Conto Canto Do Maruim

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Helveti Mazal

O Canto do
Maruim

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Apresentação

Todo o enredo deste trabalho se passa no período da


Segunda Guerra Mundial, ou seja, nos anos 40, com seus costumes, suas
gírias e todo o cenário da época em que Natal passou por uma revolução
cultural e econômica de natureza irreversível, demonstrando um panorama
da periferia da cidade, vivido pelo bairro que, na época, não passava do que
hoje podemos conceituar como favela. É, pois, um canto que conta histórias
do canto de um mangue, berço e companheiro dos moradores, assim como
o inseto maruim, hospedeiro das águas salgadas do Potengi.

Para tornar esta crônica mais fiel à época a que se reporta e


aos costumes da gíria popular, utilizamos as expressões usadas naquela
época. Assim, mostramos neste trabalho o bairro das Rocas, em Natal,
reduto pesqueiro de gente humilde, seu reflexo com a diferença social
imposta na cidade, na época de guerra.

E porque Canto do Maruim? Como todos nós sabemos, o


maruim não tem canto e se tem, não percebemos, mas nas Rocas tem o
Canto do Mangue, o encanto das sereias e os assédios do maruim. Afinal,
quem nas Rocas não teve o convívio com os maruins, que inclusive é nome
de favela nas redondezas, em homenagem àqueles dípteros diminutos, com
as asas em geral escuras e manchadas. São popularmente conhecidos, no
Brasil, como maruins e mosquitos pólvora, em espanhol, como "jejénes", no
Caribe e Austrália, como "sandflies" e, em outros locais de língua inglesa,
como "biting midges".

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As Rocas

É janeiro em Natal, é verão e vêm as férias, apesar da


vertente impossibilidade de não ter o regozijo de usufruir férias como os
demais mortais, em virtude dos muitos compromissos a que de atrevo ter.
Sempre procuro adaptar as adversidades e ter alguns dias de veraneio,
afinal, mereço.

Neste ano, eu aluguei uma casa na Praia da Redinha em


Natal e desta feita encontrei uma no local ideal para aproveitar a paisagem
pitoresca do desembocar do Rio Potengi com o oceano, a Redinha Velha,
longe das badalações dos sons de verão e das agitações dos visitantes.

Da varanda da antiga casa, testemunha da evolução da


cidade, devidamente instalado na rede cearense especialmente comprada
para abrigar o meu quase cinqüentenário corpo, resolvi adaptar uma
mesinha de madeira para a leitura diária de algum jornal ou livro que me
acompanha ou para apoiar algumas utilidades, como lápis, papel e um
toca−discos para as horas de deleite, ao ouvir desde boleros até as musicas
populares. Ali sou um rei, longe dos protocolos, da sala-de-aula, dos ternos
e gravatas que reluto tanto em usar, da hipocrisia do dia−a−dia que temos
que enfrentar nesta faina da vida.

De longe, observo a paisagem do outro lado da cidade, a


região militar de artilharia, meu antigo Regimento de Obuses e,
continuando a visão, detalho−me no porto de Natal, seus navios e as
manobras dos práticos, a conduzir pela Boca da Barra as embarcações que
vêm, que vão. Mais adiante, observo as portas ainda abertas dos gloriosos
clubes Náutico Pontegi e Sport (meu velho Sport Club onde ensaiei algumas
remadas nas suas velhas esquifes), e mais distante, o porto da Pedra do
Rosário, berço da padroeira da cidade...

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Mais pra cá, tenho sempre a relembrar, no pequeno cais da
Redinha, ainda a manter−se, as velhas lanchas e barcos a vela, a
transportar para cá passageiros do cais da Tavares de Lyra. O som dos
motores improvisados me transporta aos antigos passeios de infância, feitos
mirabolantes de toda criança do meu tempo, somente entrecortados pelos
barulhos dos motores das balsas que, num constante vai−e−vem,
atravessam as águas lotadas de turistas e bugres para a exploração das
dunas de Jacumã e outras delícias tropicais.

O espelho da maré, com suas marolas evidencia que o Rio


Potengi desemboca a alguns quilômetros dali, e a sua denominação fluvial
ali somente sobrevive nas visões românticas dos poetas locais. Sua flora é
tipicamente marinha.

Mas eu não estou aqui para contestar, estou para aproveitar


o momento.

Entre a cochilar, ler e ouvir músicas tenho o meu ócio justo,


o que faço com maior dedicação. É paz que às vezes entedia e somente
alivia com as conversas vazias e rodas de anedotas contadas pelos amigos
que nos visitam.

E por falar em amigos visitantes, não posso deixar de


lembrar o amigo de conversas fiadas, o velho seu Gaspar, um nativo típico
da praia da Redinha, talvez um dos mais antigos, homem de conversa firme
de nordestino, alma de marujo e corpo bronzeado do sol que o abriga há
mais de setenta anos, enfim, uma figura com quem somente temos a
aprender, um privilégio para poucos.

Sempre ao chegar, daqui escuto no portão o seu bater de


palmas anunciando a sua visita, sempre um pouco tímida no início, mas
que, aos poucos, depois que observa a sua chegada bem recepcionada,
abre o sorriso franco e solta as suas histórias. Depois de anunciado, mesmo
recebendo a advertência de que não precisa de mais cerimônias, ele
pergunta se está atrapalhando algum estudo do doutor, o que retruco de
imediato:

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— Ora, estava esperando o amigo! Não estou aqui para
estudar e sim para me divertir e aprender com os amigos.

Depois de ouvir seu Gaspar comentar do custo de vida, das


dificuldades do aposentado, das decepções com os governantes, vejo que a
conversa vai ficando um pouco sisuda pela realidade que nos acossa e a
saída é relembrar os tempos idos, as borboletas azuis que não voltam
mais...

Pergunto a seu Gaspar se sempre morou naquela praia, e de


imediato me diz que nasceu no bairro das Rocas em Natal, sua família era
de Macau, havia migrado para cá atrás de melhoras de vidas.

Ah, a Rocas – respondo eu − tem muitas histórias, não é


mesmo seu Gaspar?

Ele, de imediato:

— A Roca de hoje não é a mesma, muita coisa mudou!

Curioso, pergunto:

— Me conta como era, isso me interessa muito, já que sou


fascinado por História.

O velho se comporta como um mestre, acomoda−se na


cadeira, respira fundo, e com o prelúdio de uma gargalhada, começa a
contar:

— Ta vendo, doutor, o Canto do Mangue, vizinho ao Cais do


Porto, o grande mercado de peixe de Natal, da Colônia Z−4?

Lógico, respondo, ali onde todas as tardes se acotovelam


homens, mulheres e crianças de todos os recantos natalenses, para
adquirirem o precioso pescado dos nossos “verdes mares”. São peixes de
toda a qualidade. É a tainha, o charéu, a cavala, a arabaiana, a coíba, o
melro, a bicuda, o serigado.

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Completa o amigo, mais descontraído:

— Ali vive gente de todo o tipo, pescadores, marítimos,


operários, homens e mulheres que trabalham de sol a sol, que dão um duro
na vida difícil, simples empregados, profissionais diversos, artesãos
variados, pessoas de bem, bons pais e mães de família, toda uma mocidade
− crianças, rapazes e mocinhas, que estudam em escolas públicas e
particulares, que fazem o ginásio e cursos diversos em estabelecimentos
natalenses, misturados com arruaceiros, bêbados, mulheres da vida,
malandros, pedintes e marginais, residindo em casas de toda espécie, de
tijolo, de taipa, de madeira, de palha.

É desse jeito o Canto do Mangue, igualmente, todo o bairro


das rocas. De gente de todas as categorias, sem preconceitos, sem
distinções sociais, sem esnobismos. Livre, popular. Sem freio, sem cabresto
e sem chocalho. É uma espécie de cidade, livre de nossa própria cidade,
onde todos vivem, espontânea e simplesmente, a vida que Deus lhes deu...

Apesar da Roca ainda hoje não ter perdido o seu aspecto


primitivo, da época da temporada da Segunda Guerra Mundial, não havia lá,
como atualmente, ruas pavimentadas, quase todo o mangue aterrado e
drenado, razoáveis edifícios, praças arborizadas, servida por linhas
regulares de ônibus e pontos de táxis. Havia somente uma estrada de
barro, vinda da Ribeira, que circulava o bairro pelo meio do mangue, indo
até as duas belas torres do radiofarol, passando pelo aeroporto da Rampa,
encostado ao Canto do Mangue. O mais eram pequenas casas que,
começando pela beira do rio, subiam desengonçadas pelas dunas, formando
ruas tortuosas, becos arenosos e vielas apertadas.

As Rocas constitui todo aquele casario de ruas e becos


desarrumados que, se pela frente, naquele tempo, nas marés enchentes do
Potengi, alagava todo o mangue defronte a Rua São João, a primeira rua do
bairro, onde os meninos brincavam em “baiteiras” e canoas, por trás, as
casas subiam as dunas e iam em direção do Areal (atual bairro de Santos
Reis).

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O bairro tem sua origem constituída por marítimos e
operários que se instalaram próximos às primeiras indústrias da cidade, ao
Porto de Natal e à Estrada de Ferro, sempre periférica à região de maior
desenvolvimento da cidade, o bairro da Ribeira.

É perante esta gente proletária, vibrante, alegre e destemida,


onde a faca peixeira e o cacete são constantes na vida de seus moradores,
como igualmente são o peixe, a cachaça, o violão, as cantigas e o amor,
que se passa à nossa história utilizando as mesmas gírias e vocabulário
popular daquela época, assim como seus personagens.

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RUA DA FLORESTA

Ali, bem no centro do Canto do Mangue, surge pela


originalidade do nome, a chamada Rua da Floresta, sem possuir qualquer
árvore ou planta que justifique a denominação, tortuosa e estreita que,
somente em certos pontos pode dá passagem a um carro, e, enquanto, em
outros pedaços, ela se estende e se bifurca, em pequenos quarteirões
irregulares, onde em algumas partes, mal dá para uma pessoa passar, onde
a gente se atrapalha, sem saber aonde chegar, quando aqui e ali, topa num
beco sem saída, perdendo−se no seu emaranhado irregular e sem
continuidade numa verdadeira floresta de casas simples de taipa, algumas
de chão de barro batido, onde moram humildes pescadores.

E naquele rendilhado de moradas, cheirando a maresia,


pertinho do rio, tendo nas cercas dos quintais, redes de pescarias
estendidas e mastros de embarcações em frente das casas, ao comprido da
rua morava Modesto com sua família: sua mulher, Dorinha, um morenaço
reforçada, ainda boa; sua filha Beatriz, uma moreninha bonitinha de 16
anos e Jorginho, o caçula da família, um meninote de 10 anos, muito vivo,
sarará, atentado como seiscentos diabos. A família residia em uma pequena
casa, de uma porta e uma janela, com a frente de tijolo e o restante de
taipa, coberta de telhas, imprensada entre outras semelhantes.

Naquela manhã de segunda−feira, movimentada por ser dia


de feira na Roca, o prato do dia ali no Canto do Mangue, era o sucedido
entre o filho de seu Germano, dono da venda na esquina da Rua da
Floresta, com Conceição, a filha de Gracinha da Ribeira, mulherona valente,
morenona, de uma beleza selvagem, largada do marido e que, em
disposição, não se trocava por muitos homens, residente ali próximo, onde
passava a rodagem.

Dizem que o casal de namorados tinha ido passear no


domingo à noite e até àquela hora de segunda−feira ainda não tinha
voltado. Todo mundo falava:

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― o namorado só podia ter “feito mal” (deflorado) a
menina... e a levado ninguém sabia pra onde.

Na casa de Modesto e em outras casas da vizinhança, não se


conversava outra coisa, todas as mulheres e moças condenavam a ruindade
do rapaz e a facilidade da moça.

E a mulher de Modesto dizia pras vizinhas que conversavam


em sua porta:

― Com filha minha num há de suceder isto. Só se for


castigo... porque não boto, namorado dentro de casa e nem solto Beatriz na
rua, com qualquer cabra safado...

Ao que uma vizinha de Dorinha contestou:

― Deixa de besteira, mulher. Quando tem de suceder, num


tem quem dê jeito. Essas meninas, hoje em dia, cegam a gente. Inventam
sempre uma coisa pra tapear as mães! ...

E assim as mulheres iam batendo com a língua na vida


alheia, reprovando aquele caso que servia de exemplo pra todas as meninas
que estavam se pondo moças, na redondeza.

Naquelas alturas dos acontecimentos, faziam−se comentários


os mais desencontrados. Uns diziam que o rapaz tinha-se “adiantado”
demais no namoro, chegando a seduzir a filha de Gracinha da Ribeira.
Outros diziam que não. A menina, sim, que era culpada de tudo, porque
chamava sempre o rapaz, pra dentro de casa, na ausência da mãe que
passava metade do dia fora de casa, pois era verdureira no Mercado da
Cidade Alta, ocasião então que o namorado “pintava o sete”, pois, apesar
de ser menor, a menina era enxerida, safada, doída por homem... E o pior
era que ninguém sabia pra onde eles tinham ido se meter, se estava
mesmo na cidade ou se tinham viajado pra outro lugar.

O certo é que Gracinha vendo que sua filha e o namorado


não apareciam até àquela hora do sol já alto de segunda-feira botou uma

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peixeira por baixo da saía e depois de tomar umas “chamadas” na intenção
dos namorados fujões, disse afinal pra os fregueses da bodega onde bebia:

— Hoje eu dou com minha sem vergonha, seja lá onde for...


Ou Seu Germano tem de achar o moleque escroto dele, de qualquer jeito.
Das duas, uma...

O pessoal que estava na quitanda conhecia muito bem


Gracinha e sabia que ela era mulher de sobra pra topar na faca qualquer
macho e muito menos o frangote do namorado de sua filha.

Saindo do boteco, onde tinha enchido a cara de cachaça,


Gracinha largou-se no meio do povão da feira, disposta a achar a filha,
fosse lá onde fosse...

A feira estava boa naquele dia, apesar de ser o restante da


feira do Alecrim que é no sábado, havia ainda quase de tudo ali na Roca:
como farinha de Brejinho, feijão, todas as espécies de cereais, mantas de
carne de gado, de porco, de bode, de carneiro − fresca e seca — lingüiça,
toucinho, peixe fresco e seco, garajaus com avoador seco, cordas de
caranguejo, goiamum, siri, camarão, ostra, lagosta, mariscos diversos,
legumes, verduras, frutas, rapadura, doces, bolos, grudes de Extremoz,
queijo de manteiga e de coalho, refrescos, gulodices de toda a espécie,
goma fresca, bolacha, massas diversas, soda, alfenim, sequilho, carimâ,
raízes, mangaios, ovos, alem de roupas, artigos feitos de todos os usos, de
pano e de couro, para homens, mulheres e crianças e ainda redes de dormir
de cores vistosas, móveis de madeira, bacias de zinco e utensílios de
cozinha, panelas-de-barro, jarras, fôrmas, pratos, garajaus com galinha,
pato, guine, marreco, ganso, alem de funcionarem muitas barracas de
almoço e café, onde os fregueses se sentam em bancos de madeira junto às
mesas debaixo das barracas, sob a fumaça dos fogões e fogareiros das
cozinhas improvisadas, localizadas ali mesmo, encostadas as mesas das
refeições. Vem dali um cheiro bom de comida gostosa, de carne torrada, de
feijoada, de sarapatel de porco, de cuscuz de milho, de café, etc.

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Um arsenal popular de produtos e comidas, pra ser vendido,
comprado, conversado e gritado, ao mesmo tempo em que se ouvem
mendigos implorando esmolas, cegos cantando seus pedidos, cantadores
entoando seus romances, ao som de violas e rabecas, enquanto meninos
gritam alto, doendo os ouvidos da gente oferecendo:

— Saaaaco de papeeeel!...

Toda uma universidade popular representada por pessoas,


produtos, comidas, bebidas, palavras, pregões, gestos, ditados populares.
Uma multidão inteira andando, intrometendo-se de barraca em barraca,
gesticulando, apregoando, discutindo, praguejando, convivendo num
entremeado, vez por outra, pelos relinchos de cavalos e burros, que
trouxeram cargas pra feira.

Aquela gente, mesmo que não tenha nada pra comprar ou


vender, dificilmente perde uma feira, pela oportunidade que encontra,
espremendo−se naquele mundo de gente e barracas, passar o dia inteiro,
batendo com a língua no mundo, discutindo mil assuntos, informando e se
informando das novidades, falando da vida alheia, comendo, mascando
fumo e bebendo por todo o dia. É o dia de feira, quase como uma festa
semanal do bairro, um dia de movimento em quase todos os ramos:
mercearias, lojas, armazéns, pequenas oficinas, casas de jogos, escambos,
bilhares, sinucas, barbearias, cafés, bares, barracas, padarias, quiosques,
peixadas e caranguejadas, enfim todo o mercado informal.

Até nos prostíbulos (casas de recursos ou pensões de


raparigas), ou mesmo nos cortiços mais imundos de “mulheres da vida”, é
dia bom de negócio, de se fazer dinheiro, e festa.

Por entre o zuadeiro e a poeira de todo aquele povo que se


mexe entre as barracas dos vendilhões, sob um sol escaldante,

Sente−se (entra pelas ventas da gente adentro) o fartum


resumido: de cereais, de suor de gente e de animal, de sujo, de peixe seco,
de açúcar bruto, de cachaça e de fumo brejeiro.

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São cinco horas da tarde e o sol pende por entre as águas do
Rio Potengi a tarde chegou. O resto do dia passou sem maiores novidades
ali na Roca, a não ser a feira que permaneceu animada até o fim da tarde,
hora em que os feirantes, vão desarmando as barracas, e arrumando seus
produtos e cangaços que sobraram, pra regressarem aos seus lares, muitas
vezes localizados em pontos distantes da Cidade, como Alecrim,
Lagoa−Sêca, Quintas, Carrasco e em lugarejos próximos a Natal.

Assim, até ao escurecer; Gracinha não voltara da busca que


iniciara desde à manhã, em procura de sua filha.

Lá pras tantas, já pelas sete horas da noite, mais ou menos.


Gracinha regressava a Rocas, sem ter ao menos, a menor noticia de sua
filha. Batera em muitos pontos da cidade, se informando de diversas
pessoas conhecidas e nenhuma noticia tivera do casal de namorados.

E, ao em vez de ir pra casa, Gracinha que já vinha “triscada”,


achou pouco ainda e foi inventando de tomar umas “lapadas”, numa
“venda” próxima, fazendo “tira−gosto” com avoador assado. E à medida
que ia bebendo, ia fazendo barulho (zoada), falando de sua filha e do
namorado, e ameaçando Seu Germano, caso sua filha não aparecesse.

O dono da bodega estava com vontade de tirar da cabeça de


Gracinha, de brigar com seu Germano, mas não se atreveu a se meter no
assunto, com medo da mulher que estava “puxando fogo”. Limitando—se
apenas a dizer:

— Gracinha! Por que você não dá parte à policia? Vá ao


Delegado...

— Quero saber lá de polícia... Primeiro tem seu Germano

— De da conta do cachorro do filho dele... Responde


Gracinha.

Nisto vai entrando na venda, um doidelo ali da Roca, o


Janjão, rapazola maluco de nascença e que, quando bebia, fazia doidices do

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diabo, havendo gente malvada, contudo, que dava cachaça a ele, somente
pra achar graça, pra ver Janjão fazer artes, como: levantar a saia das
mulheres, andar com o membro (pênis) pra fora das calças, dizer “nomes
feios” (palavrões), jogar pedras nos meninos que o “aperreavam”
(apelidavam) e outras coisas mais. Vez pôr outra era preso e apanhava,
mas não melhorava. Quando bebia ficava doidão com fartura. Janjão foi
entrando na venda, e encontrando ali Gracinha foi dizendo:

— Gracinha! Joca de seu Germano “comeu” sua filha Ceição?

Gracinha que estava tomando umas “cipoadas” (tragos) da


branquinha, no balcão da venda, não contou historia. Jogou a cachaça do
copo que estava bebendo, na cara de Janjão, e avançou pra ele com uma
garrafa na mão, dizendo:

— Cala boca, doido felá da puta!...

Aí o dono da venda e o pessoal que ali estava, não deixaram


Gracinha arrebentar a garrafa na cabeça de Janjão, que saiu correndo,
gritando com a aguardente ardendo nos olhos.

Passado o episódio de Janjão, Gracinha acabou de comer o


peixe com cachaça, pagou e disse:

— Agora, deixa-me ver seu Germano, pra saber do moleque


do filho dele...

Saindo da venda largou-se pra casa de Seu Germano, que


tinha bodega e moradia tudo junto, na esquina da Rua da Floresta, do lado
que botava pra rodagem.

Chegando perto da venda, Gracinha rondou pelos dois lados,


indo até o oitão onde botavam janelas da casa de morada, mas encontrou
tudo fechado, bateu na porta da venda e gritou pelo dono; porém foi
mesmo que nada. Não apareceu ninguém.

Da vizinhança disseram:

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— Gracinha, num tem ninguém em casa, não. Saiu todo
mundo, derna da noitinha...

— Ah! Velho frouxo danado! Saiu com medo de se encontrar


comigo... Resmungou Gracinha.

Uma outra vizinha informou:

— Ele disse que foi ver se dava com Joca. O velho parecia
preocupado. Foi com ele, à mulher e as duas filhas moças.

Gracinha ainda ficou ameaçando se pegasse o dono da


bodega e o filho dele.

A noite foi avançando. Foi esfriando e foi ficando tarde.

Gracinha findou indo embora, sempre falando, com raiva por


não ter encontrado Seu Germano, pois tinha vindo com uma “sede danada
nele.”

Saindo pela Rua da Floresta, Gracinha andou zanzando pelo


caminho, procurando se entreter em qualquer coisa, com tanto que não
fosse pra casa, por ter perdido de se vingar, de brigar com quem quer que
fosse.

Ao chegar numa venda, em cujo interior funcionava uma


peixada, localizada bem no pé da ladeira, defronte aos degraus que levam
ao alto do morro onde fica a Igreja da Sagrada Família, Gracinha avistou o
Miro, molecão desordeiro com quem já tivera um chamego em Macau, o
qual ao vê−la gritou contente:

— Gracinha, minha bichinha! Venha cá dá aqui um beijinho


pra seu machinho!...

Foi quando Gracinha partiu pra cima, agarrando−se no


pescoço dele, pedindo conforte.

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Miro vinha todo lorde, encasimirado, endinheirado, tomando
uma cervejada, desde à tardinha quando chegara de Macau, pagando
bebida pra todo mundo. E logo foi puxando Gracinha pra se sentar com ele,
em uma mesa cheia de garrafas de cervejas e uísque, juntamente com um
seu companheiro, um moreno todo bem vestido, com pinta de embarcadiço,
vindo também de Macau.

Miro já estava bêbado (melado), conversando muito, com um


“corruchiado” que só arrotava grandeza. E Gracinha já bêbada também, se
agarrava ao seu antigo xodó, feliz por ver Miro todo rico, o qual bem podia
soltar−lhe nota grande.

Após jantarem peixe cozido, com pirão mexido, arrematado


com um gostoso caldo de peixe, com tempero verde e molho de pimenta,
como somente na Roca sabiam fazer, Gracinha e seus dois amigos,
tomaram um automóvel (carro de praça) e rumaram em direção a uma
“boate” de mulheres, a “River Plate”, recentemente inaugurada no Tirol,
onde só freqüentava americano e cujos preços eram simplesmente
absurdos. Mas pra Miro, não havia preços altos. O cabra era uma lordeza
que si se vendo. Além do tropical bacana em que estava metido, calçava
uns sapatões de borracha e estava todo faiscando! Anelão de brilhante no
dedo, uma pérola na gravata, um relógio Mido de ouro no pulso e no cinto,
por baixo do paletó, um niquelado 32, Smith−Wessom, com cabo de
madrepérola, de fazer inveja. O moleque estava todo apontado, cheirando a
americano, pois só fumava “Pall−Mall”, juntamente com seu companheiro,
apesar da modéstia do vestido de sua companheira.

Após uns goles de uísque ao som de uma orquestra que


tocava sambas gostosos, blues dolente, swings eletrizantes e rumbas
voluptuosas, apareceu depois de meia−noite, na entrada do salão do
cabaré, um amigo de Miro que, fazendo um sinal com a mão, conversou
baixo com ele, no corredor da casa, soltando qualquer coisa importante pra
ele, que pagou logo a conta, levantando−se em seguida e foi dizendo a
Gracinha que tinha de viajar pra resolver um negócio urgente, naquele
instante, tendo dado dez contos de reis a ela, providenciando um carro de

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praça pra deixá−la nas Rocas, prometendo voltar, dentro de poucos dias,
pra fazer umas brincadeiras...

Aquela rápida levantada de acampamento de Miro e seus


camaradas foi motivada pela notícia de que, a policia aduaneira de Macau
vinha nos seus rastros, em virtude de grande muamba de uísque e
maconha, que eles conseguiram atravessar a “barreira” do grande porto
salineiro potiguar e se espalhar através do Estado.

Terça−feira, dia seguinte, tudo ali amanheceu acalmo.


Gracinha acordara com uma ressaca danada... Chegara a notícia de que sua
filha e o namorado tinham fugido para Nova Cruz, onde estavam morando
em casa de pessoa amiga, sabendo−se que pretendiam “casar no padre”.

Gracinha não pensava mais em procurar a filha, pois agora a


atenção dela estava para Miro, onde estava o seu futuro – era o que
imaginava. Deixava a sua filha “sem−vergonha” dar com os “burros nágua”,
com o filho de seu Germano – que levassem o diabo que ela não iria mais
se importar.

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A VIZINHANÇA

Na casa de Modesto, todavia, a coisa não estava muito


aprumada, porque naqueles dias, iria ser despedido do seu trabalho que era
numa prensa de algodão na Ribeira, ali perto do Porto. Também seriam
dispensados muitos outros operários, por não haver mais possibilidade de
exportação com os transportes marítimos paralisados, com a guerra que
trouxera torpedeamento dos navios brasileiros pelos submarinos alemães
que “infestavam” as águas do Atlântico.

A situação tornava−se penosa para todos, não havia nem ao


menos via terrestre regular, ligando o Nordeste ao Sul do País. A estrada
Rio−Bahia ainda estava sob prejetos, era um heroísmo pretender−se
alcançar, sem rodovias regulares, uma ligação norte−sul por terra.

Somente as unidades militares que, por força de virem se


aquartelar em Natal, enfrentavam, como operação de guerra, a dura missão
de saírem da região Carioca para os Estados do Nordeste Oriental.

O comércio sofria, pois, todas essas necessidades e a


população também. E Modesto e muitos trabalhadores de diversas firmas,
começavam a sentir as conseqüências do desaparecimento da navegação
marítima nas águas potiguares.

Na Rua da Floresta, sinuosa e estreita, arenosa como era,


compunha o retrato da pobreza do povo da Roca que, embora sofrendo
privações, vivia de cara alegre, humorado, cheio de vivacidade “Pobrete,
mas alegrete” – como dizia o ditado.

Ali o pessoal criava os filhos soltos na rua. Os meninos viviam


mais na rua ou na casa dos outros (casa alheia), do que nas suas próprias
casas, enquanto suas mães achavam muito interessante em estarem nas
casas da vizinhança (era a forma de socialização), abelhudando tudo e
falando da vida alheia. É o tipo do passatempo que não custa dinheiro e

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entretém pra valer. É muito gostoso comentar o modo de viver dos outros,
principalmente quando há casos extras pra fuxicar.

Nas horas frescas do entardecer, às vezes muitas mulheres


catam as cabeças de seus filhos, a procura de piolhos e lêndeas, sentadas
nas portas de suas casas, enquanto os homens − por outro lado − ou estão
no mar pescando ou, se estão em terra, ajeitam as redes e utensílios de
pesca, ou dormem, ou bebem, jogam ou conversam com os conhecidos,
enquanto esperam a chegada dos botes de pescaria, pois o peixe constitui o
alimento natural da maioria daquele povo humilde.

Modesto sendo indenizado do seu trabalho na prensa de


algodão. Alguns contos de reis recebeu de indenização que não chegaram
pra nada, pois não dava pra se defender com um negócio mais ou menos. O
dinheiro só deu mesmo pra botar um boteco de madeira, bem na entrada
do Canto do Mangue. O boteco negociava com café, cachaça, bebidas, peixe
frito, tira−gostos diversos, tapioca, frutas e mais coisas de preferência do
povo, Quem tomava conta do botequim era o próprio Modesto e, na sua
ausência, sua mulher Dorinha ou sua filha Beatriz. A princípio o negócio ia
dando algum resultado. Toda família trabalhava durante o dia. Sempre
pingava do apurado. Depois o Modesto, por não ter obrigação de horário de
entrada e saída do trabalho, diariamente, na hora do almoço, deixava a
vendinha e ia tomar aperitivos e após o almoço não voltava logo ao
negócio, por estar com a cabeça pesada de bebida, e então dava pra
dormir. Assim ia minguando o negocio com a falta do dono, sem se falar
nos fiados do pessoal da redondeza que demorava a pagar.

Uma coisa que concorria pra dificultar a família de tomar


conta da barraca na ausência de Modesto, era um cortiço que acabava de se
organizar ali bem encostado, a ponto da mulher e a filha do proprietário não
suportarem, em certas horas, aquela vizinhança turbulenta e imoral.

O cortiço era uma casa grande de taipa, com muitos quartos,


que abrigava gente de toda espécie: meretrizes, pederastas, vagabundos,
marginais e outros elementos.

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Pela manhã o cortiço permanecia calmo, com seus inquilinos
repousando. E à tarde, quando sol começava a esfriar, entrando pela noite,
surgiam barulhos, de vez em quando os mais desencontrados, músicas de
boleros na voz de Anísio Silva e Chico Alves.

Às vezes era uma mulher da vida que brigava com sua colega
que lhe queria tomar o amante... E começava a confusão:

— Puta sem vergonha. Se você for feme de verdade, se abra


hoje prá Arivaldo quando ele chegar aqui...

A outra respondia:

— Ta me tirando a terreiro? Eu quero lá negócio com aquele


macho liso, que só dá mesmo pra cumê uma nega-safada como você que
dá que só galinha pedrez!...

Aí as duas se agarravam, puxavam os cabelos uma da outra,


se mordiam, dizendo desaforos e iam ao chão, enquanto os habitantes do
cortiço, homens e mulheres, riam e ficavam se divertindo, em ver qual das
duas venceria, já rasgadas e quase nuas no meio do salão da casa.

Outras vezes, alta noite, era uma rapariga que batia a porta
do quarto, expulsando um homem que queria entrar, dizendo aos gritos:

— Puxe daqui, seu xexeiro! Primeiro venha pagar seu xêxo...


macho escroto! Fresco! Corno!...

O xêxo (seixo) era o calote que o homem havia passado


anteriormente na meretriz, pois tivera relações sexuais e não pagara.

Já com os prostitutos homossexuais (viados), ali do cortiço,


os casos eram mais mansos, mais educados, do que surgiam com as
mulheres.

Apenas observavam os escândalos e boquiabertos


recriminavam:

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— Ah, rachadas baixas... Não me troco por uma dúzia
delas...

Os inquilinos invertidos eram sempre asseados, pois como


“vedetes” do cortiço, eram mais organizados. Caprichavam no vestir e pra
disfarçarem a sua condição natural de macho, usavam uma “rabichola”
(espécie de sacola, segura na cintura por uma faixa por dentro da calça, pra
esconder o membro, quando tiravam a roupa na frente de seus
companheiros).

Em um quarto do cortiço, moravam dois que eram


“amigados” e se revezavam, quando arranjavam um parceiro, pois
dispunham de uma única cama de casal.

Algumas vezes havia uma ciumada de um com o outro, por


quererem disputar uma mesma amizade, mas as coisas se resolviam
pacificamente.

Um dos pederastas dizia pra um amigo, que chamara pra


fazer um 69 com ele:

— Vôtz! Meu filho. Isso não! Eu sou viado, mas não me


comparo com essas mulheres escrotas!...

Acontecia que, em diversas ocasiões, era a polícia que vinha


em caçada a marginais, moradores do cortiço. Formava−se então um
chafurdo danado em todo o quarteirão, quando iam prender um “gatuno”,
que ali se escondia, juntamente com os objetos furtados. Eram correrias
dentro e fora do cortiço. Havia uma concorrência tão grande de povo, que
até dificultava a diligência policial. Espirrava gente grande e meninos de
todos os lados. Todo mundo queria ver a cara do ladrão. Por conta disso
havia um reboliço tão grande nas imediações, com o barulho natural do
povo, que ninguém se entendia.

Por falar em marginais, havia, ali no cortiço, um marginal


crônico que, vez por outra, andava as voltas com a polícia, por conta da “lei
do prende−e−solta”. Tratava−se de um negão de cerca de trinta anos,

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forte, musculoso, de olhar sinistro de brancas escleróticas, desordeiro,
maconheiro e ladrão e que tinha o apelido de Maravilha. De quando em vez
a policia metia−lhe na chave, mas não adiantava, pois o Delegado não
gostava de abrir processo. Preferia prendê−lo por uns dias, dar−lhes umas
pancadas e depois mandava−o embora, o que era muito mais cômodo pra a
autoridade policial, porque o livrava da trabalheira de um processo, às
vezes com flagrante, diligências e tudo o mais. E assim o nego não se
corrigia, pois já estava habituado àquela vida, tendo ficado sem-vergonha.
E os fatos se sucediam no mesmo rojão, sem melhorar.

O último acontecido, todavia fez Maravilha apanhar que só


“boi ladrão”. Foi num caso mais grave que teve começo num sábado à
noite.

Ali na Roca, como em toda a parte, o sábado é dia de festa,


de farra, Maravilha se juntara, no Areal, ali perto, além do morro, com uma
trinca de malandros e começaram desde cedo da noite a beber, em uma
bodega isolada da estrada, que ficava por trás da rua.

Lá pras tantas da noite, a turma recebeu um suprimento de


maconha de uns marinheiros, de um navio petroleiro que aportara, naquela
tarde, no Canto do Mangue, e que chegaram trazendo pacotinhos da erva.

Desgraça só quer o começo, Maravilha e seus camaradas,


logo trataram de preparar uns baseados, e a farra continuou com a adesão
dos marítimos.

Em pouco tempo estava todo mundo puxando fumo falando


sobre coisas absurdas. E Maravilha mais que todos, saiu com os outros
conversando sobre um senhor que morava ali na Roca e que tinha uma filha
que era uma “uva”. Enquanto seus companheiros se espalhavam pelo
bairro, ele botou na cabeça de roubar aquele tal senhor que tinha uma linda
filha, e o “nego” a desejava.

Maravilha resolveu então agir no que vinha pensando. No


quarteirão que o cidadão visado morava, estava tudo silencioso, deserto.

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Todo aquele povo dormira tarde, estando tudo agarrado no sono, pois tinha
havido ali, na vizinhança, um animado “assustado” pré-carnavalesco.

Maravilha que conhecia mais ou menos a casa do homem


sabia que talvez pelos fundos, fosse mais fácil de entrar.

A maioria das casas populares, se pela frente são mais ou


menos seguras, nos fundos a coisa é fraca em todos os pontos; com
qualquer força a mais, cede lugar ao primeiro impulso.

Efetivamente, Maravilha rodeando a residência pelo oitão, foi


dar com a traseira da casa, onde havia uma janelinha que botava pro
sanitário, onde após arrombá-la, conseguiu introduzir seu comprido corpo
pra dentro da habitação.

Após forçar uma porta que dava pro quarto do casal, ali
penetrou no meio do escuro, somente clareado com as brechas do telhado,
onde encontrou marido e mulher dormindo.

Naquele cômodo riscou um fósforo, onde acertou com a calça


do homem, tendo tirado todo o dinheiro que encontrou. Passando pro
quarto vizinho, ali dormia a filha bonita solteira do casal, que Maravilha era
doido por ela, principalmente quando a via na rua. Naquele momento não
resistiu à tentação. Acendeu um toco de vela que trazia, pra melhor admirar
a beleza daquela moça branca, por quem tanto suspirava. Ela estava
deitada de camisola na cama, toda arreganhada com as pernas abertas,
nua da cintura pra baixo. A cena foi provocante demais pra Maravilha que,
esquecendo tudo que pudesse acontecer, foi pra cima da jovem, sem,
contudo pesar o corpo sobre ela, que dormia a sono solto. E, firmando-se
suspenso nos braços e nos pés, tentou simular ter relações sexuais, a ponto
de lá ficar com pingos de vela sobre o corpo, sem, contudo ele conseguir
seu intento.

Após isso, ele que era um marginal muito escroto, não


satisfeito com tudo o que fizera, teve ainda o sangue frio de voltar ao
quarto do dono da casa, de quem tinha muita raiva, tendo então cagado
dentro do sapato dele, que estava ao pé da cama do casal.

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Em seguida, no vexame de sair da morada, Maravilha ao
passar pelo banheiro não viu no escuro, uma grande bacia de zinco que
estava encostada na parede e, tocando nela, jogou-a ao chão, produzindo
então um grande barulho.

O barulho acordou o pessoal da casa, e, dado o alarme, foi o


gatuno perseguido pelo clamor público, sendo preso em flagrante, adiante
na rua, por populares que voltavam duma festa, tendo mais tarde,
confessado tudo na polícia, com pormenores, sem nada esquecer, pois é
comum ao maconheiro lembrar-se o que se passou na fase do delírio.

É acertado o provérbio, parodiado do vinho, quando diz:

In cannabis, veritas.

Pra finalizar, desta vez a coisa foi séria pra Maravilha. Houve
processo porque a vítima botou advogado e foi o diabo-a-sete. Resultando
no final, cadeia e condenações com penas, por mais de um crime, pro
negão, na Detenção.

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Assim nas proximidades do boteco de Modesto, todas as


tardes, desde a chegada dos botes de pescaria, até o anoitecer, formavam-
se assentamentos daquela gente humilde, em todos aqueles bares,
botequins e peixadas que convergiam pro Canto do Mangue e conversavam
animadamente sobre os mais variados assuntos.

Não havia tempo ruim pra todo aquele povo, que falava de
cara alegre Como quase todos eram pobres ninguém se preocupava com a
segurança de seus bens, pois; em geral, ricos ou arranjados, vivem mais
sérios, de cara amarradas talvez inquietos por causa de seus haveres.

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A maioria vivia o momento presente. Eles topavam tudo.
Ninguém tinha o que perder. Todos davam risadas com uma brincadeira
qualquer, como podiam formar uma briga, nascida de uma discussão de
pouco caso, onde às vezes, o cacete ou a peixeira poderia sair em cena. Ali
se comentava tanto a vida alheia, como os lances de uma pescaria heróica,
assim como os assombros e as lendas do mar alto, na intimidade com os
peixes perigosos e monstros marinhos, tudo isso digerido por entre goles de
aguardente e pedaços de peixe frito - gingas. Ouvia-se de voz-viva, a
crônica dos veteranos das águas, de mestres pescadores de dezenas de
anos de luta com as ondas, conhecedores dos mistérios do mar oceano, das
locas escondidas dos peixes.

Naqueles momentos confraternizam embarcadiços nacionais


e estrangeiros, sejam de diferentes raças, mares e nações, todos eles iguais
naquela hora do escurecer, irmanados como “companheiros-de-copo”
experimentando todos à mesma cachaça.

Nisso já passam de seis horas da noite, o meu bom amigo


Gaspar, olha para as águas escuras da maré, tingidas pela luminosidade
reflexa do outro lado da cidade, saboreando um café especialmente
preparado por dona Rosa, acompanhado de uma tapioca praiana, se
acomoda na outra rede e cruzando a perna sobre ela, quase sentada,
ressalta com ar de professor:

— Mudando um pouco de assunto, carece dar um parêntese


na historia para falar sobre a cidade de Natal, sob a influencia dos efeitos
do progresso trazido pela Segunda Guerra Mundial, desde então Natal
nunca mais foi à mesma...

Terminada a Primeira Guerra Mundial, a partir da década de


vinte, com o desenvolvimento aviatório das nações mais adiantadas,
começaram a chegar em Natal, aeronaves transportando do Atlântico-Sul,
trazendo aviadores de todas as partes do mundo. Eram franceses, alemães,
americanos, italianos, ingleses, brasileiros e outros. É a época heróica e
lírica da aviação.

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Todo o movimento aviatório mundial nunca esqueceu a
posição privilegiada de Natal e ate o dirigível alemão “Graf Zepelim” em
1930 e 1933, em suas viagens pela América do Sul baixou duas vezes em
Natal, sobre a estatua de Augusto Severo homenageando-o com o
desembarcar de coroas de flores, o malogrado aeronauta potiguar do
dirigível Pax.

Em matéria de grandes aviões que visitaram Natal, antes da


Segunda Guerra Mundial, devemos lembrar o gigantesco “Dox”, que
aterrissou no Potengi em junho de 1931, o maior hidroavião do mundo, com
sua dúzia de motores, produto da indústria aeronáutica alemã, quando
empreendia um giro ao redor do mundo.

A Segunda Guerra Mundial veio a confirmar a importância


estratégica de Natal, isto porque o Nordeste brasileiro estaria exposto a um
ataque nazista, e principalmente Natal seria o primeiro ponto visado, se os
alemães viessem a invadir o Oeste da África, cujo ponto mais importante
para nós será Dakar. Nesta linha de pensamento, ocorreram principalmente
para Natal e outras cidades do Nordeste, “auxílios” americanos de todas as
formas, a toque de caixa, no sentido de reforçar as nossas defesas.

Em janeiro de 1943, a histórica Conferencia do Pontegi, entre


o Presidente Roosevelt e Getulio Vargas, teve lugar a bordo do cruzador
americano “Humboldt” que se encontrava surto no Porto das Rocas. Foi
quando os meninos da Roca que nadavam pela maré conheceram o
presidente Getúlio a bordo da belonave e gritaram pelo seu nome, tendo o
Presidente respondido com um aceno sorridente para eles e em resposta
depois mandou uma dúzia deles para uma escola de pesca no Rio de
Janeiro.

Iniciada a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial,


o progresso de Natal foi rápido, não havendo nada a se medir. Todos os
obstáculos foram superados, afinal, o esforço de guerra fazia suplantar
todas as dificuldades.

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Natal, a então cidadezinha pacata e provinciana começou a
tomar ares de centro urbano e militar principalmente.

O ponto culminante de todos os preparativos de defesa foi


sem dúvida a construção acelerada da então gigantesca Base Aérea de
Parnamirim – a Parnamirim Field – com seu mil e tantos edifícios que
podiam abrigar uma dezena de milhares de homens − o Trampolim da
Vitória, como chamou o Presidente americano Roosevelt − que possibilitava
a receber, diariamente, três centenas de aviões de guerra que vinham dos
“States” e ali, após abastecidos permitiam o salto transatlântico Natal-
África, em proveito dos exércitos aliados que lutavam em terra no Velho
Mundo.

Enquanto se construía o “Campo de Parnamirim”, como era


conhecida a Base Aérea americana, milhares de outros operários
trabalhavam sem parar, dia a dia, em um oleoduto que, vindo do Porto de
Natal, recebia gasolina dos navios petroleiros e provia diretamente centenas
de aviões que passavam todos os dias por Parnamirim, ao mesmo tempo
em que se estendia, paralelamente, uma estrada asfaltada de vinte
quilômetros de extensão, que vinha ligar das Rocas a Parnamirim,
aprontada em tempo recorde de dois meses, baseado no antigo lema
americano: “O difícil fazemos logo e o impossível, levamos algum tempo”.

O febril ritmo de trabalhos nunca visto em Natal,


movimentou uma avalanche de técnicos americanos a ponto de superlotar
as dependências do Grande Hotel na Ribeira, que é obrigado a alugar outros
prédios para atender a intensa hospedagem. Alem disso os americanos
organizaram, em diversos pontos da cidade, confortáveis residências
coletivas, dotadas de muitos quartos, destinadas a alojar inúmeros civis e
militares americanos, como Staff House do Tirol, que era o bairro mais
famoso.

A rotina inteira da cidade, agora está subordinada ao


trabalho de Parnamirim, representada por sucessivas turmas de
trabalhadores e funcionários, em todos os horários diurnos e noturnos,

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cujas horas extraordinárias eram pagas em dobro. Por isso havia um
animando movimento de gente nas ruas.

Todos tinham possibilidade, até mesmo os funcionários


públicos, arranjavam um horário disponível para que pudessem ganhar um
ordenado compensador. Em todas as horas, Natal era acostumada a
conviver com o ronco dos grandes transportes levando e trazendo gente de
Parnamirim.

Esse rápido adiantamento provindo da guerra em conjunto


com muita gente vinda de fora, não somente os americanos, mas militares
e civis de outras nacionalidades do Eixo, como canadenses, ingleses,
franceses e até portugueses e outros afora, as turmas que trabalhavam dia
e noite se movimentando com dinheiro farto, correndo para esse povo em,
atividade nos serviços de guerra − tudo isso influiu para que os hábitos
locais começassem a se modificar.

Começa a popularização das bebidas de outros paises. Todos


querendo beber whisky, Coca-cola, Vodka e outras.

Nesse momento, observa-se um aumento vertiginoso no


custo de vida, como o preço dos combustíveis, pois os americanos
compravam tudo por qualquer preço que encontrassem. Até os objetos de
luxo e conforto eram comprados pelos ianques, como relógios, rádios,
máquinas fotográficas, jóias, bolsas, calçados, as meias-botas que ficaram
conhecidas, em muitas partes do mundo como “Botas Natal”, que os
americanos compravam aos milhares, havendo diversas sapatarias que
trabalhavam dia e noite, somente fazendo meias-botas e bolsas de couro
para viagens aéreas e tudo mais por qualquer preço que comprassem, o
que era barato para eles, que recebiam os seus salários em dólares, cada
um valendo uma porção de cruzeiros, algumas vezes mais que o nosso
câmbio oficial.

Os americanos compravam tudo que viam. Pareciam meninos


grandes endinheirados, tudo querendo comprar e conhecer. Não eram
somente objetos raros e artigos regionais que eles queriam adquirir, mas

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produtos de artesanato e curiosidades populares, as mais extravagantes,
sem se falar nos exemplares exóticos dos nossos pássaros e plantas locais.

Macacos, sagüis, periquitos, papagaios, araras, seriemas,


camaleões, gatos maracajás e toda sorte de bichos de pena e pele, eles
compravam, a ponto de juntar uma porção de vendedores (sempre) na
entrada do Grande Hotel de Natal. Diziam que até urubus, quiseram
impingir aos ianques, como se fossem aves domesticas...

Contavam também o episodio de um americano, que


querendo comprar um jumento e na hora de receber o animal, o vendedor
procurando passar uma fêmea como um macho, ao que o americano
protestou logo, notando a diferença de sexo, gritando:

— Senhorita, não bom ! ...

Já uma graça que os americanos gostavam de fazer na rua,


era jogarem um punhado de moedas para os meninos que viviam pedindo
dinheiro a eles (— give me money, my fiend.), somente para verem os
garotos se jogando sobre os níqueis. Assim era nos navios atracados nas
Rocas, que ficavam sempre os meninos nadando em volta e pedindo
dinheiro, o que eles faziam jogar nas águas gritando — hay boy! Para se
divertirem olhando o mergulho e apnéia dos garotos em busca dos cents.

Nisso, o comércio de Natal passa por uma verdadeira


revolução. Muitos estabelecimentos comerciais da Ribeira, que negociavam
com tecidos e magazines, transformaram-se, da noite pro dia em bares e
restaurantes, em vista a intensa procura dos sobrinhos do “Tio Sam”.

O cheiro da fumaça dos cigarros americanos estava em toda


parte, pois se vendia abertamente. E todo mundo achava que o chique era
fumar cigarretes dos Estados Unidos.

Naquela época, Natal era uma verdadeira Zona Franca, pois


possuía produtos contrabandeados de muitos pontos do mundo, ninguém
sabia se vinham em transportes civis ou militares, por mar ou por ar.

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Uma das heranças que os estadunidenses deixaram em nossa
terra, foi o “Slack”, camisa solta, descontraída, por fora das calças, sem o
formalismo das camisas engravatadas, ensacadas, mais apropriadas para o
clima tropical.

A mania geral da cidade era falar inglês e se manifesta em


todos os ambientes, quer familiares ou comerciais. Muitas casas de
comércio adotam intérpretes, para facilitar a compra de seus produtos por
americanos, que pagavam o preço de oferta, por exorbitante que fosse,
sem pedir por menos. Em muitas portas comerciais eram vistas placas
bilíngües (inglês e português), anunciando os artigos mais procurados.
Quem não falava o inglês, ou pelo menos arranhava um pouco.

Em Parnamirim, os trabalhadores braçais, mesmo os


analfabetos, entendiam, sem problemas o que diziam os gringos.

As forças armadas nacionais tinham unidades de todas as


armas em nosso Estado, tanto na capital como no litoral. Em muitos lugares
existiam abrigos públicos antiaéreos, que eram simples fossos cavados no
chão, a céu aberto, sem nenhuma cobertura ou proteção, sem se falar nos
particulares, cujos proprietários ricos chegaram a construir confortáveis
abrigos, coadjuvados com a Defesa Civil, havendo ainda organização de
guardas voluntários, corpo da Cruz Vermelha de enfermeiros e socorristas,
além de sirenes de alarmes antiaéreo, equipes de holofotes, etc.

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MUDANÇA DE VIDA

Modesto, apesar de ver o derrame imenso de dinheiro,


surgido com a guerra, estava vivendo em dificuldade, pois o seu boteco ia
fracassando, inclusive os fiados e não compensava continuar com o
negócio.

Por intermédio de um amigo, conseguiu arranjar um emprego


pra trabalhar em Parnamirim. Com as horas extras, noturnas, que eram
contadas dobradas, conseguira safar um regular salário, que lhe vinha tirar
dos apertos dos dinheiros minguados.

Ia assim Modesto melhorando de vida, experimentando,


como nunca acontecem antes, ganhar dinheiro de sobra, que dava pra
juntar se quisesse.

Como muitos outros também que trabalhavam em


Parnamirim, era um prazer ver a cor do dinheiro dos “my friends”, que dava
pra viver e restava ainda pra gastar em outras coisas mais.

Desse modo Modesto passou a dar mais conforto a sua


família, mudando-se pra uma casa melhor ali mesmo na Roca. Comprou
móveis e utilidades pra seu lar. Sua família gozava pela primeira vez de
passadio abundante. Modesto como sempre fora um “amigo-do-copo”, não
desmentiu suas tradições. Agora que estava ganhando mais, como bom
“snob” que era, imitando seus patrões estrangeiros, mudou de cachaça pra
uísque, e não relaxava a cerveja, a “loura suada”, como chamavam seus
colegas de trabalho.

Modesto agora estava metido a lorde. Exibia um verde “Ray


Ban” na cara que era os óculos dos americanos e, como um enfeite de
gente instruída, ele que era de poucas letras, ostentava no bolso da camisa
uma bonita caneta Parker 51.

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Modesto com outros companheiros de Parnamirim
endinheirados como estavam, passaram a assíduos freqüentadores dos
bares, sem se falar nos cabarés novos que surgiram em diversos pontos da
cidade. Foi assim que Modesto foi ficando conhecido nas diversas pensões
de mulheres, principalmente na zona da Ribeira, onde sempre fora seus
pastos, pois ali já trabalhara muitos anos e além do mais, era perto de
casa, vizinho das Rocas.

Sendo Modesto muito esforçado em seu trabalho, e caindo


nas boas graças do americano chefe de seu setor, foi promovido para a
função de Apontador, aumentando o valor de suas horas de trabalho que
lhe proporcionaram a render um proveitoso ordenado.

Como bom brasileiro que era, ao em vez de guardar parte de


seu salário pra fazer uma reserva em moeda corrente, o macauense,
contudo, que nunca tinha pegado num dinheirão daquele, meteu o pau a
gastar com mulheres e farras. A ordem era franca, pagava bebidas, tanto
pros Colegas como pras “primas” (meretrizes). Era um bom pagão...

As mulheres do “Wander Bar” ao avistarem Modesto chegar,


gritavam:

― Meu bom Chiquinho, que Deus me deu ...

E Modesto começou a ter privilégio de penetrar na intimidade


da Zona, convivendo com uma porção de mulheres, tanto da terra como de
fora, de outros estados do Brasil, compartilhando como bom freqüentador
do ambiente, das intrigas e brincadeiras do mulherio, que só faziam com os
fregueses mais baludos como ele, que topavam com as mais extravagantes
despesas. Eram cervejadas e uiscadas das maiores no final de semana, do
sábado pro domingo que era propriamente o dia da farra.

A coisa começava quando Modesto com outros colegas


enchiam com mulheres um carro de praça e iam jantar peixe no Canto do
Mangue ou iam fazer um “traçado” em outro lugar aprazível da cidade,
lógico, onde se podia comer e beberem bem.

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Depois a coisa evoluiu até de madrugada. Já no domingo, a
partir das dez horas da manhã, a turma ia tirar a ressaca na praia do Areal.

Além do Areal, caminhavam pela Praia do Meio, Areia Preta


ate á Praia do Morro do Pinto, onde os americanos apelidaram de “Miami
Beach”.

Da intimidade de Modesto com as primas do cabaré a


amizade foi se estendendo a uma porção delas que disputavam Modesto
sobre qualquer outro burguês, porque sabiam que ele era cheio da nota e
não “negava fogo”.

Entre todas elas havia uma cearense nova e bonita que era
uma fera pra querer conquistar Modesto. Fazia artes do diabo pra agradar.

Diziam que era uma formada em depravações, pois sua


especialidade na Zona resumia-se na sigla – BBC (em alusão a pratica
sexual oral, vagina e anal). Assim Modesto pegou um chamego com a
Ceiça.

Em exploração por dinheiro, nenhuma outra levava vantagem


para o novo amor de Modesto. E haja Modesto a gastar a torto e a direito,
com tanto que terminou amigado com uma das raparigas mais dispendiosas
do Wonder-Bar.

Foi tanto, que levou Modesto a faltar com as despesas de


casa. Ele, apesar dos pesares, sempre fora um sofrível chefe de família,
principalmente depois que começou a trabalhar pros americanos, quando
tudo vivia farto, nada faltando a uma casa.

Agora, todavia, estava atrasando simples compromissos,


chegando a ponto de comprometer até a feira semanal. Quanto mais
Modesto ganhava em Parnamirim, em horas extras e gratificações, menos
chegava pra sua família, pois todos os seus ganhos eram canalizados pro
mulheril, resumindo em Ceiça.

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Apesar de Dorinha, reclamar como que estava acontecendo
com os dinheiros que não chegavam pra nada, Modesto se desmanchava
em desculpas, inventando descontos que estaria sofrendo em seu salário,
além de outros pretextos.

Dorinha com a sua intuição feminina, não via ali somente


descontos de ordenados nem despesas de farras, mas desconfiava que, por
trás de tudo aquilo, existia alguma mulher-luxenta que estava levando todo
o dinheiro do marido, por mais que ele negasse. Pois vez por outra, se
denunciava ao chegar em casa cheirando a perfume e com marcas de
batom na camisa.

Assim, a esposa de Modesto, pra tirar a limpo o que estava


acontecendo com o marido, resolveu consultar a uma cartomante muito
afamada que, conforme uns boletins espalhados na cidade, acabava de
chegar da Bahia, uma tal de Madame Beatriz, que diziam que era a maior n
o baralho, botava cartas com perfeição, revelando o passado, o presente e
o futuro. E por conta disso, romarias disputava diariamente, disposta a
pagar tantos e quantos por uma consulta para ouvir a cartomante contar
uma porção de histórias vantajosas como invariavelmente que a pessoa ia
ser feliz, que tinha um dinheiro grande para receber, ou ainda uma viagem
longa a se realizar, etc, etc.

Esses presságios risonhos faziam bem as almas das criaturas,


isto porque, por pior que seja a cartomante, há sempre gente a sua
procura. É uma espécie de bálsamo que suaviza as decepções do dia-a-dia,
é uma recompensa, que faz o consulente sair dali com mais esperanças,
mais feliz com a felicidade que há de vir ou de ouvir o que queria ouvir...

Aconteceu Dorinha indo consultar com Madame Beatriz, a


mesma após deitar as cartas do baralho e olhando num copo de água o que
se passava com Dorinha, com ares de vidente, depois de dar uma baforada
num cigarro, exclamou:

— Vejo uma mulher moça, bonita e que virou a cabeça de


seu marido, sugando todo o seu dinheiro. E esta dama de espadas que

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aparece aqui no baralho... É uma mulher perigosa, pois ela mandou fazer
um ponto pra pegar o seu esposo...

— Não diga, madame! E o que se pode fazer pra acabar com


esse “trabalho”, que essa sirigaita mandou fazer? − indaga Dorinha aflita.

O que de pronto a vidente responde:

— Minha filha só há um jeito. Só vejo um caminho pra


desmanchar esse negócio, que é no catimbó, porque se a coisa foi feita no
catimbó, só no catimbó se acaba. Resolvido isso, tudo mais correrá bem pra
você. Os meus poderes estão no copo d’água e no baralho, mas nada posso
desmanchar...

********

Na verdade o que estava se passando com Modesto é que ele


não era mais menino, pois já passava da meia idade, possuindo mais de
cinqüenta anos. E sua esposa, com idade quase igual à dele, aparentava
muito velha, sendo um “samba acabado” pra Modesto que não achava mais
graça nela, já que tinha conhecido algumas primas novinhas, bonitinhas e
cheirosinhas, com quem não mais fazia vida, como diziam os amigos
maldizentes. E o seu caso com Ceiça, surgido pela força do dinheiro, tinha-
se transformado numa verdadeira revelação, um achado para ele, pois uma
convivência com uma rapariga moderna como aquela, apesar dos gastos e
explorações que tinha de agüentar, possuir o condão de remoçar-lhe as
forças físicas, transmitindo-lhe vitalidade e mocidade, dando-lhe uma nova
vida, o que vinha de confirmar o ditado popular quando diz: “remédio pra
cavalo velho é capim novo...” Para Modesto, era só o que faltava em sua
vida.

*************

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Dorinha estava então ciente, conforme lhe havia dito a
Madame Beatriz que, somente no Catimbó se desmancharia o “trabalho”
que a tal amante de Modesto, havia mandado fazer contra ele.

Tendo notícias por pessoas amigas que no bairro do Carrasco


havia um catimbozeiro famoso Mestre Cardozo que, conforme contavam,
ele havia resolvido muitos casos enrascados, tratou Dorinha de saber o seu
endereço.

A casa de Mestre Cardozo não era fácil de ser achada, pois o


Carrasco apesar de ser um bairro muito extenso, mal possuía uma única
estrada de barro, por onde trafegava uma precária linha de ônibus, cujos
carros velhos e estragados, surgiam alguns de hora em hora.

Fora o trajeto de ônibus, era raros os pontos de referencia


que pudesse orientar o visitante, pois a região era toda formada de sítios
sombreados de grandes árvores, cada um separado do outro, por cercas de
arame farpado ou de faxina coberta por incontáveis plantações de melão-
caetano, própria da região tipicamente rural da época, sem que fossem
vista qualquer edificação.

A maioria das casas era de taipa ou palha. Não havia uma só


rua pavimentada, pois todas eram em areia ou grama, onde eram
encontradas raras trilhas de pneus de carros.

Somente com o auxilio de uma comadre de Dorinha que


morava nas Quintas e conhecia o bairro vizinho, foi possível ela acertar com
a casa do Mestre Cardozo que, no momento não se encontrava em casa,
por ser domingo, aproveitara apara assistir o batizado de uma neta, na
vizinha cidade de Macaíba. Contudo ficou acertado para Dorinha voltar na
próxima sexta-feira, porque o Mestre iria trabalhar naquele dia.

No início da manhã da sexta-feira ajustada, Dorinha


acompanhada por sua comadre, chegava à morada do afamado feiticeiro.

A casa de mestre Cardozo era de taipa, coberta de telhas,


com uma porta e duas janelas de frente, recuada mais uns dez metros de

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distancia do portão de madeira, que dava acesso ao cercado de arame
farpado, todo plantado de coqueiros, mangueiras e diversas plantas
rasteiras, que rodeavam a sua residência.

Mestre Cardozo não “trabalhava” propriamente em casa. Os


seus rituais eram realizados numa espécie de palhoça grande, isolada, há
alguns metros por trás de sua casa.

Dentro da palhoça o chão era de barro batido, apresentando


no centro uma grande mesa retangular, desforrada, sobre a qual viam-se
objetos variados, rodeada por bancos de madeira, onde sentavam os seus
“assistentes” quando se realizavam as “mesas” e demais trabalhos de
Catimbó.

Dorinha foi apresentada ao catimbozeiro que ocupava a


cabeceira da mesa, tendo ao lado o seu assistente “Zé Migué”. Naquela
ocasião, Dorinha contou que queria desmanchar um feitiço que uma mulher
tinha mandado fazer para conquistar o seu marido.

Depois de ouvir toda aquela história, Mestre Cardozo tomou a


mão direita de Dorinha, colocando o pulso dela em seu ouvido para
auscultar o que se passava com a consulente.

Entoando cantos inaudíveis, o Mestre dirigiu-se a um canto


da sala de posse de um litro de álcool e derramando no chão formou um
circulo que ateou fogo formando uma grande labareda em forma de
redemoinho.

Passados alguns instantes, Mestre Cardozo dirigiu-se a


Dorinha, dizendo que para “desmanchar” o que a amante de seu marido
havia mandado fazer era preciso que fosse mandado fazer um “Ponto de
Pólvora”...

Se agachando no chão, o catimbozeiro desenhou com pólvora


algumas estrelas e símbolos para em seguida tocar fogo, acompanhada de
algumas orações. Feito isso, deu-se por terminado o “trabalho”, garantindo
que daquele instante em diante, o ponto que a mulher havia mandado fazer

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para ficar com o marido de Dorinha, havia se quebrado, não tendo mais
forças.

Confortada com o “trabalho” do Mestre Cardozo, Dorinha


agradece, deixa uma “ajuda” de alguns trocados para o “Centro” e se dirige
em sua longa jornada de volta para casa.

Já por volta de uma hora da tarde, chega as Rocas Dorinha e


sua comadre, que a agradece e retorna feliz certa de que havia “retomado”
o marido desviado.

Na vizinhança a indagação era geral, — onde estaria Dorinha,


todo aquele tempo?

Uns diziam que ela tinha ido conseguir emprego em alguma


casa grã-fina do Tirol. Outros insistiam que ela estava seguindo o marido.

Algumas comadres, ainda apimentavam o tema, com a


pergunta vazia:

— Será que não arranjou outro?

E assim se passava à tarde, enquanto Dorinha reconfortada


em casa esperava Modesto, a vizinhança borbulhava...

Chegada à noite, Modesto vai chegando em casa, alguns


vizinhos sorridentes o saúdam enquanto outros fingem que não o vê. O
certo é que querem ouvir alguma manifestação para apurar a verdade.

A casa permanece silenciosa, Modesto chega em casa, se


farta na janta improvisada que Dorinha se prontifica a fazer de pronto, e vai
dormir com uma tremenda ressaca.

Fechada a casa e mantida silenciosa, alguns vizinhos que já


tinham inclusive passado várias vezes em frente da porta da casa e não
conseguindo ouvir nenhuma alteração, comentava que Dorinha havia
preparado algum “remédio” para Modesto dormir, enquanto ela sonhava
com outro... Outros defendiam Dorinha, garantindo a sua fidelidade e que

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Modesto é quem havia ido pedir perdão a Dorinha, enquanto um pequeno
grupo garantia que Dorinha havia descoberto uma amante de Modesto e
aplicado uma surra nos dois...

Passada a noite, pela manhã Modesto logo cedo sai de casa e


ainda defronta com alguns vizinhos que vão logo o saudando:

— Oi Modesto. Como vai? Tudo bem?

O que Modesto de pronto responde: Ah, vai tudo bem e


você?

Desconversam e partem para a sua labuta, enquanto


Modesto vai esperar o ônibus para Parnamirim.

Enquanto isso, a casa de Dorinha é constantemente visitada


pelas vizinhas...

O RETORNO DE MODESTO

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Modesto que havia se distanciado de sua família, dormindo
noite sim e noites não, passou a ser mais assíduo em casa, sempre
chegando por volta das nove horas da noite, o que deixava Dorinha mais
feliz e confiante que o catimbó havia tido efeito. Desmanchava-se em
elogios ao Mestre Cardozo para com a sua comadre confidente.

Na verdade aconteceu o inevitável, Ceiça já havia usufruído o


dinheiro guardado que Modesto conseguiu ajuntar, ele já não era o mesmo,
pois a paixão já havia acabado e no “ramo” dela já havia aparecido outro
quarentão, que exibindo grosso cordão de ouro com um crucifixo e um
relógio de ouro, vestido num terno branco de tecido “tubarão”, sapato de
duas cores, ensaiava passos de gafieira no salão para delírio das suas
companheiras, sob o brilho do sorriso franco nos dentes de ouro. Este era o
Vital, o novo chamego da Zona.

Certa noite, Modesto chega para sua amada e a encontra


fascinada por Vital, mascate que havia recentemente se instalado em Natal,
exalando forte cheiro de Chantecler de Caron e contando mil vantagens.
Não restou alternativa mais condigna, senão bater em retirada de forma
silenciosa, para não ter que lavar a honra...

Não restando alternativa, senão a de abandonar por uns


tempos a zona e espalhar que havia abandonado Ceiça...

Resultando assim em ter que voltar a base – sua casa, pois


sabia que ali seria bem recebido e que teria um tratamento de príncipe.

O certo é que todas as noites, Modesto passou a chegar cedo


em casa, dividir a janta com a família, enfim a ser um novo padrão de
marido. Para o desencanto de certos amigos que juravam que havia
“brochado” enquanto outros ainda insistiam em afirmar que Dorinha havia o
castrado...

BET JOE

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No auge da influencia norte-americana, não podia faltar
alguém que tentasse mudar de nome para ficar mais próximo dos artistas
de Hollywood.

Aqui em Natal, nas imediações da Ribeira, morava Pedro


Raimundo, um maluquinho que sempre estava nos meios da sociedade, pois
era sempre chamado para conversas no Grande Ponto, como motivo de
galhofas dos rapazes da Cidade.

Entre uma brincadeira e outra, alguém lhe sugeriu um nome


mais à americana, que foi Bet Joe. Pedrinho, que já não gostava de seu
nome devido aos incontáveis apelidos que lhe colocavam, adotou de pronto
e passou a se autodenominar da novidade.

Só que Pedrinho, ou melhor, Bet Joe passou a deixar de tirar


brincadeiras com os militares americanos, pois os considerava seus
patrícios.

De certa feita, Bet Joe vinha para casa às altas horas da


noite, encontrando um grupo de rapazes, estes resolveram chamá-lo para
uma noitada pelos bordéis, tendo Bet de pronto aceitado.

Chegando no cabaré, os rapazes começaram a beber e


provocar uma algazarra, tendo o dono da “casa” ido proibir a baderna,
quando saíram correndo, deixando Bet Joe sentado á mesa. O proprietário
chegondo perto de Bet, segurou-o pelos braços e perguntou:

— Só ficou você aqui, seu moleque!

Bet Joe, olhou para o homem e disse:

— Ai nô, ai sou amelricano, nou podo. Mai descupi...

Ai o dono da zona, já conhecendo um pouco do dialogo em


inglês desconfiou:

— Você além de moleque, é doido?

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— Ai doido nou! Responde zangado Bet.

— Então você compreende bem o brasileiro, né. Interrompe.

— Péra aí que você vai dizer Ai, Ai em português.

Lá se vai o doidinho levar uns puxões de orelha e expulso sob


os olhares dos freqüentadores, que aos risos acompanhavam a cena.

Tem outra do Bet Joe, que foi quando nas suas andanças
pelo Areal, sempre portando uma pasta de couro volumosa chamou a
atenção de dois malandros que estavam sentados em um cajueiro tomando
cachaça com caju. Ao observarem aquela pasta cheia, imaginaram ter muito
dinheiro ali dentro e logo trataram de abordar o Bet para tomar a sua pasta.

Ao ser abordado, o Bet foi logo se dizendo ser um cawboy


famoso e que estava ali comprando terras para fazer um paraíso do cinema,
que seriam contratados, além de outras promessas mais. Os dois
malandros, não quiseram conversa e partiram para cima de Bet, logo
tomando a sua pasta, o que Bet aos gritos e com o indicador em riste
ameaçava:

― Pegue tiros, pá, pá, pá ...

Entre os disparos imaginários, os malandros ao abrirem a


pasta deparam com um monte de papéis velhos, rótulos de garrafas, caixas
de biscoitos vazias, além de grande quantidade de rótulos de maços de
cigarros de todas as marcas e que Bet dizia ser dinheiro. Desesperados pelo
fracasso, os marginais largam tudo ao vento e vão embora, deixando o Bet
a correr pelas dunas a procura de seus pertences.

Aliás, era incríveis, as semelhanças físicas e trejeitos de Bet


Joe e Carlitos.

Seu andar sempre apressado, como de quem tem muito a


fazer, evitava a farra da garotada com uma desculpa que fazia questão de
fazer aos grupos.

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― Agora estou sem tempo para vocês, estou indo resolver
assuntos mais sérios!

E sisudo partia, para perplexidade da turma.

OS APELIDOS

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Ora, quem nunca viu os apelidos populares de figuras
psicóticas ou traumatizadas do cotidiano.

Nas Rocas, não podia ser diferente, era o delírio das crianças
e deleite dos mais velhos, que fingiam não ver o que estava se passando.

A mais célebre, era a de seu Malaquias, um senhor de seus


quarenta anos, baixinho e barrigudo, que vivia da renda de um cortiço de
casas. Sempre à tarde pelo largo do Canto do Mangue o mesmo insistia em
passar sempre nas mesmas horas, eram quando os meninos gritavam:

― Mut Jeff, Pafúncio !

Lá se ia o seu Malaquias a correr atrás dos meninos e bater


nas suas residências para pedir providencias, principalmente das casas da
qual era o senhorio, o que sempre encontravam propositadamente
fechadas.

Outra figura era um pedinte que vivia num barraco já


próximo a praia do Areal, era conhecido como Peru, dada a sua pele branca
e sempre rosada por causa do sol da região, afinal de tão conhecido pelo
apelido que seu nome era secundário.

Peru se vestia sempre com toscos trapos de paletós ou


fraques velhos que ganhava em suas esmolas, sempre portando um murcho
chapéu na cabeça, quando passava pelas ruas e vilas do acesso às Rocas,
era saudado pela criançada e até pelos rapazes, que escondidos gritavam
em um só coro:

― Peru, Peru, gulu-gulu !

Este já tinha de pronto a resposta:

― Peru é a roda do teu c...

Vendo-se acossado, Peru não perdia tempo, começava a


jogar pedras na direção dos gritos e com um grosso porrete que sempre

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portava ameaçava matar seus opositores. Era sempre a mesma rotina,
parecia que Peru gostava de ser ovacionado pelo Apelido.

Assim como a de Peru e de seu Malaquias, era a sorte de


uma senhora alta e esguia, que morava sozinha num casebre na atual Rua
São Jorge, sobrevivia como doceira especialista em “doce-seco” um tipo de
doce tradicional muito apreciado na época pelos comerciantes da Ribeira,
feito de fruta seca de caju, mangaba, cravo, canela e bastante gengibre de
consistência pastosa envolvido em uma pequena e fina tapioca branca.

Todas as manhãs, ela ia com uma lata na cabeça buscar água


numa cacimba próxima, era quando os meninos correndo próximo a ela,
gritavam:

― Princesa Leopoldina, Princesa Leopoldina !

Ela não contava história, largava o balde cheio d’água sobre


o grupo, que de pronto se esquivava aos risos.

Porém, o ato não encerrava, novamente ela apanhava o


balde e enchia calmamente na cacimba e quando retornava, novamente os
mesmos meninos chamavam a “Princesa Leopoldina”, que dizia baixinho:

― Um dia ainda mato um...

A farra continuava a se repetir até que o grupinho cansasse,


aí ela voltava para casa com o seu balde cheio e sempre amassado.

Igual sorte também era de Nestor, um jovem muito magro,


desfigurado e de pele muito alva, que raramente saia de sua casa com
quem morava com seus pais, vindos do agreste, porém quando passava
pelas ruas próximas sempre ouvia o grito:

― Alma, Alma!

Este fingia não ouvir, mas os gritos eram tão insistentes e


cada vez mais somados a novos que formava um só coro destoado e

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irritante, o que forçava a Nestor (Alma) a tomar alguma providência que
consistia em atirar pedras e descompor quem visse pela frente.

Estas farras eram a festa dos meninos que criados soltos


pelas ruas, brincavam ainda de pipa (arraia), guerra de mamonas
(carrapateiras), banho de rio e outras coisas mais, inclusive de apelidos de
uns aos outros, como coité, timbó, e outras denominações jocosas, assim,
iam crescendo longe de escolas e sobre as dunas a desbravar aos grupos as
Rocas e adjacências, somente retornando no final da tarde sempre sujos e
famintos, para suas casas.

Seus nomes sempre vinham adjetivados com o nome da mãe


ou do pai, como “Joça de Maria”, “Aninha de Salete”, ou então eram
conhecidos pelos seus apelidos, como “grilo”, “sibiti”, “torrão”,“caíco”, “siri”,
dentre outros, que conservavam até o fim de suas existências.

DOS COMES E BEBES

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― Falar em fome me lembra comida, ressalta seu Gaspar.

Nas Rocas, também tinha sua gastronomia, simples e que


merece relevo aos caldos de peixe, tainha frita no dendê, tira-gostos de
“gingas” e “agulhas” fritas, que eram presenças constantes nos botecos e
mesas de pescadores, que aos poucos foram compartilhadas com os
visitantes vindos da Ribeira, passando a ser o ponto de abastecimento antes
e depois das farras.

A tapioca era uma alternativa ao pão do jantar, sempre com


muito coco e sal, seu odor e sabor alertava quem passasse por ali, ao lado
do azeite de dendê que dourava os peixes fritos em toscos tachos.

Para a meninada e apreciadores (não era muito comum o


homem dizer que gostava de doces, pois era coisa de menino e mulher),
também existia o “doce-seco” da “Princesa Leopoldina”, o “fubá de milho”,
outra iguaria doce que se vendia em enfeitados barquinhos de papeis
coloridos, feitos de milho torrado e moído com açúcar, a “puxa-puxa”, feita
de açúcar mascavo socado e repuxado, o “alfenim”, em forma de bonecos e
animais, o “pirulito”, de forma cônica e enfiado no palito de coqueiro, era
um caramelo colorido muito apreciado, que vendido em tábuas perfuradas
eram assim apregoado:

― piiruuliiiito braasileeeiro, enfiaaado num ponteeeiro!!!

Também se ofertava no bairro e se estendiam os vendedores


pelo restante da cidade, não só tais doces, mas também o “rolete de cana”,
que nada mais eram que fatias de cana do tipo “caiana” descascadas e
espetadas na casca da cana em forma de leques, assim como o “cavaco
chinês”, feito de fina casquinha de farinha de trigo e açúcar que eram
conduzidos em tambores de zinco, sempre acompanhados de toques de
“triangulo”, assim como os doces caseiros de caju, coco, cocadas e outros
mais.

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Na época de festividades, ainda se podia beber de um
“Aluah”, bebida fermentada de milho e especiarias, que era feita
previamente dentro de um pote de barro enterrado para adquirir o ponto
ideal. Assim também eram os “ponches” feitos de maracujá, mangaba, caju
e abacaxi.

Era um sincretismo gastronômico trazido das origens de seus


moradores, com forte influencia africana e tradicional brasileira. Sempre
baratos e saborosos, atraiam não só os habitantes locais, mas também
eram degustados pela sociedade potiguar e muito apreciados pelos
“hospedes” americanos na época da guerra.

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OS AMERICANOS

As Rocas continuava no mesmo ritmo, novas casas havia se


agrupado com as vindas de novas famílias do interior atraídas pela “fartura
da guerra”. O desenho do bairro agora adquiria novos contornos com a Rua
do Motor, Rua São João e do Areal mais longas e com mais moradores.

O bairro começava a receber mais a visita dos soldados


americanos e de alguns políticos da cidade. Alguns já disputavam lugares
nos bares e nas bodegas improvisadas. No dia de feira, tinha até algumas
americanas comprando algo.

O efeito Segunda Guerra agora inclui as Rocas. Falar algumas


palavras em inglês, ver de perto os militares norte-americanos, o flerte das
mocinhas com os soldados já era rotina do bairro que se integrou ao
restante da capital. Ali vizinho, no bairro da Ribeira, as tradicionais lojas de
tecidos cedem lugar de noite para o dia, em bares e restaurantes, em face
de intensa freqüência dos americanos.

A mania de falar algumas palavras em inglês, não é só


privilegio do centro da cidade, também chega nas Rocas e Ribeira, se
manifesta em todas as conversas, incorporando nos ambientes familiares ou
comerciais. Muitas casas comerciais com os seus interpretes para
intermediar a compra pelos americanos, ingleses e demais “aliados”, que
pagavam sempre o preço da oferta.

Um dos pontos altos de atração, mais falados naquela


ocasião, freqüentado tanto por brasileiros como por estrangeiros, foi o Grill
Room Natal, o Cassino, como era conhecido popularmente, que surgiu no
bairro da Ribeira logo atrás do majestoso Grande Hotel, onde hospedava
todo staff americano, por força do ar cosmopolita instalado na cidade com a
presença de militares, civis, personalidades, aventureiros, contrabandistas,
prostitutas, etc. Ali todas às noites se reuniam a mais alta e endinheirada

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sociedade local para usufruir entretenimentos vários, como boate, shows,
orquestras, gastronomia refinada e jogos de cassino.

Modesto que sempre ali passava quando da volta da Base de


Parnamirim, passou de participe da noite a espectador nos finais de
semana, com a desculpa de se distrair observando o intenso frenesi da
noite, ao lado de alguns companheiros.

Certa noite, observando um marinheiro norte-americano que


já vinha perdendo mais de mil Contos de Réis em um jogo de cartas, ante
ao estarrecimento dos dirigentes do cassino, fato este que provocou uma
série de duvidas de que seria aquele “sailor” um “gangster” que estivesse
dando vazão aos seus milhões. Logo passaram a consultar as autoridades
americanas que responderam que não havia nada de anormal, pois aquele
marujo podia gastar a vontade, pois era detentor de uma renda fabulosa.

Aquele cassino era, pois, parada obrigatória de todos que


transitavam pela cidade, até alguns artistas do cinema norte-americano ali
dançaram e deram o ar de sua graça, como Ilona Marcey, Tyrone Powel,
James Stewart e Clark Garble, em vestes militares e tantos outros.

Na volta para casa, já na madrugada do sábado, Modesto e


seus amigos, se divertia com os fatos ocorridos na noite, sob risadas
chegavam as suas casas, felizes para os braços de suas mulheres que os
aguardavam sob certa cumplicidade.

Certa noite, como habitualmente se aguardava o inicio dos


shows, quando surgiu pela entrada do salão, sem ninguém esperar, um
sujeito mal encarado, encapotado, de chapéu caído na frente, que
impetuosamente, de revolver em punho, tomando de assalto à assistência,
gritando para todos em inglês:

— Mãos ao alto!!

E como o inesperado provocasse o maior susto na platéia, o


“bandido” não pode continuar a ameaça armada, por se desmanchar numa

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irreprimível gargalhada. Era o saudoso Humphey Bogart que iniciava o seu
show.

Assim era à noite no vizinho bairro da Ribeira, de risos e


farra, com suas casas noturnas se estendendo até o bairro de Petrópolis
com suas afamadas casas “Town Club” e “Beach Club”.

Na periferia do bairro, próximos ao Cais do Porto, se


instalavam os bordéis, atraídos pelos dólares americanos, multiplicando-se
galopantemente com época de grandes dias. Muitas casas residenciais
foram alugadas e adaptadas em meretrícios, cresciam pelo bairro da
Ribeira, ocupando inclusive na movimentada Rua Chile um avultado sobrado
de dois andares, onde inclusive já havia sido o Palácio do Governo, foi ali
que se instalou o “Wonder Bar”, onde da noite para a madrugada adentro a
musica não parava de tocar através da “eletrolas caça níqueis”, eram os
fox-blues, swing, rumbas, congas e o clássico “Beguine the Beguine”.

Do Wonder Bar, Modesto já havia saído de fininho por causa


de Ceiça, contudo se contentava em ficar pelas proximidades para não ter
que encarar a sua antiga amante nos braços de Vital, nem tampouco ser
alvo de risos e cara de traído. Embora algumas vizinhas insistissem em
afirmar que Ceiça já não mais era freqüentadora daquele ambiente, tinha
viajado com Vital.

A noite era tomada de fumaça dos cigarros Philips Morris, Pall


Mall, Chesterfied, alem de outros, perfumes de varias fragrâncias, músicas
diversificadas, risos e abraços soturnos nas silhuetas da noite,
constantemente invadidas por prostitutas vindas de outros paises
especialmente para o staff norte-americano.

Modesto e seus amigos eram entusiasmados com a disciplina


norte-americana, cuja sua patrulha num Jipe sem capota se resumia em
dois fuzileiros navais da Marine Corps trazendo nos braços as insígnias
“M.P” (Military Police), impondo obediência a qualquer grau hierárquico,
bastando para tanto, calçarem um par de luvas brancas que sempre
portavam penduradas em seus cintos, sem qualquer arma.

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Para seu deleite, observaram em certa noite em frente ao
Wonder Bar, um major norte-americano bêbado e tumultuando o
movimento, que foi avistado pela patrulha que se aproximou já acenando
para aquele militar para que saísse do cabaré e como o major não obedeceu
a ainda mandou-os embora, pois era oficial superior. Frente a isto os
patrulheiros não hesitaram em caçarem suas luvas e intimaram o major a
obedecer em nome do Presidente dos Estados Unidos. Aos tombos, o militar
se afastou do lugar e tratou de caminhar para o Grande Hotel.

No final da cena, Modesto e seus amigos saiam elogiando a


disciplina militar e empolgados se sentiam os próprios marines por alguns
instantes. Isso era assunto para muitas noitadas, entre exageros e
bravatas.

O frenesi noturno somente era reduzido na Noite de Natal,


onde poucos solitários se arriscavam em observar e compartilhar da noite
festiva das damas da noite.

No centro da cidade, alguns bares do centro se resumiam no


Grande Ponto, local onde se concentrava a sociedade local para a noite
conversar e se encontrar.

A cidade, porém, também experimentou o clima de guerra,


com os “blac-ut” em algumas noites, que consistia em apagar toda a cidade
em determinado horário da noite, caindo em total silêncio e atenção ao
possível bombardeio das tropas inimigas, o que mais servia para exercícios
das tropas alojadas na região.

Era comum nas Rocas, nas noites de “blac-ut”, onde não era
permitido sequer acender um fósforo, ficar nas calçadas observando o
barulho das marolas ou em total atenção as instruções previamente
divulgadas pelos comitês de defesa. Contudo, após os momentos de tensão,
começava de novo a rotina com comemorações, comentários e sempre
alguém para espalhar uma noticia sensacionalista sobre o possível ataque
nazista que fora abortado pela aviação aliada.

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Entre os bares pelo centro, o movimento se resumia ao no
máximo até a meia-noite, período em que as “famílias” iam dormir e os
boêmios, se encontravam para “descer” para a noite da Ribeira.

Porém, a cidade não era somente de farra e boemia, alguns


militares americanos preferiam se deleitar nas conversas pelas calçadas,
fazendo amizades com as famílias locais e outros a namorarem as “moças”
da cidade. Tendo inclusive, sido motivos de muitos casamentos e também
de muitas desilusões, ante o abandono dos norte-americanos quando
tiveram que voltar para sua terra.

A estas “abandonadas”, que muitas vezes preteriram ou


tinham “dado fora” nos rapazes locais, estes preparam um apelido muito
especial – de “coca-cola”, em alusão aos refrigerantes preferidos dos
militares, que bebiam e depois devolviam a garrafa... Tendo algumas “se
adiantado demais” e ficado com a gravidez como lembrança.

Já as paramilitares do corpo feminino, passavam as suas


horas de folgas em ateliês de costuras especialmente montado nas casas do
centro, encomendando roupas de bailes e de uso pessoal, para as noitadas
nos clubes da Cidade. Privilégio este, que usufruíam com afinco, pois na sua
terra a costura sob encomenda custava muitos dólares.

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CARNAVAL

É fevereiro, vem o carnaval, de um modo geral os norte-


americanos não conheciam a festividade. Mesmo com o nosso Carnaval
desanimado por causa da Guerra, pra eles foi uma revelação, quatro dias de
folia geral, cantorias, batucadas, “papangus”, blocos, fantasias, máscaras,
ritmo do frevo, corso de carros pela Ribeira e ainda a lança-perfume.

Foi pura maravilha para os sobrinhos do Tio Sam, ficaram


extasiados com aquelas bisnagas que jogavam seringadas de éter
perfumado a metros de distancia, que se divertiam munidos do lança-
perfume Rodouro a lançar uns nos outros aos pulos da frieza do éter.

Devido às tropas Aliadas terem conquistado a Sicília em julho


de 1943, serviu de motivação para a marcha carnavalesca de 1944 que
tinha como refrão: “Ai, ai Cecília...”, que foi a mais popular das musicas
momescas naquele ano.

Os norte-americanos viram toda aquela animação gostosa


que começava num sábado e continuar no domingo até a terça-feira para
encerrar tudo na quarta-feira, não conseguiam compreender como todos
naquele dia mergulhavam num silencio frente uma missa com uma cruz
pintada em cinzas para retomarem os seus afazeres normais. Eis que um
americano que passeava no Grande Ponto do Centro da Cidade, grita para
todos ao chegar no “OK Bar”:

— Porquê não mais Cecília???

Já nas Rocas, o Carnaval se resumia em blocos de


“papangus”, batuques e raríssimas lanças-perfume, que animavam as
esquinas toscas das ruas e vilas, com a criançada se divertindo observada
pelos pais que ante a miscelânea de bravatas contadas uns aos outros
degustavam algumas garrafas de uísque contrabandeado, cachaça e
garrafas de cervejas Teotônio.

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Entre um momento e outro, surgia uma briga por motivos
mais banais e lá se formava uma pequena roda de admiradores e
partidários dos valentões, formando uma verdadeira discussão coletiva
indecifrável.

Neste ambiente, também envolvia as mulheres e filhos dos


participantes, formando um só “bate boca”, onde se extravasavam além dos
insultos pessoais até a vida intima de cada um. Embora no outro dia, todos
estivessem normalmente convivendo entre as vielas e casas, com leves
ressentimentos.

Porém, nem tudo era violência, também existiam os que


aproveitavam o momento com alegria. Sentados nas esquinas dos becos,
portando pandeiros improvisados, caixotes e latas vazias, improvisavam
musicas carnavalescas e ritmos de frevos, para deleite das mocinhas que
improvisavam um leve “requebrado”.

Vez por outra, lá vinha um bêbado cantando destoada uma


modinha de carnaval se dirigindo para um boteco ou para sua casa
escoltado por sua mulher.

As manhãs eram de folia, batucadas em latas, banhos na


maré para tirar a ressaca, visitas dos “papangus” as casas dos amigos e
desconhecidos, inicio dos trabalhos dos bêbados e dos carnavalescos.

À tarde e a noite era para brincar o carnaval, cada um ao seu


modo, em grupos e sozinhos, uns gostando outros reprovando, mas no
final, todos fazia o seu carnaval.

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A VIDA CONTINUA

Modesto, desiludido da vida boêmia, agora pensava em


juntar alguns trocados para garantir a sua velhice, comprando algum barco
de pesca para colocar os filhos para pescar ou construir uma oficina de
barcos, ou quem sabe, edificar uma vila e viver dos alugueis. Dorinha por
sua vez, ficava encarregada de ver quais das alternativas seriam a ideal
segundo os seus guias espirituais...

Já Gracinha da Ribeira, desenganada do seu caso amoroso,


conseguira uma casa de um casal de americanos para lavar roupas. Agora
demonstrava mais serenidade, pois observara o comportamento dos seus
patrões e queria segui-los para mostrar que era chique. Somente relaxando
nos dias de feira, quando ainda arriscava uns tragos nas barracas
acompanhados de sonoros “Oi boy, good luck!” para os seus amigos que se
divertiam com suas histórias quando perguntavam a ela se teria conseguido
algum namorado norte-americano e ela afirmava que não gostava da forma
de amor deles, pois eram muito apressados não dava tempo de “gostar”.

Sob os risos afirmava:

— Ah, num dá certo, eles encostam-se a um muro, fazem


vuc-vuc e pronto...

Assim, Gracinha se divertia e divertia os seus amigos, para


na terça-feira voltar ao batente sempre mascando uns ramos de coentro
para esconder o hálito pesado da segunda-feira.

Gracinha agora também é avó, sua filha Conceição casou-se


“fugida” com Joca de seu Germano, moram em Macaíba, têm uma barraca
no Mercado e vão tocando a vida.

Dorinha por sua vez já ensaia no quintal de sua casa, sob o


olhar temeroso de Modesto, a sua tenda de Catimbó, inspirada no seu guia
e sob os estímulos da sua comadre, que a vêm como uma médium.

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No centro do Canto do Mangue, se concentra a
desembocadura da maioria das ruas das Rocas, também é passagem para
as praias e a pista de pouso do radiofarol, localização onde se alojam
próximo as baterias antiaéreas das forças armadas. Naquele centro se
passa a maioria dos seus habitantes, é o ponto de encontros, de conversas,
de comércio e cenário das ressacas dos boêmios locais.

Nas ruas vão se aglomerando as casas que se multiplicam


dando mais sinuosidade ao alinhamento. Meninos brincam de “arraia”,
jogam “biloca” enquanto os pais saem logo cedo para a labuta, ao contrário
de outras figuras como Betinho, que passa o dia em sua frágil casinha de
taipa, dormindo dentre os humildes moveis revestidos de poeira e teias de
aranha, deixando para a noite sair de pasta na mão, de terno desbotado,
para o delírio da criançada, que perguntavam entre sorrisos:

— Pra onde vai, Betinho?

— Vou para as minhas obrigações – respondia Betinho todo


sisudo.

Lá pra frente, os meninos gritavam: — Betinho é vampiro...!

Lá sumia Betinho silencioso e concentrado, dentre as ruelas e


vilas, para somente retornar lá pela madrugada, assim era diariamente sua
rotina.

Diziam os mais velhos, que Betinho era um maluquinho que


não atrapalhava ninguém, na sua cabeça ele era um empresário famoso,
mas que na verdade passava a noite toda andando pelas ruas, olhando as
vitrines do centro da cidade ou dentre o comércio da Ribeira, vivendo de um
pequeno aluguel de parte de sua casa herdada em Macau.

Por sua vez seu “Manoel do Sorvete” fornecia água para


Betinho, embora ele não apreciasse um banho diário, “Luiz Barbeiro” dava a
cortesia de cortar os seus cabelos, quando já estavam bem longos, assim, a
solidariedade popular mantinha e assistia uns aos outros, dentre as brigas,
pazes, futricas e olhares na vida dos seus vizinhos.

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Na casa em frente, constando de um único vão e um
banheiro improvisado, morava mestre Marcos e sua família, um carpinteiro
de barcos alto e magro, que ganhava a vida num pequeno estaleiro
improvisado nas margens da maré.

Sua mulher era dona Alice, tinha um pequeno boteco em


frente de casa, onde vendia aos passantes, cachaça e vinhos de jurubeba
ao lado de doces açucarados e alfenins para a criançada, além de brotes
salgados e “sodas”. Ela era uma negrona alta e esguia, sisuda e de poucas
conversas.

Já o mestre Marcos era conversador, extrovertido contava


histórias fantasiosas de pescadores, bravatas de mar e de terra. Contudo,
tinha o hábito de “brechar” (espiar as escondidas) as mulheres na hora do
banho, ou nas suas intimidades.

Conta-se que certa noite enluarada, mestre Marcos de tanto


desejar a filha de Luiz da Burra, um vizinho próximo que ganhava a vida
numa velha carroça puxada por uma égua, era conhecedor dos hábitos de
banhos noturnos de Ester, que todas as noites tomava um “banho de cuia”
com a água de um tanque atrás de sua casa. Então resolveu escolher um
lugar bem próprio para apreciar aquele banho, assim o fez na hora certa.

Estando ele devidamente instalado ao lado de uma


mangueira da casa vizinha, improvisou um apoio com umas latas vazias
para ter melhor visão. Contudo, em plena empolgação de voyeur,
desequilibrou-se das latas provocando além da queda, um barulho que
acordou os donos da casa e os vizinhos.

De pronto, logo encontraram o mestre Marcos tropeçado no


chão, com as calças abaixadas e logo deduziram o seu “delito”. Foi o
bastante para chamarem a polícia e colocar o mestre atrás das grades por
uma noite.

Outra boa, foi a de “Luiz Barbeiro”, que tinha uma mulher de


olhar sedutor e linhas atraentes (boazuda), a dona Isabel, que de certa feita
teve um rápido caso amoroso com Galego, um pescador da redondeza

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metido a valentão que sempre andava com calça e camisa branca. Só que
Luiz foi sabedor e temendo uma “desmoralização” preferiu se calar.

Porém, passados alguns meses, o garanhão Galego,


pensando que o barbeiro não sabia de nada, resolveu cortar o seu cabelo no
salão de Luiz. Chegando lá, Luiz foi prestativo e além de cortar o seu
cabelo, ainda ofereceu tirar sua barba gratuitamente, o que foi aceito de
pronto a oferta. Depois de inclinar o Galego na cadeira, espumar o seu
rosto, Luiz com a navalha na mão, chegou próximo ao pescoço do Galego e
disse baixinho:

— hoje você vai morrê, pra aprender a respeitar muié de


homi!

O Galego ouvindo isto relaxou na cadeira e tremendo arriou-


se numa tremenda crise de diarréia que sujou toda a cadeira, tendo Luiz no
meio da fedentina gritado para a mulher:

— Isabé, vem aqui limpar a cagada de Galego!

Custando ao Galego, o preço de sair correndo dali todo sujo


entre piadas e pedradas da meninada que o confundiam com mais um
bêbado.

Assim, anoitecia as Rocas e amanhecia para uma nova vida,


ao lado do crescimento da cidade e da efervescência da Ribeira e do Centro.

Neste ponto, meu amigo seu Gaspar já demonstra sono,


contudo o prazer em relembrar o tempo passado é quebrado pelos sinais de
cansaço e pelas companhias dos maruins que insistem em ferroar as nossas
pernas.

De repente o seu Gaspar me pergunta:

— O senhor se alcançou “Zé Areia”?

— Lógico – afirmei. Ainda me lembro de “Zé Areia”, eu era


menino.

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Ai o seu Gaspar entre sorrisos afirma:

— Aquele era muito esperto, um artista como dizem hoje em


dia...

— Zé Areia conseguiu tapear muitos americanos, vendeu até


urubu como papagaio...

“Zé Areia” é uma personalidade folclórica de Natal, um misto


de boêmio e de mascate, de fala mansa, tranqüilo e sereno, vivia de
pequenas vendas e ajudas dos amigos.

Mudamos de assunto e olhamos à noite fria ao som das


águas da maré-cheia, falamos das horas que se adiantam e o sono agora é
compartilhado, nos despedimos prometendo outra prosa para outro dia.

Lá se vai seu Gaspar, feliz e cantarolando a musica Praieira:

“Praieira dos meus amores,

Encanto do meu olhar.

Quero contar-se os rigores,

Sofridos a pensar

Em ti sobre o alto mar...”

Lá do portão ainda grita:

― Também sou cantor, fui amigo de Othoniel Meneses!

— Amanhã vou trazer algumas fotografias do meu tempo de


boêmio...

Respondo de pronto:

— Ah, seu Gaspar o senhor falou de todo mundo, mas do


senhor, nada...

Ele volta rapidamente e me diz em tom de gracejo:

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— Já viu malando falar de si? Só conto as histórias alheias...

Numa gargalhada franca, seu Gaspar se despede. Contudo


avisa logo em seguida:

- depois eu vou contar as minhas...

Lá se vai o seu Gaspar, para a sua casinha a beira do rio,


aquele velho pescador, herói anônimo da vida, deixando o legado da
história daquele bairro que avisto, as Rocas. Não, um legado de parte da
história de Natal, agora me sinto um pouco mais rico de cultura, só me
resta me preparar para dormir.

Boa noite.

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VOCABULÀRIO

Adiantado — se adiantar, ato de ir além do permitido.


Alfenim — iguaria feita de açucar
Agulha ― peixe típico da região.
Amigado ― amasiado, junto.
Aperrear — ato de perturbar, admoestar alguém.
Artes — fazer artes, ato de fazer peripécias, traquinagens ou diabruras.
Assustado ― baile
Baiteiras ―– barcas fluviais de madeira
Banho de cuia — banho com auxilio de balde á mão
Baludos ― pessoas ricas.
bate boca ― discussão.
Biloca ― bola de gude, 00
Brejinho ― Cidade do agreste potiguar
Caiana ― tipo de cana de açúcar
Casar no padre ― ato de casar no religioso
Catimbó ― feitiço popular do nordeste, mesmo que macumba.
Chamadas ― doses de bebidas
Chamego ― namoro.
Chantecler de Caron ― marca de perfume francês
companheiros-de-copo ― amigos de mesa de bar
corruchiado ― cochichado, conversa.
Dar-o-fora ― romper o namoro, abandonar
Encasimirado ― vestido de casimira, tecido clássico.
Extremoz ― Cidade vi, traquinagenszinha de Natal
fubá de milho ― farinha de milho adocicada.
Garajaus ― grades de palhas que servem para transportes de produtos.
gastar a torto e a direito ― gastar muito dinheiro.
Gatuno ― ladrão.
In cannabis, veritas. — paródia de In vino véritas : no vinho a verdade.
Lapadas — goles.
Mangaio — ou mangai, miscelânea de artefatos e artigos populares e regionais
mulheres da vida — prostitutas
Negão — aumentativo de “negro” – negro forte.
Negar fogo — falhar
Nomes feios — palavrões.
Pall−Mall — marca de cigarro americano
Papangus — fantasias populares de carnaval, utilizando mascaras, trapos e maquiagens.
Parker 51 — marca de caneta clássica
Pintar o sete — fazer e desfazer, ato de ser esperto, astuto, traquino.
Ponche – refresco.
Ponto — feitiço ou cantoria do catimbó.
Primas — apelido carinhoso e simulado de prostitutas
puxa-puxa ― doce feito com açúcar e cravo.
Puxando fogo — bêbado
Ray Ban — marca de óculos populares entre os norte-americanos.
Requebrado ― mesmo que remelexo.
Samba acabado — arrasado, fraco.
Sede danada nele — ter desejo de atacar alguém
Smith−Wessom — marca de revolver americano
Soda — bolacha artesanal de farinha de trigo, açúcar mascavo e especiarias.
tira−gosto — petiscos
Traçado — bebedeira
Triangulo ― instrumento comum regional que consiste num triangulo de ferro e uma haste.
Triscada — bêbada
Tubarão ― tecido sintético brilhoso, em moda na época.
Uva — adjetivo de elogio de admiração a uma mulher
Venda — mesmo que bodega, mercearia.
Zoada — barulho.

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