Carta-37-Cesit-Esperança e Mudança-PMDB-1982

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ISSN 1980-5144

CARTA SOCIAL
E DO

TRABALHO
37
Jan. / Jul. 2018
CARTA SOCIAL

TRABALHO
E DO
37
INSTITUTO DE ECONOMIA DA UNICAMP
Diretor
Paulo Sérgio Fracalanza

Diretor Executivo do CESIT Sumário


Denis Maracci Gimenez

Conselho Editorial
Anselmo L. dos Santos
Apresentação ...................................................................... i
Carlos Alonso Barbosa de Oliveira
Carlos Salas Paez Artigo
Christoph Scherrer
“Esperança e Mudança”: uma estratégia democrática de
Clemente Ganz Lúcio
desenvolvimento nacional
Eugenia Troncoso Leone
Denis Maracci Gimenez ...................................................... 01
Frank Hoffer
Geraldo Di Giovanni
Documento histórico
Hugo Rodrigues Dias
José Carlos de Souza Braga Carta à nação e aos companheiros do PMDB
José Dari Krein Ulysses Guimarães, Henrique Santillo, Francisco Pinto e
José Ricardo Barbosa Gonçalves Milton Seligman .................................................................. 11
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo
Magda Barros Biavaschi Visão geral
Marcio Pochmann Esperança e Mudança: proposta de governo para o Brasil .. 13
Paulo Eduardo de Andrade Baltar
Parte I
Waldir José de Quadros
O PMDB e a transformação democrática ............................ 20
Walter Barelli

Editoria Parte II
Marcelo Weishaupt Proni Uma nova estratégia de desenvolvimento social ................. 29
Maria Alice Pestana de Aguiar Remy
Parte III
Projeto visual e editoração eletrônica Diretrizes para uma nova política econômica ...................... 71
Célia Maria Passarelli
Parte IV
Endereço
A questão nacional ........................................................... 107
Instituto de Economia da Unicamp
Cidade Universitária Zeferino Vaz
Memória
Caixa Postal 6135
CEP 13083-970 – Campinas – SP Discurso do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte
Telefone: 55 (19) 3521-5720 em 5 de outubro de 1988
E-mail: cesit@unicamp.br. Ulysses Guimarães ........................................................... 114
http://www.cesit.net.br/.
Apresentação

Este número especial da Carta Social e do Trabalho é dedicado à divulgação de


dois documentos de grande valor histórico: “Esperança e Mudança: uma proposta de
governo para o Brasil”, publicado em 1982 na Revista do PMDB (ano II, n. 4, out./nov. 1982);
e o “Discurso do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte em 5 de outubro de 1988”,
proferido no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988.
No único artigo desta edição, dedicado a explicar ao leitor a importância da
estratégia de desenvolvimento nacional proposta pelo partido político que aglutinava as
principais lideranças da oposição ao regime militar no início dos anos 1980, Denis Maracci
Gimenez apresenta uma breve contextualização histórica da conjuntura econômica e
política do Brasil do “Esperança e Mudança”. O artigo ressalta a relevância do documento
para a compreensão dos desafios – numa época de crise do modelo de crescimento
econômico e forte pressão social para a redemocratização do País – para a retomada do
dinamismo da economia e o redirecionamento do desenvolvimento nacional. Enfatiza,
também, o papel atribuído ao Estado nacional como protagonista no enfrentamento dos
problemas diagnosticados. Além disso, o artigo estabelece uma ligação entre o documento
do PMDB e os avanços obtidos com a Constituição Cidadã de 1988. Note-se que “Esperança
e Mudança” já apontava a necessidade de uma Assembleia Nacional Constituinte para
assentar no País os fundamentos de um novo contrato social e político baseado na
democracia, na justiça social e na soberania nacional.
O documento1 do PMDB contém uma Carta endereçada à Nação assinada pela
presidência do Partido e pela presidência da Fundação Pedroso Horta. Em seguida, é
reproduzida uma visão geral, que sintetiza as principais propostas e apresenta um conjunto
amplo de políticas públicas e reformas institucionais necessárias para a mudança almejada.
O conteúdo propriamente dito do documento se divide em quatro partes: “O PMDB e a
transformação democrática”; “Uma nova estratégia de desenvolvimento social”; “Diretrizes
para uma nova política econômica”; e “A questão nacional”. Escrito por várias mãos do
núcleo mais próximo ao Dr. Ulysses Guimarães – no qual se destacavam intelectuais como
Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manuel Cardoso de Mello, entre outros –, o documento teve
grande repercussão no meio político, inclusive entre muitos deputados constituintes, e se
tornou um marco da luta por reformas democráticas no Brasil.
O segundo documento incluído nesta edição especial é o discurso de Ulysses
Guimarães, então Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, enaltecendo as
principais qualidades da nova Constituição Federal e ressaltando sua importância como um
marco para o início de uma nova era no Brasil. Trata-se da versão completa do discurso
disponibilizada pela Câmara dos Deputados2.

1 Agradecemos a Leon Souza de Oliveira e Matheus Aureliano Pereira da Silva pelo trabalho de
digitação do documento impresso.
2 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/.

i
Ainda que a conjuntura histórica da década de 1980 seja muito diferente da
conjuntura atual, esses dois documentos podem estimular reflexões sobre questões bastante
relevantes que afetam a sociedade brasileira contemporânea.

Boa leitura!
Os editores

ii
Artigo

“Esperança e Mudança”: uma estratégia democrática de


desenvolvimento nacional1
Denis Maracci Gimenez

O forte ímpeto reformador que tomou conta das forças sociais que se colocavam
à frente nas lutas pela abertura democrática, desde o final da década de 1970, certamente
projetava um outro país e vislumbrava a democratização para as décadas vindouras.
Tal ímpeto pode ser caracterizado pela agenda construída nas fileiras do PMDB,
partido criado oficialmente em 30 de julho de 1981, que incorporou o principal núcleo de
oposição ao regime militar, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB); pode ser
identificado nas aspirações do novo sindicalismo, na criação da Central Única dos
Trabalhadores, do Partido dos Trabalhadores (PT), na força de movimentos setoriais, em
defesa de reformas sanitárias, na educação etc.
Um dos maiores manifestos reformadores dos anos 1980 fora, sem dúvida, o
documento “Esperança e Mudança: uma proposta de governo para o Brasil”, publicado em
outubro de 1982, que arrolava, de maneira ampla, um conjunto de reformas econômicas,
sociais e políticas para o país (PMDB, 1982, p. 5-6).
A lógica reformista do “Esperança e Mudança”, no que se refere à nova
estratégia de desenvolvimento social e suas diretrizes para a política econômica, traz
consigo uma característica essencial: aproximar crescimento econômico e desenvolvimento
social. Na verdade, a compreensão exposta no documento se traduz numa estratégia de
desenvolvimento social que somente seria viabilizada sob novas diretrizes para a política
econômica. Ao mesmo tempo, novas diretrizes para a política econômica só fariam sentido
se incorporassem uma ampla estratégia de desenvolvimento social.
O que se observa nessa “proposta de governo para o Brasil” é uma extensa
agenda de reformas dirigida ao desenvolvimento social. Política salarial, previdência social,
saúde, educação, abastecimento, habitação, saneamento, transporte, políticas de
desenvolvimento regional, entre outras. Mais do que isso, uma agenda que toca em todas
as áreas sensíveis ao enfrentamento da questão social no Brasil, para as quais o regime
militar escolhera caminhos que foram alvo de duras críticas por parte da oposição à
ditadura2.

1Elaborado a partir de GIMENEZ, Ordem liberal e a questão social no Brasil, LTr, 2008.
2Inclui-se, ainda, nessa agenda de reformas a questão agrária. Se o campo brasileiro já não tinha o
mesmo peso de outrora na estrutura econômica da oitava economia do mundo no início dos anos 80,
ainda era importante fonte de tensões, pobreza e atraso social. Em 1980, 32,4% da população total
estavam no campo, mais de 38,5 milhões de brasileiros (IBGE, Censo Demográfico). Por isso mesmo,
uma parte importante do documento é dedicada à questão agrária.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018.


Denis Maracci Gimenez

Talvez a maior expressão das relações entre a questão social e desenvolvimento


econômico seja exatamente tomar o “emprego como a síntese da política social”. A questão
é assim definida (PMDB, 1982, p. 62-63):
“[...] assim como a redistribuição da renda, a questão do emprego é complexa –
envolve vários planos e políticas distintas. Na sua evolução conjuntural, o nível
de emprego subordina-se, principalmente, ao desempenho das atividades
produtivas. Mas, não é só. Conquistas trabalhistas e liberdade sindical são
necessárias para garantir postos de trabalho, especialmente em situações de
crise. A afirmação de direitos sociais, com a sua ampliação substantiva, passa
pela instituição do seguro-desemprego; pela preservação dos espaços na
economia para segmentos não-assalariados, principalmente no campo; passa
por políticas públicas compensatórias e gastos governamentais na esfera social.
Na sua dimensão de longo prazo, a questão do emprego é ainda mais complexa.
Envolve reformas sociais e institucionais de profundidade, a reorientação do
sistema produtivo numa direção compatível com a geração de milhões de
empregos para uma população muito jovem e que cresce com rapidez. Ao
propor uma “política” para o emprego desvinculada de orientações concretas
quanto aos rumos do sistema econômico, sem qualquer menção a reformas
sociais, o governo faz apenas retórica vazia e autodesmoralizante”.
Não por outro motivo, na sequência da “estratégia de desenvolvimento social”,
os pemedebistas afirmam as diretrizes para a política econômica. Partem do diagnóstico da
crise, da inadequada saída do ajustamento diante da crise mundial e da progressiva
deterioração das condições econômicas do país em face da “recessão planejada” pelo
governo militar. Não obstante as dificuldades de curto prazo, sobre as quais indicam
diretrizes alternativas – desvinculação da taxa interna de juros das condições de
refinanciamento da dívida externa, medidas fiscais e financeiras de emergência, políticas
compensatórias de emprego, controle sobre o comércio exterior, entre outras – todo o
sentido da análise e das proposições econômicas caminham para uma posição de que não
se trata simplesmente de uma crise conjuntural derivada do estrangulamento externo, mas
a explicitação de contradições estruturais e limitações de fundo, que se configuraram numa
crise estrutural de grandes proporções em meio à crise mundial. Por isso mesmo, o
documento enfatiza a necessidade de uma nova estratégia econômica de reordenação
dinâmica do sistema produtivo, que combinasse diretrizes para a política industrial,
energética, de transportes, de desenvolvimento científico e tecnológico, para uma ampla
reforma fiscal e, principalmente, para uma grande reforma financeira, que oferecesse as
bases para o financiamento da nova etapa de expansão, objetivo último do programa.
É nessa démarche, por exemplo, que a reforma financeira é vista como
fundamental para a retomada do desenvolvimento. Na verdade, uma reforma financeira
que, em primeiro lugar, liberte o Estado e as finanças públicas do processo de
“institucionalização da atividade especulativa” remunerada pelo Tesouro Nacional (PMDB,
1982, p. 103):

2 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018.


“Esperança e Mudança”: uma estratégia democrática de desenvolvimento nacional

“Um requisito fundamental para uma nova política de desenvolvimento é a


reestruturação em profundidade do sistema financeiro nacional, conjugada ao
controle do processo de endividamento externo. Não é admissível que a dívida
pública interna continue a ser operada a curtíssimo prazo, com papéis de
liquidez imediata e rentabilidade totalmente garantida pelo Banco Central. O
recente crescimento desenfreado da dívida interna certamente projeta para o
futuro graves dificuldades para o manejo da política monetário-creditícia, a não
ser que medidas corretivas sejam tomadas a curto prazo. Não é também
admissível que a função crucial de suprir financiamento de longo prazo para o
sistema empresarial público e privado, continue, em grande medida, a ser
efetuada pelos bancos internacionais. Para isso é fundamental cortar o vínculo
indesejável entre a dívida externa e a dívida pública e privada, através de
medidas relativas ao endividamento externo. O primeiro objetivo da reforma
financeira é criar mecanismos internos de financiamento de longo prazo [grifo
meu], com a materialização de instrumentos de dívida e intermediação
financeira que os viabilizem.”
O desdobramento dessa visão sobre o enfrentamento da questão social no Brasil,
e nela contida a questão do emprego, da distribuição de renda, de reformas sociais e,
principalmente, da retomada do desenvolvimento econômico, dá formas ao que Eduardo
Fagnani (2005) denomina de “projeto reformador progressista”, que foi progressivamente
sendo absorvido pelas forças políticas que irão compor a Aliança Democrática na transição
que acabaria com o regime militar3.
De alguma maneira, o “Esperança e Mudança” é uma síntese das pretensões
progressistas de reformas na démarche da abertura. As linhas gerais de suas formulações
serão vistas em vários documentos oficiais durante o governo da Nova República, nos
documentos da Secretaria de Planejamento da Presidência da República (SEPLAN/PR),
responsável pelos Planos de Desenvolvimento Econômico e Social, nas argumentações em
torno da criação do Seguro-desemprego em 1986, nas formulações que levaram à criação de
um Sistema Único de Saúde, bandeira do movimento sanitarista desde os anos 1970.
Sem dúvida, a consagração de boa parte da agenda de reformas progressistas
ficou inscrita na Carta Magna de 1988. A “Constituição Cidadã”, assim denominada pelo
Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Deputado Ulysses Guimarães, foi o ponto
máximo dos anseios reformadores dos anos 1980. Afirmara o Doutor Ulysses em seu
discurso, por ocasião da promulgação da Carta em outubro de 1988:
“[...] o homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem
saúde, sem casa, portanto sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões
de miséria que envergonham o País [...]. Cidadão é o que ganha, come, sabe,
mora, pode se curar. A Constituição nasce do parto da profunda crise que abala
as instituições e convulsiona a sociedade”.

3Sobre o chamado “reformismo democrático” nos apoiamos na minuciosa análise sobre a agenda de
reformas nos anos 1980, setor a setor, feita por Fagnani (2005, p. 88 e seguintes).

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018. 3


Denis Maracci Gimenez

O espírito da nova Carta está exposto já em seu Título II, sobre os Direitos e
Garantias Fundamentais, onde estão inscritos os Direitos Sociais (arts. 6º a 11º). É
consagrado um conjunto de direitos sociais relativos à educação, à saúde, ao trabalho, ao
lazer, à segurança, à previdência social, à proteção da maternidade e da infância, à
assistência aos desamparados (art. 6º). No tocante ao trabalho, o art. 7º prevê que são direitos
dos trabalhadores urbanos e rurais, a relação de emprego protegida contra a despedida
arbitrária ou sem justa causa, prevendo indenização compensatória.
Reafirma o seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário (criado
em 1986); o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), um salário mínimo fixado em
lei, nacional, capaz de atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família com
moradia, alimentação, lazer, educação, saúde, vestuário, higiene, transporte, previdência,
com reajustes periódicos que preservem o seu poder aquisitivo; a irredutibilidade e a
proteção dos salários, constituindo crime sua retenção dolosa; o repouso semanal
remunerado; a participação nos lucros ou resultados, desvinculada da remuneração, entre
outros direitos trabalhistas construídos desde a “Era Vargas”. A nova Carta ainda garantiu
a livre associação profissional ou sindical (art. 8º), o direito de greve (art. 9º) e a participação
dos trabalhadores e empregadores nos colegiados de órgãos públicos em que seus interesses
profissionais ou beneficiários fossem objetos de discussão ou deliberação (art. 10º).
O Título VIII – Da Ordem Social – é emblemático no que se refere ao espírito da
Nova Carta. Em sua disposição geral (art. 193), afirma a ordem social fundada no trabalho,
com o objetivo do bem-estar e da justiça social.
Dando os contornos concretos à sua disposição geral, a Constituição estrutura a
seguridade social, compreendida como um conjunto integrado de ações de iniciativa dos
poderes públicos e da sociedade, destinada a assegurar os direitos relativos à saúde, à
previdência e à assistência social (art. 194). Nesse sentido, a organização da seguridade
social brasileira, responde aos seguintes objetivos gerais:

I. Universalidade da cobertura e do atendimento


II. Uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações rurais e urbanas
III. Seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços
IV. Irredutibilidade do valor dos benefícios
V. Equidade na forma de participação do custeio
VI. Diversidade da base de financiamento
VII. Caráter democrático e descentralizado da administração

Outrossim, a Constituição estabelece no art. 195 que o financiamento dos gastos


da seguridade social será feito por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante
recursos provenientes da União, estados, distrito federal e municípios e das contribuições
sociais, devendo seu orçamento próprio (art. 165), ser elaborado de forma integrada pelos

4 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018.


“Esperança e Mudança”: uma estratégia democrática de desenvolvimento nacional

órgãos responsáveis pela saúde, previdência social e assistência social, tendo em vista as
metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)4.
Como parte da seguridade social, a saúde é afirmada como um direito de todos
e dever do Estado. A nova Carta consagra a universalidade e a equidade na promoção de
ações e acesso a serviços oferecidos, assim como a constituição de um Sistema Único de
Saúde, financiado com os recursos da Seguridade social, da União, dos estados, distrito
federal e municípios, além de outras fontes (art. 198). A previdência social, também
integrante da Seguridade social, passou a ser organizada sob a forma de Regime Geral, de
caráter contributivo e de filiação obrigatória (art. 201). A ela cabe a cobertura de eventos
como doenças, acidentes, invalidez, morte e idade avançada. Cabe-lhe a proteção à
maternidade, ao trabalhador em situação de desemprego involuntário, aos dependentes do
segurado de baixa renda e a garantia pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao
cônjuge ou companheiro e dependentes. Com efeito, a Carta consagra o direito à
aposentadoria no Regime Geral para homens com 35 anos de serviço e mulheres com 30
anos de contribuição, ou idade de 65 e 60 anos, respectivamente, reduzido em 5 anos o limite
para trabalhadores rurais de ambos os sexos, para os que exerçam atividades em regime de
economia familiar (produtor rural, garimpeiro e pescador artesanal), além de professores
que comprovem dedicação exclusiva ao magistério na educação infantil e no ensino
fundamental e médio (art. 201, § 7º). Cabe ressaltar ainda, que a Constituição passa a
garantir não somente o reajustamento do valor dos benefícios, para preservar-lhes, em
caráter permanente, o valor real (art. 201, § 4º), como que nenhum benefício poderá ser
inferior ao salário mínimo nacional vigente (art. 201, § 2º).
Também a Assistência Social integra a seguridade social brasileira conforme
previsto no art. 203 da Constituição da República. A ela compete prestar assistência a quem
necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, tendo por objetivos a
proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças
e adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e
reabilitação de pessoas portadoras de deficiência; a garantia de um salário mínimo mensal
à pessoa deficiente e ao idoso que comprove não possuir meios de prover a própria
manutenção, ou tê-la da família. O texto constitucional prevê que as ações no campo da
Assistência Social serão amparadas pelos recursos do Orçamento da Seguridade social, além
de outras fontes afins (art. 204). Para além das diretrizes da Seguridade social, a Constituição
consagra a educação como direito universal e dever do Estado, suas bases de financiamento,
suas prioridades; garante a todos o pleno exercício dos direitos culturais e prevê o incentivo
à cultura e o acesso às fontes da cultura nacional (art. 215).

4 Desde a Constituição de 1988, o Orçamento Geral da União (OGU) é formado pelo Orçamento Fiscal,
pelo Orçamento da Seguridade social e pelo Orçamento de Investimentos das Empresas Estatais. O
sistema de Planejamento e Orçamento, sob responsabilidade do executivo federal, prevê a confecção
do Programa Plurianual (PPA), que define as prioridades governamentais para um período de quatro
anos; a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que estabelece metas e prioridades para o exercício
subsequente; e por fim, o Orçamento Anual, que disciplina todos os gastos e receitas.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018. 5


Denis Maracci Gimenez

Não é ponto de divergência o caráter solidário, universalista e equânime do


texto constitucional promulgado em outubro de 1988. No país que é um dos socialmente
mais injustos do mundo, é ele um baluarte da luta contra a miséria, a desigualdade, a
injustiça social, representando o sentimento do “resgate da dívida social” que toma conta
das forças democráticas no momento da abertura do regime militar. Com efeito, a
Constituição e os esforços reformistas vistos no decorrer dos anos 1980 projetavam a
conformação de um novo padrão social para o Brasil, partindo da garantia de um conjunto
de direitos universais, de políticas de proteção social, de promoção do bem-estar social.
Todavia, parte importante dos anseios inscritos na Carta de 1988 não se
concretizou nos mais de quinze anos seguintes. O problema aqui não é, pois, de inexistência
da garantia constitucional de direitos, mas da falta de condições materiais objetivas de
efetivação das conquistas democráticas, claramente vinculadas à retomada do
desenvolvimento do país. Essa questão é de difícil tratamento. Talvez com ela consiga-se
explicitar, ainda que de maneira sucinta, algumas das determinações que julgamos
essenciais para a vitória política-ideológica do liberal-conservadorismo no Brasil a partir do
início dos anos 1990.
O que se viu ao longo da década de 1980 não foi simplesmente o desfile de forças
progressistas, comprometidas com a abertura, o fim do regime militar e a efetiva
democratização do país. Pode-se observar a existência também de forças conservadoras, não
só pelos encaminhamentos dados, ainda sob o poder dos quartéis, em relação à “crise da
dívida” no início da década, mas nos embates que levaram à derrota da Emenda Dante de
Oliveira, da campanha “Diretas Já” e à saída pelo Colégio Eleitoral, consagrando a
candidatura de Tancredo Neves, em detrimento do principal líder das oposições, Ulysses
Guimarães, candidato natural, caso as eleições fossem diretas. Observa-se, também, na
correlação de forças do governo da Nova República que, por um lado, se abriu espaço para
uma agenda de reformas progressistas, articulada inicialmente a partir do governo federal
(particularmente entre 1985 e 1987); por outro lado, também se estruturaram espaços de
articulação para bloqueá-las, “contramarchas” que se desenharam de maneira clara na
organização do “Centrão”, durante a Assembleia Nacional Constituinte (FAGNANI, 2005).
Além disso, foi marcante o crescente processo de desgaste das forças
reformadoras democráticas, particularmente com a desfiguração do principal partido, o
PMDB, que elegeu 22 dos 23 governadores pelo Brasil e uma enorme bancada de Deputados
e Senadores constituintes em 1986, mas, três anos depois, nas eleições presidenciais de 1989,
obteve pouco mais de 3,2 milhões de votos (4,43%), o que colocou Ulysses Guimarães num
constrangedor 7º lugar5. Por certo, parte importante das forças políticas de
redemocratização do país chegou ainda aglutinada ao pleito de 1989, grosso modo, nas
candidaturas de Leonel Brizola (PDT) e de Luis Inácio Lula da Silva (PT) que, somadas,
totalizaram quase 1/3 dos votos em 1º turno. Todavia, essas forças também sucumbiram,

5Não só o desempenho do PMDB foi constrangedor. O candidato do Partido da Frente Liberal, outra
força da “Aliança Democrática”, Aureliano Chaves (Vice-Presidente do último governo militar)
obteve irrisórios 600.838 votos ou 0,83% do total, ocupando o 9º lugar entre os mais votados, conforme
os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Cf. www.tse.gov.br.

6 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018.


“Esperança e Mudança”: uma estratégia democrática de desenvolvimento nacional

em 2º turno, frente à candidatura de Fernando Collor de Mello, ex-governador de Alagoas,


do obscuro Partido da Reconstrução Nacional (PRN).
O que separa, então, o ímpeto reformador democrático, que tomou variadas
formas políticas ao longo dos anos 1980, da derrocada ao final da década? O que deu errado
ou o que não foi possível fazer em prol de profundas reformas sociais e do espírito que ainda
ficou na Carta de 1988? É claro que essas questões são extremamente complexas, de difícil
resposta. Não obstante, tratá-las, ainda que de forma superficial, é de grande valia para a
reflexão aqui proposta.
A conformação daquela ampla agenda de reformas democráticas para o país,
durante os anos 1980, ultrapassava as fronteiras do PMDB. A luta por um sistema de saúde
que atendesse a todos, pela proteção contra o desemprego, pela educação pública de
qualidade e gratuita, pela previdência e atenção aos mais velhos, pela assistência social para
todos os necessitados e tantos outros direitos alcançava os movimentos sociais, os
sindicatos, os partidos políticos que nasceram com a abertura e estava presente na
efervescência da luta pelas Diretas e nas aspirações do “resgate da dívida social”. “Tudo
pelo social” era o lema do governo da Nova República.
Todavia, a experiência histórica mostra que as condições materiais em que se
pensa a questão social, principalmente em economias subdesenvolvidas, com carências de
todas as ordens representam elemento decisivo contra ou a favor de aspirações maiores no
campo social. É o que revelam a consolidação do Estado de bem-estar social no pós-guerra,
a redução da pobreza na China hoje ou no Brasil nos anos 1970. Na verdade, viu-se nos anos
80 a conformação de uma agenda de reformas sociais que era, de fato, progressista, numa
economia semi-estagnada, mergulhada na desordem financeira, na inflação e nos impasses
estruturais que se arrastavam desde meados dos anos 1970.
É possível dizer que desde os anos 1980 o Brasil experimentava uma situação
típica de incompatibilidade entre um projeto social mais avançado e a estagnação
econômica. Em outras palavras, sem encontrar o caminho para a retomada do crescimento
econômico, as possibilidades de avanços sociais significativos, em relação ao mercado de
trabalho e à política social, estreitam-se sobremaneira. A experiência brasileira posterior aos
anos 1980 mostra também que mesmo os avanços conquistados no passado tornaram-se
crescentemente estranhos às condições materiais do país, ao seu ritmo de crescimento, à
dinâmica de seu mercado de trabalho, das finanças públicas etc. Nos impasses da
estagnação econômica, do colapso do Estado, da ameaça da hiperinflação, das carências que
abundam entre a maioria da população e a afluência daqueles protegidos financeiramente,
a busca por uma saída nacional, de retomada do desenvolvimento econômico e de integração
social verdadeiramente democrática sucumbe ao longo dos anos 80. Em seu lugar, o país
mergulhara na desilusão dos fracassos de sucessivos planos econômicos. Nas palavras de
Fernando Novais e João Manuel Cardoso de Mello (2009, p. 101) ao final da década de 1990,
retratam “a que ponto chegamos”.
“Durante um período relativamente longo, o presente tinha sido melhor do que
o passado, e o futuro melhor do que o presente. Mas, progressivamente, a ideia
de um futuro de progresso individual vai se esfumando. A sociedade patina,

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018. 7


Denis Maracci Gimenez

não encontra saídas coletivas que restaurem o crescimento econômico acelerado


e a mobilidade social ascendente. E as esperanças vão sendo frustradas uma a
uma: as Diretas Já, a eleição de Tancredo, o Plano Cruzado, o Plano Collor. E
agora o Plano Real, que, passada a euforia, vai revelando sua verdadeira face. O
resultado é um só: a ruptura do elo que ligava, precariamente, é verdade, o
esforço produtivo coletivo à luta individual. Com isso, a autoestima do povo
brasileiro declina e a ideia de nação esmaece (...) volta a se impor
avassaladoramente a identificação entre modernidade e consumo ‘padrão
primeiro mundo’. O cosmopolitismo das elites globalizadas, isto é, seu
americanismo, chega ao paroxismo, transmitindo-se à nova classe média, que
alimenta a expectativa de combinar o ‘consumo superior’ e os serviçais que
barateiam seu custo de vida. O colapso efetivo dos serviços públicos aparece à
consciência social como resultado da improbidade e do desperdício, e não da
pilhagem do Estado pelos grandes interesses.”
Em meados dos anos 2000, o Brasil retomou o caminho do crescimento
econômico, interrompendo um período de mais de duas décadas de relativa estagnação
econômica, entre o início da chamada “década perdida” (anos 1980) e o final da “década
infame” (anos 1990), quando sob os efeitos da integração passiva ao processo de
globalização, nos quadros do fundamentalismo liberal, produziu-se a pior década da
história republicana, até então, no que se ao refere desenvolvimento econômico do país.
Tal retomada, contou com um cenário externo favorável, num ciclo de expansão
do volume e dos preços dos principais produtos da pauta de exportação brasileira, em larga
medida, puxado pela demanda chinesa. O ciclo externo favorável, que impulsionou a
demanda interna num primeiro momento, foi fundamental ao longo de todo período,
possibilitando que a expansão da economia não enfrentasse as históricas restrições nas
contas externas. Muito ao contrário, foi possível crescer num ritmo de 4,1% ao ano em
média, acumulando reservas, melhorando as condições do balanço de pagamentos, mesmo
promovendo a desindustrialização do país, com a permanente sobrevalorização cambial e
praticando as maiores taxas de juros reais do mundo.
Num ciclo interno virtuoso, determinado simultaneamente pelo forte
dinamismo do emprego, pela expansão da massa salarial, pelo crescimento do crédito,
ampliação de programas sociais e pela promoção dos salários de base, com uma vigorosa
política de elevação real do salário mínimo, cujo impacto direto não se restringiu ao mercado
de trabalho, mas também aos milhares de benefícios previdenciários, o Brasil viveu anos de
mobilidade social ascendente, enorme redução da pobreza e diminuição da desigualdade
entre 2004 e 2014.
A sobreposição da reversão do ciclo externo de bens primários e do esgotamento
do ciclo interno de consumo, simultaneamente, estreitaram drasticamente as possibilidades
de manutenção do crescimento econômico. A ausência de uma estratégia de
desenvolvimento econômico clara, a incapacidade de articulação dos grandes investimentos
com uma política industrial mais robusta, além do errático comportamento da política
econômica que, grosso modo, com juros altos e câmbio valorizado, privilegiou
sobremaneira medidas para que a retomada do crescimento viesse por um novo ciclo de

8 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018.


“Esperança e Mudança”: uma estratégia democrática de desenvolvimento nacional

consumo, acabaram por reforçar as tendências de estagnação econômica e regressão da


estrutura produtiva.
Neste quadro complexo, que demandaria uma saída a altura dos desafios
internos e externos da economia brasileira, a estratégia para a retomada do crescimento
adotada pela Presidente Dilma Rousseff no início do segundo mandato, elegeu a questão
fiscal como o centro da política de recuperação. Partindo-se de um precário diagnóstico
sobre os efeitos das condições fiscais para as condições do desenvolvimento brasileiro, em
termos das perspectivas de novos investimentos, assim como para o controle da inflação,
passou-se a advogar a tese de que o comprometimento obsessivo com a austeridade fiscal
trará de volta o crescimento para o país. Na verdade, longe de uma estratégia sólida de
desenvolvimento, praticou-se uma política de “austeridade” com efeitos deletérios sobre o
crescimento da economia brasileira, sobre sua estrutura produtiva, sobre o mercado de
trabalho, sobre as políticas sociais, sem indicar qualquer perspectiva concreta de
recuperação, fora do campo das abstrações ideológicas.
Seguramente, no momento presente, frente a mais profunda crise econômica da
história brasileira moderna, as enormes dificuldades de retomada do crescimento e o
aprofundamento da estagnação econômica colocam em risco todas as conquistas do período
anterior (2004-2014). O impedimento da Presidente da República em meados de 2016, num
quadro de radical instabilidade política sob o governo de Michel Temer, reforçaram as
tendências de regressão econômica e social. Em estudos recentes sobre a estrutura social
brasileira, o professor Waldir Quadros (2015) indica claras tendências de reversão da
mobilidade social ascendente observada nos anos anteriores.
A deterioração das condições econômicas e a estratégia liberal-conservadora
adotada para a reversão do difícil quadro que se impõe, promovendo um ajuste recessivo
sobre emprego e salários, acaba por trazer sérios riscos às importantes conquistas sociais do
período anterior e de forma mais ampla colocam em xeque os compromissos firmados pelas
forças sociais na Constituição de 1988 (FAGNANI, 2017). Mais desemprego, pobreza, maior
restrição às políticas sociais, ampliação das desigualdades, parecem estar cada vez mais
próximos da realidade dos brasileiros comuns. Ruim para quem trabalha e produz; melhor
para quem aplica, especula.
Discutir os limites do projeto liberal para enfrentar a questão social no Brasil é,
antes de tudo, discutir o futuro, debruçar sobre aquilo que se projeta para o país, refletir
sobre a sociedade que construiremos para as gerações futuras, frente aos desafios e
problemas colocados. Relaciona-se, em suas mais diversas expressões políticas e
ideológicas, em meio a interesses contraditórios, à busca por saídas e à necessidade de se
encontrar um caminho para o desenvolvimento econômico e para o enfrentamento da
questão social.
Parece cada vez mais claro que o novo liberalismo internalizado no Brasil a
partir da década de 1990 não oferece esse caminho ao país. Muito ao contrário e mais do que
impor a estagnação econômica, o liberalismo, que exalta a democracia, toma feições
autoritárias no Brasil contemporâneo, instaurando no país a ditadura dos mercados
financeiros globalizados, que esmaga os interesses nacionais, que acentua a desqualificação

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018. 9


Denis Maracci Gimenez

da vida pública e das instituições políticas, que faz avançar a degradação da ética do
trabalho, que desqualifica a educação como um valor republicano.
Fugindo-se de certos acontecimentos particulares estranhos ao sentido geral
dessa démarche brasileira nas últimas décadas, temos certa dimensão da distância entre a
sociedade inscrita no liberal-conservadorismo à brasileira desses tempos de globalização e
aspirações verdadeiramente democráticas e republicanas que inspiraram o “Esperança e
Mudança”. Uma dimensão daquilo que Celso Furtado afirmou com grande pesar e
propriedade em O longo amanhecer: “em nenhum momento de nossa história foi tão grande
a distância entre o que somos e o que esperávamos ser” (FURTADO, 1999, p. 26).
A ausência do desenvolvimento econômico vem impondo sacrifícios colossais à
maior parte da população, em meio a um processo claro de rebaixamento dos padrões
normativos de organização da sociedade brasileira e de colapso das instituições políticas
expresso na dramaticidade hodierna. Mesmo assim, nesse capitalismo selvagem, outrora
dinâmico, as migalhas distribuídas aparecem como dádivas aos desvalidos e como
indulgência para as classes dominantes globalizadas e cosmopolitas.

Referências bibliográficas

CARDOSO DE MELLO, J. M.; NOVAIS, F. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna.


Campinas: Edições FACAMP, 2009.
FURTADO, C. O longo amanhecer – reflexões sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 1999.
GIMENEZ, D. M. Ordem liberal e a questão social no Brasil. São Paulo: LTr, 2008.
GUIMARÃES, U. Discurso do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Brasília:
Câmara dos Deputados, 05 de outubro de 1988.
FAGNANI, E. Política social no Brasil (1964-2002): entre a cidadania e a caridade. Campinas:
UNICAMP, 2005. (Tese, Doutorado em Ciências Econômicas).
FAGNANI, E. O fim do breve ciclo da cidadania social no Brasil (1988-2015). Texto para
Discussão n. 308, Campinas, IE/UNICAMP, junho de 2017.
PMDB. Esperança e Mudança: uma proposta de governo para o Brasil. Revista do PMDB, Rio
de Janeiro, Fundação Pedroso Horta, ano II, n. 4, out./nov. 1982.
QUADROS, W. Está em curso um retrocesso social em cascata. Entrevista especial. IHU On-
Line, Instituto Humanitas Unisinos, 10 de abril de 2015. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/541562-esta-em-curso-um-retrocesso-social-em-cascata-
entrevista-especial-com-waldir-quadros

Denis Maracci Gimenez é docente do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de


Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT).

10 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 1-10, jan./jun. 2018.


Documento histórico

Esperança e Mudança:
uma proposta de governo para o Brasil

Carta à nação e aos companheiros do PMDB

Ulysses Guimarães, Henrique Santillo, Francisco Pinto e Milton Seligman

Em novembro de 1981, por ocasião da Convenção do Partido, o PMDB lançou


ao debate nacional um documento de estudo sobre as saídas para a dramática conjuntura
que o País vive. Este documento de trabalho foi fruto da espontânea colaboração e fervorosa
dedicação de políticos, lideranças trabalhistas, economistas e homens de pensamento, com
base nos pressupostos fundamentais do programa do PMDB.
O lançamento que deveria ser o ato principal da Convenção Nacional, foi
perturbado pelo rumo dos fatos institucionais e políticos: o Governo, na véspera, formulara
o seu “Pacote Eleitoral”, vinculando o voto, proibindo as coligações e estatuindo outros
casuísmos que precisavam ser respondidos com veemência e competência pelas Oposições.
Rebater os casuísmos do Governo tornou-se a mais urgente tarefa das Oposições e as
atenções voltaram-se para a INCORPORAÇÃO como resposta imperativa forte e unitária.
Mesmo assim, o “ESPERANÇA E MUDANÇA”, embora com tais contratempos,
passou a ser amadurecido e discutido em vários níveis. Organizaram-se em muitos
Municípios grupos de trabalho sobre o documento ou parte dele. Em vários Estados do País,
expressivo número de homens de pensamento e especialistas organizou-se em torno do
aprofundamento e discussão do documento.
Em março de 1982, ainda na gestão anterior da Fundação Pedroso Horta, sob a
Presidência do Deputado João Gilberto, um Seminário Nacional reuniu em Porto Alegre
representações de treze Estados, debatendo o texto e sugerindo muitas modificações.
Grande parte da inteligência brasileira, ao lado de sindicalistas, militantes peemedebistas e
parlamentares, esteve presente ao conclave.
Após este Seminário, “ESPERANÇA E MUDANÇA” passou por uma revisão
geral que conclui na sua segunda edição. Já não é um mero documento de estudo, um
anteprojeto de posicionamento partidário. Já é uma manifestação formal do PMDB através
da FUNDAÇÃO PEDROSO HORTA que é o seu órgão de pesquisas e estudos. É sempre
um texto sujeito a receber contribuições e críticas que se enriquecerá com a participação de
todos.
Levianamente, a Oposição Brasileira e o PMDB, que é sua maior expressão, têm
sido acusados de não terem formulado alternativas concretas ou respostas objetivas aos
problemas do País. O Presidente João Baptista Figueiredo tem insistido reiteradamente
nessa falsa objurgatória.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 11-12, jan./jun. 2018.


Esperança e Mudança

Não é verdade. O MDB, ontem, e o PMDB hoje, têm políticas definidas para os
vários setores e têm alternativas, de como sair da crise. Todavia, o PMDB não integra a
assessoria governamental para ter obrigações de dar "receitas de governo”.
No debate com a sociedade, temos colocado nossas alternativas e respostas.
Temos sempre enfatizado que não se pode consertar o Brasil sem antes resolver o problema
fundamental de seu pacto social, hoje amordaçado por uma Carta que não é fruto da
vontade constituinte da Nação.
Agradecemos aos homens de pensamento, militantes oposicionistas e
sindicalistas que se somaram no longo período de debates, elaboração e amadurecimento
do presente documento. E colocamos diante da opinião pública uma proposta que não tem
a pretensão de indicar um caminho definitivo ou um modelo de Sociedade Nacional.
Apenas, indica e discute caminhos para romper a barreira da crise, do endividamento e da
marginalização das camadas majoritárias e propõe a reorganização da Sociedade Nacional
para que esta possa, democraticamente, optar por seus projetos políticos, sociais,
econômicos, culturais e institucionais.
Brasília, agosto de 1982.

— Deputado Federal Ulysses Guimarães, Presidente Nacional do PMDB


— Senador Henrique Santillo, Presidente da Fundação Pedroso Horta
— Deputado Federal Francisco Pinto, Secretário-Geral do PMDB
— Milton Seligman, Diretor-Secretário da Fundação Pedroso Horta.

12 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 11-12, jan./jun. 2018.


Visão geral

Esperança e Mudança: uma proposta de governo para o Brasil

Esperança e mudança têm um mesmo nome: PMDB

O Brasil atravessa uma fase crítica: a pior crise econômica e social desde os anos
30 coexiste com uma profunda crise institucional. As estruturas do Estado estão carcomidas
pela privatização do interesse público, a política econômica está imobilizada, o governo
carece de largueza de visão para enfrentar o estado de desagregação crescente. O mais
grave, porém, é a crise política — o divórcio profundo entre a sociedade e o Estado, a
ausência de confiança e de representatividade. A dívida externa sufoca. Obriga o governo a
curvar-se ante aos grandes interesses bancários. Desapareceu virtualmente a soberania
nacional na condução da política econômica. Campeia a corrupção, a imprevidência, a
desesperança.
O PMDB não se omite diante deste momento tão grave. Apresenta, com
responsabilidade — mas sem arrogância — uma proposta para enfrentar a grave situação
conjuntural e, também, para iniciar a construção do futuro. Uma proposta para o debate
amplo e livre.

Assembleia nacional constituinte: o berço da democracia

O PMDB sabe que a crise nacional não encontrará solução sem mudanças
profundas. Mudanças que só poderão ter início com o fim do arbítrio e da exceção.
Mudanças que haverão de nascer do reencontro do povo com o poder político. A sociedade
brasileira anseia pela Democracia, luta por ela, sonha com ela. A sociedade repele o arbítrio
através de todas as suas formas de representação de interesses e de organização social:
partidos políticos, movimentos sociais, organizações comunitárias, Igrejas, sindicatos,
organizações patronais, profissionais, movimentos setoriais e culturais.
Democracia é Estado de Direito, é liberdade de pensamento e de organização
popular, é respeito à autonomia dos movimentos sociais e repousa na existência de partidos
políticos sólidos. Democracia significa voto direto e livre, significa restauração da dignidade
e das prerrogativas do Congresso e do Poder Judiciário, significa liberdade e autonomia
sindical, significa liberdade de informação e acesso democrático aos meios de comunicação
de massa. Democracia implica em democratização das estruturas do Estado, implica em
resgatar a soberania nacional, implica em redistribuição da renda, criação de empregos e em
bem-estar social crescente. A Assembleia Nacional Constituinte haverá de ser o berço de
tudo isso — o berço da Democracia — o berço pacífico e representativo dos anseios do povo.
Democracia é ruptura com o longo passado autoritário e elitista, é participação
autônoma dos movimentos sociais nas decisões nacionais através da representação legítima,
de meios modernos de consulta e informação e, da definição dos rumos de nosso
desenvolvimento através do planejamento democrático. As maiorias oprimidas da

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 13-19, jan./jun. 2018.


Denis Maracci Gimenez

população — as mulheres, os jovens, os negros — as minorias discriminadas — os índios,


grupos étnico-culturais — não podem continuar sendo tuteladas. Tampouco podem
permanecer os Sindicatos sob o tacão retrógrado do corporativismo. Numa sociedade com
uma estrutura social complexa, heterogênea, regionalmente diferenciada, o PMDB alinha-
se como um partido amplo — centrado nos interesses do conjunto dos trabalhadores, da
cidade e do campo, de todos os setores da produção, dos serviços, do setor público. Um
partido que almeja soldar os interesses desse conjunto com os de outros segmentos sociais
— as classes médias, os autônomos, o empresariado nacional. O PMDB respeita a autonomia
da sociedade civil e reconhece a sua complexidade. O PMDB é e deseja ser, cada vez mais,
um canal de condensação de interesses sociais e, para isso, oferece à sociedade um projeto
global coerente. Um projeto que almeja a transformação democrática da vida nacional.

Planejamento democrático e distribuição da renda

O PMDB propõe o planejamento democrático como forma de estabelecer e


garantir que o conjunto de políticas públicas obedeça a prioridades fixadas
democraticamente — prioridades que busquem um novo estilo de desenvolvimento social,
cuja diretriz maior deve ser a redistribuição da renda e da riqueza social. O Planejamento
democrático implica na elaboração de um Plano, sob controle e sob a influência das
instituições democráticas. Plano fixado através de lei, supervisionado eficazmente pelo
Congresso com a interação e auxílio das organizações populares.
O Brasil é um país rico — com povo pobre! É a sétima economia industrial do
bloco das economias de mercado; entretanto, é, também, um dos campeões mundiais de
concentração da renda e da riqueza. Persistem as desigualdades sociais e regionais,
persistem os enormes bolsões de pobreza absoluta. O PMDB considera que este estado de
coisas é uma vergonha nacional. Compromisso fundamental do PMDB é a extinção do
analfabetismo, é o fim da desnutrição e da mortalidade infantil, é a erradicação das
endemias, é o fim da promiscuidade habitacional, da insegurança, da falta de transportes.
O PMDB quer acabar com o estado de indigência forçada em que vivem pelo menos 25
milhões de brasileiros. Quer e sabe como fazê-lo. O PMDB tem planos e propostas sérias,
possíveis, viáveis. Propostas que certamente exigem determinação, imaginação, compe-
tência. O PMDB as tem! Propostas em aberto que são oferecidas ao crivo do debate
democrático nacional para seu contínuo aperfeiçoamento. Redistribuição da renda e criação
de empregos não constituem metas simplistas. São processos complexos que requerem um
amplo conjunto de reformas sociais e de políticas públicas compativelmente articuladas.

Salários dignos e liberdade sindical

Distribuição da renda começa com uma nova política salarial, começa com a
elevação da base dos salários, com o aumento real do salário mínimo, com uma reforma que
implante uma nova política justa para a previdência social. Distribuição de renda significa
salários dignos para os funcionários públicos, tão brutalmente escorchados nos últimos

14 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 13-19, jan./jun. 2018.


“Esperança e Mudança”: uma estratégia democrática de desenvolvimento nacional

anos, significa plena autonomia e liberdade sindical, significa o fim da rotatividade


opressiva que permite às empresas rebaixar os salários de base. Significa o fim do arrocho
salarial e fiscal a que foram submetidas as classes médias.
Descompressão salarial sozinha não é, contudo, suficiente. É preciso conter a
alta contínua do custo-de-vida através de uma política anti-inflacionária eficaz. É
indispensável promover a oferta e abastecimento de produtos de amplo consumo popular,
especialmente dos gêneros alimentícios, com o controle de seus preços industriais e margens
de comercialização.

Reformas sociais e institucionais

A distribuição da renda e da riqueza nacional também não virá, de maneira


progressiva e irreversível, sem grandes reformas sociais e institucionais. Sem uma reforma
agrária — que garanta o acesso à terra a quem nela trabalhe — e a reorganização da vida
rural apoiada por múltiplas políticas, não será possível criar uma agricultura eficiente, com
população rural livre e próspera. Sem uma ampla reforma tributária não será possível
eliminar as enormes injustiças do atual sistema de impostos, que gravam muito
pesadamente os assalariados de baixa renda enquanto que as classes privilegiadas pagam
parcela insignificante de seus rendimentos. Sem uma reforma financeira não será possível
democratizar o crédito, com taxas de juros baixas, acessíveis aos consumidores de baixa
renda. Não será possível oferecer crédito cooperativo e popular para os pequenos
produtores urbanos rurais e para os pequenos e médios empresários nacionais. Sem uma
reforma fundiária urbana não será possível uma verdadeira política urbana, que regularize
a situação de milhões de favelados, e que coíba a especulação imobiliária, criando as
condições para o desenvolvimento integrado da habitação popular, do saneamento, dos
transportes, das escolas e postos de saúde.

Políticas sociais (saúde, educação, previdência) e a questão do emprego

Saúde, educação, previdência social, seguro-desemprego, são exigências


mínimas de uma sociedade democrática. O PMDB considera prioritária a adoção de um
amplo programa de gasto e investimento na área social de maneira coerente e planejada,
com o aporte de novos recursos orçamentários, a serem providos pela reforma tributária. É
urgente pôr um fim na situação de descalabro em que se encontra a atual “política” social,
garantindo-se, através da democratização das decisões, que as novas políticas sejam
efetivamente guiadas por critérios de justiça e equidade social.
Da mesma forma que a distribuição da renda, a criação de empregos representa
um grande desafio. Medidas de emergência são indispensáveis para enfrentar o agudo
agravamento do desemprego, em decorrência da política recessionista do governo. Mas,
além das medidas de emergência para a conjuntura é inevitável enfrentar a dimensão
estrutural da questão do emprego. O PMDB está consciente de que as transformações
tecnológicas previsíveis poderão implicar em fortes efeitos negativos no que toca à criação

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 13-19, jan./jun. 2018. 15


Denis Maracci Gimenez

líquida de empregos. O PMDB conta com a reforma agrária para diminuir o intenso fluxo
migratório campo-cidade e recomenda que todo o conjunto de políticas públicas confira
prioridade à geração de empregos. Entretanto, é inevitável que o emprego venha a se tornar
uma questão central no âmbito da política pública. O PMDB aceita este desafio e propõe que
a criação de empregos, a regulação da jornada de trabalho e as formas de ocupação sejam
encaradas como objeto de uma nova política social global.

Desenvolvimento regional e a federação

Distribuição da renda, criação de emprego e erradicação da pobreza absoluta


são três elementos indissociáveis de um processo de redução das disparidades regionais. O
desenvolvimento das regiões mais atrasadas requer generosas políticas compensatórias na
área social, requer uma reforma tributária que restaure a federação, requer a
descentralização da capacidade de decisão e de alocação do gasto público — principalmente
no nível municipal. Uma verdadeira política regional, abrangente, garantida pela
participação política e pela devolução às comunidades locais e regionais do direito de
decidir sobre as prioridades que lhes afetam diretamente é condição sine qua non para a
existência de uma nação integrada e regionalmente equilibrada do ponto de vista econômico
e político.

Uma nova estratégia econômica

A nova estratégia de desenvolvimento social proposta neste documento, não


poderá sustentar-se sem que o estilo de crescimento econômico seja reorientado. Ademais,
diante da gravidade da crise mundial e do caráter revolucionário das transformações
técnicas que se prenunciam no horizonte é urgente a adoção de uma estratégia econômica
de longo alcance. Uma estratégia que vise enfrentar a crise, que busque ajustar o nosso
sistema produtivo às novas condições da economia mundial e que evite o sucateamento
precoce de parcela ponderável de nosso parque industrial.

Indústria

A formulação de uma política industrial é necessidade impostergável. O PMDB


defende a implantação de uma política nacionalista, apoiada no planejamento consistente
do investimento público (notadamente para as áreas de energia, infraestrutura e sistema de
transportes). O planejamento de médio e longo prazo para os programas públicos permitirá
a utilização racional da capacidade produtiva existente, particularmente no caso do setor de
bens de capital. Em outras palavras, o PMDB defende uma política que assegure
solvabilidade ao sistema industrial — solvabilidade indispensável para que possa absorver
as mudanças tecnológicas, para que possa enfrentar os desafios do comércio internacional
e, finalmente, para que o setor industrial possa responder aos estímulos de mercado
resultantes do processo de redistribuição da renda nacional.

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“Esperança e Mudança”: uma estratégia democrática de desenvolvimento nacional

Agricultura

Indispensável e urgente é, também, a implantação de uma nova política agrícola,


acoplada ao processo de reforma agrária, que vise assegurar a oferta abundante de
alimentos. Uma verdadeira política agrícola precisa estar orientada por um zoneamento de
culturas e pressupõe reforma profunda dos atuais instrumentos de intervenção no setor,
visando democratizar o crédito rural, os subsídios, a política de preços mínimos, o seguro e
a assistência técnica. Requer-se, de outro lado, a intervenção ampliada do Estado na
comercialização, com estoques reguladores efetivos, com o apoio à organização cooperativa
dos pequenos produtores, distribuidores e varejistas. Requer, finalmente, uma política de
abastecimento popular dirigida para as áreas de baixa renda.

Mineração

Planejamento estratégico também faz falta crucial ao setor de mineração. Não


podemos admitir que nossas riquezas não-renováveis venham a ser exportadas sem critério,
sem planejamento com concessões inaceitáveis ao capital estrangeiro sob a pressão das
condições sufocantes da dívida externa. Particularmente no caso dos enormes projetos na
Amazônia Oriental (Carajás) é indispensável a participação do Congresso, da comunidade
técnica e de todos os segmentos sociais envolvidos. Uma política mineral nacionalista e
coerente deve assegurar o suprimento a longo prazo para a indústria nacional e deve
maximizar o processamento industrial das matérias primas, visando exportar produtos de
alto valor agregado.

Energia

A política de energia também clama por um plano consistente, de longo prazo,


que promova a economia de combustíveis líquidos derivados de petróleo, em todos os
níveis; que maximize e apoie o esforço de prospecção pela Petrobrás; que realize os
ajustamentos necessários na estrutura de refino de derivados; que ponha em andamento um
plano integrado de biomassas, prevenindo o esmagamento da agricultura de alimentos. Na
área de energia elétrica é fundamental buscar soluções que permitam a utilização completa
de nosso vasto potencial hidrelétrico, enquanto que o programa nuclear deve ser
imediatamente desacelerado e revisto em profundidade, com a participação da comunidade
científica, para assegurar a absorção das tecnologias mais avançadas e convenientes para o
futuro.

Transportes

O ajustamento à crise de energia exige, sem dúvida, uma mudança estrutural


em nosso sistema de transportes, com a implementação de um plano de grande envergadura

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 13-19, jan./jun. 2018. 17


Denis Maracci Gimenez

para desenvolver o transporte ferroviário e a navegação de cabotagem, para as distâncias


longas. Paralelamente, é fundamental planejar a expansão da rede rodoviária vicinal com
prioridades sociais e iniciar a execução de planos para dotar as nossas cidades de sistemas
de transporte de massa, não-poluidores, eficientes e baseados na utilização de energia
elétrica.

Desenvolvimento tecnológico e meio ambiente

Todo o conjunto de estratégias setoriais de reordenação do sistema produtivo,


acima delineadas, estão condicionadas a um pressuposto chave: a realização de um esforço
firme e intenso de desenvolvimento tecnológico, com a adoção de uma política científica e
tecnológica seletiva e previdente. Por outro lado, a reordenação do sistema produtivo deve,
também, estar condicionada a uma outra necessidade crucial — a proteção e preservação do
meio ambiente, em todas as regiões e dimensões, submetendo-se imediatamente todos os
grandes projetos e obras públicas a rigorosos critérios de defesa do equilíbrio ecológico e
preservação do patrimônio natural.

Reformas tributária e financeira

O PMDB apresenta, pois, à nação, as diretrizes de um programa sólido e realista


para a construção de um sistema econômico nacional forte, eficiente e socialmente justo. A
implementação deste conjunto de políticas requer, porém, novos instrumentos fiscais e
financeiros. Diante do estado de desagregação em que se encontram as finanças públicas, e
diante da especulação financeira desenfreada o PMDB propõe, respectivamente, uma
reforma tributária e uma reforma financeira. Uma reforma tributária que implante a
eficiência e a equidade na imposição fiscal e uma reforma financeira que liquide com a
especulação parasita, sustentada atualmente pela dívida pública interna. É imprescindível
a criação de mecanismos novos e financiamento e de crédito de longo prazo, que ofereça
suporte aos programas públicos e à acumulação produtiva de capital, em condições que
favoreçam sempre e prioritariamente à empresa nacional.

Uma política econômica alternativa de curto prazo

Poder-se-ia arguir, capciosamente, que o PMDB apenas se preocupa com o plano


estratégico — sem enxergar as graves dificuldades do momento atual. Não é verdade. O
PMDB propõe ao debate nacional, neste documento, uma política econômica alternativa de
curto prazo. Uma política desenhada para afastar o espectro mal agourento da recessão
continuada, uma política que busca uma saída nova, através da retomada ordenada e
cautelosa do crescimento. A dívida externa não pode continuar administrando o Brasil; o
estado de imobilização da atual política econômica não pode persistir por mais tempo, sem
que nossa economia venha a ser tragada por uma recessão catastrófica. Não é mais
suportável a continuidade de taxas reais de juros estratosféricas. A política alternativa do

18 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 13-19, jan./jun. 2018.


“Esperança e Mudança”: uma estratégia democrática de desenvolvimento nacional

PMDB começa com a imediata redução do patamar de juros, desvinculando-o do giro da


dívida externa, através de novos mecanismos de captação de empréstimos. Mecanismos tais
que possibilitem a liberação do manejo da taxa de câmbio e que sejam complementados por
medidas fiscais e financeiras de emergência. Indispensável e urgente é também a adoção de
uma nova política anti-inflacionária e creditícia, assim como é premente a implementação
de medidas compensatórias para aliviar o desemprego, com novas prioridades e critérios
para o investimento público.

Reestruturação das relações com o exterior

Propõe-se, ainda, que se inicie um processo de reestruturação de nossas relações


internacionais, com o ajuste incisivo do balanço de pagamentos e com a estabilização do
endividamento externo descontrolado. Só com medidas prévias sólidas, com amplo suporte
e credibilidade social, com ampla negociação política global — em bases firmes e soberanas
— será possível estabelecer condições favoráveis para o financiamento externo de longo
prazo.

PMDB é instrumento de um novo Brasil democrático

O PMDB cumpre o seu dever, como sempre o fez, mesmo nos tempos mais
terríveis do arbítrio, apontando os erros das políticas do regime autoritário, denunciando os
desgovernos e as omissões, apresentando alternativas e projetos responsáveis para a
construção de um novo Brasil. Um Brasil que anseia por reencontrar-se, por encontrar sua
identidade enquanto nação. Política nacionalista, soberania nacional, política independente
de relacionamento comercial e financeiro com o exterior, política externa pacifista e
independente, defesa da capacidade nacional de decisão de seus destinos, requerem
Democracia. Requerem democracia porque identidade cultural e capacidade de decisão
nacional só serão verdadeiramente possíveis a partir da organização consciente dos
interesses nacionais, isto é, dos interesses do povo, no seio de um Estado Democrático.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 13-19, jan./jun. 2018. 19


Parte I

O PMDB e a transformação democrática

1. A crise nacional

O Brasil passa pela pior crise dos últimos cinquenta anos. Recessão, inflação de
100%, as mais altas taxas de juros reais do mundo, dívida externa sufocante, agricultura
desalentada, finanças públicas em estado caótico, isto basta para dar ideia da desordem
econômica em que vivemos.
O panorama social é desalentador. Nas cidades, há milhões de desempregados
e subempregados, os salários dos trabalhadores são insuficientes, há favelas por toda parte,
o transporte coletivo é caro e bissexto, a saúde e a educação transformaram-se em indústrias
lucrativas; o meio ambiente é agredido irracionalmente, as tarifas dos serviços de utilidade
pública são cada vez mais insuportáveis. No campo, há milhões de homens sem-terra, há
milhões de boias-frias errantes, sem trabalho permanente nem proteção legal, há milhões de
parceiros e rendeiros sujeitos à exploração mais selvagem.
Crise de um estilo de desenvolvimento econômico atrelado à internaciona-
lização da economia que necessariamente abre o país ao vendaval da crise internacional.
Crise de incompetência e falta de previsão dos que dirigiram o País sem implementar formas
de expansão econômica mais voltadas para nossos próprios recursos. Crise de uma
sociedade assentada no privilégio para poucos e na marginalização da maioria.
Mas, sobretudo, crise política. Falta a crença nos líderes; falta a instituciona-
lização da prática democrática; falta eficiência no Estado.
Impera a privatização do interesse público. Impera a corrupção. Impera o arbí-
trio dos poderosos. Impera o casuísmo legislativo para tentar transformar em vencedores
das eleições os grandes perdedores diante da Nação: os homens e o partido do governo.
Não obstante, o autoritarismo foi obrigado a recuar. O sindicalismo autêntico
luta para se impor, amparado numa classe operária ampla e moderna, cada vez mais
disposta à autonomia política e ao exercício pleno da cidadania. A oposição dos assalariados
de classe média ao despotismo e a aspiração de participação política são cada vez mais
fortes. Os pequenos e médios proprietários percebem que seus interesses são indissociáveis
do Estado Democrático. Lideranças empresariais nacionais de peso comprometeram-se com
a restauração do Estado de Direito. As igrejas fizeram uma firme opção pelos pobres e
ofendidos. A imprensa democrática defende as liberdades públicas. E por toda parte
surgiram, com força nas bases da sociedade, associações comunitárias, associações
profissionais, movimentos em defesa dos interesses dos estudantes, da mulher, do negro,
do índio, de minorias. Os partidos de oposição, superando manobras e casuísmos,
enraízam-se socialmente e se fortalecem.
Neste contexto, o PMDB se constituiu como o grande partido popular e
democrático capaz de criar saídas para o impasse político.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 20-28, jan./jun. 2018.


O PMDB e a transformação democrática

A crise, a que fomos conduzidos, é extraordinariamente profunda. Em primeiro


lugar, porque simultânea a uma crise mundial, que encerra toda uma época histórica. Crise
que põe em xeque o estilo de crescimento econômico do pós-guerra, os modos de vida
prevalecentes nos países desenvolvidos, as relações entre as grandes potências, o sistema
monetário internacional e as relações entre Centro e Periferia, marcadas pela exploração e
pela desigualdade. Em segundo lugar, porque condensa os traços perversos que se foram
acumulando na história brasileira: a concentração do poder e o elitismo que sempre
excluíram o povo das decisões fundamentais; a desigualdade social, que sempre marcou
uma nação dividida entre uns poucos privilegiados e a maioria esmagadora de excluídos; a
dependência econômica, que sempre nos atrelou aos dominantes. Concentração do poder e
elitismo, desigualdade social e dependência econômica que foram levadas ao paroxismo
nestes anos de autoritarismo.
É este estado de coisas que os poderosos querem perpetuar e aprofundar. A
“abertura política” pretende conceder para manter o poder monopolizado nas mãos de
poucos, no âmbito de um regime viciado pela exceção. A política econômica e social, presa
aos interesses dos banqueiros internacionais, dos banqueiros nacionais e da grande
empresa, especialmente multinacional, mantém e acentua tanto a exclusão quanto a
dependência. Para isto não hesitou nem um momento em promover a recessão e o
desemprego, ligando nossos destinos aos contratempos da crise internacional.
Mas a Nação reage. Suas forças mais expressivas, suas lideranças e seu povo se
organizam para abrir caminhos novos. Caminhos que passam pela construção de partidos
independentes do Estado e desligados dos interesses antipopulares. Que passam pelos
movimentos sociais, pelas igrejas, pelos sindicatos combativos, pelas Universidades, pelas
associações profissionais e de classe. Caminhos que convergem para a construção de um
Brasil democrático e socialmente próspero. Próspero porque possui uma base industrial
relativamente avançada, mas que precisa ajustar-se aos desafios da crise mundial; porque
possui uma agricultura cheia de potencialidades e de recursos naturais abundantes — e, por
último, mas não menos importante, porque possui um povo trabalhador, criativo, generoso.
Mas, socialmente próspero pois a redistribuição da renda é um imperativo para a
constituição da democracia. Caminhos que supõem, também, as Forças Armadas, como
instituições permanentes, servindo sob uma Constituição Democrática e a poderes
legitimamente constituídos, sujeitas a seus princípios de organização, recebendo o apoio
popular e insuscetíveis a manobras de grupos.
A Nação sabe que chegou o momento de mudanças profundas nas estruturas
da sociedade e do Estado. Há esperança. Há desejo de mudar. Há capacidade política para
transformar o País.
O PMDB sintetiza em seu programa as mudanças desejadas por todo o povo. O
PMDB, por sua luta e pelos horizontes de seriedade e compromisso popular que constrói,
encarna a esperança de todo o País.
Esperança e mudança têm um mesmo nome: PMDB.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 20-28, jan./jun. 2018. 21


Esperança e Mudança

2. A Assembleia Nacional Constituinte como solução-síntese

A democratização das estruturas políticas, sociais e econômicas deve se assentar


em bases claras. Sem uma ativa participação política popular, sem partidos políticos sólidos,
sem liberdades públicas plenamente garantidas, sem planejamento democrático, sem um
Legislativo independente, atuante e forte, sem um Judiciário aparelhado e com
prerrogativas que asseguram sua autonomia, sem o restabelecimento da vida federativa,
não pode haver democratização das decisões. E a democratização das decisões é requisito
indispensável à justiça social e à independência nacional.
Os problemas políticos, econômicos e sociais que afligem a Nação brasileira
dependem para seu equacionamento e solução da institucionalização do regime
democrático sem adjetivos. E isto só é legitimamente possível através da convocação da
Assembleia Nacional Constituinte.
É fundamental colocar o povo na origem do poder para que ele participe, através
dos instrumentos democráticos, das decisões nacionais.
O arbítrio afasta o povo do exercício dos direitos da cidadania e não o
compromete com as decisões de governo.
O meio racional, inteligente e civilizado de transformação da ordem social é
através do encontro da Nação consigo mesma na Assembleia Nacional Constituinte.
O Brasil é um país sem Constituição que honre este nome. O que o arbítrio
apelidou de Constituição é a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, que foi outorgada por
uma junta militar à revelia da Nação. Além disso, essa pseudo-Constituição foi
fundamentalmente alterada pelo autocrático “pacote de abril”, de 1977, quando o Presidente
da República se transformou no constituinte uno, fechou compulsoriamente o Congresso,
outorgou mudanças substanciais e criou a figura esdrúxula de “Senador biônico”. É esta
Constituição que o governo quer preservar para impedir que o processo de democratização
avance.
Instrumento de transformação pacífica da ordem social, a Assembleia Nacional
Constituinte haverá de assentar os fundamentos de um novo contrato social e político
baseado na democracia, na justiça social e na soberania nacional.

3. Democracia e participação política

A transformação democrática da vida brasileira tem como premissa básica a


participação ativa e permanente da sociedade no debate de todas as questões nacionais, na
tomada de decisões políticas e na fiscalização da ação governamental.
É animador ver que surgem no Brasil de hoje movimentos sociais que expressam
o desejo da participação autônoma de segmentos da sociedade. Começa a ruptura da longa
tradição de definição e encaminhamento das questões políticas sob formas elitistas,
autoritárias e paternalistas. A plena realização das potencialidades desses movimentos

22 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 20-28, jan./jun. 2018.


O PMDB e a transformação democrática

enraizados nas bases da sociedade é a condição essencial para a construção da democracia


que o PMDB deseja.
Por isto, é fundamental a luta pela participação política dos sindicatos na vida
nacional, removendo-se os limites impostos por uma legislação corporativista e retrógrada.
É essencial, também, o fortalecimento das associações profissionais para que possam
representar os interesses de seus membros e tomar parte na discussão dos problemas
nacionais. Ao mesmo tempo, é imprescindível apoiar movimentos sociais específicos, cujas
reivindicações já estão transformadas em temas da agenda política: a questão da mulher, do
negro, do jovem, que constituem a esmagadora maioria da população mais oprimida e
marginalizada, além das minorias discriminadas, tais como os índios e outros
agrupamentos étnico-raciais; a defesa do meio ambiente; a proteção aos consumidores. Para
isso, o PMDB propõe o reforço de associações comunitárias, especialmente ao nível de
bairros e municípios, que sejam capazes de traduzir em políticas as aspirações ligadas às
condições mais imediatas de vida.
Os movimentos sociais, que na sua multiplicidade manifestam a complexidade
da vida num país tão heterogêneo como o Brasil, não podem e não devem ser tutelados ou
substituídos pelos partidos políticos. É preciso que não sejam monopolizados ou sufocados
pela ação partidária. Ao contrário, devem manter estrutura e perfil próprios. Ao partido
cabe servir de canal de expressão destas demandas da sociedade. Sua função peculiar é a de
conferir unidade política dinâmica ao que é, por sua natureza, múltiplo, segmentário e
muitas vezes conflitivo com outras demandas específicas. Em outras palavras, o partido
deve fazer a mediação, transformando interesses específicos, articulando-os e dando-lhes
coerência através da representação política. Cumpre, portanto, traçar e levar adiante
projetos globais de organização da sociedade, alternativas de desenvolvimento político,
social e econômico, que abram espaços para a movimentação autônoma da sociedade.
Esta visão do papel estratégico do partido político, que decorre da sua
capacidade de universalizar o que é particular, conduz à defesa intransigente da liberdade
de organização partidária. Leva, também, à postulação de medidas necessárias ao
fortalecimento dos partidos. Em primeiro lugar, impõe-se criar um sistema adequado de
financiamento público da atividade partidária, para torná-la independente do poder
econômico, privado ou estatal. Em segundo lugar, é preciso conferir aos partidos um efetivo
“poder de imprensa”, isto é, o acesso permanente aos meios de comunicação de massa,
para que as questões públicas possam ser livre e sistematicamente debatidas pela
sociedade, através da formação de opinião pública, em processo contínuo de
esclarecimento.
Fundamentos da democratização da sociedade e do Estado, a ativação da
participação das bases da sociedade e o fortalecimento do sistema partidário só podem
florescer e se consolidar num ambiente em que as liberdades públicas estejam plenamente
asseguradas.
Frente ao repúdio da Nação, o autoritarismo foi obrigado a recuar, mas tem
buscado perpetuar o estado de exceção. Para isto, introduziu o arbítrio no texto
constitucional através das chamadas salvaguardas; manteve a Lei de Segurança Nacional,

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 20-28, jan./jun. 2018. 23


Esperança e Mudança

que fere os direitos constitucionais fundamentais e restringe o instituto do “habeas corpus”;


manteve, também, constrangimentos inaceitáveis à liberdade de pensamento, através da
censura prévia e da Lei de Imprensa; reforçou a legislação que fere o inalienável direito de
greve; e a liberdade de reunião continua sujeita ao arbítrio; a Lei dos Estrangeiros mantém
margens de arbítrio.
É preciso extirpar de vez toda esta legislação autocrática. Ao invés de “medidas
de emergência” e do “estado de emergência”, que a pretexto de defenderem o Estado
suprimem as garantias do cidadão, o “estado de sítio”, consagrado já pelo direito
constitucional, é capaz de fazer face a situações de grave comoção; ao invés da Lei de
Segurança Nacional que, pela sua abrangência e imprecisão, anula todo e qualquer direito
do cidadão, a formulação na legislação penal de dispositivos que, a um só tempo, defendam
os interesses do Estado sem quebra do respeito aos direitos individuais assegurados na
Constituição. A censura deve ser inteiramente abolida e a Lei de Imprensa deve preservar a
plena liberdade de pensamento, sem quebra das responsabilidades decorrentes. O direito
de reunião necessita ser plenamente assegurado, bem como o direito de greve.
A inexistência de garantias efetivas aos direitos humanos tem levado
sistematicamente às práticas da tortura, da violência e do terror. Tem permitido, também, a
violação do sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas e a invasão da
privacidade. A democracia exige a eliminação de tais práticas e dos órgãos que atentam
contra as liberdades.
Ativação das bases da sociedade, partidos políticos enraizados socialmente e a
plenitude das liberdades públicas são os alicerces de uma efetiva democratização das
decisões, devendo-se assegurar, para tanto, a plena liberdade partidária de sorte a que
possam ter expressão política todos os setores sociais ou tendências ideológicas.
A democratização da vida social e política exige, ademais, a absoluta
observância dos direitos eleitorais: é imperativa a supressão de todos os obstáculos e
manipulações ao exercício da cidadania e ao princípio da alternância no poder. É necessário
estender o voto ao analfabeto e banir as restrições que cerceiam indevidamente o direito à
postulação de cargos eletivos. É preciso estabelecer o princípio de representação
proporcional da cidadania e abolir as excrescências da sublegenda e do voto vinculado, que
desfiguram o partido político. É fundamental garantir o direito às coligações como projeção
de liberdade partidária. É necessário assegurar plenamente o livre debate pelos meios de
comunicação de massa durante as campanhas eleitorais, revogando-se a Lei Falcão. É
preciso reinstaurar as eleições diretas para a Presidência da República, para Prefeitos das
Capitais e para Prefeitos dos Municípios tidos como áreas de segurança nacional ou
estâncias hidrominerais.

4. O Estado e o planejamento democrático

A democratização substantiva do País requer ainda mecanismos institucionais


que canalizem e estimulem a participação política nos processos de decisão, ao mesmo
tempo em que freiem a prepotência do Executivo face ao Legislativo e ao Judiciário, a

24 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 20-28, jan./jun. 2018.


O PMDB e a transformação democrática

concentração desmedida do poder na esfera federal, a irresponsabilidade administrativa da


tecnocracia.
De fato, a sociedade contemporânea é permeada em todos os seus planos pela
ação reguladora do Estado. Assim, por exemplo, é inimaginável que as decisões
empresariais possam se subtrair inteiramente às políticas governamentais nas áreas
agrícola, industrial, monetário-financeira, de comércio exterior. É igualmente impossível
supor que os sistemas de educação, saúde, habitação, transportes coletivos etc. possam ficar
à margem das decisões do Estado. E é, ademais irrealista, incorreto pensar que as empresas
públicas possam ser removidas dos setores estratégicos da economia.
Em suma, o planejamento, ou seja, o conjunto de mecanismos públicos de
relação da vida social, é imposição inquestionável na sociedade contemporânea. E
imposição maior ainda num país como o Brasil, marcado em sua história pela fragilidade e
pela perversidade do funcionamento “espontâneo” dos automatismos de mercado, pela
fragmentação social e pela heterogeneidade regional. Entre nós, o planejamento sempre se
revestiu de um caráter autoritário e clientelista, que foi acentuado à exaustão nestes últimos
dezessete anos de regime despótico. E aí estão para atestá-lo a corrupção do caráter público
das decisões, que levou a uma verdadeira privatização do Estado colocado a serviço
exclusivo do poder econômico; à irresponsabilidade da burocracia, protegida como nunca
pelo sigilo; à atrofia do Legislativo e do Judiciário; à perda da generalidade da Lei, afogada
pelo particularismo e pelo casuísmo do decreto-lei, dos decretos, dos regulamentos, das
portarias.
E aí está também a concentração gigantesca de poderes no Executivo Federal,
conduzindo à expropriação do poder decisório dos Estados e Municípios, levando a uma
verdadeira liquidação da Federação. A democratização da sociedade brasileira impõe a
desconcentração política e econômica através da Federação, com efetiva autonomia de
decisões pelos Estados e Municípios, para que não sejam pensionistas e pedintes da União,
efetivamente habilitados e com recursos financeiros para dar respostas às demandas
regionais e locais.
O grande problema a desafiar a imaginação democrática é o de estabelecer o
controle público dos processos de elaboração e execução das políticas do Estado, sem
prejudicar a agilidade e a eficiência do Poder Executivo. Para isto é preciso promover uma
reforma das estruturas do Estado de modo a garantir o Planejamento Democrático.
O Planejamento Democrático exige, antes de mais nada, o fortalecimento do
Poder Legislativo. Além da restauração das prerrogativas clássicas (inviolabilidade do
mandato parlamentar; revogação das normas que instituíram a decisão legislativa por
decurso de prazo e substituição por procedimentos democráticos de agilização da
elaboração das leis; devolução da possibilidade de criar despesa sem prejuízo da eficiência
econômica), é indispensável uma efetiva participação do Legislativo na elaboração da
política de Estado.
Antes de mais nada, caberá ao Legislativo (aos três níveis — federal, estadual e
municipal) a discussão da Lei do Plano. Na esfera federal, atualmente, a participação do

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 20-28, jan./jun. 2018. 25


Esperança e Mudança

Congresso Nacional na aprovação dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) é


inteiramente passiva. A proposta do Executivo não passa de uma declaração de intenções
em que prioridade e linhas básicas das várias políticas públicas são estabelecidas, na melhor
das hipóteses, de modo vago e genérico. Ao contrário, a Lei do Plano deve conter
prioridades de gasto público explícitas e quantificadas pelo mínimo, ao mesmo tempo em
que as diretrizes gerais e setoriais devem ser suficientemente claras e detalhadas. É preciso
colocar com nitidez as opções gerais (redistribuição ou concentração de renda, mercado
interno ou mercado externo, agricultura de alimentos ou agricultura de exportações,
indústria de bens de consumo popular ou indústria de bens de luxo etc.) sobre o estilo de
desenvolvimento, discriminar quais as normas de política setorial (escola pública ou
privada, mais ensino básico ou mais ensino universitário etc.). É necessário, ainda, fixar os
padrões de atendimento das necessidades básicas, que correspondem aos direitos subjetivos
dos cidadãos e às possibilidades da economia nacional a cada momento, e afirmar qual a
percentagem mínima do gasto total dirigida à educação, saúde, habitação popular etc.
Naturalmente, a política das empresas estatais e autarquias deverá estar submetida à Lei do
Plano: é indispensável tornar públicas as empresas estatais, que têm se comportado nestes
anos movidas por critérios privados de gestão. Já os orçamentos plurianuais e anuais (que
deverão incluir obviamente os orçamentos das empresas estatais e das autarquias), ao
mesmo tempo em que traduzirão as prioridades globais e setoriais da Lei do Plano, haverão
de permitir os ajustes impostos pelas mudanças de conjuntura, garantindo a flexibilidade e
a agilidade indispensáveis à gestão governamental.
O Parlamento deve, ademais, ter ampliada sua competência legislativa. Devem
ser objeto de deliberação do Congresso (Assembleias Estaduais e Câmaras Municipais) ou
objeto de delegação de poderes várias matérias que estão sendo hoje reguladas
indevidamente (por exemplo, isenção ou criação de impostos) por decretos-leis e até por
decretos, portarias e regulamentos.
Finalmente, é indispensável introduzir a possibilidade da iniciativa popular na
proposição de leis, subscrita por cidadãos em número a ser fixado constitucionalmente, e
instituir o referendo popular ou o plebiscito para as grandes questões nacionais.
No que toca ao controle da execução das políticas e do Estado, é mister, em
primeiro lugar, aparelhar técnica e financeiramente o Legislativo. De um lado, as Comissões
deverão contar com assessorias qualificadas e especializadas, capazes de instrumentar o
Legislativo para a discussão da Lei do Plano, dos orçamentos etc., ao mesmo tempo em que
auxiliem no acompanhamento permanente da ação do Executivo. De outro lado, torna-se
impostergável recuperar e ampliar os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito:
recursos financeiros suficientes, número ilimitado, mobilidade e competência para quebra
do sigilo e também através dos pedidos de informação, incorrendo em crime de
responsabilidade o não atendimento no prazo constitucional.
O controle público das decisões exige, ademais, outros mecanismos
institucionais. Propõe-se a criação de Conselhos Consultivos, destinados a ser um foro
permanente de expressão de interesses legitimamente constituídos e de discussão dos
rumos das políticas de Estado. As funções fundamentais destes conselhos são a de tornar o

26 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 20-28, jan./jun. 2018.


O PMDB e a transformação democrática

Executivo mais sensível às demandas populares, a de tornar transparentes as decisões


públicas, a de impedir a atuação sempre camuflada dos interesses poderosos, a de quebrar
ao máximo a burocratização dos processos de decisão e a de constituir um mecanismo de
comunicação e de mobilização. Propõe-se, portanto, a criação, nas três esferas, a federal, a
estadual e a municipal, de Conselhos de Planejamento Geral e de Conselhos Setoriais de
Planejamento (saúde, educação, energia, transportes etc.). Nos conselhos consultivos
deverão estar representados os sindicatos, as associações profissionais, as associações
comunitárias, os usuários imediatos das políticas públicas e todos os partidos políticos. As
matérias de consulta deverão ser claramente definidas, a regularidade de funcionamento
deve ser plenamente assegurada e os representantes serão livremente indicados pelos
setores sociais e não disporão de mandato, para que se evite o surgimento de verdadeiras
castas de representantes.
Ainda no que diz respeito à fiscalização das decisões, é indispensável a
ampliação e o reforço do instituto da ação popular, para conceder a um cidadão ou grupo
de cidadãos o exercício do controle das decisões, obrigando o governo a justificar suas ações
e à quebra do sigilo.
Para a democratização dos processos de decisão é crucial proceder à sua máxima
descentralização, reativando em bases firmes e duradouras a Federação. Descentralizar
para democratizar, para aproximar o governo do povo, estimulando a participação política
dos movimentos sociais e permitindo que a sociedade ajude a definir as políticas de Estado
e tenha mais amplas possibilidades de controlar sua execução. Há a necessidade de definir
e implementar políticas de âmbito necessariamente nacional. Estas questões são agudas
num País tão heterogêneo, tão desigual econômica e socialmente. Porém, isto não significa
a inexorabilidade da concentração das decisões, que beneficia os poderosos, como prega a
ideologia autoritária e tecnocrática. Ao contrário, é perfeitamente possível pensar em
normas gerais, válidas nacionalmente, e imaginar mecanismos de desconcentração
financeira, que permitam a descontração administrativa. As políticas nacionais devem se
ater ao que é estritamente essencial e não descer a detalhes, que permitam o exercício de
um poder sem limites. Quanto à descentralização financeira, impõe-se uma reforma fiscal
que reforce financeiramente os Estados e Municípios. Mais ainda, é preciso estabelecer
normas de redistribuição automática de fundos financeiros, segundo critérios
eminentemente sociais, e permitir que os Estados e Municípios tenham a máxima liberdade
de aplicá-los.
O sistema democrático requer, ainda, um Poder Judiciário amparado por
prerrogativas e garantias que assegurem sua independência, dispondo de meios e recursos
indispensáveis à realização de justiça rápida, eficaz e acessível às camadas mais carentes e
desassistidas da sociedade.
A Reforma do Judiciário e a Lei Orgânica da Magistratura foram manifestações
autoritárias, prejudicando o exercício da justiça. Impõe-se uma reforma democrática do
judiciário com leis complementares que atendam às tradições jurídicas do País e à dignidade
do exercício da Justiça.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 20-28, jan./jun. 2018. 27


Esperança e Mudança

Cabe ainda estudar a criação da Justiça Agrária, antiga reivindicação dos


trabalhadores rurais e necessária diante da extensão e intensidade dos problemas e conflitos
na área rural brasileira.
É essencial a democratização efetiva do aparelho estatal — na União, nos
Estados e nos Municípios — através do sistema do mérito e da estabilidade no serviço
público e de decisões administrativas isentas dos comandos partidários e eleitorais.

28 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 20-28, jan./jun. 2018.


Parte II

Uma nova estratégia de desenvolvimento social

O vigoroso desenvolvimento capitalista, entre 1956 e 1973, diferenciou o nosso


país dentro do mundo periférico. O Brasil conta, hoje, com uma economia industrial
avançada, a oitava do mundo, penetrada pelas grandes empresas transnacionais e, ao
mesmo tempo, com um dos mais elevados índices de pobreza absoluta e de concentração
da renda e da riqueza social no globo terrestre.
O estilo de expansão dominante reproduziu, em nossa sociedade, características
de um padrão de desenvolvimento capitalista internacional que já apresentava, desde fins
dos anos sessenta, sinais de esgotamento. Esse estilo dominado pelo padrão industrial
americano, baseado na massificação (de cima para baixo) do consumo de bens duráveis,
numa correspondente matriz energética e em mecanismos financeiros de ampliação do
endividamento (das empresas, famílias e do Estado), mergulhou numa crise prolongada e
global, desde 1974.
O mais sério é que, no caso brasileiro, esta crise global nos alcançou de forma
duplamente crítica; de um lado, colocou em xeque-mate o estilo de crescimento industrial
dependente de tecnologia e petróleo importado e, de outro lado, lançou a grande maioria
do povo brasileiro em uma crise social aguda, de gravíssimas proporções.
É mister ressaltar que a crise social no Brasil já vinha se agravando, por conta de
uma política econômica dominada pelos grandes interesses e posta em prática com a
irresponsabilidade tecnocrata do regime autoritário. O distanciamento do povo e de suas
vicissitudes, o arrocho salarial, a ausência de uma política social, acentuaram as iniquidades,
já graves, do nosso desenvolvimento histórico. Não se pode deixar de sublinhar que, na fase
de auge do crescimento acelerado entre 1968 e 1973, — quando a política social foi mais
perversa — existiam as condições mais favoráveis, do ponto de vista estritamente
econômico, para promover a descompressão salarial e social. Assim, dada a falta de
qualquer política social, enquanto a economia atravessava uma das fases mais vigorosas de
expansão, com recursos fiscais abundantes e lucros pródigos, deteriorava-se violentamente
a distribuição da renda e as condições de miséria absoluta. No Nordeste, agravaram-se as
condições sociais, na área que já se constituía no maior bolsão de pobreza do Ocidente. Na
Amazônia e no Centro Oeste grandes fluxos de população migrante foram submetidos à
espoliação de sua força de trabalho, enquanto que os recursos naturais foram sendo
dilapidados por formas de exploração predatórias e desnacionalizantes. Nas grandes
cidades e áreas metropolitanas a força de trabalho assalariada e, principalmente, as
populações marginalizadas foram sendo vitimadas por condições de vida crescentemente
deterioradas, em todos os aspectos, com os salários de base congelados pela política de
arrocho.
Na etapa pós-1974, a progressiva deterioração das condições econômicas, no
contexto da crise mundial, foram imobilizando gradativamente as políticas governamentais,
de tal forma que — apesar das intenções declaradas — o quadro social continuou em
processo implacável de decomposição.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Esperança e Mudança

Não podemos negar que a crise mundial e o pesado ônus da dívida externa
antepõem sérias dificuldades para o Brasil. No entanto, cremos que mesmo diante destes
obstáculos o país dispõe de um futuro viável, e possivelmente brilhante, se conseguir
conciliar o desenvolvimento com a justiça social.
Diante das graves distorções e problemas acumulados durante os longos anos
de regime arbitrário, torna-se essencial e inadiável a tarefa de estabelecer uma Nova
Estratégia Econômica e de Desenvolvimento Social que responda aos desafios da crise
econômica e busque deliberadamente a distribuição cada vez mais igualitária de renda e
da riqueza. Em outras palavras, é urgente enfrentar o agravamento imediato e desagregador
da crise econômica, através de uma política alternativa de curto prazo que interrompa o
perigoso ciclo recessivo e inflacionário em que estamos metidos e que, ao mesmo tempo,
prepare as condições para uma retomada sólida e ordenada da expansão. Para isto, porém,
é indispensável contar com políticas estratégicas de reordenação do sistema produtivo, para
fazer frente aos desafios colocados pela crise mundial e, simultaneamente, dar suporte a um
novo projeto social.
O PMDB não aceita a falácia contumaz, de que existe uma “contradição” entre
o “econômico” e o “social”; falácia esta que deu origem à “teoria do bolo”, de triste memória,
de que primeiro ter-se-ia que cuidar do crescimento econômico para depois zelar para que
seus frutos fossem distribuídos. Portanto, embora para efeito de exposição constem do
presente documento, como títulos separados, a política econômica e a política social, isto
não deve fazer supor que se concebem essas duas grandes áreas de política pública como
compartimentos separáveis. É mister reconhecer, como ponto de partida, que as políticas
públicas são sociais, na medida em que, por omissão ou ação, dificultam ou facilitam a
realização de objetivos de promoção social.

1. A redistribuição da renda como objetivo das políticas públicas e de reformas


sociais

A redistribuição da renda, enquanto meta fundamental, constitui um processo


extremamente complexo, envolvendo necessariamente a atuação coordenada de políticas
públicas e reformas sociais, em vários planos distintos. Desde logo, a questão da
distribuição da renda está intimamente associada à dinâmica da estrutura produtiva, à
evolução dos padrões de consumo e à evolução da estrutura de empregos e ocupações.
É preciso reconhecer, de saída, que a redistribuição da renda não poderá ser
lograda pura e simplesmente através de uma nova política salarial, por mais “justa” e
“indexada” que esteja contra a erosão inflacionária do poder de compra dos assalariados.
Muito embora a política salarial seja um elemento fundamental de uma estratégia de
redistribuição de renda, ela não pode dar conta de vários outros aspectos, tais como: a
qualidade e adequação do abastecimento alimentar urbano, o controle dos preços e da
diferenciação dos produtos industriais de ampla demanda popular, a incidência tributária,
as condições de crédito ao consumidor e do financiamento habitacional, as condições da
vida rural, as condições de oferta dos serviços urbanos fundamentais, de saúde, de

30 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

educação, enfim, de todo um conjunto de elementos que definem a qualidade do “padrão


de vida” nas sociedades modernas. Este conjunto de condições responde, por sua vez, a
distintas áreas de política pública que, em formas e prazos diferentes, poderão contribuir
para a melhoria firme e progressiva da distribuição da renda e da riqueza. Por último, mas
não menos importante para a distribuição da renda, é a implementação de uma Política de
Emprego que crie novas funções e postos de trabalho, com redução gradativa (a médio e
longo prazos) da jornada de trabalho, de modo compatível com a tendência à terciarização
e com as grandes transformações técnicas que o futuro certamente nos reserva, com notáveis
incrementos de produtividade, associados à difusão de métodos cibernéticos de automação
e informática.
A possibilidade, pois, de que os objetivos redistributivos de renda e da riqueza
se farão valer depende de que todas as políticas econômicas e sociais estejam submetidas a
estes objetivos, de maneira deliberada, consistente e explícita. Mais ainda, a consecução
destes objetivos e a eficácia das políticas públicas dependem, também, da remoção de
obstáculos institucionais, para viabilizar meios mais rápidos de distribuição da riqueza.
Requer, por isso, reformas sociais e outras mudanças de natureza institucional, tais como a
reforma da legislação trabalhista, reforma agrária e fundiária, reforma tributária, etc.
Ao reconhecer estas exigências, o PMDB, conforme está claro nos itens que se
seguem, referentes à estratégia de desenvolvimento social e de política econômica,
subordina toda a condução das políticas públicas à promoção dos setores majoritários da
população, constituídos pelos trabalhadores, assalariados e populações de baixa renda, hoje
marginalizados dos frutos do progresso econômico nacional.
A única garantia, porém, de que o processo de desenvolvimento avance de
forma substantiva reside na participação permanente e organizada do povo nas decisões. A
democratização do Estado constitui o único caminho adequado para colocar,
definitivamente, a política econômica e social a serviço dos interesses da sociedade. Este é o
caminho para conjugar o desenvolvimento econômico com a justiça social. Só com a
DEMOCRACIA haverá DISTRIBUIÇÃO MAIS JUSTA DA RENDA!
O desenvolvimento com democracia e participação significa a garantia de um
nível mínimo de renda, de habitação, de educação, saúde, lazer. Não pode haver verdadeira
democracia fundada na desigualdade opressiva, na persistência e ampliação da pobreza, na
exclusão prática de imensos contingentes de seres humanos da cidadania e dos frutos do
progresso material e espiritual do País.
A consecução deste objetivo não pode basear-se em propostas utópicas e
demagógicas. PROPÕE-SE, AQUI, UM CONJUNTO ARTICULADO E EXEQUÍVEL DE
POLÍTICAS SOCIAIS, BASEADO NUM ELENCO COMPATÍVEL, CONSISTENTE E NÃO
INFLACIONÁRIO DE POLÍTICAS ECONÔMICAS E REFORMAS INSTITUCIONAIS.
Posto que a redistribuição da renda e da riqueza é o objetivo central da nova
estratégia de desenvolvimento social aqui proposta, é necessário delinear as linhas gerais de
articulação entre as principais políticas públicas e reformas necessárias à sua consecução.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 31


Esperança e Mudança

O processo de redistribuição da renda deve fundar-se em 6 pilares básicos,


alinhados a seguir:
1º) em reformas institucionais e sociais, notadamente de reforma da legislação trabalhista,
reforma agrária, reforma fundiária (urbana e rural) e de reformas econômico-
instrumentais, como as reformas tributária e financeira;
2º) em uma nova política salarial, previdenciária e em medidas relativas à estabilidade no
emprego;
3º) em um programa de políticas sociais de longo alcance;
4º) em políticas de reordenação do espaço regional, urbano e do meio ambiente;
5º) numa estratégia de reordenação do sistema produtivo, que se guie pelo critério da
redistribuição da renda e da democratização das oportunidades;
6º) numa política de emprego que sintetize o conteúdo social do conjunto de novas políticas
públicas acima relacionadas.

1.1. O sentido das reformas sociais, institucionais e instrumentais para a distribuição da


renda e da riqueza

a) Reforma da Legislação Trabalhista


O objetivo fundamental de reformar a legislação trabalhista, conforme o desejo
dos trabalhadores, expresso na I Conferência das Classes Trabalhadoras (I CONCLAT), é
constituir um sistema sindical livre, autônomo. O princípio da autonomia sindical implica
extinguir a tutela do Estado sobre a organização sindical e sobre as relações entre patrões e
empregados. Os resquícios de corporativismo, que impregnam a legislação trabalhista,
facilitam a manipulação autoritária dos sindicatos, através da vinculação financeira, da
possibilidade de intervenção e de outros mecanismos de dependência.
A Consolidação das Leis do Trabalho — CLT — permanece até hoje
comprometida por estes vícios que precisam ser definitivamente extirpados da legislação, e
que impedem que os trabalhadores possam se organizar livremente para defenderem seus
interesses. Coloca-se, pois, como uma das justas aspirações da classe trabalhadora a
elaboração de um novo Código de Trabalho que garanta a liberdade e a autonomia sindicais
e que revise, em profundidade, os direitos sociais básicos dos trabalhadores, visando
assegurá-los efetivamente.
É necessário, entretanto, que a elaboração de um novo Código de Trabalho seja
precedida de ampla discussão por parte da sociedade e principalmente dos trabalhadores.
Esta reforma deve garantir juridicamente os direitos mínimos dos trabalhadores e delinear
claramente as atribuições e responsabilidades do Estado para evitar qualquer possibilidade
de subordinação das organizações sindicais. Um campo importante de ação direta do Estado
consiste, por exemplo, na garantia de um nível mínimo de remuneração ao trabalho —
através do salário mínimo que permita um padrão de vida condigno ao trabalhador e sua
família.

32 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

O objetivo central da realização da reforma na legislação trabalhista é o de


fortalecer o conjunto das organizações representativas dos trabalhadores urbanos e rurais.
Sintonizado com a luta dos trabalhadores nesta direção, o PMDB sempre se bateu pela
liberdade sindical, pela plena restauração do direito de greve e pela possibilidade de que
seja estruturada uma organização central dos trabalhadores, com a constituição da Central
Única, como foi resolvido ano passado na I CONCLAT.
O fortalecimento do sistema sindical, com liberdade e autonomia, com poder
efetivo de negociação e recurso legítimo à greve para garantia de salários reais crescentes e
novas conquistas sociais, constitui a única forma de assegurar a distribuição dos benefícios
do progresso material às classes assalariadas, simultaneamente ao crescimento da
produtividade e acumulação da riqueza social.

b) Reforma Agrária e Fundiária (rural e urbana)


A reforma agrária significa uma completa reorganização da vida rural com o
objetivo de assegurar acesso à terra, ocupação produtiva, renda e condições dignas de vida
à população do campo. Significa o fortalecimento e a liberdade de organização dos
produtores e trabalhadores para que o Estatuto da Terra venha a ser efetivamente
implantado, garantindo o acesso à terra, a regularização da situação dos verdadeiros
posseiros e a reordenação do sistema agrícola, de forma adequada às características
regionais, com o objetivo de criar uma agricultura eficiente, com produtividade crescente e
uma população rural próspera e livre. A reforma agrária representa, portanto, a síntese de
um complexo de medidas e políticas envolvendo quase todas as áreas de políticas públicas.
Não é possível uma reforma agrária sem uma política agrícola eficaz, sem que haja
intervenção na comercialização dos produtos, sem que haja estradas, silos, assistência
técnica, crédito adequado, apoio às cooperativas dos pequenos e médios produtores,
financiamento de longo prazo para as imobilizações, garantia real de preços, seguro
abrangente, educação, previdência, saneamento, saúde, etc. Tal é a complexidade da
reforma agrária que merece ser tratada em seção especial, adjunta à parte relativa à política
agrícola na parte III deste documento.
A reforma fundiária rural, por sua vez, é uma pré-condição para a verdadeira
reforma agrária. Ela implica na criação urgente de mecanismos legais rápidos e justos para
assegurar a posse da terra e o acesso à propriedade aos que nela trabalhem, de forma a
permitir que dezenas de milhões de brasileiros que vivem marginalizados no campo possam
participar dos frutos do seu próprio trabalho e venham integrar-se na sociedade brasileira
como cidadãos plenos.
A reforma fundiária urbana, por outro lado, é também uma pré-condição para
viabilizar uma verdadeira política de desenvolvimento urbano, que reordene as condições
de vida nas cidades, assegurando o direito ã moradia e a serviços públicos minimamente
decentes. A terra não pode ser uma reserva especulativa de valor para o seu proprietário e
sim instrumento de trabalho produtivo no campo. Tampouco pode ser utilizada como ativo
para valorização especulativa de capitais nas áreas urbanas, marginalizando milhões de
brasileiros do direito à vida e habitações condignas.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 33


Esperança e Mudança

c) Reformas Tributárias e Financeira e utilização dos Fundos Sociais


A reforma tributária visa corrigir a dramática regressividade existente em nosso
sistema fiscal, onde as classes de baixa renda pagam proporcionalmente muito mais
impostos que as classes de alta renda. Além disso, a reforma tributária visa implantar uma
significativa desconcentração fiscal em favor dos Municípios e Estados da Federação para
que possam enfrentar os problemas locais e regionais, que dizem respeito diretamente à
qualidade de vida das populações desfavorecidas. A sustentação de programas ampliados
de gastos sociais requer novos recursos estáveis, de base fiscal, que só poderão ser supridos
através de uma reforma de toda a sistemática tributária, no sentido de obter formas
socialmente equânimes de taxação. Para isso, a reforma tributária é indispensável e este
documento contém, na sua parte III, as diretrizes de uma proposta específica neste sentido.
A reforma financeira também está intimamente relacionada à redistribuição da
renda na medida em que a democratização do crédito constitui um avanço indispensável
para criar condições de acesso das classes de baixa renda aos bens de consumo duráveis e à
habitação assim como para viabilizar o desenvolvimento da pequena produção rural e
urbana.
A regulamentação do crédito ao consumidor deve ser efetuada, com taxas de
juros baixas, prazos e prestações adequados aos orçamentos familiares das classes de baixa
renda. Além disso, é fundamental reorientar as linhas de crédito de todos os bancos
públicos. No que se refere ao Banco Nacional da Habitação (BNH) é indispensável a
introdução de mudanças significativas, visando rebaixar as taxas reais de juros para os
financiamentos de baixa-renda, amenizando-as também para o caso das classes médias. Esta
mudança implica em que o Sistema Financeiro da Habitação pratique uma política
verdadeiramente diferenciada de juros, reservando uma parte dos recursos do sistema
voluntário de poupança e empréstimo, que opera com recursos das cadernetas de poupança
e precisa remunerá-los adequadamente, para os financiamentos dirigidos às classes de alta
renda. A operação deste sistema certamente requererá um certo volume de recursos fiscais
a fundo perdido, para que se possa diluir o “custo” financeiro dos programas de habitação
popular sem risco de descapitalização dos fundos sociais, particularmente do Fundo de
Garantia de Tempo de Serviço, FGTS, principal sustentáculo do BNH. Além disso, é urgente
interromper a utilização dos recursos do FGTS para os programas de saneamento. É um
absurdo pretender que “empresas” neste setor possam produzir “retornos” para remunerar
os fundos sociais (com correção monetária e juros), senão através da cobrança de tarifas
extremamente elevadas para serviços essenciais como fornecimento de água e esgotos.
Finalmente, a democratização do crédito passa pela criação de linhas de crédito
cooperativo e popular, fundamentais para apoiar o processo de reforma agrária e para
financiar pequenos empreendimentos cooperativos urbanos, microempresas familiares, etc.
Para isso, o Banco do Brasil, os bancos regionais e bancos estaduais devem reestruturar as
suas linhas operacionais no sentido de atender às diretrizes de um plano nacional de crédito
cooperativo e popular.

34 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

Outro aspecto fundamental da reforma financeira prende-se à possibilidade de


utilização da dívida pública como instrumento de desenvolvimento social, suplementando
a participação das dotações governamentais a fundo perdido, de modo a permitir a
expansão da oferta dos bens e serviços públicos essenciais, com tarifas acessíveis aos
usuários de baixa renda. Os aspectos tratados aqui, com relação à reforma financeira,
prendem-se apenas à democratização do crédito e à utilização social da dívida pública. As
transformações fundamentais do sistema financeiro, para a criação de instrumentos
adequados ao financiamento de longo prazo para o setor público e para a acumulação
produtiva de capital estão contidos em seção específica na parte III do presente volume.

1.2. O papel do conjunto de políticas públicas para a distribuição da renda

Como já foi observado, a reversão do elevadíssimo grau de concentração da


renda e da riqueza em nosso país, requer um esforço continuado e deliberado em que as
políticas públicas estejam todas submetidas ao crivo dos critérios redistributivos. No que se
refere ao seu papel quanto à distribuição de renda as políticas públicas podem ser
agrupadas em três categorias:
1) Políticas sociais clássicas, como a salarial, previdenciária, de abastecimento alimentar,
saúde, educação, que atuam diretamente sobre o atendimento às necessidades básicas da
população;
2) Políticas de reordenação do espaço urbano, regional e do meio ambiente, que também
afetam diretamente as necessidades básicas da população, relativas à habitação,
saneamento, transportes coletivos, qualidade do ar e da água etc., mas que exigem
vultosos investimentos em construção ou dependem da execução de planos de
reordenação estrutural da vida urbana ou rural;
3) Finalmente, as políticas estratégicas de reordenação do sistema produtivo que devem
ajustar-se às prioridades redistributivas de forma a assegurar que o padrão de
crescimento industrial, que a política agrícola e agrária, que o desenvolvimento da
mineração, que os ajustamentos do sistema de energia e transportes também se realizem
e atuem como fatores convergentes de transformação social, no sentido de crescente
equidade e justiça distributiva.
A expansão do gasto público na área das políticas sociais clássicas constitui uma
exigência mínima de uma sociedade democrática. Da mesma forma, as políticas de
reordenação do espaço urbano e regional devem ser consistentemente mobilizadas no
sentido do desenvolvimento social. O PMDB propõe ao debate nacional, neste documento,
diretrizes fundamentais para cada uma destas políticas, nos capítulos que se seguem.
Sem uma nova lei salarial que proteja todos os segmentos assalariados
(inclusive os funcionários públicos) e faixas de rendimento dos efeitos corrosivos da
inflação; sem mudanças nos dispositivos do FGTS para garantir a estabilidade do emprego;
sem uma reforma da previdência social que busque implantar um sistema justo de
financiamento e de distribuição dos benefícios, favorecendo as classes de baixa renda, não

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 35


Esperança e Mudança

será possível iniciar o processo de redistribuição da renda nacional. Além disso, o PMDB
está consciente de que Programa de Políticas Sociais de Longo Alcance, visando atacar, de
forma simultânea, todos os problemas sociais de vulto como a saúde pública, a educação, o
abastecimento alimentar com preços acessíveis, a habitação popular, o saneamento básico,
os transportes coletivos urbanos, a proteção ao meio ambiente, também não será possível
dar continuidade à distribuição da renda, em termos substantivos e irreversíveis.
A urgente implantação deste elenco de políticas de envergadura, decerto requer
um substancial incremento dos gastos sociais nos orçamentos e planos governamentais, com
a garantia assegurada de prioridade na alocação global de recursos através da instituição do
planejamento democrático, com a participação decisiva do poder legislativo.
Ao mesmo tempo, a alocação específica destes recursos deve ser
descentralizada e fixada democraticamente, no nível dos Estados e Municípios, enquanto
sua implementação deve ser posta sob supervisão de novos organismos de representação
dos interesses dos usuários, segmentos profissionais e setores assalariados diretamente
interessados.
A irreversibilidade de um processo de distribuição de renda teria que ser,
também, respaldada pela implementação de uma política global de emprego que busque
articular, em todos os níveis, a conciliação de critérios de crescimento máximo da
produtividade com a geração de empregos em escala adequada ao crescimento da força de
trabalho economicamente ativa.
De outro lado, não se pode deixar de ressaltar que a redistribuição da renda
implica, por si mesma, na redução progressiva das desigualdades regionais. Redistribuição
social da renda e riqueza entre as populações das diferentes regiões constitui um só e mesmo
processo. Por isso, o critério de regionalização de todas as políticas públicas deve
acompanhar explicitamente a política de redistribuição.
Finalmente, as políticas de reordenação do sistema produtivo devem oferecer
suporte de médio e longo prazos aos objetivos redistributivistas — ao ajustamento
estrutural da economia diante da crise mundial deve corresponder um processo simultâneo
de ajustamento estrutural na esfera social, que é o ponto de honra da estratégica alternativa
que o PMDB propõe ao País.
Propostas e diretrizes para o debate democrático de todas estas políticas são
apresentadas nas seções e capítulos seguintes.

2. As políticas sociais básicas: exigências mínimas de uma sociedade democrática

Saúde, educação, abastecimento de bens essenciais, salários reais justos e


crescentes, previdência social, estabilidade no emprego são alicerces de uma sociedade
democrática. A carência destes elementos numa sociedade como a brasileira, que já alcançou
um estágio relativamente avançado de desenvolvimento das forças produtivas, com um
sistema industrial e agrícola com amplas potencialidades, resulta da omissão irresponsável

36 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

do poder público — uma vergonha para o País — que pode e deve ser revertida e sanada
em menos de um decênio, se para tal for implantada uma política social firme e continuada.
O PMDB não aceita este estado de coisas — a pobreza absoluta pode e deve ser
erradicada da face do Brasil e para isso propõe-se o seguinte conjunto de políticas e
diretrizes sociais.

2.1. Uma nova política salarial e o custo de vida

A política salarial do regime autoritário, junto com o brutal aumento do custo


de vida, especialmente nos últimos anos, piorou, frequentemente de forma insuportável, as
condições de vida dos trabalhadores, funcionários públicos e das classes médias.
A política antipopular de arrocho salarial baseou-se na degradação do salário
mínimo, cujo valor real é hoje cerca de 40% inferior ao que vigorava em fins dos anos 50 e
começo dos anos 60. O DIEESE, considerando uma família composta de dois adultos e duas
crianças, tal como prevê a lei de criação do salário mínimo em 1939, estima que o seu valor
deveria ser, em 1º de maio de 82, de Cr$ 42.197,00 e não apenas os minguados Cr$ 16.808,00,
como foi fixado pelo reajuste oficial.
Este confisco do salário mínimo teve consequências terríveis para as classes
assalariadas. De fato, o Censo de 1980 demonstrou que 71% da força de trabalho no Brasil
situa-se na faixa de baixa remuneração, abaixo de 3 salários mínimos, sendo que uma
porcentagem expressiva está abaixo de 2 salários mínimos e muitos não ganham sequer o
salário mínimo.
As consequências desta política funesta para a distribuição de renda são óbvias.
Além da perda absoluta do poder de compra do salário mínimo, a rotatividade dos
trabalhadores não-qualificados foi intensificada pelos dispositivos facilitados de demissão
do FGTS, pois passou a ser vantajoso para as empresas, nas épocas de reajuste, trocar uma
parte de seu pessoal por novos trabalhadores de menor salário, propiciando o rebaixamento
de toda a base salarial. A compressão da base dos salários induziu, por sua vez, as empresas
a estabelecer crescentes diferenciações de remuneração, aumentando intensamente os
desníveis entre o pessoal qualificado e os trabalhadores não-qualificados. Com isso, estas
diferenças alcançaram valores inconcebíveis, mesmo considerando o exemplo de outros
países capitalistas.
O PMDB repudia o arrocho dos salários e defende a adoção de uma nova
política salarial que proteja todos os segmentos e faixas de remuneração dos efeitos
corrosivos da inflação. Defende uma política que possibilite a elevação real dos salários de
base, a ser induzida pelo aumento real do salário mínimo. Não se pode, contudo, defender
o aumento dos salários sem enfrentar, ao mesmo tempo, o problema da alta vertiginosa do
custo de vida. O PMDB entende que a adoção de uma política anti-inflacionária eficaz é do
maior interesse das classes trabalhadoras, na medida em que contenha o ritmo brutal de
elevação do custo de vida. Porém, ao contrário do receituário ortodoxo, que a prática

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 37


Esperança e Mudança

demonstra estar inteiramente falido, sustenta que não é possível combater eficazmente a
inflação através da recessão.
Pelo contrário, é justamente a recuperação ordenada do crescimento econômico
que tornará possível controlar a inflação galopante, conforme está exposto na proposta de
uma política alternativa de curto prazo, na parte III deste trabalho, e que recomenda entre
outras coisas:
1) a reimposição imediata e rigorosa dos controles de preços, com mecanismos anteci-
patórios de detecção dos aumentos de custo;
2) a adoção de uma política seletiva de crédito, com mecanismos penalizadores para as
empresas que ultrapassarem os tetos fixados;
3) a adoção de uma política de estímulo da oferta de alimentos e gêneros industriais básicos,
com controle das margens de lucro industriais e comerciais;
4) a redução firme e gradativa dos coeficientes de correção monetária e queda imediata da
taxa de juros.
O governo, ao contrário, acossado pela reaceleração da inflação corrente,
resultante de uma política econômica desgastada e gerida de forma incompetente, já planeja
abertamente a derrubada da atual lei salarial para depois das eleições de novembro. Esta lei,
adotada em fins de 1979, em função dos crescentes movimentos de luta reivindicatória dos
trabalhadores através de seus sindicatos, introduziu algumas melhorias em relação à
situação passada, sem, contudo, assegurar ganhos fundamentais. O seu aspecto mais
positivo, sem dúvida, foi o da semestralidade do reajuste, pois com a forte aceleração da
inflação a deterioração dos salários teria sido ainda mais violenta, se fosse mantido o
reajuste anual.
O reajuste semestral, contudo, não elevou o poder de compra dos salários, pois
os preços cresceram ainda mais rapidamente do que no passado. Os aumentos do custo de
vida passaram a ser da ordem de 90 a 110% ao ano. Isto significa que os salários são
corroídos em velocidade duas vezes mais rápida do que quando a inflação era de 40 ou 50%
ao ano. Portanto, os reajustes tornaram-se mais frequentes, mas, em compensação, os
salários foram perdendo o seu valor muito mais rapidamente.
A política conservadora deseja, porém, remover a semestralidade antes que a
inflação caia e sem qualquer garantia de que venha a cair. Querem que o peso da sua
“política” contra a inflação recaia inteiramente sobre os trabalhadores. A intenção é de
substituir os reajustes semestrais com base no INPC por ajustes muito menores, com base
na inflação “projetada” pelo governo. O PMDB denuncia esta manobra traiçoeira contra a
classe trabalhadora, que já vem pagando um preço elevado demais pela atual política inepta
e perigosa de recessão.
O PMDB propõe a substituição de toda esta “política” econômica por outra, que
conte com o apoio das classes assalariadas, para combater eficazmente a alta do custo de
vida e que permita estabelecer a unificação nacional e a reposição gradativa do poder real
de compra do salário mínimo. Esta reposição deveria ser feita através de reajustes sempre

38 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

superiores à inflação, visando duplicar o seu valor real num prazo o mais curto possível,
dentro do que for economicamente viável para o País.
Outra característica indesejável da atual política salarial diz respeito à forma
como busca “corrigir” as diferenças salariais, cortando abaixo da inflação os salários médios
e altos e elevando os salários baixos 10% acima do aumento do custo de vida (INPC).
Contudo, o principal com relação aos salários de base não foi tocado: o salário mínimo tem
sido reajustado apenas de acordo com o aumento do custo de vida. O PMDB, ao contrário,
entende que a elevação real da base salarial, através do aumento do salário mínimo acima
do INPC, conduziria a uma natural diminuição das diferenças salariais atualmente
existentes, não sendo necessário o violento achatamento dos salários médios e altos,
promovidos pela política atual.
Outro aspecto inaceitável da atual política salarial é a exclusão dos servidores
públicos dos benefícios da semestralidade do reajuste. Um imenso contingente de
trabalhadores, em geral das camadas médias da população, encontra-se assim indefeso ante
a brutal elevação do custo de vida. Além disso, os reajustes anuais concedidos ao
funcionalismo não têm igualado a evolução do custo de vida e, para cúmulo, são divididos
em duas parcelas, agravando ainda mais a perda do poder de compra real dos vencimentos.
O PMDB defende a justa reivindicação do funcionalismo de receber imediatamente reajustes
plenos e semestrais.
O PMDB reitera a denúncia contra as intenções do governo de promover uma
nova e violenta rodada de arrocho salarial, após as eleições de novembro. Esta medida, se
for adotada, atingirá brutalmente as classes assalariadas e agravará certamente a recessão,
pois os setores que produzem bens de amplo consumo popular logo serão afetados
negativamente. Os trabalhadores devem estar de sobreaviso e preparados para prevenir,
junto com as oposições, a mais este golpe contra o povo brasileiro.
O PMDB quer promover a descompressão salarial, quer garantir o crescimento
real dos salários de base e isto só será possível no contexto de uma nova política econômica,
que recupere o crescimento do emprego e enfrente eficazmente a carestia de vida. Uma nova
política salarial, dentro da alternativa de política econômica, teria um importante efeito
positivo sobre a recuperação da produção e o emprego. De fato, amplos setores da indústria,
da agricultura e dos serviços serão beneficiados pela maior demanda proveniente do
aumento de renda dos trabalhadores. Cabe às políticas industrial e agrícola garantir a maior
produção necessária para o atendimento dessa demanda, evitando a escassez de oferta e
prevenindo os aumentos de preços.

2.2. Estabilidade no emprego e condições de trabalho

A política de arrocho salarial, com a queda real dos salários de base, foi em
grande parte realizada através do mecanismo da rotatividade da mão de obra. A criação do
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), em 1967, com mecanismo bastante
cômodo de demissão sem justa causa, permitiu que as empresas intensificassem fortemente
as dispensas dos trabalhadores pouco antes das datas-base dos dissídios. A facilidade em

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Esperança e Mudança

dispensar os empregados tornou vantajoso para as empresas demitir uma boa parte de seus
trabalhadores, trocando-os por outros, com salários mais baixos, e eximindo-se, assim, de
ter que conceder plenamente até mesmo os aumentos oficiais. Este mecanismo perverso e
altamente injusto deve ser imediatamente interrompido para que seja possível estabelecer a
estabilidade.
A estabilidade no emprego é uma das mais justas aspirações dos trabalhadores
brasileiros. Mesmo antes da instituição do FGTS a situação era bastante insatisfatória, pois
a mesma era alcançada somente após 10 anos de serviço. É preciso estabelecer uma
legislação que assegure a verdadeira estabilidade, que não é incompatível com o Fundo de
Garantia. Trata-se, portanto, de suprimir os dispositivos do FGTS que facilitam a dispensa
injustificada, substituindo-os por outros que, ao contrário, a dificultem.
Um outro aspecto extremamente relevante de uma nova política trabalhista diz
respeito ao atual descaso e omissão com relação às condições de trabalho. A falta de
regulação e fiscalização das condições da salubridade e periculosidade do trabalho, a incúria
com relação à segurança, tem redundado em níveis altíssimos, pelos padrões internacionais,
de acidentes de trabalho de doenças induzidas. Por isso, é absolutamente necessário e
inadiável a implantação de normas de salubridade e segurança das condições de trabalho,
com a participação dos Sindicatos na sua fiscalização, através dos delegados ou comissões
de fábrica.

2.3. Reforma e nova política para a Previdência Social

É hoje patente que o sistema previdenciário brasileiro vive uma grave crise. Esta
é mais uma manifestação da crise geral decorrente dos longos anos de arbítrio, agravada de
forma intolerável, recentemente, pela política econômica recessiva e antissocial. A crise
previdenciária é resultado da associação de problemas estruturais da própria Previdência
(despercebidos, antes, pela incompetência do governo e pela inexistência de controle social
sobre suas atividades), com os efeitos da recessão econômica que provoca, via desemprego,
queda das contribuições previdenciárias. Fator adicional de agravamento é a diminuição
das transferências da União para o sistema.
A resposta dada pelo governo a essa crise foi digna de seu passado consistente
de atos de discriminação contra a classe trabalhadora. Assim, coube outra vez aos
trabalhadores e aos aposentados o ônus de pagar a conta dos descalabros do Governo,
através do Decreto-lei nº 1.910/81, que aumentou contribuições e instituiu desconto sobre
proventos de aposentados e pensionistas. Estas medidas não eram necessárias, já que havia
alternativa para aumentar os recursos previdenciários sem penalizar aqueles que já são
oprimidos pelo sistema econômico como um todo. Assim, exigiu-se maior contribuição dos
trabalhadores, três meses depois do Presidente da República, de público, na televisão,
“repelir” tal solução. E pior, por se tratar de providência apressada de curto alcance, não
foram afetadas as causas da crise previdenciária que continua carente de solução.

40 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

Não foi, como sempre, por desconhecimento que o governo deixou de resolver
a crise, mas porque isto exige disposição política para atacar as causas verdadeiras, e apoio
para contrariar interesses minoritários na sociedade, mas dominantes no poder e no PDS.
Do ponto de vista do PMDB, antes de mais nada, é necessário refletir sobre a
natureza e a função social da Previdência, através de ampla discussão, de modo que as
reformulações a serem introduzidas sejam decorrência lógica do papel que a sociedade,
pelos seus interesses majoritários, quer reservar à Previdência na política social de um
governo democrático.
Assim, há que se determinar as prioridades da Previdência Social tanto em
termos da população a ser mais beneficiada, quanto da amplitude dos riscos a serem
cobertos.
A natureza de proteção social do seguro estatal deve levar a sua administração
à extrema parcimônia e rigor no uso dos recursos, já que o seu financiamento é
responsabilidade de toda a sociedade, onde por solidariedade, os trabalhadores ativos
respondem pela sobrevivência digna dos inativos e/ou seus dependentes.
Consequentemente, o seguro social deve ter prioridades claras.
No que concerne à população a ser mais beneficiada, a Previdência Social há que
dar ênfase aos trabalhadores de baixa renda, por serem estes e seus familiares os mais
expostos aos riscos que o seguro social visa cobrir. Tal prioridade traduz-se, nos lados das
contribuições, pela busca de critérios que onerem menos aos trabalhadores mais pobres e,
no lado da estrutura de benefícios, fazendo-a convergir, primordialmente, para o
atendimento às necessidades básicas dos grupos mais carentes.
Já quanto a amplitude dos benefícios, é decorrência do princípio anterior de que,
prioritariamente, a Previdência Social concentre recursos no atendimento aos riscos básicos
que podem atingir o trabalhador e sua família. Estes riscos básicos são morte, invalidez,
velhice, doença e acidente do trabalho. A dispersão de recursos em outras áreas de
benefícios deve ser subordinada ao atendimento razoável desses riscos e à prioridade antes
exposta — atendimento às famílias de baixa renda.
A obediência a tais definições deve orientar as propostas de reforma
previdenciária nas áreas específicas, a saber:
1. Benefícios em dinheiro
A estrutura dos benefícios em dinheiro que compreende aposentadorias,
pensões, auxílios, etc., dada a sua magnitude (corresponde a cerca de 65% da despesa total
da Previdência), precisa ser questionada amplamente, à luz dos critérios antes expostos.
É certamente possível aumentar o grau de progressividade e, portanto, de justiça
social, na despesa com esses benefícios. Isto pode ser obtido através de modificações na sua
concessão, tanto para restringir o acesso a alguns benefícios, quanto para ampliar o valor
dos benefícios pagos a segurados mais desfavorecidos. É indiscutivelmente urgente, por
exemplo, melhorar o padrão de rendimentos dos aposentados por invalidez. Por outro lado,

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 41


Esperança e Mudança

não há razão para que se pague o salário-família e auxílio-natalidade aos assalariados de


alta renda.
Outro aspecto essencial a reformular é o atendimento aos trabalhadores rurais,
hoje prestado em caráter precário. A extensão de benefícios essenciais, como o auxílio-
doença, é indispensável para assegurar um regime previdenciário rural mais justo e
democrático, reforçando-se, para isto, o seu esquema de financiamento.
2. Assistência médica
A assistência médica da Previdência Social tem que passar por completa
reformulação, com ênfase nos seguintes aspectos:
a) integração institucional e de atividades com o Ministério da Saúde de modo a garantir
prioridade às necessidades básicas de saúde da população, destacando-se controle de
endemias, saneamento básico, assistência materno-infantil, nutrição e outros programas
de prevenção;
b) reformulação incisiva das relações com o setor hospitalar privado de modo a garantir a
efetivação das prioridades, impedir o desperdício de recursos e coibir vigorosamente a
corrupção e as fraudes;
c) extinção da discriminação na assistência médica ao trabalhador rural e seus dependentes
com extensão a estes dos mesmos direitos do trabalhador urbano;
d) ampliação gradual do sistema em sintonia com a política de saúde pública, com o aporte
crescente de recursos orçamentários de modo a estender o atendimento a toda a
população, independente de filiação previdenciária.
3. Financiamento
O financiamento atual da Previdência Social padece de dois defeitos
fundamentais: de um lado é injusto socialmente porque onera mais o trabalhador pobre do
que aos demais; de outro lado, por ser quase exclusivamente baseado em contribuições
sobre salários, representa desestímulo a absorção de mão de obra, por penalizar as empresas
que empregam mais por unidade de produção. Com vista à superação desses defeitos
propõe-se o estudo cuidadoso de alternativas de financiamento, dentro das seguintes
diretrizes:
a) conversão parcial das contribuições de responsabilidade dos empregados para outras
bases de financiamento, tais como: 1. contribuição sobre o valor adicionado em esquema
progressivo de incidência; e 2. contribuição adicional sobre a renda, especialmente renda
de capital;
b) supressão do teto de contribuições sem aumento do teto de benefícios de modo a tornar
o sistema mais progressivo;
c) supressão das contribuições dos aposentados e pensionistas, instituídas pelo Decreto-Lei.
1.910/81.

42 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

4. Reformulação institucional
Do ponto de vista institucional e administrativo a Previdência Social chegou à
situação calamitosa de hoje devido aos seguintes problemas; em primeiro lugar, a
dominância de interesses eleitorais sobre a impessoalidade e racionalidade, que deve
caracterizar a gestão pública, acarretou inacreditável incompetência administrativa;
inexistência de quadros técnicos com mínimo de estabilidade; e omissão frente a fraudes e
abusos. Em segundo lugar a ampliação não planejada das atividades da Previdência sem a
cobertura financeira e administrativa correspondente levou o sistema ao descontrole e
desperdício de recursos. Tal situação é agravada pela inexistência de controle externo sobre
a gestão previdenciária, salvo o do Tribunal de Contas da União, que é demasiadamente
formal e demorado.
Assim, no plano institucional propõe-se:
a) A instituição de mecanismos eficazes de controle social sobre a administração
previdenciária, com especial menção para a criação, nos níveis nacional, estadual e local, de
órgãos de controle, com representação de sindicatos de empregados e empregadores, do
governo local e federal para supervisionar as atividades da Previdência Social. Deve-se
cuidar, entretanto, de assegurar rotatividade e efetivo papel dos sindicatos nestes órgãos
para evitar repetir a absorção clientelística dos representantes, ocorrida no passado.
b) medidas para dotar a Previdência Social de quadros administrativos com
independência de influência político-eleitoral;
c) clara separação de funções do seguro social, assistência social e assistência
médica, com fontes de financiamento próprios e independentes.

2.4. Política de saúde

A situação de saúde da população brasileira é inaceitável. Mantêm-se, em nível


alarmante, certas condições que de há muito poderiam ter sido superadas. É o caso da
persistência em caráter endêmico de doenças como a tuberculose, malária, chagas,
hanseníase; a elevada incidência de doenças evitáveis por agentes imunizantes (sarampo,
difteria, poliomielite, tétano, etc.) e a manutenção de altas taxas de mortalidade infantil. A
par destes problemas, vem aumentando progressivamente a ocorrência das doenças
crônico-degenerativas (cardiovasculares, neoplásicas, mentais, etc.), acidentes de trânsito,
doenças profissionais e acidentes do trabalho, estes últimos eventos decorrentes das más
condições de trabalho a que está submetida parcela apreciável da população.
Este quadro extremamente insatisfatório apresenta como uma de suas
características fundamentais a desigualdade com que a morbidade se distribui, segundo as
diversas camadas ou estratos sociais, o que se expressa pelos grandes diferenciais de risco
de adoecer e morrer. A título de exemplo, para cada 1.000 crianças nascidas vivas de famílias
com renda acima de 5 salários mínimos mensais, 70 morrem antes de completar os 5 anos
de idade, número que se eleva para 174 no caso de crianças nascidas de famílias com renda
mensal inferior a 5 salários mínimos.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 43


Esperança e Mudança

Não é possível se elevar consistentemente o nível de saúde da população sem


uma política salarial justa, sem condições adequadas de moradia e trabalho; sem um nível
de nutrição satisfatório, sem saneamento, sem transportes coletivos urbanos, sem defesa
do meio ambiente. Em síntese, sem condições de vida e trabalho dignas, é inútil pretender
resolver o problema através da ação específica do setor saúde.
Apesar disso, os serviços de saúde têm um papel complementar muito
importante. Não obstante, em nosso país, eles apresentam sérias deficiências.
Uma grande parcela da população não tem acesso a qualquer tipo de serviço de
saúde, seja pela ausência desses serviços, como é o caso das zonas rurais e pequenas cidades,
seja por impedimento legal ao atendimento desse direito, caso dos desempregados das
grandes cidades e seus dependentes.
Os trabalhadores vinculados à Previdência Social, apesar de terem esse direito,
enfrentam grandes dificuldades, como:
— As filas intermináveis para qualquer atendimento, com a perda de dias de trabalho pelos
trabalhadores ou causando transtornos da vida doméstica de seus familiares para
receberem atendimentos simples;
— Longo tempo de espera para conseguir um atendimento especializado ou até mesmo para
internação hospitalar;
— Atendimento sumário e de baixa qualidade que determina voltas repetidas aos
ambulatórios;
— Impossibilidade de adquirir os medicamentos pelos seus preços proibitivos e falhas na
distribuição oficial de medicamentos que inutilizam a receita conseguida a duras penas;
— Mascaramento da ocorrência de doenças e acidentes de trabalho, o que não só afeta a
saúde dos trabalhadores como também os prejudica em seus direitos aos benefícios e
indenizações.
Enquanto isso o governo, demagogicamente, inaugura serviços fadados a não
funcionarem, adota medidas casuísticas de pequena repercussão e realiza campanhas
publicitárias, mais preocupado com a propaganda do que com a vacinação que, por seu
caráter episódico, não protege realmente a população vulnerável.
A quantidade e a qualidade dos serviços são inadequadas às necessidades
crescentes da população. Em vez de serviços mais simples e acessíveis, voltados aos
principais problemas que afetam a saúde dos brasileiros, temos visto uma multiplicação de
serviços tecnicamente sofisticados, de alto custo e acessíveis apenas a uma parcela
privilegiada da população.
Os serviços existentes são mal distribuídos, discriminando por isso a clientela
das classes mais pobres com relação às mais ricas. Adicionalmente há grandes
desigualdades na distribuição dos serviços entre cidade e campo e entre as regiões do País.
Os serviços públicos apresentam grande ociosidade. Além disso, sua
capacidade de resolver problemas é reduzida, pelo treinamento inadequado e deficiente

44 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

do pessoal, pelas insuficiências de quadros técnicos, pela falta de equipamentos, de


material de consumo e de verbas de custeio. Acrescente-se a isto o fato desses serviços
estarem pulverizados sob a responsabilidade de múltiplas instituições que se
desencontram em sua operação e superpõe seus programas e unidades, consumindo
grande parte das verbas no custeio de máquinas administrativas onerosas e ineficientes.
Várias razões podem ser apontadas para explicar este quadro. Em primeiro
lugar, o país gasta pouco e mal com seus serviços de saúde. Gasta pouco em relação a
outros países, de igual nível de desenvolvimento, e gasta mal ao não dar a necessária
ênfase às medidas de caráter preventivo.
Com efeito, o governo atribui ao setor privado médico-hospitalar grande parte
dos serviços de atendimento à população, remunerando-os com recursos públicos.
Entretanto, apesar de ser o maior comprador desses serviços, o governo não busca
salvaguardar os interesses do povo. Ao contrário, os grandes beneficiários são os
empresários e uma reduzida minoria de profissionais pouco escrupulosos, que fazem da
atividade médico-hospitalar uma mera fonte de lucros fáceis. De fato, distorções na
prestação de serviços pela empresa privada de medicina têm sido frequentemente
denunciadas e comprovadas, sendo as mais comuns: a) realização de atos médicos
desnecessários e onerosos, quando a remuneração é feita por “unidades de serviço”; e, b)
omissão na execução de procedimentos necessários, quando os pagamentos preveem a
cobertura de clientela específica e são calculados de forma global.
Nossos pesquisadores são pouco estimulados a buscar resposta para nossos
problemas prioritários. Ao invés disso, são forçados a consumir sua capacidade científica na
procura de soluções para questões alienígenas. E as camadas mais pobres da população
tornam-se, nos nossos hospitais e laboratórios, cobaias humanas para o teste arriscado de
produtos desconhecidos, impingidos pelas multinacionais.
Assistimos também a crescente desnacionalização da indústria farmacêutica
nacional aniquilada ou absorvida por grandes empresas estrangeiras. Este setor opera com
notório desperdício social, diversificando excessivamente os seus produtos por motivos
comerciais, enquanto o governo se omite do controle da qualidade e na coibição dos abusos
da indústria de medicamentos. A Central de Medicamentos (CEME), órgão estatal, terminou
por desempenhar a tarefa medíocre de adquirir produtos dos laboratórios privados,
abandonando os objetivos de baratear os custos dos remédios mais consumidos e
desenvolver a pesquisa e a produção nacional de medicamentos
Soma-se a tudo isto o fato dos trabalhadores de saúde enfrentarem condições de
trabalho precárias e estarem, na sua quase totalidade, privados de remuneração condizente
com um nível de sobrevivência digna, que não os obriguem a trabalhar dobrado e a fazer
“bicos”.
Em suma, todas estas razões convergem para apontar o problema principal dos
serviços de saúde do Brasil: eles não estão voltados para os interesses e necessidades da
maioria da população. Isto se deve ao processo de alijamento, acentuado nos últimos anos,
da maioria da população na definição e no controle das políticas de saúde.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 45


Esperança e Mudança

Diretrizes para uma nova política nacional de saúde


A nova política nacional de saúde deve ter como objetivos essenciais:
— Acesso igualitário aos serviços de saúde para toda a população que deles necessite,
independentemente de sua condição econômica e social ou filiação previdenciária;
— Ampliação da cobertura e melhoria da qualidade assistencial;
Para o alcance desses objetivos, consideram-se requisitos indispensáveis:
— Participação direta das comunidades e da sociedade, através de seus organismos
representativos, especialmente no planejamento da política e controle do desempenho
dos serviços;
— Reorganização do sistema de saúde e reorientação de suas prioridades, com ênfase nas
medidas preventivas, tais como vacinações, controle de endemias, etc.;
— Descentralização executiva, decisória e financeira como forma de tornar mais permeáveis
às instituições às influências das comunidades de usuários.
Principais medidas
— Participação dos sindicatos, organizações populares, médicos e demais profissionais de
saúde em suas instâncias nacional, regional e local na definição da política e no controle
do desempenho dos serviços, de forma a canalizar e a potencializar a pressão dos
diversos segmentos da sociedade por uma política que represente seus interesses;
— Expansão da oferta de serviços de saúde para as áreas mais carentes (periferia urbana e
interior do país) adequando a organização desses serviços às necessidades de população
e enfatizando a prestação de serviços básicos e a ocupação da capacidade ociosa do setor
público;
— Reorganização institucional unificando os recursos e ações de saúde desenvolvidos pelo
Governo Federal, tendo como ponto central a desvinculação do INAMPS da órbita do
SINPAS e seu engajamento à nova política global sob a coordenação do Ministério da
Saúde;
— Constituição de um Fundo Nacional de Saúde destinado a financiar a política de saúde
nos termos acima colocados, composto por um percentual dos recursos previdenciários
e de dotações orçamentárias da União de forma a elevar substancialmente os gastos
estatais diretos em saúde;
— Consolidação e fixação de prioridades na alocação dos recursos financeiros, a ser
realizada por intermédio de Conselho representativo dos diferentes segmentos sociais,
coordenado a nível nacional pelo Ministério da Saúde e a nível regional e local pelas
Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde.
— Compatibilização entre o programa de trabalho a ser desenvolvido pelos Estados e
Municípios e a aplicação descentralizada de recursos federais, segundo critérios de maior

46 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

justiça tributária e social, dando preferência para o nível municipal na prestação dos
serviços básicos de saúde;
— Definição das áreas de atuação do setor privado dependente de recursos oficiais, revendo:
critérios de financiamento subsidiado de sua expansão (Fundo de Assistência Social —
FAS, etc.); normas de atendimento e formas de remuneração que não estimulem a
corrupção (superfaturamento, falseamento de diagnósticos ou procedimentos) e práticas
inescrupulosas (realização de procedimentos desnecessários ou contenção
indiscriminada de atendimento, como forma de auferir maior rendimento);
— Política de valorização de recursos humanos através de implantação de plano de cargos
e salários que estimule a prática profissional em regime de tempo integral, a ascensão
funcional e a educação continuada, regularizando, adicionalmente, a situação dos
serviços precários e dos residentes;
— Política científico-tecnológica e de produção na área de vacinas, medicamentos e
equipamentos, com o objetivo de:
a. Desenvolver a indústria genuinamente nacional de insumos básicos para o setor;
b. Alcançar a autossuficiência na produção de medicamentos essenciais.
c. Política de vigilância sanitária de alimentos, medicamentos, saneantes e defensivos de
forma a proteger efetivamente o consumidor;
d. Política de saúde ocupacional, com ampla participação do trabalhador na sua formulação
e implementação, possibilitando a criação de instrumentos eficazes na luta pela melhoria
das condições de trabalho.

2.5. Política de educação

A situação do nosso sistema educacional é de crise pois acumula problemas


graves em todos os níveis.
Os programas do MOBRAL têm sido insuficientes e inadequados para reduzir
os altos índices de analfabetismo no País. Cerca da quarta parte da nossa população ainda é
praticamente analfabeta. A padronização em larga escala dos conteúdos não atende à
diversidade de experiências de vida dos trabalhadores e os métodos utilizados não
correspondem à necessidade pedagógica e ao direito social de sua participação no processo
educativo.
O sistema pré-escolar no país é altamente deficiente, alcançando parcela muito
reduzida das crianças entre 4 e 6 anos, praticamente excluindo os filhos das famílias de baixa
renda. A minguada oferta de pré-escolas públicas não atende adequadamente às
necessidades de alimentação, saúde e higiene das crianças pobres, e preocupa-se sobretudo
em adestrar para o primeiro grau em vez de visar o desenvolvimento integral da criança.
O ensino de primeiro grau, apesar de um crescimento quantitativo em termos
absolutos, ainda é insuficiente e precário, especialmente nas regiões mais pobres. Mantém-

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 47


Esperança e Mudança

se, há muitos anos, as mesmas proporções de crianças fora da escola, e elas provêm
sobretudo das classes trabalhadoras. Além disso, e mesmo nas regiões avançadas, os índices
de repetência e evasão nas primeiras séries são alarmantes.
As crianças pobres são as grandes vítimas reveladas por estas cifras, visto que a
evasão e a repetência são decorrentes, por um lado, da sua miséria e subnutrição e, por
outro, da organização, estrutura, currículos e métodos da escola de primeiro grau, voltada
para as camadas privilegiadas da população. Os critérios sociais atualmente empregados
para a escolha e dosagem dos conteúdos curriculares consideram como anomalia — e não
como regra — os padrões de rendimento da maioria da população.
As escolas públicas de primeiro grau são mal equipadas, os prédios em geral são
mal aproveitados, usualmente precários e deteriorados. A merenda escolar, principalmente
nas regiões mais pobres da Nação, é insuficiente e desbalanceada, não atendendo às
necessidades dos alunos de baixa renda. A situação dos professores é grave não só pela má
remuneração, mas também pela intensa jornada de trabalho, fatores que acarretam falta de
condições financeiras e de tempo para atender a cursos de reciclagem. No magistério da
rede pública, onde predomina o sexo feminino, os salários aviltados resultam de uma
política educacional falida e de uma política social injusta, que não se preocupa com a
discriminação sexual no mercado de trabalho.
No segundo grau, a falta de recursos humanos adequadamente formados para
o ensino, nos termos da reforma educacional (Lei n° 5.692/71), a carência de recursos
materiais das escolas e o planejamento de um ensino profissionalizante desvinculado das
aspirações do alunado e das reais necessidades do mercado de trabalho acabaram levando
a um sensível rebaixamento da qualidade da educação neste nível. Falharam os cursos
profissionalizantes e os currículos foram reformados de maneira inadequada, sem a
participação do corpo docente, sem levar em consideração as especificidades regionais e em
prejuízo da necessária formação humanística.
A privatização resultou em mensalidades elevadíssimas na rede privada,
especialmente nos colégios de melhor qualidade, enquanto que o ensino público deteriorou-
se e a oferta de vagas ainda é insuficiente. Também neste nível os professores recebem
salários minguados e não dispõem de tempo e oportunidade de aperfeiçoamento.
Diante deste descalabro, o ingresso na universidade continua sendo um
verdadeiro tormento para aqueles que conseguiram atravessar o funil do sistema
educacional brasileiro. Tornou-se cada vez mais indispensável a frequência aos famosos
“cursinhos”, que denunciam a insuficiência e a má qualidade da educação oferecida ao
longo do sistema educacional e a desesperada competição por vagas nas melhores
universidades. Mais uma vez aqui se reproduz o fenômeno da desigualdade de
oportunidades.
O ensino superior encontra-se, também, em visível estado de crise. A rápida
criação de vagas (existem cerca de 1 milhão e 500 mil estudantes universitários) realizou-se
com privatização crescente, resultado das pressões sociais pela legítima aspiração de acesso
ao nível universitário, do descaso do governo para com o ensino público e gratuito e dos

48 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

subsídios por ele concedidos à rede particular, como, por exemplo, através do crédito
educativo. No bojo desta política educacional proliferaram, no ensino privado, os cursos
que exigem baixo investimento em instalações, equipamentos e corpo docente,
frequentemente assentados numa visão mercantil da educação, na qual a meta de reduzir
custos e aumentar lucros redundou no rebaixamento da qualidade da educação oferecida.
Paradoxalmente, foi sobretudo à rede privada e de ensino pago que puderam
ter acesso as camadas médias que não logravam ingresso na diminuta rede pública e
gratuita. No afunilamento antidemocrático do sistema educacional do País foram sobretudo
as camadas privilegiadas que vieram ocupar as vagas do ensino gratuito.
O desenvolvimento da educação superior como um todo não tem sido
suficientemente voltado para as necessidades da maioria da população nem para os
problemas vividos pelo país, tanto ao nível do ensino como da pesquisa. Isto é reflexo do
autoritarismo do regime, que se manifestou também nas relações de poder dentro da
universidade, onde o corpo docente e discente está alijado dos processos decisórios, o
magistério não tem remuneração justa e os alunos não dispõem de condições de estudo
adequadas.
O acesso ao saber, que ainda hoje é privilégio de uma minoria, é condição
fundamental da democratização da sociedade brasileira. Daí a importância atribuída ao
papel da educação na construção dessa sociedade, que requer algumas condições básicas:
1º Participação das entidades representativas dos diversos segmentos da sociedade civil no
processo de elaboração e condução da política educacional em todos os seus níveis
(municipal, estadual e federal), particularmente daquelas mais estreitamente vinculadas
à problemática da educação, seja por representarem camadas majoritárias da população,
seja por possuírem um envolvimento mais direto com o setor (como sindicatos de
trabalhadores e de educadores, associações de docentes dos diversos graus de ensino,
entidades do movimento estudantil e associações de educadores).
2º Elevação substancial da participação dos gastos educacionais no orçamento público,
inclusive fixando-se o percentual mínimo de 12% do Orçamento da União e de 20% dos
Orçamentos dos Municípios e Estados e transferindo-se automaticamente os recursos da
União.
3º Instituição de um planejamento educacional democrático e criterioso, que se norteie
fundamentalmente pela garantia de idênticas oportunidades de ingresso, permanência e
aproveitamento, no sistema educacional, das diferentes camadas e segmentos do povo
brasileiro. Os meios de comunicação social em geral e a televisão em particular devem
fazer parte deste planejamento, por constituírem importante veículo de educação não
formal.
4º Revisão ampla do conteúdo e dos métodos da educação — tanto formal, quanto informal
— assim como uma reformulação substantiva de seus objetivos e currículos, em interação
com a sociedade, para acolher, através de formas efetivas de participação, novos valores
éticos e sociais. No contexto desta revisão deve-se promover a preservação da memória

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 49


Esperança e Mudança

nacional e o apoio à cultura popular, garantindo-se o acesso aos recursos necessários para
a livre expressão da criatividade do povo.
Mediante tais condições será possível promover e executar a profunda mudança
que se faz urgentemente necessária na política educacional brasileira, consagrando o ensino
gratuito em todos os níveis, e baseando se em:
1. Adoção de uma verdadeira política de alfabetização, para erradicar efetivamente o
analfabetismo, associada ao conjunto das políticas sociais aqui propostas e à
redistribuição da renda. Uma verdadeira política de alfabetização exige também uma
diversificação dos conteúdos e uma mudança nos métodos, de modo a incorporar, no
processo educativo, as experiências de vida e a participação dos trabalhadores. E esta
política só é possível na medida em que se elevem os níveis de vida do povo e em que a
alfabetização seja transformada num instrumento de participação social e de exercício
pleno da cidadania.
2. Expansão ampla da pré-escola, oferecendo, às crianças de famílias de baixa renda,
educação adequada, alimentação gratuita e cuidados de saúde e higiene, com ênfase no
atendimento às periferias urbanas e valendo-se de modelos que visem à criança como
um fim de si mesma e não seu adestramento para o primeiro grau.
3. Forte crescimento do ensino fundamental público para realizar verdadeira democra-
tização, atendendo à criança brasileira, mediante:
a) Destinação de maiores recursos ao primeiro grau a fim de garantir, para todas as crianças,
condições de ingresso, permanência e aproveitamento na escola até a 8ª série.
b) Redefinição da organização, estrutura e currículos da escola básica de oito anos, com
ênfase na revisão dos critérios sociais para a escolha e dosagem dos conteúdos
curriculares, tornando-os compatíveis com as situações de vida e as condições de
aprendizagem da maioria da população.
c) Estímulo a experiências alternativas de ensino de primeiro grau, conduzidas pelas
populações de baixa renda e pelas classes trabalhadoras, através de seus organismos
representativos como sindicatos, associações de bairro e centros comunitários.
d) Adoção de critérios regionais, compensatórios para com os municípios mais carentes,
especialmente nas áreas rurais.
4. Expansão do ensino público de segundo grau, reformulando sua organização e
funcionamento, tornando-se opcional a profissionalização e dando-se ênfase a uma
formação geral voltada para a realidade brasileira.
5. Ampliação e democratização do ensino superior público, mediante:
a) Expansão das oportunidades de ensino público e gratuito em substituição à utilização de
verbas governamentais para subsidiar o crescimento e a manutenção do ensino privado.
b) Reestruturação da universidade brasileira, tendo em vista (1) adequá-la à busca e difusão
do saber em geral e sobretudo daquele voltado para as necessidades da maioria da
população brasileira e para um desenvolvimento autenticamente nacional e

50 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

autossustentável; (2) promover uma democratização interna da gestão das instituições,


na qual o corpo docente e discente tenha efetivo acesso e poder decisório; (3) desenvolver
e implantar métodos e sistemas que aperfeiçoem a administração universitária, buscando
aumentar a eficiência de sua função educativa, sem perder de vista a meta última de sua
democratização.
6. Adoção de uma política salarial justa para os professores. A prioridade do ensino básico
implica em melhorar substancialmente os salários, bem como as condições de trabalho e
estabilidade dos professores de cursos pré-escolares, de primeiro e segundo graus, os
quais figuram entre as camadas mais oprimidas pela política salarial do regime
autoritário. A remuneração justa e condigna e a estabilidade dos professores e
funcionários das universidades devem ser asseguradas.
7. Utilização mais intensiva do espaço escolar, tanto para fins especificamente educacionais
como para atividades comunitárias do interesse da maioria da população.
O objetivo maior da nova política deve ser o de promover a construção de uma
educação autenticamente democrática, em todos os níveis do sistema de ensino e nas demais
atividades educativas desenvolvidas no País.

2.6. Diretrizes para uma política de abastecimento popular

A sustentação e aumento real dos salários de base tem como pressuposto a


implementação de uma política de abastecimento popular que assegure a oferta de uma
cesta básica de subsistência, de gêneros alimentícios e de produtos industriais de primeira
necessidade, para as famílias de baixa renda. A implantação desta política é condição sine
qua non para a melhoria dos padrões de nutrição, fundamento indispensável a uma
verdadeira política preventiva de saúde e para a melhoria considerável do rendimento
escolar das crianças pobres.
O abastecimento popular da forma imaginada pelo PMDB envolve
necessariamente todo um elenco de medidas. Em primeiro lugar, é fundamental a adoção
de uma nova política agrícola e agrária, que dê prioridade à produção de alimentos para o
mercado interno, conforme a proposta apresentada na parte III do presente documento. Esta
nova política implica decerto na incisiva intervenção pública na esfera da comercialização
atacadista e suplementarmente na varejista, além de medidas na área de transportes,
infraestrutura de armazenamento e de transformação da rede de centrais públicas de
abastecimento em verdadeiros instrumentos do abastecimento popular. O PMDB repudia e
denuncia o plano de privatização das centrais públicas de abastecimento (CEASAs) que vem
sendo posto em prática pelo governo, de modo inteiramente irresponsável. Estas centrais já
representavam, na prática, um subsídio implícito aos grandes capitais atacadistas que
podem utilizar a rede pública através de aluguéis cativos, eximindo-se de imobilizar uma
parcela maior de capital próprio em infraestrutura de armazenamento.
As medidas relativas à comercialização (vide parte III, sobre a política agrícola)
são, portanto, fundamentais para assegurar que gêneros de primeira necessidade cheguem

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 51


Esperança e Mudança

às periferias urbanas e às zonas rurais pobres, com preços acessíveis. Entre as medidas
específicas para o abastecimento popular destacam-se: 1) o apoio público à comercialização
direta, viabilizando-se a organização cooperativa de pequenos varejistas, com planejamento
das áreas de mercado de baixa renda a serem atendidas prioritariamente; 2) suplementação
subsidiada da oferta de determinados produtos em fase de alta temporária, por agências
públicas de abastecimento popular (a serem organizadas pelos Estados da Federação)
apoiadas pela mobilização de excedentes de outras regiões ou dos estoques reguladores
públicos, sob a coordenação do Ministério da Agricultura, evitando-se a ocorrência tão
frequente de escassez localizada; 3) implantação de subsídios temporários diretos para
produtos essenciais, aplicados de forma a estimular o aumento de sua oferta, dentro das
diretrizes gerais da política agrícola; 4) a implementação de uma verdadeira política de
abastecimento popular de gêneros agrícolas requer uma profunda reforma de todo o
aparato público atualmente existente envolvendo a COBAL (Cia. Brasileira de Alimentos),
a CIBRAZEM (Cia. Brasileira de Armazenamento), a SUNAB (Superintendência Nacional
do Abastecimento), a rede de Centrais de Abastecimento e outros programas específicos de
financiamento existentes para esta área de política pública. O ajustamento desta estrutura
lerda e ineficiente é indispensável, junto com a criação de novos mecanismos e agências para
a comercialização varejista, a nível estadual, reformulando-se a rede SOMAR para que o
abastecimento chegue efetivamente às populações de baixa renda, evitando-se, por outro
lado, que seus benefícios sejam apropriados por setores sociais já privilegiados.
Finalmente, a implantação de controles sobre os preços (margens de lucros
industrial e de comercialização) através da Secretaria de Abastecimento e Preços (SEAP) e
sobre a qualidade dos produtos alimentícios industrializados e de outros produtos
industriais de subsistência básica deve ser efetuado, com a reativação eficiente de agências
de proteção do consumidor. Estes produtos industriais devem ser integrados à política de
abastecimento popular, fazendo parte da cesta básica de subsistência a ser garantida aos
setores de baixa renda.

3. Políticas de reordenação do espaço e do meio ambiente

Desemprego, baixos salários, descalabro das políticas sociais básicas constituem


um triste quadro, completado por condições desumanas de moradia, falta de saneamento,
escolas, postos de saúde, transportes coletivos, tanto nas áreas urbanas quanto nas rurais. A
ausência de uma política agrícola e agrária, a utilização da terra (urbana e rural) como ativo
de especulação, a inexistência de uma política de desenvolvimento regional, a incúria com
respeito ao meio ambiente transformou as nossas cidades em estuário migratório das crises,
enquanto persiste a miséria rural, particularmente nas regiões mais pobres como o
Nordeste.
A adoção de um conjunto coerente de políticas sociais básicas e a realização de
reformas institucionais não é suficiente para enfrentar o desafio de construir uma sociedade
mais justa se não forem acompanhadas de ajustamentos de caráter estrutural, que
reordenem o espaço urbano e regional e protejam o meio ambiente, através de políticas
públicas de envergadura. Nesta seção, propõe-se, ao debate democrático, diretrizes para

52 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

políticas de investimento e reordenação estrutural nestes campos, a médio e longo prazos,


sem que se omitam, também, propostas de ação imediata para aliviar temporariamente a
agudeza das carências, enquanto os efeitos das políticas de longo alcance não se fizerem
sentir.

3.1 Diretrizes para uma política urbana

Cotidianamente as populações mais pobres das cidades brasileiras vivem


problemas relacionados à inadequação das condições de moradia, falta de serviços de água,
esgotos, galerias públicas e iluminação pública, inexistência ou não funcionamento de
escolas, postos de saúde, locais para lazer, além de várias horas dispendidas em meios de
transportes precários e custosos.
Os problemas urbanos são sistematicamente agravados pela ausência de
qualquer política de desenvolvimento social, pela exacerbação dos fluxos migratórios que
aceleram a taxa de urbanização, em condições miseráveis e disfuncionais e, finalmente, pela
ausência de uma política de emprego que seja a síntese de uma verdadeira estratégia social.
Aliados a estes mecanismos de fundo, outros mecanismos específicos tendem a agravar
cumulativamente as condições de vida nas cidades, especialmente nas grandes cidades e
metrópoles. A especulação imobiliária sem controle se conjuga à concentração dos
investimentos públicos nas áreas de alta renda, ocupadas pelas elites, que detêm maior
poder de pressão sobre o aparelho de Estado e seus atuais “administradores”, no contexto
do regime arbitrário.
A verticalização exagerada de certas áreas “nobres”, aliada à retenção
especulativa da terra urbana e à expulsão dos pobres para a periferia, redundam na
utilização irracional do espaço, originando grandes extensões de terrenos vazios que, em
nossas cidades, situam-se num nível espantoso, entre 40 e 50% do espaço interurbano. Como
consequência, verifica-se um exagerado adensamento da população nas áreas melhor
dotadas de serviços urbanos, provocando a saturação recorrente de sua capacidade de
atendimento e a necessidade de investimentos adicionais pelo Poder Público.
Essa sobrecarga de recursos constitui um ônus para o setor público, que é
assumido pelo conjunto da sociedade, mas cujos benefícios são apropriados por uma parcela
reduzida, especialmente pelo setor imobiliário.
Com a especulação imobiliária crescente, a subida dos preços da terra torna
proibitivo o acesso à moradia própria para a ampla faixa dos assalariados de base,
“autônomos”, migrantes e subempregados que não podendo alugar casas ou quartos, nem
mesmo em cortiços, são forçados a ir para favelas. Com isso as famílias pobres são
distanciadas do local de emprego, do comércio melhor e mais barato, dos serviços públicos
de saneamento, educação, transportes, lazer, saúde.
A herança deixada pelos loteamentos clandestinos frequentemente em morros,
encostas e em áreas insalubres e inundáveis, pela falta de qualquer planejamento viário e de
infraestrutura, resulta caro aos cofres públicos: alto custo para interligar as áreas habitadas

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 53


Esperança e Mudança

e regularizá-las, exigindo desapropriações, deslocamentos penosos das populações e


aplicações de recursos públicos que terminam valorizando os espaços vazios retidos para
fins de especulação.
Enquanto o déficit crônico de infraestrutura social se agrava na periferia, em
contraste, o padrão de equipamentos e serviços nas áreas abastadas vai sendo sofisticado
por exigência e pressão das grandes construtoras, empresas imobiliárias e produtoras dos
equipamentos urbanos. Como consequência, gasta-se muito nestas áreas privilegiadas e
gasta-se mal, reduzindo e eficácia dos gastos públicos e agravando a carência de recursos
para as populações da periferia.
Pressionado pelas crescentes demandas das populações marginalizadas, o
governo começou a utilizar-se de artifícios, criando programas “comunitários”, com
“participação popular”, buscando utilizar a força de trabalho em construções, que deveriam
ser de responsabilidade do poder público, mas onde não há participação efetiva do povo
nos processos de decisão.
Nisto reside a diferença fundamental entre a concepção do governo e a
preconizada pelo PMDB, no que concerne à participação popular: o PMDB considera a
participação efetiva das associações de bairro, sindicatos e demais organizações
populares no processo de decisão, implementação e fiscalização das políticas urbanas,
como condição essencial para democratizar a distribuição e o acesso aos bens e serviços
públicos.
A possibilidade de implementar uma verdadeira política urbana, ou seja, com
um sistema efetivo de planejamento urbano, equipado com poderes para disciplinar o uso
e a ocupação do solo e coibir a especulação imobiliária, depende da criação prévia de
instrumentos fiscais e jurídicos que viabilizem a intervenção pública. Contudo, antes de
apontar para as medidas instrumentais necessárias é conveniente estabelecer as diretrizes
gerais de uma política urbana democrática:
a) Deselitização dos padrões urbanísticos adotados até o presente, sem o que não será
possível assegurar os serviços urbanos à maior parte da população e a todos os núcleos
urbanos;
b) Política de subsídio para os serviços públicos e habitação nas áreas de baixa renda,
reconhecendo o fato de que a maior parte da população pobre não tem condições para
adquirir os bens ou serviços, num padrão mínimo de atendimento às necessidades
básicas. Para isso, o setor público deve oferecer estes bens e serviços com tarifas
favorecidas, mesmo que sejam abaixo do seu custo;
c) Combate à especulação imobiliária, que se manifesta de várias formas, todas elas
deletérias para a distribuição da renda e para a democratização dos serviços públicos;
d) Democratização do acesso à moradia em condições decentes, e do acesso aos serviços
públicos fundamentais, através da imposição e implementação de planos de
desenvolvimento urbano e do atendimento imediato das demandas para regularização
de situações precárias de posse, através de reforma fundiária urbana.

54 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

A consecução desses objetivos requer instrumentos poderosos. Instrumentos


que permitam, por exemplo, impedir ou minimizar a valorização privada decorrente de
investimentos públicos, impedir as alterações casuísticas nos zoneamentos e nos gabaritos
das edificações para atender a interesses privados; penalizar a retenção especulativa de
terrenos vazios; punir a desobediência à legislação urbanística e a leniência para com os
loteadores e empreendedores “piratas”.

Instrumentos jurídicos para a política fundiária urbana e o planejamento urbano eficaz


O disciplinamento do processo de ocupação do solo e o combate à especulação
imobiliária exige a criação dos seguintes instrumentos jurídicos de apoio ao planejamento
de desenvolvimento urbano:
— Legislação que agilize os processos de desapropriação de imóveis e impeça que o
desapropriado venha a ser indenizado com base em valorização do imóvel posterior à
definição da área como sendo de interesse social. Para tal, por exemplo, deve-se
considerar como de utilidade pública, para efeito de execução de projeto de melhoria
das condições de vida urbana, a desapropriação de qualquer imóvel, ainda que para
revenda, com base no valor declarado pelo proprietário para efeito de incidência dos
impostos (predial ou territorial), podendo o pagamento ser feito em títulos públicos;
— Instituição do direito de superfície, desvinculando-se inteiramente o direito de
propriedade, do terreno do direito da edificação sobre o mesmo;
— Faculdade legal de que poder público possa determinar o parcelamento ou loteamento
compulsório de gleba de terras ociosas no interior ou em adjacências da malha urbana;
— Direito de preferência para o Município na compra de imóveis em áreas de interesse
social;
— Para que se possa assegurar às populações faveladas, habitantes de mocambos,
loteamentos irregulares ou clandestinos o direito definitivo aos terrenos que ocupam é
essencial dispor de um instrumento rápido de regularização legal da posse. Além de
representar um passo no sentido de maior justiça social, tal medida desestimularia a
retenção de terrenos pelos proprietários como reserva de valor. Do mesmo modo,
viabilizaria a execução de programas habitacionais para atender à pobreza urbana, sem
que o Estado assuma o encargo de indenizar o proprietário que não se legitimou pelo uso
adequado do imóvel.
A transformação da posse em domínio far-se-ia mediante modificação no
tradicional instituto do usucapião, bastando:
a) a comprovação, por testemunha e outros meios simplificados;
b) um requerimento ao Juízo do Registro Público por pessoa jurídica — cooperativa ou
associação de moradores representando dois terços dos moradores — pedindo
transcrição do título em seu nome.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 55


Esperança e Mudança

Esta reforma possibilitará o enquadramento e regularização dos loteamentos e


edificações clandestinos existentes, resguardando os interesses populares e da comunidade,
através da legalização dos títulos de propriedade imobiliária, assim como através de
exigência sobre os loteadores para que atendam a um mínimo de requisitos urbanísticos a
serem definidos, de acordo com a realidade social e econômica de cada município.
Instrumentos tributários para combate à especulação imobiliária e para o planejamento
urbano
A reforma tributária proposta ao debate pelo PMDB, na parte III deste
documento, deve visar, além da maior justiça fiscal, o reforço da capacidade financeira dos
Municípios e da sua capacidade de implementar políticas urbanas. Neste sentido, são
propostas naquela seção várias medidas, aqui apresentadas resumidamente:
— Utilização regular da contribuição de melhoria, para forçar o setor privado a arcar com
parte dos custos de urbanização;
— Criação de imposto sobre o solo criado ou solo adicionado, na mesma linha das
contribuições de melhoria;
— Adoção de critérios progressivos para o imposto predial e territorial urbano (IPTU),
visando penalizar a retenção ociosa de terrenos e incentivar o uso mais intenso da
infraestrutura existente;
— Transferência para os Municípios dos impostos sobre transmissão da propriedade (CISA)
e da receita do imposto sobre o lucro imobiliário.
Visto que a base tributária é muito desigual entre os municípios, qualquer
reforma na tributação será insuficiente para equalizar oportunidades entre os núcleos
urbanos. Essa situação será sanada através de um sistema de transferências federais
automáticas aos municípios para cobrir suas deficiências no atendimento das necessidades
urbanas básicas. O reforço aos instrumentos de política urbana depende, pois, de um
conjunto de providências tais como as acima mencionadas. Merece destaque, entre elas, a
necessidade de flexibilizar a definição e execução pelos Municípios da desapropriação de
utilidade pública. É necessário, também, que o Município possa declarar, sob a forma de
reserva, áreas de utilidade pública passíveis de desapropriação futura, de modo a lhe
assegurar um instrumento de planejamento da expansão urbana, necessário à promoção de
um crescimento ordenado. Observa-se, por exemplo, que o atual expediente de financiar a
compra de áreas baratas, por serem muito distantes ou inadequadas (mangues, várzeas,
encostas, etc.) para desenvolver programas de habitação popular, só faz agravar os
problemas urbanos e os custos de infraestrutura, favorecendo ainda a especulação
imobiliária (valorizando áreas contíguas). Ê exatamente por isso que se recomenda a
implantação de políticas de reserva de áreas urbanas sob o domínio dos municípios para
assegurar o ordenado crescimento das cidades, a localização da habitação popular próxima
aos trabalhos e serviços urbanos, a generosa dotação de áreas para educação, saúde, lazer,
esporte e cultura, a economia nos investimentos em infraestrutura e seu retorno mais rápido
e. afinal, por ser um fator a mais de correção da especulação imobiliária.

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Uma nova estratégia de desenvolvimento social

3.2. Diretrizes para uma política de habitação popular

A deterioração das condições de moradia do povo brasileiro, com a proliferação


de favelas, cortiços, palafitas e habitações promiscuamente ocupadas expressa a inegável
falência dos sucessivos “programas” habitacionais do governo para a população de baixa
renda. Apenas 20% dos investimentos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) têm sido
alocados, nos últimos anos, para a faixa de “mercado popular’' (famílias com renda inferior
a cinco salários mínimos), percentagem ridícula diante da magnitude do déficit habitacional
da população pobre. Por outro lado, no caso dos estratos de renda mais elevados (superior
a 10 salários mínimos), os programas do SFH responderam a mais de 60% das necessidades
estimadas, o que demonstra, de imediato, o caráter elitista e excludente da atual política
habitacional.
Além de injusta socialmente, a distribuição de recursos do SFH privilegia os
grupos econômicos envolvidos na produção e promoção de imóveis (entre estes, beneficia
as grandes empresas). Tem sido comum o desvirtuamento das propostas que deveriam
beneficiar os compradores de baixa renda, pela interveniência dos agentes promotores que
sobrepõem seus interesses de lucro às finalidades dos programas (com a conivência dos
agentes financeiros) como ocorreu, por exemplo, nos casos dos programas de construção em
condomínio e do programa de cooperativas.
A inexistência de um a política fundiária urbana, que atue no sentido de reduzir
os preços dos terrenos, aliada à insuficiência dos instrumentos tributários para coibir a
especulação com terras, tem resultado na expulsão sistemática dos trabalhadores para
regiões cada vez mais periféricas, distantes dos locais de trabalho e em áreas desprovidas
de qualquer infraestrutura e serviços, geralmente em loteamentos clandestinos e em áreas
inadequadas.
De outro lado, a indexação dos aluguéis à correção monetária e as facilidades
concedidas aos proprietários pela atual lei do inquilinato, estimula a concentração da renda
e da propriedade, induzindo à cobrança de aluguéis extorsivos.
Diante desta situação, o PMDB propõe o seguinte conjunto de diretrizes para
uma política de habitação popular:
a) Democratização da política habitacional e do acesso à moradia condigna
Para isso é fundamental um amplo programa de habitações populares, em
condições acessíveis à grande massa da população brasileira, incluindo o subsídio direto ao
preço de compra, no caso das famílias de baixa renda, com prestações baixas e compatíveis
com seus orçamentos domésticos.
Por democratização da política habitacional entende-se a possibilidade de que
as comunidades participem do processo de decisão e implantação das soluções
habitacionais. Isto requer uma descentralização da estrutura administrativa, fundada na
formação de grupos locais e municipais de planejamento e assistência técnica, formados por
representantes de setores residenciais, de vereadores, técnicos e profissionais, e das
Prefeituras. Estes grupos teriam a atribuição de identificar os problemas locais de habitação,

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 57


Esperança e Mudança

elaborar os programas desejados pelas comunidades e mobilizar os recursos disponíveis,


bem como articular-se para fiscalizar as condições de sua implementação.
b) Reformulação do Sistema Financeiro de Habitação — SFH
O financiamento de um plano habitacional que dê prioridade a construção de
habitações acessíveis à população de baixa renda exige a injeção de recursos no SFH, a fundo
perdido, mediante transferências orçamentárias da União, com a finalidade de cobrir a
diferença entre a remuneração das poupanças voluntárias ou compulsórias e o retorno dos
financiamentos subsidiados. Isto se faz necessário para evitar a descapitalização do FGTS,
patrimônio dos trabalhadores, e manter taxas de remuneração que não venham a
desestimular a captação de poupanças voluntárias. Paralelamente, as poupanças
voluntárias devem ser canalizadas para os programas habitacionais, junto com o uso de
recursos orçamentários, calibrando-se o nível de subsídio de forma proporcional à renda
familiar e as necessidades globais das distintas camadas sociais.
c) Compatibilização da habitação popular com o planejamento urbano
A compatibilização entre a política habitacional e o planejamento urbano global
é indispensável para assegurar o máximo aproveitamento das inversões em infraestrutura
e serviços urbanos.
Do ponto de vista dos tipos de “solução” mais adequados ao planejamento
urbano democrático, recomenda-se o abandono da política atual que dá ênfase aos grandes
conjuntos habitacionais. A produção do maior número possível de unidades habitacionais,
a baixo preço e de boa qualidade, e, simultaneamente, em todo o país, deve apoiar-se em
um amplo espectro de programas com as seguintes características básicas:
— Programas de construção que favoreçam a participação de um universo mais amplo, com
democratização das iniciativas, com espaço prioritário para a produção individual ou por
pequenas e médias empresas;
— Programas de financiamento da aquisição de terras pelas prefeituras com vistas a
implantação de habitações e constituição de reservas de terra com a mesma finalidade;
— Programas de financiamento de lotes urbanizados para a população de baixa renda, bem
como de financiamento da urbanização de áreas residenciais já existentes;
d) Outras medidas destinadas a baratear o custo de produção da habitação
— Utilização de mecanismos de produção e comercialização popular de materiais de
construção e componentes, a serem geridos por associações locais e/ou pelo Poder
Público;
— Apoio a projetos de pesquisa tecnológica visando a obtenção de novos processos e
padrões de construção adequados às condições geoeconômicas e climáticas do País.
— A padronização dos materiais, equipamentos, partes e processos no setor de habitação
popular para permitir a produção em grande escala, capaz de baratear sensivelmente os
custos sem perda de estética e de qualidade.

58 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

e) Política de curto-prazo para aliviar as carências agudas


É fundamental propor, também, medidas para uma fase intermediária enquanto
as políticas e reformas acima não puderem ser plenamente postas em prática. Estas medidas
seriam:
— Melhoria das condições sanitárias, viárias e de segurança das favelas, além da posse do
terreno (já referida);
— Melhoria das condições dos cortiços;
— Programas de financiamento da construção e melhoramentos de moradias isoladas, ou
em grupos, para a população de baixa renda, com a deselitização dos padrões de
construção atualmente exigidos e com o apoio do núcleo de assistência técnica local,
admitindo-se os processos de autoconstrução ou mutirão;
— Programas de regularização fundiária e urbanização de conjunto de sub-habitações,
evitando a remoção destes conjuntos quando eles se situam próximos dos mercados de
trabalho. Em face do exíguo tamanho dos “lotes” nas favelas é conveniente estabelecer
formas de propriedade cooperativa ou associativa de modo a assegurar que a
implantação futura de programas de reabilitação destas áreas não fique inviabilizada.
Como em todo o processo urbano é indispensável a organização dos vizinhos e
populares e sua participação no processo de decisão e planejamento da habitação popular.

3.3. Diretrizes para uma política de saneamento básico

As ações do Governo Federal na área de saneamento básico concentram-se


quase totalmente, desde 1969, no Plano Nacional de Saneamento — PLANASA. Analisado
sob o prisma do objetivo social que o plano deveria atingir, o PLANASA é um engodo
porque: i) não atingiu nem de longe suas metas apesar de feito mais investimentos que o
necessário se orientasse suas atividades para as verdadeiras prioridades do setor; ii)
faltando-lhe qualquer preocupação social, deixou de servir aos interesses da maioria da
população e dos municípios mais pobres que não têm condições financeiras de arcar com os
custos que o PLANASA impõe.
Além disso, o PLANASA, tal como executado, provoca outras distorções tais
como: a violência contra a autonomia municipal, ao exigir que os serviços de água e esgoto
sejam geridos por empresas estaduais, e privilegia sistematicamente as grandes empresas e
multinacionais fabricantes de tubos e equipamentos, que são os verdadeiros beneficiários
do sistema.
O PMDB considera o saneamento básico uma necessidade coletiva e, como tal,
um direito dos cidadãos e um dever do Estado e propõe uma nova política para o setor,
consubstanciada nas seguintes diretrizes:
a) restabelecimento do município como principal responsável pelos serviços de saneamento
e consequente eliminação de todas as formas de pressão para que os municípios cedam
tal atribuição às companhias estaduais;

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 59


Esperança e Mudança

b) reformulação do sistema financeiro de saneamento com atribuição aos Estados, em


conjunto com os Municípios, das políticas setoriais de saneamento e reservando ao BNH
a condição exclusiva de agente financiador;
c) estímulo à pesquisa de soluções simples e adequadas às condições socioeconômicas e
ambientais de cada região;
d) revisão da política tarifária, diferenciando-a de modo a que os usuários de renda mais
baixa paguem tarifas condizentes com seu nível de renda.
e) ampliação acelerada da cobertura urbana e rural dos serviços de saneamento tendo em
vista o largo alcance social de tais serviços, em especial sua importância para a elevação
dos níveis de saúde da população.

3.4. Diretrizes para uma política de transporte coletivo

Diante do estado deficiente e calamitoso em que se encontram os serviços de


transporte de massa na grande maioria das nossas cidades, são propostas as seguintes
diretrizes para o transporte coletivo:
1. significativa ampliação do investimento público através da expansão das empresas
públicas, atingindo o objetivo da implantação da tarifa única, socialmente mais justa;
2. privilegiar o ônibus como principal meio de transporte urbano, com a utilização crescente
do ônibus elétrico como alternativa mais adequada às nossas disponibilidades de
energia, tendo custo de implantação e operação mais baixo por passageiro/quilômetro
transportado;
3. apoio ao transporte aquático de massas onde haja tal possibilidade;
4. melhoria imediata do transporte ferroviário suburbano elétrico, onde já estiver
implantado, ampliando sua capacidade e conforto ao nível de metrôs de superfície;
5. controle do aumento tarifário, mantido sempre abaixo das taxas de aumento do salário
mínimo, compensando aumentos anteriores;
6. rigorosa fiscalização na qualidade dos serviços prestados aos usuários.

3.5. Diretrizes para uma política de meio ambiente

A falta de compromissos do regime autoritário com a qualidade de vida da


população, fruto da adoção de um estilo de crescimento voltado a atender prioridades
ditadas por interesses estrangeiros, caracterizou-se, entre outros aspectos, pelo uso de
tecnologias inadequadas às especificidades de nossos ecossistemas.
Essa opção levou a um desordenado uso do solo e do espaço físico disponível, a
uma crescente incorporação de novas fronteiras agrícolas mediante tecnologias não
apropriadas, à dilapidação dos recursos naturais não renováveis e a impactos ambientais
irreversíveis.

60 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

No entanto, sabe-se que a interação entre atividades humanas e o caráter


restritivo do meio ambiente, traz consigo consequências desfavoráveis, tais como:
— Efeitos erosivos, pela eliminação de elementos físicos e/ou biológicos por adição de
agentes externos ou por eliminação de cobertura vegetal e extinção de espécies;
— Contaminação por adição de componentes estranhos e que por sua presença alteram os
equilíbrios naturais;
— Violação da qualidade estética e alterações profundas em ecossistemas naturais.
Também é necessário considerar que os impactos das atividades humanas sobre
o meio ambiente e seus diversos componentes não são isolados entre si, mas produzem
cadeias causais de reações devidas às interações existentes entre seus diferentes
componentes.
Para avaliar, evitar ou minimizar tais impactos é necessário, portanto, recorrer
a uma visão conjunta dos aspectos do meio e de sua interação sob a forma de sistemas.
Daí a necessidade de um zoneamento do País, calcado na delimitação de áreas
homogêneas do ponto de vista de sua qualidade ambiental, usos e aptidões, bem como
vulnerabilidades, e nas quais se apresentem pautas repetitivas de topografia, solo,
vegetação, recursos hídricos, potencial energético e potencial de absorção de dejetos e
afluentes e que permitam a formulação de uma política de meio ambiente e de ocupação
racional do nosso espaço físico.
A opção por esta metodologia pressupõe procedimentos governamentais
flexíveis, que coloquem as estruturas administrativa, de planejamento e de pesquisa
atuando em conjunto com a comunidade, diretamente sobre a questão ambiental,
conferindo, desta forma, à política de meio ambiente, um caráter participativo e
democrático.
O meio ambiente passa a constituir, assim, um ponto essencial das ações
governamentais, na busca incessante de melhoria das condições de vida da atual e futuras
gerações de brasileiros.
E a execução da política de meio ambiente deverá contar com a mobilização e
participação populares voltadas à identificação e à solução de problemas regionais e locais.
Uma política de meio ambiente, a nível nacional, deve contemplar, entre outros,
os seguintes aspectos:
1. Combate à poluição
A poluição urbana, produzida pelas grandes concentrações humanas, com a
contaminação de mananciais, do ar e da água, atinge tal grau de insalubridade que, em
certos locais, a vida se torna impossível.
No setor agrícola, observam-se casos de intoxicação humana e de animais
devido ao emprego de produtos químicos e tóxicos, nas atividades agrícolas e na pecuária.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 61


Esperança e Mudança

Além dessa modalidade mais visível de contaminação, já encontramos no setor


a contaminação de alimentos por produtos nocivos à saúde.
Cabe destacar a poluição de bacias hidrográficas e da faixa litorânea,
principalmente atingindo as regiões dos lagos e o estuário dos rios.
Um desenvolvimento econômico que não signifique destruição acelerada do
meio ambiente supõe a completa revisão do modelo centralizador e elitista até aqui adotado
pela administração federal. Muito poderá ser feito, contudo, com base na participação
comunitária, na descentralização das decisões e no estabelecimento de um processo de
planejamento que leve em conta o impacto ambiental de cada intervenção humana
importante, seja pública ou privada, no território nacional.
Impõe-se nesse sentido:
a) a luta pela devolução aos Estados e Municípios de plenos poderes o que diz respeito ao
controle de poluição, inclusive a faculdade de, em casos extremos, interditar indústrias
poluidoras;
b) fiscalização rígida do emprego de produtos tóxicos e químicos nas atividades
agropecuárias, visando reduzir a contaminação dos alimentos, da água e do solo por
estes produtos (alia-se a isso possíveis reduções de produção agrícola e alívio na balança
comercial do País).
2. Preservação e recuperação de recursos naturais
Consideram-se neste item os recursos físicos, sociais, culturais e tecnológicos,
tendo como premissa a instituição da obrigatoriedade de estudos de impacto ambiental nos
empreendimentos capazes de alterar as condições do meio ambiente:
a) Solos:
— Estabelecer política consequente de conservação e utilização dos solos para cada região
agrícola do País, segundo suas classes de uso e aptidões visando reflexos positivos
quanto à erosão, contaminação de cursos d’água, proteção da vegetação e da vida animal.
b) Recursos minerais:
— Criar estímulos, ou punições, para que se efetive a recuperação de áreas degradadas pela
mineração compatibilizando, adicionalmente, os atuais códigos Florestal e de Mineração.
c) Recursos hídricos:
— Manejo E recuperação das bacias hidrográficas do País principalmente aquelas já em
estado crítico de deterioração, e revigoramento da Lei de Proteção de Mananciais,
estendendo-a ao interior do País, para garantir o fornecimento de água às populações de
todos os municípios.
d) Vegetação:
— Preservar, mediante dotação de recursos técnicos e financeiros, as áreas de vegetação
natural, já protegidas por lei, e regularizar a implantação dos parques e reservas
nacionais;

62 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

— Criação de novos parques e reservas de acordo com necessidades específicas de cada


região, dotando-os de antemão, das condições técnicas e financeiras para sua efetiva
implantação;
— Transformar parte das áreas de florestas plantadas, de propriedade do Estado, em
parques para fins educativos, esportivos, recreativos e culturais, tendo em vista sua
utilização pela população do País em geral e, em particular, pela dos Municípios mais
próximos;
— Incentivar o reflorestamento de áreas urbanas ociosas, procurando-se eliminar os espaços
visualmente desagradáveis, aumentando-se a extensão dos “pulmões verdes”;
— Reformular a legislação sanitária do País, para uma perfeita caracterização das áreas, de
acordo com suas vocações ambientais;
— Apoiar as iniciativas de interesse ambiental e turístico, como a faixa litorânea, as cavernas
e os monumentos históricos, e valorizar os aspectos particulares da nossa cultura popular
e de preservação da paisagem.
3. Uso de tecnologia adequada
A tecnologia utilizada para a produção a partir dos recursos naturais deverá ser
totalmente revista no sentido da substituição gradativa das tecnologias duras pelas brandas.
Nesse sentido, impõe-se entre outras, as seguintes medidas:
— Incentivar a utilização de tecnologias brandas sobre tecnologias duras, valorizando
técnicas como energia solar etc.;
— Promover o uso múltiplo dos recursos hídricos, não apenas para fins energéticos, como
também para irrigação, piscicultura, recreação, turismo etc.;
— Promover a maricultura em estuários, lagunas e no mar continental (ostras, mariscos,
peixes, crustáceos, algas);
— Utilizar o potencial do País em estudos que visem a reciclagem de papéis usados, para
evitar ao máximo a derrubada das árvores;
— Incentivar a reciclagem do lixo urbano, enriquecendo-o com resíduos do esgoto tratado
de adubos minerais, aproveitando-o na agricultura e nas áreas verdes urbanas;
— Estimular a pesquisa científica no setor, com ênfase na caracterização dos impactos
globais da ação humana sobre os ecossistemas, na aferição das consequências da poluição
do ponto de vista médico-sanitário e no desenvolvimento de tecnologias alternativas.
4. Educação ambiental
Formação de mentalidade preservacionista na população, através da introdução
de cursos e debates sobre manejo de recursos naturais, usos e medidas de preservação e
conservação.
O programa de educação ambiental deverá levar em consideração as
possibilidades de comunicação social disponíveis ao Estado, a estrutura de ensino formal,

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 63


Esperança e Mudança

as entidades comunitárias de defesa do meio ambiente e todo e qualquer veículo que


permita uma divulgação massiva do problema, com vistas a envolver a comunidade nas
soluções adotadas.
5. Ações emergentes
a) Rever os grandes projetos nacionais, na área de implantações industriais, capazes de gerar
impactos ambientais, sociais e econômicos, tais como: polo petroquímico do Rio Grande
do Sul; expansão do polo industrial de Aratu e petroquímico de Camaçari, na Bahia; polo
cloro-químico de Maceió; matriz industrial de Aracaju; polo mínero-metalúrgico de São
Luís do Maranhão; projeto portuário da SUAPE em Pernambuco; polo açucareiro e
álcool-químico da região do pantanal mato-grossense; e projeto Jari no Pará.
b) Discutir no Programa Energético Brasileiro os impactos ambientais referentes a
construção das grandes barragens; rever o programa de exploração a céu aberto do
carvão do sul do País; rever, também sob o ponto de vista ambiental, o programa nuclear
e o acordo Brasil/Alemanha.
c) Avaliar os impactos ambientais, sociais e econômicos gerados pelo polo industrial de
Cubatão, para centralizá-los e estabelecer diretrizes de procedimento para casos
semelhantes.

3.6. Uma nova política de desenvolvimento regional

O fracasso das atuais políticas de desenvolvimento regional é inequívoco e


indisfarçável: o número absoluto de analfabetos e dos subnutridos aumentou no Nordeste,
e não foram corrigidas, em relação ao Centro-sul, nas regiões mais atrasadas, as
desigualdades quantitativas e qualitativas no que se refere à educação, à saúde, à habitação,
à renda média em todos os estratos sociais e, manteve-se, também, a desigualdade quanto
às oportunidades de emprego.
Para exprimir o nível de gravidade das disparidades regionais, basta citar que
os gastos totais per capita em educação no Nordeste representam menos de um quinto de
tais gastos na área mais desenvolvida do País. E no que se refere às despesas educacionais
das famílias, a diferença supera muito a mil vezes entre o estrato superior da renda (segundo
a classificação do Inquérito Nacional de Despesa Familiar) em São Paulo e Rio de Janeiro e
o estrato inferior do Nordeste.
As regiões mais pobres — especialmente o Nordeste, que é o maior bolsão de
pobreza do Hemisfério Ocidental — são as maiores vítimas do regime de desigualdade que
se aprofundou a nível nacional, em consequência da expansão do capitalismo selvagem, sob
o regime de exceção — que suprimiu as liberdades públicas, impediu o povo de escolher
seus governantes e esterilizou as agências regionais de desenvolvimento, como a SUDENE.
A questão regional passa, assim, pela questão nacional; mas também a questão
regional e hoje uma dimensão fundamental da questão nacional pois sem a integração por
participação, e não por dependência, do Nordeste e da Amazônia, não se formará uma
sociedade brasileira justa e democrática em todo o seu espaço nacional. Portanto, para

64 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

modificar em suas raízes a situação de desequilíbrio regional, e essencial uma mudança


nacional, no sentido da melhor distribuição da renda. O processo de distribuição da renda
reveste-se, pois, necessariamente, de uma dimensão regional que é fundamental e que
requer respostas específicas.
A questão regional pode ser caracterizada a partir de três aspectos principais:
1) O elevado grau de concentração espacial da pobreza absoluta, desproporcional a
participação da população das regiões mais atrasadas no conjunto do País;
2) Desenvolvimento desigual da economia, que se expressa não só em ritmos diferenciados
de crescimento econômico entre as regiões, mas também, em crescente heterogeneidade
inter-regional;
3) Ausência de identidade político-cultural, representação e participação das regiões
atrasadas no debate e encaminhamento das questões nacionais.
A continuidade dos desequilíbrios regionais agudos e a exclusão sistemática de
qualquer participação, característica do regime autoritário, além de ter reflexos incômodos
e desestabilizadores para a prosperidade das regiões avançadas, tendem a ameaçar a
própria unidade nacional. Por isso, é urgente e indissociável do projeto democrático a
correção dos desequilíbrios regionais em três linhas confluentes:
a) diferenciação das políticas social e tributária de âmbito nacional;
b) regionalização deliberada das políticas e programas econômicos de nível nacional;
c) programas regionais específicos.
A política social, proposta a nível nacional, beneficiará de forma decisiva as
áreas mais pobres, através de transferências compensatórias que supram efetivamente a
incapacidade da economia local (orçamentos municipais) de atender às necessidades
básicas das populações, em termos de nutrição, saúde, educação, habitação e transporte
coletivo.
Tal política atribuirá de preferência aos municípios a gestão dos recursos de
modo a incentivar a autonomia municipal e, ao mesmo tempo, valorizar a representação
política local, dando-lhe substância.
Além disto, há que reformular o ICM, de forma a reservar sua cobrança, no
comércio interestadual, ao Estado de destino das mercadorias. Ainda na área tributária, é
necessário corrigir os desvios do sistema de incentivos fiscais, reservando suas aplicações
para o Nordeste e Amazônia.
Na segunda linha de política, propõe-se a regionalização de todas as políticas
públicas nacionais, com um papel de destaque para a atuação das empresas federais. A
regionalização consistente e planejada das políticas públicas da União requer uma reforma
em profundidade do Ministério do Interior, para que possa articular, com poderes legais,
junto a todas as instâncias de planejamento global e setorial, a fixação das prioridades
regionais. O reforço institucional e do poder real das superintendências regionais é

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 65


Esperança e Mudança

indispensável, para que possam elaborar planos efetivos e executar programas eficazes,
dotados de recursos suficientes.
Programas regionais específicos são, porém, indispensáveis. Neles os seguintes
pontos são considerados essenciais:
1. Desconcentração do processo de inversões e acumulação. No caso da Amazônia e do
Nordeste, através de um programa de transferência substancial e firme para aplicação
em agricultura, mineração, indústria, serviços e infraestrutura, numa base não inferior à
que foi aprovada pelas Nações Unidas ou a que foi proposta pela Comissão Brandt para
o apoio dos países do Terceiro Mundo. Deve-se assegurar a preferência para o Norte e
Nordeste com relação a todas as oportunidades de localização desconcentrada
competitiva (inclusive das atividades exportadoras), ainda que requeiram um conjunto
de inversões e período de maturação de manutenção com incentivos especiais.
2. Pesquisa de recursos naturais e desenvolvimento científico-tecnológico, que: (a) descubra
oportunidades urbanas e rurais (minerais inclusive) desconcentradas; (b) ajuste os
projetos a natureza dos recursos naturais e humanos e a valorização da cultura regional;
(c) crie um “patrimônio universitário” com capacidade criadora, com alunado pelo
menos proporcional à população; (d) constitua um programa no setor quaternário em si
mesmo manejado como programa de desconcentração.
3. Reforma agrária regionalizada, condicionando a utilização dos recursos de irrigação para
programas de amplo benefício social, e utilização dos recursos energéticos e minerais em
beneficio regional.
4. Elevação dos salários dos trabalhadores no sentido de igualá-los gradativamente aos dos
trabalhadores do Sudeste e do Sul, a fim de evitar que a industrialização se baseie na
perpetuação dos baixos salários regionais.
Ao lado da redução do distanciamento econômico-social interregional, a política
proposta foi desenhada para também reduzir as tendências à concentração dentro da mesma
região.
A participação política desinibida e reivindicativa das regiões periféricas não só
é importante, como decisiva para a mudança política nacional. Uma verdadeira política
regional pressupõe que estas regiões influam nas grandes decisões nacionais, em seu
benefício.

4. O emprego como síntese da política social

Emprego e ocupação produtiva para todos os brasileiros em condições de


trabalhar são requisitos essenciais para a construção de uma sociedade democrática, no
contexto de um sistema produtivo eficiente. Emprego e redistribuição de renda são
indissociáveis.
Mas, assim como a redistribuição da renda, a questão do emprego é complexa
— envolve vários planos e políticas distintas. Na sua evolução conjuntural, o nível de

66 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

emprego subordina-se, principalmente, ao desempenho das atividades produtivas. Mas,


não é só. Conquistas trabalhistas e liberdade sindical são necessárias para garantir postos
de trabalho, especialmente em situações de crise. A afirmação dos direitos sociais, com a sua
ampliação substantiva, passa pela instituição do seguro-desemprego, pela preservação dos
espaços na economia para os segmentos não assalariados, principalmente no campo; passa
por políticas públicas compensatórias e gastos governamentais na esfera social.
Na sua dimensão de longo prazo a questão do emprego é ainda mais complexa.
Envolve reformas sociais e institucionais de profundidade, envolve a reorientação do
sistema produtivo numa direção compatível com os desafios que se colocam à geração de
milhões de empregos para uma população muito jovem e que cresce com rapidez.
Ao propor uma “política” para o emprego desvinculada de orientações
concretas quanto aos rumos do sistema econômico, sem qualquer menção a reformas sociais,
o governo faz apenas retórica vazia e autodesmoralizante — como é o caso da atual gestão
do Ministério do Trabalho.
A outra postura oficial, da Secretaria de Planejamento, prefere omitir-se quanto
à gravidade do desemprego — querendo fazer crer que uma hipotética retomada do
crescimento resolveria automaticamente o problema. Sabemos, porém, que as taxas de
crescimento requeridas para diminuir substancialmente o desemprego são simplesmente
inatingíveis, dentro do atual esquema de política econômica.
O PMDB repele tanto a omissão irresponsável quanto a retórica fátua — diante
de questão tão crucial quanto a do emprego. Ao propor medidas para o problema do
emprego o faz consciente de sua complexidade e as oferece como contribuição para o debate
democrático.
A reativação da economia, com profundas alterações na política social,
representa apenas o começo para enfrentar a questão do emprego. Não se pode negar que
essa constitui um problema estrutural no Brasil. Problema seriamente agravado, agora, pela
violenta recessão. O desemprego estrutural veio sendo agravado pelo intenso ritmo de
expulsão de mão-de-obra do campo, durante toda a década dos anos 70. Além do forte fluxo
migratório para as cidades, ocorreu uma maciça incorporação de mulheres à força de
trabalho. Como resultado, a oferta de trabalhadores urbanos, especialmente nas áreas
metropolitanas, cresceu a taxas muito elevadas, chegando a quase 5% ao ano.
Graças ao desempenho da indústria (na primeira metade da década) e ao
elevado nível do investimento público (até 1979) o sistema econômico logrou criar empregos
para absorver uma parcela considerável dessa oferta. É verdade que, após 1975, iniciou-se
uma desaceleração no ritmo de absorção de mão de obra, caindo a taxa média de
crescimento do emprego para um nível inferior à média do pós-guerra. Entretanto, a
manutenção de um nível ainda razoável de crescimento contribuiu para não agravar
sensivelmente o quadro ocupacional. Manteve-se, grosso modo, a proporção de sub-
remunerados, só que agora mais concentrada nas cidades.
Foi a partir do último trimestre de 1980 que se rompeu o precário equilíbrio
existente no mercado de trabalho. A expansão frágil e insubsistente da segunda metade de

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 67


Esperança e Mudança

1980 logo foi substituída pela brusca reversão da política econômica na direção
recessionista. Diante das vulnerabilidades latentes e dos graves problemas acumulados na
economia a recessão não demorou a se fazer sentir — de modo intenso e cumulativo. Do
ponto de vista social, o mais grave é que tais medidas foram adotadas sem que o Estado se
armasse sem qualquer instrumento capaz de oferecer aos desempregados um mínimo de
proteção.
Aliás, esse despreparo manifestou-se até mesmo pela incompetência na medição
do desemprego provocado. O IBGE iniciou em janeiro de 1980 uma pesquisa mensal em seis
áreas metropolitanas. A taxa média de desemprego aberto, registrada pela pesquisa, foi
crescendo com o agravamento da recessão até atingir 9% em janeiro de 1982. Pois bem, para
maio de 82, o IBGE divulgou uma taxa média de desemprego muito inferior, de 6,2%, sem
que tivessem surgido na economia fatos novos, capazes de explicar tal “melhoria” na
situação do mercado de trabalho. Ocorre que o IBGE alterou a metodologia da pesquisa sem
o devido esclarecimento ao público e à comunidade técnica e, com isso, todo o trabalho
anterior ficou prejudicado pela descontinuidade introduzida na série. Prova da deficiência
dos levantamentos oficiais refere-se à forma de medição da força de trabalho. Os
levantamentos indicam uma queda absoluta no número de trabalhadores nas áreas
metropolitanas pesquisadas nos últimos meses. Ora, tal queda é obviamente fictícia e não
se justifica por razões demográficas. Ao contrário, a força de trabalho total deve ter
aumentado. Entretanto, a metodologia utilizada falseia a realidade, pois não computa as
pessoas que — desesperançadas — desistem de procurar trabalho, após longos meses de
busca, resignando se a fazer “bicos”. Uma pesquisa séria teria que levar em conta aqueles
que, pela cruciante falta de oportunidade de emprego, desistiram de continuar procurando.
São brasileiros aptos, embora não qualificados, que fazem parte da força de trabalho
potencial — são mais que desempregados, são marginalizados. Se forem computados no
cálculo do desemprego, o nível atual não seria inferior a 13% — um nível dramático para
uma sociedade que não dispõe de seguro-desemprego. Este foi o nível verificado por uma
pesquisa criteriosa elaborada pelo DIEESE para a região metropolitana de São Paulo ainda
no 1º semestre de 1981.
Consciente de que a questão do emprego é complexa o PMDB rechaça as
propostas simplistas, que só fazem escamotear o problema. Não podemos ignorar o fato de
que, além das graves dificuldades da conjuntura recessiva, delineia-se para o futuro o início
de um processo de intensas mudanças tecnológicas, com a automação avançada dos
processos de produção na indústria e dos processos de trabalho no setor de serviços,
decorrente da utilização cada vez mais ampla de computadores e outros processadores
microeletrônicos. É possível que, pela primeira vez na história das inovações técnicas, o
aumento da produtividade seja tão intenso que não venha a ser compensado pelo aumento
geral da produção. Em outras palavras, é possível que os efeitos diretos e indiretos das
novas tecnologias, quanto à criação de setores e espaços econômicos novos, sejam
insuficientes para garantir a criação líquida de empregos. Assim, é de se esperar uma
crescente liberação de mão de obra em vários ramos de atividades, à medida que se
difundam as técnicas de automação avançada e de informática. Estas tendências do
progresso técnico, que certamente far-se-ão sentir a médio e longo prazo, são em grande

68 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Uma nova estratégia de desenvolvimento social

medida inexoráveis — e, até certo ponto, desejáveis. Será possível talvez liberar cada vez
mais o homem da necessidade do trabalho, especialmente do trabalho repetitivo, não
criativo. O rápido aumento da produtividade pode tornar-se um fator extremamente
positivo para o desenvolvimento social. Requer, contudo, que a questão do emprego (e da
distribuição da renda) passe a ser objeto central da política pública de forma a evitar os
efeitos disruptivos das inovações técnicas, maximizando-se seus benefícios.
É preciso, portanto, partir da hipótese de que, diante da intensidade da migração
campo-cidade e do impacto das futuras transformações tecnológicas a simples retomada do
crescimento econômico não resolverá o problema do emprego. O desafio de pensar o
emprego como uma questão estratégica coloca-se, pois, de forma inescapável.
A curto prazo, porém, a ampliação grave do desemprego, provocada pela
política recessionista, necessita de uma resposta imediata. Para isso, propõe-se (no capítulo
referente a uma política alternativa de curto prazo) medidas compensatórias de emergência.
Para os trabalhadores qualificados, do complexo metal-mecânico propõe-se a reativação da
produção e do emprego através de encomendas de equipamentos de transporte (ônibus,
utilitários, caminhões), material ferroviário, naval, elétrico, siderúrgico, etc. — de forma
compatível com as novas políticas setoriais e prioridades propostas para o ajustamento de
nosso sistema econômico. No que se refere aos trabalhadores não qualificados, propõe-se a
implementação ampla e progressiva de obras públicas e de outros programas na área social,
que possuam elevado efeito na geração de empregos e signifiquem benefício direto às
populações de baixa renda.
Estas medidas para aliviar a situação de desemprego agudo e aberto, inclusive
de chefes de família, não poderão, contudo, resolver os problemas estruturais —
principalmente para a grande massa de trabalhadores não-qualificados, cuja inserção no
mercado de trabalho é precária, instável, mal remunerada. Como já foi dito, o emprego como
questão estratégica requer medidas e políticas de grande alcance.
O PMDB entende que o emprego e a distribuição da renda são metas meio
indissociáveis da construção de uma sociedade substantivamente democrática. Para isso, o
conjunto de reformas sociais, institucionais e as políticas públicas na área econômica e social
aqui propostas devem tê-las como critério diretor. Isto requer, como pressuposto, que a
questão do emprego não seja — como agora o é — um assunto à margem do centro de
decisões de política econômica.
Em primeiro lugar, a diminuição do fluxo migratório campo-cidade depende da
reforma agrária. E inconcebível que um país com a disponibilidade de terras agricultáveis
como o Brasil não consiga ocupar produtivamente boa parte dos que se veem obrigados a
emigrar.
Em segundo lugar, todo o conjunto de políticas públicas que constituem o
suporte da Nova Estratégia de Desenvolvimento Social aqui proposta haverão de ser
pensadas na sua dimensão quanto à criação de empregos. E isto não é difícil: educação,
saúde, previdência (inclusive seguro-desemprego) são áreas de política pública que tem
apreciável efeito direto sobre o emprego e sobre o bem-estar das populações de baixa renda.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018. 69


Esperança e Mudança

De outro lado, programas de habitação popular, saneamento básico, transportes coletivos,


também compreendem um amplo conjunto de atividades que tem elevado coeficiente-
emprego. Quanto às políticas setoriais de reorientação do sistema produtivo, as prioridades
de distribuição da renda e criação de empregos deverão ser respeitadas como compromisso
inarredável do PMDB, em busca de uma sociedade mais justa. Nem sempre, porém, será
possível conciliar todos os objetivos com facilidade — particularmente no que tange aos
efeitos previsíveis das transformações tecnológicas para o futuro. Por isso mesmo é que a
questão do emprego terá que inserir-se como tema central entre as questões sociais — como
tema que exigirá a intervenção dos mecanismos de regulação pública, num Estado
democrático. É por tudo isso que, para o PMDB, a questão do emprego só faz sentido se for
pensada como síntese de uma política social global.

70 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 29-70, jan./jun. 2018.


Parte III

Diretrizes para uma nova política econômica

1. O agravamento da crise econômica

1.1. Consequências de uma política inadequada de ajustamento diante da crise mundial

O caminho escolhido, após 1974, pelos atuais governantes, para enfrentar os


graves problemas da economia brasileira, diante da crise econômica internacional, revelou-
se totalmente inadequado. O II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), embora
almejasse corrigir certos desequilíbrios acumulados de nossa estrutura produtiva e avançar
na produção de bens de capital, ignorou as mudanças profundas ocorridas na ordem
econômica internacional, quais sejam: a perda de dinamismo das economias avançadas, o
consequente enfraquecimento do comércio internacional e o caráter definitivo da crise
energética.
A tentativa de empreender um plano demasiado ambicioso, sem levar em conta
estas restrições, terminou agravando o desequilíbrio energético e do balanço de
pagamentos, a despeito das improvisadas medidas de correção de rota (contenção de
importações, Proálcool, etc.). Infelizmente, ao invés de reformular em profundidade a
estratégia adotada, o governo preferiu abrir mão de qualquer política de ajustamento
estrutural, limitando-se— a partir de meados de 1976 — à administração dos problemas de
curto prazo.

1.2. O abandono do planejamento estratégico

A inexistência de uma política de ajustamento estrutural para a economia e,


particularmente, para o balanço de pagamentos implicou na necessidade de financiar os
elevados déficits das contas externas através de uma política de endividamento crescente.
Como o país já havia acumulado uma dívida externa considerável, desde o início dos anos
70, a obtenção de novos recursos em grande escala exigiu a criação de fortes incentivos à
captação privada de moeda estrangeira. Paralelamente, foi necessário utilizar também as
empresas públicas como veículos de endividamento. O incentivo à captação privada
consistiu no “barateamento” do crédito a ser obtido no exterior, em relação ao crédito de
origem doméstica. Para tanto, as taxas internas de juros foram liberadas e sistematicamente
empurradas para cima, através da elevação da taxa de depósito compulsório dos bancos e
da execução de uma agressiva política de lançamento de títulos públicos, para comprimir a
liquidez.
Como as condições de crédito internacional foram extremamente favoráveis
(entre 1976 e fins de 1979), não apenas foi possível refinanciar a dívida externa crescente,
mas também, nos foi permitido ampliá-la para a constituição de volumosas reservas em
moeda estrangeira. Este processo acelerado de endividamento externo desorganizou
seriamente a política monetário-creditícia nos anos de 1977 a 1978. O intenso afluxo de

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Esperança e Mudança

dólares exigiu das autoridades monetárias redobrado vigor na colocação de títulos públicos,
com o duplo objetivo de evitar a expansão “excessiva” do crédito interno e para financiar a
si próprias. A dívida pública interna acelerou, assim, o seu crescimento com uma
concomitante inchação do mercado secundário de títulos do tesouro que se converteu em
centro da atividade especulativa. De um lado, empresas e bancos ali despejavam seus
excessos de caixa, adquirindo títulos públicos com rentabilidade positiva e nenhum risco; e,
de outro lado, as empresas deficitárias e os agentes financeiros com problemas temporários
de liquidez ali se abasteciam de dinheiro. A continuidade deste processo foi sendo
assegurada pelo Banco Central, que se via obrigado, frequentemente, a aliviar ameaças de
insolvência, sancionando, assim, o circuito de ganhos especulativos que se tornou conhecido
como “ciranda financeira”.
É fácil perceber que o mecanismo adotado para assegurar o refinanciamento
externo, em escala crescente, trazia implícita uma imobilização progressiva da capacidade
de operar eficientemente a política monetária, creditícia e cambial. No que se refere à política
de câmbio, o estímulo ao crédito externo induziu o governo a manejar a correção cambial
de modo que fosse sempre ligeiramente inferior à correção monetária deduzida a inflação
externa, provocando uma progressiva sobrevalorização do cruzeiro. De outro lado, o
sensível encarecimento do crédito doméstico, forçado pela política de endividamento,
obrigou à abertura de linhas de crédito subsidiado para a agricultura — incapaz de
sobreviver com as altas taxas de juros prevalecentes — e para as exportações de
manufaturados, cuja competitividade precisava ser reforçada. Os subsídios creditícios e a
multiplicação de fundos especiais, criados ad hoc, foram ampliando as atribuições do
chamado “orçamento” monetário que, submetido ainda às pressões decorrentes do giro da
dívida interna, tornou-se o reflexo da desorganização do conjunto das finanças públicas.

1.3. A progressiva deterioração das condições econômicas

É importante assinalar que a imobilização progressiva dos instrumentos de


política econômica ocorreu paralelamente ao enfraquecimento da acumulação privada de
capital, uma vez cessados os efeitos dos projetos induzidos pelo II PND. A tendência
recessiva foi certamente agravada pela presença atrativa das aplicações financeiras e pelas
elevadas taxas de juros. A recessão só não se manifestou imediatamente, de forma aguda,
porque o gasto público e em particular o investimento das empresas estatais, continuou
operando de forma compensatória até 1979.
Neste quadro de crescentes desajustes e erosão dos instrumentos de política
econômica, a inflação foi ganhando fôlego, refletindo as tensões acumuladas pelo sistema
empresarial crescentemente endividado à taxa de juros reais elevadas. Estas tensões
encontraram meio propício de propagação nos mecanismos de correção monetária,
amplificando-se, através do circuito especulativo, para os estoques de títulos, mercadorias
etc.

72 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

Já estavam constituídos, desde então, os ingredientes de uma crise de graves


proporções: enfraquecimento da estrutura empresarial com queda no ritmo de inversões,
endividamento cumulativo, recrudescimento da especulação, inflação ascendente.
A percepção da gravidade da situação, por ocasião da mudança do comando da
política econômica em meados de 79, levou o governo a uma tentativa arriscada de
readquirir raio de manobra: tabelamento de juros, degradação da correção monetária,
escalada na imposição fiscal e, finalmente, a temerária maxidesvalorização de dezembro de
79. Estas medidas buscavam desconectar as condições internas de crédito das injunções
do financiamento externo, ao mesmo tempo em que visavam recompor a situação das
finanças públicas e ganhar uma certa folga na política cambial. Todavia, o conjunto de
medidas acima, ao ser completado desastrosamente pela prefixação voluntarista da correção
monetária e cambial em 1980, redundou numa forte aceleração inflacionária. Com efeito,
apesar da contenção da correção monetária, a inflação foi realimentada pelo impacto das
mudanças fiscais (maxi, Imposto de Renda, Imposto Sobre Operações Financeiras — IOF) e
pelos choques decorrentes das bruscas elevações dos preços administrados pelo governo
(derivado de petróleo, especialmente a gasolina, e outras tarifas). Paralelamente, o
tabelamento irreal do câmbio associado à relativa contenção da taxa de juros, deflagrou uma
intensa onda de especulação altista com estoques de mercadorias particularmente com
matérias-primas importadas. A desvalorização dos títulos financeiros, provocada pela
degradação da correção monetária e tabelamento da taxa de juros, deslocou assim o
potencial especulativo do estoque de títulos para as mercadorias e outros ativos reais,
acentuando a aceleração inflacionária.

1.4. O bloqueio creditício externo e a política de recessão

Ao mesmo tempo em que estes lances eram executados com imprudência, as


condições externas de crédito sofriam um duro golpe com a reversão contracionista da
política monetária norte-americana em fins de 1979. A forte subida da taxa internacional de
juros e endurecimento das condições de crédito impuseram uma rápida drenagem de nossas
reservas cambiais. Pressionados pelo aperto creditício geral e enfrentando dificuldades de
autofinanciamento, os bancos internacionais, que já haviam emprestado parcelas
ponderáveis de seus ativos aos países em desenvolvimento, refrearam suas operações e
forçaram a aceitação de novas condições aos devedores: comissões (spreads) muito mais
elevadas e prazos mais curtos. Além disso, passaram a recomendar aos países devedores a
adoção de medidas ortodoxas de contenção, como forma de contornar os déficits dos seus
balanços de pagamentos que se haviam ampliado sensivelmente com o 2° choque dos preços
do petróleo. O Brasil, na condição de grande devedor e necessitando levantar grandes somas
para financiar o seu déficit, sofreu uma forte pressão no sentido de ajustar o seu balanço de
pagamentos através de uma política recessionista dentro do figurino do Fundo Monetário
Internacional, FMI. Em novembro de 1980, o governo cedeu às pressões externas e adotou
um conjunto de medidas fortemente contencionistas: violenta elevação da taxa de juros,
forte aperto creditício através da imposição de controles quantitativos, reaceleração da
correção monetária e cambial, corte do gasto e do investimento público. A recessão

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 73


Esperança e Mudança

sobreveio quase que imediatamente, iniciando-se, em janeiro de 1981, a mais grave crise
econômica para o País desde a grande depressão dos anos 1930.
A retração iniciou-se com uma forte queda na demanda de bens de consumo
duráveis, com efeitos negativos de propagação afetando um amplo conjunto de setores
produtores de bens intermediários. A situação da construção civil piorou sensivelmente e
agravou-se, ainda mais, o nível de capacidade ociosa no setor de bens de capital. O
mergulho recessivo processou-se ininterruptamente ao longo de 16 meses, alcançando os
primeiros meses de 1982. O desemprego urbano elevou-se brutalmente e as condições de
remuneração da força de trabalho foram se deteriorando, porquanto as empresas, além da
ameaça do desemprego, dispõem do expediente da rotatividade para rebaixar os salários.
O achatamento dos salários foi particularmente violento para os estratos médios e altos,
desprotegidos pelas mudanças introduzidas na lei salarial em fins de 1980.
A queda dos salários médios e altos, junto com a reinstituição de condições
favoráveis para as aplicações financeiras, implicaram em forte efeito negativo sobre a
demanda de bens duráveis. Paralelamente, a liquidação de estoques de mercadorias,
forçada pela elevadíssima taxa real de juros (entre 35 e 55% a.a.) comprimiu fortemente a
demanda por insumos e bens intermediários. O efeito conjugado e cumulativo dos cortes na
produção destes setores foi ampliando implacavelmente o desemprego e, com isso, todo o
amplo setor de bens de consumo de massa foi sendo também atingido pela recessão. Com
efeito, a queda na demanda de bens de consumo não duráveis só não foi mais intensa pelo
fato dos salários de base estarem relativamente protegidos por reajustes semestrais, com um
fator de incremento de 10% sobre o INPC.

1.5. A recessão planejada e a crise nacional

A recessão em 1981 produziu resultados bastante modestos, do ponto de vista


dos objetivos desejados pelo governo. A inflação, reprimida pela violência do processo
recessivo, reduziu-se temporariamente (de cerca de 80% ao ano, no fim de 1981), depois de
ter alcançado uma taxa corrente de aproximadamente 120%. O balanço comercial, por sua
vez, registrou um superávit de 1,2 bilhões de dólares, devido, principalmente, à sensível
queda das importações.
No início de 1982, as autoridades econômicas, ignorando os elementos
estruturais de crise presentes na economia e desprezando o escasso raio de manobra que
restava à política econômica, acenaram com a falsa possibilidade de uma retomada do
crescimento. Limites um pouco menos drásticos foram previstos para a expansão creditícia,
favorecendo-se modestamente o financiamento habitacional. Paralelamente, adotou-se uma
atitude mais tolerante para com a expansão do gasto público. Contudo, como a recessão
continuou aprofundando-se nos primeiros meses do ano, outras medidas de curto alcance
foram sendo adotadas, como a retirada do ISOF e aumento dos prazos de financiamento
para o crédito ao consumidor, visando estimular a demanda de bens duráveis. Com efeito,
uma tênue reativação da demanda de bens duráveis, auxiliada também, no caso dos bens

74 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

eletroeletrônicos pela expectativa da Copa do Mundo, começou a se fazer sentir nos meses
de maio e junho.
A insubsistência deste processo de retomada do crescimento foi, porém,
rapidamente posta em evidência pela forte aceleração inflacionária e pelo modestíssimo
desempenho de nossa conta comercial no primeiro semestre de 1982. Premidas pela
manutenção do patamar elevadíssimo da taxa de juros e buscando acompanhar os
recorrentes reajustes “corretivos” dos preços e tarifas administradas pelo governo, as
empresas reaceleraram o ritmo dos seus ajustes de preços, diante da perspectiva de uma
moderada reativação das vendas, com o fito de recompor suas margens de rentabilidade.
Com o pico de 8% na taxa mensal de inflação em julho deste ano, de repente, tornou-se claro
que a taxa corrente de inflação havia subido novamente para um patamar muito elevado
(de 115% ao ano, no primeiro semestre de 1982, apenas ligeiramente inferior à taxa do
primeiro semestre de 1981). Por outro lado, as exportações brasileiras de manufaturados
foram penalizadas pela recessão mundial e pelo recrudescimento generalizado do
protecionismo, enquanto que as nossas exportações de produtos primários foram vitimadas
por cotações violentamente deprimidas de seus preços. Além disso, o conflito no Atlântico
Sul serviu, mais uma vez, para sublinhar a fragilidade e vulnerabilidade do fluxo de
financiamento das contas externas. A percepção inequívoca e cristalina de que o País não
dispõe de qualquer margem de manobra para conduzir a política econômica, dentro do
esquema atual, e que a diversidade da conjuntura internacional em pouco tempo reverteu
os “ganhos” penosamente obtidos com a recessão, em 1981, deixou os empresários e
autoridades perplexos e desorientados. Já se entrevê o espectro agourento de um novo
“round” de recessão para 1983 o que, certamente, significará uma crise econômico-social de
gravíssimas proporções, se vier a ocorrer.

1.6. O caráter estrutural da crise e a necessidade de reformas

Infelizmente o desgaste dos instrumentos de política econômica e a


desorganização geral do financiamento público acentuaram-se, ainda mais, com o processo
recessivo. A tomada de empréstimos externos, por exemplo, embora na ausência de
confiança na política cambial e em meio a recessão, vem sendo literalmente forçada aos
ajustes econômicos internos. Para isso, vem sendo aplicado um draconiano controle
quantitativo do crédito de origem interna, de tal forma que, esgotados os limites, as
empresas (particularmente as pequenas e médias) não têm outra saída senão aceitar o
endividamento em moeda estrangeira, intermediado pelos bancos, através da Resolução 63.
Os riscos do processo de endividamento externo que, anteriormente concentrava-se nas
empresas estrangeiras e nas grandes empresas estatais, comprometem hoje uma parcela
cada vez maior da empresa nacional.
De outro lado, a “necessidade” de manter o elevadíssimo nível real da taxa
interna de juros vem obrigando o governo a uma política altamente agressiva de colocação
líquida de títulos da dívida pública, visando enxugar a liquidez e manter um drástico
controle sobre as reservas bancárias (base monetária). Além disso, a dívida pública vem
sendo intensamente utilizada para cobrir os desequilíbrios do conjunto das contas

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 75


Esperança e Mudança

governamentais, originadas especialmente do chamado “orçamento monetário”. A recessão


enfraqueceu, também, o crescimento da receita fiscal e previdenciária (especialmente dos
impostos indiretos), apesar das repetidas investidas improvisadas (e inflacionárias) para
incremento da receita tributária. Em resumo, o estado precário em que se encontra todo o
sistema de financiamento público é inequívoco e isto se expressa num crescimento
exponencial da dívida pública interna que, em julho de 1982, já alcançou um montante
equivalente a cerca de 28 bilhões de dólares (devidos a curtíssimo prazo).
A acelerada expansão da dívida pública, no contexto da política de juros reais
elevadíssimos, recolocou o epicentro da atividade especulativa na esfera financeira e
transformou o País num paraíso para os bancos, cujas taxas de lucro são francamente
exorbitantes. Por outro lado, o potencial de investimento produtivo, já combatido pela
recessão é penalizado pela gastronômica taxa de juros e absorvido pela esfera especulativa,
agravando perigosamente a situação de crise.
Em outras palavras, a recessão encarregou-se de aprofundar os elementos de
crise, empurrando todo o nosso sistema econômico para uma situação que beira o
descalabro. O grau de endividamento das empresas, já elevado, vem se ampliando
cumulativamente e já está desatando um número expressivo de falências e concordatas que
poderão, de repente, assumir a forma de reação em cadeia.
Diante deste quadro, cuja gravidade a ninguém é dado desconhecer, torna-se
inequívoca a urgência de reformas de profundidade, que possibilitem a retomada sólida e
ordenada do crescimento econômico. A recuperação econômica, em bases sólidas, requer —
como passo inicial — a redução do elevadíssimo patamar da taxa de juros e, para isso, é
indispensável estabelecer mudanças incisivas nos atuais mecanismos de obtenção de
recursos externos. Além disso, afigura-se, também, como condição essencial, necessidade
de reverter o estado de desagregação em que se encontra todo o sistema de financiamento
público e privado.

2. Diretrizes para uma política alternativa de curto prazo

Diante da indisfarçável gravidade da situação econômica e social, e


considerando que a inoperância da atual política econômica tende a nos arrastar em direção
ao agravamento da crise, torna-se urgente e inadiável propor ao debate democrático
diretrizes para uma política econômica de curto prazo.
É preciso advertir, porém, que não se pode propor uma retomada imediatista e
descontrolada do crescimento econômico que, decerto, esbarraria na agudizacão dos
problemas do balanço de pagamento e numa perigosíssima reaceleracão inflacionária que
seriam, certamente, seguidos de um novo mergulho recessivo.
A retomada do crescimento só poderá constituir-se numa verdadeira
recuperação econômica se vier a ser implementada de forma ordenada, sólida, de modo a ir
preparando o caminho para uma nova estratégia de desenvolvimento econômico e social.
Com efeito, a retomada ordenada do crescimento, que permita à recuperação dos níveis de

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Diretrizes para uma nova política econômica

emprego, a utilização racional da capacidade ociosa, a reversão dos níveis sufocantes de


endividamento das empresas é condição necessária para tornar viável uma estratégia
econômica alternativa.
Além disso, a retomada ordenada do crescimento não pode prescindir de
medidas fiscais e financeiras de emergência, que preparem as condições para a realização
da reforma tributária e da reforma financeira, requisitos indispensáveis para o
financiamento da nova estratégia.

2.1. A desvinculação da taxa interna de juros das condições de refinanciamento da dívida


externa

É impossível a execução de qualquer política de recuperação econômica sem o


rebaixamento do elevadíssimo patamar atual da taxa interna de juros. Este rebaixamento é,
ademais, urgente. Não se pode conceber que o sistema industrial possa continuar operando
por muito mais tempo, sob as atuais condições de financiamento, sem que venha a ser
arrastado à falência geral. Para isto, é indispensável cortar a vinculação existente entre a
política monetário-creditícia e a obtenção dos empréstimos externos necessários para
“fechar” o déficit do balanço de pagamentos.
Como já foi mencionado o governo tem se utilizado do controle quantitativo do
crédito de origem doméstica, com taxas de juros internos extremamente elevadas, para
forçar os bancos e as empresas (privadas e públicas) a buscarem dólares no exterior. Como
resultado deste sistema inteiramente desarrazoado, o País é obrigado a conviver com taxas
reais de juros que variam de 35% a 55% ao ano, enquanto que a taxa internacional de juros,
em termos reais, tem se situado num nível de aproximadamente 7% ao ano. Ou seja, somos
obrigados a suportar uma taxa real de juros cujo nível é de 5 a 7 vezes mais elevado que o
da taxa internacional, em função do atual mecanismo irracional de captação de empréstimos
externos que, ademais, premia os bancos com polpudas margens operacionais de lucro.
A redução urgente da taxa de juros interna implica, portanto, na criação de
novos mecanismos de financiamento externo, compatíveis com um patamar de juros
substancialmente mais baixo. Em primeiro lugar, a imposição de controle sobre os
elevadíssimos níveis atuais dos spreads (margens operacionais de lucro) do sistema bancário
doméstico é central e indispensável para a pretendida redução do patamar da taxa de juros.
Atualmente, os bancos tomam como base o “custo” dos recursos externos para o cálculo das
suas taxas de empréstimos. Isto é, calculam o quanto lhes “custa” o crédito externo (correção
cambial mais juros e spreads externos) e aplicam sobre isto um fator bastante elevado que
corresponde a sua própria margem operacional relativa a este tipo de operação.
Ocorre que os empréstimos externos não são a única fonte de recursos para os
bancos. Além destes, os bancos valem-se de uma percentagem dos depósitos à vista e
captam depósitos a prazo. Os depósitos à vista nada custam aos bancos — ao contrário,
deles tiram proveito dado que sobre eles não pagam sequer correção monetária.
Os depósitos a prazo são remunerados, porém, a taxas não muito diferentes da
taxa de inflação. Vale dizer, em termos reais a remuneração dos depósitos a prazo é

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 77


Esperança e Mudança

praticamente nula, quando não negativa. Em resumo, os bancos operam com três tipos de
recursos (com “custos” distintos), porém, calculam as taxas de empréstimos para os clientes
apenas com base nos recursos que lhes “custam” mais caro (os recursos externos,
intermediados pela Resolução n° 63). Por esta razão, a margem efetiva de lucro total sobre
o conjunto de seu passivo é elevadíssima. Recentemente, uma conceituada publicação
estrangeira, analisando os balanços de bancos do mundo inteiro, constatou que as
instituições que operam no Brasil apresentaram, de longe, o mais elevado índice de
rentabilidade mundial em 1981.
O quadro acima descrito revela que é perfeitamente possível fazer com que se
reduza a real taxa de juros pelo menos para um nível praticamente igual à taxa real externa,
sem prejuízo para a captação de moeda estrangeira. Isto naturalmente implicaria em que o
elevadíssimo spread operacional do sistema bancário doméstico fosse substancialmente
reduzido, equiparando-se àqueles praticados pelo sistema financeiro internacional. Os
bancos decerto não tomarão a iniciativa de reduzir suas exorbitantes margens de lucro
voluntariamente. Novas regras de fixação das taxas de juros terão que ser impostas pelo
governo, para evitar a falência generalizada de nosso parque industrial.
Diversas propostas têm sido apresentadas nesta direção. A proposta que
apresenta menos inconveniente é a de vincular (através de um fator multiplicador) o volume
de operações de crédito dos bancos à captação prévia de recursos externos, com supressão
dos atuais limites quantitativos para a expansão creditícia de origem interna. Esta sugestão,
implica em que a margem operacional de lucro dos bancos seja controlada pelo Banco
Central e fixada com base no “custo” médio de captação de recursos (internos à vista e a
prazo, e externos). Ela apresenta a vantagem de eliminar as restrições à expansão creditícia
e de forçar a competição dentro do oligopólio bancário.
Por outro lado, embora produza uma queda considerável no nível atual da taxa
interna de juros (que é de 5 a 7 vezes mais elevado que o da taxa internacional) a proposta
acima não assegura que esta venha a ser fixada abaixo da taxa prevalecente no mercado
financeiro externo.
A queda da taxa interna de juros para um patamar inferior ao da taxa
internacional requereria outras medidas. Várias têm sido as sugestões neste sentido, todas
elas implicando na criação implícita ou explícita de uma taxa especial de câmbio para
transações financeiras. Isto significa que, de uma forma ou de outra, a taxa de câmbio das
operações financeiras deve ser calculada de modo a permitir a queda relativa da taxa interna
de juros. Esta nova taxa financeira pode ser criada através de diversos mecanismos (seguro
contra perdas cambiais inesperadas, subsídio explícito à diferença de câmbio etc.). Todas
estas formas possuem seus inconvenientes que, no entanto, são muito menos danosas para
o País do que a opção atual. Além disso, é preciso ressaltar que, no caso brasileiro, a
abrangência e tradição do controle das operações cambiais pelo Banco Central
minimizariam bastante os inconvenientes do câmbio duplo, dificultando as manobras de
burla possibilitadas pelo diferencial entre as taxas de câmbio comercial e financeira. Para
facilitar, ainda mais, a eficiência dessa sistemática, a internação de moeda estrangeira
poderia realizar-se com base numa taxa única de câmbio (a comercial), compensando-se o

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Diretrizes para uma nova política econômica

risco e o “custo” do tomador no momento da amortização do principal e do pagamento dos


juros, através de uma taxa de cálculo subvencionada. Esta taxa deveria restringir-se,
rigorosamente, a operações financeiras de prazos médios e longos, vedando-se esse direito
para o repagamento de operações de curto prazo e de importações financiadas. Seria
recomendável que a implantação de uma solução deste tipo (taxa financeira especial, ou
taxa de subsídio) assumisse a forma mais eficiente, a ser escolhida a partir de um
entendimento com os principais agentes de captação.

2.2. Nova política creditícia e anti-inflacionária

Concomitantemente à redução dos juros, é indispensável rebaixar progressiva e


firmemente os coeficientes de correção monetária que hoje acompanham de perto a taxa de
inflação corrente, criando uma forte resistência a sua queda. A redução progressiva da
correção monetária deve, contudo, ser implantada de maneira diferenciada e cuidadosa.
Não se pode admitir a hipótese de descapitalização dos fundos sociais (FGTS e
PIS-PASEP) e nem, tampouco, a hipótese de degradação dos saldos das cadernetas de
poupança, particularmente no que se refere às milhões de contas de pequenos saldos,
pertencentes às classes assalariadas médias e médias-baixas. A degradação das cadernetas
dos pequenos “poupadores” — que não dispõem de alternativas de aplicação acarretaria
uma onda de aquisição de bens e tentativas de fazer estoques de mercadorias de consumo.
Este comportamento certamente criaria a oportunidade propicia para que as empresas
capturassem grande parte desses recursos, através da remarcação de seus preços de venda.
Paralelamente, as empresas também procurariam liquidar os seus saldos em cadernetas de
poupança (e em todos os ativos financeiros com correção monetária pós-fixada) dirigindo-
os para a estocagem de insumos e matérias-primas. O resultado seria uma indesejável
aceleração inflacionária, com forte incremento do custo de vida, além do desmantelamento
do sistema voluntário de poupança familiar.
Por estas razões, não é possível desacelerar os coeficientes de correção monetária
de modo drástico e generalizado. Por outro lado, não se pode aceitar que a correção
monetária continue acompanhando pari passu a taxa de inflação e atuando com uma ágil
correia de transmissão das tensões inflacionárias. Por isso, propõe-se a aplicação de
redutores diferenciados para a correção monetária, visando “desindexar” com certa rapidez
todos os títulos e formas de (inclusive dos títulos da dívida pública com essas características)
aplicação financeira de curtíssimo e curto prazos. De outro lado, deve-se admitir a aplicação
de coeficientes mais próximos à taxa de inflação somente para os fundos sociais, para os
saldos de cadernetas de poupança familiares das classes assalariadas e para os verdadeiros
títulos e aplicações de intermediação financeira, que se pretende incentivar, conforme a
proposta apresentada no capítulo sobre a reforma financeira.
É interessante assinalar que a adoção de uma taxa especial para o câmbio de
amortização dos compromissos financeiros em moeda estrangeira poderia, inclusive, ser
implantada através de um redutor específico da correção monetária, com regras claras e
definidas, para este fim. Outro objetivo do manejo diferenciado da correção monetária seria

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 79


Esperança e Mudança

o de recuperar a flexibilidade que hoje faz falta, de maneira crítica, aos instrumentos de
política econômica.
A conjugação das medidas relativas ao rebaixamento do patamar da taxa de
juros, com a redução gradativa e cuidadosa da correção monetária, permitiria que a
expansão do crédito se ajustasse às necessidades de recuperação e manutenção do
crescimento da economia, em condições satisfatórias de liquidez. Entretanto, para precaver-
se contra os perigos de reaceleração inflacionária seriam necessárias medidas
suplementares. Para evitar que as tensões inflacionárias atualmente reprimidas pela forte
recessão, encontrem na expansão creditícia (com juros reais baixos) um veículo apropriado
para se exprimir, é de toda conveniência a adoção dos seguintes controles:
a) Reativação do sistema CIP-SEAP (Comissão Interministerial de Preços – Secretaria
Especial de Abastecimento e Preços) com mecanismos antecipatórios de controle do
aumento dos preços. O conhecimento da estrutura de custos e das tendências correntes
dos preços das matérias-primas, peças, componentes, salários, permite que se faça
cálculo estimativo antecipado das pressões inflacionárias que atingem os diversos
setores. Com estas informações será possível estabelecer tetos para os aumentos de
preços, capazes de impedir a aceleração inflacionária.
b) O controle de preços não será efetivo sem o auxílio de mecanismos de sanção. Para isso,
a política creditícia pode ser usada de forma seletiva para evitar o comportamento
especulativo altista com estoques de mercadorias. Finalmente, a reaceleração da inflação
não deve ser estimulada por reajustes bruscos dos preços e tarifas do setor público,
devendo-se reajustá-las gradualmente.

2.3. Medidas fiscais e financeiras de emergências

Qualquer plano não-inflacionário de recuperação da economia supõe, neste


momento, o fortalecimento das finanças públicas. Como não há tempo útil para aguardar
os resultados da reforma tributária de profundidade, são necessárias medidas de
emergência. Estas devem evitar sobretaxas às fontes atuais de receita, buscando ampliar —
de maneira socialmente justa — a base da tributação. Deve-se começar com o aumento do
imposto de renda na fonte sobre os ganhos extraordinários provenientes de aplicações
financeiras (de pessoas físicas e jurídicas) e sobre os lucros extraordinários dos bancos.
Paralelamente, deve-se suprimir de imediato todos os incentivos fiscais, ligados ao imposto
de renda, com exceção dos regionais (Nordeste, Amazônia).
De outro lado, é indispensável iniciar uma mudança na estrutura de prazos da
dívida pública interna, que atualmente está girando a curtíssimo prazo. O seu enorme
aumento verificado em 1981 e no primeiro semestre de 1982, com os níveis atuais de juros,
aponta para uma expansão ainda mais descontrolada nos próximos meses. As medidas aqui
recomendadas (queda dos juros e da correção monetária) poderão atenuar esta expansão.
Isto, porém, não é suficiente. É necessário diferenciar a remuneração dos papéis públicos,
em favor das ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional) e preparar o terreno
para o lançamento de títulos de longo prazo, de forma a tornar viável a administração

80 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

ordenada do “giro” da dívida interna, evitando que os juros que sobre eles incidem sejam
remunerados com recursos orçamentários, tal como ocorre atualmente.
O lançamento de papéis públicos de longo prazo deve servir de reforço ao
BNDES, cujo orçamento também deve ser ampliado, para que seja possível oferecer crédito
aos projetos prioritários do programa de recuperação. Da mesma forma, o Banco do Brasil
deve atuar como instrumento decisivo de regulação das condições de crédito geral.

2.4. Política compensatória de emprego

Reconhecendo a gravidade da situação atual de desemprego, recomenda-se a


adoção urgente de uma política compensatória. Para a massa de desemprego de pessoal
não-qualificado deve-se reativar a construção civil, através de obras públicas e construção
habitacional de elevado efeito-emprego. Com relação aos operários desempregados pelo
conjunto metal-mecânico e de bens duráveis, recomenda-se a colocação imediata de
encomendas novas, visando o plano de reajuste estrutural do sistema de transportes
(equipamento ferroviário, caminhões pesados, ônibus, navios, outros equipamentos).
De outro lado, seria recomendável reativar o gasto direto em saúde e educação,
particularmente nas áreas de maior incidência do desemprego, inclusive rurais.
A perspectiva de recuperação ordenada do crescimento tornaria possível propor
a ESTABILIDADE DE EMERGÊNCIA, de forma a conter eventual agravamento da onda de
demissões.

2.5. Política de investimento público

A política do governo com respeito ao investimento público tem sido a de cortar


linearmente as dotações orçamentárias, com o propósito de limitar os dispêndios, dentro
das metas quantitativas, de curto prazo, do orçamento monetário. Este critério é
inteiramente inadequado ao planejamento da inversão pública, que deve ser concebida a
médio e longo prazo. A persistência nesta trajetória certamente trará efeitos danosos para o
setor de bens de capital e para a regularidade do fluxo de financiamento externo oficial, que
é o mais conveniente pelos prazos mais longos e juros baixos.
A recuperação programada do investimento público (administração direta,
autarquias e empresas estatais) é um elemento fundamental da política de retomada do
crescimento. Contudo, esta recuperação deve ser seletiva, baseada numa reprogramação
geral das prioridades, de acordo com as diretrizes de um novo plano de desenvolvimento.
Em primeiro lugar, é necessário desacelerar os projetos resultantes de erros de política
setorial, que representam verdadeiro desperdício de recursos (o caso mais notório é o do
programa nuclear).
Os critérios que devem nortear a recuperação do investimento público são:
1) cálculo criterioso sobre a evolução da demanda, de modo a maximizar a utilização da
capacidade instalada a longo prazo;

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 81


Esperança e Mudança

2) substituição de importações e/ou ampliação da capacidade exportadora. A curto prazo,


estes critérios devem ser conciliados com a necessidade de controlar as importações e
com a urgência de criação de novos empregos.
Neste sentido, a Secretaria de Controle das Empresas Estatais, SEST, deveria
coordenar os planos e a execução do investimento público, abandonando o papel atual de
simples gestão orçamentária de curto prazo. Esta é a única maneira de ter um encadeamento
racional e planejado de projetos e pré-projetos de investimento, que assegure a regularidade
do fluxo de financiamento externo oficial, sem recurso a improvisações prejudiciais.

2.6. Política de oferta a curto prazo

Paralelamente à retomada e à reorientação do crescimento no complexo de bens


de capital — bens duráveis — metal-mecânica, a ser propiciado pela reativação seletiva do
gasto e do investimento público, faz-se necessária uma ativação das condições de oferta de
bens de consumo popular, com vistas a recuperar o crescimento de um amplo conjunto de
subsetores industriais. A demanda de bens de consumo de amplo significado popular deve
crescer com a recuperação do emprego e através de uma política salarial mais favorável.
Os setores de bens de consumo não-duráveis (alimento, vestuário, calçados e
outros bens essenciais) devem receber apoio creditício, acompanhado de um controle atento
de suas margens de rentabilidade, para evitar que o crescimento da demanda se traduza
numa aceleração dos preços. No que se refere aos bens duráveis, recomenda-se os mesmos
critérios gerais, dentro de uma política de diferenciação de produtos, favorecendo os de uso
popular. Os mecanismos de crédito ao consumidor devem ser remanejados, com juros
baixos, de forma a beneficiar os consumidores de baixa renda.
Para assegurar o abastecimento de alimentos nos centros urbanos, com
estabilidade relativa de preços, é urgente que se inicie uma política consistente de formação
de estoques reguladores para produtos agrícolas, combinada com preços mínimos
adequados, crédito suficiente e subsídios diretos de modo a alcançar três objetivos:
a) regularização da oferta;
b) estímulo aos produtores, especialmente aos pequenos;
c) baixo custo da alimentação.

2.7. Política de comércio exterior e balanço de pagamentos (dívida externa)

A adoção de medidas incisivas para enfrentar a situação cronicamente


desequilibrada do nosso balanço de pagamentos deve ser considerada como ponto de
partida para qualquer política de curto prazo que busque criar condições para retomada do
crescimento. As medidas fundamentais para controlar o déficit externo são as seguintes:
1) Adoção de controles diretos seletivos e rigorosos das importações, buscando utilizar a
capacidade produtiva ociosa doméstica, para substituir a importação de certos itens.

82 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

2) Manutenção da política de mini reajustes cambiais para amparar o crescimento das


exportações, de forma mais flexível, compensando-se a retirada parcial dos incentivos
fiscais e a sobrevalorização internacional do dólar. A adoção de uma taxa especial de
câmbio (ou taxa subvencionada de cálculo) para amortização de operações financeiras
em moeda estrangeira permitiria readquirir a flexibilidade atualmente inexistente na
utilização da taxa cambial.
3) Adoção urgente de medidas que iniciem o processo de redução (a médio prazo) do déficit
de serviços propriamente ditos (fretes, seguros, turismo, assistência técnica).
Aliada a esta política de reversão do déficit do balanço de pagamentos é essencial
desvincular os mecanismos de endividamento externo (para reciclar a dívida) das condições
internas de crédito através das medidas já mencionadas. Esta desvinculação implica
também em que o Banco Central assuma a responsabilidade direta pelo giro da dívida,
podendo utilizar como agentes de captação os bancos de investimentos, o BNDES, o Banco
do Brasil e as empresas públicas, para financiar os novos projetos e investimentos
consentâneos com a nova política econômica e com as diretrizes da reforma financeira.
É indispensável, também, dispor de um Plano de Emergência de Racionamento
de Combustíveis para enfrentar a eventualidade de uma asfixia cambial imprevista.
Com base nesta política sólida e firme, com o apoio e a credibilidade da Nação,
advoga-se uma negociação com os nossos credores de modo a conter o processo de
endividamento externo estabelecendo — em bases soberanas e favoráveis — condições
viáveis de reciclagem, a longo prazo, da dívida externa.
É importante assinalar que o prosseguimento da recessão vai implicar no
adiamento ou paralisação dos projetos de investimento público o que deverá dificultar a
obtenção de empréstimos e financiamentos oficiais, que são os mais convenientes pelos seus
prazos mais longos e taxas de juros mais baixas. Além disso, a elaboração de pré-projetos
de investimento para o setor público já vem sendo impedida pela permanência de um
horizonte recessivo. Com isso, a médio prazo não poderemos sequer apresentar novos
projetos capazes de atrair financiamento externo, reduzindo a margem de manobra no que
se refere à captação de recursos. Aumentaria, assim, a dependência com relação às
operações privadas, sobretudo aquelas realizadas pelo sistema bancário doméstico (para
crédito de curto prazo) ao abrigo da Resolução n° 63. Além disso, a continuidade da recessão
certamente reconduzirá o ingresso líquido de capitais de risco, como já vem acontecendo.
O mais grave é que tudo isso vem ocorrendo no contexto de taxas de juros
elevadas, com um racionamento global do crédito, decorrente do encurtamento da estrutura
de fontes de fundos e da fragilização da estrutura de capital dos bancos internacionais, já
pesadamente comprometidos com o refinanciamento dos balanços de pagamento dos países
em desenvolvimento. Por esta razão os bancos internacionais têm reduzido os prazos de
seus empréstimos, cobrando spreads muito elevados, tentando forçar os grandes devedores
a reduzir sua demanda por créditos adicionais. O objetivo é compatibilizar a taxa de
crescimento dos empréstimos aos países em desenvolvimento — que tem sido rápida —
com o crescimento mais lento da capacidade de empréstimo dos bancos.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 83


Esperança e Mudança

Diante destas circunstancias desfavoráveis, os efeitos supostamente favoráveis


da recessão sobre a balança comercial tenderão a ser neutralizados pelas consequências
perversas, de natureza financeira, apontadas acima. A médio prazo, portanto, a insistência
na recessão pode conduzir a um colapso dos mecanismos atuais de captação de
empréstimos externos.
É por desacreditar na eficiência da recessão e por pressentir o agravamento das
condições de financiamento externo nos próximos anos que o PMDB advoga a adoção
urgente de medidas preventivas de controle do déficit de mercadorias e serviços (exclusive
juros) como pré-condição para negociar um novo esquema de financiamento com os
credores. O objetivo é de reduzir e depois estabilizar o crescimento da dívida externa,
impedindo a deterioração de seu perfil de amortização e afastando os atuais
constrangimentos, inaceitáveis, sobre a condução da nossa política econômica.
O PMDB acredita seja possível contornar o problema do déficit de mercadorias
e serviços (exclusive juros) sem recurso à recessão, desde que, como já foi observado, a
retomada do crescimento ocorra de forma ordenada, com credibilidade e apoio social.
É preciso lembrar, finalmente, que a situação de pré-insolvência internacional
tende a se generalizar, envolvendo vários outros países em desenvolvimento, inclusive em
nosso continente. E aqui não podemos omitir o papel negativo desempenhado pela
inconsistente política econômica norte-americana. Sendo assim, a negociação de novas
condições de financiamento externo transcende o entendimento direto com os credores e
passa a envolver as relações entre os Estados Nacionais acerca da reestruturação inadiável
do comércio, das finanças e do sistema monetário internacional.

3. Uma nova estratégia econômica: a reordenação dinâmica do sistema produtivo

Em face das enormes dificuldades que hoje se apresentam, particularmente


aquela derivada do pesado ônus da dívida externa, as autoridades econômicas têm optado
por um ajuste passivo e conformista de nossa economia diante da crise internacional. A
falência da política atual não se expressa apenas na incapacidade de conceber outra saída
de curto prazo que não seja a recessão. Revela-se, também, na incapacidade de projetar uma
estratégia de envergadura, coerente com a importância e o estágio de desenvolvimento de
nosso sistema industrial.
Ao invés de imaginar uma estratégia global, que vise o ajustamento estrutural
de nosso sistema produtivo — diante da crise energética e do estado de letargia da economia
mundial — os responsáveis pela atual política apenas acenam com “prioridades”
mesquinhas para o futuro do País. Chegam alguns a pensar em transformá-lo em exportador
de minérios e de produtos primários, propondo explicitamente, em certas ocasiões, uma
pura e simples regressão de nosso sistema industrial.
Não obstante o absurdo de propostas “regressivas” deste tipo, elas representam
um perigo real para o futuro do País, na medida em que o grave estreitamento do raio de
manobra da atual política econômica nos tem empurrado, na prática, para aquela direção.

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Diretrizes para uma nova política econômica

É por esta razão que o PMDB considera urgente a discussão democrática de uma verdadeira
estratégia econômica, que consulte os interesses sociais e prepare as condições para ajustar,
proteger e desenvolver a competitividade e potencialidades tecnológicas de nosso sistema
produtivo. Além disso, a reordenação dinâmica do sistema produtivo é absolutamente
indispensável para moldar um estilo de crescimento fundado na Justiça Social, ao mesmo
tempo em que se processam os ajustamentos necessários nos padrões de produção, que já
estão sendo (e serão) cada vez mais induzidos pelas grandes mudanças tecnológicas em
curso, nesta etapa de crise internacional.
É necessário, portanto, estabelecer políticas setoriais eficazes, com prioridades
claramente definidas, e que sejam integradas numa visão de conjunto.
Nesta parte, buscaremos, apenas, sugerir diretrizes básicas que deverão guiar as
políticas setoriais e revelar de que maneira estariam globalmente articuladas.

3.1. Diretrizes para uma política industrial

Em primeiro lugar, é preciso chamar a atenção para o fato de que, hoje, o


governo não possui qualquer política industrial. As medidas que afetam o setor não são
tomadas visando o seu ajustamento estrutural, mas apenas para resolver situações de curto
prazo, decorrentes das dificuldades do balanço de pagamentos e do combate à inflação.
Não existem sequer objetivos definidos, por mais vagos que sejam. Diante das
necessidades de uma economia industrial complexa e moderna, como a brasileira,
particularmente na etapa atual de grandes ajustamentos e mudanças tecnológicas, é urgente
a estruturação de uma política industrial, ordenadora das prioridades e rumos de expansão.
O ponto de partida para fixar uma estratégia industrial depende da definição
prévia dos programas de inversão em infraestrutura, sistema de transportes, programas na
área de energia, na área social, dos programas viáveis de complementação da estrutura
industrial e dos necessários para o seu ajustamento às novas mudanças tecnológicas. Enfim,
a estratégia industrial depende do perfil dos investimentos públicos e daqueles por estes
induzidos, que deverão moldar o desenvolvimento do País.
A estes programas de expansão deve-se somar a necessidade de sustentar a
expansão futura da capacidade produtiva de setores de bens de consumo (inclusive de bens
duráveis), especialmente dos de ampla demanda popular, de forma compatível com o
objetivo de se ter distribuição cada vez mais equitativa da renda nacional. Além disso, deve-
se prever a necessidade de inversões derivadas dos ajustamentos de médio prazo da
estrutura produtiva às restrições energéticas.
O conjunto dos investimentos públicos e privados, acima delineados, permitiria
avaliar as demandas sobre o sistema industrial existente, que conta com significativa
margem de capacidade não-utilizada em muitos setores. Esta avaliação informaria planos
consistentes de expansão industrial, especialmente para os setores cujos investimentos são
de maturação a mais longo prazo, como os de certos insumos básicos não-metálicos,
químicos, siderúrgicos, metais não-ferrosos e outros.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 85


Esperança e Mudança

Por outro lado, não é possível estabelecer um plano estratégico para o setor
industrial, sem levar em consideração: a) a evolução previsível das condições do mercado
internacional; b) as condições de financiamento interno de longo prazo; c) as tendências
setoriais de mudança tecnológica e seus impactos sobre as nossas condições de
competitividade; d) as relações com o capital estrangeiro já instalado no País e com os
possíveis novos pretendentes à entrada em nossos mercados.
Quanto a este último aspecto, a orientação nacionalista que deve presidir a
política industrial implica em que as empresas nacionais públicas e privadas sejam
decididamente apoiadas por linhas de crédito em condições tais que as capacitem a
aproveitar as novas oportunidades de investimento, ampliando suas fatias de mercado. A
Reforma Financeira deverá, portanto, oferecer os recursos indispensáveis ao financiamento
de longo prazo para o setor nacional, privado e público. Os vultosos recursos ociosos que
hoje gravitam na circulação financeira, especulativa, devem ser redirecionados para a
acumulação produtiva de capital.
De outro lado, é fundamental desenvolver uma estratégia seletiva e vigorosa de
promoção tecnológica, visando habilitar as empresas nacionais a elevar seus níveis de
competitividade, para que possam enfrentar os competidores estrangeiros e os desafios do
comércio internacional. Nos setores de alta tecnologia, particularmente naqueles
estratégicos para o futuro de nosso parque industrial, deve-se aproveitar todas as brechas e
oportunidades de investimento, através de uma política intransigente de garantia de
mercado, com o objetivo de assegurar o desenvolvimento de empresas nacionais. Para isso,
afigura-se imprescindível o suporte financeiro privilegiado para as atividades de pesquisa
e desenvolvimento tecnológico realizadas por empresas nacionais, públicas e privadas.
Neste sentido, o apoio direto às empresas nacionais de engenharia e tecnologia deve ser
considerado prioritário, utilizando-se as grandes empresas públicas como contratantes
regulares de seus serviços técnicos. Paralelamente, é indispensável realizar esforços
permanentes de prospecção e atualização a respeito das tendências de progresso técnico,
em cada setor, a nível internacional, para que a política industrial esteja efetivamente
articulada a uma política científica e tecnológica eficiente.
Finalmente, a orientação nacionalista requer a adoção de mecanismos de
controle prévio da entrada e/ou das aquisições de estabelecimentos nacionais por empresas
estrangeiras, de modo a impedir as frequentes ameaças de desnacionalização total ou
parcial. A implantação destes mecanismos defensivos é necessária para garantir o aumento
da participação relativa da capacidade nacional de produção, com desenvolvimento técnico
endógeno, especialmente nos setores de maior densidade tecnológica.
O conjunto de medidas acima é essencial para estimular vários setores já
existentes e para viabilizar a internalização de outros novos, cuja peculiaridade de funcionar
como núcleos dinâmicos de progresso tecnológico são fundamentais para as condições de
competitividade do nosso sistema industrial, especialmente para o caso do setor de bens de
capital.
Ademais, é importante lembrar aqui outros pontos qualitativos fundamentais
de orientação para a política industrial:

86 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

a) prioridade para os bens de consumo popular, no contexto de um desenvolvimento


socialmente mais justo;
b) prioridade para utilização de matérias-primas e fontes de energia renováveis e
abundantes, que deve ser assegurada pela criação de mecanismos de financiamento para
dar suporte à substituição de processos e equipamentos inadequados;
c) localização planejada dos investimentos industriais e agroindustriais, visando a
descentralização geográfica da produção e atendendo a critérios rigorosos de controle da
poluição;
d) as pequenas e médias empresas nacionais devem receber apoio especial, através de
simplificação da estrutura burocrático-fiscal e através de políticas de crédito de longo
prazo, associadas à assistência técnica, no sentido de reforçar seus mecanismos de
capitalização e poder de mercado.

3.2. Diretrizes para uma política mineral

A questão mineral é de vital importância para o Brasil, entre outros aspectos,


porque nosso País é o principal detentor de uma série de reservas de recursos minerais
(nióbio, berílio, quartzo) e possui amplas reservas de outros (alumínio, ferro, titânio,
manganês etc.). Infelizmente, porém, a falta de uma verdadeira política mineral, consistente
e nacionalista, tem implicado em que o Brasil seja altamente dependente de importações de
bens minerais, destacando-se aqueles adquiridos sob a forma de metais, manufaturados e
compostos químico-minerais.
Na verdade, o Governo atrelou desastrosamente a atual “política” mineral às
injunções de curto prazo, decorrentes da administração da dívida externa, realizando
concessões ao capital estrangeiro, com consequências danosas aos interesses nacionais.
É desnecessário enfatizar a urgência de um planejamento criterioso, de médio
e longo prazo, para o setor, em virtude da natureza primária, não renovável, das riquezas
minerais. Esta característica implica em que a definição de uma estratégia de
desenvolvimento das atividades de mineração deva ajustar-se às diretrizes de crescimento
industrial, dimensionando-se cuidadosamente o fluxo de demanda interna para o futuro,
em prazos longos, para evitar a depleção imprevidente das nossas reservas. No caso dos
metais não-ferrosos de ampla utilização industrial, é particularmente importante garantir
que os planos de expansão da mineração sejam compatíveis com o suprimento, a longo
prazo, dos projetos viáveis de produção para o mercado interno.
Deste ponto de vista, a implantação de projetos de exportação deve ser
duplamente precedida de projeções criteriosas quanto à demanda interna futura e quanto à
evolução do mercado mundial, e de suas condições de competitividade.
A orientação nacionalista que deve presidir a política mineral deve ter como
premissa fundamental o reconhecimento de que o subsolo do País pertence à Nação e, por
isso, sua exploração deve obedecer às normas e prioridades estabelecidas

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 87


Esperança e Mudança

democraticamente, com vistas a assegurar que as atividades mineradoras se desenvolvam


em benefício da ampla maioria da população brasileira.
Em consequência, uma política mineral nacionalista deve buscar reverter, com
firmeza, a crescente desnacionalização do setor, para evitar que sejam transferidas para o
exterior as decisões relativas à utilização, fluxo de produção e exportação de nossos recursos
minerais. Neste sentido, é necessário reativar imediatamente os projetos básicos de pesquisa
e mapeamento que vinham sendo desenvolvidos pelas empresas estatais, notadamente pela
Companhia Vale do Rio Doce. A paralisação destas atividades dificultou imensamente o
trabalho das pequenas e médias empresas nacionais, em benefício das grandes empresas,
principalmente das multinacionais, que possuem tecnologia e meios avançados de
prospecção.
Para fazer frente ao desafio de estabelecer uma Política Mineral de envergadura,
compatível com os princípios acima expostos, propõem-se as seguintes diretrizes gerais:
a) Limitar o acesso aos recursos naturais e minerais do subsolo exclusivamente a empresas
nacionais;
b) Favorecer a criação de infraestrutura e meios junto aos distritos minerais para que as
matérias-primas possam ser, sempre que possível, industrializadas no local. Esta medida
tem em vista, entre outros aspectos, garantir que o benefício das riquezas geradas será
revertido para a população da região;
c) Deve ser objetivo prioritário da política de exportação assegurar o maior grau possível
de processamento industrial dos recursos mínero-metalúrgicos. É importante ressaltar
que o preço médio de cada tonelada importada de produtos processados, de origem
mineral, pelo Brasil, é nada mais nada menos que 7 vezes maior que o valor médio da
tonelada de nossas exportações minerais;
d) Criar um organismo central de planejamento da política mineral, com o objetivo de
coordenar a atuação das agências já existentes, evitando-se a nuclearização dos projetos
e dos recursos existentes. Este organismo deve, também, incumbir-se de centralizar e
difundir o conhecimento geológico do País, através da urgente elaboração de cartografia
básica atualizada, referente à nossa cobertura geológica;
e) Incentivar investimentos continuados em prospecção e metalogênese, visando garantir a
geração de novas jazidas;
f) Fomentar a pesquisa e desenvolvimento de tecnologias adequadas às peculiaridades dos
minerais brasileiros e criar mecanismo eficiente de transferência interna destas
tecnologias;
g) Promover o aprimoramento do ensino e pesquisa das ciências geológicas básicas,
investindo-se na capacitação de pessoal científico e técnico como no desenvolvimento de
centros de pesquisa.

88 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

PROJETO CARAJÁS

Em virtude da importância singular do Projeto Carajás, torna-se imperativo


referir-se especialmente a ele, uma vez que a política posta em prática pelo governo é a
negação de todos os princípios acima mencionados, especialmente no caso do Projeto
“Grande Carajás”.
Em primeiro lugar é necessário reconhecer que o aproveitamento das riquezas
mínero-metalúrgicas da Serra dos Carajás, assim como a ocupação econômica da Amazônia
Oriental, é de tal magnitude que a sua realização será capaz de transformar toda a economia
da Região Norte e, além disso, contribuir de forma importante para enfrentar a situação
difícil do nosso balanço de pagamentos.
Não podemos admitir, porém, que nossas reservas minerais venham a ser
dilapidadas e que recursos públicos sejam dissipados para subsidiar grupos estrangeiros
sob a pressão das condições sufocantes do endividamento externo, como vem ocorrendo
neste caso.
O Projeto Carajás deve incorporar-se, de forma compatível, à estratégia
econômica global do País, de modo a tornar-se um polo permanente e germinativo, apto a
gerar uma indústria não dependente da importação de insumos minerais, contribuindo para
auxiliar o processo de ajustamento estrutural de nosso sistema produtivo.
Para alcançar tais objetivos é fundamental assegurar um amplo debate
democrático dos procedimentos econômicos a serem adotados no processo de exploração e
ocupação social do espaço geográfico da Amazônia Oriental, de modo a que as instituições
da vida política (Congresso Nacional, associações profissionais representativas da
comunidade técnica, associações comunitárias das áreas atingidas, partidos políticos e
outros canais de manifestação da opinião pública nacional) possam exprimir seus pontos de
vista e produzir um consenso, base para a formulação de um programa alternativo.
Para isso, será indispensável articular e envolver a comunidade científica
nacional na concepção do programa alternativo para a exploração de Carajás, de forma
compatível com as diretrizes para a Política Científica e Tecnológicas propostas mais
adiante. Sem esta participação ativa da comunidade científica não será possível enfrentar os
desafios que se apresentam para a implantação das atividades minero-metalúrgicas e de
infraestrutura de apoio, em bases eficientes, assim como para enfrentar o grande desafio da
prevenção dos impactos negativos sobre o meio ambiente. Além disso, é da maior
importância que as atividades agropecuárias sejam planejadas de maneira compatível com
o restante do programa, assegurando às populações locais a possibilidade de absorver os
benefícios a serem por ela gerados. Deste ponto de vista, é recomendável a adoção de
critérios que propiciem a criação do maior número possível de empregos para a força de
trabalho regional.
O Projeto Carajás — em toda sua extensão — deve enquadrar-se nas diretrizes
gerais (a), (b) e (c) anteriormente mencionadas, quais sejam: a de acesso exclusivo para
empresas nacionais; maximização do processamento metalúrgico das matérias-primas, na

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 89


Esperança e Mudança

região; redefinição criteriosa da política de exportação, visando um nível mais elevado de


valor agregado nas vendas para o exterior. Além disso, devem ser revistos os acordos e
contratos com o capital estrangeiro, evitando-se o subsídio injustificado através do
fornecimento de energia elétrica a preços irrisórios. Será necessário, ademais, realizar uma
avaliação cuidadosa das perspectivas do mercado mundial e das tendências à substituição
de metais por outros materiais, para evitar o desperdício de recursos a serem imobilizados.
Finalmente, deve-se manter a continuidade das atividades de pesquisa e prospecção mineral
no Sul do Pará.

3.3. Diretrizes para uma política energética e de transportes

A atual política energética é descoordenada e inconsciente, sem prioridades


nítidas e sem articulação com outros objetivos de política econômica e social. Centrada em
soluções de tipo estritamente setorial, a política atual não considera os impactos sociais,
ecológicos e econômicos de suas medidas, sendo ainda tomadas sem qualquer preocupação
quanto aos seus impactos redistributivos desfavoráveis que concentram cada vez mais a
renda nacional.
Uma política eficiente de energia terá que considerar globalmente as soluções
alternativas, evitando a descoordenação das várias atividades do setor. Ao mesmo tempo,
não é mais possível tolerar a improvisação, resultante da falta de planejamento. Por isso,
frequentemente ocorrem “desvios" que precisam ser corrigidos por “soluções de mercado”
— com elevações bruscas e inflacionárias dos preços (como no caso dos derivados de
petróleo).
A questão energética brasileira tem um caráter especifico, que pode ser
resumido da seguinte maneira: o País possui um vasto potencial hidroenergético, associado
a um não menos importante potencial de energia renovável de biomassas. Por outro lado,
defronta-se com significativa escassez de combustíveis líquidos, notadamente dos
derivados de petróleo. Esta escassez é agravada pela estrutura atual do sistema de
transporte e pelas técnicas de utilização industrial dos derivados, implicando em
dificuldades de ordem cambial, relacionadas com a dependência de importações de grandes
quantidades de petróleo.
Frente à escassez presumível de petróleo surge a necessidade de buscar
substitutos para esta fonte energética. Esta busca deve ter um caráter geral, diversificada e
não-excludente, em virtude das incertezas quanto ao futuro — ou seja, quanto à viabilidade
de se continuar utilizando combustíveis líquidos derivados de petróleo, para variados usos,
da maneira intensiva como é feita presentemente. Além disso, as pesquisas de novas fontes
poderão tornar alguns usos atuais inesperadamente obsoletos.
A necessidade de implantar uma política compatível com as prioridades
econômicas e sociais nacionais, não pode ser postergada. A prioridade ao setor energético
deve ser ajustada às diretrizes gerais do desenvolvimento social e da estratégia econômica,
de modo convergente com os interesses majoritários da população.

90 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

As diretrizes propostas ao debate sobre a política energética são as seguintes:


a) Quanto aos combustíveis líquidos:
1. retomada do monopólio estatal do petróleo (fim dos contratos de risco), com aumento
significativo dos investimentos da PETROBRÁS em prospecção para assegurar o
incremento continuado da participação nacional no suprimento de petróleo;
2. reestruturação da composição do refino para ajustá-lo aos desequilíbrios atuais e às
mudanças futuras a serem induzidas na distribuição da demanda;
3. aumento considerável da participação nacional na distribuição de derivados do petróleo;
4. substituição dos diversos programas setoriais (PROALCOOL, PROOLEO etc.) por um
programa integrado de Biomassas, visando:
i) incrementar gradualmente a substituição parcial de combustíveis líquidos derivados de
petróleo por outros derivados de biomassas;
ii) adoção de um planejamento global das atividades do Programa Integrado, com a correção
urgente das irracionalidades atuais (notadamente do PROALCOOL), visando:
— garantir um zoneamento econômico-ecológico como base do Programa, assegurando o
desenvolvimento da agricultura de alimentos, em segundo lugar, a maximização do
rendimento agrícola entre os diversos tipos de energo-culturas;
— proteção da terra contra usos inadequados e contra o desgaste decorrente da
monocultura;
— incentivo ao maior grau possível de processamento agroindustrial, descentralizado
regionalmente de modo a minimizar os custos de produção e transporte, com o apoio de
infraestrutura de armazenamento;
— que o Programa busque, paralelamente, a criação do maior número de empregos e o
aumento da renda das populações rurais.
b) Quanto à energia elétrica:
1. prosseguimento planejado das inversões em hidroeletricidade, com o desenvolvimento
de programas regionais e descentralizados, buscando aproveitar plenamente o potencial
existente e visando substituir o pequeno resíduo de geração realizada em usinas que
utilizam combustível à base de petróleo;
2. desenvolvimento de um programa regionalizado para o uso do carvão, de florestas
energéticas e de detritos orgânicos para geração localizada de termoeletricidade ou para
geração de calor em atividades agroindustriais;
3. incentivo às pesquisas no setor, com ênfase na transmissão eficiente a longas distâncias e
nos processos termonucleares. Merecem também apoio as pesquisas sobre fontes não-
convencionais (energia solar, eólica etc.);
4. desaceleração e reformulação completa do atual programa nuclear, que deve ser
submetido ao debate democrático, com a participação específica da comunidade

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 91


Esperança e Mudança

científica. Os investimentos considerados irreversíveis, do complexo de Angra dos Reis,


devem ser completados por empresas nacionais de engenharia e tecnologia.
c) Quanto aos aspectos sociais:
1. diferenciação de tarifas no sentido de favorecer as classes de baixa renda, particularmente
nos casos do consumo familiar de eletricidade e do gás liquefeito;
2. regionalização da política de energia, favorecendo as regiões mais atrasadas nos critérios
de repartição dos investimentos, geração de empregos, com incentivo a projetos de
elevado interesse social.
d) Quanto aos ajustamentos na estrutura da demanda:
1. É urgente a adoção de um amplo programa de economia de combustíveis líquidos
derivados de petróleo e de substituição por outras fontes alternativas. Este programa
deve englobar os seguintes aspectos:
i) ajustamento no uso industrial: através da substituição econômica de equipamentos por
outros que usem fontes de energia não derivadas de petróleo, a ser apoiada por uma
política específica de crédito de longo prazo; planejamento da localização industrial,
especialmente dos polos intensivos em energia, visando situá-los próximos a fontes
geradoras;
ii) ajustamento no uso rural; estimular a produção de energia na agricultura, a partir da
utilização de detritos orgânicos (uso do biodigestor) e de florestas energéticas como
forma de substituição ao diesel usado como fonte primária para geração de energia
elétrica (em pequena escala e residualmente) no interior do País;
iii) ajustamentos do rendimento do consumo de combustíveis da frota automotriz: impor
prazos para que a indústria automobilística melhore o desempenho dos motores a álcool
e a gasolina; incremento significativo, em médio prazo, da participação dos veículos a
álcool, de forma compatível com a expansão da oferta; proibição da produção de veículos
de transporte (de carga leve ou de passeio) movidos a diesel.
É urgente, ainda, adotar uma verdadeira POLÍTICA DE TRANSPORTES que
promova o ajustamento da estrutura modal, desenvolvendo a navegação de cabotagem
(fluvial e marítima) e o transporte ferroviário para as alternativas adequadas de longa
distância. Paralelamente, é importante incrementar o rendimento da frota rodoviária, com
o aumento mais acelerado da participação dos caminhões pesados no movimento de carga,
com fator de ocupação médio, mais elevado.
Há muito o que fazer na área do transporte coletivo, especialmente através da
ampla utilização do ônibus elétrico, a alternativa mais adequada às nossas disponibilidades
energéticas.
A política de investimentos em transportes deve basear-se na reavaliação do
sistema atual, procurando integrar a malha viária (ferroviária e rodoviária) da forma mais
racional, buscando explorar ao máximo as potencialidades da navegação, considerando,
cuidadosamente, as projeções dos fluxos de demanda para carga e passageiros,

92 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

planejamento paralelamente a expansão da infraestrutura de apoio, (portos, armazéns,


estações etc.).

3.4. Diretrizes para desenvolvimento científico e tecnológico

Profundas transformações tecnológicas estão em curso no contexto da crise da


economia mundial. O conjunto destas transformações tende a redefinir, num futuro não
muito remoto, a estrutura dos processos produtivos e sua matriz energética, fazendo
avançar dramaticamente o grau de automação dos processos de trabalho. Este fenômeno
deve afetar profundamente o emprego, a composição ocupacional e as formas de
convivência social.
O conhecimento da profundidade destas transformações recomenda uma
política científica e tecnológica de envergadura que, ao mesmo tempo, habilite e proteja a
economia nacional para enfrentar as mudanças previsíveis.
Preliminarmente, é necessário que se avalie a natureza das transformações
técnicas, em cada área, para prognosticar o impacto sobre o parque produtivo existente,
sobre a capacidade competitiva e a concentração industrial. O exemplo mais dramático é o
da introdução dos processos de controle cibernético e sua aplicação na “robotização” maciça
das linhas de montagem e na automação das máquinas operatrizes. Já estão sendo afetadas
intensamente as indústrias metal-mecânica, automotriz, gráfica, de instrumento de precisão,
máquinas seriadas e, sobretudo, a indústria eletroeletrônica.
Os avanços da biogenética e das ciências biológicas em geral poderão
revolucionar a indústria química (sobretudo a orgânica), a agronomia e a zootécnica, bem
como a indústria de alimentos. A utilização do “laser” poderá trazer significativos
progressos no processamento de metais e em seus requerimentos e balanço energético.
Diante do vulto das transformações em curso é necessária uma política seletiva
de investimentos e de regulação tecnológica.
Esta política vincular-se-ia às prioridades do plano de desenvolvimento e
deveria estabelecer critério e áreas de concentração do esforço nacional de produção
tecnológica, regulando estritamente a importação de tecnologia. De outro lado, as grandes
empresas (nacionais e estrangeiras) e, especialmente as empresas públicas, devem ser
obrigadas a privilegiar, nas suas encomendas e projetos, a capacidade nacional de pesquisa
e desenvolvimento (empresas nacionais de engenharia e tecnologia, institutos de pesquisa
e universidades).
É fundamental fortalecer a pesquisa básica na Universidade, com a participação
da comunidade científica nas decisões e formulação de prioridades. É fundamental,
também, estabelecer programas específicos para dar resposta a problemas concretos que a
economia nacional enfrenta. Deve ser prioritário o desenvolvimento de processos que
viabilizam a aplicação econômica de matérias-primas renováveis e abundantes no território
nacional.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 93


Esperança e Mudança

Diante da importância crescente das técnicas de informática e da utilização de


computadores como base para a automação industrial é crucial estabelecer uma política
nacional de informática, ouvindo todos os interesses sociais diretamente envolvidos. É
necessário realizar um esforço concentrado de atualização e desenvolvimento da
capacidade nacional neste setor, assegurando mercado às empresas nacionais e condições
para o nosso desenvolvimento tecnológico, com a formação de uma massa crítica de
cientistas e técnicos.
Esse esforço de acompanhar a fronteira da tecnologia moderna não diminui a
importância de criar, absorver e adaptar as tecnologias brandas que requerem pouco capital.
Um outro ponto importante é o desenvolvimento, sob controle social, da
tecnologia de comunicação, educação e cultura, e de seu uso.
Finalmente, a política tecnológica deve orientar-se para a desconcentração das
unidades de pesquisas, de preferência em coordenação com as universidades regionais.

3.5. Diretrizes para a política agrícola e reforma agrária

A agricultura é uma atividade básica na formação nacional e não apenas no


sistema produtivo. Uma política agrícola deve assegurar ocupação produtiva, renda e
condições de vida digna à população rural. Dessa forma, deve ser eficaz para diminuir o
acelerado êxodo rural que hoje ocorre pelas condições de insegurança e desigualdade, e de
que resulta um duplo agravamento da crise urbana, pela falta de emprego e pela redução
de oferta de alimentos. Deve, igualmente, ser um fator de libertação da necessidade e da
dependência econômica e política.
Ao propor uma nova política agrícola e uma reforma agrária, espera-se um
amplo debate nacional em torno delas. É imperioso que a Nação se conscientize de que a
mudança do “modelo” agrícola, hoje uma necessidade econômica e uma exigência social, e
antes de tudo uma decisão política.
Política agrícola
São as seguintes as diretrizes principais propostas para uma nova política:
a) Garantia do abastecimento alimentar para o povo
Uma política agrícola democrática deve prioritária e fundamentalmente garantir
a produção dos alimentos básicos para a população, em quantidades suficientes e a baixos
preços, tomando as medidas de política econômica necessárias para uma justa, estável e
estimuladora remuneração do produto.
A questão fundamental da compatibilização entre a garantia de remuneração
aos produtores e o poder aquisitivo das massas consumidoras, enquanto mais empregos e
melhores salários não são atingidos, deve orientar uma política realista e criteriosa de
subsídios. Até o momento, os subsídios têm sido utilizados de forma elitista e
concentradora da renda, viabilizando a expansão de certos produtos, com reflexos apenas
indiretos e de baixo impacto sobre a produtividade e preços dos produtos agrícolas.

94 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

Cabe reformular, profundamente, esta política. É absolutamente necessário


implantar uma forma democrática de controle sobre o destino do subsídio, garantindo que
os recursos cheguem aos pequenos produtores em volumes criteriosamente calibrados.
O planejamento e zoneamento das culturas de exportação e culturas energéticas
deve ser realizado de maneira a não comprometer o abastecimento interno e a qualidade do
meio ambiente. Neste sentido, o PROALCOOL, assim como todo o programa energético de
biomassas, deve ser reformulado, impedindo a invasão pelas culturas energéticas de áreas
de cultivo de alimentos básicos. O programa de abastecimento alimentar deve ser
regionalizado.
b) Outras atividades produtivas
Também deve ser racionalmente incentivada a produção de matérias-primas, de
substitutivos energéticos e de exportações, estas em níveis crescentes de processamento,
garantindo maior renda e mais empregos internos. Uma política agrícola conjugada à
reforma agrária que estimule o melhor uso dos recursos do solo, água, infraestrutura e de
insumos industriais já produzidos no País, pode eficientemente conciliar o abundante
abastecimento alimentar com esses outros objetivos, inclusive através de sistemas
produtivos mistos.
O zoneamento deve orientar, em função dos produtos principais, o
aproveitamento ótimo dos recursos em bases nacional e regional.
c) Comercialização
A política de comercialização deve ser reformulada para viabilizar:
1. difusão da rede de armazenagem desde a prioridade agrícola até o centro de consumo. É
fundamental paralisar e reverter o programa de privatização da rede de CEASAs
(Centrais de Abastecimento), visando integrá-las a uma política de estocagem e
abastecimento popular;
2. melhoria do sistema de transportes, considerando a questão do custo energético;
3. formação de estoques reguladores;
4. desenvolvimento da descentralização dos centros de comercialização, para assegurar o
abastecimento direto das comunidades e evitar o “passeio” de alimentos, sempre oneroso
e injustificável;
5. estimular os sistemas diretos de compra e venda e as organizações necessárias para isso,
com redução de custos, para beneficiar o produtor e o consumidor final;
6. incentivar a organização dos pequenos varejistas, para reduzir seus custos e possibilitar
as vendas em níveis mais acessíveis à população;
7. organização dos produtores, inclusive para a obtenção de insumos e serviços de uso
comum, com o apoio técnico e financeiro do Estado.
Paralelamente ao acionamento da política de preços mínimos — que, se bem
aplicada pode ser um instrumento democrático e eficaz — é necessário que o Estado

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 95


Esperança e Mudança

desenvolva uma efetiva política de estoques reguladores, de tal forma que seja possível
sustentar a renda dos produtores, evitando bruscas variações de preços devidas a manobras
especulativas, problemas climáticos ou a oscilação no mercado internacional que
desorganizam a oferta.
d) Crédito e seguro agrícola
O crédito rural deve ser encarado como instrumento de potencialização da
produção, na medida em que atue como uma alavanca do processo de transformação
agrícola e de suprimento das deficiências de capital dos produtores. Deve deixar de ser um
instrumento de poder, de especulação, de corrupção e de concentração de renda.
O crédito rural não pode ser encarado sob a ótica restrita do equilíbrio do
orçamento monetário, devendo se transformar em meio fundamental de indução do uso de
tecnologia adequada, da melhor organização da produção, visando ao incremento da
produtividade.
Deverão ser adotadas fórmulas que evitem que os pequenos agricultores sejam
preteridos pela deficiência da garantia.
Para que seja viável este elenco de medidas, propõe-se que o Banco do Brasil
assuma mais amplamente o seu papel no crédito rural, como agência do governo,
desdobrando seus programas de apoio e mecanismos de controle para evitar os desvios na
aplicação e eliminar as tendências de privatização do crédito. O Banco do Brasil deve apoiar
firmemente às organizações de produtores, favorecendo em especial os grupos de pequenos
produtores organizados.
O seguro rural deve passar a ser um instrumento efetivo de estabilidade da
renda dos produtores rurais, de maneira que o ressarcimento dos eventuais prejuízos
ocasionados por fatores aleatórios, não só atinjam o valor do débito, como também deem
cobertura mais ampla aos custos e à remuneração do trabalho.
e) Pesquisa, ensino, extensão
A adoção de uma política de desenvolvimento tecnológico com educação e
assistência técnica adequada, que respeite e renove o meio ambiente, é fundamentai. Esta
política deve buscar:
I) Técnicas mais adequadas às diversas regiões, dentro da preocupação de:
1. utilizar técnicas inovadoras e competitivas, que minimizem o desgaste do solo e tenham
baixo consumo energético, especialmente de petróleo, substituindo parte dos adubos
químicos e agrotóxicos e reciclando matérias disponíveis no próprio ecossistema;
2. utilização de técnicas que absorvam a força de trabalho disponível, de forma
economicamente viável;
3. pesquisa orientada não somente para a grande produção, mas, também, para os produtos
tradicionais de pequenas lavouras, para a definição de possibilidades nas várias zonas
ecológicas e para sistemas de cultivo que viabilizem a produção do pequeno agricultor.

96 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

II) Trabalho de extensão com o produtor e não para o produtor, de modo a mobilizar seu
potencial humano e material, dando ênfase à ação associativa.
III) Expansão e melhoria do ensino de ciências e técnicas agrícolas, enfatizando a orientação
mais integrada à realidade rural.

Política agrária
a) Organização dos produtores
A organização dos produtores é um objetivo essencial, tanto para fins de
produção e comercialização, quanto para a defesa de interesses comuns. Deve ser, portanto,
garantida a organização dos produtores e trabalhadores rurais e a livre defesa de seus
direitos. É essencial desenvolver as cooperativas de produtores, através da integração
produção — consumo — crédito, e os sindicatos de trabalhadores, bem como novas formas
de organização que a criatividade popular propuser. Essas organizações de trabalhadores
devem abranger tanto os assalariados permanentes e os parceiros, como os trabalhadores
temporários.
O Estado deve apoiar tais organizações e a luta democrática para suprir suas
deficiências, particularmente na defesa dos trabalhadores carentes de garantias, de
estabilidade e de remuneração adequada.
É fundamental estimular a formação e consolidação da produção cooperativada,
para que os produtores rurais possam se relacionar de forma não subordinada aos grandes
oligopólios que comercializam os insumos e os produtos agrícolas. O Estado deve apoiar as
cooperativas na implantação de agroindústrias de porte adequado a dimensão da produção
dos respectivos cooperados, ampliando-se assim o valor agregado e o controle sobre a
produção.
As entidades financeiras do governo, além do sistema educacional e dos serviços
de apoio agrícola direto, também devem dar prioridade especial às organizações dos
produtores e à utilização destas como instrumento de difusão e democratização na
assistência financeira.
Outras formas de organização associativista dos produtores tais como a
Cooperativa Integrada de Reforma Agrária, Propriedades Condominais, Sociedade por
Cotas de Produção, Propriedades Coletivas, deverão ter sua implantação incentivada.
Simultaneamente, deverá ser alterada a legislação cooperativista, de forma a atender os
interesses da maioria dos cooperados, particularmente no que tange à indiferenciação dos
sócios por tamanho de propriedade.
A participação social na condução da política agrícola requer a criação ou
reativação de conselhos consultivos, junto aos órgãos de caráter nacional que têm poder de
decisão sobre a política econômica que envolve a agricultura, com a efetiva participação dos
trabalhadores rurais, dos produtores e de outros segmentos da população envolvida,
destacando-se a entidade responsável pela reforma agrária.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 97


Esperança e Mudança

Todos estes elementos de política agrária pressupõem o investimento público


na melhoria e racionalização dos transportes e da armazenagem; na conservação do solo e
em obras de irrigação e drenagem; na eletrificação rural, na produção e comercialização de
insumos estratégicos e prioridade nos gastos públicos sociais, inclusive saúde e educação,
para apoio à agricultura e às populações rurais.
b) Reforma agrária
Não bastam as diretrizes da política agrícola. É fundamental implementar uma
reforma agrária que assegure o uso social da água e dos recursos do solo e a reordenação da
estrutura rural.
É necessário e urgente garantir o acesso à terra a quem nela trabalhe, utilizando
o instrumento de desapropriação da terra por interesse social e implantando sistemas
adequados às características regionais e aos objetivos de criar uma agricultura eficiente, com
produtividade crescente e uma população rural próspera e livre. Tudo isso requer também
a execução conjugada das diretrizes de política agrícola, já apontadas.
O agravamento dos conflitos pela posse da terra, que vem levando à perseguição
e até ao assassinato de trabalhadores rurais, denuncia a situação insustentável vivida em
grande parte da área rural brasileira.
O Estatuto da Terra, embora tenha sido uma lei promulgada — pós-1964 —,
jamais foi levado à prática no que tange à reforma agrária e às aspirações dos trabalhadores
rurais e dos pequenos proprietários, meeiros e posseiros. De outro lado, as suas disposições
relativas à modernização da agricultura foram aplicadas de modo distorcido e parcial. Os
interesses ligados aos grandes proprietários e atacadistas, protegidos pelo regime
repressivo, derrogaram, na prática, o Estatuto.
O espírito desse instrumento é o da função social e econômica da propriedade
da terra. Entretanto, sua não aplicação agravou o problema agrário-fundiário. Nas próprias
terras da União e dos Estados expandiu-se o latifúndio, até com o apoio de financiamentos
oficiais resultando, inclusive, em imensos territórios sob domínio estrangeiro. Isto tem
levado os pequenos lavradores e os trabalhadores rurais a acirrarem a luta pela reforma
agrária imediata e ampla.
O Estatuto da Terra, se aplicado consequentemente, poderá encaminhar solução
progressiva dos principais problemas, entre os quais:
a) êxodo rural desenfreado e a consequente marginalidade social;
b) sucessivos conflitos pela posse e uso da terra;
c) apropriação especulativa da terra como reserva de valor, impedindo o acesso a ela de
quem pode produzir.
Simultaneamente, um conjunto de mudanças é necessário para implantar uma
verdadeira política de reforma agrária e a renovação da estrutura rural. O simples
abrandamento das condições de aplicação do usucapião, como fez recentemente o governo,

98 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

é insuficiente e demagógico se não for acompanhado destas mudanças e de novas políticas,


conforme as diretrizes aqui propostas.
A democratização da estrutura rural deve apoiar-se, entre outras, nas seguintes
transformações institucionais na área rural:
a) defesa dos parceiros e arrendatários que representam 20% da mão de obra permanente
da agricultura brasileira, assegurando-lhes o direito de acesso à propriedade;
b) adoção de uma verdadeira reforma fundiária, ampla e rápida, generalizando o acesso à
terra, por parte dos produtores sem-terra ou com pouca terra, assim como legalizando a
situação dos verdadeiros posseiros;
c) extensão e rigorosa aplicação da legislação trabalhista no campo;
d) reforma tributária, transformando o Imposto Territorial Rural, tornando-o efetivo e
progressivo, de modo a penalizar firmemente a especulação e retenção de terras ociosas.
Para isso, o ITR deve ser diferenciado por região, tamanhos de propriedade, tempo de
inatividade da terra e outros critérios anti-especulativos.
Há que se considerar ainda que o tratamento fiscal dos produtos gerados pela
agricultura deve ser equivalente aos produtos industriais. O ICM pago pelos produtores
agrícolas não isentados deve sofrer a dedução do que foi pago através dos insumos
utilizados;
Por fim, é fundamental acabar com a reforma predatória de ocupação das
fronteiras agrícolas e coibir a expulsão dos posseiros que as desbravaram, bem como evitar
as recriações de sistemas de propriedade altamente concentrada e de relações de exploração
do trabalho, análogas às vigentes nas regiões de ocupação antiga.

4. Diretrizes para o financiamento da nova etapa de expansão

Não é necessário alongar a exposição do estado de crise em que se encontra todo


o sistema de financiamento público e privado. Este estado quase caótico é um reflexo
eloquente da gravidade da situação de desgoverno a que chegamos. Absurdos como o de
chamado “orçamento monetário”, que incorpora alguma das mais importantes despesas
governamentais, que deveriam estar sob o escrutínio do Congresso Nacional, fazem hoje
parte da “normalidade” cotidiana. Outros absurdos, como o chamado “orçamento das
empresas estatais”, que prima pela confusão, misturando categorias fiscais com outras
categorias operacionais próprias do funcionamento de empresas, dão margem a
interpretações equivocadas e descabidas a respeito da atuação das empresas do governo.
Este último aspecto não deixa de ser útil para revelar o estado geral de
desorganização administrativa, que espelha o processo degenerativo de “privatização” do
setor público, resultante da transformação de inúmeros departamentos e setores da
administração direta em empresas “públicas” — com a justificativa superficial de “agilizar”
procedimentos e pagar salários elevados. Além disso, o manejo discricionário e
supostamente “flexível” dos recursos públicos, pela via do “orçamento monetário”, revela

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 99


Esperança e Mudança

como um Estado autoritário pode ser extremamente vulnerável às pressões dos grandes
interesses privados, exatamente pela ausência de qualquer forma de controle público.
Diante deste estado de coisas, propõe-se uma urgente reorganização da
sistemática orçamentária, com inclusão de todos os gastos públicos num orçamento fiscal
abrangente, sob a fiscalização do Congresso Nacional. Mais ainda, é essencial reverter a
“privatização” do Estado, com uma Reforma Administrativa que recoloque nos seus
devidos lugares uma grande parte dos organismos e funções que se elidiram da
administração direta, sem que haja qualquer perda de flexibilidade e eficiência,
restringindo-se o status de empresa pública, autarquia e fundação aos casos estritamente
justificados pela natureza intrínseca de suas atividades.
A verdadeira solução para esta situação desvirtuada e desequilibrada em que se
encontra todo o financiamento público não reside simplesmente na “unificação” dos
orçamentos o que, sem reformas de profundidade, apenas significará a soma de ficções
contábeis, persistindo o enfeudamento autoritário do controle dos recursos públicos.
Tampouco poder-se-á “equilibrar” as contas governamentais através de uma redução
drástica dos gastos — pois isto será contraproducente em função do seu desastroso efeito
recessivo.
A situação atual de desagregação do sistema de financiamento público requer,
sem sombra de dúvida, a execução de uma ampla Reforma Tributária, com vistas a
reaparelhar o Estado, financiando seus gastos de maneira não-inflacionária, tecnicamente
eficiente e socialmente justa.
Sem a Reforma Tributária de profundidade, que se preocupe em instituir a
progressividade fiscal em todos os níveis e que, simultaneamente, aporte recursos
adicionais para a sustentação dos gastos e inversões urgentes na área social, não será
possível realizar o objetivo de dotar a sociedade brasileira de serviços públicos essenciais,
em escala compatível com um mínimo de dignidade humana, no que se refere a saúde,
educação, habitação, saneamento, transportes coletivos, etc.
Mas, além da Reforma Tributária, coloca-se como tarefa imprescindível a
realização de uma Reforma Financeira. O funcionamento atual do sistema financeiro,
apoiado num mercado de curto prazo de títulos públicos, sem qualquer grau de risco,
representa uma verdadeira institucionalização da atividade especulativa, remunerada pelo
Tesouro Nacional. Como se não bastasse, o sistema atual redundou em séria
disfuncionalidade quanto ao manejo da política monetária, posto que o enorme volume de
giro de curto prazo dos papéis da dívida, para o seu simples refinanciamento, implica em
pressões altistas permanentes sobre a taxa de juros. Em consequência, a circulação financeira
hipertrofia-se, dificulta a capitalização das empresas, afasta-se de seu papel precípuo de
aportar recursos à acumulação produtiva de capital.
As diretrizes para uma Reforma Financeira devem, portanto, buscar estabelecer
formas viáveis de contribuir para o financiamento de longo prazo do setor empresarial,
particularmente, das empresas nacionais. Além disso, é certamente urgente recuperar o
papel histórico do PNDES enquanto agente financeiro estratégico, suplementando lacunas

100 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

e garantindo a execução de determinados empreendimentos de longa maturação,


fundamentais para o processo de reordenação de nosso sistema produtivo. De outro lado,
deve-se estimular o setor bancário privado a assumir o papel financeiro, strictu sensu,
enquanto “bancador” de inversões empresariais, dentro das normas usuais de
responsabilidade passiva — isto é, dentro da plena vigência do princípio do risco.
É dentro deste marco que devem ser entendidas as propostas que se seguem,
relativas à Reforma Tributária e à Reforma Financeira. Reformas de caráter instrumental,
porém não menos urgentes e essenciais, para que seja possível financiar a nova etapa de
expansão econômica de forma coerente com o desejo de avançar na democratização
substantiva da vida social.

4.1. Diretrizes para a reforma financeira

Um requisito fundamental para uma nova política de desenvolvimento é a


reestruturação em profundidade do sistema financeiro nacional, conjugada ao controle do
processo de endividamento externo. Não é admissível que a dívida pública interna continue
a ser operada a curtíssimo prazo, com papéis de liquidez imediata e rentabilidade
totalmente garantida pelo Banco Central. O recente crescimento desenfreado da dívida
interna certamente projeta para o futuro graves dificuldades para o manejo da política
monetário-creditícia, a não ser que medidas corretivas sejam tomadas a curto prazo. Não é,
também, admissível que a função crucial de suprir financiamento de longo prazo para o
sistema empresarial público e privado continue, em grande medida, a ser efetuada pelos
bancos internacionais. Para isso é fundamental cortar o vínculo indesejável entre a dívida
externa e a dívida pública e privada, através de novas medidas relativas ao endividamento
externo.
O primeiro objetivo da reforma financeira é criar mecanismos internos de
financiamento de longo prazo, com a materialização de instrumentos de dívida e
intermediação financeira que os viabilizem. Atualmente a única fonte interna de
financiamento de longo prazo e o BNDES, cujas principais fontes de recursos são de
natureza fiscal ou parafiscal (poupança compulsória). O fracasso dos bancos de
investimentos privados em ofertar crédito de longo prazo decorre, em boa medida, das
dificuldades para colocar títulos de longa maturação num sistema financeiro que privilegia
as aplicações de curto prazo, mergulhado numa economia cronicamente inflacionária. A isto
deve ser adicionada à aversão que o capital bancário tem demonstrado aos
empreendimentos de risco, preferindo a segurança de um comportamento cartorial.
Nas condições desfavoráveis acima descritas não se pode realisticamente pensar
no desenvolvimento da intermediação financeira sem que se utilize as instituições e
instrumentos já existentes. Não se pode dispensar a larga experiência do BNDES nem seria
sensato abrir mão dos fundos de poupança compulsória. Por outro lado, os Bancos de
Investimentos devem ser estimulados a assumir suas funções precípuas.
A materialização deste projeto supõe dois tipos de providência: uma de
natureza institucional e outra de natureza estritamente financeira. No âmbito institucional

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 101


Esperança e Mudança

é necessário que o BNDES assuma, de forma regulada e explicita, sua função de “cabeça”
do sistema de crédito de longo prazo, garantindo as operações do setor privado, tanto do
lado dos empréstimos quanto no que diz respeito à captação de recursos.
Do ponto de vista dos instrumentos de mobilização financeira é essencial que se
corrijam as distorções da estrutura atual, reordenando a rentabilidade dos títulos conforme
seus prazos de maturação sem o que é impossível a existência especializada de
intermediação financeira. É preciso privilegiar as aplicações de longa duração assegurando-
lhes proteção contra a desvalorização inflacionária e juros atraentes. Os títulos a curto prazo,
particularmente LTNs (Letras do Tesouro Nacional), deveriam ter sua rentabilidade efetiva
determinada, sistematicamente, em um patamar proporcionalmente inferior ao dos títulos
de longa maturação. O instrumento da correção monetária deverá ser manejado de forma
diferenciada para assegurar este objetivo se a diferenciação dos juros oferecidos não for
suficiente.
Dentro deste marco, recomenda-se a criação de um título-base de longo prazo,
a ser emitido pelos BNDES, a que podemos chamar de Obrigações Reajustáveis do
Desenvolvimento Econômico – ORDEs. A absorção destes títulos seria imediatamente
assegurada pela aplicação dos fundos de poupança compulsória (principalmente pelo PIS-
PASEP) e pela aplicação parcial dos saldos de poupança voluntária (caderneta de
poupança), companhias de seguros e fundos de pensão. O objetivo maior, porém, é forçar a
aplicação dos lucros e das reservas de depreciação das empresas nas ORDEs, de modo a
associá-la ao processo de ampliação e renovação da capacidade produtiva. A
negociabilidade destes papéis deve ser restringida ao âmbito do sistema de financiamento
de longo prazo. Esta aparente desvantagem (para as empresas) deve ser compensada pela
maior facilidade a ser concedida a obtenção de recursos de longo prazo para os detentores
das ORDEs, quer sob a forma de empréstimos ou lançamentos de debêntures.
Aos bancos de investimentos caberá não apenas o papel de operadores do
sistema, sendo-lhes facultado e incentivado o lançamento de seus próprios títulos que
estarão, por sua vez, amparados pelo sistema BNDES.
A montagem deste sistema não só confere maior poder de alavancagem às
empresas, particularmente às nacionais, sem os riscos de variações inesperadas do “custo
cambial” e juros como, também, permitirá a execução de uma verdadeira política industrial
que não se baseie apenas em favores e incentivos fiscais.
Quanto ao Sistema Financeiro da Habitação, o esquema atual é apenas
satisfatório para o financiamento de habitações de alto valor, devendo ser modificado para
dar forte prioridade à oferta de unidade para as classes de baixa renda. Um programa de
habitação popular de envergadura requer, obrigatoriamente, o concurso de amplas dotações
orçamentárias a fundo perdido, combinadas com uma parcela de recursos do FGTS.
Estas reformas, executadas no contexto da nova política monetária e creditícia,
permitirão reestruturar a dívida pública, favorecendo um significativo alongamento do seu
perfil de maturação temporal. As ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional)
deverão ser afirmadas como títulos de médio prazo, com níveis de rentabilidade efetiva

102 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

inferiores aos das ORDEs, de forma a atrair fundos livres das empresas, bancos e parte dos
fundos sociais, públicos e privados, sobretudo daqueles sujeitos a saques regulares. As
LTNs, por sua vez, devem ser aperfeiçoadas como instrumentos de regulação monetária e
do piso da taxa de juros — determinante da taxa interbancária de juros, — evitando-se a
inchação especulativa do mercado secundário.
O alongamento e reestruturação do perfil da dívida pública permitirão
transformá-la num poderoso instrumento auxiliar de financiamento do desenvolvimento
econômico, viabilizando os planos de crescimento com justiça social.
Quanto ao restante do sistema financeiro público e privado, a reforma financeira
aqui proposta recomenda as seguintes providências:
a) que o sistema de Bancos Estaduais e Regionais de Desenvolvimento associe-se ao sistema
BNDES na oferta de crédito de longo prazo, cuidando especialmente de dar suporte às
pequenas e médias empresas nacionais e aos programas regionais de desenvolvimento;
b) as caixas econômicas (Federal e Estaduais) devem continuar captando poupança
voluntária e funcionando como agentes financeiros dos programas habitacionais e outros
de ordem social, dentro das novas prioridades e, além disso, devem contribuir
subsidiariamente, para aportar fundos ao sistema de intermediação de longo prazo
através das ORDEs;
c) o Banco do Brasil deve ampliar e aperfeiçoar o seu papel não apenas enquanto grande
banco agrícola, desdobrando os seus programas, funcionando como agente regulador
das condições de crédito geral, influindo para regular a formação de estoques,
alcançando efetivamente o pequeno produtor através de mecanismos simplificados e
eficientes de crédito e assistência;
d) os bancos comerciais privados devem restringir-se às operações de crédito corrente
principalmente para os setores industrial e comercial, dentro da política creditícia anti-
inflacionária, atendendo seletivamente às prioridades definidas pela nova política
econômica, evitando que o crédito sirva para sustentar movimentos especulativos com
mercadorias ou papéis;
e) no caso das sociedades financeiras que perfazem a oferta de crédito ao consumidor é
preciso rigoroso controle das taxas de financiamento visando eliminar definitivamente
as condições de crédito escorchante para o consumidor, especialmente para as faixas de
média e baixa renda que não possuem informação e acesso a outras fontes creditícias.
Além destas, recomenda-se a implementação de verdadeiras medidas de democratização
do crédito, com a criação de um sistema de crédito cooperativo e popular, envolvendo
os bancos regionais, estaduais e o Banco do Brasil.
Ao conjunto de medidas acima deve-se acrescentar a reintrodução do princípio
do risco no sistema financeiro, vedando-se a utilização de recursos públicos para sanear
falências e liquidações “extrajudiciais”, o que permitiu no passado recente um grande
volume de fraudes e rapinagem financeira. Esta medida deve ser acompanhada de fortes
poderes de intervenção através do Banco Central, com o bloqueio de bens e cartas patentes
das instituições, que impossibilitem a evasão da riqueza dos infratores e de severa legislação

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 103


Esperança e Mudança

penal especifica. Não é mais possível tolerar a política de favoritismo e a corrupção na gestão
do crédito público.
A reforma financeira aqui proposta visa dotar o País de um sistema de
intermediação eficiente e regulado, que signifique um avanço importante para o processo
de internalização dos centros de decisão econômica, capaz de funcionar como um poderoso
instrumento de política industrial e de suporte a acumulação de capital. Visa-se, ao mesmo
tempo, que o Estado seja equipado com um sistema de dívida pública racional, habilitando-
o para as grandes tarefas do desenvolvimento social e econômico, especialmente para os
projetos de longo período de amortização.

4.2. Diretrizes para a reforma fiscal

O sistema tributário brasileiro é extremamente injusto, pois nele as classes de


menor fenda pagam proporcionalmente mais impostos que as classes de alta renda. É a isto
que se denomina regressividade. Devemos lutar pela introdução de um sistema tributário
justo, isto é, progressivo, onde quem ganha mais paga proporcionalmente mais impostos.
A injustiça fiscal presente no nosso sistema é generalizada e abrange várias
dimensões:
1°) pelo peso dominante dos impostos indiretos (IPI, ICM, ISS) e pela falta de qualquer
critério de justiça fiscal na incidência destes impostos, o que redunda em intensa
regressividade;
2°) pelo efeito regressivo decorrente da forte elevação recente de alguns impostos indiretos,
particularmente do ISOF, e de outros impostos implícitos nos preços e tarifas cobradas
por bens e serviços ofertados por empresas estatais;
3°) pela relativa regressividade dos próprios impostos diretos como o imposto de renda
(IRPJ e IRPF) e o imposto territorial rural;
4°) pelo efeito regressivo dos encargos sociais (contribuições do INPS e outras) que incidem
sobre as folhas de pagamento.
A forte dose de injustiça fiscal presente no nosso sistema tributário não se
expressa apenas na sua incidência regressiva por classes de renda. Duas outras dimensões
da iniquidade fiscal devem ser ressaltadas:
1. A significativa desigualdade regional, interestados da Federação, que atualmente
concentra a arrecadação do ICM nos Estados que lideram a produção industrial, em
detrimento dos outros Estados, especialmente das regiões mais atrasadas do País.
2. A significativa desigualdade da incidência fiscal dentro das mesmas classes de renda, ou
seja, a desigualdade horizontal, pelo fato do sistema tributário permitir um tratamento
muito desigual para diferentes tipos de rendimento. A diferença de tratamento é evidente
entre as distintas “cédulas” do IRPF, oferecendo inúmeras isenções e “janelas” de evasão
aos ganhos de capital, juros e outras rendas enquanto que incide implacavelmente, na
fonte, sobre os assalariados em geral.

104 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Diretrizes para uma nova política econômica

Outra característica inaceitável do atual sistema fiscal diz respeito ao


enfraquecimento continuado dos Estados e Municípios, em favor da União. Portanto, diante
do acúmulo de distorções deve ser objeto de uma reforma tributária global e criteriosa que
se baseie no princípio da Justiça Fiscal.
As diretrizes gerais da Reforma Fiscal-Tributária proposta são as seguintes:
1. Diminuição gradual do peso dos impostos indiretos e simultânea elevação da carga
impositiva direta, dentro de uma nova sistemática tributária progressiva:
1.1. É fundamental estabelecer critérios efetivos de progressividade para a carga direta,
utilizando uma definição a mais ampla e abrangente possível para a renda tributável,
sobre a qual incide o imposto sobre a renda. Em outras palavras, incluir na renda
tributável todas as formas de renda (juros, ganhos de capital e de transação imobiliária,
etc.) Todas estas formas de renda devem ser taxadas, imediatamente, na fonte (ou ter
suas alíquotas elevadas) enquanto se busca desenvolver um sistema mais perfeito. Estas
mudanças permitirão aumentar substancialmente a arrecadação do IR., eliminando-se
a injustiça horizontal, sem ampliar necessariamente as alíquotas que poderiam vir a ser
reduzidas gradualmente para as faixas baixas e médias de renda.
1.2. Estabelecendo novos impostos diretos sobre a riqueza e a propriedade, particularmente
sobre as terras ociosas (rurais e urbanas). Neste sentido impõe-se uma profunda
reformulação do ITR (imposto territorial rural) tornando-o efetivamente progressivo e
diferenciado por regiões. É fundamental, também, gravar de forma penalizadora a
ociosidade e a especulação com a terra, rural ou urbana.
1.3. Quanto à carga indireta, é necessário, em primeiro lugar, equiparar a taxação dos
serviços a das mercadorias. Os serviços representam hoje mais de 50% da renda
nacional, com um sistema precário de tributação (alíquotas muito baixas e inoperantes),
com a exceção da atividade comercial, através do ICM. Para isso é necessário
desenvolver uma nova sistemática para a taxação dos serviços, diferenciando suas
formas (serviços pessoais, empresariais, por tipo e setor, etc.) Certamente que as novas
modalidades de taxação dos serviços devem ser progressivas. A taxação abrangente aos
serviços permitiria uma gradual redução das alíquotas do ICM, que representa
atualmente uma forma muito elevada, distorcida, mal distribuída e extremamente
regressiva de taxação indireta.
1.4. É fundamental implantar a progressividade implícita na carga indireta (IPI e ICM) tendo
como guia a essencialidade dos bens: produtos de luxo, diferenciados e supérfluos,
devem ter alíquotas elevadas enquanto que os bens de consumo popular devem ter suas
alíquotas reduzidas ou suprimidas, no caso dos gêneros de primeira necessidade.
1.5. É fundamental reformular o esquema de financiamento da Previdência Social, de modo
a torná-lo mais progressivo.
2. Eliminação imediata da pletora de isenções e incentivos fiscais, limitando-os aos fundos
receptores que atendam a questões sociais efetivamente urgentes como aos relacionados
com o desenvolvimento do Nordeste e do Norte.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018. 105


Esperança e Mudança

3. Não se pode aceitar o estrangulamento fiscal-financeiro dos Estados e Municípios e se


propõe o reforço imediato do Fundo de Participação dos Estados e Municípios de modo
a reverter a tendência de queda relativa dos seus recursos fiscais. Uma parcela
significativa dos ganhos de arrecadação do IR dentro da nova sistemática aqui proposta,
deve ser dirigida para o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e para o Fundo de
Participação dos Municípios (FPM). Da mesma forma, na nova sistemática de taxação
do ISS o incremento real de receita deve beneficiar ao Município.
Quanto à distribuição interestadual dos impostos indiretos, particularmente do
ICM, é necessário evitar a “exportação” dos tributos pelos Estados industrializados. Neste
sentido dever-se-ia estudar a possibilidade de eliminar a alíquota inter-regional do ICM,
substituindo-a por um novo sistema segundo o qual o imposto gravado seria atribuído ao
Estado consumidor (ou comprador) e não ao Estado produtor.
Além disso, as transferências fiscais para os Estados e Municípios devem
obedecer aos seguintes critérios:
a) basear-se no repasse automático e imediato das quotas;
b) na fixação das quotas de modo fortemente redistributivista, favorecendo os Municípios
e Estados de baixa renda per capita, elevadas carências básicas (em educação, saúde,
habitação etc.) e grande população.
Propõe-se, ainda, a criação e aperfeiçoamento de novos impostos municipais:
1. Utilização da Contribuição de Melhoria em várias modalidades, obrigando aos
proprietários a arcar com parte dos custos que redundaram em valorização de seus
imóveis. Formas e critérios de pagamento a prazo, proporcionais à renda e às posses dos
proprietários devem ser estudadas. Alternativamente, o pagamento pode ser feito, à
vista, no momento de transmissão imobiliária.
O Imposto sobre o solo criado ou solo adicionado é uma modalidade de
contribuição de melhoria que pode ser imediatamente implementada, graduando-se suas
alíquotas de forma diferenciada para taxar, sobretudo, as áreas de alta renda.
O Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) deve ser aperfeiçoado de modo
progressivo, especialmente para taxar a retenção de imóveis vazios, incidindo
proporcionalmente ao tempo de inatividade dos terrenos e diferenciadamente com relação
ao nível de renda das zonas urbanas.
2. Transferência para o Município do imposto sobre transmissão da propriedade (CISA),
entre vivos ou por razão de morte.
O aporte de novos recursos fiscais é absolutamente necessário para reequipar o
Estado e tornar-se viável a implementação de novos programas de dinamização da
economia e da redistribuição da renda.

106 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 71-106, jan./jun. 2018.


Parte IV

A questão nacional

A nossa identidade nacional, nesses longos anos de regime autoritário, foi


estilhaçada em seus aspectos culturais, econômicos e mesmo regionais.
No plano da cultura, nossa identidade foi diluída em seus valores artísticos,
patrimoniais, hábitos e costumes. A permissividade do regime, valorizando de forma
exagerada, através dos meios de comunicação e da publicidade, os conteúdos culturais
estrangeiros, foi uma das principais responsáveis pela descaracterização da cultura
brasileira.
Sob esse regime autocrático, o Estado equipou-se de instrumentos de
manipulação cultural e de intervenção, buscando garantir uma rígida hierarquia e
centralização de decisões. A própria Educação, ao invés de servir à incorporação
democrática da juventude ao processo de transformação do País, tornou-se instrumento de
imposição de valores ideológicos. Buscou-se esvaziar a Universidade, impedindo por todos
os meios, até mesmo os violentos, o exercício da crítica. No plano econômico é preciso
reconhecer a situação de dependência estrutural da economia brasileira às empresas
multinacionais apoiadas pelos Estados aos quais estão associadas ou que as defendem. No
caso do Brasil, há dependência econômica direta frente aos Países e às empresas que
controlam o desenvolvimento tecnológico e o mercado internacional; há dependência
inequívoca frente aos grandes bancos internacionais e centros financeiros; há dependência
quanto aos meios de difusão dos modelos culturais, que impõem o estilo de
desenvolvimento e de vida que dominam o mundo moderno.
Os desequilíbrios regionais agudos, agravados pelo regime arbitrário, chegam a
ameaçar a unidade nacional. Sem mudança do estilo perverso de crescimento econômico,
sem democracia, não há esperança de resgatar o Nordeste da fome, da pobreza e do
desemprego, nem a Amazônia da espoliação dos seus recursos e marginalização do seu
povo.
Neste contexto, para que se possa resgatar a nossa soberania e identidade,
enquanto nação, é necessário clareza e consequência. Clareza, para entender que o problema
central da autonomia nacional está na capacidade do povo criar e definir, segundo interesses
próprios, formas alternativas de cultura e desenvolvimento. Atitudes consequentes, para
enfrentar os desafios concretos que permitam preservar e ampliar a capacidade de decisão
nacional sobre os rumos do progresso econômico e social.

1. Interesses nacionais e democracia

O PMDB é nacionalista e luta pelo nacionalismo. Mas nacionalismo é uma destas


expressões que deveriam ser empregadas sem adjetivos, como a democracia. Quando se fala
em “nacionalismo sadio”, “nacionalismo pragmático”, “nacionalismo positivo” etc., existe
o perigo de que a fraseologia venha camuflar a transferência dos centros de decisão

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 107-113, jan./jun. 2018.


Esperança e Mudança

econômica e política para o exterior. De forma igualmente perigosa, o nacionalismo pode


ser utilizado como ideologia chauvinista de mobilização em torno de propostas como
“Brasil Grande” e “Brasil Potência”, a partir das quais o arbítrio pretendeu justificar-se.
Também em nome do nacionalismo, o Estado autoritário se autodelega a
representação do povo e da soberania nacional. Mais grave ainda, a própria noção de
soberania tem sido confundida com a capacidade do Estado de decidir sem prestar contas,
como entidade acima do povo, não sujeita a seu controle.
O NACIONALISMO deve significar o fortalecimento do poder nacional. Não se
pode, entretanto, confundir o fortalecimento do poder nacional com um pseudo-
fortalecimento do Estado decorrente do seu caráter autoritário.
PODER NACIONAL SIGNIFICA CONDENSAÇÃO DOS INTERESSES DO
POVO, pois são seus interesses econômicos, sociais, políticos e culturais populares que
definem o INTERESSE NACIONAL. Mais ainda, a expressão dos interesses populares e
nacionais só é possível num ESTADO DEMOCRÁTICO. Quer dizer, num Estado de Direito
onde a sociedade possa se organizar e exprimir livremente através de partidos políticos,
sindicatos e demais organizações, num Estado em que haja amplo controle das decisões
pelos cidadãos.
É ILEGITIMO FALAR DE FORTALECIMENTO DO PODER NACIONAL, DE
NACIONALISMO, ONDE NÃO HAJA A DEMOCRACIA COM PARTICIPAÇÃO.

2. Cultura e patrimônio cultural

A reapropriação, pelo povo brasileiro, da sua identidade cultural, exige a


democratização da produção cultural e tem início com a eliminação do conceito de cultura.
Para o PMDB, a cultura é sempre um patrimônio criado pela sociedade e se expressa
enquanto consciência, ação e produção material.
Abrange assim o processo de produção de bens culturais de toda ordem, criados
pelo homem ao longo de sua história. Sem uma prática democrática, capaz de orientar um
legítimo plano de ação cultural, a atuação dos governos autoritários tem se manifestado pela
ampliação das áreas de intervenção do Estado nesse setor, através de órgãos promocionais,
manipuladores e controladores das manifestações sociais.
Assim como a centralização do poder torna-se despótica, a burocratização
elimina a criatividade e, portanto, ambas são inimigas do processo de democratização
cultural.
No terreno da produção artística, movimentos que representavam tentativas de
resposta às questões nacionais, como o movimento teatral, o Cinema Novo, entre tantos
outros, foram desarticulados pela perseguição e marginalização de intelectuais e artistas.
A indústria cultural, monopolizada pelas grandes empresas nacionais e
multinacionais ou pelo Estado autoritário, impossibilitou e vem ainda impedindo a
participação democrática, dificultando o acesso dos artistas aos meios de produção, como

108 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 107-113, jan./jun. 2018.


O PMDB e a transformação democrática

editoras, gravadoras, jornais, empresas cinematográficas, emissoras de rádio e televisão. A


indústria cultural monopolista absorveu da sociedade padrões de comportamento e valores
culturais que refletem interesses meramente mercantis. O seu caráter excludente também se
manifestou regionalmente, uma vez que as empresas culturais se situam no polo mais
desenvolvido do país. Se em muitos casos a indústria cultural monopolista, tendo a televisão
como exemplo mais significativo, apresentou uma feição diversificada e absorveu valores
regionais, não incorporou no entanto seu autor, o povo, que não consegue exercer qualquer
tipo de controle sobre a nova produção e os meios de comunicação. Por outro lado, essa
mesma indústria pretende atender às necessidades culturais do País com produtos
tendencialmente massificantes, que destroem a variedade das expressões regionais e
excluem a participação mais ativa do fruidor.
A questão cultural é complexa. Complexidade que se acentua com a convivência
necessária de técnicas avançadas, com formas artesanais de produção cultural, hoje
meramente sobreviventes e sufocadas pela grande indústria da cultura.
Por tudo isto, o PMDB vê na questão cultural um desafio aberto que deve ser
objeto de contínua discussão de toda a sociedade e, em especial, das organizações sociais
diretamente interessadas. Intrinsecamente, a política cultural é um programa em contínua
revisão pelo processo crítico decorrente da prática democrática.

2.1. Nação, Estado e cultura

A atuação pública no setor cultural ampliou-se nos últimos anos por meio dos
organismos oficiais. Grande parte da produção cultural realizou-se com subvenções
públicas e foi gerida por instituições criadas pelo regime. O Estado, paralelamente,
fortaleceu-se como produtor. Contudo, a distribuição dos recursos orçamentários
desprezou as reais necessidades de nosso desenvolvimento cultural. Devido à ausência de
mecanismos que viabilizem a produção artística independente e que motivem o
investimento privado, a participação do setor público tornou-se marcante.
Dado o caráter autoritário do regime, incapaz de aceitar a livre manifestação de
ideias e o pluralismo, a dependência da produção cultural com relação ao Estado torna-se
problemática, especialmente em suas implicações ideológicas.
Ainda assim, a sociedade vem estruturando novas formas de organização e de
expressão cultural independente, gerando um quadro complexo de manifestações em
oposição ao dirigismo paternalista do Estado, ao autoritarismo e à intolerância do regime.
Quer o PMDB implementar um projeto nacional que, no campo da cultura, seja
expressão desse movimento pluralista da sociedade. Em contraposição à política cultural
autocrática exercida até aqui pelo Estado e, em contraposição à indústria cultural
oligopolista, deve-se buscar a prática de uma política cultural popular, democrática e,
portanto, participativa. Só assim, com o estímulo a liberdade de criação e manifestação com
o livre acesso aos meios de produção e difusão, com a garantia da presença dos conteúdos

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 107-113, jan./jun. 2018. 109


Esperança e Mudança

culturais e nacionais nos meios de comunicação, com a democratização da educação,


poderemos chegar a uma sociedade consciente de sua identidade e livre do autoritarismo.
A consolidação do processo de formação nacional, baseado na participação
democrática, deve corresponder a um movimento de baixo para cima, descentralizado,
baseado no fortalecimento dos interesses locais e regionais. Descentralizar implica
promover o desenvolvimento cultural nas próprias regiões, reconhecendo e reafirmando os
valores locais.
Por outro lado, é necessário entender que segmentos importantes da produção
cultural estão integrados ao sistema econômico e são capazes de gerar renda, emprego,
novas receitas fiscais para o Estado e divisas para o País, reforçando a projeção internacional
de nossos produtos culturais.

2.2. Patrimônio cultural

Incentivar a preservação de nossa identidade nacional através de valorização e


conservação de nosso patrimônio cultural é uma das metas do PMDB. Esse patrimônio é
constituído por elementos do meio ambiente, elementos do conhecimento ou oriundos da
técnica e do saber especialmente popular, e os consequentes artefatos ou produtos de nossas
comunidades urbanas e rurais.
É ainda necessário estimular, ao mesmo tempo, a conscientização desses valores
por nossas comunidades, desde a escola primária, apoiando as iniciativas culturais
autônomas já existentes nas comunidades locais e regionais e incentivando a criação de
novas.
Quanto à preservação do patrimônio arquitetônico, o PMDB propõe sua
utilização pelo Estado para atividades essenciais dos municípios, tais como correios, postos
de saúde, administração pública, atividades bancárias, sempre quando compatíveis com as
características do bem cultural, permitindo dessa forma sua efetiva preservação como um
espaço incorporado à vida urbana.

2.3. Gestão democrática da cultura

Para uma gestão democrática da cultura, o PMDB, em conjunto com a sociedade,


propõe:
1) Defesa intransigente da liberdade de pensamento, expressão e organização.
2) Ampla revisão de legislação que afeta a produção e a distribuição dos bens culturais, tais
como:
a) abolição da lei de segurança nacional, na medida em que restringe a liberdade de
expressão cultural;
b) abolição da censura à produção cultural;

110 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 107-113, jan./jun. 2018.


O PMDB e a transformação democrática

c) reforma da Lei de Imprensa;


d) atualização e regulamentação eficaz da lei do direito autoral;
e) reformulação das leis de defesa do patrimônio cultural;
f) reforma radical das leis de telecomunicações.
3) Uso dos instrumentos de comunicação do Estado em benefício do pluralismo
democrático, impedindo sua manipulação pelos ocasionais ocupantes do poder.
4) Apoio do PMDB aos movimentos e iniciativas culturais, através de uma gestão
descentralizadora e desburocratizadora que incremente a pratica de atividades artísticas,
tanto a nível profissional como amador.
5) Participação direta de intelectuais e artistas através de suas respectivas organizações nas
decisões do Estado sobre política cultural.
6) Descentralização da produção e da difusão cultural, especialmente na área da televisão.

3. Política nacionalista: Estado, capital estrangeiro, recursos nacionais, empresa


pública

No seu aspecto econômico e social o nacionalismo, isto é, OS INTERESSES DO


POVO, pressupõem a livre manifestação e expressão dos INTERESSES ECONÔMICOS E
SOCIAIS DOS ASSALARIADOS, garantindo liberdade de organização com participação
autônoma e um padrão de vida decente, o que requer uma política de redistribuição de
renda. Nacionalismo quer dizer, antes de tudo, um povo politicamente ativo e um nível de
renda mínimo para todos, que assegure aos brasileiros dignidade e autoconfiança. Um país
que se organize apenas em função dos interesses das empresas e do Estado pode ser forte e
rico, se as empresas e o Estado assim o forem, mas não assegurará que nele viva um povo
que se beneficie com esta riqueza e com este poderio.
Por outro lado, o fortalecimento da capacidade nacional de decisão requer que
se reverta a tendência de transferir para o exterior os centros de decisão econômica. Isto
implica na mudança na noção do Estado com relação ao capital estrangeiro e com relação
ao sistema financeiro internacional, dentro das seguintes diretrizes:
i) Fixação de regras disciplinadoras das empresas estrangeiras, através do controle prévio
da entrada em nosso mercado; da criação de mecanismo preventivos e impeditivos da
aquisição de empresas nacionais; do controle rigoroso dos cursos de assistência técnica
e dos contratos de licença e “transferência" de tecnologia; do controle eficaz das remessas
para o exterior (lucros, juros, royalties, transferências por subfaturamento de exportações
ou superfaturamento de importações).
ii) Uma política soberana de relacionamento financeiro e comercial para o exterior, que
se baseie numa firme política de ajustamento do nosso balanço de pagamentos, que
estanque o atual processo de endividamento externo descontrolado e a qualquer custo,
buscando estabelecer (através de reescalonamento e da administração criteriosa)

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 107-113, jan./jun. 2018. 111


Esperança e Mudança

condições favoráveis de refinanciamento de longo prazo. Para isso é fundamental


assumir uma posição firme e irrecusável de defesa dos interesses nacionais, evitando a
vinculação de empréstimos a importações, com prejuízo do parque produtor nacional,
resistir às crescentes pressões protecionistas dos países desenvolvidos e se antepor à
dependência tecnológica. Finalmente, é de grande importância a condução de uma
política comercial flexível e ousada, que inclusive aproveite ao máximo a potencialidade
de acordos bilaterais com muitos países com os quais o Brasil mantém relações
comerciais muito aquém das possibilidades.
iii) A defesa e o controle da exploração de nossas riquezas naturais, protegendo as fontes
de energia, o monopólio estatal do petróleo, do urânio, do tório e outros metais
estratégicos; e, também, não descurando a defesa do patrimônio ecológico brasileiro,
especialmente da Amazônia, dos cerrados e do pantanal, ameaçado pela exploração
predatória e desnacionalizante. Dentro desta orientação, impõe-se a revisão, em bases
nacionalistas e decentes, dos vários acordos firmados com capitais estrangeiros: os
contratos de Carajás, o acordo nuclear, os contratos de risco para exploração de petróleo.
iv) A defesa da empresa pública que, submetida ao controle democrático da sociedade,
deve atuar nos setores estratégicos a nossa soberania e nos setores indispensáveis a
manutenção da capacidade interna de decisão da política econômica e social o que, por
sua vez, é condição indispensável à proteção da empresa nacional, evitando que setores
fundamentais fiquem sob o controle do capital estrangeiro.
v) A defesa da empresa privada nacional, através do reforço de seus mecanismos de
capitalização, de formas de controle e prevenção de compra de empresas nacionais por
empresas estrangeiras, de apoio firme à negociação de compra de tecnologia externa, do
apoio e financiamento ao desenvolvimento tecnológico próprio e de sua capacidade de
exportação, sem prejuízo do suprimento ao mercado interno.

4. Relações internacionais e política externa independente

O nacionalismo, entendido como o fortalecimento dos interesses do POVO no


seio de um Estado Democrático, significa o fortalecimento interno dos centros de decisão
política e econômica, assegurando a real soberania do Estado Brasileiro.
No que diz respeito às relações do Brasil com o exterior, defende-se uma
POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE, isto é, não alinhada, que tenha como critério
direto o interesse nacional. Rejeita-se, portanto, qualquer forma de subordinação política,
econômica e militar. O relacionamento com todos os povos do mundo deve ser conduzido
segundo o princípio da autodeterminação.
A política brasileira deve ser sempre pacifista e favorável ao progresso dos
entendimentos diplomáticos em todos os níveis, tanto mais quando nos lembramos de que
a disparada da corrida armamentista e o ressurgimento da guerra fria ameaçam mais do
que nunca levar o mundo à catástrofe nuclear. Atitudes belicosas, invasões, intervenções e
aspirações hegemônicas, devem ser condenadas e repudiadas pela nossa ação diplomática.

112 Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 107-113, jan./jun. 2018.


O PMDB e a transformação democrática

A luta pela solidariedade e defesa dos interesses dos povos subdesenvolvidos


deve ser a diretriz fundamental de nossa política externa. O reconhecimento da gravidade
dos problemas dos países subdesenvolvidos, no contexto do sistema financeiro privado
internacional e das restrições protecionistas dos países avançados, leva à defesa de
SOLUÇÕES GLOBAIS, a serem negociadas firmemente com os países hegemônicos. Entre
esses, o problema do endividamento sufocante (350 bilhões de dólares) dos países
periféricos para com os bancos internacionais coloca de maneira urgente a necessidade de
uma reformulação de profundidade do sistema monetário e financeiro internacional para
afastar os riscos crescentes de insolvência global. Esta reformulação deve ser global e
negociada, evitando-se o recurso inútil e contraproducente a politicas monetaristas
conservadoras que resultam em taxas de juros elevadíssimas e que apenas contornam
falsamente os problemas, projetando-se para o futuro de modo ainda mais grave.
A defesa dos preços das matérias-primas e produtos agrícolas exportados pelos
países subdesenvolvidos deve ser outra diretriz básica, junto com a luta contra o
protecionismo crescente e injustificado, que penaliza as nossas exportações de bens
manufaturados.
As possibilidades de entendimento e colaboração comercial entre os países
subdesenvolvidos, particularmente com os exportadores de petróleo, são enormes e devem
ser ampliados com eficácia e rapidez. Da mesma forma, as oportunidades de expandir o
comércio bilateral, inclusive com as economias socialistas, devem ser exploradas com
firmeza e disposição cooperativa.
O reconhecimento das diferenças reais entre os estágios de desenvolvimento dos
países periféricos deve constituir o ponto de partida para inspirar políticas diferenciadas de
colaboração, de modo a associar os interesses comuns, por sub-blocos e temas, evitando uma
postura vaga e retórica, sem propostas concretas de atuação.
Nossa política externa deve rejeitar qualquer forma de imperialismo e se pautar
pelo respeito à integridade e autonomia dos povos. As aspirações hegemônicas, em todos
os países, são contrárias aos princípios democráticos de convivência internacional. O
respeito a autodeterminação política dos povos é essencial. Nossa política deve postar-se
firmemente contra as intervenções militares ou veladas, contra a manipulação do poder
econômico e financeiro para provocar “desestabilizações”, e contra outras formas de
interferência e pressão especialmente quando estas são dirigidas contra países
subdesenvolvidos que lutam pela sua independência econômica e pela democratização de
suas sociedades.
Com relação à América Latina (inclusive Cuba), é fundamental realizar um
esforço de estreitamento de nossos laços de cooperação econômica, tecnológica e de mútua
aproximação cultural. A África, especialmente de língua portuguesa, deve constituir,
também, uma área privilegiada de cooperação mútua.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 107-113, jan./jun. 2018. 113


Memória

Discurso do Presidente da Assembleia Nacional Constituinte em


5 de outubro de 1988

Ulysses Guimarães

Exmo. Sr. Presidente da República, José Sarney; Exmo. Sr. Presidente do Senado Federal,
Humberto Lucena; Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Rafael
Mayer; Srs. membros da Mesa da Assembleia Nacional Constituinte; eminente Relator
Bernardo Cabral; (palmas) preclaros Chefes do Poder Legislativo de nações amigas;
insignes Embaixadores, saudados no decano D. Carlo Furno; Exmos. Srs. Ministros de
Estado; Exmos. Srs. Governadores de Estado; Exmos. Srs. Presidentes de Assembleias
Legislativas; dignos Líderes partidários; autoridades civis, militares e religiosas,
registrando o comparecimento do Cardeal D. José Freire Falcão, Arcebispo de Brasília,
e de D. Luciano Mendes de Almeida, Presidente da CNBB; prestigiosos Srs. Presidentes
de confederações, Sras. e Srs. Constituintes.

Minhas senhoras e meus senhores.


2 de fevereiro de 1987: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação
quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar.” São palavras constantes do
discurso de posse como presidente da Assembleia Nacional Constituinte.
Hoje, 5 de outubro de 1988: “No que tange à Constituição, a Nação mudou.”
A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes.
Mudou restaurando a Federação. Mudou quando quer mudar o homem em cidadão. E só é
cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio,
lazer quando descansa.
Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25 por cento da
população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto.
Chegamos! Esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora.
Bem-aventurados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha,
não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não
desertamos, não caímos no caminho. Alguns a fatalidade derrubou: Virgílio Távora, Alair
Ferreira, Fábio Lucena, Antonio Farias e Norberto Schwantes. Pronunciamos seus nomes
queridos com saudade e orgulho: cumpriram com o seu dever.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação
e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a
reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 114-121, jan./jun. 2018.


O PMDB e a transformação democrática

Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito.


Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os
patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.
Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do
Homem da Liberdade e da Democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio
à ditadura! Ódio e nojo!
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações,
principalmente na América Latina.
Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta
grande Nação.
A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o
dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do
perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos.
A Assembleia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu
contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do Velho do Restelo, no
genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se
atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com
o ouro de seus privilégios e especulações.
Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto
forâneo ou de elaboração interna.
O enorme esforço é dimensionado pelas 61 mil e 20 emendas, além de 122
emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas,
publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo caminho das subcomissões até a
redação final.
A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil
postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do
Parlamento à procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de
favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de
posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares,
atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.
Como caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e
reivindicações de onde proveio.
A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de
fábrica.
O inimigo mortal do homem é a miséria. O Estado de Direito, consectário da
igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis
é a sociedade que não acaba com a miséria.

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 114-121, jan./jun. 2018. 115


Esperança e Mudança

Tipograficamente, é hierarquizada a precedência e a preeminência do homem,


colocando-o no umbral da Constituição e catalogando-lhe o número não superado – só no
art. 5o – de 77 incisos e 104 dispositivos. Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos
originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o
credor de direitos e serviços, cobráveis inclusive com o mandado de injunção.
Tem substância popular e cristã o título que a consagra: “a Constituição cidadã”.
Vivenciados e originários dos Estados e Municípios, os Constituintes haveriam
de ser fiéis à Federação. Exemplarmente o foram.
No Brasil, desde o Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério:
o Estado contra o País, quando o País é a geografia, a base física da Nação, portanto, do
Estado. É elementar: não existe Estado sem país, nem país sem geografia. Esta antinomia é
fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipélago social,
econômico, ambiental e de costumes, não uma ilha.
A civilização e a grandeza do Brasil percorreram rotas centrífugas e não
centrípetas. Os bandeirantes não ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem
pitoresca mas exata de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o
oeste e para a História, na conquista de um continente. Foi também indômita vocação
federativa que inspirou o gênio do Presidente Juscelino Kubitschek, que plantou Brasília
longe do mar, no coração do sertão, como a capital da interiorização e da integração.
A Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das
províncias. Comprimidas pelo centralismo, há o perigo de serem empurradas para a
secessão. É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas
devem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos,
não haverá na União Estado forte, pois fraco é o Brasil.
As necessidades básicas do homem estão nos Estados e nos Municípios. Neles
deve estar o dinheiro para atendê-las.
A Federação é a governabilidade. A governabilidade da Nação passa pela
governabilidade dos Estados e dos Municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos,
acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos
palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto.
A Constituição reabilitou a Federação ao alocar recursos ponderáveis às
unidades regionais e locais, bem como ao arbitrar competência tributária para lastrear-lhes
a independência financeira.
Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e não a do
príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios. Se a
democracia é o governo da lei, não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são
governo o Executivo e o Legislativo.
O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos Parlamentos
contemporâneos. É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um

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O PMDB e a transformação democrática

só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário. Eis outro imperativo de
governabilidade: a coparticipação e a corresponsabilidade.
Cabe a indagação: instituiu-se no Brasil o tricameralismo ou fortaleceu-se o
unicameralismo, com as numerosas e fundamentais atribuições cometidas ao Congresso
Nacional? A resposta virá pela boca do tempo. Faço votos para que essa regência trina prove
bem.
Nós, os legisladores, ampliamos os nossos deveres. Teremos de honrá-los. A
Nação repudia a preguiça, a negligência e a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordinária
bastante dilatada a edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não esquecemos
que na ausência da lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar
pelo mandado de injunção.
A confiabilidade do Congresso Nacional permite que repita, pois tem
pertinência, o slogan: “Vamos votar, vamos votar”, (palmas) que integra o folclore de nossa
prática constituinte, reproduzido até em horas de diversão e em programas humorísticos.
Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da
democracia – em participativa, além de representativa. É o clarim da soberania popular e
direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das
necessidades sociais.
O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o
superlegislador, habilitado a rejeitar, pelo referendo, projetos aprovados pelo Parlamento.
A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente
da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador.
A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja
pela corrupção impune toma nas mãos de demagogos, que a pretexto de salvá-la a
tiranizam. “Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube” – eis o primeiro
mandamento da moral pública.
Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da
fiscalização, através do mandado de segurança coletivo; do direito de receber informações
dos órgãos públicos; da prerrogativa de petição aos poderes públicos, em defesa de direitos
contra ilegalidade ou abuso de poder; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da
obtenção de certidões para defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por
qualquer cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos Municípios
por parte do contribuinte. Podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas
junto às comissões das Casas do Congresso Nacional.
Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são partes legítimas
e poderão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União,
do Estado ou do Município. A gratuidade facilita a efetividade dessa fiscalização.
A exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação
permite conceituá-la, sinoticamente, como a “Constituição coragem”, a “Constituição

Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 37, p. 114-121, jan./jun. 2018. 117


Esperança e Mudança

cidadã”, a “Constituição federativa”, a “Constituição representativa e participativa”, a


“Constituição do Governo síntese Executivo-Legislativo”, a “Constituição fiscalizadora”.
Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável. Ela própria,
com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de
cindo anos.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz,
ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será
redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.
Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto país a implantar o instituto
moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à
assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou
não, além de beneficiar 11 milhões de aposentados, espoliados em seus proventos.
É consagrador o testemunho da ONU de que nenhuma outra Carta no mundo
tenha dedicado mais espaço ao meio ambiente do que a que vamos promulgar.
Sr. Presidente José Sarney: V.Exa. cumpriu exemplarmente o compromisso do
saudoso, do grande Tancredo Neves, de V.Exa. e da Aliança Democrática ao convocar a
Assembleia Nacional Constituinte. A Emenda Constitucional n. 26 teve origem em
mensagem do Governo, de V.Exa., vinculando V.Exa. à efemeridade que hoje a Nação
celebra.
Nossa homenagem ao Presidente do Senado, Humberto Lucena, atuante na
Constituinte pelo seu trabalho, seu talento e pela colaboração fraterna da Casa que
representa.
Sr. Ministro Rafael Mayer, Presidente do Supremo Tribunal Federal, saúdo o
Poder Judiciário na pessoa austera e modelar de V.Exa. O imperativo de “Muda Brasil”,
desafio de nossa geração, não se processará sem o consequente “Muda Justiça”, que se
instrumentalizou na Carta Magna com a valiosa contribuição do poder chefiado por V.Exa.
Cumprimento o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira
Alves, que, em histórica sessão, instalou em 1o de fevereiro de 1987 a Assembleia Nacional
Constituinte. Registro a homogeneidade e o desempenho admirável e solidário de seus altos
deveres, por parte dos dignos membros da Mesa Diretora, condôminos imprescindíveis de
minha Presidência.
O Relator Bernardo Cabral foi capaz, flexível para o entendimento, mas
irremovível nas posições de defesa dos interesses do País. O louvor da Nação aplaudirá sua
vida pública. Os Relatores Adjuntos, José Fogaça, Konder Reis e Adolfo Oliveira, prestaram
colaboração unanimemente enaltecida. Nossa palavra de sincero e profundo louvor ao
mestre da língua portuguesa Prof. Celso Cunha, por sua colaboração para a escorreita
redação do texto. O Brasil agradece pela minha voz a honrosa presença dos prestigiosos
dignitários do Poder Legislativo do continente americano, de Portugal, da Espanha, de
Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Príncipe e Cabo Verde. As nossas saudações.

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O PMDB e a transformação democrática

Os Srs. Governadores de Estado e Presidentes das Assembléias Legislativas dão


realce singular a esta solenidade histórica. Os Líderes foram o vestibular da Constituinte.
Suas reuniões pela manhã e pela madrugada, com autores de emendas e interessados,
disciplinaram, agilizaram e qualificaram as decisões do Plenário. Os Anais guardarão seus
nomes e sua benemérita faina.
Cumprimento as autoridades civis, eclesiásticas e militares, integrados estes
com seus chefes, na missão, que cumprem com decisão, de prestigiar a estabilidade
democrática. Nossas congratulações à imprensa, ao rádio e à televisão. Viram tudo, ouviram
o que quiseram, tiveram acesso desimpedido às dependências e documentos da
Constituinte. Nosso reconhecimento, tanto pela divulgação como pelas críticas, que
documentam a absoluta liberdade de imprensa neste País.
Testemunho a coadjuvação diuturna e esclarecida dos funcionários e assessores,
abraçando-os nas pessoas de seus excepcionais chefes, Paulo Affonso Martins de Oliveira e
Adelmar Sabino.
Agora conversemos pela última vez, companheiras e companheiros
constituintes. A atuação das mulheres nesta Casa foi de tal teor, que, pela edificante força
do exemplo, aumentará a representação feminina nas futuras eleições.
Agradeço a colaboração dos funcionários do Senado – da Gráfica e do Prodasen.
Agradeço aos Constituintes a eleição como seu Presidente e agradeço o convívio
alegre, civilizado e motivador. Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: o
segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer.
Todos os dias, meus amigos constituintes, quando divisava, na chegada ao
Congresso, a concha côncava da Câmara rogando as bênçãos do céu, e a convexa do Senado
ouvindo as súplicas da terra, a alegria inundava meu coração. Ver o Congresso era como
ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos. Sentei-me ininterruptamente 9 mil
horas nesta cadeira, em 320 sessões, gerando até interpretações divertidas pela não-saída
para lugares biologicamente exigíveis. Somadas as das sessões, foram 17 horas diárias de
labor, também no gabinete e na residência, incluídos sábados, domingos e feriados.
Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. (Palmas.) Uma
delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que
pedi, cheguei mais longe do que mereço. Que o bem que os Constituintes me fizeram
frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles. Adeus, meus irmãos. É despedida
definitiva, sem o desejo de retorno.
Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembleia
Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas
desta Casa.
Autoridades, Constituintes, senhoras e senhores.
A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo
do Estado.

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Esperança e Mudança

O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do


Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo.
O Estado encarnado na metrópole resignara-se ante a invasão holandesa no
Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de
Tabocas e Guararapes sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João
Fernandes Vieira que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado:
“Desobeder a El-Rei para servir a El-Rei”.
O Estado capitulou na entrega do Acre. A sociedade retomou-o com as foices,
os machados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia,
libertou e repatriou.
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.
Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já, que, pela
transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador.
Termino com as palavras com que comecei esta fala:
“A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar.”
A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo
à mudança.
Que a promulgação seja o nosso grito: “Mudar para vencer!”
Muda, Brasil!

Declaro encerrados os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte da


República Federativa do Brasil.
Convido os presentes para que prestigiem a reunião que vamos ter e a recepção
no Salão Negro do Congresso Nacional.
Com meus agradecimentos, está encerrada a sessão.

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O PMDB e a transformação democrática

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