia ietre, os descendentes de Cam são não apenas
condenados à escravidão por todas as gerações vindouras, com~ também "Criaturas de outra espécie", "inferiores" (sem as faculdades), "desu-
se acham ali mesmo enunciados os seus futuros e legítimos algozes e es- manizadas" (sem o sentimento dos homens), e perfeitamente comparáveis
cravizadores: os descendentes dos outros dois irmãos que dariam origem aos animais ("no mesmo nível dos brutos") ... Eis a diferença atrelada à
às demais raças". inferiorização, e por isso justificadora de uma desigualdade escrava que
O discurso de uma "diferença negra" inextricavelmente acompanha- se mostra aqui socialmente construída mesmo que contra o pano de fun-
da de sua segunda natureza, que seria a "diferença escrava", desponta as- do de alguns poucos críticos contemporâneos, que de resto só parecem
sim, desde o início da modernidade europeia, como o aparato ideológico ter encontrado mais espaço para expor suas ideias humanitárias precisa-
que sustentará todo um comércio extremamente rendoso. Tal discurso mente quando os interesses econômicos franceses e ingleses assim passa-
terá seus obstinados críticos, mesmo entre alguns dos escritores europeus ram a permitir.
do período de vigência do tráfico negreiro, mas isto não impedirá que a No contexto de expansão europeia que se iniciara desde inícios da
prática escravista da exploração da mão-de-obra africana encontre a mais Modernidade, a diferença negra parece grudar-se cada vez mais à desi-
gualdade escrava, e pode-se dizer que, se os comerciantes e colonos euro-
peus não foram propriamente os primeiros inventores desta conexão,
54. A partir desta passagem, os interessados na escravidão negra propunham que o mito de Noé certamente foram os primeiros a dar-lhe simultaneamente uma centrali-
autorizava uma classificação religiosa da diversidade humana a partir dos três filhos de Noé: [afê,
Sem e Cam. De acordo com o capítulo IX do Gênesis, Cam teria desrespeitado seu pai Noé, que
dade mais definida e a beneficiá-Ia com o mecanismo ideológico indis-
por isto rogou-lhe a maldição de que os filhos de Cam seriam futuramente escravizados pelos fi- pensável para um comércio que se faria intercontinental e diretamente di-
lhos de seus irmãos.
recionado para um sistema produtivo onde o negro desempenharia o pa-
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pel central como força de trabalho. Neste sistema, a diferença amparada humano, que de imediato contribuía para fundamentar o sistema de dife-
na noção de pigmentação da pele vinha para o centro do palco, e as múlti- renças através da cor. Este sistema classificatório, amparado em diferen-
pias diferenças relacionadas às etnias africanas deslocavam-se para os ças físicas que estariam supostamente associadas a diferenças morais e
bastidores, ainda que sem desaparecer. psicológicas, praticamente sugeria que, em função de seu temperamento,
Os reforços científicos aos mitos de origem religiosa que favoreciam o os negros africanos eram talhados para a escravidão.
racismo logo viriam, particularmente no decurso dos séculos XVIII e É aliás importante assinalar - com relação à consolidação da ideia de
XIX. Lineu, um naturalista sueco que estipulara a primeira classificação escravo, e logo de negro, como diferença - o papel que foi representado
racial das plantas, foi também o responsável por uma primeira classifica- por uma visualização cada vez mais intensa, da parte dos traficantes e
ção que dividia a humanidade em quatro raças: americana (nativa), asiá- colonos americanos, acerca dos africanos como uma mercadoria em po-
tica, africana, europeia. A novidade de sua classificação é que, na descri- tencial. Frequentemente se obtinha o escravo, com isto desumanizan-
ção de cada uma das raças humanas, Lineu acrescentou valores como do-o ainda mais, pelo escambo. Trocar o escravo por um outro objeto _
a "negligência" e a "submissão ao despotismo" para o caso dos negros, a peças de vestuário, ou mesmo quinquilharias - reforçava ainda mais a
"engenhosidade" e "civilidade" (legalismo) para os europeus, e a "melan- sua definição como diferença: o escravo era um objeto como outro, em-
colia" e "tendência para se sujeitar a opiniões e preconceitos" para os bora animado, e J ean -Baptiste Debret, pintor viajante francês que esteve
asiáticos. Desta forma, sua classificação unia características psicológicas no Brasil na primeira metade do século XIX, registra em sua Viagem pi-
e morais a aspectos físicos, construindo uma escala de valores tendencio- toresca e histórica ao Brasil que essa maneira de ver as coisas estava já
sa que influenciaria outras classificações no século seguinte", perfeitamente difundida:
De acordo com a classificação proposta por Lineu e que se desdobra Viu-se no Congo um pai trocar seus filhos por um traje velho de
em proposições teóricas que logo seriam ampliadas por outn?s autores, teatro, de cor viva e cheio de bordados. Tendo em vista o prece-
os brancos eram os depositários da engenhos idade e inventividade (por- dente, o diretor do Teatro Real do Rio de Janeiro, homem de re-
tanto a parte da humanidade capaz de produzir ciência, progresso, trans- cursos, confiava às vezes a um capitão de navio negreiro os restos
formação, evolução), ao mesmo tempo em que, amantes da legalidade e de trajes para serem trocados por escravos (DEBRET, s.d.: 224).
distanciados do preconceito, eram os condutores naturais da civilização.
Vertido em objeto e desumanizado, e aprisionado no mundo das dife-
Enquanto isto, os africanos (negros) ficavam com a parte da submissão
rentes mercadorias, o cativo africano é mais facilmente atirado no mundo
aos chefes, mas também da preguiça e negligência que clamava pela parti-
das diferenças escravas. As diferenças humanas - as etnias, sua cultura o-
cipação dos brancos com vistas a impor-Ihes uma ordem e conduzir os
riginal no continente africano - serão diluídas ou apagadas, em favor de
seus destinos, habituando-os ao trabalho. Aí estava uma base teórica de
um novo tipo de diferença que o remete ao mundo dos objetos, um objeto
cunho pretensamente científico para as concepções racistas do mundo
de cor negra que pode ser facilmente trocado por outros objetos de várias
cores. A diferença pela cor afirma aqui a sua presença no centro do palco
55. Assim se expressava Lineu com relação às quatro raças de Homo Sapiens: "L) Americano: mo-
da escravidão. Será ela que comandará o impiedoso espetáculo.
reno, colérico, cabeçudo, amante da liberdade, governado pelo hábito. tem corpo pintado; 2)
Asiático: amarelo, melancólico, governado pela opinião e pelos preconceitos, usa roupas largas; 3)
Africano: negro, flegmático, astucioso, preguiçoso, negligente, governado pela vontade de seus
chefes (despotismo), unta o corpo com óleo ou gordura, sua mulher tem vulva pendente e quando
amamenta, seus seios se tornam moles e alongados; 4) Europeu: branco, sanguíneo, musculoso,
engenhoso, inventiva. Governado pelas leis, usa roupas apertadas".

76 77
ment~ para poucos entre os colonizadores: não convinha exagerar por

-
8
Das etnias africanas às novas
diferenças negras
demais no seu aprofundamento e na sua difusão. Assim mesmo, são sin-
tomas desta dimensão de compreensão da alteridade africana para fins
utilitários alguns manuais e dicionários que surgem, como, por exemplo,
o Vocabulário Geral da Língua Mina elaborado em 1741 a partir dos
apontamentos de Antônio da Costa Peixoto, que começaram a ser anota-
dos dez anos antes", Na verdade, tratava-se aqui menos de um idioma de
etnia do que um "idioma de mediação" que estava a ser utilizado pelos es-
cravos da região de Vila Rica por volta de 1730, e que era baseado princi-
A construção da ideia de "negro" como estratégia discursiva adequa- palmente em um combinado linguístico dos falares dos ewes (minas-jejes)
da aos interesses dos comerciantes e senhores de escravos é, obviamente, e fons, duas das principais "etnias minas" oriundas da Costa do Ouro. O
apenas um dos lados da questão. É verdade que, em um século que tam- manuscrito pode ser definido mesmo como um "manual de conversa-
bém inclui como um de seus horizontes intelectuais a erudição antiquá- ção", a partir do qual seu autor traçava os caminhos que lhe permitiram
ria, não faltarão também os registros textuais mais detalhados acerca das melhor circular entre os labirintos deste "falar mina" das zonas de mine-
etnias africanas, e que em virtude das já mencionadas questões práticas - ração brasileiras. Não foi nesse caso um trabalho de erudição ou de anti-
sempre voltadas para uma otimização do trabalho escravo - também não quário, mas sim um trabalho motivado por necessidades práticas 58.
faltarão tentativas de relacionar etnias específicas às aptidões para certos A prática dos escravos mineiros de se comunicarem através deste idio-
tipos de trabalho. David Geggus (1993), em seu estudo sobre o escravis- ma de mediação, aliás, mostra uma estratégia de resistência que procura-
mo em São Domingos, assinala que os fazendeiros franceses daquela co- va deixar os senhores e brancos aventureiros à parte de suas interações
lônia reconheciam pelo menos vinte povos africanos distintos-e que pro- verbais, e é precisamente das chaves para compreender esta interação ver-
curavam acomodar a diversidade negra assim percebida ou construída de bal da escravaria que Antônio da Costa Peixoto pretende se apossar:
modo a destinar a cada uma destas etnias trabalhos que incluíam diferen- se todos os senhores de escravos, e hinda os que os não tem, sou-
ças significativas, de acordo com o que percebiam ou imaginavam ser a vecem esta lingoage não sucederião tantos insultos, ruhinas, es-
aptidão de cada povo africano mais específlco", tragos, roubos, mortes, e finalmmente cazos atrozes, como mui-
Compreender o "outro" - não por respeito ao "outro", e sim em vista tos mizeraveis tem exprementado: que me parece de algua sorte
de finalidades utilitárias - era um horizonte necessário para os adminis-
tradores do trabalho colonial. Tratava-se aqui de um conhecimento a ser °
57. manuscrito d~ Antô~io da Costa Peixoto, intitulado Obra nova da língua geral de mina e
datado de 1741, esta arquivado no acervo da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora
trabalhado em duas dimensões: de um lado dissimulando-o sob a pasteu-
e mereceu mais recentemente uma cuidadosa edição da etnolinguista Yeda Pessoa de Castro
rização de todas as alteridades africanas na grande diferença negra, sen- (CASTRO, 2002).
do esta primeira dimensão aquela correspondente ao discurso externo (e 58. ~TôNJO DA COSTA Peixoto era português, natural da região do Entre-Douro e Minho, e
de maior abrangência na sua divulgação) sobre o negro e para o negro; de posslvel~ente chegou à antiga Vila Rica nas primeiras décadas do século XVIII, em meio à leva de
a~en~~relros ~ue ambicionavam enriquecer nos garimpos. Lá se empenhou em aprender "o falar
outro lado, a dimensão do necessário estudo acerca de quem era aquele mma e anotá-lo para uso próprio, mas acabou por produzir um riquíssimo documento histórico
"outro" a quem se estava submetendo. Este era obviamente um conheci- ~ara o futuro, ~áque ':te.rminou po: retratar, por intermédio do que as palavras descrevem, usos e
ostu~es ~a vl?a cotidiana, conflitos entre senhores e escravos, atividades profissionais e co-
merciais, incluindo a prostituição da mulher negra na cidade de Ouro Preto daquele século"
56. Ver ainda o estudo de Blackburn sobre A construção do escravismo no Novo Mundo (2003: 37). (CASTRO, 2002).

78 79
se poderião evitar a alguns destes descomsertos, se ouvece maior fatores fez com que prevalecesse uma diferenciação dos negros relaciona-
curuzidade e menos preguisa, nos moradores, e abitantes destes
das aos seus circuitos de exportação, o que implica também uma geogra-
payses (CASTRO, 2002). fia da diferença.
À parte estas iniciativas que visavam a questões de ordem prática, a di- Os cabindas, por exemplo, aparecem como uma nova classificação
fusão no Novo Mundo de uma clareza acerca da diversidade étnica - tal negra. Na verdade, em diversas ocasiões em que são referidos não corres.
como ela ocorria realmente no continente africano - não foi estimulada pondem nada mais nada menos do que aos negros que eram exportados
senão quando isto interessou mais diretamente aos colonizadores. De pelo porto da Cabinda, situado logo ao norte do Rio Zaire. Obviamente
modo geral, não foi a solução que predominou, mesmo quando se impôs que esta categorização, via de regra, oculta a etnia a que pertence cada in-
a necessidade prática de seccionar a negritude por dentro para melhor divíduo, e pela classificação proposta não podemos saber se um negro
compreendê-Ia. Na verdade, novas divisões estavam por vir também em chamado de cabinda pertencia a uma etnia como a dos nsundis ou a outra
decorrência de questões práticas, em parte relacionadas às necessidades como. a .dos tekes, para dar exemplo de duas das várias etnias em que se
de censo e controle, mas também em parte motivadas por aqueles mes- especlahz~va o porto de Cabinda em função da sua posição na geografia
mos interesses de conhecer mais a fundo a massa humana escravizada no do tráfico".
que se refere a suas diversificadas potencialidades para os novos traba- Os congos, para dar outro exemplo, constituíam um grupo de apreen-
lhos que lhe seriam impostos. são difícil com relação a características físicas e étnicas, uma vez que por
Neste contexto, não é de se estranhar que administradores coloniais esta designação seria designado qualquer indivíduo exportado pela
do trabalho escravo também tivessem de recorrer à moldagem de novas vasta rede comercial que se desenvolvia em torno do curso do rio Zaire
diferenças negras, em nada ou muito pouco relacionadas com as antigas (KARASH, 2000: 54), o que implicava a confusão de centenas de grupos
etnias africanas. Precisavam saber, por exemplo, quais tipos de escravos étnicos no interior de uma única designação. O mesmo pode ser dito dos
eram mais adaptáveis ao trabalho na agricultura, ao trabalho nas minas, angolanos e benguelas, que se referem a regiões geográfico-administrati-
aos serviços domésticos, e assim por diante. Ajudar-Ihes-ia conhecer não vas surgidas no século XVIII da partilha da África pelos países europeus
tanto as etnias originais dos negros, mas o tipo de trabalho com os quais envolvidos no tráfico. Diante da classificação de um negro como bengue-
estiveram acostumados na África, o tipo de vegetação e clima com os quais Ia, já na América Portuguesa, como saber se estamos diante de um mbun-
lidavam ancestralmente, e talvez conhecer algo do seu potencial de rebe- do ou de um mbwela, ou de qualquer outra etnia?
lião ou fuga. De qualquer forma, as novas "nações" criadas artificialmente por
Cedo surgiram algumas classificações geográficas que logo foram co- alusão a r~giões geográficas de origem, de importação ou de apresa-
ladas à identificação dos negros, diferenciando-os uns dos outros, parti- mento na África encontraram boa difusão entre os colonizadores portu-
cularmente porque estas informações relacionadas aos ambientes de ori- gueses que precisavam esboçar algum tipo de classificação dos vários
gem podiam ajudar a melhor entender as potencialidades dos vários gru- escravos negros com relação aos trabalhos que lhes seriam mais adequa-
pos de negros com relação ao ambiente. Por outro lado, havia também
uma contabilidade a ser registrada e a necessidade de uma avaliação de
qualidade, por assim dizer, que permitisse aos interessados no trabalho 59. ~ssim mesmo, e~ algu.mas ocasiões a referência a cabindas pode corresponder a um povo es-
escravo identificar as potencial idades dos vários tipos de negros em rei a - pec~fico daquela ,r~glao, seja em fontes de época, seja em obras que esboçaram estudos das popu-
l~çoes afro no .InI.ClO ~a República. Silvio Romero e João Ribeiro, no seu Compêndio de história da
ção aos diversos circuitos negreiros. Possivelmente essa combinação de literatura brasileira situam-nos [os cabindas] entre outras nações que teriam concorrido para a
colonização brasileira (ROMERO & RIBEIRO, 1909).

80 81
tonilbO um cronista do século XVIII que escreveu um dos mais cé- cultura colonial ou ao novo complexo cultural que os colonizadores que-
d os. An , d B 'L A •

lebres livros do período colonial- CuLtura e opulência o rasl. - ao mes- riam ou precisavam impor a seus escravos africanos. Oportunamente, ve-
tempo em que chama atenção para a necessidade de repartlf os escra- remos que essa categorização de "boçais", por oposição a "ladinos", po-
:~ de acordo com suas vocações tribais ou geográficas para ~ertos tr~ba- dia aludir mais habitualmente ao negro que acabara de chegar da África, e
lhos, dá mostras de que já não reconhece bem as etnias de ongem, e sim a que portanto - ao contrário dos já bem-adaptados negros "ladinos" - ti-
procedência geográfica: . nha ainda certas dificuldades de compreender e se fazer compreender, de
E porque commumente são de nações diversas, e h~ns mais bo- adaptar-se aos códigos e exigências de seus dominadores, de ajustar-se
çaes que outros, e de figuras muito diferentes, se há de fazer re- ao novo contexto geográfico-cultural, de assimilar a alteridade contra a
partição com reparo e escolha, e não as cegas. O~ q~e vem para qual se viam agora subitamente confrontados. Por outro lado, a inadap-
o Brasil são Ardas, Minas, Congos, de S. Thome, d Angola, de tação aqui apodada de "boçal" bem que poderia ocultar em certos casos
Cabo Verde, e alguns de Moçambique, que vem nas naos da uma maior resistência contra a sujeição ao trabalho forçado (inadaptar-se,
Índia. Os Ardas e os Minas são robustos. Os de Cabo Verde e~. por vezes, é resistir).
Thorné são mais fracos. Os d' Angola, criados em Loanda sao Retomando a questão que nos interessa neste momento, de certo
mais capazes de aprender officios mechanicos que os das outras
modo, o que Antonil pretende nesse pequeno trecho é esboçar um estudo
partes já nomeados. Entre os Congos há alguns bastantemente
sobre a relação entre procedências africanas várias e suas corresponden-
industriosos e bons não só por o serviço da canna, mas para os
tes capacidades de adaptação aos trabalhos exigíveis dos escravos negros,
officios e para o menos da casa (ANTO NIL, 1967).
terminando no caso por valorizar os angolanos e congos em contraposi-
Entre os tipos de escravos mencionados por Antonil na passag.em ac~: ção aos africanos procedentes de Cabo Verde e de São Thomé, referidos
ma, apenas os Ardas correspondem de algum modo a etnias de o~lgem: ja como "mais fracos".
que podemos relacioná-Ios aos povosjejes ou dao~eano~ do antigo remo Em uma tentativa análoga de classificação, o humanista holandês
africano da Ardia (FREYRE, 2002: 410). Os demaIs-mmas, congos, a~- Gaspar Barléus introduz em sua História dos feitos recentemente pratica-
golanos, caboverdianos, moçambican~~ e são-thomeanos - ~ nad~ mal~ dos no Brasil, escrita em 1647 por encomenda de Maurício de Nassau",
remetem que não a referências geogrãficas, e a uma ~eograf13 mu;t? es uma rápida tipologia que parte de associações negativas destinadas a rela-
pecífica: a geografia do tráfico. Chama atenção tambem o comentano de cionar algumas procedências africanas aos vícios mais encontradiços nos
Antonil de que "huns são maes boçaes do que outros", o que dá à pal~vr~ escravos negros, até chegar finalmente às associações que remetem ao
"boçal" um sentido que aqui remete à maior dificuldade de adaptaçao a trabalho ou à beleza física. Assim, faz saber aos seus leitores que "os ar-
drenses são muito preguiçosos, teimosos, estúpidos, têm horror ao traba-

60. Antonil era pseudônimo do jesuíta italiano João Ant0.ni~ Andreoni (!


6.49- 1716). Cultura e
opulência do Brasil _ minucioso retrato da realidade economlca des.ta colônia port~guesa, de sua
. d de fOI'publicado em 1711 e por ter sido Imediatamente consIderado amea- 61. lntitulado Rerum octenium in Brasília ("História dos feitos recentemente praticados durante
geogra fiIa e socie a - , , , OC Ih
cador para a segurança colonial, foi logo confiscado por ordem do Estado Por.tu_gu~~. onse o oito anos de Brasil"), o livro elaborado por Barléus foi encomendado por Maurício de Nassau para
" . - I d - da interdição: outras cousas divulgar suas façanhas no Novo Mundo e compreende 340 páginas, 57 gravuras, 24 mapas e ilus-
Ultramarino entre outros aspectos, assim expoe a gumas as razoes "'. b
que se referem pertencentes às fábricas e provimentos dos engenhos, cultur~ dos canavl~es e e- trações de Frans Post. Comparando Nassau a grandes conquistadores do passado, Barléus assim
nefício dos tabacos, se expõem também muito destintamente todos os caml.nhos que ;a p;.r~ a~ inicia o seu avant-popos: "Atenas, Lacedemônia, Cartago, Roma, o Lácio, as Gálias e a Germânia
minas de ouro descubertas, e se apontão outras ,que ou estão p~ra descu~r~~~u
(documento citado na edição francesa de Andre Mansuy, pubhcada em
Pt r
I e~.~~~I~:s
pe o ns I
constituem o assunto dos escritores gregos e romanos. Olinda, Pernambuco, Mauriciópole, Ita-
maracá, Paraíba, Luanda, São Jorge da Mina, Maranhão, nomes desconhecidos dos antigos, se-
Hautes Éstudes de I'Amérique Latine). rão o nosso tema" (BARLÉUS, 1940).

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lho se excetuarmos pouquíssimos [... ]", e em compensação chega à mes- É interessante notar, aliás, que por vezes os documentos da época
ma conclusão de Antonil de que os angolanos são os mais "laboriosos". Já mostram-se bastante confusos no sentido de que acabam rni t d
com relação aos negros da Guiné e da Serra Leoa - escravos que anuncia . ,. de di . lS uran o os
enterros e diferenciação de negros - os oriundos das etnia ...
.. s ongmais
serem impróprios para os trabalhos agrários - parece sugerir que, devi- f
a ncanas, e os produzidos pela referência aos circuitos do tráfico E
do à sua "delicadeza" e "suavidade", poderiam ser bem aproveitados nos \li. Pi . m sua
laf!em lt~re~ca, Debret mistura em sua lista umas e outras destas cate-
serviços domésticos, sobretudo as mulheres (BARLÉUS, 1940). g~nas, as étnicas e as portuárias; ao final, reconhece um pouco dessa
A informação parece coincidir com a sugestão de João de Laet, cro- mistura ao concordar que no interior de algumas das categorias aventa-
nista que, em uma História das Índias Ocidentais publicada em 1644, das estão ocultas distintas nações, verdadeiras diferenças étnicas:
também se refere à aptidão dos negros da Guiné para trabalhos domésti- ~s negros mais comuns no Rio de Janeiro são das seguintes na-
cos, como, por exemplo, o de "copeiros" e outros. Por outro lado, embora çoes: benguela, mina, guenguela, mina nagô, mina nabijo, rebo-
confirmando a opinião dos dois cronistas anteriores de que era possível lo, cossange, mina calava, cabina de água doce, cabina moçuda,
perceber uma forte tendência dos angolanos para os trabalhos da lavoura, congo, moçambique. Estas últimas compreendem um certo nú-
indica que eles precisariam ser motivados "com muitos açoites". Quanto mero de nações vendidas num mesmo ponto da costa, como a
astre (DEBRET: 227).
aos caboverdianos, que Antonil situa ao lado dos negros de São Thomé
como "os mais fracos", Laet curiosamente indica-os como os mais robus- Para exemplificar com um dos exemplos evocados pelo texto de De-
tos e melhores de todos, sendo por isto os que costumavam alcançar bret, a cate~oria dos negros minas é particularmente ambígua, na origem
maior preço nos mercados do Nordeste, de acordo com suas indicações e na recepçao. Os mina são escravos provenientes da Costa do Ouro ou
baseadas na região da Paraíba. como era ~ais conhecida esta região, da Costa da Mina, e na composição
As opiniões aqui e ali discrepantes entre os vários cronistas mos- da populaçao escrava do Brasil Colônia sua presença não se tornou mais
tram-nos que nem sempre foram minimamente bem-sucedidas as tentati- relevante senão a partir do século XVIII, acompanhando a emergência de
vas de elaborar tipologias dos escravos africanos que relacionassem as u~ conte~to de descoberta de ouro em Minas Gerais que torna o negro
suas procedências - no caso "nações" que remetiam mais do que tudo a mtna cobiçado, precisamente em vista de sua prévia experiência com o
uma geografia do tráfico - e as aptidões para certos trabalhos. Isso não trabalho de mineração. Na Bahia, minas são especificamente estes africa-
nos deve parecer estranho, se levarmos em conta que algumas das proce- nos procede~t~s da Costa do Ouro. Já no Rio de Janeiro, a designação
dências a que se referem os cronistas remetem na verdade a circuitos de tende a ser utilizada para referenciar todos os escravos não-bantus, isto é,
importação mais abrangentes, encobrindo por vezes realidades culturais os sudaneses (RAMOS, 1961). Mas há ainda um uso da designação que
e mesmo geográficas bastante diversificadas. Já os acertos alcançados nas aponta para uma etnia mais específica, os minas propriamente ditos ori-
und~s do Ashanti. Em outra passagem de Viagem pitoresca e histôrica ao
tentativas de elaborar uma tipologia escrava para o trabalho colonial de-
Br~sll, para retornar a Oebret, o pintor viajante refere-se a minas-nagôs,
vem ser reputados, evidentemente, ao fato de que certas regiões da África
ml.nas.mahys e minas-cavalos. Artur Ramos, antropólogo alagoano da
(mas não todas) correspondiam climática e geologicamente a certas re-
pn~elra metade do século XX que buscou desembaralhar este novelo de
giões da América Portuguesa, e que em alguns casos os africanos estavam
etnias que se descola das fontes de época, inclusive dos relatos dos viajan-
destinados a dar continuidade a um tipo de trabalho, nas minas ou na la-
tes' ente~de que o: "mi~as-mahys" assinalados por Oebret são os jejes, e
voura, que já lhes era familiar na África, embora sem a intensidade que
que os mmas-negos serram os nagôs, de modo que na terminologia utili-
lhes passava a ser impingida pela desigualdade escrava.
zada por Oebret, bem de acordo com a tendência do Rio de Janeiro, tere-
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mos classificados como minas não apenas povos da Costa do Ouro como zando ou por se realiz~r. Citando o caso da identidade nagõ, nota-se que
também povos da Costa do Marfim", esta passa a englobar Identidades tribais bem singulares como os Iiêb /
É verdade ainda que, mescladas no caldeirão da escravizaçâo indife- E g b a,/ E g b aidõ0, On d/'o, Ekiti, Oyó, que não se viam como nagôs na África
J U,

renciadora. as etnias também tendem a se influenciar mutuamente nos do início da Modernidade",


países do Novo Mundo, em diferentes níveis e sob diferentes circunstân- Tomaremos a liberdade de chamar de "etnias transatlânticas" ou
cias. Africanos de diferentes etnias, jogados todos na mesma senzala, mas "etnias da diáspora" a estas "etnias", sempre entre aspas, criadas na co-
necessitados de forjar novos padrões de sociabilidade e novas formas de lônia como produtos tanto das necessidades dos próprios negros de re-
expressão cultural, tendem a encontrar culturas mediadoras. Por alguma construírem uma identidade perdida como também das necessidades
razão, como assinala Artur Ramos (1961: 310), o tom das culturas suda- imperiosas de se unirem uns aos outros através de "culturas de media-
nesas islamizadas foi dado pelos malês, o tom das culturas sudanesas pu- ção", que pudessem abranger etnias menores. Os nagôs, negros que no
ras foi dado pelos iorubas, enquanto os bantos, aparecendo espalhados Brasil passam a ser identificados com essa cultura de mediação de ori-
em inúmeras etnias pelo Brasil, não teriam encontrado um tom predomi- gem yorubana, podem ser citados como o exemplo mais significativo.
nante fundado em uma etnia mais específica. Também é muito importante se ter em vista que algumas destas "identi-
Outra questão tão interessante quanto importante, e que tem mereci- dades negras" que se desenvolveram, reelaboraram ou mesmo se gesta-
do a atenção de vários pesquisadores, é o fato de que também existem ~am no Brasil foram "repatriadas" - na verdade "introduzidas" - para a
etnias ditas "africanas", mas que na verdade foram criadas no Brasil. As- Africa através de libertos que para lá retornaram, e que em um outro
sim, como já foi assinalado em nota anterior, alguns autores chamam sentido extremamente complexo, que ainda vai sendo estudado por his-
atenção para o fato de que "etnias" como a nagô constituem na verdade toriadores e antropólogos, a própria negritude brasileira reconstruiu
construções identitárias posteriores, no nível transatlântico e não propria- "identidades africanas" na própria África64•
mente africano (LAW, 1977; MATORY, 1998). Isto é, são' construções É importante distinguir as "etnias transatlânticas"
(ou etnias da diás-
brasileiras, americanas ou latino-americanas de uma África imaginária - pora) criadas pelos próprios negros como processos de resistência, de in-
verdadeiras "etnias da diáspora" que passam a constituir etnias tão im- teração ou de acomodação cultural - mas em todo o caso surgidas das
portantes culturalmente como se africanas fossem, mas que na verdade
não tinham realidade na África em período que precede o tráfico. Cultu-
ras de mediação, por força do cadinho do tráfico negreiro, essas novas ~3. S~bre os ~~gô, observa João.~osé Reis: "Os nagôs, por exemplo, pertenciam a diversos grupos
~orub.as qu~ VIVIamem vasta regiao do sudoeste da atual Nigéria. No Brasil, viraram todos nagôs,
"etnias" podiam aglutinar realidades tribais distintas. Estas questões são
identidade a qual se amoldaram sem esquecer origens mais específicas" (REIS, 1996: 13). Por ve-
extremamente complexas, e envolvem pesquisas que estão ainda se reali- z~s a docum.entação traz à tona as verdadeiras etnias de origem que são abrangidas por estas "et-
ruas de. mediação", das q~ais a nagô é possivelmente o principal exemplo. Assim, como os nagôs
da ~a.hla se envolveram atrvamente na rebelião malê de 1835, foram depois submetidos a interro-
62. Por outro lado, conforme veremos adiante, os marris devem ser mais rigorosamente referidos gato no e, tal como ressalta ainda João José Reis, "perguntados sobre suas origens pelas autorida-
a uma etnia ainda mais específica. João José Reis os identifica com um grupo étnico que ocupava des, .com f;equência se diziam nagô-ba, nagô-oiô, nago-jabu, significando que vinham de subgru-
pos iorubás de Egba, Oyo e Ijebu" (REIS, 1996: 27).
no continente africano uma região imediatamente ao norte do Oaomé, e que frequentemente so-
fria as incursões de povos daomeanos que eram bastante ativos na prática de captura de escravos 64. Já Gilbe~to Freyre, retomando Nina Rodrigues (1932), aborda a questão da circularidade en-
para venda ao tráfico (REIS, 1996: 17). Em vista disto, Akinjogbin chega a se referir a eles como tre Bahia e Africa em algumas das passagens e notas de Casa Grande e Senzala: "Aliás é curioso
uma espécie de "campo de caça de escravos" para os povos africanos mais agressivos do Oaomé l3ot~r que at~ ~ns do sé~ulo XIX deu-se o repatriamento de haúças e nagôs libertos da B~hia para a
(AKINJOGBIN, 1967: 81). Por volta de 1786 veremos escravos oriundos da etnia marri funda- :V~lca; que jejes repatriados fundaram em Ardra uma cidade com o nome de Porto Seguro. Tão
rem uma confraria de homens negros que se dispõe a acolher principalmente negros de origem da íntimas chegaram a ser as relações da Bahia com cidades africanas que chefes de casas comerciais
Costa da Mina (REIS, 1996: 18). A esta confraria voltaremos oportunamente. de Salvador receberam distinções honoríficas do Governo de Daomé" (2002: 420).

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próprias necessidades dos negros - das "etnias do tráfico", qu.e n~ ~erda- Brasil). As "etnias de origem" - subdivididas nas etnias sudanesas e nas
de não são etnias no sentido antropológico, e sim divisões artlficIaIs pro- ~tnias bantas - cor respondem às identidades étnicas que já existiam na
duzidas pelo tráfico para classificar suas peças e, já no mundo escr~vis- Africa. As "etnias da diáspora", por sua vez, geradas no ambiente escra-
ta-colonial, evocadas pelos escritores que atenderam a demanda leitora vista-colonial e nas Américas, mas em todo o caso a partir de processos
dos senhores de escravos com vistas a relacionar estas categorias a deter- culturais pertinentes à própria população afro, podem ser tipificadas pe-
minados tipos de trabalho. Grosso modo, podemos dizer que as "etnias los nagôs - uma etnia de mediação que na verdade agrupa, através de
do tráfico" (cabindas, angolas, congos, benguelas, etc.) são construções uma re-elaboração da cultura iorubana, identidades culturais que seriam
bastante artificiais, geradas pelos circuitos de apresamento e exportação bem distintas na África, como os ketus, eubás, ijêchás, ibadans.
do tráfico, em contraste com as "etnias de origem" e a~ "etnias da diáspo- Uma singular complexidade adicional é que estes três tipos de etnias
ra", que já surgiram naturalmente - as primeiras na Africa, as segundas não se excluem necessariamente em relação aos indivíduos que poderiam
no mundo escravista-colonial. classificar, uma vez que estas divisões correspondem a critérios distintos.
O esquema abaixo se propõe a ilustrar a complexidade que afeta o Um ketu aparece no esquema como uma das autênticas etnias sudanesas;
problema da divisão da população africana escrava, no Brasil colônia, em transplantado para o Brasil, contudo, ele se transforma em nagô conjunta-
"nações". Em sombreado, as "etnias de origem" e as "~tnias da diás~~ra" mente com indivíduos pertencentes às etnias eubá, yebú, ibadan, ijechá.
podem ser consideradas "etnias autênticas" no sentido antropológico, Um ketu transformado em nagô, obviamente, já é uma coisa diferente do
uma vez que correspondem a culturas surgidas espontaneamente dos su- que era um ketu na África, pois possui um novo traço de identidade. Na re-
jeitos por elas envolvidos (os próprios africanos transplantados para o belião malê de 1835, que além da liderança dos haúças contou também
com a liderança dos nagôs, esses subgrupos associados à cultura yorubana
baCO~g~S-~?n[Jo o~~/;:;:~-,M~rri,~--:-;j~~~~:f:f~' identificavam-se pelo grito de guerra "viva nagô". Autopercebiam-se, por-
~ " mbundos' , nsundls~-"" ,Ji;-/' :''''t(,:'i;ttifbáS\,~' tanto, de uma nova maneira (sem necessariamente abrir mão de suas iden-
g, ( tekes '.'" /,, .-,.(jejesL Yebus, tidades ancestrais), o que aliás não teria sido possível no continente africa-
<í.\mbwelas , !Ewes" ;'0. o,';' r i
no, onde os novos nagôs poderiam mesmo corresponder a etnias rivais e
\. SANTAS \,/ o$UPANESAs ,A~~<:In~s/~ e
','(Arguns,Exemplos), (Alguns EXemplos)" Fantl~/ o'" B reciprocamente hostis. Por outro lado, na geografia do tráfico, um ketu se-
~ -. ' " .' / () o
0" "o sutos H\iÍJçá~/ ~ ria provavelmente incorporado à nação dos minas, já que seu provável por-
Mandi~ga$/
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to de exportação estaria situado na região da Guiné. Como se sabe, no Rio
'fi4~ ~ ' _" \l'
de Janeiro a classificação mina tendia a abranger também os guinéus, de
modo geral, e não apenas os africanos oriundos da Costa do Ouro -
Moçambiques
como os fantis e ashantis - que eram os minas propriamente ditos.
Cabo-verdes Também poderiam ser classificados como minas os marris - africanos
que habitavam uma região ao norte do Daomé e que, na África, eram ha-
Benguelas
bituais vítimas de povos jejes que costumavam fazer incursões no seu ter-
Minas
Angolas ritório para capturá-Ias como escravos. Irmãos de escravaria, contudo,
Cabindas
Congos
tanto os mahis como os jejes (grupo mais abrangente que inclui as etnias
fon e ewe), tendem a serem classificados no mercado do Rio de Janeiro
Esquema: Os três tipos de etnias referentes aos escravos africanos como minas no sentido mais amplo. Conforme veremos mais adiante,

88 89
uma documentação estudada por João José Reis e relacionada a uma ir- Conforme se vê, o esquecimento das "etnias de origem" mostra-se es-
mandade negra controlada pelos marris dá a perceber bem claramente timulado tanto pela difusão das "etnias do tráfico", destinadas a estabele-
que já não havia mais hostilidade na província entre estes dois grupos cer identidade_sartificiais meramente sustentadas na geografia da captura
(REIS, 1996: 18). Contudo, ambos hostilizariam no Rio de Janeiro colo- e d~ e~portaçao de escravos, como também pela já discutida construção
nial os angolas, uma "etnia de tráfico" que incluía muito provavelmente da ideia de negro, capaz de unir africanos tão dispares como um ho-
africanos pertencentes a etnias bantas com as quais um marri jamais teria mem-cegonha e um bosquímano, ou de abrigar sob o seu guarda-sol as
qualquer oportunidade de conviver na África, já que naquele continente inúmeras etnias do continente africano. Os filhos de escravos, ao longo
estes grupos habitavam regiões geográficas bem afastadas uma da outra. de um lento processo que se arrasta por três séculos, verão gradualmente
No Rio de Janeiro colonial do século XVIII, por alguma razão, estes gru- se perder no horizonte a noção de que são jejes, ambacas, quissamas, re-
pos parecem ter adquirido e desenvolvido hostilidades recíprocas, já que bolos, mbundos, mbwelas, tekes, nsundis, ou tantas outras etnias que po-
os marris os discriminam explicitamente na irmandade negra por eles con- deriam ter sido afirmadas como diferenças culturais. Esse esquecimento
trolada (REIS, 1996: 18). étnico ocorre com tanto mais força quanto se afirma emergência de uma
Exemplos como estes são muito interessantes, porque de um lado re- nova dicotomia, entre outras: aquela que opõe africanos e crioulos, estes
velam claramente um embaralhamento colonial das etnias africanas de últimos constituindo o grupo dos negros nascidos já na colônia.
origem, e de outro lado mostram novos embaralhamentos sobre os ante-
riores, estes já produzidos ao contato com as chamadas "etnias do trá-
fico". Assim, debaixo da grande diferença negra imposta pelo escravis-
mo-colonial, novas solidariedades se constroem onde antes não havia, e
novas rivalidades são circunstancialmente produzidas.
Voltando à parte em sombreado do nosso esquema, podemos dizer
que, entre as "autênticas" etnias negras - aqui incluídas todas aquelas
que, em algum momento, foram sentidas como identidades ancestrais pe-
los negros do Brasil colônia - existem tanto as que já possuíam realidade
efetiva no continente africano, como as que adquiriram realidade poste-
rior. Retomemos, contudo, a questão das identidades criadas mais pro-
priamente em função do tráfico negreiro. Consideraremos que, de qual-
quer modo, tanto quanto a categoria gigante de "negro" - engolidora de
todas as diferenças étnicas - as categorias embaralhadas a partir dos por-
tos de exportação ou dos circuitos de comércio e apresamento também
dão o seu quinhão para a dissolução ou secundarização das "etnias de
origem" no novo mundo. Um nsundi ou um teke, não importa as diferen-
ças entre uma e outra destas identidades étnicas, torna-se facilmente um
cabinda. O mbundo e o mbwela deverão ambos aceitar uma nova identi-
dade, a de benguelas.

90 91
De qualquer modo, em que pese que, através do imaginário coetâneo

-
ao escravismo colonial, veja-se circunstancialmente situado em uma dia-
gonal qualquer de desigualdades este "mulato", ou outras mais categorias
Novas diferenças: crioulos e que sejam geradas a partir de um espectro da cor a ser definido imaginaria-
9 mulatos mente pela polarização entre o branco e o negro (o mulato claro, o mulato
escuro, ou o que mais se queira), o mulato e suas variações encontram
cada qual o seu lugar certo no horizonte das diferenças sociocromátícas".
Ser mulato, no imaginário do escravismo colonial, desenhava-se para as
elites coloniais e imperiais como uma diferença - ainda que uma diferen-
o processo de novas diferenciações a partir da indiferenciação de to- ça que, permitindo maior flexibilidade ao seu portador do que a tinha o
das etnias negras na categoria "raça negra" apresentou ainda outras possi- indivíduo considerado "negro" - favorecia a que os mestiços circulassem
bilidades surgidas da própria vida colonial - contra pontos mais ou menos com maior desenvoltura no eixo das desigualdades sociais podendo aspi-
úteis para os colonizadores europeus que almejavam controlar o imaginá- rar a uma cidadania plena. O mulato, ousaremos dizer, introduz aqui
rio negro e o imaginário sobre o negro. Assim, outras diferenças criadas já uma nova contribuição à dialética entre a diferença e a desigualdade.
na colônia que se tornam cada vez mais relevantes são as de crioulo - o ho- Por outro lado, gerador de uma nova posição no reino das diferenças
mem de pele identificada como negra nascido no Brasil- e o pardo, ou mu- sociocromáticas, o mulato afetava com a sua presença, de um modo ou de
lato, produto da mestiçagem de africanos com brancos europeus ou des- outro, a leitura da elite colonial sobre a realidade escrava. Será possível
cendentes de europeus já enraizados na colônia. Definir como pardo - ca- notar nas fontes da época o registro das novas diferenças que se impu-
tegoria que o indivíduo não raro ostentava com certo orgulho para distan- nham à realidade colonial através desta gradação de cores com as quais
ciar-se mais da ideia de escravidão associada aos negros - implica r~intro- muitos pretendiam redesenhar o espectro da variedade escrava.
duzir mais uma vez na diferença a "desigualdade", agora já através de um Em uma das pranchas onde desenha vários tipos de negros - na ver-
"preconceito" que postula para o indivíduo assim classificado um "estar a dade embaralhando categorias étnicas e portuárias - Debret refere-se a
meio caminho do branco", embora sem chegar lá, implicando-se esta pro- uma Cabra - "crioula, filha de mulato e negra, cor mais escura do que o
posição que ser "branco" é uma posição superior no reino das diferenças. mulato". O retrato e o nome estão em meio a uma sequência e lista de ou-
A coordenada das diferenças de cor, desta maneira, transmuda-se de ma- tros que incluem desde as classificações portuárias e geográficas - como
neira ambígua em uma espécie de diagonal de desigualdades cromáticas, cabinda, benguela, congo, moçambique - até os resíduos das diferenças
uma realidade que se arrastará também para o mundo dos libertos", étnicas, como rebolo ou monjolo, chegando por fim às classificações rela-
tivas ao grau de pigmentação da cor: cabra, mulata (na prancha, corres-
ponde à figura situada no centro da parte inferior, a cujo retrato Debret
65. Desigualdade que também se introduz na diferença pegra é a que separa entre os negros afri-
canos os boçais - os escravos que, recém-chegados da Africa, não conheciam a língua e os costu-
acrescenta a explicação: "filha de branco com negra, concubina, 'teúda e
mes da terra - e os ladinos, os que já conheciam a língua e as manhas do Novo Mundo em que se
encontravam. A dicotomia entre ladino e boçal, contudo, também podia se referir ao contraste en-
tre um potencial de adaptação do primeiro em relação à inadaptabilidade do segundo. No livro de 66. A este respeito, ver os interessantes comentários de Mariza Correa: "ao contrário da fluidez e
Antonil, lê-se que aos ladinos poderão ser confiados ofícios domésticos ou delicados, porque d~les circulação supostamente permitidas nesse continuum aos' elementos de cor', à mulata é reservado
é possível requerer maior atenção, e que seriam necessários 4 boçais para equivaler a um ladmo um lugar definido, ou definitivo, no 'encontro das raças': uma espécie de pororoca cultural. Ou,
(ANTONIL: 122). Em todo caso, com relação à dicotomia entre boçais e ladinos, falaremos antes como observa DaMatta, nosso sistema de classificação, ainda que funcione por gradações, postula
um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar" (CORRÊA. 1996).
de desigualdades que de diferenças, já que o boçal pode se tornar ladino.

92 93
manteúda"'). Quando se refere à "cabra", no texto acima destac~d~ (3a cotomias fundadas em diferenças então se apresentam: a que situava o
imagem superior, da esquerda para a direit~), n~te-se q~e a des.cn~ao da negro africano em oposição ao crioulo, negro da terra, e a que opunha to-
personagem específica principia com o desIg.natlVo da dIferencIaç~~ que dos os negros aos pardos, sendo que muitos destes mesmos, na maior
já se refere à naturalidade: "cabra - crioula, filha de mul~to e negra. Um parte dos casos, estariam preocupados em aproveitar a diluição de sua
mundo de diferenciações de vários tipos, portanto, aqui se entretece, to- cor para diluir a memória da escravidão.
das regi das pela diferença unificadora, a de "escravo", que a~arece gene- Mesmo nos casos em que africanos e afrodescendentes permaneciam
ralizada na legenda da foto através do letreiro "escravas de diferentes na- escravos, essa condição escrava não seria mais suficientemente forte para
ções" (DEBRET: 226-227). impedir que surgissem novas e profundas diferenças culturais no interior
da população negra, prontas a serem habilmente manipuladas pelos senho-
res brancos do açúcar, do ouro e do café, tal como revela o famoso Tratado

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do Engenho de Santana, descoberto na Bahia por Stuart Schwartz e datado
de 1789 (SILVA & REIS, 1989: 23)67. Hábeis em lidar com esta nova dife-
rença, logo alguns destes senhores de escravos aproveitam-se precisamen-
te para criar ou estimular uma espécie de hierarquia, que de algum modo
<t lhes interessava. Assim, não seriam raros aqueles que insistiriam na supe-
rioridade dos crioulos - escravos nascidos no Brasil- sobre os muitos es-
cravos africanos que continuaram a chegar por meio do tráfico negreiro,
mesmo depois das leis que o proibiram. Naturalmente que, para os afri-
canos cujo nascimento era vivenciado como motivo de especial orgulho,
estas discriminações não podiam ser acolhidas facilmente (KARASCH,
1987: 74).
A introdução da categoria "crioulo" no cenário das diferenças negras
é particularmente elucidadora a respeito deste território cultural que se
Jean-Baptiste Debret Escravos de Diferentes Nações "Prancha 22"
mostra, inevitavelmente, tão ricamente povoado de ambiguidades. De
de Viagem Pitorescae Historia ao Brasil fato, "crioulo" é uma expressão que frequentemente aparece referida
como designativa de uma "nação" na documentação da época do escra-
A introdução do africano no Novo Mundo, portanto, pr?,duziU nov~s
diferenças ao gerar de um lado uma descendência e.s~r~va ja local e ~ao
67. Da mesma forma, em excelente estudo sobre as disputas étnicas no interior das irmandades
mais africana, e de outro lado se abrindo para a possibilidade da mestIç~- negras, João José Reis identifica nos registros de uma destas o seguinte sintoma de rivalidade entre
gem, ou com brancos pobres ou com membros da própria classe senh~n- africanos e crioulos: "A aliança africano/crioulo não era fácil, Os jejes da Irmandade do Senhor
Bom Jesus dos Martírios. da vila de Cachoeira, no Recôncavo baiano, expressaram sem rodeios
ai, neste último caso por meio de filhos de escravas e senhores do aç~car
sua animosidade em relação aos crioulos no compromisso de 1765, O capítulo que regulamentava
ou do café. As novas diferenças produzidas a partir do encontro do africa- a entrada de irmãos estabelecia: 'com declaração de que não se admitirão nesta Irmandade os ho-
no com um novo solo - o crioulo nascido na terra - e do encontro do ne- mens pretos nacionais desta terra. a que vulgarmente chamam crioulos, senão dando cada um de
entrada dez mil réis'. A taxa de associação paga por africanos era 15 vezes menor. E apesar de pa-
gro com um novo grupo humano de cor distint.a, o ?~rdo, não deixaria~ gar alto preço para ser aceito, o crioulo o seria com restrições: 'com condição de que nenhum
de gerar também novos conflitos, concretos e simbólicos. Duas novas di- exercerá em Mesa cargo algum em que haja de ter voto'" (REIS, 1996: 16).

94 95
vismo colonial, seja a produzida pelas elites colonizadoras (como os do- sui de singular por ser pertencente a uma etnia no sentido antropológico
cumentos de alfândega, as tabelas portuárias, os documentos de compra (um sistema de parentesco próprio, um circuito fechado de práticas e re-
e venda, os testamentos, as concessões de alforria, os anúncios de venda presentações, e assim por diante), o crioulo já não o tem. Enquanto um
ou fuga de escravos), ou seja ainda a documentação que expressa de al- nuer é muito semelhante ao outro nuer no sentido étnico-cultural, já
gum modo a própria autopercepçâo de escravos e libertos (como, por um crioulo podia ser completamente diferente do outro crioulo - tanto
exemplo, os regimentos de irmandades de homens pretos). física como culturalmente.
Ora, "nação", no sentido original africano, deveria se referir mais es- Desse modo, "crioulo" aparece definido como "nação" em certos do-
pecificamente a um povo, mais propriamente a uma "etnia", no sentido cumentos por mera ausência de algum outro recurso discursivo que pu-
antropológico. Nuers, yaghas, senufos, peuls, mandingas, zulus, tekes, e desse designá-Io de outra forma. Numa tabela inventariante em que este-
tantos outros povos constituiriam nações neste sentido mais específico jam sendo relacionados escravos de determinada procedência (seja uma
que se dá a uma etnia: um grupo que reúne indivíduos não apenas com etnia autêntica ou uma "etnia" do tráfico), o crioulo acaba sendo relacio-
traços físicos em comum e que nasceram ou são originários de um mes- nado na coluna das "nações", embora ele rigorosamente não possa ser
mo "lugar", como também dotados de características culturais em co- compreendido como pertencente a uma nação da mesma maneira como é
mum. Os nuer, por exemplo, possuem um sistema de parentesco muito um nuer ou mesmo um angola.
específico, bastante singular, aliás (EVANS -PRITCHARD, 1940); vivem Este, aliás, é outro ponto. Já discutimos o fato de que os angolas, ben-
sob a égide de práticas e representações que são só suas e que lhes dão es- guelas, congos, cabindas não são "etnias de origem", mas sim "etnias do
pecificidades culturais, possuem uma "história-memória" em comum, tráfico". O uso da expressão "etnia" para este caso é meramente uma
uma mitologia de suporte, um determinado sistema de rituais de passa-
adaptação, aliás carregada de uma dose de ironia. Se os angolas são os
gem' uma certa maneira de se vestir e de estabelecer intercâmbios materi-
negros africanos exportados a partir do porto de Ruanda, estes na verda-
ais e simbólicos, e, assim por diante, tudo o que constitui ltura"
de podem pertencer às mais diversas etnias de origem. Já vimos que uma
no pleno sentido antropológico. cafila podia atravessar por meses o interior da África, conduzindo escra-
Os "crioulos" não são, é preciso reconhecer em seguida, indivíduos vos capturados em lugares vários e em situações diversas. Deste modo,
relacionáveis a uma cultura singular, isto é, não neste mesmo sentido que quando muito, poderia ocorrer que entre os angolas aparecessem com
aparece com etnias como a dos nuer. São indivíduos cuja única caracte-
maior probabilidade africanos pertencentes a um certo número de grupos
rística básica, o único elemento em comum que os une em princípio sob
étnicos, por oposição à nação dos congos, que por envolver um circuito de
esta designação, é o fato de serem "homens de pele negra nascidos na ter-
tráfico distinto provavelmente tenderia a, nos seus quadros, apresentar
ra". São negros não mais africanos, enfim. Culturalmente, estes indivíduos
africanos relacionados e um outro conjunto de etnias de origem.
estão mergulhados na transcultura gerada pela sociedade colonial, assim
como os mulatos, os brancos pobres e abastados, e outros. Os crioulos Em suma, mesmo que correspondam mais habitualmente a certos
não possuem uma memória ancestral própria, fechada no sentido étnico, campos de probabilidades étnicas, as "etnias do tráfico" não são em ab-
a não ser que se filiem espontaneamente a esta memória e queiram se au- soluto "etnias" no sentido antropológico, e apenas é possível empregar
toperceber como haúças ou mandingas por serem filhos de pais haúças esta palavra por mera força de expressão. Um angola não é (necessaria-
ou mandingas (mas frequentemente, é preciso lembrar, os crioulos po- mente) similar a um outro angola do ponto de vista antropológico mais
diam ser filhos de pai e mãe africanos de origens étnicas distintas, ou rigoroso, a não ser que calhasse de estes dois angolas serem ambos
mesmo filhos de negros com brancos que não resultaram numa aparência mbundos, ovimbundos ou indivíduos originários de qualquer outra "et-
percebida na época como mulatos). Enfim, tudo aquilo que um nuer pos- nia de origem" em comum.

97
Posto isto, conforme vimos argumentando, tanto as "etnias do tráfico"
- a exemplo dos angolas ou congos - como a categoria dos "crioulos", pas-
saram a representar identidades específicas. É neste sentido que, na litera-
o lugar do mulato: paraíso ou
tura e documentação da época, aparecem referidos como "nações". As re-
ferências a negros afros ou afrodescendentes em termos de pertencimento
10 purgatório colonial?
a uma "nação", no contexto específico das sociedades escravistas-colo-
niais, passaram a ser associadas a um sentido outro que não era o das "et-
nias de origem" na África, as únicas etnias autênticas do ponto de vista an-
tropológico. Se depois, já no processo de transculturação, determinados
indivíduos pertencentes ao grupo dos angolas passam a sintonizar-se em O que se pode dizer com relação ao aspecto da contraposição entre
torno de certos padrões culturais em comum, esta já é uma outra história. negros e mulatos é que, em geral, o mulato conseguiu se impor na socie-
As etnias, aliás, também podiam ser inventadas ou reconstruídas no sentido dade escravocrata do Brasil Colonial e Imperial como nova diferença su-
antropológico, como foi o caso, conforme vimos atrás, da nação "nagô", jeita a menos desigualdade. Tornou-se célebre o dito de Antonil, cronista
O crioulo entra no quadro das diferenças negras da América Portugue- do início do século XVIII a que já nos referimos, segundo o qual "o Brasil
sa, enfim,·como uma identidade específica. De qualquer modo, a diferença he Inferno dos negros, Purgatório dos brancos, e Paraíso dos mulatos e
entre o escravo africano e o escravo brasileiro (o crioulo) estava destinada a das mulatas" (ANTONIL, 1967: 124). O dito de Antonil é bastante elo-
se reduzir na medida em que o tráfico negreiro começou a ser dificultado quente, e vale a pena ser examinado no que se refere à questão das dife-
no século XIX até finalmente ser formalmente proibido. Mas a diferença renciações sociais que particularmente nos interessam.
entre o negro e o mulato terá vida longa, o que confirma o fato de que o Para os negros, em meio aos intensos castigos, ao trabalho interminá-
mulato não pode ser pensado como gradação entre o negro e o branco - vel e ao infernal calor das fornalhas da fábrica de açúcar ou à mais deses-
embora este seja o seu discurso - e sim como nova diferença. 'Autores di- perançada escuridão das minas de ouro e diamante, a América Portugue-
versos examinaram o papel do mulato como amortecedor entre o negro e o sa não podia significar outra coisa que não a danação na própria vida - e é
branco, mas mesmo neste caso está aí uma questão de diferença - relacio-
ainda o próprio Antonil quem acrescenta mais adiante que, segundo cos-
nada a uma nova função que surge no mapa racial escravista - e não uma
tuma-se dizer, "aos negros são necessários três PPP, a saber Pau, Pão e
questão de gradação, embora o mulato certamente esperasse do branco ser Pano" (ANTONIL, 1967: 126).
tratado com menos desigualdade relativamente ao negro.
Já para os brancos, que se viam como exilados da metrópole onde se
O século XIX, aliás, é particularmente interessante no que concerne à
encontrava a verdadeira civilização, a passagem pela colônia - provisória
convivência destes três tipos: o africano, o crioulo, o mulato. A tendência
ou não, mas sempre vivida no espírito da transitoriedade, conforme parece
após a proibição do Tráfico Atlântico, em 1850, será a de se inverter a
insinuar Antonil - não podia significar outra coisa senão uma purgação,
proporção entre africanos e crioulos, já que, por forças das circunstâncias
verdadeira provação a ser vivida antes que aqui completasse a acumulação
e apesar do contrabando, deverá reduzir-se o contingente africano na es-
de riquezas que lhe permitiria progredir para uma realidade superior.
cravaria brasileira. Mesmo assim, até a abolição, esses tipos ainda convi-
vem como novas diferenças: uma convivência nem sempre isenta de hos- Mas os mulatos mostravam-se capazes de se movimentar melhor
tilidades. Debret teria observado, tal como outros viajantes, que "os ne- através da mediação entre os dois mundos, de melhor negociar com sua
gros no Brasil julgavam seus irmãos de sorte, os mulatos, como 'mons- "pigmentação diluída" a simpatia do branco escravocrata, e de por fim
tros', uma raça maldita" (FLORENTINO & GÓES, 1997: 34). conquistar uma vida mais satisfatória em uma terra que, afinal de contas,

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era mais do que de todos a sua - já que nem carregavam o dramático peso tância em relação à civilização e ao progresso. A "rnulatizaçâo", deste
da memória de um desterro forçado como os negros africanos, e nem a modo, não é vista por este grupo como amenização da diferença africana,
prepotente sensação de estarem separados de uma Europa civilizada que mas como contaminação originada por esta. E, mais ainda, a diferença ne-
afinal não conheciam. A estes, a sociedade colonial em construção sempre gra passa a ser percebida por esta parcela da elite branca como se represen-
ofertava e abria as necessárias brechas para uma vida que nem seria tanto tasse o "estrangeiro absoluto", mas com alto potencial de contaminação-
de tediosas purgações nem de infernais sofrimentos. O mulato, enfim, que uma espécie de vírus capaz de obstar o progresso".
na lógica do cromatismo colonial estava a meio caminho entre o branco e o
Estas posições excessivamente radicais em relação à compartimentaçâo
negro, conquistara todavia o seu singular paraíso, para além do purgató-
e imiscibilidade racial foram contra ponteadas, eventualmente, por aquelas
rio dos brancos desterrados e do inferno dos negros escravizados.
posições que elaboram aquilo que poderíamos chamar de um "elogio da
Esta frase um tanto caricata proposta por Antonil, um pouco construí- mestiçagem" - posição teórica que procurava enxergar de modo positivo a
da como efeito literário, provavelmente tinha em vista a vida infernal dos combinação genética ou cultural entre o negro e o branco por meio da me-
negros boçais da lavoura ou das minas (mas não tanto os escravos urba- diação do mulato. José Bonifácio de Andrada e Silva (1793 -1838), o mais
nos), os brancos muito pobres ou os senhores ainda em ascensão (e não notório estadista dos primeiros momentos da época imperial, teria afirma-
tanto os já bem estabelecidos senhores dos engenhos), bem como os mu- do que "o mulato deve ser a raça mais ativa e empreendedora, pois reúne a
latos bem-sucedidos em separar-se mais claramente do estigma da ances- vivacidade impetuosa e a robustez do negro com a mobilidade e sensibili-
tralidade africana. De qualquer modo, a frase imortaliza uma divisão tri- dade do europeu" (ANDRADA E SILVA, 1998: 126fo.
partida da sociedade que forneceria categorias para o futuro: o branco, o
Ainda sobre a singular categoria "mulato" há mais a dizer. Esta cate-
negro, o mulato.
goria é de fato extremamente complexa, porque a partir da variação pos-
Por outro lado, não era obviamente unânime a ideia de que o mulato se sível das tonalidades de pele poderiam ser criadas, em tese, inúmeras ou-
produz na sociedade colonial como uma "amenização" da natureza africa- tras diferenças de interrnediação entre o branco puro e o negro puro. E
na - e também a rejeição mais radical da diferença negra encontrou sua isto de fato ocorria, como já vimos, pois era possível pensar nas catego-
obstinada expressão através de reações diversas nas elites coloniais, reper- rias do "mulato claro" ou do "mulato escuro" (a "cabra" mencionada na
cutindo outros modos de perceber o mulato. Já examinando os tempos do prancha de Debret atrás reproduzida, por exemplo), afora outras media-
Império, o historiador Jaime Rodrigues, por exemplo, estudou uma peque- ções. Contudo, como a categoria mais generalizante do "mulato" faz par-
na parcela da elite imperial que tanta aversão ao negro tinha, que por esta te do imaginário e dos sistemas de classificação censitária do período co-
razão se colocava contra a continuidade do fluxo de escravos africanos lonial e imperial, e posteriormente adentra a República com igual vigor e
(RODRIGUES, 2000)68. Para esta elite, os africanos seriam portadores de
uma "doença moral" que os inclinava a contaminar a sociedade brasileira e
69. Serão posições análogas a esta que, na América do Norte, motivaram na primeira metade do sé-
promover a "corrupção dos costumes", de modo que quanto mais africani-
culo XIX alguns planos de "repatriação" de negros americanos libertos, reconduzindo-os à África
zada se apresentasse a população do Império, tanto maior seria a sua dis- em uma espécie de diáspora invertida. Conforme veremos adiante, uma destas experiências _ patro-
cinada por uma empresa chamada American Colonization Society e movida mais pelo horror da con-
taminação social do que,por motivos humanitários - desembocaria na fundação da Libéria através
68. É oportuno registrar ainda que, já no 11Reinado, começam a ter alguma influência na consoli- da transferência para a Africa de alguns negros que já viviam livres nos Estados Unidos (1820).
dação de uma mentalidade racista nacional as ideias de Gobineau, que em seu Ensaio sobre a Desi- 70. Na sequência deste mesmo texto, aliás, José Bonifácio continua a elaborar outros elogios de
gualdade das Raças Humanas (1854) expressa não apenas o desprezo pelas raças por ele classifi- mestiçagem, e entre eles ressalta que "Misturemos os negros com as índias e teremos gente ativa e
cadas como inferiores, como também uma depreciação dos processos de mestiçagem. Ver Gobi- robusta - tirará do pai a energia e da mãe a doçura e o temperamento" (ANDRADA E SILVA,
neau, 1940, tomo 11:539. Ver ainda Raymond, 1990: 145; Finot, 1921: 15. 1998: 156).

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valorização inclusive nos mecanismos censitários, avancemos mais na re- guesa dos Açores, que ganhava a vida como lavadeira, será apenas o mais
flexão sistemática sobre ela, e sobre o que representava na América portu- notório dos exemplos.
guesa e, posteriormente, no Brasil imperial.
Estes indivíduos, que eram socialmente percebidos como mulatos, ti-
"Ser mulato" no Brasil escravocrata, este será o nosso ponto, não era nham as suas fraternidades próprias, como a célebre Irmandade de São
apenas ser identificado com uma tal ou qual posição intermédia na esca~a José dos Homens Pardos. No Rio de Janeiro do século XVIII, há tantas
cromática das diferenças; era também assegurar um posicionamento mais delas que os irmãos pardos da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Mor-
confortável no espectro das desigualdades. Isto porque o mulato não era te resolvem encaminhar uma petição ao rei Dom José para que este lhes
apenas filho de branco e de negro, era sobretudo filho de homem livre e de conceda o direito de sediar em sua Igreja todas as outras irmandades de
escrava (o contrário - ser filho de mulher branca livre e de escravo - era ex- homens pardos, com o que pretendiam evitar a dispersão dos integrantes
tremamente raro)". Tinha-se com o mulato, portanto, uma associação de mulatos das várias irmandades e viabilizar uma maior integração de seus
duas combinações: o mulato ou homem pardo representava ao mesmo membros (1765)'2.
tempo a mistura das diferenças e a mescla de duas posições dicotômicas na
Em uma sociedade onde sobressaía imaginariamente o opulento
escala das desigualdades. Em relação a este último aspecto, a um só tempo
grande senhor branco e o sofrido negro escravo - apesar de tantos ho-
o mulato trazia na pele o passado escravo (mesmo que vivido por um as-
mens livres pobres que pululavam no Brasil escravocrata - o "mulato"
cendente) e um presente ou futuro liberto. Para ele, enfim, confluíam as
frequentemente expressava o desejo de se afirmar como diferença nova,
duas diferenças de cor, e as duas posições no eixo das desigualdades. em separado da diferença negra. Muitos se vestiam de um outro modo,
Em diversas circunstâncias os mulatos irão encontrar seu espaço mais afastavam-se dos marcadores étnicos que poderiam lembrar as etnias e
confortável na hierarquia colonial. No campo e nas fazendas, alguns se nações africanas - fossem as legítimas ou as inventadas na América por-
tornarão feitores, mas nas cidades também se tornarão funcionários, tuguesa - e não raro mostravam um considerável ímpeto para galgar os
mercadores locais, artesãos, bacharéis, advogados. Alguns se.ordenarão degraus que lhe fossem franqueados na sociedade colonial. Também não
padres. Tornou-se célebre, por exemplo, o caso dos músicos bra~ileir?s faltarão, entre os filhos e netos da miscigenação, os que se engajam nas
do período colonial e imperial- e aqui pode ser citada uma verdadeira ehte lutas abolicionistas, isto é verdade. André Rebouças (1833 -1898), que
de compositores e mestres-capelas mulatos, que vão de José Emérico Lobo compõe com Joaquim Nabuco (1849-1910) e outros um grupo extrema-
Mesquita (1746-1805) ao padre José Maurício (1767-1830). Mais tarde mente atuante em favor do abolicionismo, era filho de um advogado mu-
teremos os primeiros escritores célebres: Machado de Assis (1839-1908), lato e uma jovem branca filha de comerciante (e neto de escrava alforria-
filho de um pintor mulato de parcos recursos e de uma imigrante portu- da) O "recai que da antecedência escrava" e a afirmação da "luta aboli-
73.

cionista" surgem assim como linhas de ação para os filhos e netos de afri-

71. Para o caso dos Estados Unidos então, havia em certos estados como a Virgínia severas puni-
ções para a mulher que se relacionasse com negros ~eixan~~ ?role. A pena, conforme ressal.ta o 72. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. Correspondência da Corte com o Vice- Reinado; Códice 67,
historiador David Bryon Davis, ia de pesada multa a possibilidade de se_torn~r s~~va por cmco volume 2. Código de fundo: 86. Datas limites: 1764-1766.
anos (DAVIS, 1997: 21-22). A Virgínia, campeã americana da segregaçao racial, ja apresent~va 73. O próprio pai de André Rebouças, um advogado e parlamentar chamado Antonio Rebouças,
em uma lei promulgada em 1691 a proibição de "negros, mulatos, e í~di~s de se casa.rem com .I~- autodefinia-se como representante da população mulata brasileira e sustentava a ideia de que esta
glesas ou outras mulheres brancas" (OLSEN, 2003: 76). Temos ai ~s mdlc~do.res.da mten.sa rejei- população deveria ser especificamente representada no Conselho da Coroa. Por outro lado, André
ção da mestiçagem na elite branca americana, e que mostram que a mtoleran:la ~mda maior ~efe- Rebouças - que é referido pelos seus biógrafos ora como mulato, ora como negro - poucas vezes
re-se às relações inter-raciais envolvendo mulheres brancas. Por outro lado, e evidente que a mto- escreveu sobre questões pessoais relacionadas à sua cor e a eventuais preconceitos que pudesse ter
lerância inter-racial nos Estados Unidos não pode ser comparada, nem vagamente, ao caso bra- sofrido, quase não se referindo a este tipo de problema em seu Diário. De todo modo, foi um dos
sileiro, onde a mestiçagern foi se apresentando como uma prática. abolicionistas mais ativista na luta antiescravocrata.

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canos com europeus no Brasil. Contornar a diferença negra ou contestar De um modo ou de outro, a corriqueira sujeição amorosa ou sexual da
a desigualdade escrava serão dois caminhos alternativos para os mulatos negra africana pelo branco colonizador, seja forçada, seja através do mú-
que iam assegurando algum nível de instrução". E nem sempre estes ca- tuo consentimento, adquire aqui uma importância que faz contrastar o
minhos foram excludentes na história de vida de membros da intelectual i- escravismo brasileiro com o escravismo americano. Não há como contes-
dade mulata, se assim podemos dizer. tar esta tendência que apresentam os dois grupos - o dos portugueses
O mulato, em diversas ocasiões, foi no Brasil escravocrata o produto com seus descendentes diretos, e o dos africanos e afrodescendentes - de
de relações por vezes espontâneas entre o colonizador português e a es- se encontrarem do ponto de vista sexual, e, a propósito disto, é um sinto-
crava vinda da África. Às vezes estas relações terminavam por envolver ma importante o fato de que se destacava como critério extremamente
afetividade, companheirismo, privilégios para as negras escravas que fos- importante, a orientar a própria escolha de escravos que vinham para o
sem mães de mulatos filhos do senhor. Outras vezes despertavam ciúmes Brasil, a beleza física, notadamente no caso das mulheres. A fealdade de-
doentios e de resultados funestos, com vinganças ou hostilidades das es- preciava o preço da escrava, porque quando o colonizador a comprava, já
posas brancas. Também é certo que em diversas ocasiões havia muita vio- não pensava apenas na sua capacidade de trabalho. Em um estudo siste-
lência envolvida, e não se trata de amenizá-Ia. O uso da escrava como mático sobre os anúncios de vendas e fugas de escravos, extraídos do jor-
"coisa" para o sexo também era frequente, e convivia com a escolha de es- nal O Diário de Pernambuco de finais dos anos 1820, Gilberto Freyre
cravas como amantes privilegiadas. Há curiosidades, como uma prática (1963) destaca esse anúncio que por si mesmo já expõe o problema:
mencionada por um médico chamado João Álvares Macedo, em 1869, ci- Vende-se uma escrava por preço tão favorável que será incrível
tada por Gilberto Freyre, onde se asseverava que "a inoculação deste vÍ- no tempo presente por tal comprá-Ia; a mesma escrava não tem
rus [a sífilis] em uma mulher púbere é o meio seguro de o extinguir em si" vício algum, e he quitandeira, e só tem contra si uma figura desa-
(MACEDO JÚNIOR, 1869, apud FREYRE, 2002: 423). Ou seja, a jo- gradável e he o motivo porque, se vende; na cidade de Olinda na
vem escrava virgem era aqui a coisa, a propriedade na qualojovem se- segunda casa sobre o aterro das viças, ou no Recife na rua do
nhor poderia despejar o seu vírus sifilítico na esperança de "extingui-lo" Crespo 0.3 (DP, 1820, apud FREYRE, 2002: 489).
em si. Práticas como esta colocam a diferença escrava, aqui concretizada
Originados de relações entre homens brancos livres e negras escravas
através da extrema "coisificação da escrava", em convívio com uma outra
ideia de escravidão como forma de desigualdade que se via eventualmente que, ainda que não fossem relações legítimas, por diversas vezes os tra-
matizada pela elevação de algumas negras à categoria de amantes privile- riam para dentro da casa do senhor branco para serem criados com algu-
giadas. A mulher negra era o sujeito e objeto de uma e outra destas op- ma instrução, vários dos mulatos conseguiam abrir um caminho mais con-
ções, e o mulato, frequentemente, seu resultado. fortável na sociedade escravocrata, tal como se disse. Haverá, obviamen-
te, os que ficam à margem, aqueles que não são aceitos pela elite "branca"
colonizadora e para os quais a herança da africanidade pesará como um
74. Também ex-escravos negros, à parte os inúmeros que não conseguiram se equilibrar no novo fator de discriminação, de desigualdade social, de dificuldades econômi-
mundo de desigualdades econômicas com as quais agora tinham de se confrontar, tiveram à dis-
posição as mesmas estratégias de reposicionamento social. Entre ex-escravos abolicionistas, há o
cas várias. Haverá também as comunidades onde as elites escravistas são
exemplo de Luiz Gama - filho de um português e uma negra livre, que fora ilegalmente vendido mais renitentes na aceitação dos mestiços, e o célebre romance O mulato,
como escravo - e que, por caminhos autodidatas, tornou-se advogado e lutou pela libertação de
escravos nos anos 1850, vindo a fundar a primeira sociedade abolicionista. Mulato engajado dire-
escrito por Aluísio de Azevedo em 1881, busca retratar através da litera-
tamente na ação social abolicionista foi Antônio Bento, um dos líderes da organização dos caifa- tura os caminhos truncados que se interpõem a um indivíduo mulato na
zes, que atuava para a libertação de escravos junto ao quilombo do Jabaquara (Santos). Sobre Luís sociedade maranhense do período colonial, mesmo tendo ele se apropria-
Gama, ver Azevedo, 2005.

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do de toda a cultura letrada das elites através de estudos na Europa e sendo consideradas desdobramentos das "mestiçagens ancestrais" de povos
um belo mulato de olhos azuis". Mas, de qualquer modo, nesta sociedade bantos ou sudaneses com populações hamitas, árabes ou berberes.
desigualadora e diferenciadora que era a do escravismo colonial brasilei-
Para nos situarmos diante destes casos devemos ter em vista que, no
ro' o mulato conseguiu de modo geral encontrar um lugar especial como
âmbito da história genética africana, alguns povos do continente também
nova categoria ou como nova diferença a ser considerada, ainda que as
se formaram por misturas de povos de procedências várias, terminando
fontes da época frequentemente se refiram aos mulatos como portadores
por apresentar características físicas (e possivelmente culturais) de uns e
de um "defeito de sangue".
de outros destes povos que entraram em sua formação. Depois, passaram
Que o "mulato" é um tipo muito especial de mestiço na lógica colo- naturalmente a apresentar a tendência a relacionamentos endogâmicos
nial vê-se bastante bem quando o comparamos a outras diferenças - es- dentro de um grupo populacional já demarcado por certas características,
tas já africanas - que não deixam de ser também produtos de algum t~po como é o mais comum nos sistemas tribais africanos, e as heranças gené-
de mestiçagem (embora uma "mestiçagem" tomada agora num sentido ticas passadas adiante entre as famílias e indivíduos destas populações
especial - de marca coletiva, e não de um indivíduo de, "filiação mis- puderam se apresentar de modo mais homogêneo, de maneira que assim
ta"). Para compreender isto, devemos considerar que a Africa já forne- se consolidaram estas que estamos tomando a liberdade de chamar de
cia para as colônias as suas próprias "etnias mestiças", mas que obvia- "etnias mestiças" (embora, senso comum, o conceito de "mestiço" seja
mente, acompanhando o já decantado processo de indiferenciação de mais utilizado para identificar um indivíduo isolado proveniente da união
todos os africanos em negros, não eram vistas como tais. Nem estare- de pai e mãe de origens bem diferenciadas, e não o indivíduo comum que
mos considerando neste momento o próprio indivíduo mestiço africano, faz parte de uma população para a qual concorreram ancestralmente for-
que afinal de contas não deixava de ser uma possibilidade (isto é, o indi- mações genéticas distintas).
víduo filho de um árabe, europeu ou berbere com uma mulher negra de
Mas enfim, diríamos que a África, o mais rico continente em termos
origem sudanesa, por exemplo). Estaremos falando a seguir-de algo que
de variedade de contribuições genéticas, também produziu estas etnias
poderíamos chamar de "etnias mestiças", mesmo que impropriamen-
decorrentes do encontro de populações negras de origem banta ou suda-
te. Mas vamos por partes.
nesa com populações como os povos semitas e hamitas. Ou seja, também
Um africano banto ou sudanês de pele um pouco mais clara que fosse fazem parte da história genética africana as contribuições entrelaçadas de
vendido como escravo era ainda assim um negro, de acordo com a lógica povos negros propriamente ditos com berberes, árabes, egípcios, fení-
indiferenciadora do tráfico, ainda que na realidade existissem no conti- cios, e mais recentemente com povos germânicos como os vândalos, afo-
nente africano diversas etnias que, do ponto de vista físico, podem ser ra os latinos e bizantinos que já remetem a ligações produzidas em uma
época em que a África mediterrânea fora parte dos impérios romano ou
bizantino. Isto sem contar ainda as combinações de negros sudaneses
75. Esta fala de Raimundo, o herói mulato do romance de Aluísio de Azevedo, é bastante significa- ou bantos com negrilhos (pigmeus), bosquímanos, hotentotes, ou mes-
tiva: "Se soubesses, porém, quanto custa ouvir cara-a-cara: 'Não lhe ?OU minh: filha ~,orque ~ se~ mo asiáticos através de Madagascar.
nhor é indigno dela, o senhor é filho de uma escrava!' Se dissessem: 'E porque e pobre. que.dla~o.
- eu trabalharia! Se dissessem: 'É porque não tem a posição social!' juro-te que a con~U1stana, Estamos falando em todos estes casos de camadas e camadas de inter-
fosse como fosse!" É porque é um infame! um ladrão! um miserável! eu me comprometeria a fazer
de mim o melhor dos homens de bem! Mas um ex-escravo, um filho de negra, um - mulato! - E
câmbios entre povos, que produziram uma imensa variedade de etnias no
como hei de apagar a minha história da lembrança de toda esta gente que me detesta?" (AZEVEDO, continente africano. Um ponto nos interessa neste momento. O mapa de
1964: 272).

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etnias africanas do início do período moderno, por ocasião da montagem lembrar, aliás, que "negro" no vocabulário colonial podia ter ainda outras
do tráfico negreiro, admitia em sua rica complexidade também os povos conotações, e frequentemente em textos da época, sobretudo do princípio
negros de tonalidade de pele mais clara, que podiam ainda ser acrescidos do período colonial, os próprios povos indígenas são chamados de "ne-
e caracterizados por outros identificadores físicos de ordem diversa (um gros da terra". Mas isto já nos levaria a uma digressão maior do que a que
eventual cabelo tendente ao liso, nariz fino, modalidades diferenciadas de podemos nos permitir neste momento.
lábios). Estas populações africanas bastante singulares, das quais estare- Os haúças podem nos fornecer um segundo exemplo para a questão
mos sumariamente falando, denunciam misturas ancestrais entre povos que presentemente nos interessa. Eles constituíam um povo africano que
mais propriamente negros e outros relacionados a diferentes populações, contribuiu com um contingente numérico mais discreto para a população
entre as quais a caucasiana. negra do Brasil, mas por outro lado se celebrizaram qualitativamente na
Literalmente, o caso mais claro era o dos fulas (que por vezes também escravaria baiana por terem apresentado uma participação bastante ativa
aparecem referidos como peuls) 7\ e mais ainda o dos fulas fulos, homens em diversas das revoltas malês do século XIX. Esses negros haúças tam-
cujo tom de pele foi definido pelos cronistas da época como uma "cor có- bém já vieram da África como produtos da "mestiçagem entre povos ne-
brea", "avermelhada", e cujos cabelos eram percebidos como "quase li- gros e povos hamitas" - é assim que os descreve Haddon em seu estudo
sos" ou "ondeados", e que alguns - com o endosso de estudiosos posterio- sobre as "raças humanas" (HADON, 1925). Mas eram negros "negros"
res como Nina Rodrigues - chegaram mesmo a chamar de "negros de pelos mesmos motivos que o eram os fulas fuLos, sendo que o mesmo
raça branca". Os indivíduos oriundos deste grupo populacional eram cer- ocorreria com os mandingas - estes africanos singulares que teriam pos-
tamente herdeiros de contribuições genéticas para as quais confluíam sivelmente resultado, como assevera Henri Labouret, da mestiçagem de
uma parte de negritude sudanesa e uma parte da transversalidade hamita negros sudaneses com hamitas oriundos da região do vale do Nilo (LA-
ou árabe. Podiam apresentar mesmo uma tonalidade de pele. mais clara BOURET, 1934), ou que, segundo Gilberto Freyre, "acusam sangue ára-
que a de alguns dos indivíduos ditos mulatos nascidos na AméricaPortu- be e tuaregue" (FREYRE, 2002: 412).
guesa, mas eram do ponto de vista dos monta dores do sistema escravis- Estes casos todos mostram-nos uma África bastante rica de tonalida-
ta-colonial sempre "negros", porque "negros" eram todos os africanos de des de pele e de outros indicadores físicos, menos ou mais próximos do
pele um pouco mais escura que não fossem hamitas, árabes, berberes, ou padrão de pura negritude de algumas etnias sudanesas ocidentais e orien-
outros caucasianos do norte africano que viviam, por exemplo, acima do tais, ou de algumas das etnias bantas de cor mais escura. Assim, havia em
horizonte saariano. "Ser escravo" escurecia inevitavelmente a pele dos meio à variedade cromática africana algumas etnias que, do ponto de vis-
africanos que eram ambiguamente apodados de "negros de raça branca", ta mais estrito da tonalidade da pele, podiam até mesmo tender mais para
da mesma forma que "ser livre" contribuía para a percepção social do ela- o branco do que alguns dos nossos "mulatos" brasileiros, pelo menos
reamento, no caso mais específico dos mulatos nascidos na terra. Vale aqueles de pele mais escura. Mas a questão é que estes últimos eram vis-
tos pela elite branca colonial não apenas como um meio caminho entre a
diferença branca e a diferença negra, mas, sobretudo, como uma posição
76. Os fulas correspondem a povos da África Oriental que em alguns aspectos físicos aproxi-
intermediária entre a desigualdade liberta e a diferença escrava. Ser "mu-
mam-se dos europeus, como, por exemplo, o nariz mais afilado e os cabelos puxando mais para
o liso. Gilberto Freyre situa a sua tonalidade de pele em um "pardo-claro, avermelhado" (FREY- lato" no Brasil escravo - "mulato da terra", filho de escrava com homem
RE, 2002: 412). A expressão "negros de raça branca" para os fulas, certamente uma expressão branco livre (fosse um senhor ou um branco pobre) - significava estar lo-
carregada dos preconceitos tão comuns no pensamento antropológico da época, é de Nina Ro-
drigues (1932). calizado em uma categoria mais bem situada na escala social do que um

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fula escravo vindo da África, até mesmo se o último apresentasse even- - expressões que não obstante possuem um imenso peso imaginário na
tualmente pele mais clara", história antropológica do Brasil e que, de todo o modo, se apresentaram
como categorias sociais definidoras de inclusões e exclusões naquela an-
O franqueamento colonial de possibilidades para a mestiçagem - para
tiga sociedade colonial brasileira já tão rigidamente estratificada. Os mu-
esta mescla de diferenças que cria uma nova diferença, a diferença "mula-
latos, enfim, correspondem na sociedade brasileira pré-republicana a essa
ta" - foi, aliás, particularmente favorecido no Brasil, especialmente na-
imensa e indefinida zona de embaralhamento das diferenças de cor, ora
queles primeiros séculos de colonização em que faltavam para os senho-
percebida com simpatia ou desconfiança pela elite de colonizadores e se-
res ricos e colonizadores pobres uma contrapartida suficiente de mulheres
nhores de terra, ora autopercebida com orgulho ou constrangimento por
brancas. Esta necessidade, aliada a uma propensão já histórica dos portu-
eles mesmos. A "diferença mulata", ela mesma de cor indefinida, corres-
gueses para se misturarem sexualmente a outros povos, contribuiu para
ponde a uma posição importante no sistema de diferenças de cor do Bra-
projetar o Brasil em formação como um país mestiço, verdadeiro cadinho
sil escravocrata, muito mais do que ocorre no sistema diferenciador bipo-
onde as diferenças ora se misturam, ora nitidamente se separam, ao com-
larizado do sul dos Estados Unidos, por exemplo.
passado ritmo da dança das diferenças e desigualdades.
Naturalmente que, em vista das últimas colocações, devemos consi-
derar que isto que estamos tomando a liberdade de designar como uma
"diferença mulata" é bastante marcado de ambiguidades. Ao contrário de
povos inteiros produzidos no cadinho de mestiçagens ancestrais, q~e
passam a apresentar depois certas características intermediadoras mais
homogêneas e que trazem uma singularidade própria a estes mesmos po-
vos (fulas, haúças), tem-se uma situação bem distinta com rel~ção aos
mestiços produzidos individualmente por encontro de dois indivíduos de
origens diversas (ou, depois, com os entrecruzamentos destes mesmos
mestiços com outros dos indivíduos de matriz "branca", "negra", "índia",
ou outros mestiços de aparência já bem diversificada). Toda essa variedade
de entrecruzamentos individuais faz do imenso contingente de mulatos
brasileiros um espectro de variedades infinitas, um complexo de diferen-
ças que não pode ser demarcado como diferença "racial" senão sob o
abrigo destas palavras tão vagas que remetem ao "mulato" ou ao "pardo"

77. Por outro lado, é oportuno lembrar, em certas regiões como Minas Gerais as negras minas, e
também as lulas eram as preferidas para servirem de mucamas e cozinheiras, e, na verdade, para
serem assimiladas como amantes. Nestes casos, originavam-se da união entre brancos e negras
fulas indivíduos inseridos na categoria dos mulatos que possuíam traços ainda mais aproximados
aos europeus. Por assim dizer, há aqui dois níveis de mestiçagem superpostos. Aliás, há um inte-
ressante depoimento de Luís Vaia Monteiro - governador do Rio de Janeiro à altura de 1730 - que
ressalta, um tanto ironicamente, que "não há mineiro que não possa viver sem nenhum~ negra
mina dizendo que só com elas têm fortuna", assinalando ainda em uma passagem posterior que
essas' escravas eram frequentemente elevadas à posição de "donas-de-casa" (VIANA, 1933).

110 111
Assim, este grande e complexo processo que se desenrola no período
de implantação e consolidação do escravismo atlântico, a par do podero-
so fluxo principal que preside à construção da diferença negra, assiste
Entre festejos e irmandades: alguns
11 mecanismos para reforço da
também ao surgimento de algumas singulares dobras e reentrâncias.
Uma destas dobras foi a própria reconstrução artificial de "nações" ne-
gras como as dos "congos", "angolas", "benguelas" - típicas diferenças
diferença negra recém-inventadas pelos mercadores de escravos e que não eram mais do
que remissões a localizações geográficas ou a circuitos relacionados à
ponta africana do tráfico negreiro.
Outra singular reentrância, não tanto prevista pelos colonizadores e
Um balanço provisório pode agora ser traçado, em particular no que mercadores de escravos, foi a eventual formação menos ou mais espontâ-
concerne à questão do deslizamento das "diferenças africanas de origem" nea de algumas etnias transatlânticas, "novas" ou renovadas, e de certo
em direção a esta grande e unificadora diferença negra que começa a se modo recriações brasileiras da própria África. As origens destas etnias
formar com as sociedades escravistas coloniais. Abrangente e diluidora ainda estão sendo examinadas mais a fundo por pesquisas historiográfi-
em relação às diversas etnias originárias da África, logo veremos que esta cas atuais, e pode-se postular que teriam passado pelo desenvolvimento
diferença negra irá requerer, para a sua adequada preservação, seus pró- de linguagens e "etnias" de mediação que surgiram das próprias necessi-
prios mecanismos sociais, políticos e culturais. dades de os negros reconstruírem suas novas identidades em um mundo
Para entender estes mecanismos, é preciso considerar antes de mais escravo em que africanos de todas as origens serão obrigados a convive-
nada que o processo em que vai formando a diferença negra) naturalmen- rem uns com os outros.
te, não é isento de ambiguidades, de tensionamentos vários, de contrape- Por fim, outra dobra importante, e de natureza completamente diver-
sos diversos. Aquelas autênticas etnias e bem definidas diferenças tribais sa, refere-se ao surgimento de novas posições no interior da grande dife-
que existiam ou ainda existem no continente africano, vimos até aqui, em- rença negra, recém-criada, como ocorreu com a diferença "crioula" ou
bora marcassem muito claramente as suas distâncias recíprocas na África, com a divisão entre "boçais" e "ladinos", para não falar no surgimento de
e por vezes através de hostilidades que não raro chegavam à consumação uma diferença mulata, esta já um singular produto do encontro sexual ou
de violentas guerras tribais, terminaram nas colônias por serem embaralha- amoroso da diferença branca com a diferença negra.
das pelo tráfico negreiro da Idade Moderna através de um duplo processo. Eventualmente, também o vimos, com relação às antigas etnias auten-
De um lado havia a forja de uma grande "raça negra" - este grande recep- ticamente originárias do mundo africano que precede à introdução do
táculo em que todas etnias africanas caberiam e que, segundo o que pre- Tráfico Atlântico, também estas não deixaram de estender suas eventuais
tendia uma ideologia eurocolonizadora suspensa entre a maldição de Noé e permanências pela sociedade colonial brasileira, frequentemente renova-
as elucubrações de Lineu, estaria biblica e biologicamente destinado à es-
das ou transmudadas, mas em todo o caso presentes através de suas mar-
cravidão. De outro lado, não se excluía a possibilidade do eventual desen-
cas étnicas, de elementos culturais diversos, e de outros índices que a do-
volvimento de novos compartimentos classificatórios para acolher os in-
cumentação deixa entrever, mesmo que sob o filtro do olhar colonizador
divíduos oriundos da África, novas diferenças que, na verdade, nada te-
e dos olhares viajantes de artistas e cientistas que percorreram o Brasil,
riam mais a ver com as diferenças africanas originais.
particularmente no século XIX.

112 113
Um grande labirinto que envolve muitos sistemas de classificações su-
Tinha-se aqui, enfim, a fórmula máxima que passou a presidir a insti-
perpostos, enfim, seria uma boa maneira para nos referirmos a este com-
tuição de uma diferença negra, e que, um tanto paradoxalmente, convi-
plexo ambiente de diferenças que o tráfico negreiro e o escravismo colo-
veu,sem o me.nor pro~lema com a instituição de novas diferenças impos-
nial ajudaram a forjar: uma verdadeira reconstrução do não menos com-
tas a escravana colonial, Eis aqui um sistema que se alimenta de ambigui-
plexo mundo das etnias africanas originais. Reconstruído o labirinto das
dades - ou que, na verdade, não prescinde delas, utilizando-as em seu
diferenças africanas, e enriquecido por novas diferenças que são já tipi-
próprio favor e com vistas à sua própria perpetuação.
camente brasileiras, o novo mundo destinado aos africanos compulsoria-
mente transplantados para as Américas seria a partir daqui esse intrinca- ~ .0 modelo da grande unidade negra, contudo, necessitava de um imagi-
do universo de novas diferenças auxiliares que agora se acomodavam sob nano correspondente, de práticas culturais que o reforçassem, de repre-
a regência de uma diferença maior e definitivamente abrangente em rela- sentações .que obrigassem negros e brancos, e logo "mulatos", a enxerga-
ção a todas as outras: a diferença negra. rem as coisas de um determinado jeito. °
mundo da cultura, lato sensu
ofereceria importantes recursos. Alguns exemplos poderão ilustrar em se~
Mas como construí-Ia de maneira perene, definitiva, segura? Como
guida, a palheta de recursos sociais e culturais que foram disponibilizados
amalgamar de maneira não-explosiva, e tanto quanto possível harmônica,
para o reforço da ideia de uma diferença negra no mundo colonial.
esta mistura tão carregada de ambiguidades? Seria possível aplainar ódios
africanos ancestrais, e contudo utilizá -los eventualmente a favor do modo As chamadas irmandades de negros, por exemplo, apresentavam-se
de produção escravista? Como unificar os negros na resignação cons- c~mo estruturas bastante úteis que cortavam transversalmente a popula-
ciente de que todos eles teriam a partir dali um destino comum, com o de- çao afro e afrodescendente do mundo colonial. Análogas às confrarias
vido cuidado de não fortalecê-Ios neste processo de unificação? Como medievais no que se refere ao fato de que acomodavam grupos de indiví-
enfim convencer ao africano, que às vésperas de sua escravização se via duos em quadros auxiliares de sociabilidade e solidariedade, as irmanda-
como peul, mandinga, teke, mabingela ou zulu, que agora, a.n,tes de tudo, des da modernidade escravista-colonial não organizavam apenas os ne-
ele era um negro? E, para além disto, como convencê-Io a aceitar sem gros, mas também os pardos, brancos pobres, brancos abastados, cada
maior revolta o fato de ser um negro escravo? q~~is em seu próprio compartimento social". Com relação às elites colo-
niais: sab,e-s.e que, além de ligadas a irmandades específicas que exigiam
Todas essas perguntas e tentativas de respostas práticas geraram inú-
consideráveis posses para a aceitação de novos membros inscritos ti-
meras estratégias dos colonizadores europeus para a assimilação dos afri-
nham ainda acesso a outros quadros transversais de sociabilidade e mú-
canos subjugados pelo tráfico. "Conservar o dividido", por exemplo, fora
tua solidariedade, e a maçonaria oferece-nos um bom exemplo.
a estratégia dos traficantes europeus para a ponta africana da escravidão,
um processo que vimos ter se dado com o apoio da bem-recompensada Fossem associações leigas de negros, brancos ou pardos, as irmanda-
anuência dos régulos da África e da bem-remunerada cooperação de tra- des eram vistas pelos administradores coloniais e senhores de escravos
ficantes naturais da própria África neste mesmo processo. "Misturar para como peças importantes do sistema de imposição da ordem social, e de-
melhor controlar" fora a fórmula seguinte, encaminhada pelos traficantes cer~o cumpriam eficientemente a função de fornecer à administração co-
já nos porões dos navios negreiros e nos leilões de escravos em solo ame- lonial a perene aparência de conciliação entre os vários grupos sociais,
ricano, mas sobretudo pelos administradores coloniais nos engenhos de cada qual encontrando um lugar que lhe era permitido dentro dos limites
açúcar, minas de ouro e prata, fazendas de café. "Unificar para governar" da hierarquia colonial imposta.
era ao mesmo tempo a fórmula mais geral, sem problemas de compatibili-
dade com as fórmulas anteriores e na verdade complementar a elas. 78. Outra. di.visão possível nas irmandades de brancos podia se referir à separação entre portugue-
ses e brasileiros. Sobre as associações religiosas, ver SalIes, 2007.

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Neste sentido, o papel das irmandades era ambíguo, pois elas tanto gumas funções que, de outro modo, caberiam aos poderes públicos".
interessavam ao modus operandi do sistema colonial como um todo, Nas regiões onde fora proibida a fixação de ordens religiosas, como as
como podiam interessar às próprias vítimas deste mesmo sistema. Assim, regiões mineradoras, as irmandades responsabilizavam-se inclusive pe-
para retomar o caso das irmandades negras, tanto o escravo de origem ou los ofícios religiosos ou mesmo pela construção de igrejas e capelas.
ancestralidade afro como o negro liberto puderam encontrar efetivamen- Também desempenhavam funções assistenciais e prestavam solidarie-
te nestas irmandades um novo tipo de segurança para a vida e para a mor- dade aos seus confrades, "amparando-os na doença, na velhice e na
te, inclusive a garantia de um lugar sagrado para ser enterrado por oca- morte". Tal como nos atesta o historiador Caio César Boschi, participar
sião de seu falecimento. Nesta época, em que os cemitérios bem cuidados de uma irmandade era visceral para uma adequada vida social, e havia
situavam-se todos nos terrenos adstritos às igrejas e sob sua administra- mesmo uma "impossibilidade de o indivíduo viver à margem de seus
ção, não pertencer a uma irmandade podia implicar condenar o corpo a quadros" (BOSCHI, 1986: 26).
dissolver-se ao relento ou em desabrigo espiritual". Além disto, com o Mas vejamos mais especificamente como se processava a questão da
pertencimento a uma irmandade, os negros (e também os mulatos) asse- identidade negra no âmbito das irmandades de homens negros. Como já
guravam também um local para a reelaboração de sua identidade, mas de diz o nome, as irmandades de homens pretos não eram organizadas, por
uma maneira que também lhes interessava, o que incluía a oportunidade princípio, em torno de diferenças étnicas (ou, pelo menos, não era essa a
de encaminhar a sua própria leitura do catolicismo, desde que dentro de intenção das autoridades coloniais que permitiam, estimulavam, contro-
limites aceitos. lavam e fiscalizavam de alguma maneira o seu funcionamento). De fato,
De modo geral, e aqui nos referimos novamente aos vários tipos de ir- para a região onde mais prosperaram, que foi a capitania de Minas Ge-
rais, os pesquisadores que têm examinado as irmandades de homens pre-
mandades (não só às de homens pretos), as associações leigas surgem e
tos não têm encontrado qualquer indício nesta direção", e transparece
se desenvolvem precisamente no contexto da necessidade de uma organi-
mais claramente a ideia de que as irmandades se organizavam indistinta-
zação da vida religiosa que pudesse substituir com eficácia uma estrutura
mente em torno da questão da cor, fortalecendo desta maneira a ideia de
de religiosos regulares, já que em várias localidades as ordens religiosas
uma diferença negra. Por outro lado, havia uma segunda tendência que
viam-se proibidas de se instalarem.
pode ser bem representada pelas irmandades da Bahia. Nestas, eram me-
Neste contexto, o sistema de controle e fiscalização colonial inte- nos incomuns as referências àquelas diferenças menores que também
ressou-se em fortalecer as irmandades, para além dos motivos já aven- eram caras à administração colonial- como as "etnias do tráfico" (con-
tados, não apenas por que elas contribuíam para a estabilidade social gos, angolas, benguelas, minas) e outras diferenças criadas já no mundo
como também porque puderam assumir sob sua responsabilidade al-

80. O controle da Igreja e do Estado sobre irmandades era rigoroso e efetivo, apesar da margem
de liberdade interna que a elas se dispensava. Deveriam ser regidas por um estatuto interno previ-
79. Ilustra bem esta situação o "cemitério dos pretos novos", descoberto em 1996 na zona portuá-
amente aprovado tanto pela Igreja como pelo Estado, e que deveria definir as obrigações da ir-
ria do Rio de Janeiro ao ser trazido à tona por uma reforma em uma casa antiga (Bairro da Gam-
mandade, o perfil dos associados, bem como os seus direitos e deveres. Para a sua manutenção, as
boa) . O cemitério, que se situava ao lado de um valongo (local onde os escravos recém-chegados
irmandades precisavam assegurar uma receita mínima que viabilizasse o seu funcionamento, o
da África eram comercializados), foi estudado sistematicamente pelo historiador Júlio César Me-
que de modo geral ocorria com as contribuições dos associados.
deiros da Silva Pereira, que pôde atestar que os negros recém-chegados que vinham a falecer
ainda sem donos costumavam ser amontoados durante dias no "cemitério dos pretos novos" até 81. Sobre isto, ver a pesquisa de J ulita Scarano sobre A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
que, de tempos em tempos eram queimados e enterrados em valas comuns e muito rasas, que dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII (1978). Para um estudo aprofundado das ir-
frequentemente deixavam seus ossos à mostra (PEREIRA, 2007). mandades de homens negros em Minas Gerais, ver Boschi, 1986.

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João José Reis, que estudou estas irmandades a fundo, registra o
colonial (crioulos e os próprios pardos). Um pouco menos comuns nas
exemplo da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, fundada pe-
irmandades de homens negros eram as referências às etnias africanas de
los jejes de Cachoeira (Recôncavo Baiano), e que, já no estabelecimento
origem, e este é o ponto que nos interessa".
de seu compromisso em 1765, assinalava uma clara restrição aos crioulos
A ocorrência destes dois modelos dominantes - o "modelo mineiro" e
ao destacar que não seriam admitidos "os homens pretos nacionais desta
o "modelo baiano", por assim dizer - é sintomática. O "modelo mineiro"
terra", a não ser que pagassem uma taxa de inscrição bem mais onerosa
privilegiava francamente a organização da irmandade em torno de uma
(REIS, 1996: 20).
diferença negra mais ampla e abrangente, sem encaminhar diferenciações
Sintomaticamente, para a constituição das irmandades de homens
étnicas internas. Um irmão era negro, isto bastava. Já o "modelo baiano"
negros falava-se mais frequentemente em angolas, congos, benguelas, ou
guardava sob o manto da diferença negra algumas referências étnicas in-
também em crioulos, e só bem mais raramente em mandingas, peuls ou
ternas, mas quase sempre referências a "etnias do tráfico" ou a diferenças
tekes". Desta maneira, pode-se dizer que as irmandades de homens
criadas na própria colônia. Podia aparecer aqui, nos estatutos da irman-
pretos - seja as que seguiam o modelo mineiro, sejam as que seguiam o
dade, uma menos ou mais moderada hierarquia de diferenças internas ao
modelo baiano - ou favoreciam mais diretamente a imposição homoge-
grupo de homens negros acolhido pela irmandade, reservando-se os car-
neizadora de uma diferença negra mais ampla, ou ressaltavam posições
gos diretores para uma etnia ou diferença que passava a deter uma ascen-
dentro desta diferença negra criadas pelo próprio tráfico ou pela vida co-
dência sobre as outras, ou registrando-se ainda algum tipo de restrição
lonial. Um caso ou outro, o projeto de diluir as etnias de origem podia en-
relativamente a uma diferença negra específica".
contrar nestes dois modelos de irmandades uma perfeita sintonia.
As exceções, vale registrar, também estão representadas. João José
Reis discute em seu estudo sobre as irmandades uma que se estabeleceu
em 1786, no Rio de Janeiro, e que seria essencialmente dirigi da por ne-
82. Vale lembrar as palavras de João José Reis, que identifica para a Bahia uma maior incidência
de afirmações étnicas do que, por exemplo, os historiadores têm verificado para a capitania de Mi- gros da nação Mahi - um grupo étnico que ocupava no continente africa-
nas Gerais: "Na maioria das vezes as irmandades se formavam em torno das identidades africanas no uma região ao norte do Daomé. No caso, a irmandade aceitava a ins-
mais amplas, criadas na diáspora, mas havia exceções. Os nagôs do reino de Ketu, por exemplo,
reuniam-se na Igreja da Barroquinha em torno da irmandade do Senhor dos Martírios" (REIS, crição de indivíduos oriundos de outras etnias minas, mas expressava-se
1996: 13). Um outro exemplo, também ressaltado por Reis, é o da Irmandade do Senhor Bom Je- no seu compromisso radicalmente contra a aceitação de angolas (REIS,
sus da Necessidade e da Redenção, que desde 1752 agrupava na Igreja do Corpo Santo (Fregue-
sia da Praia) os africanos originários da etnia dos jejes (REI S, 1996: 13).
1996: 18). O exemplo desta irmandade preponderantemente formada
83. João José Reis observa, por exemplo, o estabelecimento de uma discreta arena de disputas por mahis, nitidamente preocupados com a preservação de sua cultura de
étnicas em uma irmandade de negros da Bahia: "Da Irmandade do Rosário dos Pretos da Igre- origem sob o quadro imposto da indiferenciação negra, é notável. A for-
ja da Conceição da Praia, no distrito comercial de Salvador, participavam irmãos e irmãs an-
golanos e crioulos na época de seu primeiro compromisso, em 1686. Embora sem explicitar,
mação de irmandades especificadas por uma etnia de origem tipicamente
previa-se a entrada de gente de outras origens, inclusive brancos e mulatos, mas só crioulos e africana, contudo, não era a regra.
angolas eram elegíveis, em números iguais, a cargos de direção" (REIS, 1996: 14). Em algu-
mas das irmandades que examinou, aliás, João José Reis pôde verificar uma certa associação
entre crioulos e angolas, reservando para si os quadros-diretores de suas irmandades que, não
obstante, aceitavam outras etnias. Era o caso de uma irmandade fundada em 1699 - a Irman-
dade de Santo Antonio de Categeró - e também da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário 84. Há naturalmente discretas exceções. Entre as "etnias de origem", osjejes (que na verdade re-
dos Pretos das Portas do Carmo, ambas examinadas por Reis, e que restringiam as mesas dire- presentam uma categoria mais abrangente que inclui as etnias dos ewes e osfons), e também haú-
toras a angolas e crioulos. Já na Irmandade do Rosário da Rua de João Pereira, a associação se ças, destacam-se como identidades étnicas que aparecem como referências mais comuns.
estabelecia entre benguelas e jejes.

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Vale lembrar ainda que muitas das irmandades de homens negros
assim como os brancos, o que mostra que na visão destes irmãos minas os
também aceitavam em seus quadros homens brancos", mas obviamente
pardos claros eram assimiláveis aos brancos, mas já os pardos escuros
que nestes casos observava-se a regra de que em nenhum momento o nú- eram assimilados aos crioulos.
mero de irmãos brancos poderia ultrapassar o número de irmãos negros
Outros mecanismos de sustentação da diferença negra eram aqueles
neste tipo de associações. Também é importante ressaltar que as irman-
relacionados ao mundo da cultura, e podemos mencionar o papel, nesta di-
dades de homens negros, não raras vezes, se empenhariam na compra da
alforria daqueles entre seus integrantes que fossem escravos, conforme reção, de manifestações rítmico- musicais como o batuque ou de festas co-
veremos mais adiante, e portanto acenavam-Ihes com certo horizonte de mo o congado. Grosso modo, e embora haja várias versões da festa do con-
esperança (o que, naturalmente, não deixava também de arnortecer-lhes a gado, aqui se representa basicamente uma luta entre o Congo, a primeira
revolta, de acordo com a ótica dos administradores coloniais). Como elas região africana que teria sido submetida ao cristianismo pelos conquista-
eram irmandades religiosas, e cada qual tinha o seu santo protetor, con- dores portugueses, e os focos de resistência africana ao credo cristão, seja
sequentemente também fortaleciam o cristianismo e, para o caso específi- por serem pagãos, seja por estarem submetidos ao poderio e orientação is-
co das irmandades de homens negros, ajudavam a impor ao negro trans- lâmica. Em certas versões de congadas, também há partes dramáticas que
plantado da África a religião do colonizador, ou uma versão dela. expressam lutas de etnias entre si. Mas tudo se resolve sempre na unifica-
Por tudo isto, as irmandades de homens negros enquadram-se perfei- ção de todos os negros em torno do Rei Congo e do cristianismo.
tamente no projeto de fortalecimento da diferença negra, isto é, de uma A escolha do Rei congo pelos próprios negros - em uma eleição que
unidade negra que passa a abranger todas as diferenças menores - sejam era conduzida por eles mesmos - também fortalecia simbolicamente as
elas as antigas diferenças de origem relacionadas às etnias africanas, se- ideias de uma unidade africana e de uma unidade negra, logo, de uma di-
jam as diferenças forjadas pelo próprio tráfico negreiro em torno dos cir- ferença negra, unificadora de todas as diferenças menores, além de perfei-
cuitos de captura e exportação de escravos. Havia mesmo o caso de que o tamente assimilada ao cristianismo e à ordem colonial. Spix e Martius,
arcebispo - que detinha o poder de confirmar o compromisso das irman- por ocasião de sua viagem pelo Brasil, identificam com algum grau de in-
dades de negros - rejeitasse algum item favorável à discriminação interét- tuição a importância simbólica deste processo e, ao mesmo tempo, a sua
nica, e este foi o caso da Irmandade de Santo Eslebão e Santa Ifigênia, na perfeita acomodação dentro do sistema de controle e administração colo-
freguesia da Candelária no Rio de Janeiro, que teve rejeitado em 1797 um nial. Sua leitura da festa é, contudo, vinculada a uma analogia com o car-
dos artigos de seu termo de compromisso, onde negros minas e do sul da naval europeu em sua função de válvula de escape para as camadas popu-
África discriminavam abertamente os angolanos, crioulos e pardos es- lares mais baixas:
curos (REIS, 1996: 20). Curiosamente, já os pardos claros eram aceitos, É costume dos negros do Brasil nomear todos os anos um rei e
sua corte. Esse rei não tem prestígio algum político nem civil so-
bre os seus companheiros de cor, goza apenas de dignidade fútil,
85. Conforme indica João José Reis: "Os brancos procuraram participar das irmandades de cor
como estratégia de controle, não obstantc muitos talvez também o tenham feito por sincera devo- tal como o rei da fava, no dia dos Reis, na Europa, razão porque
ção. Ou, mais concretamente, para salvar a alma. Os pretos os aceitaram por várias razões: para o governo luso-brasileiro não põe dificuldade alguma a essa for-
cuidar dos livros, por não terem instrução para escrever e contar, para receberem doações genero-
sas, vez que não tinham como sustentar sozinhos a irmandade, ou ainda por imposição pura e
malidade sem significação (SPIX & MARTlUS, 1938).
simples. A presença de brancos nas confrarias negras era uma prática comum em todo o Brasil.
Acabamos de vê-los entre os irmãos cariocas. Da mesma forma, a Irmandade do Rosário dos Pre- Eleger um rei negro pode não ter tido uma significação maior para os
tos de Igaraçu, em Pernambuco, exigia que o tesoureiro fosse branco "abastado de bens, zeloso e observadores austríacos, mas certamente esta eleição de um rei negro, in-
temente a Deus" (REIS, 1996: 12).
ser ida em uma festa cristã feita pelos negros e para os negros, eventual-
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mente com a participação de brancos e necessariamente sob a discreta vi- "carnavalização da diferença", no sentido de um espaço que se oferece ao
gilância destes, contribuía sobremaneira para esta intenção de fortalecer escape e à afirmação de antigas diferenças sob o manto colorido do riso,
por todos os meios possíveis a ideia de que a cor unificava todos os africa- tal como podemos ver nos relatos de viagem de William Ouseley, um via-
nos e seus descendentes diretos em uma única diferença negra, perfeita- jante que esteve de passagem pelo Rio de Janeiro em 1810:
mente integrada ao sistema de hierarquia colonial". Reconhecer essas es- Em certos feriados, obtém permissão para se juntarem em ban-
tratégias instituidoras da diferença negra, por outro lado, não exclui a ne- dos de quinze, vinte ou mais, de acordo com seus distritos ou dia-
cessidade de percebermos claramente que o sistema colonial-escravista letos nativos; os chefes estando, às vezes, espalhafatosamente
enfeitados com contas e plumas, botões velhos, pedaços de vi-
via-se atravessado na verdade por dois feixes de forças igualmente impor-
dros e marcas de distinções familiares (OUSELEY, 1819: 15).
tantes, em constante diálogo: um "feixe unificador", instituidor da dife-
rença negra, e um "feixe diferenciador", fundador de novas diferenças e Permitir que as diferenças africanas se manifestem sob o manto do lú-
perpetuador de antigas diferenças, quando estas interessassem em algum dico, de forma não ameaçadora e adornadas por quinquilharias, parece
nível. Dessa dialética vivia a administração colonial e a organização social constituir aos olhos da organização escravista uma estratégia aceitável.
escravista quando tratava da questão negra", De qualquer modo, à parte os festejos, a diferença negra, estendida como
O espaço da festa mostra-se, aliás, interessante território onde fre- uma espessa e abrangente folhagem sobre todas as identidades adormeci-
quentemente esta tensão entre a diferença negra e as diferenças negras das trazidas pelos negros africanos, propunha-se a recobrir uma comple-
adquirem alguma visibilidade, e não são raros testemunhos de viajantes xidade que deve ser bem compreendida para uma assimilação plena do
que parecem registrar festejos nos quais está em jogo uma espécie de que era a sociedade colonial.

86. Por outro lado, um exemplo de registro documental de que, também nas festas, as etnias po-
diam eventualmente persistir sob o manto de diferença negra, é dado por João José Réis, que ana-
lisa um relato de 1809 sobre uma celebração de Natal vinda da parte de escravos de Santo Amaro.
Diz a fonte histórica "vários escravos de todas as nações, e unindo-se em três corporações com
muitos, desta vila, segundo a sua nação, formaram ranchos de atabaques, e fizeram os seus costu-
mados brinquedos, ou danças, a saber, os geges, no sítio do Sergimirim, os Angolas, por detrás da
Capela do Rosário, e os nagôs e uçás na rua de detrás junto ao alambique que tem de renda Thomé
Correa de Mattos", São oportunos os comentários de João José Reis: "Deve ser destacado, contudo,
exatamente o fato de que vindos em grupos de seus engenhos, onde certamente trabalhavam lado a
lado como escravos, os africanos, na hora de celebrar, de desfrutar de seu tempo livre, do tempo que
lhes pertencia, escolhessem fazê-Io separados em grupos étnicos ou nações. Uma separação que ti-
nha inclusive uma delimitação territorial, cada qual ocupando uma vizinhança diferente da do outro
na vila de Santo Amara. Mas não se tratava de uma divisão intransponível. Nagôs e hauçás iriam se
unir na mesma celebração africana do Natal de 1808, fazendo a festa mais animada, rica e prolonga-
da" (REIS, 1993: 10). Observa-se que o relato menciona grupos de negros conforme etnias oriun-
das de diferentes critérios: "etnias do tráfico", como os angolas; etnias autênticas, como os ge-
ges e hauçás; etnias transatlânticas, se considerarmos como uma destas as dos nagôs.
87. Eventualmente, irrompiam adesões matizadas por relativa resistência na festa do congado,
embora essa situação não fosse tão comum. João José Reis cita o caso de uma irmandade formada
por negras da etnia mahi, que se posicionam de forma bastante singular em relação à nomeação
de um "rei congo": nas festas de Nossa Senhora do Rosário, declarando que "acompanharão ao
Rey de Nossa Senhora do Rosário, sendo da Costa da Mina e não o sendo, não acompanharão"
(REIS, 1996: 18).

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ria ligada a outro tipo de "pertencer". O escravo, aliás, era entendido em
algumas dessas sociedades africanas como aquele que perdera o seu
"pertencimento", os seus vínculos pessoais - enfim, como aquele que so-
Desigualdade escrava e diferença frera uma espécie de "morte social", para utilizar aqui um interessante
12
•. tl.U'
escrava: um olhar complexo conceito cunhado por Orlando Petterson (1982).
i'Z~~~ Daí decorre que, em sociedades africanas deste tipo, o gesto de recu-
perar a liberdade ou de caminhar para ela deveria apontar para a possibili-
dade de o escravo encontrar um novo pertencimento - ou seja, uma nova
rede de parentesco, um patrono, a proteção de um poder social. Era em
Vimos que é preciso compreender sob o signo da complexidade as torno desta busca de um novo pertencimento que o escravo podia se mo-
"diferenças negras", diferenças que se apresentam encobertas, reabsor- vimentar no eixo da desigualdade escrava". Neste sentido poderemos
vidas, criadas e recriadas no processo de formação da sociedade escra- acrescentar que, apenas quando estavam negadas ao escravo possibilida-
vista-colonial. De igual modo, a mesma complexidade deve beneficiar des de encontrar um novo lugar social, é que estaremos aptos a falar, para
um olhar historiográfico sobre as "desigualdades e diferenças escravas". o contexto africano pré-colonial, de uma "diferença escrava" ao invés de
Liberdade e escravidão são noções sujeitas a contextos históricos espe- uma "desigualdade escrava".
cíficos, e que podem se transmudar. Não são, de modo algum, "termos As diversas formas de escravismo na África Pré-colonial, aliás, mos-
absolutos", de significado único e trans-histórico. Não se vive a "liber- tram-nos situações várias em que - de acordo com o sistema conceitual
dade" da mesma forma em todos os tempos e lugares, e, consequente- que estamos aqui desenvolvendo - permitem-nos falar alternativamente
mente, não se impõe em todos os tipos de sociedades escravocratas o em "desigualdade escrava", em "diferença escrava", ou em combinações
mesmo tipo de "escravidão". das duas situações a partir de vários tipos e matizes. No período que pre-
Como se dariam as questões até aqui examinadas em outros lugares e cede a chegada dos portugueses, a escravidão avaliada como desigualda-
em outros tempos? A reflexão sobre os deslocamentos entre desigualdade de (e não como diferença) parece confirmar-se em diversas regiões afri-
e diferença, no que se refere à dicotomia entre escravidão e liberdade, canas que praticavam uma escravidão de estilo patriarcal, para a qual se-
pode-se abrir também para uma análise mais complexa. Pode-se postular ria talvez mais adequado falar em "cativos" do que em "escravos". Nesta,
que esta dicotomia, na verdade, adquire sentidos diversos nos vários con- o tráfico estava excluído, já que o cativo integrava-se à família sem possi-
textos histórico-sociais e civilizacionais a serem considerados. Para o bilidade de ser vendido, e em certas regiões como o Daomé pré-colonial,
Ocidente, demonstram Miers e Kopytoll (1977), "liberdade" implica um por exemplo, os filhos de escravos nasciam livres para serem imediata-
caminho simbólico em direção à autonomia e à ausência de restrições so- mente integrados à família do Senhor (MATTOSO, 1982: 25).
ciais. Essa visão da liberdade como busca da autonomia seria uma visão Uma situação como esta leva-nos a falar na "desigualdade escrava",
particularmente ocidental da noção de liberdade e, consequentemente, da isto é, na escravidão vista como desigualdade, e não como diferença, pelo
dicotomia escravidão x liberdade. menos em boa parte de seus aspectos. A "condição de escravo" não é her-
No âmbito do circuito civilizacional africano, ou ao menos na maior
parte das sociedades africanas que precedem a chegada dos europeus, a
88. Suzanne Miers e Igor Kopytoff chamam atenção para o fato de que, neste caso, "escravidão"
ideia de liberdade não estaria ligada a este "desligar-se" de restrições so- não se opõe a "liberdade" no sentido de autonomia, mas sim a "pertencer", "fazer parte" (MIERS
ciais, no sentido da autonomia individual. Ao contrário, a liberdade esta- & KOPYTOFF, 1977: 17).

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dada, ao contrário do que acontece em alguns dos sistemas nos quais a
dos artesãos livres em castas endógamas e hierarquizadas (MATTOSO
escravidão passa a ser compreendida literalmente como diferença, o que
1982~25)"", os escravos dos pastores peuLs podem não obstante progredi;
foi obviamente o caso do escravismo brasileiro anterior à Lei do Ventre Li-
atraves de uma escala hierárquica de "pertencimento" crescente à família
vre (1871). A pretexto da impossibilidade de se herdar a condição escra-
do senhor, até que atingem a condição de rimaibe:
va' aliás, os diversos artigos da Lei do Ventre Livre já começavam a se po-
Neste caso, passava-se após três gerações à servidão: cativo de
sicionar a favor de conceber a escravidão como desigualdade, e como de-
tráfico, cativo doméstico vivendo na casa do senhor (que o ali-
sigualdade a ser suprimida", Não apenas declaram "de condição livre" os
menta, veste e lhe exige cinco dias de trabalho na semana) e, por
filhos de mulher escrava que nascerem a partir da data de promulgação
fim, à terceira geração, o rimaibe, que dispõe de seu próprio
da Lei, como legislam sobre diversos outros aspectos relacionados ao âm-
quintal e somente deve ao senhor três jornadas de trabalho por
bito das desigualdades (saúde, instrução, personalidade jurídica), além
semana (MATTOSO, 1982: 25).
de libertar imediatamente os escravos pertencentes à nação. Era o resul-
tado de um novo deslocamento discursivo que já vinha se verificando nas Os pesquisadores da história da escravidão, enfim, foram bem-suce-
décadas anteriores, onde de "diferença" a escravidão brasileira passaria didos em encontrar os mais diversificados modelos escravistas na África
gradualmente a ser vista como "desigualdade" no âmbito das instituições Pré-colonial- alguns amparados no modelo da "escravidão da desigual-
governamentais, até que daí evolui rapidamente para a ação social aboli- dade", outros amparados no modelo da "escravidão da diferença", outros
cionista que a suprime definitivamente. mesclando de alguma maneira as duas concepções - até que, por fim,
Na África Pré-colonial, também se encontram exemplos de concepções adentrando a Idade Moderna e situados diante dos lucros possíveis pro-
da escravidão que mesclam desigualdade e diferença, mas que proporcio- porcionados pelo tráfico negreiro trazido pelos europeus, a maior parte
nam aos cativos expectativas relativamente animadoras de reencontrarem dos sistemas escravistas africanos termina por se adaptar à ideia de pen-
seu lugar na sociedade e de reverter a "morte social" do nâo-perrencimen- sar o escravo como mercadoria, e mesmo à ideia de transformar total-
to. O sistema de organização social dos peuls, por exemplo - um modelo de mente os seus sistemas sociais e políticos com vistas a instituir os meios
modo geral ancorado na diferença - prevê alguma mobilidade para os indi- para a obtenção desta mercadoria através da guerra e do rapto. Estare-
víduos escravos, o que rompe com a ideia de intransponibilidade das dife- mos então, já diante de uma nova África, que, assim como o Novo Mun-
renças (MATTOSO, 1982: 25). Neste sistema, que inclui a organização do, já se ajusta à égide do novo modelo de escravismo que traria conse-
quências tão funestas para as sociedades modernas.
89. A Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871) passa por ser a primeira lei abolicionista, em- Também para a realidade escravista das Américas, seria ainda preciso
bora para a história da libertação de escravos ela tenha alcançado poucos resultados práticos, uma comparar o status do escravo em cada colônia ou país, de modo a perce-
vez que dava liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir da data de sua promulgação, mas os
mantinha sob a tutela dos senhores até atingirem 21 anos. Na prática, quando os primeiros filhos ber em cada caso o sentido mais específico da dicotomia entre escravidão
do Ventre Livre fizeram 21 anos, a abolição da escravatura já havia sido decretada há quatro anos. e liberdade. Diferenças menos ou mais significativas podem emergir do
De todo modo, vale lembrar que, no texto da Lei do Ventre Livre, o Visconde do Rio Branco pro-
contraste entre o escravo que tende a ser reconhecido como pessoa, como
cura desenhar a escravidão como "instituição injuriosa" para o país, ao mesmo tempo em que en-
fatiza a condição escrava como uma questão de desigualdade. Ironicamente, a mortalidade infan- no caso do Brasil de alguns períodos, e o escravo que tende a ser juridica-
til entre os escravos terminou por aumentar, em vista do subsequente descaso de alguns senhores mente imobilizado como coisa, como ocorria no sul dos Estados Unidos
pelos ingênuos recém-nascidos. Ao mesmo tempo, em 1884 o governo imperial parece reconhe-
cer os limites da lei aprovada em 1871, quando um membro do Conselho de Estado do Imperador
(TANNENBAUM, 1946).
chega a afirmar que os ingênuos "quase sua totalidade [estavam] na mesma condição servil dos
demais escravos, faltando-se-lhes com a indispensável e devida instrução e desamparados da pro-
teção tutelar da autoridade pública" (Brasil, Acta ... 1884).
90. Sobre isto, ver Mattoso, 1982: 25.

126
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A primeira destas perguntas - o preço da alforria - mostra que esta
passagem, como se disse, não é possível para todos, senão àqueles que,
em decorrência de algum tipo de atividade específica ou de condições
Alforria: controle sobre a passagem mais favoráveis de trabalho escravo, de verdadeiras "brechas na escravi-
13 da diferença escrava à desigualdade dão", conseguirão economizar algum ganho e comprar de seu senhor a
própria liberdade; ou, há casos, mesmo a liberdade de outros". Ou então,
liberta havia ainda os casos em que uma irmandade de negros ou pardos com-
prava a alforria de certo escravo (e, também nestes casos, a alforria não se
oferece a todos, mas somente aos escravos mais bem relacionados, mais
bem posicionados no próprio grupo de escravos). Podia-se dar, ainda,
que o negro escravo comprasse a sua liberdade a pequenas partidas, à
Existe ainda uma peça fundamental na história das diferenças e desi- maneira de prestações, o que era conhecido como sistema de "quarta-
gualdades no Brasil escravocrata: a alforria. Discorrer sobre a diferença mento". Nestes casos, o deslocamento da diferença escrava à desigualda-
escrava - esta que na vida de alguns indivíduos negros podia ser nova- de liberta - ou melhor, à desigualdade forra - dava -se de modo geral ao
mente vertida em desigualdade escrava ou mesmo, após um gesto liberta- final do pagamento da última destas prestações.
dor, transfigurar-se em simples desigualdade social à que estará sujeito o
A segunda pergunta - Por que se alforria? - mostra que este gesto por
negro ou o mulato liberto - exige ainda que se pense ainda neste recurso
vezes encenado em tons de magnanimidade, e que libertará o negro da di-
que paira enevoado no imaginário coletivo negro e um pouco mais nítido
no horizonte concreto de uns poucos escravos que realmente possuíam a ferença escrava e o mergulhará na desigualdade liberta, é ainda prerroga-
possibilidade de serem alforriados. A alforria, teremos de postular, pre- tiva do senhor. Muitas vezes, no documento de alforria - e frequentemen-
tende eliminar de um só golpe um certo aspecto da diferença: a' pecha de te em uma época em que já se aproxima da morte e na qual estará igual-
ser classificado como escravo em uma sociedade rigidamente hierarqui- mente atento à feitura de seu testamento - o senhor acrescenta que está
zada e o peso de sofrer, no interior desta categoria, as agruras mais rigo- alforriando pelos serviços prestados, pela lealdade demonstrada durante
rosas da escravidão. Mas é conhecido, obviamente, o destino de penúrias uma vida, ou porque, se é uma negra, ela lhe deu filhos ou o acompanhou
que seria o de muitos dos libertos, os negros alforriados. E é conhecido na doença e no afeto. Mas mesmo este gesto não exclui necessariamente
também, veremos oportunamente, o destino de dependência social a que um outro, relacionado à terceira pergunta - o que ainda se espera do ne-
muitos estariam sujeitos em relação aos mesmos senhores que um dia ha- gro a ser alforriado?
viam sido os seus donos.
As cartas de alforria, antes de mais nada, revelam que este ato ou pro-
cesso capaz de retransfigurar em desigualdade liberta a diferença escrava 91. Exemplo de escravos que possuíam boas oportunidades para acumular economias para a futu-
não é para todos. Geralmente, além de uma descrição básica do escravo ra compra da liberdade eram os "negros de ganho", que eram emprestados para executar serviços
a terceiros. Por outro lado, mesmo no caso dos escravos rurais, como ressalta Sílvia Lara, "o tra-
que está passando a forro, estas cartas de liberdade guardam ciosamente balho dos cativos não se resumia em trabalhar para o senhor e servir a ele. No Brasil, a maior parte
dentro de si três perguntas fundamentais em relação ao forro: quanto lhe dos escravos também cultivava terras [... ] para o provimento de sua própria subsistência" (LARA,
custou a alforria? Por que foi alforriado? ° que ainda se espera dele co- 1989: 9). Com relação a antigos escravos que compraram posteriormente a liberdade de antigas
companheiras e também dos filhos e filhas produzidos nesta relação, a documentação fornece di-
mo pendência, como resquícios últimos da diferença escrava? (BRITTO, versos exemplos, já devidamente estudados pelos historiadores. A título de exemplo, ver o ensaio
1995: 209). "Sobre minas, crioulos e liberdade costumeira ... ", de Manolo Florentino (2005: 333-366).

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Não raramente o escravo alforriado de forma gratuita acabava rece- aparência da desigualdade forra, o indivíduo acabava mesmo por ficar
bendo, na prática, uma espécie de "alforria futura" (palavra que não exis- condenado efetivamente à diferença escrava. Vale notar que para estes ca-
te nos documentos), assinalando que a alforria estava concedida ao negro sos não deixa de existir aqui uma categoria oculta - a do "falso forro", ou a
e a seus filhos mas que, por alguns anos, ou mesmo por uma vida, eles do "forro prometido" - que marca uma distância em relação à realidade in-
ainda teriam de servir ao dono, ou aos filhos e à mulher do senhor. Isso questionável do verdadeiro forro, este que realmente encontra a liberdade
implica que somente depois disto estariam estes falsos forros realmente efetiva ao final de uma vida de diferença ou desigualdade escrava.
livres para enfrentar o mundo da desigualdade pura, não mais uma desi- No último ato da trágica história do escravismo brasileiro, ou mesmo
gualdade escrava. Para a contabilidade escrava, por assim dizer, estes ca- antes, ocorreram casos que não deixam de ser curiosos. Já se pressentin-
sos constituem mero lançamento futuro, visto que o forro continua lite- do nas décadas mais próximas ao maio de 1888 o fim da escravatura, di-
ralmente vivendo a mesma vida, os mesmos vínculos de dependência, e versos senhores concederam alforrias como meio de assegurar de seus
não raro a mesma sensação de insegurança com relação aos seus próprios antigos escravos compromissos que de outro modo estariam perdidos. Ao
destinos, pois há casos em que o herdeiro nem sempre respeita os com- invés de libertação, a alforria torna-se então recurso de dominação. Vol-
promissos assumidos pelo antigo dono do escravo. taremos a falar sobre isto: de como, em certos casos, a alforria se inverte
Deixar em testamento uma cláusula de alforria nestes termos era mui- e, prometendo substituir a escravidão pela liberdade, termina por conce-
to comum, e em diversas ocasiões fica bastante claro que o futuro forro só der ao forro algo entre as duas - uma dependência do forro em relação ao
poderia realmente se beneficiar da liberdade, stricto sensu, já bastante antigo senhor.
avançado na idade, isto se não ocorresse de morrer antes de poder se be- Já nem mencionaremos as tristes práticas de conceder a alforria aos
neficiar da alforria prometida. Um modelo de carta de alforria condicio- escravos idosos, irremediavelmente doentes ou aleijados, o que equivalia
nada pode ser adequadamente exemplificado com o texto abaixo, redigi-
a despejá-los na mendicância, já que não poderiam mais ganhar a vida no
do por um casal de proprietários em favor de uma escrava queainda esta-
mundo liberto devido a suas condições físicas.
va com 17 anos:
Antes de prosseguirmos, e até mesmo para melhor compreender este
Declaro que tendo criado nossa escrava Maria, e tendo-lhe gran-
curioso fenômeno, será oportuno considerarmos que a história das con-
de amor e amizade e desejando favorecê-Ia do modo que é com-
cessões de alforrias também teve no Brasil os seus ritmos próprios, as
patível com as nossas posses [...] resolvemos dar liberdade a dita
nossa escrava, sob condição porém que ela nos servirá durante
suas fases da maior ou menor intensificação, de fluxos e refluxos, sempre
nossa vida, e só depois de nossa morte é que entrará no gozo de
relacionadas historicamente às diversas circunstâncias econômicas e po-
sua liberdade, e que se tiver filhos, estes nos servirão como escra- líticas. Tal como têm comprovado os historiadores econômicos através de
vos enquanto vivermos e ficarão bons depois de nossa morte, as- pesquisas sistemáticas", entre fins do século XVIII e as primeiras décadas
sim como sua mãe (BERTIN, 2001). do XIX o preço do escravo estava ainda bastante acessível, de modo que
aos próprios escravos ofertava-se mais amiúde a possibilidade de com-
Propor alforria a uma escrava de 17 anos nestes termos, paradoxal- prar - com as próprias economias - a liberdade para si mesmos, para seus
mente, é condená-Ia à escravidão por toda a vida, mesmo porque esta al- parentes ou filhos. Este período que podemos considerar como de "esta-
forria concedida em termos desinteressantes para o escravo - a partir de bilidade do tráfico" corresponde, grosso modo, a uma maior comodidade
obrigações futuras que comprometam a sua liberdade efetiva - acaba im-
pedindo que posteriormente o escravo proponha alforria em condições
que lhe seriam, estas sim, mais favoráveis. Nestes casos, embora sob a 92. Ver, por exemplo, Florentino, 2005: 333-366.

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e frequência na concessão de alforrias, e inclusive a uma maior facilidade em favor da abolição gradual da escravatura - projeto devidamente recu-
de o escravo comprar a sua própria liberdade". sado' mas que, conforme veremos oportunamente, preludia um movi-
Entretanto, a partir de meados da década de 1820, as pressões inter- mento de ideias que se fortaleceria nos anos 1870 tendendo a crescer e a
nacionais encabeçadas pela Inglaterra contribuem para que se fortaleça funcionar cada vez mais como um poderoso elemento de pressão sobre o
cada vez mais a ideia de que não demoraria muito para que se decretasse imaginário de receios e ambições construído pelas elites escravistas.
para o Brasil o fim do Tráfico Atlântico (o que de fato logo aconteceria em De qualquer maneira, mesmo entre os anos 1830 e as décadas mais
1831, com medidas do governo brasileiro que buscavam amenizar estas marcadamente abolicionistas - neste período intermediário em que se veri-
pressões), e o primeiro efeito disto foi fazer com que disparasse o preço fica um certo vazio relativo à produção de um discurso abolicionista brasi-
dos escravos (a iminência de carência definitiva de um produto contribui, leiro - o discurso antiescravista que vinha de fora, sobretudo da Inglaterra,
naturalmente, para a elevação do seu preço)". Isso teria um efeito duplo: atuou igualmente como um eficaz elemento de pressão para o delineamen-
nem os senhores se sentiam mais tão dispostos a negociar através da al- to de um certo imaginário do medo abolicionista nas elites senhoriais.
forria a perda de uma mercadoria que, já mais difícil de ser reposta, se ve- Eis aqui um pequeno sumário da história do medo nas elites escravis-
ria cada vez mais valorizada - e num crescendo no qual o preço do escra- tas: ao lado do já antigo pavor relacionado a possibilidades de sublevações
vo atingiria o ápice nos anos 1860 - e nem já se apresentava tão fácil aos escravas - acentuado em 1835 pela Revolta dos Malês na Bahia e reforça-
próprios escravos a possibilidade de comprar a sua liberdade ou a de ou- do pela memória da grande Revolta Haitiana" - vinha se juntar nestes
tros com seus próprios recursos, uma vez que os preços subiram muito tempos novos o temor do fim da escravatura, mesmo neste momento de
em relação às suas possibilidades de ganhos extras. Com tudo isto, a con- refluxo do discurso antiescravista nacional (e o medo, será oportuno lem-
cessão de alforrias tenderia nesta fase intermédia a se afunilar. brar' frequentemente recrudesce as relações humanas). Assim, em con-
Por outro lado, e aqui entra um elemento de aparente paradoxo, a traponto a um processo que (embora moderado) foi assinalado pela im-
partir do Brasil Império a ideia da extinção futura do escravismo.passaria posição de duas fortes medidas antiescravistas - a proibição do Tráfico
a entrar de algum modo na ordem do dia, a princípio discretamente, de- Atlântico em 1850 e em 1871 a Lei do Ventre Livre - passou-se a intensifi-
pois com bastante intensidade a partir das últimas décadas do Império. car desde cedo a ideia de que a Abolição poderia estar bastante próxima.
Quando não entra como discurso, o fim da escravidão entra como receio. As últimas duas décadas escravistas serão traduzidas por este mo-
Já em 1823, é bom lembrar, teremos o notório projeto de José Bonifácio mento histórico pleno de tensionamentos: de um lado, o suprimento
de escravos necessários à produção agrícola está limitado - o que esti-
mula tanto o contrabando como o tráfico interno (interprovincial) 96,
93. Entre fins do século XV'" e inícios do XIX, temos um momento de baixa significativa no preço
do escravo, para o que terão concorrido fatos como a interrupção do tráfico negreiro para os Esta-
dos Unidos e outras colônias inglesas. Com o fechamento destes mercados, o Tráfico Atlântico 95. Já no mesmo ano de 1835, sob o impacto da revolta malê na Bahia e atravessados pelo receio de
pôde se direcionar mais concentradamente para o Brasil e outras colônias onde o tráfico ainda vi- que um movimento similar pudesse eclodir no Rio de Janeiro, Evaristo da Veiga escreve artigos para
gorava. Com o aumento da oferta, barateava-se o preço do escravo, para cuja baixa também teria o jornal Aurora Fluminense onde utiliza a imagem de que acumular escravos era como acumular
concorrido a revolta e posterior independência do Haiti. "barris de pólvora junto a uma mina" (AF, 16/02/1835). Sobre isto, ver Carvalho, 2000: 321.
94. Em novembro de 1831, durante o período da Regência Trina, o Padre Diogo Antonio Feijó, bus- 96. A Lei Nabuco de Araújo, aprovada em 1854 com vistas a reprimir o contrabando externo de es-
cando agradar a Inglaterra, promulgara uma lei que asseverava que "todos os escravos que entrarem cravos, é ao mesmo tempo consequência e sintoma da prática de contrabando negreiro que se esta-
no território ou portos do Brasil vindos de fora ficam livres". Contudo, esta lei permaneceu letra mor- belece com a proibição do Tráfico Atlântico em 1850. A Lei estabelece sanções para as autoridades
ta, uma vez que continuaram entrando africanos no Brasil para o trabalho escravo, e em número cada que encobrissem o contrabando de escravos. Até 1856 há registros de desembarques de navios ne-
vez maior. A proibição mais incisiva para o fim do tráfico só ocorreria em 1850, com a Lei Eusébio de greiros, o que não significa que estes tenham se encerrado nesta data. Com relação ao tráfico inter-
Queirós. Mas mesmo aí, através do contrabando, continuariam sendo traficados escravos africanos no, estima-se que entre 100 a 200 mil escravos tenham sido deslocados entre as províncias, desde a
para o Brasil. A Lei de 1831, jocosamente, foi apelidada na sua época" Lei para inglês ver". data em que se decretou o fim do Tráfico Atlântico até a data de promulgação da Lei Áurea, em 1888.

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ou mesmo a criação de estabelecimentos destinados à procriação e ven- vista legal, a liberdade definitiva. Esta última conquista, enfim, corres-
da de escravos". ponde ao momento singular da reversão de um estado em outro - a pas-
Ao mesmo tempo, a iminência da abolição instigava posições bastante sagem da circunstaucia de "estar escravo" ao estado pleno de liberdade
ambíguas em relação à posse de escravos, pois nenhum senhor desejava (e, lembraremos mais uma vez, a "reversibilidade" é apanágio do eixo das
ser surpreendido pela possibilidade de perder de um momento para outro desigualdades, e não da coordenada das diferenças)",
o escravo - já propriedade valiosa e cada vez mais rara - sem qualquer in- As relações entre o recurso escravocrata da alforria e a ideia de que a
denização pela sua peça já antiga ou recentemente adquirida". As duas úl- escravidão trazia em si mesma a possibilidade de ser examinada ora como
timas décadas da escravatura traduzem, conforme se vê, este curioso pa- desigualdade, ora como diferença, podem colocar em relevo certos mean-
radoxo que entrelaça o desejo de reter o escravo, como valiosa mercadoria
dros da complexidade escrava. De fato, a pequena descrição dos ritmos
em que já se tornara, e ao mesmo tempo o receio de perdê-lo sem qual-
históricos que afetaram a concessão de alforrias, atrás elaborada, pode
quer indenização; e as estratégias senhoriais de conceder a alforria atrela-
corresponder facilmente à história da preponderância da ideia da escravi-
da a pesadas cláusulas de dependência futura apresentam-se como tenta-
dão como desigualdade, e não como diferença (e vice-versa). Os momen-
tivas de resolver este paradoxo de desejos e receios que aqui permeiam a
tos em que há maior flexibilidade para o escravo obter a alforria coinci-
posse de um escravo.
dem' de certo modo, com os momentos em que aumentam as possibili-
Posto isto, poderemos retomar a seguir reflexão sobre o papel da dades de a escravidão ser vista como desigualdade. Em apoio a esta tese,
Alforria na dialética que envolve a diferença escrava e a desigualdade es- podemos nos valer das pesquisas de ponta realizadas por alguns histo-
crava, ambas intermediadas pela diferença negra. A alforria, neste parti- riadores que têm se debruçado sobre a escravidão brasileira do século
cular, constitui um recurso escravocrata bastante interessante para a nos- XIX. Daremos um exemplo entre outros possíveis.
sa discussão precisamente porque mostra que a escravidão, ainda que
Acompanhando a ultrapassagem de um período em que era mais fácil
vertida em diferença, guarda oculta a sua natureza original, a desigualda- ao escravo comprar a liberdade, o que se dá entre as últimas décadas do
de. A ideia da alforria implica de fato que o escravo - ou pelo menos cer- século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, o historiador Manolo
tos escravos - podem se deslocar de alguma maneira no eixo da desigual- Florentino dá-nos a perceber que "a ideia de que a escravidão constituía
dade escrava a partir das maiores ou menores concessões que recebe, de uma condição transitória em si mesma negativa tendeu a refluir a partir da
uma brecha no seu trabalho que lhe permite a acumulação pessoal de bens, década de 1830" (FLORENTINO, 2005: 339roo• Ou seja, precisamente
ou de outros privilégios recebidos que o habilitarão a sonhar com a amplia- no momento em que o preço do escravo sobe, e a compra da própria liber-
ção de sua margem de liberdade até que obtenha realmente, do ponto de dade torna-se menos acessível a este mesmo escravo, a escravidão tende a
ser vista cada vez menos como "condição transitória" (ou seja, como de-

97. A partir de 1879, veremos constantes denúncias destas antigas práticas nos artigos abolicio-
nistas de José do Patrocínio: "Sabe-se também que os senhores, querendo tirar todo o proveito do 99. Vale lembrar que alguns dos escravos negros tornados livres iam mais além na equiparação
gado humano, ávidos de tirarem todo o lucro da pirataria à roda do berço, como se exprimia o com o homem livre branco: tornavam-se, também eles, proprietários de escravos. Sobre isto, ver o
grande Sales Torres Homem, expunham as mulheres desde os treze e quatorze anos à procriação. ensaio de Manolo Florentino sobre "minas e crioulos [...]" (2005: 333), que abre seu texto com a
Há muitos fatos de indivíduos, que começando a vida apenas com cinco ou seis escravas bo- menção a um despacho policial que registra o caso de Maria Carneiro, uma "preta livre" que pos-
çais, legaram aos filhos escravaturas de mais de cem pessoas provenientes daqueles troncos" suía três escravas negras. Há ainda o caso de Luís Cardoso, que fora escravo em Recife em 1680, e
(PATROCÍNIO, Gazeta de Notícias, 06/07/1880). que, bem-sucedido na sua trajetória liberta, terminou por chegar à confortável posição de merca-
dor internacional (FLORENTINO, 2005: 361).
98. Entre 1872 e 1886, conforme assinala João Fragoso tomando por base um estudo sobre o Vale
do Paraíba, verifica-se uma queda de 8,6% da população cativa entre 13 e 40 anos - isto é, a faixa 100. Para uma análise da variação no padrão de alforrias no período anterior a este, ver Sampaio,
etária que se relaciona aos "escravos produtivos" (FRAGOSO, 2000: 160). 2.206.

134 135
sigualdade). Quando a escravidão passa a ser vista como condição ten- tipo de "autonomia na escravidão" (FLORENTINO, 2005: 338), porque
dente a permanecer, uma condição mais imobilizada, por assim dizer, es- nem todos são obviamente iguais e submetidos ao mesmo tratamento, o
taremos falando de diferenças, mais do que de desigualdades. que se torna ainda mais visível quando levamos em conta as funções exer-
Também se deve notar que, neste período de crescimento do valor do cidas, o contraste entre escravos rurais e escravos urbanos, os graus de
escravo que se dá entre meados de 1820 e os anos 1860, a possibilidade intimidade que alguns dos escravos domésticos conseguem conquistar
de obter um ganho significativo e imediato a qualquer momento através em relação à classe senhorial, e assim por diante'".
da venda do escravo favorece a avaliação deste como uma mercadoria que Deste modo, a alforria ilumina o fato de que, sobretudo no último sé-
deve estar disponível pela classe dos senhores de escravos, consequente- culo de escravatura, a diferença escrava convive lado a lado com a desi-
mente como uma "coisa", uma "peça", fortalecendo-se assim a concep- gualdade escrava. Uns serão obrigados a vivenciar a escravidão-diferen-
ção do escravo como diferença. A humanidade do escravo, em um con- ça, outros já a vivenciam como desigualdade, outros vivem-na como este
texto que fortalece a sua concepção como mercadoria, recua para um se- compósito em que, por trás da diferença, conserva-se intocável uma se-
gundo plano no universo de considerações da classe senhorial. Isso tam- gunda natureza de escravidão agora vista como desigualdade, de maneira
bém explica, como se verá mais adiante, que a tímida reflexão sobre a su- que em várias situações os escravos poderão de algum modo comprar a
pressão do trabalho escravo no Brasil que se inicia com um discurso do sua liberdade com ganhos ou afetos acumulados. Em todos estes casos, a
deputado José Bonifácio em 1823 - a célebre "Representação contra a es- possibilidade de vivenciar a escravidão como desigualdade circunstancial,
cravidão" - encontre pouca continuidade nas décadas seguintes, até que e não como diferença imobilizadora, mostra-se diretamente proporcional
nos anos 1870 o discurso abolicionista emerge com todo o vigor. à maior ou menor possibilidade que cada escravo tinha para "dispor de
As décadas entre meados de 1820 e fins de 1860, este será o ponto, si". Do escravo em que era praticamente nula a possibilidade de dispor
são para a sociedade letrada décadas de diferença escrava (décadas em de si mesmo - e neste caso ainda estaremos no âmbito da diferença escra-
que prevalece a ideia da escravidão como diferença). Ao contrário, os va - passa-se ao eixo da desigualdade escrava sempre que um escravo en-
anos 1870, assinalados pelo marco da Lei do Ventre Livre - ponto de che- contra brechas mais significativas para valer-se de si mesmo, em seu pró-
gada das medidas emancipacionistas ao estilo da "Representação ... " de prio proveito, o que pode ocorrer em graus diversos, até seu limite máxi-
José Bonifácio - e pela intensificação do discurso abolicionista mais radi- mo: este momento em que, através da alforria, este "dispor de si" "alar-
cal, corresponderão a uma nova emergência da preponderância da ideia ga-se até traduzir-se em transferência jurídica da propriedade do senhor
da escravidão como desigualdade, e não como diferença. Naturalmente para o próprio escravo" (FLORENTINO, 2005: 338)102.Aqui, a "compra
que estas duas décadas implicam a verdade na intensificação de uma ver- de si mesmo", não mais um mero "dispor de si" circunstancial, representa
dadeira luta de representações entre as duas posições, com lances de par-
te a parte, mas bem sabemos os destinos finais desta acirrada de disputa.
1o 1. Para familiarização com a especificidade da escravidão urbana, em contraste com a escravi-
Outro aspecto a considerar é que, apesar da preponderância de uma dão rural, ver a obra de Leila Algranti intitulada O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana
ou outra das duas posições nos vários períodos do escravismo (escravi- no Rio de Janeiro: 1808-1822, 1988.
102. Acompanhemos as interessantes palavras de Manolo Florentino, historiador que tem examina-
dão como desigualdade ou diferença), as duas posições sempre convive-
do tanto as formas de negociação escrava na vida cotidiana como os casos de rnanumissâo: "a noção
ram uma com a outra na realidade cotidiana. Mesmo nos seus períodos de liberdade manipulada pelos escravos coincidia com a possibilidade de, em graus diversos, 'dis-
de afirmação, é fácil perceber que no interior da diferença escrava há ain- por de si'. Sem nenhuma garantia de êxito, a maioria buscava 'dispor de si' no dia-a-dia, na lide impe-
tuosa ou malemolente, associando a 'liberdade' a pequenas conquistas tendentes a alargar sua auto-
da, e desde sempre, uma desigualdade envolvida: nem todos os escravos nomia na escravidão. [...] Mas o 'dispor de si' podia alargar-se até se traduzir em transferência jurí-
podem atingir o mesmo fim e assegurar em sua vida cotidiana o mesmo dica da propriedade do senhor para o próprio escravo" (FLORENTlNO, 2005: 338).

136 137
efetivamente um salto: a passagem qualitativa para um outro âmbito de Esta passagem de Joaquim Nabuco é particularmente interessante por-
desigualdades, a "desigualdade liberta". que, além de diagnosticar esta dupla natureza do liberto - um ente dentro
Há também que se lembrar, ainda a propósito desta questão, que, du- do qual se entranham de algum modo as duas posições contraditórias do
eixo da desigualdade escravocrata - também assinala as suas possibilidades
rante a vigência do período escravocrata brasileiro, ser liberto também po-
de conquistar uma posição mais confortável no espectro social, incluindo a
dia ser vivenciado como uma diferença, como uma categoria nova e especí-
elegibilidade. Como o mulato tem o seu lugar especial no escravismo colo-
fica do âmbito das essências, que só tinha sentido simultaneamente porque
nial e imperial, também o liberto conquista aqui a sua especificidade'".
por um lado ainda existiam escravos e porque, por outro lado, o próprio
Olhando desta perspectiva, é possível compreender que a alforria
liberto tinha uma história pregressa como escravo. Ser liberto, enfim,
apresentava necessariamente a tendência a afirmar-se como um estimu-
opõe-se sincronicamente ao "ser escravo" de outros, mas também diacro-
lante horizonte de esperanças para a população escrava; quantos não te-
nicamente ao "ser escravo" que está inscrito na própria história do liberto.
rão sonhado com a sua própria libertação através da alforria, sem obtê-Ia,
Por fim, sob a égide do preconceito, ser liberto podia vir eventualmen- em suas penosas vidas de cativeiro? Contudo, há algo mais, de crucial im-
te acompanhado de mácula quando em contraste com os demais homens portância para a questão que presentemente discutimos. Ainda que o es-
livres, e é esta circunstância que o romancista Aluísio Azevedo tematiza cravo desejoso de ser liberto conseguisse, efetivamente, acumular a quan-
em seu livro O mulato, escrito em 1881, na mais efervescente das décadas tia de mercado com a qual poderia se apresentar como comprador de sua
abolicionistas. O personagem central, um mulato chamado Raimundo ?rópria liberdade, para que a alforria se concretizasse era necessário, via
que recebera toda a educação europeia e que, ocupando uma profissão de regra, que o senhor concordasse com a operação. Ou seja, a extinção
conceituada tentava agora desenvolver um romance com uma branca da do vínculo que aprisionava o negro no mundo da diferença escrava tinha
elite maranhense, sofria os preconceitos sociais por ter sido "forro à pia" de ser acompanhada em última instância pela aprovação do senhor. Este
(AZEVEDO, 1964: 62). fator - o controle senhorial desta forma de passagem da diferença ou da
Por outro lado, será oportuno registrar o comentário de Joaquim Na- desigualdade escrava para a desigualdade liberta - é verdadeiramente o
buco à questão, em obra escrita a esta mesma época, e que já nos revela a nó górgio da questão da alforria.
posição privilegiada que possuía o liberto brasileiro em relação ao liberto Excepcionalmente, em vista de o escravo ser já detentor da quantia fi-
americano: xada para a alforria mas não conseguir o consentimento do senhor, o rei
Esse ente [o liberto], assim equiparado, quanto à proteção social, podia conceder ao escravo a liberdade, a título de uma graça. Deslocar o
a qualquer outra coisa do domínio particular, é, no dia seguinte à escravo, do mundo da diferença escrava para o universo mais flexível da
sua alforria, um cidadão como outro qualquer, com todos os direi-
tos políticos, e o mesmo grau de elegibilidade. Pode mesmo, ain- 103. É interessante ressaltar que, em cada sistema escravocrata historicamente conhecido, pode
da, na penumbra do cativeiro, comprar escravos, talvez, quem haver uma singularidade nesta passagem da diferença escrava para o estado de liberdade. Referin-
sabe? - algum filho do seu antigo senhor. Isso prova a confusão do-se ao escravismo antigo, Moses Finley assim contrasta a escravidão romana com a escravidão
ateniense clássicas: "[o escravo liberto] em termos jurídicos, 'era transformado de objeto em sujeito
de classes e indivíduos, e a extensão ilimitada dos cruzamentos so- de direitos, a metamorfose mais completa que se possa imaginar'. Era, agora, um ser humano in-
ciais entre escravos e livres, que fazem da maioria dos cidadãos conteste; em Roma, era considerado até mesmo um cidadão. [...] A regra romana determinava
brasileiros, se se pode assim dizer, mestiços políticos, nos quais se que, quando um cidadão libertava um de seus escravos, este adquiria automaticamente (exceto em
certas circunstâncias) a cidadania romana. Essa regra surpreendente - a única situação pela qual
combatem duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a um indivíduo privado, por um ato puramente privado, podia conceder a cidadania - era ininteligí-
do escravo domesticado (NABUCO, 2000: 114). vel para os gregos, cujos ex-escravos tornavam-se 'rnetecos' (equivalente aproximado do latimpe-
regrini), residentes livres mas sem direitos políticos" (FINLEY, 1991: 101).

138 139
"desigualdade forra", era deste modo uma prerrogativa do rei, que de escrava, porque reconhecem de alguma maneira o escravo como pessoa _
resto não era tão frequente quanto eram inúmeras as petições de liberda- em um caso, como pessoa comercial, comprador de si mesmo, em outro
de enviadas aos reis de Portugal ou aos imperadores do Brasil por escra- caso, como pessoa do ponto de vista jurídico, a quem, de algum modo,
vos que estavam com seus processos de alforria entravados por resistên- reconheciam-se direitos como o de recorrer a tribunais. A campanha abo-
cia senhorial. licionista, que acompanha a intensificação dos processos de emissão de
Ao mesmo tempo, estão registrados nos arquivos jurídicos processos alforrias e de impetração de "ações de liberdade" em tribunais, comple-
onde outros tipos de poderes públicos terminaram por impor ao senhor menta decisivamente este processo.
resistente o direito de um escravo comprar a própria alforria, e este é o Naturalmente que, podemos observar para concluir este conjunto de ob-
caso de um escravo chamado Joaquim, cujo processo de três anos foi es- servações, há uma diferença bastante clara entre a alforria e a ação de liber-
tudado por Keila Grinberg (2001) 104. Este escravo baiano obtivera de sua dade relativamente a seu papel no sistema da diferença escrava. As "ações de
senhora a permissão para comprar a liberdade em pequenas partidas. liberdade" contribuem já, a longo prazo, para a corrosão do sistema - uma
Surpreendido pela morte da dona, é transferido para um genro que resol- vez que colocam em xeque a autoridade senhorial, seu poder de decidir so-
ve não honrar os compromissos assumidos pela antiga dona. Para encur- bre a vida do escravo. A "alforria" concedida pelo senhor, de alguma maneira
tar a história, o escravo entra em 1823 com uma ação - depositando valo- reforça o sistema, valoriza a posição senhorial, desautoriza ou desmotiva ou-
res em juízo - até que depois de três anos a justiça acaba lhe sendo favorá- tras formas de busca da liberdade que não aquelas que passam pela decisão
vel' liberando-o para comprar a liberdade. O exemplo (uma das muitas dos senhores de escravos. Aproveitaremos as palavras de Sidney Chalhoub,
ações de liberdade que tramitaram nas vias judiciais das Américas escra- em seu ensaio sobre as Visões de liberdade (CHALHOUB, 1990: 100):
vistas) mostra de algum modo que, por vezes, só em virtude de sua obsti- A ideia era convencer os escravos de que o caminho para a alfor-
nação e devido à sua capacidade de acionar a justiça, um escravo lograva ria necessariamente passava pela obediência e fidelidade ao se-
conseguir afinal o seu intento de comprar a liberdade, o qu~ também ilu- nhor. Mais ainda [...] a concentração do poder de alforriar ex-
mina o fato de que "para cada escravo que conseguiu comprar sua liber- clusivamente nas mãos dos senhores fazia parte de uma ampla
dade, outros tantos não o fizeram, fosse por impossibilidade de arrumar a estratégia de produção de dependentes, de transformação de es-
quantia, fosse por implicância dos senhores" (GRINBERG, 2001: 2). cravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus antigos
A alforria, enfim, também as "ações de liberdade", que podiam asse- proprietários.
gurar a libertação através da intervenção estatal, constituíram recursos Acrescentaremos - nesta mesma linha, e já a adaptando ao sistema
importantes, no Brasil escravista e em outras regiões das Américas, para conceitual que estamos desenvolvendo - que a valorização, exclusivismo
que o negro fizesse a passagem da diferença escrava para a desigualdade ou concentração do "poder senhorial de alforriar" (e de decidir quem
liberta'". Um como outro destes recursos são importantes na história des- será alforriado e em que condições) correspondia precisamente a um re-
te posterior deslocamento da escravidão da diferença para a desigualdade curso a mais para os senhores controlarem a passagem da diferença es-
crava à desigualdade liberta (aqui transformada, com bastante frequên-
cia, em dependência do liberto em relação ao antigo senhor). Mais ainda,
104. Ação de Liberdade, n. 225, caixa 3689, início 1823, Corte de Apelação do Rio de Janeiro- a alforria concedida pelo senhor - nos termos de seu interesse e visando
Arquivo Nacional (apud GRINBERG, 2001: 22).
reservar para si novos vínculos de dependência da parte do liberto - con-
105. Com a chegada da corte real em 1808, aliás, aumentam muito as ações de liberdade e apelos
de alforria dirigidos diretamente ao rei (GRJNBERG, 2001: 8). Para um estudo mais detalhado da tem piava também o objetivo de assegurar ou de tentar assegurar que a di-
mesma autora, ver o seu ensaio intítulado Liberta: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade, da ferença escrava só poderia ser abandonada para se cair na desigualdade
Corte de Apelação do Rio de Janeiro, no século XfX (GRINBERG, 1994).

141
liberta, esta desigualdade geradora de dependência, de submissão, às ve- A liberdade concedida é por outro lado o contraponto da liberdade
zes de penúria. Porque o escravo podia também se evadir da diferença es- conquistada. O incremento de alforrias nas últimas décadas escravocra-
crava através da fuga para um quilombo, do suicídio (esta fuga para a tas destaca-se contra um pano de fundo onde o espaço de produção tor-
morte, para o mundo da indiferença), ou do crime (fuga, depois de con- nar-se-á cada vez mais o "palco privilegiado" não apenas de formas indi-
denado' para uma outra realidade, e já pertencente ao reino das desigual-
viduais de resistência escrava, mas também das revoltas coletivas dos tra-
dades: a dos prisioneiros, não mais sujeita à tirania do antigo senhor, em-
balhadores negros escravizados (AZEVEDO, 1987: 255) "0. A concessão
bora por vezes tão dura como a primeira).
de alforrias, no plano geral, vai funcionar como o destensionador neces-
Se o escravo se evade para um quilombo, ei-lo livre da diferença es-
sário para uma pressão muito intensa que agora se exerce de dentro do
crava e não mais sujeito à situação de desigualdade'": se o escravo se eva-
de para a morte, ei-lo finalmente integrado ao mundo da indiferença'", no próprio espaço de produção escravista, ao mesmo tempo em que os se-
qual todos se igualizam a alguns palmos abaixo da terra; se o escravo, por nhores continuam reservando para si o direito de escolher aqueles que fa-
fim, se evade para o mundo dos criminosos e condenados - e muitos ali- rão a passagem para o mundo liberto, e como a farão.
mentavam a ideia de que, dependendo do senhor, era menos desumano o Ousemos pensar uma imagem: uma ampulheta, da qual a parte de
tratamento dispensado nas prisões e nas galés perpétuas - ei-lo transferi- cima representa a diferença escrava, e a parte de baixo a desigualdade for-
do para uma desigualdade de sua escolha'". Já a alforria, de modo diver- ra. Os grãos de areia que gradual e lentamente atravessam o estreitamen-
so, assegura que o escravo passará da diferença escrava a uma forma de to do vidro são os escravos alforriados. E este estreitamento de vidro é
desigualdade específica, a do liberto, este que, ao menos no período de vi- precisamente a alforria rigorosamente controlada pelos senhores. Ter
gência da escravatura, não raro conservava relações de dependência bas-
controle sobre a alforria - esta fina cintura de vidro que escolhe grão a
tante rigorosas para com o senhor'".
grão aqueles que abandonarão o mundo da diferença escrava - permite
ao grupo social dos senhores controlar a velocidade conforme a qual se dá
106. o quilombola passava a um nível de liberdade efetiva, afirmando com sua fugá ó seu gesto de
humanidade. São estes homens com histórias de vida próprias que podemos ver em Gomes, 2005. esta evasão escrava, escolher aqueles que por ela serão beneficiados e em
107. Sobre o suicídio como forma de resistência, lembraremos a informação de Brás do Amaral, que condições, e por fim desmotivar o escravo a fugir da diferença escra-
um autor que escreve em 1915, segundo a qual os Galinhas - negros maometanos da Bahia -
va através de processos radicais que o próprio escravo controla: a fuga, o
"eram maus escravos, altivos e insubmissos, suicidavam-se com frequência" (BRÁS DO AMA-
RAL, 1915: 683). Ver ainda, sobre a diversificação das formas de resistência escrava, que vão da suicídio, o crime. A Alforria, ou o sonho da alforria, por que não dizer,
fuga ao suicídio, o ensaio com este nome de autoria de José A1ípio Goulart (1972). era por vezes o "ópio do escravo".
108. Quando cometia um crime, o escravo era julgado formalmente pelos mesmos rigores do Có-
digo Penal a que estava sujeito um branco, pelo menos um branco pobre. Neste sentido, [acob Go- É ainda patente - assim o demonstra o incremento acentuado do nú-
render chega a afirmar que o primeiro ato sano do escravo é o crime" (1980). Sobre o aumento da mero de alforriados à medida que, após 1870, nos aproximamos cronolo-
criminalidade escrava no decurso do século XIX, ver Crime e escravidão, de Maria Helena Macha-
do (1997). gicamente da abolição - que os senhores desapertaram nos últimos anos
109. Obviamente que em meio aos alforriados iremos encontrar uma rica variedade dc possibili- da escravatura o "estreitamento do vidro" com vistas a manipular a seu
dades, e que aqui falamos apenas de tendências, de uma preponderância. As recolhas de situações modo a libertação de escravos. Essa concessão maior de alforrias é sinto-
singulares têm sido encaminhadas também pelos historiadores. Challhoub, por exemplo, encon-
trará na documentação uma escrava chamada Carlota que encontrou sua própria forma de resistir ma de uma clara consciência senhorial a respeito do que estava por vir,
às regras do cativeiro: recusar-se a trabalhar e viver aos gritos dentro de casa (CHALLHOUB,
1990: 52). E, na obra "O demônio familiar" de José de Alencar - um escritor do período imperia-
l-escravocrata que pode ser considerado conservador - encontraremos a história de um escravo 110. Conforme assinala Célia Maria de Azevedo, a década de 1880 registra a crescente substi-
intrigante a quem a alforria é concedida com uma dupla função: "expulsá-lo do aconchego patri- tuição dos crimes cometidos individualmente por escravos por insurreições e revoltas coletivas
arcal, e livrar a família de um motivo permanente de confusões e desgostos" (80S I, 1992: 248). (AZEVEDO, 1987: 257).

142 143
uma realidade já por demais óbvia para alguns. Breve a ampulheta da di-
ferença e da desigualdade escrava não mais existiria, e restaria apenas a
desigualdade social dos antigos escravos nos novos tempos que se aproxi- o emancipacionismo: recusa em
mavam da República.
di
14
t .b', discutir como diferença a
desigualdade escrava

A ação dos abolicionistas, para retomar agora ao contexto do Brasil


Imperial, deu-se precisamente em torno do reconhecimento de que na
sociedade escravocrata brasileira o "negro-escravo" era já tratado como
diferença, e que era importante reconduzir esta discussão ao plano das
desigualdades. Aação social, já o fizemos notar, pode com muito mais fa-
cilidade impor transformações no eixo circunstancial das desigualdades
do que na coordenada de contrariedades das diferenças. De modo geral,
é possível perceber através dos textos e discursos dos abolicionistas que
estes tiveram uma intuição bastante clara de que o seu discurso deveria si-
multaneamente enfatizar a "desigualdade" da escravidão e rejeitar a ima-
gem do escravo como "diferença", e é este aspecto que estará nos interes-
sando mais diretamente neste momento. Por outro lado, para entender-
mos os meandros das discussões que se dão em torno do fim ou da manu-
tenção da escravatura, será preciso antes de mais nada vislumbrar as suas
correntes internas.
Começaremos por contrastar as propostas meramente "emancipacio-
nistas" - as que, embora advogando o fim da escravatura, buscavam al-
cançá-Io através de medidas graduais e paliativas - e as propostas "aboli-
cionistas" propriamente ditas, estas ancoradas na ideia de supressão ime-
diata e radical da escravidão. De igual maneira, para levar adiante a com-
preensão dos matizes internos ao abolicionismo, é possível identificar um
pensamento abolicionista mais conservador, que sustentava medidas de
indenização aos senhores de escravos pelas perdas que estes pudessem vir
a ter com o fim da escravidão, e um pensamento abolicionista mais radi-

144 145.
cal, não apenas nos métodos preconizados para alcançar o fim da escravi- qual nos referiremos como Representação sobre a escravatura (1988), o
dão como na própria recusa em fazer concessões aos senhores de escra- estadista enfatiza de imediato, embora utilizando suas próprias palavras e
vos. AboJicionistas (radicais ou conservadores), emancipacionistas, e, modos de expressão, a cruel combinação de "diferença escrava" e "desi-
naturalmente, os próprios "escravistas" que sustentavam ferrenhamente gualdade escrava", ressaltando sintomaticamente que os africanos e afro-
a manutenção do regime escravocrata: todos conviveram nestas duas úl- descendentes escravizados de sua época "não têm pátria," mas que "po-
timas décadas do sistema escravista, sobretudo a partir de meados dos dem a vir a ser nossos irmãos e nossos compatriotas".
anos 1870. É preciso recuperar para os negros submetidos à escravidão, é nestes
Os matizes que se desenvolviam em torno do pensamento sobre a termos que José Bonifácio se expressa, "a dignidade de homens e cida-
questão escrava, e particularmente a diferenciação que deve ser feita en- dãos" (ANDRADA E SILVA, 1988: 68), pelo que a questão se vê desde já
tre "emancipacionismo" e "abolicionismo", transparecem claramente na colocada em termos de "ausência de cidadania" (uma desigualdade, por-
literatura da época e nas posições que se expressam através dos discursos tanto, e não uma diferença). Em outro ponto do discurso de José Bonifá-
políticos com suas consequentes ações legais. Joaquim Nabuco, o mais cio, aliás, ressalta o fato de que a transformação dos escravos em cida-
sofisticado e consciente dos escritores e políticos abolicionistas do final dãos permitiria precisamente modificar o seu status de "inimigos inter-
do Império, assim se coloca em sua obra O abolicionismo (1883) diante nos" para aliados, perfeitamente inseridos no projeto nacional. Trata-se
da necessidade de compreender a distinção entre ações emancipacionis- então de deixar de enxergar o escravo como o outro, como a diferença
tas e propostas abolicionistas propriamente ditas: submetida à escravidão e que se coloca como o inimigo ou opositor inter-
A política dos nossos homens de Estado foi toda, até hoje, inspi- no, e conceder-lhe um lugar na sociedade civil e na civilização. Admitido
rada pelo desejo de fazer a escravidão dissolver-se insensivel- o antigo escravo como cidadão perfeitamente integrado à terra, agora já
mente no país. O Abolicionismoé um protesto contra esta triste purgado definitivamente de sua diferença escrava, fica de resto implícito
perspectiva, contra o expediente de entregar à morte a solução que o trabalho a partir daí será o de atenuar desigualdades. Passamos
de um problema que não é só de justiça e consciênciamoral, mas
portanto de um eixo a outro, das diferenças às desigualdades, é disto es-
também de previdênciapolítica (NABUCO, 2002: 25).
sencialmente que se trata.
Há, contudo, uma história anterior que precede estes anos mais efer- Com relação à questão negra, deve-se ressaltar que José Bonifácio
vescentes de debate antiescravagista. Um texto pioneiro deve ser atribuí- não atribui ao africano, como de resto era tão comum entre os políticos e
do a José Bonifácio de Andrada e Silva, monarquista constitucionalista escritores da época, o pretenso ambiente de depravação que habitual-
que se destacou nos primeiros anos do Império"'. Teremos aqui um mente se descreve como consequência do regime de trabalho escravista.
exemplo primordial do pensamento "emancipacionista", já que a propos- Toda a ênfase de depreciação deve recair neste caso, segundo a ótica de
ta era neste caso a de supressão gradual da escravidão. Neste projeto, ao Bonifácio, não sobre a figura racial do africano, e sim sobre a figura social
do escravo, ou, melhor dizendo, sobre a noção desigualadora de escravo:
111. o projeto para a questão escravocrata de José Bonifácio, então deputado por São Paulo, foi Tudo se compensa nesta vida. Nós tyrannizamos os escravos e
apresentado à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império em J 823. Apresenta-se os reduzimos a brutos animaes; eles nos innoculam toda a sua
como uma extensa argumentação em defesa do fim da escravidão, na qual o deputado paulista do
Império sugere desde prazos para o fim do comércio de escravos como também mecanismos dire- immoralidade e todos os seus vícios.
cionados para a abolição gradual da escravidão, refletindo inclusive sobre a reorganização da vida
jurídica, econômico-social, cultural e familiar dos escravos libertos.

146 147
A escravidão, desta maneira, macula e deteriora tanto aos senhores "desigualdade escrava" seria preciso eliminar um eixo inteiro: quando se
como aos escravos, como em um rio de dupla corrente que não apresenta suprime o senhor, suprime-se o escravo, e vice-versa'". No eixo das desi-
nem propriamente um vilão e nem uma única vítima. Na verdade, tal pa- gualdades, a supressão de um polo implica imediatamente a desintegra-
rece se depreender da argumentação de José Bonifácio, o rio escravocrata ção do outro - este é o nó da questão.
é o vilão, e as vítimas são simultaneamente os senhores e escravos, as duas Retomando à questão emancipacionista, a proposta de José Bonifácio
posições sociais que constituem o sistema. Não há um problema étnico na para esta escravatura que corrompia a sociedade como um todo, como se
base desta degradação que seria o escravismo, de acordo com o discurso disse, era a da "libertação gradual" - não a libertação de toda a massa de
sustentado pelo Patriarca da Independência, mas sim um problema social escravos de uma única vez, pois isto poderia trazer problemas econômicos
de base, este sim um verdadeiro obstáculo para as possibilidades de efe- e sociais graves, mas sim a libertação por camadas escravas, passo a passo.
tivo progresso e de assegurar o pleno desenvolvimento civilizacional no Tratava-se de evitar a morte súbita da escravidão, que viria com a adoção
Brasil. É interessante notar, aliás, que a ideia de que o que se deve atacar da abolição instantânea, e de substituí-Ia pela morte lenta, assimilável à so-
não é propriamente a mera "sujeição do escravo", mas sim a dicotomia ciedade escravocrata. Por outro lado, o fator gradualista da proposta tam-
senhor x escravo, irá reaparecer décadas depois no discurso mais propria- bém apresenta um outro sentido, bem diverso, não mais relativo à massa
mente abolicionista de um Joaquim Nabuco: escrava enquanto objeto, mas sim ao indivíduo escravo enquanto sujeito.
Por outro lado, a emancipação não significatão-somente o ter- Postula-se que não se pode passar de um pólo a outro, de escravo a livre,
mo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a elimi- como quem atravessa uma via pública. Era preciso uma preparação, esta
nação simultânea de dois tipos contrários, e no fundo os mes- envolvendo simultaneamente a massa escrava, cada indivíduo escravo a ser
mos: o escravo e o senhor (NABUCO, 2002: 32). libertado, a elite senhorial e a economia do país como um todo.
De qualquer maneira, depois de uma arguta análise da conjuntura
Recolocar a questão nestes termos, seja no emancipacionismo de José
mais imediata de seu tempo, na continuidade do texto de José Bonifácio
Bonifácio ou já no abolicionismo de Joaquim Nabuco, é sustentar que o
parecem ser evocadas claramente as desigualdades que ainda estariam
que deve ser suprimido não é um polo - o escravo - mas sim a própria di-
por vir, já no nível liberto, caso o processo de abolição não fosse adequa-
coto mia polarizada entre "senhores" e "escravos": um eixo de desigual- damente conduzido e não fossem proporcionadas as devidas oportunida-
dades inteiro, portanto. Este é por sinal um dos sintomas de que aqui a des de sobrevivência e trabalho aos ex-escravos a serem absorvidos pela
questão escrava mostra-se já colocada em termos de desigualdades, e não sociedade já como cidadãos livres:
mais de diferenças. A eliminação de um termo essencial pode ser tentada Torno a dizer que não desejover abolidade repente a escravidão;
quando consideramos o âmbito das diferenças (embora, sabe-se lá, a que tal acontecimento traria consigo grandes males, Para emancipar
custos), mas a eliminação de um par circunstancial só pode efetivamente escravos sem prejuízo da sociedade, cumpre fazê-Ios primeira-
se produzir no âmbito das desigualdades. Para eliminar a "diferença es- mente dignos da liberdade: cumpre que sejamos forçados pela
crava" seria talvez preciso libertar os africanos e depois deportá-los para a
África (e, aliás, este curioso projeto, conforme veremos oportunamente,
foi proposto, em 1822, nos Estados Unidos pela American Colonization 112. Todo o problema com a Lei do Ventre Livre (1871), este ponto culminante das propostas
emancipacionistas, era precisamente o fato de que a mera transformação dos "escravos por nas-
Society, que se dispôs a fundar no continente africano um país - a Libéria- cer" em "ingênuos", uma nova categoria social que ali se criara, simplesmente deixava intacta a
constituído por libertos do escravismo americano). Mas para suprimir a classe dos senhores, e consequentemente os ingênuos continuaram a ser dependentes dos mes-
mos senhores que já eram os donos de seus pais.

·148 149
razão e pela lei a convertê-Ios gradualmente de vis escravos em cia, e a indolência traz todos os vícios após si (ANDRADA E
homens livres e ativos (ANDRADA E SILVA, 1988). SILVA, 1998: 64).

Para a questão que nos interessa, há neste discurso a referência a uma O texto pioneiro de José Bonifácio em favor da extinção da escravatu-
"diferença" (os "vis escravos") que deve ser convertida formalmente em ra - contemporâneo à tradução para o português do opúsculo "Os gemi-
"desigualdade" - deslocamento a vir amparado no reconhecimento de dos dos africanos" de Thomas Clarkson (1823) - é apenas um exemplo
que nos meios escravos existem apenas seres humanos submetidos a con- do deslocamento que estava por se operar entre a coordenada das dife-
dições desumanas e desigual adoras - para que a partir daí gradualmente renças e a diagonal das desigualdades. Posteriormente viriam outros, já
os próprios escravos pudessem ser convertidos em "homens livres e ati- no âmbito dos discursos abolicionistas. Mas desde já cumpre observar,
vos". "Gradualmente" (grifo nosso) marca exatamente a evocação ao ainda com base em uma última transcrição deste texto pioneiro com rela-
eixo de contradições, onde é possível haver uma reversibilidade e um des- ção ao tratamento da questão escrava, que o gesto fundador do projeto
locamento espectral do âmbito dos mais desiguais em direção ao mundo antiescravista está em reconhecer isso que poderemos chamar de um "pe-
plenamente realizado dos iguais, aqui idealizados pelo duplo atributo de cado original da instituição de uma diferença escrava". Já nestes inícios
"homens livres e ativos". Trata-se, enfim, de trazer a questão do plano do Império, José Bonifácio assim se expressava, preludiando o debate abo-
de contrariedades das "diferenças escravas" para o plano de contradito- licionista que estaria por vir em décadas posteriores:
riedades das "desigualdades escravas", pois é somente neste plano que Com efeito, senhores, nação nenhuma, talvez, pecou mais contra
pode ser estabelecida efetivamente uma ação social com vista a amenizar, a humanidade do que a portuguesa, de que fazíamos outrora
diminuir ou mesmo eliminar as injustiças sociais. Libertar sem proporcio- parte. Andou sempre devastando não só as terras de África e
nar condições econômicas e acesso ao trabalho para os novos homens li- Ásia, como disse Camões, mas igualmente a de nosso país. Fo-
vres' parece estar implícito no texto, é sujeitar a sociedade a "grandes ma- ram os portugueses os primeiros que, desde os tempos do infan-
les". à possibilidade da marginalização, ao crime, à miséria, àociosidade. te D. Henrique, fizeram um ramo do comércio legal de prear ho-
mens livres, e vendê-Ios como escravos nos mercados europeus e
Da mesma forma que examina a necessidade de uma abolição gradual,
americanos. Ainda hoje perto de 40.000 criaturas humanas são
socialmente conduzida de modo a evitar desigualdades e distúrbios poste-
arrancadas da África, privadas de seus lares, de seus pais, filhos e
riores, José Bonifácio defende a ideia de que a própria instituição da escra-
irmãos, transportados às nossas regiões, sem a menor esperança
vidão havia se constituído originalmente em um obstáculo em potencial ao
de respirarem outra vez os pátrios ares, e destinadas a trabalhar
progresso futuro da nação brasileira que agora se tornava independente. O
toda vida debaixo do açoite cruel de seus senhores, elas, seus fi-
que estaria contaminando a sociedade brasileira de seu tempo, conforme se lhos, e os filhos de seus filhos para todo o sempre! (ANDRADA E
pode ver no discurso de José Bonifácio, não era a "diferença negra", mas a SILVA, 1988: 63).
"desigualdade escrava". A facilidade de pôr um outro indivíduo a trabalhar
gratuitamente para si, segundo o deputado do Império, contribuía para É preciso examinar a questão da instituição da escravidão e da conse-
lançar a classe senhorial no ócio, na estagnação, na imobilidade: quente necessidade da libertação de escravos, tal parece nos colocar o
O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e texto de José Bonifácio, não como uma questão de âmbitos interindivi-
da indústria. E qual será a causa principal de um fenômeno tão duais (conceder alforrias, por exemplo), mas sim como um problema de
espantoso? A escravidão, senhores, a escravidão, porque o ho- dimensões coletivas (de assumir a extinção da escravatura consciente-
mem que conta com os jornais de seus escravos vive na indolên- mente como um "projeto social"). Este abismo essencial entre duas posi-
ções radicalmente distintas se coloca claramente quando examinamos as

150 151
ações interindividuais encaminhadas pelos senhores mais generosos atra- A representação contra a escravidão, de José Bonifácio (1823) foi cer-
vés da alforria (por vezes camuflando interesses mesquinhos, já o vimos) tamente um marco no pensamento antiescravagista, embora não tenha
e as ações sociais efetivas, como aquelas que logo estariam sendo propos- resultado em medidas concretas. Não foi por outro lado o único texto
tas pelas ideias abolicionistas. Neste último caso, a libertação não pode vir emancipacionista - isto é, com a proposta clara de uma extinção gradual
como um prêmio, como uma concessão - como uma "alforria". Precisa da escravidão no Brasil - uma vez que outros textos análogos surgiram
vir, isso sim, como o restabelecimento de um equilíbrio e justiça social nestas mesmas cinco décadas situadas entre os anos que precedem a
que haviam sido rompidos com o próprio gesto escravizador original: um Independência e os anos abolicionistas que principiam na década de
gesto que não pode mais ser atribuído a indivíduos - estes mercadores 1870. De qualquer maneira, as poucas e eventuais contribuições emanei-
que instituíram o tráfico negreiro e que são referidos por José Bonifácio pacionistas transformadas em texto acham-se de fato espalhadas ao longo
como "vendedores de carne humana":". É preciso reputar este gesto es- de cinco décadas de escravatura e podem ser facilmente contadas nos de-
cravizador original, agora, aos portugueses como um todo (e neste pon- dos, o que contrasta intensamente com a profusão de textos abolicionis-
to, aliás, José Bonifácio cria uma sutil diferença entre os brasileiros e seus tas dos anos 1870 não apenas no que se refere ao seu conteúdo, como
antigos colonizadores, ao referir-se à nação portuguesa como aquela "de também na sua quantidade e na concentração muito maior de textos em
que outrora fazíamos parte") 114. É preciso enfim conceber a escravidão ou um curto período de tempo (menos de duas décadas).
qualquer outra desigualdade social como o aviltamento imposto por uma Para o período que neste momento consideramos, é preciso registrar
sociedade contra uma outra, ou contra parte dela mesmo, e não como que, antes mesmo de José Bonifácio defender a sua Representação contra
ações que se dão entre indivíduos. Esta seria inclusive a chave por trás do a escravidão, já tínhamos, da lavra de João Severiano Maciel da Costa, um
discurso abolicionista, a única chave capaz de conduzir a questão escra- texto cujo longo título já nos diz muita coisa: Memória sobre a necessidade
vocrata, hipocritamente ou não, nos limites do único plano nocional que de abolir a introdução de escravos africanos no Brasil, sobre o modo e as
permite em tese as ações sociais: o plano das desigualdades sociais'", condições com que esta abolição se deve fazer e sobre os meios de remediar
a falta de braços que ela pode ocasionar (1821) 116. A obra, em alguns pon-
tos ancorada em ideias que já eram amplamente difundidas nos meios
113. Aqui José Bonifácio se pergunta, com bastante eloquência: "que justiça tem um homem para
abolicionistas ingleses, pode ser inserida nesta onda bastante diluída de
roubar a liberdade outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes fi-
lhos?" (ANDRADA E SILVA, 1998). propostas emancipacionistas que atravessa as cinco décadas que prece-
114. A estratégia discursiva de criar uma diferença entre o antigo colonizador português e o bras i- dem os anos 1870. Mas, por outro lado, A memória de Maciel da Costa
leiro, aliás, central neste texto de José Bonifácio, é reforçada por uma outra passagem particular- mostra-se ainda um texto bastante ambíguo. Ao mesmo tempo em que se
mente interessante, onde a própria escravidão é apontada como estratégia dos antigos dominado-
res portugueses para minar as possibilidades de uma futura nação brasileira em formação: "Se o opunha explicitamente ao tráfico e à escravidão no Brasil, reconhecia o
antigo despotismo foi insensível a tudo isso, assim lhe convinha a ser por utilidade própria: queria autor que esta ainda deveria seguir algum tempo em vista dos interesses
que fôssemos um povo mesclado e heterogêneo, sem nacionalidade e sem irmandade, para melhor
nos escravizar" (ANDRADA E SILVA, 1988: 61).
públicos, e até mesmo a justificava em algumas passagens mais específi-
115. É, aliás, oportuno ressalvar que, ao mesmo tempo em que José Bonifácio conduz o seu dis- cas. Assim, por um lado Maciel da Costa acompanhava de perto o discur-
curso favorável à abolição em termos de humanitarismo, dá-lhe um amplo suporte em termos de so inglês da época e as posições ilustradas ao registrar que a compra e
eficiência empresarial. Da mesma forma, como que a piscar um olho para cooptar os senhores
de terra ainda indecisos, faz questão de mostrar-lhes que eles não precisão temer modificações so-
ciais muito profundas que afetem as hierarquias econômicas até então existentes e muito menos o t 16. João Severiano Maciel da Costa (1769- 1833) - o Marquês de Queluz - ocupou vários car-
sistema de propriedades vigentes. Os escravos libertos, assevera, não constituirão ameaça à ordem gos importantes no Império, como o de Ministro do Império, Ministro da Fazenda, Conselheiro
social já estabelecida, pois para "ganharem a vida aforarão pequenas porções de terras descober- de Estado, Presidente da Província da Bahia, e Senador do Império do Brasil- função que desem-
tas ou taperas, que nada valem" (ANDRADA E SILVA, 1998). penhou desde 1826 até o ano de sua morte em 1833.

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venda de escravos era uma ofensa à humanidade, já que "os homens nas- cio-escravo de amplitude mais moderada que desde longa data vigorava
cem livres" (a escravidão, portanto, é de acordo com esta observação um com o circuito islâmico, os reinos africanos que no período moderno "in-
assunto de desigualdade, e não de diferença). Mas ao mesmo tempo, em corporaram a escravidão à sua estrutura política" assim o fizeram por in-
outras passagens que parecem anular esta postura inicial, terminava por fluência dos europeus, e não por um movimento natural, tal como Maciel
recair no velho discurso de que transportar os escravos da África para o da Costa parece sustentar. Ambiguidades à parte, em todo o caso o autor
Brasil não era, no fim das contas, assim tão ruim, em vista dos benefícios posiciona-se favoravelmente ao fim gradual da escravidão no Brasil, o
que a mudança dos africanos para um ambiente mais civilizado poderia que o aproxima de alguma maneira das ideias emancipacionistas.
lhes proporcionar: É já uma obra mais marcadamente emancipacionista a Memória sobre a
Que é muito, pois, que os bárbaros ferozes africanos sejam escravatura e projeto de colonização dos europeus e pretos da África no
transportados dos seus areais ardentes para o belo clima do Bra- Império do Brasil, escrita por José Eloy Pessoa da Silva (1826). Reaparece
sil, e aí empregados no suave trabalho da agricultura? (MACIEL aqui a tônica da abolição gradual, com a proposta de que houvesse incenti-
DA COSTA, 1988: 9-61). vos para uma colonização do Brasil que fosse partilhada por índios, euro-
peus e africanos. Mais ainda, uma outra obra - a Memória analítica acerca
Portanto, embora partindo de um discurso e de uma postura inicial
do comércio de escravos e acerca dos males da escravidão doméstica (1837)
contra a desigualdade escrava, Maciel da Costa acaba, em passagens co-
mo esta, recaindo na concepção da diferença negra justificadora de uma - escrita 11 anos depois por Leopoldo César Burlamaque, denunciava no
diferença escrava'". Ao se referir às nações africanas envolvidas com a título algum avanço na discussão emancipacionista, já que se propunha a
ponta africana do tráfico, também deixa escapar a opinião de que "nações examinar, com vistas a corrigi-Ios, os efeitos da escravidão no futuro'".
[negras] houve que instituíram a escravidão, incorporando-a à sua orga- Estes exemplos, embora relevantes, ainda são obviamente muito espar-
nização política", sem querer se dar conta de que basicamente as nações sos. Apesar destas poucas iniciativas de discutir o tema das possibilidades
africanas que se constituíram para o tráfico, já no período moderno, as- de extinção da escravatura, ainda seria preciso esperar um pouco mais para
sim o fizeram sob a influência da instalação de um poderoso Tráfico que se fizesse ouvir um discurso abolicionista mais consistente '".
Atlântico que distribuía lucros para todas as suas pontas. Isto é, diferen-
temente da escravidão localizada que já existia na África ou do comér-

117. o argumento da "tutela benéfica" do senhor sobre o escravo também teria ampla difusão en-
tre os defensores do escravismo. Em 1870, às vésperas da promulgação da Lei do Ventre Livre,
Peixoto de Brito também sustentava este mesmo argumento, além de defender a ideia de que, em
última instância, caso a abolição fosse necessária, esta não poderia ocorrer sem uma indenização
correspondente aos senhores, sob o risco de ser instituída uma espécie de "lei do rouba da proprie-
dade particular" (MACIEL DA COSTA, 1980: 416). Ainda sobre a argumentação escravista em fa- 118. Outros exemplos poderiam ser citados, como um projeto proposto pela Sociedade contra o
vor da "boa tutela", podemos citar a peça O demônio familiar, de José de A1encar,onde o romancista Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização da Civilização dos Indígenas. Este texto, datado
imagina um escravo maldoso, desagregador e intrigante que é punido com a alforria, isto é, com a de 1852, tem um título marcadamente emancipacionista: "O sistema de medidas adaptáveis à pro-
expulsão em relação ao convívio e à tutela senhorial, passando-se deste modo a ideia de que, ao ser gressiva e total extinção do tráfico e da escravatura no Brasil", e algumas de suas propostas diri-
libertado, o escravo em questão perdia algo precioso: "Eu o corrijo, fazendo do autômato um ho- gem-se ao apoio do governo para a adoção do trabalho livre concomitante à "extinção progressi-
mem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a va da escravatura". Datado de 1845, existe ainda um texto de Veloso de Oliveira - que ocupava
porta de minha casa (a Pedro). Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em o cargo de desembargador da relação de Pernambuco - e que apontava na mesma direção
diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma (MACIEL DA COSTA, 1980: 408).
conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os no- 119. Para uma leitura das poucas propostas emancipacionistas que surgem neste período, ver o
bres sentimentos que hoje não compreendes (Pedro beija-lhe a mão)" (ALENCAR, 1977). excelente estudo de Isabela Torres de Castro Innocencio (lNOCCENCIO, 2002: 46-53).

154 155
nista" (e não "abolicionista"), uma vez que com ela aponta-se não para a
supressão imediata da escravatura, e sim para este deixar que a escravatu-
o abolicionismo: proposta de ra morra naturalmente, já que com a nova lei não nasceriam mais escra-

15 supressão imediata da desigualdade


vos e os já existentes terminariam por morrer um dia, extinguindo-se com
isso a escravidão.

escrava Tanto o caráter gradualista do pensamento emancipacionista de todo o


período anterior aos anos 1870, como também os vazios entre as suas mai-
ores manifestações, são percebidos com clareza por Joaquim Nabuco, ele
mesmo já um abolicionista no sentido stricto. Nabuco enxerga no período
anterior apenas duas realizações concretas: a supressão do tráfico em 1850
A história do discurso antiescravagista tem os seus ritmos próprios. (Lei Eusébio de Oueirozi, e a libertação dos escravos por nascer através da
Apesar dos significativos investimentos de José Bonifácio e de alguns Lei do Ventre Livre em 1871. Antes e entre estas duas medidas que na ver-
poucos autores do Primeiro Reinado no questionamento emancipacio- dade não atacam diretamente o problema da escravidão, mas apenas res-
nista do sistema escravocrata, não há como negar que a produção discur- tringem o seu campo de ação, Nabuco também identifica um relativo vazio
siva antiescravagista desta época não pode ser comparada com a que to- discursivo ("uma calmaria profunda" ou um "período de cansaço", con-
maria forma algumas décadas mais tarde. De fato, pode-se mesmo perce- forme as próprias palavras do escritor e político abolicionista):
ber, entre o início do Primeiro Reinado e o período mais intenso de crítica A primeira oposição nacional à escravidão foi promovida tão-so-
abolicionista que se dá no final do Segundo Reinado, um certo vazio dis- mente contra o tráfico. Pretendia-se suprimir a escravidão lenta-
cursivo a ser considerado no que concerne a uma expressão mais incisi- mente, proibindo a importação de novos escravos. À vista da es-
va e radical da questão antiescravagista (não um vazio de lutás:' veja-se pantosa mortalidade desta classe, dizia-se que a escravatura,
bem). Rigorosamente falando, praticamente não há naquela primeira uma vez extinto o viveiro inesgotável da África, iria sendo pro-
gressivamente diminuída pela morte, apesar dos nascimentos.
época grandes discussões sobre o fim do escravagismo que possam om-
Acabada a importação de africanos [...] seguiu-se à deportação
brear com aquelas que surgiriam nos anos 1870 - à parte, é claro, os já
dos traficantes e à lei de 4 de setembro de 1850 uma calmaria
mencionados textos emancipacionistas de autores mais isolados e uma
profunda. Este período de cansaço, ou de satisfação pela obra
notável "fala do trono" pronunciada por Dom Pedro 11em 1867, na qual
realizada - em todo o caso de indiferença absoluta pela sorte da
o Imperador também se coloca a favor de um "emancipacionismo" gra-
população escrava - durou até depois da Guerra do Paraguai,
dual, sugerindo que a questão fosse discutida pelos políticos do Impé- quando a escravidão teve que dar e perder outra batalha. Essa se-
rio'". Esta fala régia, aliás, mobilizaria nos quatro anos seguintes os deba- gunda oposição que a escravidão sofreu, como também a primei-
tes que conduziriam à Lei do Ventre Livre promulgada em 1871, mas esta ra, não foi um ataque ao acampamento inimigo para tirar-lhe os
deve ser considerada como uma primeira grande medida "emancipacio- prisioneiros, mas uma limitação apenas do território sujeito às
suas correrias e depredações. Com efeito, no fim de uma crise
política permanente, que durou de 1866 até 1871, foi promulga-
120. "O elemento servil do Império não pode deixar de merecer oportunamente a vossa conside-
da a lei de 28 de setembro [a Lei do Ventre Livre], a qual respei-
ração, provendo-se de modo que, respeitada a propriedade atual, e sem abalo profundo em nossa
primeira indústria - a agricultura - sejam atendidos os altos interesses que se ligam à emancipa- tou o princípio de inviolabilidade do domínio do senhor sobre o
ção" [D. PEDRO 11,"Fala do trono (1867)"]. escravo, e não ousou penetrar, como se fora um local sagrado,

156 157
interdito ao próprio estado, nos ergástulos agrários (NABUCO, Vimos atrás que, nas 4 ou 5 décadas que correspondem ao período
que vai de meados de 1820 aos anos 1860, alguns fatores se combinam.
2002: 24).

Joaquim Nabuco identifica com especial clareza esse vazio de ações


° preço do escravo começa a crescer neste período, até atingir seu ápice
nos anos 1860. Acompanhando este processo, há um recrudescimento
eietivas no seio da elite política do Império no que concerne à questão es- das manumissões, pelo menos no que concerne às possibilidades do es-
crava: apenas duas medidas, uma visivelmente produzida sob a pressão cravo comum comprar a sua própria alforria. A ideia da escravidão como
dos interesses internacionais (leia-se ingleses) e que redundou na supres- um estado que pode ser revertido tem aqui um recuo significativo. Isto
são do Tráfico Atlântico em 1850121; outra que culminaria com a realiza- significa dizer, vimos atrás, que se passa de um período onde predomina-
ção incompleta expressa pela Lei do Ventre Livre, criadora desta nova ca- va a desigualdade escrava (entre fins do século XVIII e inícios do século
tegoria social- os "ingênuos" - mas que na prática continuariam a ser es- XIX) para uma fase de predomínio da diferença escrava. As revoltas ma-
cravos filhos de escravos, dadas as condições de dependência que seriam lês na Bahia, exemplarmente reprimidas - e particularmente a de 1835 -
conservadas em relação aos antigos senhores. Contra este pano de fun~o, são sintomas de um tempo em que o horizonte das conquistas individuais
não se interessa Nabuco em mencionar neste momento, seguem-se as lll- da liberdade através da alforria recua para segundo plano em relação ao
subordinações escravas nos níveis individual e coletivo, as fugas de escra- período anterior, e os caminhos coletivos de libertação começam a se tor-
vos e formação de quilombos, os crimes escravos de que nos prestam nar mais expressivos. Temos também as pressões internacionais contra o
conta os inúmeros processos hoje encontráveis nos arquivos, e também, Tráfico Atlântico, que haviam conduzido à instituição em 1831 a uma
porque não dizer, as negociações do dia-a-dia, as alforrias mais conq~is- primeira lei antitráfico - a Lei Feijó, uma "lei para inglês ver" que pratica-
tadas do que recebidas, as ações de liberdade, os meandros da mestiça- mente permaneceu letra morta - e posteriormente ao já mencionado fe-
gemo Tudo isto se agita na sociedade real dos brancos, negros e mulatos, chamento do tráfico em 1850, o que por um outro lado estimula depois
homens livres, escravos e libertos, senhores escravistas e homens pobres, desta data não apenas o contrabando como também o "tráfico interno",
sob a impressionante calmaria discursiva da política imperial. com o deslocamento de escravos do norte para o sul (das zonas de açú-
Podemos nos perguntar pelas razões possíveis para este esvaziamento
do discurso antiescravagista que se dá entre a Representação contra a es-
car, por exemplo, para as áreas do café, estas em plena ascensão) 122. trá- °
fico interno, além disto, dá-se sob o signo de uma concentração da pro-
cravidão de José Bonifácio e as décadas abolicionistas, embora assinalado priedade escrava, pois com o encarecimento do preço escravo os peque-
aqui e ali por um ou outro dos textos emancipacionistas que já foram men- nos produtores tendem a buscar na venda de seus escravos para o tráfico
cionados. De saída, pode-se aventar que o relativo vazio discursivo em ter- interno uma solução com vistas a tentar sair de eventuais crises que, des-
mos de discussões antiescravagistas corresponde perfeitamente àquelas a tarte , não deixam de favorecer "um recrudescimento do número de bran-
que já nos referimos como décadas de diferença escrava, e não é difícil arti- cos empobrecidos, nas diversas situações rurais, locais e regionais" (CAS-
culá-lo ao contexto e às circunstâncias históricas que o envolvem. TRO, 1995: 104)m.

121. A Lei Eusébio de Queirós, versando sobre a proibição do tráfico, foi aprovada em setembro de
1850. É bastante explícita com relação à punição dos envolvidos no proc~sso do tr~fico de e~cra-
°
122. fenômeno é adequadamente descrito por João Fragoso: "A rentabilidade da economia do
Sudeste permitiu que os cafeicultores, entre outros senhores do Centro-sul, suplantassem os se-
vos: "[ ...] Artigo 3°: são autores do crime de importação, ou de tentativa dessa Imp.?rta~ao.. 0 nhores de engenho nordestinos no que diz respeito à posse de escravos. Um dos resultados deste
dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e o so.b~e~arga. ~a.o cúmpli- processo fora a exportação de cativos do Nordeste para o Sul" (FRAGOSO, 2000: 168).
ces a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escravos no ternton~ b~asllelro d: que
concorrerem para ocultar ao conhecimento da autoridade, ou para os subtrair a apreensao no 123. Tal como assinala João Fragoso, "nos últimos anos de cativeiro, observou-se Uma tendência
à concentração de terras e homens em poucas mãos" (2000: t 6 l ).
mar, ou em ato de desembarque sendo perseguida".

158 159
Em oposição às quatro décadas de vazio discursivo que quase silenciam cravocrata como um modelo produtivo cada vez mais anacrônico, já vi-
a respeito das possibilidades de reenquadrar o escravismo sob a ótica da nham se contrapondo transformações no próprio seio da população escra-
desigualdade - já que os textos emancipacionistas neste largo período são va no que concerne às suas formas de sociabilidade. Em um mundo onde já
bastante esparsos - os anos 1870 serão realmente efervescentes. As déca- não seria possível a migração forçada de africanos, alguns dentre os própri-
das de diferença escrava haviam sido conduzidas a seus limites, e se, para os senhores de escravos já estimulavam, com vistas a favorecer condições
os interesses econômicos internacionais bastara, durante este período, que em que a natalidade finalmente superasse a mortalidade da escravaria, a
o Tráfico Atlântico fosse reprimido, agora todas as pressões já apontam formação de uma família escrava mais consistente. Diante do reconheci-
para que seja desfeito o último reduto escravista das Américas. Na Rússia, mento de que havia uma vida social e familiar para além do seu extenuante
a servidão fora abolida em 1861; nos Estados Unidos o sul escravista fora trabalho escravo, a dimensão humana do escravo negro ia sendo trazida,
vencido (1865); e no âmbito europeu os interesses ingleses cada vez mais contra ou com a consciência senhorial, para primeiro plano. A "humaniza-
ção do escravo', naturalmente, favorece tão intensamente a leitura da es-
se fecham na ideia de que a página do escravismo colonial deveria ser vira-
da definitivamente'". A sobrevivência da escravidão americana nos estados cravidão como "desigualdade social" como, no pala oposto, a "coisificação
do sul, aliás, sempre constituíra um dos mais fortes argumentos dos defen- do negro" favorece a concepção da diferença escrava.
sares do escravismo no Brasil, de modo que subitamente o império brasileiro Mostram-se como sintomas muito claros da crescente humanização
ficavapraticamente sozinho como o último país escravista das Américas 125.
do escravo no imaginário das elites o lugar que, ao negro escravo, a pró-
pria literatura começa a dedicar. São por demais evidentes as contribui-
No nível interno da economia, começam a surgir de uma para esta ou-
ções poéticas trazidas por Castro Alves em seu livro Os escravos e com
tra época os interesses industriais e os de outros setores da economia que
suas duas obras primas intituladas "Vozes da África" e "O navio negrei-
não estão interessados na preservação do sistema escravista. Por fim,
ro", esta última declamada pela primeira vez em 1868 e ambas obrigando
para assegurar uma nova modalidade de mão-de-obra para a lavoura, o
o leitor a contemplar simultaneamente a desumanidade da ideia de uma
Estado Imperial já desde os anos 1860 começara a incentivar a imigração.
diferença escrava e as injustiças que, sob ela, desenhavam-se como desi-
Nos anos 1870, os efeitos deste influxo de mão de obra já se'fazem notar:
gualdade escrava'". De igual maneira, a figura humanizada do negro tam-
o preço do escravo já não subiria e a lavoura não tardaria a contar com um
bém começa a despontar na literatura em prosa - desde um discreto mar-
outro tipo de mão-de-obra'".
co inicial com o romance O Comendador de Pinheiro Machado (1856)
Enquanto isto, a este bloco de fatores econômicos que, na perspectiva até chegar a obras primas como O mulato de Aluísio Azevedo (1881) 128.

de alguns setores econômico-sociais, vão redesenhando a instituição es- Com isto, o negro passava a receber um lugar destacado nos enredos lite-
rários, o que se intensifica a partir das décadas abolicionistas'".
124. Sintoma da intolerância cada vez maior da Inglaterra diante das últimas sobrevivências es-
cravistas foi o "Caso Christie", quando em torno da passagem para o ano de 1863 uma força naval
inglesa realizou um breve bloqueio de seis dias no porto do Rio de Janeiro com vistas a reprimir o 127. Outra referência é o poema "Mauro, o escravo", de Fagundes Vareia (1864).
tráfico clandestino, resultando na apreensão de navios fora do porto e na eclosão de uma crise di- 128. Sobre estas questões, ver Camacho, 2007.
plomática entre Brasil e Inglaterra que durou 2 anos. Ver Conrad, 1975: 89.
129. Naturalmente que a emergência do negro na literatura brasileira do Segundo Império pres-
125. Na Europa, enquanto isso, a escravidão também já havia sido abolida nos impérios portu- ta-se, então, aos mais diversos estereótipos, e não apenas àqueles que interessam ao projeto aboli-
guês, francês, dinamarquês, e na Espanha fora promulgada em 1870 uma lei muito parecida com cionista. Assim, às vésperas da abolição, o romance A carne, de Júlio Ribeiro (1888), mostra-nos
a Lei do Ventre Livre - a Lei Morei - sendo que em 1880 viria uma nova lei abolindo a escravidão uma situação "onde, segundo o narrador, a liberação dos instintos de Lenita, a branca persona-
definitivamente. gem central, se deve à promiscuidade com os escravos", e antes disto, com o romance O bom criou-
126. Por outro lado, seria preciso esperar para 1884 as primeiras medidas mais concretas volta- lo, de Adolfo Caminha (1885) já desponta a figura do "negro pervertido" (PROENÇA, 2004).
das para uma "imigração subsidiada", com o que já se antecipa a necessidade de substituir a Para uma avaliação da trajetória da figura do negro na literatura brasileira, ver Brookshaw, 1983,
mão-de-obra escrava na lavoura. e também Proença, 2004.

160 161
A humanização do escravo, por uma outra via bem distinta, também mente efervescentes - o que, obviamente, não teria sido possível sem as já
se afirmava sempre que os escravos e ex-escravos lutavam por isto. As lu- mencionadas pressões e mobilizações do próprio setor escravo no plano
tas políticas dos próprios escravos, dos ex-escravos, dos mulatos filhos de °
mais concreto da história vivida. novo contexto para o fortalecimento
escravos, também contribuem - e na verdade ainda mais extraordinaria- do discurso abolicionista é este momento social, que se dá nas duas últi-
mente - para que se afirme a humanidade do escravo. Insurreições coleti- mas décadas escravocratas, onde começam a se avolumar as resistências
vas' fugas de escravos para os quilombos, cada vez mais em grupos maio- individuais e coletivas da própria escravaria - seja a partir de insubordi-
res, e sobretudo a formação de organizações de escravos fugidos e ex-es- nações, fugas, crimes, ou rebeliões - e onde o escravo, além de se expres-
cravos já articulados às metas abolicionistas ... Tudo isto começava a fazer sar economicamente como um trabalhador ao mesmo tempo necessário e
com que, nas duas últimas décadas escravocratas, gritasse por todos os perigoso, passa a ser encarado pelos senhores do café como uma merca-
lados a humanização escrava, e não apenas através da pena dos escritores doria ao mesmo tempo necessária e sujeita à instabilidade. Contra este
abolicionistas, mas sobretudo através da ação social das próprias vítimas pano de fundo e cada vez mais intensamente, sobretudo a partir de fins da
e antigas vítimas da escravidão. Ficou notório, por exemplo, o movimento década de 1870, vai tomando forma certo discurso abolicionista que cha-
dos caifazes, uma organização que se dedicava a sequestrar escravos das ma atenção, com especial ênfase, para a necessidade de recolocar a ques-
fazendas para depois conduzi-los a quilombos e, mais além, a regiões bra- tão da escravidão como pertinente ao campo das desigualdades.
sileiras onde já não houvesse mais escravidão (o Ceará, por exemplo, de- Diga-se de passagem, o novo discurso antiescravagista proposto pe-
cret~ o fim da escravidão em seu território em 1884, quatro anos antes da los abolicionistas buscaria estabelecer de saída um forte contraste não
Lei Aurea). Movimentos como o dos caifazes, bem como outros, por ve- apenas em relação ao discurso escravista dos grandes senhores do café,
zes articulavam escravos e ex-escravos a uma ala mais radical do movi- como também em relação ao discurso antiescravagista de tipo "emanei-
mento abolicionista que nem sempre era a que aparecia nos jornais ou nas pacionista", ao estilo da Representação contra a escravidão de José Boni-
câmaras provinciais. Quilombos como o do Jabaquara, que se inscreviam fácio ou da Lei do Ventre Livre. De fato, Joaquim Nabuco, na abertura de
neste mesmo circuito de alianças que se dava entre os movimentos escra- sua obra O abolicionismo, já chama atenção para o fato de que, por aque-
vos e os clubes abolicionistas mais radicais, permitem inclusive que al- la época, "pela primeira vez se viu, dentro e fora do Parlamento, um gru-
guns historiadores identifiquem a emergência de um novo tipo de qui- po de homens fazer da emancipação dos escravos, não da limitação do ca-
lombo, o "quilombo abolicionista", por oposição ao já tradicional "quilorn- tiveiro às gerações atuais, a sua bandeira política [...]" (NABUCO, 2002:
bo-rompimento" que até então fora meramente caracterizado como pro- 23). Ou seja, não se tratava mais de apenas evitar que surgissem novas
duto da fuga de escravos ainda sem uma articulação política maior (SIL- gerações de escravos, como propusera a Lei do Ventre Livre, mas sim de
VA,2003:11). libertar imediatamente os escravos já existentes.
Com tudo isto, estava montado o palco para a atuação de um veemen- Apenas como alguns dos inúmeros exemplos que irão contribuir para
te discurso abolicionista, que não excluía todavia uma ala conciliadora , e dar uma forma definida ao jargão abolicionista, poderemos citar os com-
que se ocuparia de enfatizar a partir dos anos 1870 a humanidade do es- bativos artigos que José do Patrocínio, atuando na Imprensa do Rio de
cravo e as injustiças sociais contra ela perpetradas. Janeiro, escreveu em períodos sucessivos para a Gazeta de Notícias
Reempreender o deslocamento discursivo que conduz a questão es- (1880-1881), a Gazeta da Tarde (1882-1887), e o jornal Cidade do Rio
crava da coordenada das diferenças ao eixo enviesado das desigualdades (1887 -1889). No mesmo ano em que se inicia esta série de artigos, em
seria precisamente a obra dos abolicionistas destas décadas particular- 1880, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e outros fundam no Rio de [a-

162 163
neiro a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, base inicial para a for- de libertos. Portanto, suprimir a desigualdade escrava não deveria se dar
mação de inúmeras agremiações similares. Ao mesmo tempo, em oposi- como um ato isolado, mas sim acompanhado de outras medidas que visa-
ção aos clubes abolicionistas que começavam a surgir por toda a parte, os riam, concomitantemente, evitar que a desigualdade escrava logo se con-
escravistas agrupavam-se agora nos chamados "clubes de lavoura", mos- vertesse em desigualdade liberta (o que de fato aconteceu). É neste espíri-
trando que os dois discursos - o escravista e o antiescravista - estavam to que, em seu livro Agricultura nacional (1874), André Rebouças já cha-
empenhados em uma verdadeira luta de práticas e representações. É este mava atenção para o fato de que "até hoje, três annos depois da lei, nem
o ambiente de ideias sobre o qual se desenvolvem os artigos abolicionistas a mínima providência [fora tomada] sobre a educação dos e emancipa-
nos diversos jornais, alguns dos quais inclusive especializados na discus- dos" (REBOUÇAS, 1874: 190).
são antiescravocrata, como foi o caso do jornal O Abolicionista, dirigido Nesta passagem, Rebouças refere-se ao caráter completamente inó-
por Joaquim Nabuco. cuo de medidas que visassem à libertação de setores da escravaria (os se-
Os artigos escritos por José do Patrocínio nesta época são inflamados xagenários da lei de mesmo nome, ou os filhos de escravos da Lei do Ven-
libelos antiescravistas através de cujo discurso passam a ser evocados dia- tre Livre) sem que isto viesse acompanhado de procedimentos capazes de
riamente os acontecimentos que, de acordo com as próprias palavras do assegurar aos escravos assim libertos as condições para assegurarem uma
jornalista, "abrem para o escravo uma nova época, em que a sua pessoa co- real liberdade e cidadania. Tratava a questão da libertação de escravos,
meça a aparecer através do animal, da cousa, que era" (GN, fev./1881). portanto, não como um problema de pura e simples supressão das dife-
Recolocar a passagem da "coisa", do "animal", para a "pessoa humana", é renças, m.1Ssim de efetiva correção das desigualdades. Esse deslocamen-
enfatizar a passagem da diferença para a desigualdade. Mais ainda, em al- to de uma discussão que se dava no plano das diferenças para uma pro-
guns de seus artigos, José do Patrocínio inclusive já se refere explicita- blematização relacionada ao âmbito das desigualdades mostra-se funda-
mente a "pessoas livres reduzidas à escravidão", com o que busca associ- mental na argumentação de diversos abolicionistas radicais, e entre eles
ar a desigualdade escrava não apenas a um problema de justiça social, André Rebouças nos oferece o corpus textual mais bem acabado. Suas
mas também de legalidade'". preocupações, de fato, voltavam-se para muito além da mera emancipa-
Sintoma bastante claro de que a base do discurso abolicionista é o re- ção jurídica do escravo, tocando em questões como a educação, a partici-
conhecimento da escravidão como desigualdade, e não como diferença, é pação política, e sobretudo o direito à terra. Data de 1883 a sua obra mais
o fato de que os abolicionistas mais radicais não se limitavam a propor explícita sobre a necessidade de vincular liberdade e acesso à terra, com a
simplesmente a extinção imediata da escravidão, mas também preconiza- importância adicional de que agora a discussão era traz ida diretamente
vam a sua articulação com outras questões relacionadas com o âmbito para a pregação de um abolicionismo radical que ficou registrada neste
das desigualdades - como, por exemplo, a de uma reforma agrária que panfleto intitulado Abolição imediata e sem indenização (1883).
incluísse a distribuição de terras para os ex-escravos e a de uma reforma Na argumentação de André Rebouças, Escravidão e monopólio da
educacional que incluísse a construção de escolas públicas para os filhos terra - dois problemas tratados ao nível das desigualdades - aparecem in-
timamente relacionados, de modo não é possível suprimir eficazmente a
escravatura sem suprimir concomitantemente a grande propriedade, que
130. No âmbito de um cálculo para estimar a escravização ilegal seja de africanos ou de nascidos
na terra, assim se pode ler em uma matéria de José do Patrocínio para o jornal Gazeta de Notícias, naturalmente vinha acoplada à correspondente concentração de poderes
em 1880: "Supondo que metade deste número é tirado dos importados depois do tráfico, temos sociais e políticos nas mãos de uma elite agrária que podia oprimir efeti-
que o número das pessoas livres reduzidas à escravidão é no Brasil nada menos de 700.000"
(PATROCÍNIO, GN, set.f1880).
vamente não apenas a escravaria como também a população livre de pou-

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cos recursos, uma vez que esta ficava obrigada a orbitar em um circuito começam a aderir ao discurso da escravidão como desigualdade, sendo
de dependências em relação aos grandes senhores de terras'". este o caso dos positivistas que se agrupavam em torno de Miguel Lemos,
Percebe-se aqui que a própria abolição radical- sem qualquer indeni- e que concebiam o escravismo como uma forma extremamente atrasada
zação aos proprietários de escravos - é investida no discurso de Rebouças de organizar o trabalho e, dentro desta, os grupos humanos sujeitos à es-
não apenas de seu evidente valor humano como também de um adicional cravidão'". O discurso da escravidão da diferença, enfim, vai sendo cada
valor como instrumento de transformação social imediato, capaz de aba- vez mais confrontado a um discurso da desigualdade da escravidão, e isto
lar de um só golpe o poder econômico dos grandes proprietários e, conse- em setores que iam dos mais radicais aos conservadores. Mas isto natu-
quentemente, abrir caminho para a reforma agrária. Desta maneira, a luta ralmente se deu através de uma verdadeira luta de representações, porque
para abolir a desigualdade escrava e a luta para suprimir a desigualdade também havia discursos favoráveis à noção de diferença escrava. Respin-
latifundiária aparecem como gêmeas siamesas inextricavelmente ligadas. gos finais desta luta de representações, aliás, aparecem já à beira da pro-
O grande proprietário de terras, o inimigo maior, é aqui visto simultanea- mulgação da Lei Áurea nos registros da Discussão na Câmara dos Depu-
mente como o principal beneficiário do sistema escravocrata e como o tados e no Senado - desde a apresentação da proposta do Governo até a
grande elemento de entrave à modernização social, jurídica e tecnológica sua sanção, publicada em 1889. Ali, abolicionistas históricos como Joa-
do país 132. Com relação a uma proposta efetiva e concreta para afrontar e quim Nabuco e representantes dos redutos escravistas, como André Fi-
constranger cada vez mais a grande propriedade, para além do impacto gueiras, trocam entre si farpas discursivas que bem retratam a encenação
inicial produzido pela própria abolição, a sugestão apontada por Rebou- política tão típica desta época.
ças era a instituição de um imposto territorial'". Por outro lado, é muito interessante constatar que a percepção ou o
Da mesma forma que outras publicações mais propriamente abolicio- reconhecimento da escravidão como desigualdade já começava a conta-
nistas, setores diversos da intelectualidade e dos meios políticos também minar os próprios escravistas. Assim, mesmo o escritor cearense José de
Alencar (1829-1877) - escravista assumido - chegou a utilizar um argu-
mento que não deixa de denunciar a percepção da escravidão como desi-
131. Sobre a articulação entre abolicionismo e a necessidade de reencaminhar a questão da terra, gualdade (e não como diferença), ao sustentar que se justificava a manu-
aparecem diversas propostas no período, para além da encaminhada por André Rebouças e outros
abolicionistas radicais em alguns de seus textos. Cinco anos antes do panfleto escrito por Rebou-
ças, encontraremos por exemplo a proposta de Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan,
que em um livro publicado em 1878 já discorria sobre O futuro da grande lavoura e da grande 134. Dentro do circuito positivista de propostas para o escravismo, é peculiarmente interessante o
propriedade, prevendo-se a transformação destas em colmeias agrícolas (MACIEL DA COSTA, modelo de Brandão [únior, uma proposta no estilo emancipacionista mas que propunha a transi-
1980: 175). ção do "sistema escravista" em um "sistema de servidão" ao estilo feudal. Conforme seu opúsculo
intitulado "Aplicando à realidade brasileira a lei geral da evolução humana" (1865), tratava-se de
132. O grande proprietário de terras, conforme a argumentação de Rebouças, estende seu pode-
transformar os escravos em servos, o que novamente nos conduz a uma avaliação do escravismo
rio nefasto nestas três direções. De um lado submete socialmente escravos e dependentes livres
como sistema de desigualdades. Um sistema de desigualdades, enfim, pode ser, sem maiores difi-
através da violência escravocrata e do sistema de trabalho e favorecimentos. De outro lado, desvir-
culdades, substituído por outro. Miguel Lemos, que escreveria no período de maior acirramento
tua e controla a justiça no âmbito dos seus domínios senhoriais. E, por fim, obstaculiza a inovação
do debate abolicionista (anos 1880) rejeita esta proposta por considerá-Ia inviável, sobretudo nos
tecnológica no âmbito da agricultura, aspecto em relação ao qual Rebouças se preocupava parti-
aspectos relativos à fiscalização que se tornaria necessária para evitar que a servidão não se trans-
cularmente.
formasse em mais do que uma mera fachada para a escravidão. Enquanto isso, Pereira Barreto ad-
133. Para uma abordagem mais detalhada da interação entre as propostas de abolição da escrava- vogava em artigos publicados no jornal A Província de São Paulo um modelo emancipacionista ba-
tura e de reforma agrária, tomando como base textos de Rebouças e de Joaquim Nabuco, ver o en- seado na convicção de que para eliminar definitivamente o modelo escravista seria necessário em-
saio "Modernidade brasileira e pensamento abolicionista", de Cláudia Andrade dos Santos preender uma "preparação psicológica e econômica da sociedade", uma vez que "qualquer r:[or-
(2005). Ver ainda a análise do brasilianista Richard Graham (1979), para quem o programa de ma antes de se tornar um fato precisa ser por muito tempo uma ideia assimilada, uma parte inte-
associação entre abolição e "democracia rural" (expressão que circulava nos próprios jornais da grante da circulação mental da época (MACIEL DA COSTA, 1980: 431). Sobre isto, ver Inno-
época) não seria reivindicação exclusiva dos abolicionistas radicais. cêncio, 2002: 56.

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tenção da escravidão porque os operários europeus viviam em condições que buscam enxergar uma "inferioridade da diferença" com base em ar-
piores do que os escravos (!). Comparar o trabalho escravo ao trabalho gumentações que na verdade estariam é levando em consideração a "infe-
assalariado, de um modo ou de outro, é reintroduzi-Io francamente no riorização escrava". Ao contrário, a contribuição de alguns dos maiores
mundo das desigualdades. intelectuais abolicionistas para o problema foi perceber precisamente este
Outro ponto importante a se destacar é que, na medida em que se de- entrelaçamento circunstancial entre a diferença negra e a desigualdade
sentrelaçavam as noções de negro e de escravo - esta última a ser des- escrava, de modo a desmantelar conjuntamente com o sistema escravo-
construída pelo processo da abolição - nem por isso houve necessário re- crata também um discurso pseudocientificista que confundia inferiorida-
cuo do discurso que opunha desniveladamente a diferença negra à dife- de negra com inferiorização escrava. Por isso Joaquim Nabuco - aboli-
rença branca. É impressionante como o discurso científico da época, e cionista filho da elite pernambucana - procurava em seu livro O abolicio-
isto perdura até as três primeiras décadas do século XX, amparava-se ain- nismo esclarecer que não podia de maneira nenhuma ser colocado como
da na ideia de inferioridade da "raça negra" . Ainda no ano que precede a um problema para a formação da população brasileira a "raça negra",
abolição, Oliveira Martins assim registrava sua ideia de uma hierarquia mas sim esta "raça negra reduzida ao cativeiro" (NABUCO: 2000). O
natural das raças humanas, e, portanto, de acordo com o nosso quadro problema então, por outras palavras, fora esse entrelaçamento que - en-
conceitual, de uma hierarquia das diferenças: tretecendo práticas aviltantes as mais diversas - forjara-se em condições
Há decerto, e abundam os documentos que nos mostram no ne- degradantes, vinculando em um entremeado de diferenças e desigualda-
gro um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo do des as noções de "negro", "africano" e "escravo".
antropoide, e bem pouco digno do nome de homem (OLIVEIRA
MARTINS, 1887).

O discurso de uma diferença negra que estaria assinalada .por uma


pretensa inferioridade do negro, em contraposição à ideia de que o que
ocorria na verdade era uma inferiorização do negro ocasionada pela desi-
gualdade escrava, manteria seus partidários para além da abolição, da
mesma maneira que tinha suas raízes fincadas nas décadas precedentes.
As décadas que precedem e as que sucedem a abolição constituem de fato
o palco de uma acirrada luta de representações, e é bastante citar a polê-
mica que se estabelecera, já no alvorecer dos anos 1880, em torno de idei-
as racistas expressas pelo médico francês Louis Couty em seu livro A es-
cravidão no Brasil (1880), gerando artigos de repúdio nos jornais abolicio-
nistas da época.
O entrelaçamento histórico entre a diferença negra (também uma
construção) e a desigualdade escrava - esta por vezes vertida em diferen-
ça escrava - foi tão incompreendido ou dissimulado por alguns dos inte-
lectuais do período imediatamente anterior e posterior ao desmantela-
mento do sistema escravocrata, que aparecem à míngua estas análises

168 169
para o âmbito das desigualdades. O trecho resume de maneira esplêndida

•••
16
Joaquim Nabuco: fragmentos de um
discurso abolicionista
este deslocamento discursivo que, rejeitando-a, vai da "diferença escra-
va" para a "desigualdade escrava", daí a uma "desigualdade liberta", e
por fim se realiza na promessa e na proposta de minimizar as desigualda-
des várias de modo a constituir para o ex-escravo libertado um mundo
pleno de cidadania e verdadeira liberdade:
Depois que os últimos escravos tiverem sido arrancados ao po-
der sinistro que representa para os escravos a maldição da cor,
será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e
Tal como se disse, as contribuições críticas para as discussões sobre o séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto
fim da sociedade escravocrata foram inúmeras nas duas décadas abolicio- é, de despotismo, superstição e ignorância. ° processo natural
nistas, e ainda mais intensa nos anos 1880. Inúmeras propostas, artigos e pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante
discursos surgem neste período - seja a partir da concepção abolicionis- vitalidade do nosso povo durou todo o período de crescimento, e
ta, da concepção emancipacionista, ou mesmo do ponto de vista pró-es- enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensá-
cravista. A densidade de discussões sobre a questão escrava nestas duas vel adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo
décadas é incomparável em relação ao relativo vazio discursivo que ren- de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante,
dera apenas uma dezena de obras significativas nas cinco décadas anteri- mesmo quando não haja mais escravos (NABUCO, 2002: 25).
ores (1820-1870). Diante da impraticabilidade de analisar, nos limites Dificilmente poderia haver imagem mais adequada para a diferença
deste ensaio, um maior número de contribuições abolicionistas e emanei- escrava - a diferença que se constrói sobre esta cor negra que, vimos
pacionistas, concentrar-nos-ernos em um texto que se tornou um verda- atrás, é ela mesma uma construção social- do que esse "poder sinistro"
deiro marco abolicionista. De fato, a contribuição analítica mais fina que que cria para o escravo a representação da "maldição da cor" (lembremos
pôde emergir do discurso abolicionista foi, assim pensamos, a de Joaquim da maldição que o texto bíblico faz se abater sobre Canaã, e que os cris-
Nabuco. Aqui saímos do incisivo estilo panfletário de José do Patrocínio tãos europeus procuram traduzir em termos de uma maldição sacralizada
para entrar no texto cuidadoso e cientificamente trabalhado de Joaquim que se estabelece sobre o homem negro) . Arrancar o escravo, cada escra-
Nabuco, que constrói com a sua obra O abolicionismo um dos primeiros vo' a este poder sinistro, não é nada mais do que desconstruir a ideia de
grandes textos das ciências sociais brasileiras. uma escravidão da cor, de uma diferença escrava que se baseia tão-so-
Um certo trecho deste que é o segundo livro de Joaquim Nabuco so- mente na cor da pele e na origem africana. Mas há mais: é preciso em se-
bre a questão escravocrata'", entre outras passagens igualmente remarcá- guida enfrentar o problema da desigualdade escrava - esta que se oculta-
veis, mostra-se particularmente significativo como sintoma de uma con- va sob a diferença escrava como uma segunda natureza e que agora se vê
cepção abolicionista que percebe o tradicional tratamento da escravidão exposta, produto de "trezentos anos de cativeiro", mais do que isto, de
como diferença e decide enfrentá-Io com o projeto de trazer a discussão trezentos anos de um sistema que se imiscui em todos os aspectos da vida
social brasileira e que afeta na verdade todas as classes.
135. Em 1869, aos vinte anos de idade, Joaquim Nabuco havia escrito já um outro livro, intitulado A ideia de que "a escravidão fossilizou nos seus moldes" a vitalidade
A escravidão, que permaneceu inédito até 1989. Neste mesmo ano de 1869, um ano ~ntes de se
formar em Ciências Sociais e Jurídicas, Nabuco já havia causado algum escândalo na elite cearen;
do povo brasileiro, criando categorias que agora precisam ser descons-
se por ter se proposto a defender, como advogado, um escravo quc assassinara o seu senhor. E truídas - a do senhor e a do escravo - é novamente oportuna. A consciên-
também deste ano o opúsculo O povo e o trono. cia de que a liberdade deverá ser reconquistada gradualmente, "adaptan-

170
171
do à liberdade cada um dos aparelhos do organismo social", é apontada a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da
como a principal virtude de que deverá se revestir a nação na sua tarefa de minoria aristocrática, em cujas senzalas centenas de milhares de
estabelecer o reino da igualdade. Caso contrário, acrescenta o autor entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados
de maneira particularmente visionária, a obra da escravidão seguirá adian- pelo próprio regime a que estão sujeitos; e, por último, o espírito,
o espírito vital que anima a instituição toda, sobretudo no mo-
te, "mesmo quando não haja mais escravos".
mento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se
Essa passagem final do trecho selecionado é particularmente interes-
acha investida, espírito que há sido em toda a história dos países
sante. Para existir, ou para se fazer presente através dos seus desdobra- escravos a causa da sua ruína (NABUCO, 2000: 26).
mentos e efeitos mais funestos, a escravidão não precisa necessariamente
de escravos. Os seus efeitos, na verdade os seus tricentenários moldes, A escravidão transparece aqui como um sistema que dá funcionamen-
poderiam se estender não apenas sobre os libertos ou sobre os afrodes- to à realidade social, política e econômica, interna a um país, mas que
cendentes (o que, de resto, é uma das implicações imediatas), mas tam- também afeta o mundo externo, os países que são constituídos em fontes
bém sobre a sociedade como um todo. Esta passagem, tão enigmática de escravos. Diga-se de passagem, os "países escravos" que o "espírito da
quanto dotada de uma beleza lógica, pode ser mais facilmente compreen- escravidão" arruína não são apenas na argumentação proposta por Na-
dida a partir do aspecto que será discutido a seguir, central na conceitua- buco os países que fornecem escravos - como os vários reinos africanos -
ção sobre escravidão elaborada por Joaquim Nabuco. mas também os próprios países que os recebem, e que desta forma dei-
° principal mérito de Joaquim Nabuco em O abolicionismo é ir além xam a escravidão se entranhar na sua sociedade, criando as figuras simul-
taneamente grotescas do "senhor" e do "escravo" e, sobretudo, um siste-
da simples análise da escravidão como um simples processo de tirania
social, onde o homem devora o homem como força de trabalho submeti- ma que termina por aprisionar a própria nação.
da compulsoriamente com a perda de si mesmo ao se tornar a proprie- A Igreja, veremos em outra passagem desta que é a obra prima de Joa-
dade de um outro. Para além disto, vê-se desde o primeiro capítulo da quim Nabuco, ajusta-se a este sistema com pouco pudor, de modo que o
obra, trata-se de examinar a escravidão como sistema. A escravidão, escritor cearense pode afirmar enfaticamente que "a Igreja Católica, ape-
complexo sistema instituidor de desigualdades que abrange para muito sar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado
além de seus pólos humanos mais visíveis - o "senhor" e o "escravo" - por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação" (NABU-
precisa ser decifrada como tal, como sistema que articula poderes insti- CO, 2002: 31). Insinua-se aqui que a Igreja foi aqui apropriada como
tuídos e redes de clientela, uma forma de propriedade e um regime de parte do sistema, como algo que lhe dá suporte através da "superstição" e
trabalho, o apoio em um padrão de religiosidade e uma interpenetração da "ignorância" que terminam por se verem sacralizadas por uma Igreja
entre âmbitos políticos os mais diversos, que vão do Parlamento à Coroa omissa e ideologicamente conivente.
e ao Estado em sentido mais amplo. Tudo, na escravidão, se articula De passagem, é preciso salientar que a imagem de que "a escravidão
como partes de um sistema cuidadosamente construído por três séculos pode seguir adiante mesmo além dos escravos" refere-se também, em
de "despotismo, superstição e ignorância": uma das suas dimensões de sentido, ao diálogo de confronto que o aboli-
Assim como a palavra abolicionismo, a palavra escravidão é to- cionismo estabelece com o emancipacionismo, esta outra modalidade de
mada neste livro em sentido lato. Esta não significa somente antiescravagismo que vinha enfrentando a questão escrava com seus pró-
a relação do escravo para com o senhor; significa muito mais: a prios métodos e concepções. É neste contexto, inclusive de crítica à Lei
soma do poderio, influência capital, e clientela dos senhores to- do Ventre Livre (1871), principal realização do emancipacionismo, que a
dos· o feudalismo estabelecido no interior; a dependência em imagem empregada por Joaquim Nabuco se fortalece. Se ela traz este
que' o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o Parlamento, sentido mais sutil de que a escravidão deve ser enfrentada na totalidade de

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aspectos que nela interagem como peças fundamentais de um sistema, a Atenas, Roma, a Virgínia, por exemplo, foram, tomando uma
mesma imagem também carregava um sentido mais prático que visava comparação química, simples misturas nas quais os diversos ele-
confrontar diretamente os efeitos da Lei do Ventre Livre - esta lei emanei- mentos guardavam as suas propriedades particulares; o Brasil
pacionista que até à idade de oito anos colocava sob a tutela do senhor o porém, é um composto do qual a escravidão representa a afini-
"ingênuo" (o filho de escravo que nascia liberto), e que, depois desta ida- dade causal. O problema que nós queremos resolver é o de fazer
de, abria a possibilidade de que o ingênuo permanecesse como dependen- desse composto de senhor e escravo um cidadão. O dos Estados
Unidos foi muito diverso, porque essas duas espécies não se mis-
te do senhor até os 21 anos (a alternativa era o senhor receber uma quan-
turaram. Entre nós a escravidão não exerceu toda a sua influên-
tia de $600,00 para desligar mais cedo o liberto). Conforme argumenta
cia apenas abaixo da linha romana ad libertas: exerceu-a, tam-
Nabuco, a depender da Lei do Ventre Livre a escravidão ainda iria ser di-
bém, dentro e acima da espera da civitas; nivelou-a, exceção feita
retamente prolongada no país por mais cinquenta anos:
aos escravos, que vivem sempre nos subterrâneos sociais, todas
Pela lei de 28 de setembro de 1871, a escravidão tem por limite a
as classes; mas nivelou-as degradando-as. Daí a dificuldade de
vida do escravo nascido na véspera da lei. Mas essas águas mes-
analisar-lhe a influência, de descobrir um ponto qualquer, ou na
mas não estão ainda estagnadas, porque a fonte do nascimento
índole do povo, ou na face do país, ou mesmo nas alturas mais
não foi cortada, e todos os anos as mulheres escravas dão milhares
distantes das emanações das senzalas, sobre que, de alguma for-
de escravos por vinte e um anos aos seus senhores. Por uma ficção
ma, aquela afinidade não atuasse, e que não deva ser incluída na
de direito, eles nascem livres, mas, de fato, valem por lei aos oito
síntese nacional da escravidão (NABUCO, 2000: 35).
anos de idade 600$, cada um. A escrava nascida a 27 de setembro
de 1871 pode ser mãe em 1911 de um desses ingênuos, que assim Voltamos então, a esta que parece ser a contribuição mais original de
ficaria em cativeiro provisório até 1932. Essa é a lei, e o período de Joaquim Nabuco com a análise empreendida em O abolicionismo: a de
escravidão que ela ainda permite (NABUCO, 2000: 13l ). examinar o escravismo como sistema integrado cujos efeitos interpene-
Essa espera legalizada, mesmo que abreviada por eventual generosida- tram todas as classes sociais não-escravas e que envolve os diversos as-
de dos antigos senhores - e Nabuco propõe um mínimo de vinte anos para pectos da vida social, política e imaginária da sociedade que o acolhe e
este cálculo - seria fatal em uma nação na qual a escravidão se convertera já dele faz a sua principal sustentação. Nesta proposta de análise, Joaquim
em sistema ("vinte anos mais de escravidão, é a morte do país", dirá mais Nabuco talvez se antecipa em alguns pontos às grandes abordagens do
adiante). Ironicamente, subentende-se a partir da argumentação de Nabu- século XX, que se empenhariam em compreender o escravismo como sis-
co, é precisamente porque no Brasil a escravidão se entranhara sob a égide tema, como complexo de aspectos diversos que mutuamente se interfe-
da desigualdade escrava (mesmo nos períodos em que ela fora a segunda rem'". A escravidão, compreendida como sistema gerador e mantenedor
natureza de uma diferença escrava), que a questão da necessidade de um de desigualdades, estaria constituída não apenas de uma base material,
encaminhamento adequado ao processo abolicionista mostrava-se mais social e política que lhe dariam conteúdo e forma, mas também de uma
delicada do que nos Estados Unidos, onde a escravidão foi sempre tratada
sob a égide de uma diferença escrava que desde o princípio conservara bem °
136. escravismo brasileiro, aqui, emerge com uma especificidade que lhe é toda própria. Vale a
pena examinar, ainda a propósito, a seguinte passagem: "Não se trata, somente, no caso da escra-
fortemente a imiscibilidade das duas raças. Obviamente que Nabuco não
vidão no Brasil, de uma instituição que ponha fora da sociedade um imenso número de indivíduos,
utiliza este sistema conceitual e não fala em "diferenças" e "desigualdades como na Grécia ou na Itália antiga, e lhes dê por função social trabalhar para os cidadãos; trata-se
escravas", mas a questão está implícita, inclusive quando ele compara os de uma sociedade não só baseada, como era a civilização antiga, sobre a escravidão, e permeada
em todas as classes por ela, mas também constituída, na sua maior parte, de secreções daquele
sistemas escravocratas antigos, o brasileiro e o americano: vasto aparelho" (NABUCO, 2002: 133).

174 175
dimensão imaginária (a expressão não é utilizada por Joaquim Nabuco), padrão deteriorado de conceber as relações humanas. Tal é a hipótese
de um "espírito" que a ela corresponderia. Aqui, em um ponto nodal onde sustentada por Joaquim Nabuco'".
se encontram a análise estrutural e a avaliação conjuntural elaboradas por A caracterização da escravidão como sistema que se entranha no Brasil
Nabuco, compreende-se a preocupação do autor expressa no penúltimo redefinindo-Ihe a economia, a política, a sociedade - de um modo como
capítulo de sua obra com relação aos "perigos da demora". Protelar a não se entranhou nos países europeus, por exemplo - permite que Joaquim
abolição radical e definitiva da escravidão por mais vinte anos que fosse, Nabuco também identifique um sentido especial no abolicionismo brasilei-
equivaleria a, neste período, permitir que novas gerações continuassem a ro. Este emerge - para dar conta da tarefa histórica que lhe é imposta diante
ser educadas no Imaginário da escravidão, na escola da diferença ou da de um inimigo que já se entranhou na sociedade e se constituiu em sistema -
desigualdade escrava; ou, para utilizar as próprias palavras de Nabuco, sobretudo em sua dimensão política, permitindo-se contrastá-Io, corno
condenar "a atual mocidade" a "viver com a escravidão", "a servi-Ia du- assinala Nabuco, com o abolicionismo inglês, "movimento religioso e filan-
rante a melhor parte de sua vida, a manter um exército, e uma magistratu- trópico determinado por sentimentos que nada tinham de político, senão
ra para torná-Ia obrigatória, e, pior talvez do que isso, a ver as crianças, no sentido de que se pode chamar de política à moral social do Evangelho"
que hão de tomar os seus lugares dentro de vinte anos, educadas na mes- (NABUCO, 2002: 32). De fato, a um movimento antiescravagista inglês
ma escola que ela [a escravidão]" (NABUCO, 2002: 133). que vai encontrar algumas de suas principais lideranças na seita religiosa
dos quackers, ou em humanitários como Thomas Clarkson, pode ser fran-
Essa passagem é particularmente interessante, porque através dela
camente contraposto ao movimento abolicionista liderado por homens
compreendemos os dois sentidos da sentença empregada por Joaquim
corno Joaquim Nabuco, André Rebouças e José do Patrocínio, e que nas
Nabuco no início de sua obra, segundo a qual "a escravidão poderia
suas ações mais radicais vai atuar sincronicamente com movimentos surgi-
prosseguir até mesmo para além dos próprios escravos". Há uma fina
dos da própria escravaria insurrecta ou dos libertos.
percepção da psicologia social nesta análise do autor de 0, obolicionis-
A questão das diferenças de cor, por fim, permite que Joaquim Nabu-
mo. Por um lado, o complexo sistema da diferença e da desigualdade es-
co contraste a sociedade que emerge do fim do escravagismo americano
crava produz um modo de pensar, urna dimensão imaginária - um "es-
com esta outra sociedade que está preste a emergir da derrocada do es-
pírito" - que apresenta uma sobrevida capaz de seguir mesmo para além
cravagismo brasileiro, fundada "nessa boa inteligência em que vivem os
da destruição das bases materiais mais imediatas deste sistema, dadas elementos de origem diferente, da nossa nacionalidade" vindo a consis-
estas por um modo específico de exploração da mão-de-obra escrava e
pela sua justificação jurídica. Extintos o trabalho escravo e a noção da
137. A Lei 3.270 - Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários (1885) - estimava a libertação
propriedade escrava, não se extinguem imediatamente os padrões de so-
dos escravos com idade igualou superior a 60 anos, mas ainda previa um pequeno período adicio-
ciabilidade e o imaginário escravistas que um dia lhe corres ponderam, nal de dependência em relação ao antigo senhor. O "artigo 3°§ 1O" estipula que "são libertos os es-
cravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta lei,
agora tendentes a se refugiar na discriminação social e no preconceito,
ficando, porém, obrigados a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-se-
ou em outras maneiras de pensar consoante as categorias do sistema es- nhores pelo espaço de três anos". O "artigo 4°§ 3, c" estipula ainda uma maior margem de depen-
cravista. Por outro lado, o indivíduo livre que até 1932 convivesse com o dência beneficiando os senhores que se interessassem em substituir o trabalho escravo pelo traba-
lho livre, prevendo neste caso a "usufruição dos serviços dos libertos por tempo de cinco anos".
último "ingênuo" ainda submetido a um padrão de dependência muito Com isto, o último escravo, às vésperas da promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, poderia
próximo ao das relações escravistas, ou com o último dos sexagenários estar entrando em sua vida independente entre 1933 e 1935. Com relação aos últimos ingênuos,
Nabuco nos fornece o seguinte cálculo aproximado: "A escrava nascida a 27 de setembro de 1871
ainda formalmente escravo, também este arrastaria para a sua vida um pode ser mãe em 1911 de um desses ingênuos, que assim ficaria em cativeiro provisório até 1932.
Essa é a lei, e o período de escravidão que ela ainda permite" (NABUCO, 2002: 131).

176 177
tir em "um interesse público de primeira ordem para nós" (NABUCO,
mente mais moderada do abolicionismo se o compararmos com aqueles
2002: 34) '". Aqui, a sociabilidade mais fácil entre as "diferenças de cor" e
setores mais radicais que chegaram inclusive a tramar ações sociais com
a "inteligência da mestiçagem" recebem mais uma vez um elogio. O Bra-
grupos de escravos fugidos ou de ex-libertos, entretecendo estratégias
sil mostra-se aqui um país mestiço, e não se postula qualquer projeto de mais agressivas que incorporavam nos seus programas de ação tanto
excluir as diferenças ou de reenviá -Ias para os seus portos de origem. "quilombos abolicionistas" como sociedades íibertadoras como a dos cai-
A visão da escravidão como sistema, a consciência da mestiçagem na- fazes. Também é um abolicionismo moderado este que se desenha a partir
cional e um espírito francamente conciliatório - que tenta re-educar o da pena de Nabuco quando o comparamos com jornalistas inflamados
próprio senhor de modo a que ele veja que o escravismo é também uma que desafiavam mais abertamente os senhores, não apenas recusando-se
corrente para ele mesmo e um obstáculo para o progresso do país - ter- a discutir qualquer indenização a lhes ser paga pela súbita supressão da
minam por tingir o abolicionismo de Joaquim Nabuco de uma tonalidade propriedade como, em certos casos, até chegando a exigir dos próprios
menos radical e agressiva do que a de José do Patrocínio, por exemplo, senhores indenizações para os negros em nome de escravizações indevi-
com seus inflamados artigos na Imprensa carioca. Uma meta inflexível de das durante anos (PATROCÍNIO, GN, 08/03/1880)139.
interromper radicalmente a escravidão de uma só vez, mas buscando rea- Assim, a oposição de Joaquim Nabuco a uma postura que instigue a
justes conciliatórios na sociedade liberta, tal parece ser a proposta do Na- insurreição escrava o situa claramente em algum ponto intermédio entre
buco abolicionista:
o emancipacionismo mais moderado que fora o de José Bonifácio e o
Por isso também os abolicionistas, que querem conciliar todas as abolicionismo mais radical que se destila na rede de apoio ao quilombo
classes, e não indispor umas contra outras, que não pedem a do Jabaquara ou nos artigos mais inflamados de José do Patrocínio. Em
emancipação no interesse tão-somente do escravo, mas do pró- uma passagem que parece remontar ao medo branco diante das hordas
prio senhor, e da sociedade toda; não podem querer instilar no
negras do Haiti lideradas por Toussaint L'Ouverture, Nabuco situa o
coração do oprimido um ódio que ele não sente, e. muito menos
seu lugar exato entre os ídolos e contra-ídolos da sua modalidade espe-
fazer apelo a paixões que não servem para fermento de uma cau-
cífica de abolicionismo:
sa' que não se resume na reabilitação da raça negra, mas que é e-
quivalente, como vimos, à reconstituição completa do país (NA- este [o caos gerado por uma insurreição generalizada que partis-
BUCO, 2000: 35). se dos escravos] seria o sinal de morte do abolicionismo de Wil-
berforce, Lamartine e Garrison, que é o nosso, e do começo do
As ideias, encaminhadas logo a seguir, de que "a propaganda aboli- abolicionismo de Catilina ou de Spartacus, ou de John Brown
cionista não se dirige, com efeito, aos escravos", e de que o partido abo- (NABUCO, 2002: 35).
licionista deve se recusar "incitar à insurreição ou ao crime" (NABUCO,
A solução parlamentar, como lócus privilegiado para resolver a ques-
2000: 35) parecem situar Joaquim Nabuco - apesar de sua atuação inci-
tão escrava, afirma-se com bastante clareza na parte mais política e pro-
siva e indispensável até a assinatura da Lei Áurea - em uma ala relativa-

139. Desta maneira argumenta José do Patrocínio em um artigo para a Gazeta de Notícias de 6 d~
138. A perspectiva de Nabuco sobre a convivência entre as duas "raças" parece antecipar a postu-
março de 1880: "O problema da escravidão está neste pé. A lei de 1831 suprimiu o tráfico e não 50
ra de Freyre, décadas depois. É Nabuco quem nos diz: "A escravidão, por felicidade nossa, não
declarou criminosos os introdutores, como obrigados à restituição do africano 05 compradore.s.
azedou nunca a alma do escravo contra o senhor - falando coletivamente - nem criou entre as
Há quarenta e nove anos e dois dias, pois, nenhum africano podia mais ser escravi~ado no Brasil.
duas raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos. Por este motivo [...] Ora, é de lei que o salário do homem escravizado seja pago por quem o escravizou, ou quem
o contato entre elas sempre foi isento de asperezas, fora da escravidão, e o homem de cor achou herdou os capitais deste. Logo, os atuais proprietários de escravos devem à sociedade em geral, ou
todas as avenidas abertas diante de si" (NABUCO, 2002: 33·34). melhor, à raça negra, quarenta e nove anos de salário".

178
179
gramática de O abolicionismo. Rejeitando simultaneamente o paternalis- cionado às desigualdades. O antiescravagismo no Brasil, como tivemos a
mo Imperial e a insurreição popular, o Parlamento - depois de resolvidas oportunidade de ver, pautou-se desde o texto pioneiro de José Bonifácio
as disputas internas e este - parece se afirmar em Nabuco como uma van- em algumas posturas distintas.
guarda política necessária para representar simultaneamente os interes- A primeira postura possível- de José Bonifácio a medidas constitucio-
ses dos escravos e dos senhores mais conscientes. Um poder, enfim, que nais como a Lei Eusébio de Queiroz (proibição do tráfico), a Lei do Ventre
se encontra suspenso entre os gestos do paternalismo majestático e da in- Livre e a Lei dos Sexagenários, passando ainda por alguns textos esparsos
tolerância revolucionária: e pela famosa "Fala do Trono" pronunciada em 1866 por Dom Pedro 11-
[...] Não é igualmente provável que semelhante reforma seja feita seria esta que se convencionou chamar de "emancipacionismo". Seu pro-
por um decreto majestático da Coroa, como foi na Rússia, nem jeto de "morte lenta" da escravidão, embora introduzindo algumas leituras
por um ato de inteira iniciativa e responsabilidade do governo que já examinavam o escravismo como desigualdade, e não como diferen-
central, como foi, nos Estados Unidos, a proclamação de Lin- ça' não propôs na prática nada mais do que deixar a diferença escrava
coln. A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que lentamente dissolver-se no ar, limitando o campo de ação do escravismo
tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É, as- primeiro no espaço-tempo (a proibição do tráfico-atlântico), depois re-
sim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior,
duzindo as gerações de homens a ele sujeitas (Lei do Ventre Livre e Lei dos
nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou per-
Sexagenários). Mas, aparentemente impondo alguns retoques ao pólo es-
der, a causa da liberdade (NABUCO, 2002: 35-36).
cravo, deixara ainda intacto o pólo senhorial - uma vez que esta postura
o abolicionismo de Joaquim Nabuco, de certo modo, termina por ser parece examinar o escravismo como um "gesto de desigualdade", mas
um pouco um negócio de brancos, para utilizar uma expressão crítica que não como um "sistema de desigualdade".
mais tarde foi dirigida às contribuições mais moderadas do abolicionismo A segunda postura, o "abolicionismo" propriamente dito, propõe efe-
brasileiro. Mas é, de todo o modo, inegável a importância de sua atuação tivamente uma nova leitura do escravismo que se estabelece sobre um
como jornalista e parlamentar. Mais importante, ainda, terá sido a parte deslocamento que vai da diferença escrava à desigualdade escrava. A par-
analítica de sua obra - menos a obra de juventude intitulada A escravidão tir daí, as leituras desdobram-se e diversificam-se. A escravidão vista co-
do que a brilhante análise concretizada na maturidade sob o título de O mo sistema, e não como um simples gesto de escravizar - esta concepção
abolicionismo, este sim um ensaio que se introduz na literatura nacional que encontrou sua mais fina expressão na obra analítica de Joaquim Na-
como a primeira obra brasileira mais complexa no campo das Ciências buco - permitiria, por exemplo, que se atacasse a dicotomia "senhor-es-
Políticas e das Ciências Sociais, terminando por realizar com sucesso o cravo" mais do que simplesmente libertar o escravo ou punir moral e pe-
retrato bem cuidado de um país prestes a se lançar a novas transforma- cuniariamente o senhor de escravos. A análise da escravidão como con-
ções. Eis, enfim, a obra prima de Joaquim Nabuco, a mais fina consciên- cretização suprema de uma tirania estabelecida pelo homem branco euro-
cia do abolicionismo vertida em um belo texto que buscou decifrar siste- peu contra o homem negro africano - tirania de uma diferença sobre ou-
maticamente o sistema da escravidão de modo a propor concomitante- tra' gerando simultaneamente terríveis desigualdades - encontraria suas
mente a sua desconstrução, com vistas a favorecer o advento de uma so- ações mais firmes seja nos artigos inflamados de um José do Patrocínio,
ciedade de cidadanias plenas.
seja na articulação insurrecta que integraria no mesmo braço de resistên-
Um panorama final se torna agora possível no que concerne à história cia os clubes abolicionistas mais exaltados, a mobilização popular, os
das ideias antiescravagistas no Brasil, já à luz da perspectiva dos desloca- "quilombos abolicionistas" ao estilo do Quilombo do Jabaquara, e socie-
mentos entre as coordenadas das diferenças e o eixo de contradições rela- dades de ação direta como a dos caifazes. Ao lado desta última via, a da

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ação direta, outros dois métodos insinuavam-se: a "via do Decreto Ré-
gio" e a "via parlamentar". A história, em sua complexidade, conduziu os
acontecimentos a se materializarem sob a influência de uma combinação
Rebeliões e quilombos: primórdios
dos três métodos: sob a pressão do método insurrecional da "ação dire-
ta", terminaram-se por se unir numa única via o gesto do Decreto Régio e 17 de uma consciência negra
o gesto parlamentar. E fez-se a Lei Áurea, oficialmente extinguindo no
Brasil a diferença escrava e a desigualdade escrava (BRASIL, 1988).

Naturalmente que nada, ou muito pouco, seria possível se o próprio


africano ou afrodescendente escravo não se tivesse feito ator principal de
sua própria história de luta pela liberdade, de modo que a batalha discur-
siva que estivemos analisando não é mais do que um inflamado contra-
ponto, ou a ponta mais visível, de uma luta que se dava em todos os cená-
rios do Brasil escravocrata. As últimas décadas escravistas conhecem a in-
tensificação e ocorrência cada vez maior de resistências de diversos tipos
- dos crimes contra feitores ou senhores cometidos pelos escravos nas
suas lutas individuais pela liberdade ou por melhores condições de vida,
aos pequenos enfrentamentos coletivos que podiam agregar os trabalha-
dores escravos de uma fazenda na reivindicação por melhores condições
de existência dentro do sistema de propriedade e trabalho escravista; das
fugas individuais aos aquilombamentos de vários tipos; das pequenas sa-
botagens aos engajamentos em movimentos mais amplos que já não visa-
vam mais apenas à libertação individual, mas que passavam a mobilizar a
doação de si para a libertação de outros.
A população negra, nas décadas que precedem a assinatura da Lei Áu-
rea' dá mostras de um engajamento cada vez maior na luta por uma liber-
tação coletiva e na construção efetiva de uma consciência negra. E é mui-
to interessante observarmos que ocorre uma mudança de perspectiva
mais geral na movimentação negra contemporânea às décadas que ante-
cedem a abolição da escravatura, particularmente no sentido de que a
conquista da liberdade passa a ser encarada como uma questão de luta
para extinção desta desigualdade radical que é a escravidão. Já quando
voltamos os olhos para os quilombos dos séculos XVII, XVIII e primeira
metade do século XIX, e para as várias revoltas escravas que se dão neste

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mesmo período, toda a movimentação negra de dimensão coletiva parece aqui diante de uma guerra de diferenças. Os malês e demais escravos em
extrair seu significado maior do signo da diferença, e não da ideia de uma revolta não desejam ocupar um lugar na sociedade contra a qual se de-
luta pela supressão da desigualdade. Busca-se ali como aqui a liberdade, frontam (o que significaria lutar contra a desigualdade no interior desta
mas há uma certa mudança de perspectiva'". sociedade que eles poderiam considerar também como sua). Não. Alme-
jam literalmente destruir a sociedade que os cerca e construir a sua, mal
Podemos ilustrar com o caso das célebres Revoltas Malês, ocorridas
comparando, à maneira do que fizeram os revoltosos do Haiti (1797),
em vários momentos na Bahia (entre 1807 e 1835) sob a liderança de et-
esta m rgna revolta das diferenças.
nias africanas convertidas ao lslamismo. A maior delas ocorreu em 1835,
e, embora malsucedidas, podemos aproximá-Ias do modelo único que A Revolta dos Malês assume uma componente muito forte de insurrei-
nos oferece a história da América com a Revolta do Haiti , onde os escra- ção de negros (e negros africanos, de nação), e não apenas de Revolta de
vos negros conseguiram assumir o poder sobre a ilha e assassinaram to- Escravos. Podia-se escutar na Revolta dos Malês de 1835, a que mais se
dos os brancos. Há registros, colhidos de testemunhas da Revolta dos aproximou de ser bem-sucedida e que possuía o plano mais bem engen-
Malês de 1814, de que o grito de guerra dos escravos em revolta era "Li- drado, a palavra de ordem "morte aos brancos, viva os nagô". Desta ma-
berdade! Vivam os negros e seu rei! Morte aos brancos e aos mulatos!" neira, é uma guerra também de diferenças culturais. Adicionalmente, há a
(Mattoso, 2003: 164)141.Esse grito nos chama atenção. Não há nenhum componente religiosa, pois a liderança do movimento malê sempre foi
diálogo possível com o que é visto como "a sociedade dos brancos". Me- toda constituída de negros islamizados (e deduz-se que, caso bem-suce-
recem o mesmo tratamento implacável os "mulatos", esta diferença mes- dida, os vitoriosos tenderiam a impor a fé muçulmana à nova sociedade,
clada que, da perspectiva destes revoltosos (e a considerar fidedignos os ou então estabelecer uma hierarquia de diferenças religiosas na qual o is-
depoimentos das testemunhas dos acontecimentos), parece-Ihes consti- lamizado se veria alçado a uma posição social superior). Há indícios tam-
tuir uma inaceitável ponte de mediação entre negros e brancos. Estamos bém' e isto é ainda mais significativo, de intolerância contra os crioulos -
os negros nascidos em solo brasileiro. Deste modo, trata-se de uma revol-
ta de negros africanos, radicalmente excludente em relação a outras "ca-
t 40. Particularmente interessante é observar que os ritmos da história das rebeliões escravas não tegorias" de pele e a origens não-africanas, e liderada por nagôs e haúças
coincidem necessariamente com os ritmos da história da conquista da liberdade por caminhos le-
gais (alforria e ações de liberdade). Mais atrás, comentávamos o fato de que houve um período de convertidos à fé muçulmana (uma diferença religiosa que se torna parti-
maior facilidade na concessão de alforrias de fins do século XVIII a meados da década de 1820. cularmente importante neste contexto). Trata-se mesmo, assim postula-
Depois o preço do escravo aumenta e consequentemente diminui a possibilidade de acesso legal à
liberdade para o escravo comum, ao passo em que esse mesmo escravo asenzalado também en-
mos, de uma revolta de diferenças. Quando não desejavam destruir a so-
frenta no seu dia-a-dia uma mentalidade senhorial que o coloca mais amiúde dentro do prisma da ciedade "dos brancos" para erguer uma outra sobre suas ruínas, os malês
diferença escrava. A partir de fins dos anos 1860, por fim, surge na intelectual idade um setor forte desejavam retomar à África, em planos mirabolantes. Foi o caso da Re-
que passa a ver o escravo sob o prisma da desigualdade. Contra este ritmo histórico, as rebeliões
escravas já nos oferecem insurreições importantes desde 1807, como veremos, e há quilombos volta Malê de 1807, primeira da série, que tinha como plano condutor
durante toda a história da escravidão. Certamente que a intensificação da ocorrência de rebeliões uma série de ações encadeadas que se destinariam a assassinar os chefes
escravas desde o princípio do século XIX beneficia-se do impactante impulso simbólico propor-
cionado pela Rebelião Escrava do Haiti, em 1797. De todo modo, o período situado entre meados
brancos, envenenar a água de fontes públicas, e se apossar de navios an-
de 1820 e os anos 1860 é particularmente significativo tanto no que se refere à ocorrência de re- corados no porto para fugir para a África! (VERGER, 1987: 358) 142

voltas (e a maior de todas elas ocorre nesta época, em 1835), como no que se refere ao fortaleci-
mento de uma perspectiva senhorial que quer enxergar o escravo como diferença, que o desuma- Também é significativo que, na Revolta Malê de t 835, tenham sido
niza. Este é um momento em que os dois ritmos estão bem sintonizados. encontrados entre os revoltosos muitos negros forros (mas todos africa-
14 t. A documentação do levante de 1935 - incluindo depoimentos de malês nos inquéritos judici-
ais e processos judiciais - encontra-se no Arquivo Público do Estado da Bahia, e muita coisa já foi
142. Documentação no Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.
publicada nos Anais deste arquivo. Para um estudo completo, ver Reis, 2003.

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nos), o que faz com que essa revolta não possa ser considerada apenas que era a escravidão, fossem africanos ou crioulos - ainda na-o ibili
, sensr 1-
uma rebelião escrava, aproximando-nos ainda mais do modelo da guerra zava os lideres de revoltas como as malês senão como recurso efi
'. ' icaz para
de diferenças. E é interessante a consciência que as autoridades locais re- conseguir uma aliança maior de combatentes na sua localidade (o I
'.
d a pnmerra I ' pano
velam ter desta natureza das revoltas malês como uma luta de diferenças revo ta malê, de fugir para a Africa, é um sintoma muito evi-
que se constrói em torno de negros africanos, pois resolvem deportar os ?ente desta.postura de vislumbrar um movimento mais amplo). Enquanto
detidos para a África, e ainda encorajar a partida de outros africanos li- Isto, os mars poderosos quilombos do período colonial ou do Primeiro
bertos que desejassem retornar às terras africanas. A solução buscada pe- Reinado, como o complexo de Palmares ou o Mocambo do Pará, pauta-
las autoridades, portanto, é empurrar as diferenças para o mundo das di- vam-se na ideia de construir uma outra sociedade, fosse em radical litígio
ferenças. Deportar os forros africanos que estivessem unidos aos revolto- ou em relativa interação com a sociedade escravocrata que tinham rejeita-
sos consolida, de lado a lado, a perspectiva da diferença. Já na Revolta do, Edificavam-se, portanto, na diferença.
Malê de 1814, que se dera na zona pesqueira de Itapuã, essa solução tam- É precisamente uma comparação entre alguns quilombos, conside-
bém aparece, pois além de quatro dos líderes que sobreviveram aos com- rando de um lado aqueles que são mais típicos de todo o Período Colonial
bates terem sido condenados ao enforcamento exemplar na Praça da Pie- e do Primeiro Reinado, e de outro lado uma nova modalidade de quilom-
dade, outros 23 foram deportados para Moçambique (VERGER, 1987: bos que já começa a surgir nas décadas que precedem a abolição, o que
360; MATTOSO, 2003: 164). nos permitirá examinar de uma perspectiva privilegiada este crescimento
O padrão que nos é trazido pelas revoltas malês, e também pelo tipo significativo de uma outra concepção sobre a escravidão, aquela que pas-
de quilombos que predomina em todo o período que precede as décadas saria a abordá -la como desigualdade radical.
abolicionistas do final do século XIX, leva-nos a postular que neste perío- Ao examinar o último período escravocrata, pesquisadores diversos
do, embora com flutuações, estiveram bem presentes concepções sobre a registram cada vez mais a ocorrência de um novo tipo de quilombo _ o
escravidão e sobre a relação entre as "raças" ancoradas radicalmente na "quilombo abolicionista":" - bem distinto do já conhecido modelo do
perspectiva da diferença, tanto no que concerne à mentalidade predomi- Quilombo de Palmares. Para além deste aspecto, que merece um esclare-
nante entre os senhores, como no que concerne ao modo de pensar dos cimento mais alentado, é importante lembrar que são encontradiços tam-
escravos em revolta ou em fuga para quilombos. Os senhores viam os es- bém diversos outros tipos de aquilombamentos na época abolicionista, o
cravos como um grupo de diferentes, não de desiguais. Os escravos revol- que é também um sinal de que a população escrava já não podia mais ser
tosos de origem africana viam-se, mas não por serem escravos, e sim por acomodada, senão com muita dificuldade, no interior deste sistema es-
serem africanos, como portadores de uma orgulhosa e inconciliável dife- cravista que, a história logo mostraria, estava prestes a se dissolver.
rença em relação aos brancos, e mesmo em relação aos mulatos e crioulos
A bem da verdade, as formações coletivas oriundas de escravos fugi-
(negros nascidos na terra). Eram ciosos, em muitos casos, de suas dife-
dos, e que são categorizadas de maneira mais geral sob a denominação de
renças originais no continente africano - viam-se como haúças, egbás,
"quilombos", foram de diversos tipos, seja com relação ao tipo de agrupa-
ijexás, mandingas, tapas ou balantas, adotaram o nagô como cultura de
mento que formavam, seja com relação aos objetivos do agrupamento,
mediação, e só temporariamente suspendiam suas mútuas e ancestrais
s~ja com relação ao tipo de duração da formação aquilombada (temporá-
hostilidades. Alguns se achavam superiores por serem muçulmanos, e na ou permanente), Quando se dizia que um grupo de escravos estava
desta maneira enxergavam-se sob o prisma de uma diferença espiritual.
De modo geral, enfim, a ideia de uma diferença negra - que poderia tra-
143, o conceito de "quilombo abolicionista", bem como o conceito oposto de "quilombo rompi.
zer unidade a todos os que eram oprimidos por essa desigualdade radical mente", aparecem na obra As Camélias do Leblon de Eduardo Silva (2003: I I -18).

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"aquilornbado", podia se tratar de uma situação temporária, e isto podia de qualquer coisa que amedronta ou dificulta o acesso, ou contam com
ocorrer até no interior de uma fazenda como forma de protesto contra apoio da população periférica e marginalizada. Os nomes, por vezes con-
certas condições de trabalho, de modo que depois de uma negociação, a trapontos das barreiras físicas, procuram impor respeito ou amedront
ar,
partir da qual os escravos conquistavam o que almejavam, o aquilornba- ou trazem as marcas do segredo: Palmares, Quilombo do Inferno, Qui-
mento se desfazia. Mal comparando, tratava-se aqui de movimentações lombo do Urubu, Quilombo da Cachoeira, Buraco do Tatu.
que visavam à diminuição da situação de "desigualdade", mas que não che-
.Este ti~o mais tradicional de quilombo organiza-se, este é o ponto que
gavam a contestar frontalmente o próprio sistema escravocrata ou a figuração
mais nos mteressa, como sociedade distinta, como um mundo à parte,
do "escravo" em termos de uma "diferença" que precisava ser eliminada.
que naturalmente tem seus mecanismos de interação com o mundo es-
Contudo, a formação de um quilombo propriamente dito - aqui en- cravocrata através de operações comerciais para além dos enfrentamen-
tendido como uma organização social permanente - era já uma rejeição tos armados. O caráter de ruptura, contudo, é evidente, e a própria pala-
direta do sistema escravocrata, ou, para utilizarmos o nosso sistema con- vra "quilombo", de origem africana, significa "separado". De todo modo,
ceitual, um claro enfrentamento da diferença escrava. Partir com um gru- objetivo principal de todos os que os compõem, e de todos os que fogem
po de escravos para a formação de um quilombo, ou fugir em busca de para estes quilombos, é assegurar a continuidade de seu estado de liber-
um quilombo já formado, era rejeitar frontalmente a diferença escrava. dade'". Podia haver mesmo no interior de alguns quilombos a prática da
Os quilombos que aparecem nas últimas décadas escravocratas como fo- :: escravidão - o que não se deve estranhar, uma vez que a escravidão do-
cos de resistência, conforme postulam historiadores especializados neste méstica era praticada na África muito antes do Escravismo Atlântico'",
'.
período, podiam ser de dois tipos. Em alguns quilombos do século XVII, havia mesmo a regra de que o es-
De um lado, tinha-se a modalidade de quilombos que já vinha existin- cravo fugido que chegasse ao quilombo por seus próprios meios seria
do desde os tempos coloniais, e é já amplamente conhecido o modelo do considerado livre daí por diante, mas aqueles que fossem trazidos à força
Ouilombo dos Palmares, quilombo que em 1597 foi fundado por escra- através de expedições de captura promovidas pelos próprios quilombolas,
vos foragidos na Serra da Barriga, situada no interior do atual Estado de seriam considerados escravos da comunidade ainda por algum ternpo'".
Alagoas (na época uma região integrada à capitania de Pernambuco), e
que durou praticamente um século atingindo a impressionante marca de
144. Donald Ramos (2000: 165) assim se refere aos quilombos em Minas Gerais do século XVIII:
30.000 almas. Era também o caso do Mocambo do Pará, fundado em "A comunidade criada pelo escravo fugido, o quilombo, com frequência existiu perto e cooperou
1821 na densa floresta do Rio Trombetas, situada a nordeste da cidade de com elementos da sociedade que deixara para trás; [de todo modo] apesar de os escravos indivi-
Manaus, e desmantelado em 1823 quando já contava com cerca de dois d~almente rejeitarem o cativeiro, geralmente não trabalhavam coletivamente para derrubar a insti-
tuiçâo da escravidão".
mil habitantes. Quilombos menores, com algumas centenas de homens,
145. Para o caso de Palmares, ver: Moura, 1972: 78; Mattoso, 2003: 160. Entre as fontes de épo-
formaram-se inúmeros. ca, a referência à escravidão interna aparece no Diário de viagem do Capitão João Blaer aos Pal-
,,!ares (1645), e a perseguição a negros fugidos de Paimares é também descrita por Gaspar Bar-
Desde já ressalta como um padrão recorrente deste tipo mais tradicio- leus (1644).
nal de quilombo o tipo de espacialidade ou localização: uma serra pouco
1.4~..Fora a possibilidade de escravidão interna, a ideia de uma República dos Paimares como ter-
acessível ou a mata densa, uma extensão de grutas cravejadas em uma rítório d~ plena igualdade entre os palmarinos livres é uma ficção contestada por vários historia-
montanha ou um complexo de paliçadas bem protegido por armadilhas dores. Michael Rowlands (1999), em um texto intitulado "Identidade Negra e Senso do Passado
na Cultura Nacional Brasileira", procura discutir criticamente a historiografia heroicizante sobre
escondidas na vegetação; uma clareira envolta por um terreno pantanoso P~lmares e apontar espaços de desigualdade no interior do quilombo: a distância social de uma
ou uma ilha guardada por um tormentoso rio. Quando não distantes dos e~te privilegiada em relação aos demais quilombolas, de um lado, e distinções baseadas em etnias e
generos, de outro. As fontes de época produzidas pelos holandeses Blaer (1645) e Barléus (1645)
centros urbanos, estes quilombos trazem no seu ambiente ou espacialida- também oferecem elementos para esta discussão.

188 189
Pode-se dizer que a eclosão deste tipo tradicional de quilombo repre- nome, e pelo Quilombo do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, este úl-
sentou de fato um lance histórico extremamente importante na luta pela timo estudado em maior detalhe pelo historiador Eduardo Silva em seu li-
libertação escrava, mas não constituiu propriamente um movi~en;~ mais vro As Camélias do Leblon (2003) 148.
decisivo em favor da liberdade escrava, senão pela sua força sImboltca ou Para entender a distinção entre os dois modelos, será útil comparar o
por ter gerado algum desgaste militar. O "quilombo-rompi~en,to" (.SIL- Quilombo dos Palmares, que perdurou durante o século XVII na capita-
VA, 2003), este é o ponto, edifica-se como ruptura em relaçao a SOCIeda- nia de Pernambuco, com o Quilombo do Leblon, bem atuante no Rio de
de que oprime o escravo, mas não se apresenta como programa de trans- Janeiro de fins do século XIX. Começaremos por entender esse quilorn-
formação para esta mesma sociedade. Como bem mostra Pal~ares, o bo-ruptura que foi o complexo dos Palmares.
maior e mais duradouro complexo de quilombos surgido no Brasil escra- O Quilombo dos Palmares mostra-se aos historiadores através de
vocrata, trata-se aqui de construir uma sociedade alternati:a'14~entro do fontes escritas e arqueológicas diversas, e tem suscitado uma razoável
espaço nacional mas exterior em relação à sociedade colonial . massa crítica de crônicas e análises historiográficas, desde as primeiras
Mas um outro tipo de quilombo começa a aparecer cada vez mais nas referências traz idas na própria época pela crônica do historiador holan-
décadas abolicionistas. É um quilombo que já se forma no espírito de um dês Gaspar Barléus (1640) ou pelo Diário de Viagens do Capitão João
verdadeiro movimento pela liberdade, e não apenas como resultado de Blaer aos Palmares (1645), até as mais recentes obras de historiadores e
uma luta pela libertação. Para compreender este fenômeno, os historia- arqueólogos da atualidade especializados neste periodo'", Fundado em
dores especializados nas últimas décadas escravistas cunharam u~ novo 1597 e destruído somente em 1694, esse quilombo perdura por quase um
conceito, o de "quilombo abolicionista" (SILVA, 2003). O. qUll.ombo século, atingindo uma população de 30.000 homens e organizando uma
abolicionista não procurava formar uma nova sociedade no interior do complexa sociedade que se expressa através de um conjunto de diversos
espaço nacional. Um novo espírito o animava: a ideia de realmente trans-
formar a sociedade escravista, "por dentro" e fazendo parte dela. Seu ob-
jetivo último, que vinha a coincidir com o dos moviment~s aboli~ionist:s, t 48. A essa época o Leblon era considerado um subúrbio distante do Rio de Janeiro, à beira mar.
Ali se chegava através de bondinho puxado a burro, e a região estava longe de ser habitada pelas
era a extinção da escravidão. Não simplesmente a conqUlsta.de hbertaçao classes sociais mais favorecidas. Dizia -se, na época, que estar em contato cotidiano com o ar mari-
para o grupo social que o compunha ou para aqueles a que viesse acolh~r, nho fazia mal à saúde.
mas sim a conquista da liberdade como um valor, para toda a populaçao t 49. Boa parte da documentação escrita sobre Palmares, guardada no Arquivo Histórico Colonial
de Lisboa e em um acervo do IHGB, está compilada em um livro intituladoAs Guerras nos Palma-
de escravos do país. Da mesma forma que Palmares se tornou modelo
res, publicado por Ernesto Ennes (1938). A História dos feitos recentemente praticados durante
máximo para os quilombos de tipo tradicional, os grandes mo~elos deste oito anos no Brasil, de Gaspar Barléus, que traz referências contemporâneas sobre o quilombo e
novo tipo de quilombo abolicionista foram fornecidos pelo quilornbo do sobre um ataque movido contra os quilombolas em 1644, foi publicada (BARLÉUS, 1974), e
também o Diário do Capitão João Blaer, escrito em 1645 (BLAER, 1902). Há ainda fontes lusita-
[abaquara, em Santos, pelo Quilombo de Petrópolis, na cidade de mesmo nas, como as memórias sobre a repressão a Palmares incluídas na obra Nova Lusitânia, escrita
pelo Governador de Pernambuco Francisco de Brito Freire (1661- 1664). Com cunho historio-
gráfico, as referências se iniciam em 1730 com a História da América Portuguesa, de Rocha Pita,
147. Considerar o quilombo como uma formação social à parte não significa, necessariamente, (ed. 1976) e com os Desagravos do Brasil, de Loretto Couto (1757). No século XX, depois de um
sustentar seu isolamento. Autores diversos examinaram as interaçôes de Pai mares com o mundo estudo de Nina Rodrigues (1904), a referência primeira é O Ouilombo dos Palmares, de Edison
circundante. Charles Orser, em seu livro Uma arqueologia histórica ,do mun~o modern? (~996), Carneiro (1946), seguindo-se estudos importantes de Benjamin Péret (1956), Clóvis Moura
procura situar o quilombo em uma rede global de relações, enquadra-Io no s.ls.tema ca~ltahsta da (1959), Décio Freitas (1978), Abdias do Nascimento (1980), Orser e Funari (1992), Scott [o-
época além de examinar as relações dos palmarinos com certos setores SOCI~ISda SOCiedade es- sephAllen (1998), Pedro Paulo Funari (2003) e Flávio Gomes (2005). Uma coletânea recente,
cravo~rata. De todo modo, acrescentaremos que nada disso impede que o QUllombo d: p~lm~~es organizada por Flávio dos Santos Gomes e João José Reis com o título Liberdade por um fio
se afirme como uma formação social específica. Ser uma sociedade apartada, enfim, nao sigru ica (2000), reúne ensaios de historiadores diversos, entre os quais: Carlos Magno Guimarães (2000)
ser uma sociedade isolada. e Ronaldo Vainfas (2000).

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quilombos. Os historiadores divergem acerca de como se teria constituí- dé:~das da ~scravatura. De todo modo, chama atenção o fato de que, na
do este complexo quilombola enquanto formação social específica, mas analise da VIda concreta desenvolvida na sociedade palmarina, tem-se
todos apresentam um ponto em comum, do ponto de vista do sistema aqui mais uma vez o quadro de uma sociedade que se constitui à parte.
conceitual que estamos mobilizando. Palmares representou a afirmação Interagindo de maneiras várias, é certo, mas à maneira de uma sociedade
de uma diferença em relação à sociedade contra a qual se coloca em rup- que interage com outras (e não como uma formação social que faz parte
tura (o Brasil escravagista). de uma sociedade mais ampla).
Nina Rodrigues (1932), por exemplo, um dos primeiros analistas do Estas evidências, de que com Palmares e outros quilombos tradicio-
complexo de Palmares, delineia uma forte dimensão cultural para esta di- nais tinha-se a construção e estabelecimento de sociedades apartadas,
ferença' e procura enxergá-Io como lugar de persistência de práticas cul- embora interagindo com a sociedade colonial em diversos níveis e através
turais originalmente africanas, sendo seguido nesta mesma linha de hipó- de diversas intermediações, são muito difíceis de serem negadas, seja to-
teses por Arthur Ramos (1943) e Edison Carneiro (1947). Estes a~tores mando-se o viés cultural ou o viés político. As pesquisas arqueológicas
praticamente desenham Paimares sob o prisma de um retorno à Africa, dos anos 1990, que acrescentaram um passo decisivo na possibilidade de
através do viés da Cultura. Péret (1956) acrescentaria mais tarde uma compreender o complexo de Palmares ao trazer para o centro da análise
nota importante sobre a originalidade da religião palmarina, o que tam- fontes da cultura material, viriam confirmar isso. As linhas de análise e vi-
bém se insere no viés da diferença cultural. eses interpretativos variaram, mas todas apontam para a identificação
Depois destes autores, entram em cena as análises políticas da socie- destes que mais tarde seriam denominados "quilombos-rompimento"
dade palmarina, que já haviam tido uma primeira tradição com historia- como lugares onde são edificadas novas sociedades, por oposição à socie-
dores ligados ao PCB nos anos 1930, como Aderbal [urerna (1935). Nos dade imperial. Que tipo de sociedade constituía essa alteridade, esse é um
tempos mais recentes, as leituras políticas da sociedade palmarina rei- ponto em aberto. Funari (2003) por exemplo, enxerga em Palmares um
niciam-se com Clóvis Moura (1959), Luís Luna (1968), Décio Freitas foco para o qual são atraídos indivíduos de origens culturais e étnicas vá-
(1978) e Abdias do Nascimento (1980), que contribuem para uma ex- rias. O quilombo teria se transformado em refugo não apenas de escravos
pressiva heroicização da população negra de Palmares e, em particular, evadidos, como também de marginalizados de todos os tipos, entre os
da figura de Zumbi. Essas leituras reeditam um imaginário de diferença quais mouros, judeus e indivíduos acusados de bruxaria ou perseguidos
radical entre negros e brancos, transferindo para a época analisada um pelo regime colonial (FUNARI, 2005: 48). Frisa o caráter interativo do
pouco do ambiente de lutas políticas do movimento negro dos anos 1960 quilombo com o seu entorno, mas de todo modo demonstra que a cultura
e 1970, e, sobretudo, abrindo espaço para a metaforização de Palmares material encontrada é testemunho da extrema singularidade do assenta-
como símbolo de luta para a opressão, nesta época em que vivenciávamos mento. Também Ioseph Scottt A1len (1998) irá encontrar em Palmares a
no Brasil os anos de chumbo impostos pela Ditadura Militar. Os aspectos construção de uma sociedade bem singular, particularmente preocupada
em estabelecer claramente a diferenciação entre os palmarinos e demais
mais criticáveis destas análises relacionam-se às tentativas de enxergar
grupos humanos que disputavam a espacial idade colonial (portugueses,
nos palmarinos uma "consciência negra" em expressivo estado de desen-
holandeses e colonos brasileiros), através da constituição de uma identi-
volvimento, como se eles representassem a luta de todos os africanos e
dade cultural singular que se expressa em aspectos como os nomes e a in-
crioulos oprimidos pelo sistema escravista brasileiro. Veremos logo adi-
dumentária (FUNARI, 2005: 51). Esta identidade, contudo, é compósi-
ante que esta concepção não é inteiramente sustentável, já que a perspec-
ta, assentada sobre uma "fusão de elementos culturais" de origens diver-
tiva de luta pela liberdade como um valor a ser estendido a todos os escra-
sas, de modo que Scott Allen se permite a falar de um "Mosaico Cultural
vos só se tornaria possível com os quilombos abolicionistas das últimas em Palmares" (ALLEN, 1998).

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o que importa para a nossa análise em torno da questão das desigual- torna-se mais tarde, legitimamente, o símbolo da consciência negra. Re-
dades e diferenças é que - à parte as nuances interpretativas desenvolvi- presenta bem os primórdios, a consciência negra possível na sua época.
das pelos vários historiadores, antropólogos e arqueólogos - a sociedade Pôde estendê-Ia aos limites históricos possívcis naqueles tempos. Para
palmarina revela ter se formado como lugar onde se realiza a libertação, além disto, o que seria possível nesta época em que eram negros diversos
mas não como uma formação social na qual se desenvolve um programa daqueles capitães-do-mato que faziam de seu ofício a busca de escravos
de luta pela liberdade a ser estendida para toda a população escrava. Aco- fugidos e a participação em operações de desmantelarnento de quilombos
lhe, de fato, refugiados de diversos tipos que se apartam da sociedade co- de diversos tamanhos? Zumbi tornou-se um símbolo. Não é preciso bus-
lonial, e não apenas ex-escravos e indivíduos relacionados à procedência car mais do que isto.
africana, embora estes, obviamente, predominem amplamente. Ressal- Tudo o que foi visto para o caso dos quilombos tradicionais, ou "qui-
ta-se particularmente o interesse dos palmarinos em se confrontarem lombos-rompimento", para utilizar uma conceituação recente (SILVA,
contra as outras sociedades dominantes (a colonial portuguesa e a holan- 2003), pode ser contraposto ao que se passa com os quilombos abolicio-
desa, que então disputavam o domínio da capitania de Pernambuco). O nistas de fins do século XIX, particularmente a partir de meados dos anos
quilombo negocia com todos, estabelece relações comerciais, confronta 1860. O contexto é outro, e sua análise mais minuciosa fugiria às possibi-
belicamente os poderes instituídos, estabelece acordos militares e, por as- lidades deste ensaio. Há decerto muitas contradições envolvidas neste
sim dizer, lavra acertos "diplomáticos". Mas faz tudo isso ancorado no novo período. Entre os eventos mais impactantes, terá seu peso a Guerra
ponto de vista de uma nação autônoma. Os quilombolas interagem com a do Paraguai, que, como demonstra Ricardo Sal1esem seu ensaio sobre a
sociedade colonial, mas são ciosos de seu apartamento em relação a ela - participação de escravos nesta guerra, torna irremediavelmente explícita
e é significativo que Ganga-Zumba, rei de Palmares desde 1670, tenha a contradição entre cidadania e escravidão (SALLES, 1990). Muitos es-
em 1678 perdido seu prestígio e a própria vida nas mãos dos palma rinos cravos combateram nas fileiras do exército nacional (embora não tantos
por ter insistido em negociar a paz e, na perspectiva de alguns palmari- como propunha a antiga historiografia revisionista, constituíam pelo me-
nos, a desarticulação do quilombo (o desmantelamento da diferença) '". nos 10% do efetivo militar) 1;1. Eram brasileiros? Estavam, afinal, inseri-
Zumbi assumirá o comando como guerreiro da diferença. Toma a si a dos na sociedade nacional de modo efetivo? A escravidão tornava-se en-
tarefa de conservar aquele espaço singular onde se realiza a libertação, de tão incompatível com a ideia de que podia ser vista como diferença, favo-
garantir a liberdade individual dos palmarinos e de assegurar a autonomia recendo a ideia de ser encarada como desigualdade?
da comunidade. Mas a ideia de que é um líder em prol da liberdade coleti- Há ainda contradições econômicas e políticas diversas. Que dizer da
va de todos os negros (já veremos a diferença entre "liberdade" e "liberta- paradoxal contradição examinada por Lilia Schwarz (1998), segundo a
ção") é uma construção historiográfica posterior. Zumbi está longe de qual neste período Dom Pedro II atingiria o auge da popularidade, e ao
ser um caifaz. Não luta extensivamente para eliminar desigualdades; luta
para afirmar diferenças. Morre heroicamente por isto. De toda maneira, 151. Durante muito tempo, havia dominado o cenário da historiografia sobre a Guerra do Para-
guai uma certa perspectiva, que tinha no livro de Chiavenatto (1979) a sua obra mais influente,
que indicava que o exército brasileiro era formado basicamente por escravos. Esta afirmação foi
150. Em troca desta paz, os palmarinos se comprometeriam a se transferir para a zona do Cucaú, contestada por historiadores como Francisco Doratioto (2002) e Eduardo Salles (1990), que ava-
ao mesmo tempo em que pediam liberdade para os nascidos em Paimares e permissão para estabe- liam em no máximo 10% o real efetivo de escravos no exército em campanha. De qualquer manei-
lecer livre comércio com os moradores da região. Mas também prometiam entregar às autoridades ra, a necessidade imperial de promover uma grande participação de setores diversos para a forma-
todos os escravos que a partir dali fugissem para Paimares, ao passo em que se propunham, eles ção de um grande exército, inclusive contando com os escravos, não deixou de conceder voz a se-
mesmos, a viver de acordo com as disposições exigidas pela autoridade da capitania (ALVES FI- tores sociais que antes não a tinham. Ganham destaque também, como chefes militares, muitos al-
forriados negros (SALLES, 1990).
LHO,1988).

194 195
mesmo tempo viveria os primeiros sinais do seu declínio, delineando-se do Jabaquara, estes se articulavam diretamente ao seu projeto de liberta-
uma crise orçamentária que perduraria até o tempo que ainda restava ção geral e imediata de todos os negros e mulatos escravizados, fornecen-
para o Brasil Império? Ao mesmo tempo, o próprio Exército, ampliado, do toda a pressão social que tornaria possível a conquista de seus objeti-
modernizado e organizado mais sistematicamente para sustentar-se na vos. É, diga de nota, aliás, a integração destes quilombos não apenas com
guerra, de modo a apoiar a política Imperial, em um tempo não muito dis- o movimento abolicionista, mas também com parte da população livre en-
tante seria precisamente uma das forças decisivas para a derrubada desta volvente, que costumava protegê-los das investi das policiais e que, não
mesma realeza. Afirmam-se também contradições entre o poder modera- raramente, contribuía para a construção de barracos de quilombolas com
dor e o sistema representativo, cresce a insatisfação liberal, fortalece-se o dinheiro arrecadado entre comerciantes e outras pessoas favoráveis à cau-
Partido Republicano Paulista. O quadro político era efervescente, e estas sa antiescravagista.
são apenas algumas linhas gerais. Também o tipo de lideranças que estava à testa destes quilombos de
Para além disto, já discutimos anteriormente as novas mudanças que, nova espécie pode ser apontado como índice bastante significativo de que
neste período, podem ser percebidas no ritmo de concessão de alforrias o "quilombo abolicionista" constituía uma construção social mais ampla,
em função da inversão no preço do escravo e também dos receios senho- produzida integradamente por setores diversificados da sociedade para
riais diante da possibilidade da abolição, de modo que a compra da liber- além dos próprios escravos fugidos. Enquanto os líderes do "quilom-
dade volta a ser favorável aos escravos empreendedores e fortalece-se bos-rompimento" eram guerreiros entocados e protegidos por um siste-
mais uma vez a concepção da escravidão como desigualdade. De igual ma que dficultava o acesso e possibilidade de localização dos quilornbo-
maneira, já foram mencionadas as irresistíveis pressões internacionais Ias - tendo-se na figura de Zumbi dos Palmares o modelo por excelência
para a extinção do tráfico no Brasil, de modo que não reprisaremos mais do chefe-guerreiro de quilombo - já as lideranças dos "quilombos aboli-
este contexto. A abolição, de um modo ou de outro, seria inevitável. Con- cionistas" eram bem articulados intermediários que estabeleciam uma
tudo, o que nos interessa mais particularmente é a percepção de que o es- ponte entre o movimento quilombola e a sociedade envolvente. Muito fre-
cravo passa a lutar de uma outra forma pela liberdade. Esse é o fenômeno quentemente, estes quilombos se formavam em torno de chácaras aboli-
de que nos ocupamos. cionistas, e seus líderes eram administradores perfeitamente inseridos na
Nosso objetivo, a seguir, estará concentrado na indicação, percebida sociedade e no sistema urbano, no qual via de regra mantinham rendosos
por vários historiadores, da emergência de um novo tipo de quilombo, negócios no comércio:". Desta maneira, enquanto os chefes dos quilorn-
bem distinto daquele que exemplificamos com o modelo de Palmares. bos-rornpimento negociavam com a sociedade imperial à maneira de che-
Aqui se encontram a história das resistências negras e a história do dis- fes de estado que pertenciam a um outro país incrustado no solo brasilei-
curso antiescravagista. Nosso modelo para tipificação do novo tipo de ro' já os chefes do "quilombos abolicionistas" consideravam-se parte des-
formação quilombola será o Ouilombo do Leblon, bem estudado pelo his- ta sociedade, e lutavam pela sua transformação. Na verdade, eles consti-
toriador Eduardo Silva (2003). tuíam o ponto nodal para o qual confluíam os projetos abolicionistas, os
O Ouilombo do Leblon, que adotou como símbolo de luta pela liber- anseios de setores populares antiescravagistas, os interesses de setores
dade a Camélia - uma flor originária do Oriente e que se adaptava mal ao econômicos que não viviam da escravidão, os intelectuais afinados com
clima tropical - estava perfeitamente articulado ao movimento abolicio-
nista do Rio de Janeiro, do mesmo modo que o Ouilombo do labaquara
152. Ouintino de Lacerda, chefe do quilombo do Tabajara, morreu rico; José de Seixas Magalhã-
articulava-se ao braço paulista do movimento. Ao mesmo tempo em que o
es, chefe do Ouilombo do Leblon, mantinha uma casa de fabricação e comércio de malas no Cen-
movimento abolicionista mais radical protegia os quilombos do Leblon e tro do Rio de Janeiro.

196 197
ideais modernizantes (fossem abolicionistas ou republicanos), o apoio de vo desta flor precisamente porque ela era rara, e com isto pôde demons;
sociedades secretas como a maçonaria e sociedades de ação-direta como trar uma grande capacidade de organização e de trabalho independente.
a dos caifazes, é claro, os próprios escravos diretamente interessados; no Além disto, as camélias produzidas pelo Ouilombo do Leblon eram obje-
fim do escravismo. A própria Princesa Isabel, que logo assinaria a Lei Au- tos simbólicos, e os abolicionistas passaram a utilizá-Ias na lapela, o que
rea, fazia parte da rede de relações do chefe do quilombo-abolicionista do os podia identificar em suas ações. A camélia em pouco tempo se trans-
Leblon, e recebia regularmente camélias que lá eram cultívadas'". formou em símbolo para todo o abolicionismo radical, e registra-se o fato
O projeto do "quilombo abolicionista", deste modo, era produto de de que a princesa Isabel, ao assinar a Lei Áurea em 1888, foi presenteada
uma construção social mais ampla, e representava uma contradição nas- com um buquê de camélias que teria vindo diretamente do Ouilombo do
cida no seio da própria sociedade escravista, e não uma diferença que se Leblon. Mais tarde, nas décadas recentes, o movimento negro adotaria a
opunha a esta sociedade à maneira de uma contrariedade, para já utilizar- camélia como símbolo da igualdade racial. A camélia, por assim dizer,
mos o nosso sistema conceitual. Se as sociedades geradas pelos "quilom- tornou-se símbolo na igualdade na diferença.
bos-rompimento" opunham-se à sociedade do Brasil-Império como uma Para pontuar uma conclusão importante relacionada a esta parte, sus-
nova Diferença, já os "quilombos abolicionistas" enunciavam-se como tentaremos que a abolição pôde extrair a singularidade de sua concretiza-
fortes focos de ação e resistência produzidos no interior mesmo da Socie- ção histórica da confluência de dois movimentos distintos: simultanea-
dade brasileira e claramente inseridos em uma luta contra as desigualda- mente certos setores da intelectualidade livre passaram a conceber o es-
des a serem superadas. Do mesmo modo que os "quilombos-rompimen- cravo não como diferença, mas sim como desigualdade radical imposta
to" estavam para a conquista da Libertação, "os quilombos abolicionis- ao africano e afrodescendente escravizado, e setores da própria escrava-
tas" estavam para a busca da Liberdade'". ria adotaram uma nova postura autolibertadora, passando a se conceber
A escolha da camélia como símbolo que logo se estendeu a todo o mo- como parte constituinte desta sociedade da qual poderiam exigir e lutar
vimento abolicionista radical é, aliás, um fator de especial-significação. pelo fim de uma desigualdade social, ao invés de se apalmeirar na distân-
Conforme demonstra Eduardo Silva em seus estudos sobre As Camélias cia de uma diferença intransponível. Esta é a chave, ao nosso ver, para a
do Leblon (2003), o quilombo do Leblon passou a se especializar no culti- compreensão da integração histórica do homem escravizado ao projeto
dos quilombos abolicionistas, das sociedades antiescravagistas, e de gru-
pos como o dos caifazes.
153. Em palestra proferida no IHP, Eduardo Silva propõe a ideia de que o Ouilombo do Leblon A história da luta pelo fim da escravidão fez-se, metaforicamente fa-
era um "quilombo simbólico" no sentido de que tinha como uma de suas principais funções a de
"produzir objetos simbólicos". "Era lá, exatamente, que Seixas [chefe do quilombo e proprietário lando, desta passagem da palmeira à camélia. Em seu desfecho, a liberda-
da chácara em torno da qual o Ouilombo do Leblon se organizava] cultivava as suas famosas ca- de terminou por ser cultivada a muitas mãos sobre este solo novo que re-
mélias, o símbolo por excelência do movimento abolicionista" (SILVA, 1999). presentava um encontro de culturas e que se tornaria particularmente ca-
154. Para uma distinção bastante precisa entre a noção de "libertação" e a ideia de "liberdade", no
sentido moderno que esta palavra passa a ter nas sociedades burguesas a partir da Era das Revolu-
racterístico da sociedade brasileira.
ções' são relevantes as considerações de Hannah Arendt em seu livro Da revolução, 1998: 24.
Enquanto a liberdade é conceituada em torno de uma opção política de vida, a libertação i~pli~a
meramente a ideia de ser livre da opressão (por exemplo, quando se livra um povo de uma tirama
intolerável, mas sem lhe modificar fundamentalmente as condições políticas). Assim, embora a li-
bertação possa ser a condição prévia da liberdade, não conduz necessariamente a ela. Esta cOt~-
preensão do conceito de "liberdade", naturalmente, deve ser pensada nos limites da Teoria Políti-
ca que se desenvolve no ocidente a partir de um pensamento bastante específico. "Liberdade",
como já fizemos notar em outro momento, não é um conceito universal.

198 199
cendentes mais diretos pouco se modificou em termos de desi
A • eSlgua ld a-
des econormcas na república então nascente'".

o xadrez das diferenças e


Por outro
.; lado, se.. estava extinta a desigualdade escrava ' a dif erença
n.egra era ja ~ma realtdade no Brasil e em outras nações de passado escra-
18
/

desigualdades no Brasil e na Africa vista. Esta diferença negra, obviamente, passaria a ter novos significados
a partir da abolição, inclusive para os próprios atores sociais a ela relacio-
da contemporaneidade nados.
Começaria ali, em um novo Brasil já republicano, a história da afirma-
ção contemporânea da "diferença negra" - esta que, se um dia havia sido
gestada na charneira do tráfico negreiro, a partir de então estaria indisso-
c~a~elmen~e ligada a uma dimensão de resistência contra opressões so-
CIaISe desigualdades impostas aos antigos escravos e seus descendentes
bem como contra o racismo nas suas formas modernas e preconceitos d~
toda ordem. Seria neste novo contexto que, depois de algumas tentativas
ainda não bem-sucedidas de criação de uma Federação dos Homens de
A abolição da escravatura por fim se concretizou, e esta não é uma
Cor, por volta de 1910, finalmente a partir de 1915 começam a se formar
história que iremos recontar em algumas poucas linhas. O que nos in-
no país as primeiras associações e clubes negros (IANNI, 1978: 77; ver
teressa no âmbito de nossas próximas considerações é ressaltar que,
ainda MOURA, 2004). Destes clubes e associações, muitos deles dotados
com o fim das diferenças e desigualdades escravas no Brasil, subsisti-
de objetivos inicialmente culturais, começam a surgir verdadeiras associa-
riam algumas diferenças sociais que afetariam os antigos libertos, de-
~ões negras fundadas a partir de objetivos sociais e políticos, com a clara
sassistidos pela ausência de um planejamento social que efetivamente
intenção de resistir contra a desigualdade que já passava a afetar os afro-
os integrasse à sociedade republicana. A abolição da escravatura no
descendentes como cidadãos da República Brasileira.
Brasil, contra as aspirações dos abolicionistas que tiveram a sensibili-
O Centro Cívico Palmares, fundado em 1926 e apontado por Octávio
dade de analisar o escravismo como sistema, acabava de cancelar por
lanni como um exemplo bastante significativo, mostra bem essa passa-
decreto a diferença escrava e de despejar em um novo sistema de desi-
gem de uma sociedade cultural para uma sociedade de cunho político que
gualdades todos os africanos e crioulos libertados - um sistema que,
passa a desempenhar um papel na defesa dos negros e de seus direitos
embora não mais previsse para os ex-escravos a incidência das antigas (IANNI, 1978: 77). Mas antes mesmo da fundação do Centro Cívico Pal-
diferenciações jurídicas, nem por isto lhes seria menos cruel. A Aboli- mares, j~ em 1925 Iayme de Aguiar e José Correia Leite - editores do jor-
ção, deste modo, se ensejou ou permitiu a desintegração jurídica da nal Clarim da Alvorada - já propunham a realização de um Congresso da
desigualdade per si, rigorosamente falando apenas terminou por assi-
nalar a passagem de um tipo de desigualdade a outro. A aliança entre
. . "A,o a r_lar-se arerebeldi
155 à ,,
eldia negra, utilizando-a para pressionar e desgastar o sistema, o abolicio-
as ações abolicionistas e a rebeldia escrava com vistas a romper um sis- lllsmo, Impoe -.lhe seus propnos")' ,
imites, "
enquanto ideologia nascida de interesses específicos que
depo~s da abolição o negro percebe não coincidirem exatamente com os seus, Transformadas as
tema simultaneamente diferenciador e desigualador encontrava aqui relaço e~ d e pro d uçao
- nao - se mo difiI rca o lugar ocupado pelo negro no processo produtivo, e desfei-
os seus limites, e de modo geral a posição da maior parte dos afrodes- tas as alianças seu comportamento divergente vai ser novamente relegado a mera questão policial"
(LIMA, 1981: 155),

201
200
Mocidade dos Homens de Cor (GOMES, 2005: 46). Embora a ideia não zada pelos valores da resistência e da liberdade. A partir desta diferença li-
prosperasse ainda, a mobilização iria ter a sua importância para a forma- vremente afirmada, fortalecer-se-ia definitivamente um movimento ne-
ção de uma massa crítica de ações que em breve tornaria possível o esta- gro, enfrentando contextos políticos diversos e por vezes resistindo às po-
belecimento de um movimento mais organizado. Em 1929, com uma mo- líticas governamentais e aos poderes dominantes.
bilização bem mais ampla, estimulada pelo mesmo jornal Clarim da Alvo- Começava a se entretecer neste processo uma história que não abor-
rada e novamente dirigida para a ideia da organização de um Congresso daremos neste momento. Seus desenvolvimentos, naturalmente, levam às
da Mocidade Negra no Brasil, já se mostrariam bem mais claros os sin- importantes conquistas sociais dos movimentos negros nos anos 1970/
tomas de que não tardaria a se efetivar a constituição de um movimento 1980 e, no Brasil, ao reconhecimento oficial, pelo governo, da existência
amplo em defesa da diferença negra socialmente organizada (GOMES, de uma discriminação racial e de um racismo que precisariam ser efeti-
2005: 48). vamente enfrentados através de políticas de valorização da população ne-
A Frente Negra Brasileira, surgida em 1931 e extinta em 1937 pela di- gra'". Mas retomemos ao momento pós-abolicionista, para verificar o
tadura de Vargas, mostrar-se-ia já como um modelo para as organizações que se dava então no contexto mundial e particularmente africano.
negras que logo se tornariam tão combativas, definindo-se claramente em Se as etnias negras de origem haviam sido embaralhadas no Novo
seus estatutos pela finalidade de "congregar, educar e orientar" os negros Mundo escravocrata a partir de novos critérios de divisão os mais diver-
de São Paulo (FERNANDES, 1959: 281-282) 156. O mesmo pode-se dizer sos, já a África, a mãe de todos, ainda estava por sofrer novos embara-
da Legião Negra, fundada em 1932. Eis aqui os começos vários de um lhamentos a partir da extinção definitiva do tráfico negreiro - oficial em
movimento organizado que não mais deixaria de ajudar a constituir a his- meados do século XIX, e efetiva nos fins deste mesmo século.
tória social do país. Desde o momento em que já não queriam ou não mais podiam sa-
Pela mesma época em que nascem e se fortalecem estas organizações quear da África os seus habitantes de "pele negra" para os altíssimos lu-
negras de cunho social e político, também surgem os primeiros jornais cros do tráfico negreiro, os interesses das potências coloniais europeias
negros, com finalidades de protesto social e objetivos de fomentar a cons- começaram a se voltar para a ocupação predatória de suas terras. Antes
ciência e a identidade negra (FERNANDES, 1965) Herdeiro simbóli-
157.
partilhado e controlado por companhias privadas, logo o continente afri-
co do Clarim da Alvorada, o jornal A Voz da Raça seria o porta-voz da Fe- cano passaria a ser partilhado e ocupado pelas principais nações europeias,
deração Negra Brasileira, e já no seu primeiro número traria estampado com base nos acordos de um congresso político realizado em Berlin entre
os estatutos daquela federação. novembro de 1884 e fevereiro de 1885. Tem-se início ali a partilha impe-
O fechamento da Federação Negra Brasileira em 1937 pela ditadura rialista da África, com novas consequências para as etnias africanas. Daí
do Estado Novo, e as dificuldades mais imediatas de ser firmada uma até 1914, em um rápido processo de expansão colonial, a África já esta-
nova organização - a União Negra Brasileira - não impediriam que se ria totalmente ocupada por Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica, Itália,
mantivesse perfeitamente em curso este fenômeno irreprimível: a con- Espanha, Portugal.
solidação política e social desta que estivemos considerando neste ensaio No novo xadrez nacional-colonial, e mais tarde no universo das na-
como a afirmação crescente de uma já antiga diferença, agora singulari- ções africanas independentes que, já com os processos de descoloniza-
ção, erguem-se por sob os escombros desta antiga herança política, as re-
156. Documentação relativa à Frente Negra Brasileira pode ser encontrada em Ouilombhoje,
1998. 158. Implantação do Grupo de Trabalho Interministerial, em novembro de 1995, com o objetivo
157. Ver, para um estudo pormenorizado: Bastide, 1973; Ferrara, 1973. . específico de formular estas políticas.

202 203
sistentes etnias africanas passaram a se comprimir, o que já seria uma ou- desta curiosa inversão de diáspora, obviamente, tiveram que dividir o ter-
tra história a se contar. Aí teremos lances e processos históricos os mais ritório do novo país - que passou a ser chamado de Libéria - com tribos
complexos, que incluem desde a emergência do pan-africanismo a partir africanas de diferentes etnias que lá há muito já habitavam, e desta convi-
de 1919, até o reafloramento das rivalidades e ódios tribais após o pro- vência forçada surgiram inevitáveis conflitos entre as tribos nativas e os
cesso de descolonização. Uma história, portanto, onde não deixam de se imigrantes recém-chegados, que logo passariam a governar o território
confrontar a identidade africana e as identidades africanas. da Libéria como se fossem uma espécie de elite.
A superposição e o confronto entre o xadrez das diferenças nacionais Marcada por começos pontuados de violências interétnicas, a Libé-
africanas e o novelo de diferenças étnicas negras não raro produziram si- ria - que havia sido definida como colônia americana em 1822 - iria se
tuações explosivas, mostrando-se aqui um dos mais nefastos resultados tornar independente em 1847 e constituir-se, desta maneira, na primeira
do processo de manipulação da realidade africana pelas autoridades dos república africana. Hoje, o país ainda enfrenta as guerras civis que decor-
países europeus e americanos - um processo que deve agora ser compre- rem de um projeto fundador ancorado na indiferenciação: no esqueci-
endido sob o signo da indiferença, para evocar mais uma vez o quadrado mento de que havia diferenças necessariamente relevantes a serem consi-
semiótico com o qual iniciamos este ensaio. A partilha europeia da África deradas no confronto entre os afrodescendentes libertados do cativeiro
moderna, por vezes dividindo-a em quadrantes que nada tinham a ver americano e as etnias locais da região liberiana.
com qualquer realidade cultural ou natural, é apenas um exemplo de pro- Inúmeros outros exemplos de processos indiferenciadores - que des-
cessos que envolvem a indiferenciação, aqui entendida como desprezo consideraram ou manipularam as diferenças milenares africanas em
pelas diferenças que seriam relevantes para os indivíduos e grupos sociais nome de projetos políticos do mundo moderno - poderiam ser citados. O
envolvidos. xadrez bipolarizado da Guerra Fria, por exemplo, lançou a Angola do pe-
Vejamos, a título ilustrativo, uma curiosa história que começara a se ríodo da descolonização em um contexto de lutas políticas onde o MPLA
desenrolar a partir da primeira metade do século XIX, e que constituirá (Movimento Popular de Libertação da Angola), a FNLA (Frente Nacio-
um peculiar exemplo em torno da questão da típica "indiferença" euro- nal para a Libertação da Angola), e posteriormente a Unita (União Na-
peia em relação ao trato com a realidade africana. Nossa história começa cional para a Independência Total de Angola) apresentar-se-ão como
em 1820, com a fundação nos Estados Unidos uma sociedade chamada movimentos guerrilheiros apoiados e financiados por interesses interna-
American Colonization Society, e que pretendia coordenar um inusitado cionais diversos - pelo bloco dos países comunistas (MPLA), pelo bloco
re-envio de escravos libertos dos EUA para a África. O objetivo do empre- da Otan com o apoio adicional da África do Sul, pela influência chinesa
endimento era permitir que os Estados Unidos se desembaraçassem de em um terceiro momento. Umbundos, bacongos, ovimbundos, e outras
ex-escravos (uma minoria ainda entre os afrodescendentes americanos, etnias do país não seriam neste contexto mais do que peças do xadrez po-
lítico de acordo com o ponto de vista destes novos poderes que se predis-
já que nos EUA a escravidão só seria abolida em 1860).
punham a se apossar da Angola independente. Deste modo, interesses e
Ao definir e adquirir da Inglaterra o território africano que receberia
ideologias indiferentes à milenar história africana continuariam a redefi-
os migrantes libertos (certa região da Serra Leoa, que até então estava
nir os destinos de populações africanas, e não seria diferente com Mo-
sob controle inglês), a "Sociedade Americana de Colonização" não pon-
çambique ou São Tomé e Príncipe, apenas para citar o caso das antigas
derou nas graves consequências que estariam por vir precisamente de colônias portuguesas na África.
mais um gesto clássico de indiferença (no caso, desconsideração das dife-
Algo mais deve ser dito a respeito dos processos de "indiferenciação",
renças étnicas africanas). Os ex-escravos americanos migrados através
agora já relativamente à constituição da noção de "negro" no Novo Mun-

204 205
do. Em cada uma das sociedades americanas - e de acordo com a sua his- um dos diversos países politicamente governados por uma preponderân-
tória, seu antigo modelo de colonização, e especificidades de sua compo- cia "branca".
sição populacional - a "cor negra" foi socialmente construída de uma Para melhor clarificar, partamos da ideia de que cada sociedade tende
maneira distinta no que se refere à definição daqueles que estariam pro- a definir, menos ou mais claramente, o que se considera habitualmente
priamente inseridos na "raça negra" ou na "raça branca". Já em meados como "negro", "branco", "mulato", ou outras categorias quaisquer (em-
do século XX, Arthur Ramos - médico e antropólogo que deu continuida- bora os diversos indivíduos de uma mesma sociedade também possam
de aos estudos de Nina Rodrigues sobre as origens étnicas e culturais da apresentar visões diferentes acerca de quem é "negro" ou "branco"). É
população brasileira - chamava atenção para um forte contraste entre as evidente que "negro" para os americanos não significa, em certos casos
sociedades brasileira e americana. Dizia ele que, no Brasil, qualquer em- ou mesmo na maior parte dos casos, o mesmo que "negro" para os brasi-
branquecimento tende a levar à categoria "mulato", e que, para além desta leiros. Alguém que no Brasil seja considerado "branco" em todos os am-
categoria intermediária, "o passing para branco é qualquer coisa facílima" bientes sociais que frequenta, ou na maior parte deles, poderá de modo
(RAMOS, 1962, voI. 3: 34). Enquanto isso, nos Estados Unidos se daria o geral ser considerado "negro" nos EUA"".
contrário: a partir do entendimento legal em diversos estados americanos, Seria útil exemplificar com o antigo sistema americano, fundado na
a "gota negra" puxa para que o indivíduo seja considerado negro, "mesmo conhecida One drop rule, que faz dos seus modos de percepção e registro
que ele tenha aparência fenotípica branca" (RAMOS, 1962: 34). social da cor um complexo que remete aos chamados "preconceitos de
As variações dentro de um sistema social da cor, é disto que se trata, origem". O sistema é baseado em dois parâmetros essenciais: a ideia de
também se dão historicamente - desenvolvem-se no tempo, no espaço e "bipolaridade racial" (oposição radical entre negros e brancos enquanto
na sociedade. Com isto, há um permanente transmudar das relações en- categorias sociais muito bem definidas), e a ideia de "hipodescendência"
tre os diversos atores sociais envolvidos, bem como novas interações com - uma certa concepção da descendência sociobiológica onde uma deter-
os diversos contextos sociais, políticos e econômicos que vão se suceden- minada "marca ancestral" (no caso, a pigmentação ou despigmentação)
do. Não teremos oportunidade neste ensaio para discutir e examinar esta estende-se para todos os descendentes posteriores, sem se esgotar nunca.
importante questão. De qualquer modo, e a partir de uma certa perspecti- A hipodescendência proposta neste modelo, popularmente conhecida
va' alguém poderia acrescentar que os dois sistemas sociais de construção como "regra de uma só gota", implica que os indivíduos de uma certa li-
de diferenças que se desenvolvem nos Estados Unidos e no Brasil são am- nhagem herdam, geração a geração e ad infinitum, a identidade social (na
bos "racistas" - no sentido de que se amparam ambos na ideia fundacio- verdade "racial") do progenitor menos prestigiado naquele sistema de
nal de que existem "raças" a serem bem definidas socialmente. Mas é ver- percepção social da cor. Em termos que não poderiam ser mais explícitos:
dade também que os movimentos negros organizados sustentam e se jus- a presença de um ancestral considerado negro marca para sempre a sua
tificam na ideia de que rejeitar hoje a ideia de uma "raça negra" - diante linha de descendência, independente da aparência que venham a ter os
das discriminações sociais reais e efetivas que afetam todo um grupo de vários indivíduos derivados daquela ancestralidade comum. Chama aten-
indivíduos percebido como "negros", e as quais se desenvolvem ao ampa- ção o fato bastante singular de que o sistema americano de hipodescen-
ro de governos controlados preponderantemente pelos "brancos" - seria
favorecer a continuidade destas mesmas discriminações, isto é, seria em-
preender uma espécie de "indiferenciação política" apesar das diferencia-
159. Para uma avaliação do contraste entre os sistemas de percepção da cor no Brasil e nos Esta-
ções sociais que efetivamente ocorrem a partir do menor acesso de opor- dos Unidos, ver o ensaio de Oracy Nogueira sobre "Preconceito Racial de Marca e Preconceito
tunidades àqueles que são socialmente percebidos como negros, em cada Racial de Origem" (1985).

206 207
dência, até os dias de hoje, somente foi empregado com relação à ances- uma construção social e uma construção histórica. Ou melhor, um entre-
tralidade africana (GILLlAM, 2000: 4). meado de muitas construções sociais e históricas, um verdadeiro novelo
Ao contrário deste modelo, no Brasil ter-se-ia a tendência à multipo- de lutas.
laridade, mesmo nos casos em que a sociedade organiza-se em critérios Seja nas Américas ou na África, a construção da ideia de "negro" tem,
relacionados à cor socialmente percebida. Surgem assim, já foi atrás como pudemos ver a partir de alguns exemplos discutidos neste ensaio ,
mencionado, referências a novas essências diferenciadoras a serem con- uma história, na verdade muitas histórias - e aqui poderemos falar meta-
sideradas' como o "mulato", ou ainda mais divisões como o "mulato es- oricamente em uma "construção social da cor". Compreendê-Ia é nos ha-
curo", o "mulato claro", ou mesmo estratégias discursivas que criam no- bilitarmos a enfrentar os desafios das sociedades modernas: o racismo, a
vas e ambíguas diferenças, como o "moreno". No limite, o espectro de segregação social, a discriminação. Hoje se fala, sobretudo nas socieda-
cores parece se oferecer à exposição social como um continuum de tona- des que se ergueram sobre as heranças de um passado escravista, em um
lidades que se situam intermediariamente entre o branco e o negro abso- "movimento negro", que luta por extirpar os preconceitos ainda existen-
lutos (se é que é possível se falar nestes termos), formando uma espécie tes nestes inícios de novo milênio. Neste novo contexto, identificar-se
de multivariado "espectro da mestiçagem":", como negro (afirmar esta diferença) faz parte de um gesto de libertação
Obviamente que os movimentos negros por vezes precisam se opor a (de luta contra a desigualdade). No passado, porém, a construção ideoló-
estes artifícios criadores de novas essências cromáticas, bem como, no gica da noção de "homem negro" atendeu a propósitos de dominação.
outro extremo, aos discursos que tendem a desenfatizar a cor, pois o que O paradoxo que hoje se vive nos meios científicos está no fato de que a
interessa ao movimento negro nestes casos é precisamente a bipolaridade ideia de "raça" tem sido contestada como conceito biológico e antropoló-
cromática reconstruída de maneira politizada, como forma de resistência, gico, mas ao mesmo tempo tem se afirmado como conceito político que dá
de enfrentamento de discriminações sociais diversas que são dirigidas sustento a inúmeros movimentos sociais que estão abrigados neste que, de
contra os afrodescendentes. Investir no espectro da multiplicidade de es- modo mais geral, chamamos habitualmente de movimento negro. A ideia
sências, sob esta perspectiva, parece-Ihes despolitizar a cor, empurrá-Ia de uma "raça negra", contestada nos níveis biológico e antropológico, afir-
novamente para os bastidores, tal como um dia se fez em relação às etnias ma-se contudo no nível sociológico, no sentido de uma sociologia que con-
originalmente africanas. sidera o ponto de vista dos próprios agentes sociais que se confrontam. A
Onde conduzirá este confronto de modelos, esta verdadeira "guerra raça referir-se-á aqui ao "emprego das diferenças fenotípicas como símbo-
de representações" que toma como campo de batalha a percepção (cons- los de distinções sociais", e os significados e categorias raciais assim obti-
trução) social da cor? Difícil dizer, e muito menos isto seria possível nos dos serão não mais construídos em termos biológicos, e sim sociais'". Na
limites deste ensaio que já se encontra neste momento próximo à sua par- sequência, "estes símbolos, significados e práticas materiais distinguem su-
te conclusiva, mas que acena para novas e futuras aberturas da questão. O jeitos dominantes e subordinados de acordo com suas categorizações
importante, neste momento, foi dar a perceber que a ideia de que existem raciais" (HANCHARD, 2001: 30)'62. A conceitualização sociológica da
indivíduos pertencentes a diferentes "raças", definidas por critérios de "raça", desta forma, parte no encalço destes usos e apropriações, e não
presença de maior ou menor pigmentação da pele, é simultaneamente
161. Isto significa que, neste caso, "as raças são tomadas nas acepções dadas a partir da perspecti-
va das próprias pessoas envolvidas na situação social concreta em que se encontram, situação esta
160. Para Peter Fry, o modelo multipolarizado - ao permitir que os indivíduos possam ser classifi- na qual os critérios biológicos são geralmente menos importantes, esquecidos, ou socialmente re-
cados de múltiplas maneiras - abre espaço para o que se pode chamar de "desracialização da iden- criados, segundo os componentes sociais da situação" (IANNI, 1978: 128).
tidade individual" (FRY. 1995/1996: 133). 162. Sobre a história do conceito de "raça", ver Banton, 1987; Delacampagne, 1985.

208 209
da sua (i)rrealidade biológica. Neste mundo pós-escravista, a identidade rias para benefício do acusador sobre a vítima, com a finalidade de justifi-
negra adquire um novo sentido, que nada deve às estratégias da coloniza- car privilégios ou a agressão do primeiro".
ção escravista, embaralhadora das antigas etnias africanas. Não foi outra senão esta a história que vimos nos primórdios da cons-
Existem naturalmente muitas questões aí envolvidas. Erige-se na con- trução social da cor negra no Brasil. Os comerciantes que se empenha-
temporaneidade do "trabalho livre" uma "identidade negra" não porque ram na montagem do Tráfico Atlântico a partir da expansão europeia e os
necessariamente os diversos grupos e indivíduos por ela abrigados sejam empreendedores que construíram empreendimentos agrícolas e minera-
cultural, étnica ou fisicamente similares - o que dificilmente poderia ser dores nas Américas com base na exploração do trabalho escravo de afri-
atestado a partir de uma verificação detalhada acerca da variedade huma- canos não fizeram nada mais que atribuir valor a estas diferenças - reais
na, cultural e física que se abriga sob os movimentos negros específicos e ou imaginárias - que julgavam ver ou queriam ver nas sociedades que
sob o movimento negro compreendido no seu sentido geral. O suporte pretendiam tomar como fornecedoras de grandes quantidades de escra-
para esta "identidade negra" que vem se fortalecendo nas décadas recen- vos para as suas empresas. Com isto, justificavam simultaneamente a sua
tes - para além de sua belíssima história em termos de realizações cultu- "agressão" e os "privilégios" que desejavam instituir nas sociedades es-
rais e da tradição de suas lutas - é o fato de que, passado um século, para cravistas por construir. O "racismo" se constrói junto com a noção de
muito além de suas diversidades internas, este imenso contingente huma- "raça". Mas, pior, o "racismo" pode sobreviver à dissolução científica da
no é frequentemente visto e tratado pelos poderes instituídos e dominan- noção de "raça". Este é um dos paradoxos das sociedades contemporâne-
tes' ainda que subliminarmente, como uma mesma coisa, como o não- as. Como enfrentá-Io? Não há certamente uma resposta única.
branco, o seu "outro", um contraponto com o qual se tem de conviver, o
receptáculo de preconceitos que por vezes não podem ser contidos mas
que também não devem ser explicitados. Assim, diante deste jogo de po-
deres e micropoderes que requerem a contrapartida de uma resistência, e
à parte uma rica diversidade interna a ser reconhecida, os diversos grupos
que se assumem como portadores da negritude não deixam de se reco-
nhecer nesse "eixo de equivalência comum", para utilizar uma expressão
de Laclau (1990).
Enfim, o nó górgio das ambivalências que se desenvolvem em torno
do constructo social de "raça" é o fato de que, se de um lado a raça não
existe de um ponto de vista biológico e antropológico, constituindo gros-
so modo "categorias narrativas'?", já o "racismo" é de outro lado uma
realidade efetiva. O racismo - há poucas definições tão contundentes
quanto esta que foi elaborada por Albert Memmi (1963: 186) - correspon-
de a uma "atribuição generalizada de valor a diferenças reais ou imaginá-

163. As categorias raciais são "categorias narrativas engendradas por processos históricos de di-
ferenciação" (SHOHAT & STAM, 2006: 46).

210 211
para além dos que já foram explorados no início deste ensaio. Proposita-
damente, será possível conservar aqui as ambiguidades da palavra indife-
rença para não depurá-Ia de suas riquezas internas e permitir que o es-
Políticas de afirmação: quema proposto se aplique funcionalmente a um número maior de casos.
19 desconstruindo a indiferença Por um lado, a noção de indiferença pode ser empregada com o sentido
de indiferenciação, de desconstrução da diferença que oprime, de elimi-
nação das discriminações com vistas a restabelecer a igualdade:". Da
mesma forma, poderemos ter a indiferenciação como estratégia de domi-
nação, de desconstrução de padrões de identidade indesejáveis para de-
pois subjugar e até escravizar!". Neste e em outros casos, a ideia de indife-
rença pode ser utilizada em sentido negativo, o de ignorar ou desconsi-
Discutiremos uma última questão, a respeito do paradoxo entre as ca-
derar diferenças significativas e relevantes, de ser "indiferente a algo"
tegorias do racismo real e das raças inexistentes. Quando esquematiza-
(por alienação ou por menosprezo).
mos, no início deste ensaio, as relações possíveis entre igualdade, desi-
gualdade' e diferença, ressaltamos que estes três termos podiam ser bem É muito interessante observar que a indiferença, particularmente com
compreendidos com o recurso a um "quadrado semiótico" perfeito, par- este último sentido de "desconsideração de diferenças" ou mesmo de
ticularmente no que se refere às suas relações de contrariedade, contradi- "desconsideração das desigualdades", também pode produzir injustiças
toriedade e complementaridade'". A quarta noção que completa o qua- sociais de tipos diversos. Não considerar as diferenças - isto é, agir com
drado é, como vimos, a de indiferença (por oposição contraditória em re- indiferença - pode implicar a reintrodução do problema da desigualdade
lação à de diferença). A indiferença (ou indiferenciação) corresponderia social em um outro nível. Apenas para mencionarmos um exemplo lateral
a ignorar, rediscutir ou desprezar as diferenças. antes de discutir a questão nuclear de que estaremos nos ocupando,
pode-se citar o caso das carteiras escolares que possuem em um dos lados
Igualdade __ - - - - - _. Diferença uma tábua para apoiar cadernos. Elas preveem habitualmente os alunos

Indiferença
x
- - - - - - - - • Desigualdade
destros, que constituem a maior parte da população; mas muito frequen-
temente existe pelo menos uma carteira canhota para cada vinte destras.
Naturalmente que, se não existisse um certo número de carteiras escola-
res para os alunos canhotos, eles teriam de enfrentar dificuldades adicio-
nais ou grandes incômodos para escrever. Neste caso, estariam sofrendo
(Quadrado Semiótico da Igualdade) uma desigualdade relativa ao acesso às possibilidades de executar ativida-

o quadrado semiótico completo com o vértice da indiferença permite 165. Para o caso da questão do escravismo no Brasil pré-Republicano, vimos que desconstruir a
enxergar a questão da desigualdade e diferença sob ângulos inusitados, diferença "escravo", de modo a trazer a discussão da escravidão de volta ao plano das desigualda-
des, foi a estratégia dos abolicionistas nas últimas décadas do Brasil Império.
166. Este foi o caso, conforme vimos, do próprio processo de implantação do tráfico negreiro: da
164. A operacionalização de quadrados semióticos para a compreensão do discurso, como já foi desconsideração das etnias africanas (diferenças tribais), através de um processo de indiferencia-
ção, passou-se à igualização de todos os africanos escravizados em uma nova categoria, a do "ne-
dito, é uma das bases da teoria semiótica proposta por Greimas e Courtés (GREIMAS, 1973;
gro" atrelado à ideia de "escravo".
1975; COURTÉS, 1979; GREIMAS & LANDOWSKI, 1986).

212 213
des relacionadas à escrita. Deste modo, e para este caso específico, uma de vestibulares em igualdade de condições para todos, o acesso ao Ensino
sala de aula que disponibilizasse carteiras rigorosamente iguais estaria Superior oferece-se em igual nível de facilidade ou dificuldade. Um ado-
tratando todos os alunos com indiferença, e gerando concomitantemente lescente que não recebeu educação adequada em sua infância, ou por de-
injustiça social. sigua~dad.~econômica o~ em decorrência de algum tipo de discriminação
Uma questão bastante atual - relacionada aos problemas que envol- anterior, ja entra em desigualdade de condições em relação ao adolescen-
vem a indiferença ou a manipulação da indiferença, e as resistências a es- te rico e socialmente bem situado que, com ele concorrerá para a mesma
tas - refere-se precisamente às chamadas "políticas de ação afirmativa", vaga na universidade. Não adianta dizer que, naquelas quatro horas de
mais recentes na história da luta contra o racismo e outras formas de des- elaboração de uma prova à época do exame vestibular, os dois estiveram
criminação. O que são as "políticas de afirmação" - a exemplo dos "siste- sujeitos às mesmas condições físicas, psicológicas, e que as inscrições
mas de cotas" que reservam vagas na educação superior para setores dis- para o vestibular foram gratuitas. Um dos adolescentes recebeu menos
criminados - senão uma forma de resistência contra a "indiscriminação", assistência educacional durante seu período de formação básica, e não
aqui tomada no sentido de desconsideração das diferenças e desigualda- por culpa sua, mas simplesmente em decorrência de uma desigualdade
des efetivas com vistas ao estabelecimento de uma "desigualdade com apa- econômica fundamental, e agora - em uma competição aparentemente
rência de igualdade"? igualadora - defrontam-se dois candidatos com passados bem diferencia-
dos. Este é um exemplo da "índiferenciação" no sentido negativo: a indi-
Tal como sintetiza Munanga (2003) 167, as "políticas de afirmação" vi-
ferenciação que ignora diferenças ou desigualdades efetivas com vistas
sam "oferecer aos grupos discriminados e excluídos um tratamento dife-
a confirmar uma situação de desigualdade, mas chamando-a hipocrita-
renciado para compensar as desvantagens devidas à sua situação de víti-
mente de "igualdade de oportunidades".
mas do racismo e de outras formas de discriminação; daí as terminologias
de "equal oportunity" policies, "ação afirmativa", "ação positiva", "discri- Ora, em países onde o racismo ultrapassa certos limites, como os
minação positiva" ou "políticas compensatórias". Parte-se do pressupos- Estados Unidos da América, o acesso ao mercado de trabalho , ao ensino
to de que dar a todos um tratamento aparentemente indiferenciado em de qualidade ou à mídia coloca-se como um problema difícil de ser en-
relação a aspectos como o acesso ao Ensino Superior ou ao mercado de frentado por negros, bem como por descendentes de migrantes latinos, e
trabalho implica, na verdade, favorecer certos grupos sociais em detri- outras minorias. Por isso surgiram pioneiramente em alguns destes paí-
mento de outros - isto porque não se compreende aqui, ou não se quer ses políticas governamentais que buscam favorecer a inclusão de afrodes-
compreender, que no universo de possibilidades de acesso ao ensino su- cendentes obrigando os empregadores a planificar suas medidas de con-
perior ou ao mercado de trabalho já existem na verdade certas diferenças tratação, as universidades a implantarem regimes de cotas, e as mídias a
prévias (ou desigualdades) a serem consideradas. reservarem em seus programas uma certa porcentagem de participação
às minorias (MUNANGA, 2003: 1).
Em sociedades com irregular distribuição de renda, e onde a desigual-
dade social esteja conectada com um ensino público e gratuito de baixa O debate em torno das "políticas de afirmação" é polêmico, e não há
qualidade em nível do ensino básico, seria uma balela dizer que, através intenção aqui de abalizar soluções menos ou mais favoráveis a um ou ou-
tro dos lados envolvidos nas discussões sobre os "regimes de cotas", "re-
servas de mercado para minorias", ou outras. Este debate é complexo, e
167. Por outro lado, os opositores da filosofia embutida nas políticas de ação afirmativa cha- tem seus fóruns apropriados, ao mesmo tempo em que as ações e tentati-
mam -nas depreciativamente de "discriminações reversas". Isto é bem sintomático: de fato a "ação vas de implantar "políticas de afirmação" têm desenhado nos tempos re-
afirmativa" busca estabelecer uma discriminação com vistas a combater uma discriminação ante-
rior, que está favorecendo uma desigualdade no presente.
centes uma história de avanços e recuos. Apenas introduzimos aqui o de-

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bate de modo a ilustrar a posição da indiferenciação no quadrado semió-
tico da igualdade e diferença, relacionando-a à questão histórica da cons-
trução social da cor. As "políticas de afirmação" correspondem, nesta
formulação teórica, a enfrentar afirmativamente a prática da indiferencia- Final: raça, identidade, consciência
çâo (desconsideração de diferenças e desigualdades anteriores), resul- 20 negra, palmeiras e camélias
tando que desta prática - e é a isto precisamente que as políticas de afir-
mação buscam combater - não se esconda sob a capa da igualdade a desi-
gualdade' como lobo em pele de cordeiro'". Com relação à sua posição
perante o problema da igualdade, a "ação afirmativa" busca substituir a
"igualdade de oportunidades" por uma "igualdade de resultados" (GUI- A administração de uma história que traz consigo heranças e sequelas
MARÃES, 1999: 152). A ação afirmativa corresponde, enfim, àquelas oriundas do escravismo colonial requer que se lide com inúmeras com-
ações de natureza imediata que visam corrigir ou atenuar os efeitos de plexidades. Essa história, naturalmente, não é de responsabilidade exclu-
uma história de longo termo. siva dos historiadores e cientistas sociais, mas também dos governantes e
políticos do presente, que têm a seu cargo a importante tarefa de adminis-
trar um legado de problemas sociais que tiveram a sua origem na Histó-
ria, mas que se estendem até o presente sob a forma de novas desigualda-
des sociais. Uma reflexão sobre os caminhos históricos e sociais através
dos quais as desigualdades transformam-se em diferenças, ou as diferen-
ças transformam-se em desigualdades, deve, por isto mesmo, ser pauta
de reflexão constante para historiadores e sociólogos. Refletir sobre estes
caminhos é de algum modo oferecer contribuições para a construção de
uma sociedade mais justa e menos desigual.
Fortalecer a formação e rcatualização de uma consciência negra, em
cada país que carrega na sua história um passado assinalado pelo escra-
vismo colonial, é certamente, uma estratégia importante em um mundo
onde o racismo, os preconceitos e a discriminação existem efetivamente.
Mas dar a perceber que também são construções sociais todas estas coi-
168. Para Hasenbalg, a aplicação de ações afirmativas visaria à igualdade no plano dos direitos
entre grupos, e cor responderia a tratamentos preferenciais concedidos a indivíduos pertencentes sas - racismo, preconceitos, discriminações, e mesmo a própria identida-
a certos grupos (de raça ou gênero) precisamente para compensar a discriminação no passado, de negra que reage contra - eis aqui uma tarefa igualmente importante
que termina ela mesma por ser instituidora de desigualdades no presente (HASENBALG &
SILVA: 1990). Ver ainda, sobre as ações afirmativas, o ensaio de A.S. Guimarães sobre "A desi- para as ciências humanas, e para a História em particular.
gualdade que anula a desigualdade: notas sobre a ação afirmativa no Brasil" (1999), atentando É possível sonhar que um dia, em uma talvez remota sociedade no
para a definição bastante precisa que dá ao novo conceito: "a antiga noção de ação afirmativa tem,
até os dias de hoje, inspirado decisões de cortes americanas, conservando o sentido de reparação futuro, as diferenças de cor de pele produzirão formas de perceber os
por uma injustiça passada. A ação afirmativa moderna se refere a um programa de políticas públi- seres humanos tão simples como hoje se percebem as diferenças de al-
cas ordenado pelo Executivo ou pelo Legislativo, ou implementado p,?r empresas privadas, para
garantir a ascensão de minorias étnicas, raciais e sexuais" (GUIMARAES, 1999: 154).
tura, de espessura do corpo, de cor dos olhos, e tantos outros índices.

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Estas formas de perceber não corresponderão a uma dimensão social, construir o homem, é também tarefa importante dissolvê-lo'". Sob o ho-
porque nesta época possível ou imaginária não existirão preconceitos ou mem, categoria que as sociedades, os filósofos e a história reconstroem a
discriminações. De igual maneira, pode-se imaginar um tempo imagi- todo o momento e infinitas vezes, o que existe como realidade mais irre-
nário em que a identidade negra continue associada basicamente a as- dutível são os homens, na singularidade de cada um e na imensa variedade
pectos culturais extremamente significativos e relevantes, mas sem que se de todos, na sua sempre renovada capacidade criativa de se afirmarem
mostre associada a leituras sociais demarcadoras. Mas como se chega a como diferenças, na sua notável habilidade de construírem e desconstruí-
isto? Seria talvez possível propor que as duas coisas caminhem juntas, de rem a si mesmos em seu permanente caminhar na direção de uma vida
maneira contra ponteada - o fortalecimento de uma consciência negra cada vez mais plena e menos desigual, embora não necessariamente me-
para lutar contra os problemas sociais que existem efetivamente nos dias nos diferente.
de hoje, e a compreensão, através de alguns dos campos de reflexão das
ciências humanas, de que mesmo essa consciência negra é uma constru-
ção sociocultural. A ideia de que um dia se concebeu a existência de raças
dentro da espécie humana provavelmente parecerá muito estranha e pri- Pudemos refletir neste ensaio sobre a história de conceitos complexos e
mitiva em um futuro no qual se tenha realizado algo bem mais próximo da ambíguos, como o de raça negra (ou de qualquer tipo de "raça", que não a
justiça social, pois no seu aspecto mais irredutível o que existe é uma só humana, que é a única que efetivamente existe). "Raça" é conceito que hoje
raça: a raça humana. vem sendo fortemente questionado em termos de validade científica - em
vista das conquistas da biogenética no âmbito da investigação do genoma
Até lá, será preciso talvez lidar com duas maneiras de pensar, sem
humano, das descobertas da paleoarqueologia acerca dos ancestrais únicos
que uma afete necessariamente os campos de ação da outra. Resistir a
de todos os homens modernos (um homem e uma mulher africanos) e dos
uma cena de preconceito, punindo-se com justiça aqueles que exercem
desenvolvimentos da reflexão antropológica. Contudo, o conceito subsiste
indevidamente uma violência simbólica ou uma discrimirtação social
em função da sua poderosa força sociológica, pois cumpriu ou tem cum-
concreta, tal como naquela cena que imaginamos na "Apresentação"
prido em certo momento da história - pós-colonialista e pós-escravista - o
deste ensaio, é uma necessidade e um dever cívico. Organizar associa-
papel de agregar, em torno de ideais de coesão e de luta, grupos sociais que
ções e movimentos para lutar contra estas e outras discriminações so-
são ou um dia foram oprimidos socialmente, submetidos a desigualdades
ciais, e para concretizar um programa de ações sociais com vistas a
econômicas, educacionais e políticas, impedidos de se afirmarem como di-
combater e dissolver desigualdades sociais em um nível mais estrutu-
ferenças com plena liberdade e determinação.
rante, sintoniza-se com esta mesma necessidade. Mas manter em curso
uma atenta reflexão sobre as construções sociais que vão se dando no Se a ideia de existência de "raças", e particularmente de uma "raça
decorrer da história, para o mal ou para o bem, sobre os deslocamentos negra", teve um de seus começos mais sombrios na pena de cientistas e
que se têm operado entre as desigualdades e diferenças, sobre a fluidez e teólogos que instituíram a concepção racista para dar apoio a modos de
mutabilidade das categorias de pensamento que presidem à nossa per- exploração cuja mais cruel variação foi o escravismo colonial, por outro
cepção social do mundo, é outra necessidade. lado, em outro momento, a história da noção de "raça negra" iluminou-se
e tornou-se extremamente bela através de capítulos que incluem a resis-
A destruição não é a única opção quando se tem em vista uma cons-
trução a ser enfrentada, pois também existe a possibilidade da descons-
169. Claude Lévi-Strauss, no último capítulo de Pensamento selvagem, registra a seguinte frase:
trução. Cada tipo de ação tem certamente seu lugar, sua eficácia, sua ne- "O objetivo último das ciências humanas não é construir o homem, mas dissolvê-Io" (LÉVI-
cessidade. Se a tarefa de certas linhas de reflexão nas ciências humanas é STRAUSS, 1989: 275).

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tência contra o escravismo, a participação dos próprios oprimidos na natureza, biologizado, segregado na sua própria origem; e houve mesmo
abolição da desigualdade que os oprimia, a organização de movimentos os que um dia buscaram nesta noção a possibilidade de conceber uma di-
negros no mundo moderno, a luta contra preconceitos e discriminação, a versidade de raças para hierarquizá-las, antagonizá-las, submetê-Ias a
conquista oficial de reconhecimento político, afora as riquíssimas realiza- restrições e privilégios, ou contestar - com o conjunto formado por todas
ções culturais que se concretizaram em algumas das mais belas criações as raças - a irredutível ideia de raça humana.
artísticas, musicais, lúdicas e religiosas que algum dia puderam e poderão Algo também pode ser dito acerca do importante conceito de "cons-
ser desfrutadas pela humanidade. ciência negra", que também se fortaleceu no decorrer de uma história que
De todo modo, um novo ato desta história parece se anunciar. Se o tem seus primórdios nos movimentos de resistência e insurreição escrava,
conceito de raça negra subsiste em função de sua poderosa força so- e que se consolida efetivamente a partir do desenvolvimento de movimen-
ciológica, enfrenta a ambiguidade gerada pelo fato de que a noção de tos negros no período pós-escravista e pós-colonial, já no século xx. So-
"raça" foi uma criação científica que está sendo dissolvida pela própria bre esta importante noção, é oportuno sustentar que consciência negra
ciência. Em contrapartida, uma outra noção apresenta potenciais para não é a autoconsciência de que se é negro, enquanto unidade biológica;
se fortalecer cada vez mais: a de "identidade negra". Ao contrário de é a autoconsciência de que se é negro, enquanto unidade sociológica. Cons-
"raça" - noção pseudocientífica forjada ideologicamente - "identidade" ciência de que se é construído como negro pelos poderes institucionais,
é uma noção francamente sociocultural. Seu uso nas ciências humanas pelas formas de sociabilidade, pelos modos de perceber o mundo huma-
tem permitido aprimorar a compreensão das mais diversas formações no, pelas práticas culturais. E é a consciência de que, nesta construção
sociais e culturais, desde os tempos antigos. Seu uso social e político social, o indivíduo considerado negro, autoidentificado como negro ou
fortalece-se no mundo moderno. A ciência nada tem ou pode opor ao não, pode estar sujeito a desigualdades.
seu emprego, porque esse conceito não foi construído em torno de pre- Consciência negra é construir uma identidade negra em um mundo
tensas bases biológicas, mas sim a partir de perspectivas assumidamente dentro do qual o racismo - outra construção - existe de modo explícito
socioculturais. Um grupo se identifica, encontra e cultiva elementos de ou encoberto. É construir a identidade negra como diferença, e exigir que
coesão e identidade, e trabalha essa identidade com a sua própria histó- esta diferença seja percebida sem desigualdade. É dotar essa identidade
ria, vivida e contada por aqueles que participam ou integram o grupo. de força política, de valor social, de pujança cultural. Para fazer isto, não é
Eis aí como se formam as identidades. necessário desconhecer que essa identidade negra é - como de resto to-
A mundialização assiste à multiplicação de identidades, e oferece po- das as identidades - uma construção social, que ela não foi dada pela na-
derosos meios de comunicação para fortalecê-Ias e enriquecê-Ias, para tureza, mas sim elaborada pela história.
promover intercâmbios entre os que dela participam, para torná-Ias cla- Ativar a consciência negra é dotar a História de um sentido. Mas esta
ras e reconhecíveis para todos. A identidade negra é uma das mais fortes capacidade de dotar a História de um sentido não é incompatível com o
identidades. Este conceito, pode-se imaginar, tenderá a substituir um ou- sonho de que um dia a identidade negra não precisará mais ser social-
tro que já se movimenta sobre patamares por demais ambíguos. A noção mente afirmada, porque já não existirá o racismo. Então, a identidade ne-
de "identidade" traz dentro de si mesma a compreensão de que as identi- gra só precisará ser expressa culturalmente, porque certamente não dei-
dades singularizadas devem ser cultivadas, preservadas, transformadas, xará de seguir contribuindo com algumas das mais belas criações huma-
historiadas, comemoradas, estetizadas, de que mais fazem parte do mun- nas no campo das artes, da música, da visualidade, do comportamento.
do da cultura do que do mundo da natureza. A noção de "raça", ao con- Ser negro, então, continuará a comportar um traço cultural coletivo, de
trário, carrega dentro de si a noção de algo eterno, imutável, dado pela máxima importância. Também prosseguirá sendo um aspecto relevante

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da individualidade. Mas não será algo que estará clamando por uma res- das. Eram exóticas flores traz idas do Oriente e que foram cultivadas por
posta social contra desigualdades ou discriminações, porque já não have- negros aquilombados nos solos do Novo Mundo. A liberdade respira
rá racismo. por todas as suas pétalas - inclusive a liberdade de se recriarem em uma
A ideia de "raça negra", enfim, possivelmente tenderá a ceder espaço terra que Ihes terá parecido estranha. Liberdade construída sobre o desa-
à ideia de "identidade negra" como expressão agregadora. As identidades fio de se familiarizarem com esta terra, de torná-Ia sua. De a transforma-
integram-se em uma dimensão planetária; as raças instituem um mundo rem em uma outra terra.
dividido. As primeiras interagem reciprocamente, a partir da própria ins- Ambas, palmeira e camélia, são complementares. São faces de um
tituição cultural e histórica da diferença; as segundas se isolam, enquista- mesmo movimento. Foi preciso que uma se transfigurasse na outra, que
das na ideia das diferenças incriadas. se entremeassem a altivez da palmeira e a flexível sedução destas peque-
Isto nos conduz a uma questão final, que de alguma maneira pudemos nas flores. Um pouco de palmeira, um pouco de camélia foram ingredien-
vislumbrar neste ensaio: palmeiras ou camélias? Qual será a planta do fu- tes necessários para que se construísse uma nova cor.
turo? A palmeira foi o símbolo da resistência acantonada; a camélia tor-
nou-se o símbolo da resistência integrada ao todo. As palmeiras nasciam
na distância elevada da Serra da Barriga; as camélias eram cultivadas nos
jardins e chácaras da própria cidade, por homens que se empenhavam na
luta pela liberdade. Podiam ser carregadas na lapela; podiam ser reconhe-
cidas à distância pelos que fugiam da opressão; podiam habitar canteiros
de pessoas de todos os tons de pele, e adornar os vasos de indivíduos co-
muns e de princesas.
A palmeira, na sua altivez essencial, retira-se da sociedade:' dá -nos o
testemunho de uma nobreza que não se mistura e conta -nos a história de
uma forma de resistência que, é importante reconhecer, foi certamente ne-
cessária. A camélia, com sua sedução, brota como contradição do próprio
seio da sociedade que irá transformar, faz da circunstância incomum de ter
sido trazida de terras distantes para solos brasileiros a sua própria força.
A palmeira, já a encontraram pronta. Tornou-se o imponente símbolo
da conquista da libertação. Espalhadas no segredo da Serra da Barriga, as
palmeiras se transfiguravam em fortificações naturais e simbólicas'" para
proteger todos os negros que lutavam pelo direito de serem livres, e que
morreram por isto, transformando-se, como Zumbi, em símbolos eterna-
mente vivos da consciência negra. As camélias tiveram que ser construí-

170. Em seu estudo sobre Palmares, Flávio Gomes discute a hipótese de que Palmares teria termi-
nado por oferecer proteção imaginária para a manutenção de outras formações quilombolas, por
vezes móveis, que nada tinham a ver com a sociedade palmarina (GOMES, 1005: 64).

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Indice remissivo
VERG ER, Pierre (1987). Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o
Golfo de Benin e a Baía de Todos os Santos dos séculos XVII a XiX. São
Paulo: Corrupio.
VILELA, Magno (1997). Uma questão de igualdade - Antônio Vieira e a
escravidão negra na Bahia do Século XVII. Rio de Janeiro: Relume Du- abolição da escravatura 59, 158 Áurea (lei) t 67, 182, 198s
abolição do tráfico 183 Aurora Fluminense (jornal) 133
mará.
abolicionismo t 56-169
Abolicionismo, O (Joaquim Nabuco) Bacongos (etnia) 205
169 Bambara (etnia) 62
abolicionismo radical 165 Bantos (povos) 55, 57
abolicionismo / emancipacionismo 146 Benguelas (etnia do tráfico) 81, 119
Abolicionista, O (jornal) 164 Benin (região) 62
abolicionistas ingleses 68, 153 Benin (arte) 58
ação de liberdade 139- 141 berberes 57
África (construção imaginária) 45 bipolaridade racial 208
África (geografia e diversidade) 54-56 boçais 83, 92
África (mapa étnico) 56 Bosquímanos 60
África Negra 57 bula papal 43
Agricultura nacional (Rebouças) 165 Bula Romanous Pontifex (1454) 43
Alcorão 73
alforria 128-143, 158s Cabinda (porto de) 81
American Colonization Society 148, Cabindas (etnia do tráfico) 81,97
204 caboverdianos (escravos) 84
Angola 205 cabra 93
angolanos 81, 84 Cáfila 70
anúncios de escravos 105 caifazes 162, 181, 198
aquilombamento 187 camélias 196, 198, 209
Ardas (etnia) 82 candomblé 58, 65
Ashanti 85 captura de escravos 69

244 245
cativos/escravos t 25 diferenças (definição) 19s Ewes (etnia) 79, 89, 119 História das Índias Ocidentais (João
Discriminação positiva 214 expansão europeia 75 de Laet) 84
cemitérios de escravos 1 t 6
diversidade tribal africana 60, 66 História dos feitos recentemente
Christie (caso) 158, 160
fala do trono (Dom Pedro 11) 156, 181
praticados no Brasil (Gaspar
cidadania 147 Baléus) 83
Cidade do Rio (jornal) 63 Egba (etnia) 87 Fantis (etnia) 67
hotentotes 60
circularidade Bahia-África 87 egípcios 57 Federação dos Homens de Cor 201
humanização do escravo I 61
Clarim da Alvorada (jornal) 201 Elmines (etnia) 67 Federação Negra Brasileira 202
Hutus (etnia) 43
classificação racial 76 emancipacionismo 146-155 Feijó (lei anti-tráfico) 159, 161

clubes abolicionistas t 64 escambo 77 Fons (etnia) 89, 119


Ibos (etnia) 62
clubes de lavoura t 64 escravidão bíblica 73s Frente Nacional para a Libertação de
identidade negra 221 s
escravidão doméstica 137 Angola (FNLA) 205
congado 121 idioma de mediação 79s
escravidão infantil 34 Frente Negra Brasileira 202
Congo (região) 77
igreja e escravidão 173
escravidão moderna 33 fuga (de escravos) 142, 158
Congo (rei) 121
imigração 160
escravidão por dívida 35 Fulas, peuls (etnia) 108-110, 127
Congos (etnia do tráfico) 81, 83
imigração subsidiada 160
Congresso da Mocidade Negra no escravidão romana / escravidão
imposto territorial 166
Brasil 202 ateniense 139 galés perpétuas 142
indiferença 50, 204, 212s
Consciência Negra 220- 221 escravidão urbana 137 Gazeta da Tarde (jornal) 163
escravismo antigo 35, 139 inferiorização racial 75
Conselho Ultramarino 82 Gazeta de Notícias (jornal) 163, 179
escravismo islâmico 73S·· ingênuos 149, 158, 177
contrabando 159 Gemidos africanos ... (Thomas
escravo legal x escravo natural 35 Clarkson) 67, 70 irmandades 115 - 120
Convenção sobre a Escravidão (Liga
escravo-mercadoria 32, 35 Gênesis 74 Irmandades de Homens Negros 120s
das Nações) 32
Ghana (império) 62 Irmandades de Homens Pardos 103
Costa da Mina (região) 85 Estado Novo 201
Guerra de Captura 68 Islârnico (comércio de escravos) 73
Costa do Marfim (região) 58, 86 Etiópia 55, 59
Guerra do Paraguai 157, 195 Islâmicos (povos, etnias) 47, 57, 61,
Costa do Ouro (região) 47, 79, 85 etnias da diáspora 86, 92s
63
crioulo 92, 95-97 etnias de mediação 86 guerras intertribais (na África) 66

culturas mediadoras 86s etnias de origem 90 Guiné (região) 58, 62, 84


[abaquara (quilombo) 162, 196s
etnias do tráfico 90
[ejes (etnia) 65, 82, 85, 89, 119
Daomé (região) 63, 86 etnias islamizadas 64 Haiti (revolta escrava) 132s, 184

Decreto Régio 182 Eubás (etnia) 89 Hamitas 55, 107


Ketus (etnia) 89
desigualdade (definição) 20 Europa (noção de) 41 Haúças (etnia) 89, 109
Europa (representação da) 41 s hilota 31-33
desigualdade liberta 149
desumanizaçâo do escravo 77 Eusébio de Queiroz (lei suprimindo o hipodescendência 207

Diário de Pernambuco (jornal) 105 tráfico) 18 1

246 247 . _. -_ ..-._


..
pagãos 73s raça negra 206, 219s
ladinos 92 Memória sobre a necessidade de
Palmares (quilombo) 189-195 raças (no censo) 27
abolir a introdução de escravos
latifundiário 166
africanos no Brasil (Maciel da PaImares (centro cívico) 201 raças (tentativas de classificação)
Leblon (Ouilombo do) 196, 199 65-77
Costa) 152-154 pardo 27s
Legião Negra 202 racismo 168, 206, 21Os
mestiçagem 101 parentesco 33s
Lei 7. 716 (contra a discriminação racismo (nos Estados Unidos) 206
mestiço 103 Partido Republicano Paulista 196
racial e social) 8, 10
Meteco 139 partilha imperialista da África 203 reforma agrária 166s
Lei contra a mestiçagem (Virgínia)
Minas (etnia) 85 Petrópolis (quilombo de) 190 reforma educacional 164
102
Moçambique (país) 205 Peuls (etnia) 126s Representação contra a escravidão
Lembas (etnia) 61
Moçambique (região cultural) 59 pigmeus 61 (José Bonifácio) 136, 146-153,
liberdade (definição) 29-33, 124 158
Mocambo do Pará (quilombo) 188 pirataria 134
liberdade / escravidão 31-33, 124 Revolta Haitiana 133
monopólio da terra 165 pobreza / riqueza 25
liberdade / libertação 198
Moret (lei espanhola) 160 políticas de ação afirmativa 214-216
Libéria 205 São Domingos (escravidão em) 78
morte social (conceito de) 125 portugueses 152
liberto 92, 138s São Thomé (região) 84
Movimento Negro 186, 192, 208 positivistas 166
língua mina 79 São Thomé e Príncipe (país) 205
Movimento Popular de Libertação de preço (do escravo) 131, 135s
Liga das Nações 32 Saraiva-Cotegipe (Lei dos
Angola (MPLA) 205 preconceito racial 21 Os
línguas africanas 54 Sexagenários) 177
mulato 27s, 92s, 99-111, 208 Projeto Genoma 26s
Livro das evidências (publicado pelo segregação racial 102
Multipolaridade (em termos.de cor Província de São Paulo, A (jornal) 167
Parlamento Inglês) 67 semitas (povos) 55
da pele) 208 '.
Serra Leoa (região) 84, 204
Madagascar 55 Ouackers 68
Nabuco de Araújo (lei) 133 sexualização da escrava 104
Mahis (etnia) 85, 89, 119s quadrado semiótico da igualdade 50,
Nação (sentido africano) 96 sistema de cotas 215
212
Malês (etnia) 86 Sociedade Brasileira contra a
Nagôs 58, 85-89 Ouartamento (sistema de) 129
Malês (revoltas) 47,64,133,159 Escravidão 164
navios negreiros 66, 70s quilombo 142, 162, 190- 199
Mali (reino de) 62 Sociedade contra o Tráfico de
Neanderthais 55 Ouilombo abolicionista 162 , 187 ,
Mandingas (etnia) 62 Africanos 155
Nsundis (etnia) 81, 90 190-198
Marcas étnicas 62s Sociedade para a Abolição do
Nuers (etnia) 96 Ouilombo-rompimento 162, 187 Comércio de Escravos 68
Mbundo (etnia) 81, 90
Mbwela (etnia) 78,90 Songoi (reino de) 62
ócio senhorial 150s , raça (conceito sociológico) 209, 219 sudaneses 65, 67
Memória analítica acerca do comércio
one drop rule 51, 207 , raça (contestação suicídio escravo 142
de escravos (Burlamaque) 155
Ovimbundos (etnia) 205 biológico/ antropológica do
Memória sobre a escravatura (José conceito) 209
Eloy Pessoa da Silva) 154-157 Oyó (etnia) 87

249
74R
Tegrias ("correrias") 68s Umbundos (etnia) 205
Tekes (etnia) 81, 91 União Nacional pela Independência
Total de Angola (Unita) 205
,
teorias racistas 75s, 167s
trabalho compulsório 30s União Negra Brasileira 202 Indice onomástico
trabalho escravo (no mundo Uolof (etnia) 62
moderno) 80, 84s
trabalho livre 30s Valongos 116
tráfico atlântico 73-75 Vargas (período) 202 Aguiar, J. 201 Feijó, D.A. (padre) 132
tráfico de escravos 35, 73s Ventre Livre (lei) 126,133,136,
Alencar, J. 142,154,167 Fernando José (dom) 47
tráfico de escravos (no norte da 157, 173s
Andrada e Silva, J.B. 101, 146s, Figueiras, A. 167
África) 73s Viagem pitoresca e histórica ao Brasil 150s, 152 Freire, F.B. 191
tráfico interno 159 (Debret) 64, 85
Antonil 82, 84, 92, 99s Freyre, G. 46-47, 61, 82, 87, 104s,
tráfico islâmico 73
Viagens pelos distritos interiores da
Aristóteles 35-36,38 108-109, 178
África (Mungo Park) 67
tráfico negreiro 67 Azevedo, A. 104-106, 138, 161
Vocabulário geral da língua mina
Tratado do Engenho de Santana Gama, L. 104
(Antônio da Costa Peixoto) 79
(1789) 95
Voz da Raça (jornal) 202 Barléus, G. 83s, 189, 191 Ganga-Zumba 194
triângulo semiótico da igualdade 26
Beaurepaire-Rohan, H.P.C. 166 Gobineau (conde) 100
Tutela benéfica (argumento
Yebus 79 Blaer, J. 189, 191
escravocrata) 154
Yoruba (cultura) 64 Brandão Júnior 167 Isabel (princesa) 198
Tutsis (etnia) 43
Brazil Étienne, I. (padre) 64

Zaire (rio do) 81 Bünting, H. 41 Kehl, R. 22

Zulus (etnia) 62 Burlamaque, L.C. 155


João VI (dom) 59
Cam 38,74 José Maurício (padre) 102
Caminha, A. 16 t
Canaã 74, t 71 Laet, J. 84
Carlos Magno 42, t 91 Leite, J.C. 201
Castro Alves 161 Lemos, M. 167
Clarkson, T. 67-71,75,151,177 Lineu 76, 1 t 2
Couty, L. 168 Loretto Couto, D. J. 191

D'Assíer, A. 47 Macedo, J .Á. 104


..Debret, J.B. 64, 77, 85, 93s, 98, 101 Maciel da Costa, J.S. 153-155, 166-167

250 251
"\
'

I' :
....•
Pinheiro Machado, J.G. 161
BRASil, CIDADES
Maomé 73
Alternativas paro a crise urbana
Martius 58, 121 Platão 37
Ermínia Maricato
Mesquita, J.E.L. 102
Mungo Park 67, 70 Ramos 47, 56, 58, 63s, 85s, 192, 206 É possível comprometer a gestão urbana com a prioridade aos
Rebouças, A. 103, 165s, 166, 177 territorialmente excluídos? Como implementar a pertkipoçío social no
planejamento da cidade? Este livro lan~a luzes sobres estas e outras
Nabuco, J. 103, 138s, 146,148, Ribeiro, J. 161
questões, relacionando o pensamento crítico a novas práticas urbanísticas
157s, 163s, 166-167, 169s, Rocha Pita, S. 191 circunscritas na esfera do planejamento, gestão e controle urbanístico.
170-175, 176s, 177-181 Romero, S. 81
Nassau, M. 83
Nicolau V 43 Silva, ,.E.P. 155 A CIDADE DO PENSAMENTO ÚNICO
Nina Rodrigues 28, 46-47, 58,64, Sólon 35, 44 Desmanchando consensos
87,108,191-192,206 Otília Arantes, Carlos Vainer, Ermínia Maricoto
Southey, R. 67
Noé 74, 112
Souza, L.P. 47
Com o título, os autores sugerem que o regime da economia real e
Spix58,121 simbólica da cidade é parte constitutiva deste novo senso comum, ao
Oliveira Martins, J.P. 168
qual certamente não se pode thcmar pensamento, e já nõo é mais
Ouseley, W. 123 ideologia, na a(epçõo clássica do termo, que remonta à Era
Vaia Monteiro, L. 110 .,
Liberal-Burguesa do velho capitalismo.
Veiga, E. 133
Patrocínio, J. 134, 163s, 164, 170,
Veloso de Oliveira 155
177 -179, 181
Paulo III (papa) 43 O CAMPO DA HISTÓRIA
Wilberforce, W. 68, 179 '1-"''';':
,
Pedro II (dom) 156, 181, 195 Especialidades e abordagens t.,

Peixoto, A.C. 79 José O'Assunçõo Barros


Xenofonte 37
Peixoto de Brito 154 j
Zumbi 192, 194s, 197,222 Traz um panoramo dos campos historiográficos em que se organiza a 'I'
Pereira Barreto 116, 167
História hoje, esdarece em linguagem objetiva modalidades como Mi(ro- -e:
História, História Cultural, História Políti(a, História Econômica, História ~u""
Demográfica, História das Mentalidades, História Quantitativa e outras. !'

lt .I:":.'~
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1'''
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O PROJETO DE PESQUISA EM HISTÓRIA


Da esmlha do temo ao quadro teórico ;":> . O'l'ROJETO .
José O'Assunção Barros::, :j~DE PESQ~ISA [
, .... {ret HISTORIA .; ~
'liI!'~" . •
In~rumento esse~cial para. que o ~istoria~or t~nha em sua ~ente os
caminhos que serao percorndos. Onenta nao so na elaboraçao de um ; I
~~~
. . ....
J :~=.:t'..J1
~ _ projeto de pesquisa, mas também o desenvolvimento da pesquisa em .
111fd História. Assim, se pode compreender como se faz História hoje, através
252 ~]l:' de um raciocínio lógico p<!lItodoemdi~ers9s ~ocumel]to$
,,',':.:, ,''', ''.,.,'; ,..y. ; " .',"'."" .. _.", ,.., ,./., .., ,

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