Modernização, Mercado e Democracia
Modernização, Mercado e Democracia
Modernização, Mercado e Democracia
MODERNIZAÇÃO,
MERCADO E DEMOCRACIA
POLÍTICA E ECONOMIA EM SOCIEDADES COMPLEXAS
BRUNO PINHEIRO WANDERLEY REIS
Diretor
Marco Aurélio Chaves Cepik
MODERNIZAÇÃO,
MERCADO E DEMOCRACIA
POLÍTICA E ECONOMIA EM SOCIEDADES COMPLEXAS
BRUNO PINHEIRO WANDERLEY REIS
© do autor
1ª edição: 2020
Coleção CEGOV
Transformando a Administração Pública
À Fatinha
– motivo.
“L’économie politique est la véritable et unique
fondement de la politique.”
Saint-Simon
(apud W. G. Runciman, Ciência Social e Teoria Política, p. 35)
Agradecimentos 27
Introdução 33
PARTE I
MODERNIZAÇÃO E POLÍTICA
Capítulo 1 | Para um conceito de“modernização” 51
1.1. Sistemas, estruturas e funções 60
PARTE II
ECONOMIA E POLÍTICA:
INSTITUIÇÕES E DESEMPENHO
ECONÔMICO
Capítulo 3 | O mercado e a norma: o estado
moderno e a intervenção pública na economia 202
PREFÁCIO 10 //
Democracia: política e economia em sociedades complexas”
ajuda a entender a crise atual que vivemos. Mesmo que se
discorde da empreitada ou de pontos específicos do argu-
mento, a interpretação teórica dos problemas políticos sub-
jacentes ao conflito distributivo brasileiro permanece atual e
provocativa.
PREFÁCIO 12 //
Daí a importância de combinar, como faz Bruno, de
modo metodologicamente defensável, teorias macro-histó-
ricas de perspectiva “desenvolvimental” com um instrumen-
tal analítico “micro”, no caso desse livro, expresso no recurso
a elementos de teoria da escolha racional, teoria dos jogos e
public choice. Com o que se sabe hoje sobre as propriedades
emergentes de sistemas complexos, e dadas as potenciali-
dades metodológicas da Análise de Redes e das técnicas de
modelagem computacional, o exemplo do autor inspira e
abre caminhos atualíssimos para a Ciência Política.
PREFÁCIO DO AUTOR 14 //
interpelado pelo Cepik com as tarefas práticas associadas
à publicação de um livro, e que se impõem mesmo quando
se trata de trazer à luz trabalho pronto há décadas: revisão
das provas, prefácios, orelha, sinopse. Foi quando enfim me
dei conta de que era pra valer. Aquela tese de 1997, afinal,
viraria livro, por caminhos então insuspeitados, e com uma
cara diferente daquela que eu tinha imaginado nos primeiros
anos depois da defesa. Por ironia, exatamente a cara com que
foi defendida, e que à época nunca havia cogitado publicar
intacta.
Inclinado, nos primeiros meses após a defesa (também
por recomendação da banca), a um desdobramento da
agenda teórica da tese rumo a alguma validação empírica
minimamente sistemática, aderi rapidamente à ideia de
trabalhar na publicação de variados desdobramentos da tese,
bem mais que publicá-la na íntegra. Mas alguns colegas que
tinham tido contato com o trabalho tentavam me induzir
a uma publicação mais abrangente. Antonio Mitre, em
especial, sempre me encorajava, talvez na forma de um
ensaio mais especificamente teórico, com os três primeiros
capítulos. Como o capítulo 4 é antes uma interpretação livre
do caso brasileiro à luz do arcabouço teórico esboçado na
tese, e não um teste empírico de hipóteses precisas, aderi à
ideia, mas me obrigava para isso à elaboração de um fecho,
talvez um novo capítulo final, com uma explicitação do
quadro analítico em termos mais assumidamente abstratos,
talvez formais. Cheguei a esboçar uma proposta de trabalho
nesses termos para o encontro da ABCP em 1998, com o
título caracteristicamente ambicioso de “Interdependência,
expectativas, mercado: anotações para uma teoria do
PREFÁCIO DO AUTOR 16 //
em novembro de 2000, preparei uma apresentação que
juntava a longa seção final (4.4) daquele capítulo com uma
reapropriação da primeira parte do capítulo 3, melhorada
por um detalhamento maior da noção weberiana do
mercado, cuja exposição havia sido aprimorada em sala de
aula ao longo daqueles anos. Intitulado “Justiça Social em
um Mundo de Estranhos: mercado, democracia, economia
– e o caso brasileiro”, o trabalho saiu longo – e desdobrou-
se, previsivelmente, em duas publicações: a primeira foi o
artigo previsto sobre o caso brasileiro, apoiado basicamente
no capítulo 4 da tese, que saiu em junho de 2001; a outra foi
a reapropriação melhorada das seções 3.1 e 3.2, que sairia
mais tarde, em 2003.2
Àquela altura eu iniciava, apoiado por bolsa de
produtividade do CNPq, um último triênio pautado pela
contribuição de Robert Putnam em seu célebre Making
Democracy Work, de 1993, cuja interpretação do caso
italiano movimentara a ciência política na década anterior e
havia ocupado um lugar central na tese. Da convivência com
esse tema resultou mais um artigo, que mobilizou elementos
presentes no capítulo 2 da tese (principalmente na subseção
2.2.1) para um exame da contribuição de Putnam em
Making Democracy Work.3
Uma estadia em Ann Arbor no verão de 2002, para
2 Os artigos são Bruno P. W. Reis, “Mercado, Democracia e Justiça
Social: a economia política do Brasil contemporâneo” (Teoria & Sociedade,
7: 9-69, de junho de 2001) e Bruno P. W. Reis, “O Mercado e a Norma: o es-
tado moderno e a intervenção pública na economia” (Revista Brasileira de
Ciências Sociais, 52: 55-79, 2003).
3 Bruno P. W. Reis, “Capital Social e Confiança: questões de teoria e
método” (Revista de Sociologia e Política, 21: 35-49, novembro de 2003).
PREFÁCIO DO AUTOR 18 //
Nacional de Computação Científica, que se interessava
fortemente por modelagem baseada em agentes. Convidou-
me a visitá-lo no LNCC, em Petrópolis, e viabilizou nossa ida
(minha e de Ricardo Ruiz, do Cedeplar-UFMG) em mais
de uma ocasião. Em inícios de 2004 arriscamos um paper
apenas exploratório, conceitual, partindo da elaboração feita
na seção 2.2.3 da tese para uma apropriação, num algoritmo
computacional teoricamente interpretável e operacional,
do conceito de confiança interpessoal tal como utilizado
por Putnam.5 O esforço derivava sobretudo da premissa
de que a principal fragilidade do argumento de Putnam
sobre o caso italiano decorreria de excessiva linearidade do
modelo, que faz suas generalizações a partir de tipos polares
empiricamente implausíveis (confiança disseminada ou a
falta dela) para resultar, naturalmente, na reafirmação binária
dos padrões ali delineados – donde a pertinência de uma
conceituação computável de “confiança”, apta a servir como
base de testes de uma modelagem não-linear do problema.
PREFÁCIO DO AUTOR 20 //
política) devemos conferir inequívoca ênfase às estruturas
de incentivos com que se defrontam os atores, e concebê-
los sim como estrategicamente orientados – mas por outro
lado constitui um reducionismo grave presumir que esses
incentivos podem ser adequadamente compreendidos
sem remissão a condicionantes simbólicos de toda ordem.
Pois os incentivos certamente não se reduzem a interesses
materiais – e mesmo estes encontram condicionamentos
culturais. Assim, elementos culturais podem reter
sua relevância teórica se não forem concebidos como
opostos ou alternativos a cálculos estratégicos, mas
como parte integrante deles, realimentando-se também
como propriedade emergente deles, pela cristalização
de “equilíbrios” em larga escala, estabilizando no devido
tempo repertórios específicos de metaestratégias em
variados subconjuntos populacionais. Neste ponto,
novamente são bem claras as potencialidades da técnica da
simulação computacional de sistemas adaptativos baseada
em agentes, que se habilita a lidar de maneira controlável
com as não-linearidades que emergem quando tentamos
manipular os dois níveis de análise simultaneamente.
O tema desdobrou-se também num segundo esboço,
intitulado “Calculus, Networks, and Culture: a conceptual
exploration on the dynamics of trust”, agora de escopo mais
especificamente sociológico, que – feito em co-autoria com
Fabrício Fialho – foi aprovado pelo comitê de pesquisa
em escolha racional da ISA para apresentação em sessão
sobre racionalidade e confiança no Congresso Mundial
de Sociologia que teve lugar em Durban, África do Sul,
em janeiro de 2006. Não consegui, porém, financiamento
para comparecer a qualquer dos dois eventos. Àquela
PREFÁCIO DO AUTOR 22 //
níveis, e pode-se naturalmente pensar em regras de terceira
ordem (sobre exceções à aplicação de exceções...), regras de
quarta ordem, e assim por diante. Sob tal enquadramento,
considerações estratégicas estão profundamente imbricadas
com normas. A razão pela qual uma abordagem como
essa pareceria pouco frutífera ao longo da maior parte
do século XX é bastante clara: ela rapidamente levaria a
análise a uma grande confusão de regras e meta-regras e
meta-meta-regras, sem clara distinção conceitual entre elas,
ou qualquer resultado demonstrável ao final. Hoje, porém,
a difusão dos computadores aumenta dramaticamente
a nossa capacidade de manipulação (tanto experimental
quanto dedutiva) de silogismos complexos, e expressões
praticamente não formalizáveis até há pouco são agora
exprimíveis em algoritmos simples. O que torna bastante
praticável a modelagem do comportamento adaptativo
sugerido pelo enquadramento conceitual aqui esboçado,
com um largo espectro de combinações concretas de regras
operacionais derivadas da operação de um conjunto limitado
de regras e meta-regras (e meta-meta-regras... mas, ainda
assim, limitado). O alcance dessa nova agenda de pesquisa
é bastante concreto, e pode ser brevemente ilustrado por
resultados sintetizados, por exemplo, por Brian Skyrms.6
Pois bem. Aonde isso nos levaria? No que tange
aos propósitos de inquirição conceitual presentes naquele
resumo de Budapeste, algumas implicações poderiam
ser preliminarmente levantadas – particularmente no
6 Cf. Brian Skyrms, The Evolution of the Social Contract. Cambrid-
ge: Cambridge University Press, 1996; e Brian Skyrms. The Stag Hunt and
the Evolution of Social Structure. Cambridge: Cambridge University Press,
2003.
PREFÁCIO DO AUTOR 24 //
uma cultura “dada” e se indaga sobre seus efeitos na conduta
das pessoas, ou se das regras adotadas no plano individual,
de onde se infeririam padrões agregados específicos, em
princípios definíveis e tipificáveis. Trata-se apenas de dois
níveis de análise possíveis do mesmo objeto empírico, e que
portanto devem ser mutuamente consistentes. Idealmente,
deveríamos ser capazes de alcançar um conjunto de padrões
culturais identificáveis que viriam a compor uma taxonomia
apta a apoiar esforços de diagnóstico mais informados –
mas é claro que estamos muito aquém desse desiderato.
Avanços nessa agenda, contudo, tenderiam sim a favorecer
compreensão mais matizada de processos complexos
relacionados à dinâmica da participação e da apatia política,
com seus conteúdos cognitivos e valorativos subjacentes.
No que toca a meu próprio trabalho, porém, a reflexão
sobre instituições iniciada na tese encontrou uma síntese
provisória em novo trabalho, levado à Anpocs em 2007.8
Àquela altura, porém, o atendimento natural das demandas
profissionais postas pelo contexto político já me levava para
longe dessa agenda teórica rumo à discussão do sistema
eleitoral e do financiamento de campanhas no Brasil – onde
uma demanda pública proporcionava com muito maior
intensidade o estímulo e a cobrança que realimentam a
agenda de trabalho. Desde então, como costuma acontecer,
8 Bruno P. W. Reis, “Valores e Estratégia na Política da Inovação Ins-
titucional: anotações para uma teoria geral das instituições políticas”, XXXI
Encontro Nacional da Anpocs, outubro de 2007. O trabalho apresentado
permaneceu inacabado até que encontrasse destino publicado sob a forma
das três primeiras seções de Bruno P. W. Reis e Vera Alice Cardoso Silva,
“Instituições Políticas”, em Dawisson Belém Lopes e Márcia Miranda Soares
(orgs.), Sonhos e Labores: O Cinquentenário do Primeiro Departamento de
Ciência Política do Brasil, 69-87. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2018.
PREFÁCIO DO AUTOR 26 //
Agradecimentos
AGRADECIMENTOS 28 //
e Tereza Ventura compuseram o núcleo do que se pode
de modo amplo denominar como “minha turma” naqueles
anos. Merece menção à parte entre os colegas de mestrado
meu querido amigo Adriano Cerqueira, conterrâneo que
conheci apenas quando ambos nos mudamos para o Rio,
mas que rapidamente se tornou daqueles raros amigos
que se sabe eternos. Fomos e voltamos juntos, e dele e de
Letícia eu sempre pude contar com a amizade fraterna,
a atenção desinteressada e – posteriormente – mesmo o
carinho dos filhos.
AGRADECIMENTOS 30 //
momentos diferentes e de maneiras diversas propiciaram-
me simplesmente algum lugar onde morar.
AGRADECIMENTOS 32 //
Introdução
INTRODUÇÃO 34 //
Cheguei ao Iuperj em 1989, armado dos rudimentos
dessa literatura, e prossegui nessa linha de estudos durante
o mestrado, integrando-me ao Laboratório de Estudos
Marxistas Contemporâneos (constituído sob a coordenação
do Prof. Luiz Werneck Vianna a partir da leitura de Making
Sense of Marx, de Jon Elster) e frequentando uma disciplina
de introdução à teoria dos jogos oferecida pela Prof.ª Maria
Regina Soares de Lima no primeiro semestre de 1990.
Dessas duas atividades resultou um trabalho sobre classes
sociais e ação coletiva que – concluído já no início de 1991–
teve papel importante na definição dos rumos tomados por
meu doutorado.2 A aproximação com o tema das classes
sociais a partir de Olson – e da caracterização das classes
como “grupos latentes” típicos – propiciou-me um retorno
à antiga curiosidade em relação ao fenômeno da inflação,
agora associado ao tema do conflito distributivo e dos efeitos
supraintencionais (“macro”) da dinâmica da agregação de
interesses individuais infinitesimais (“micro”), recurso típico
da rational choice.
INTRODUÇÃO 36 //
atores individuais imersos no conflito distributivo a partir
da utilização de certas estruturas de interação bastante
elementares da teoria dos jogos (assim, afirma-se que o
conflito distributivo poderia ser genericamente descrito
como um dilema do prisioneiro, uma solução cooperativa
estável deveria envolver sua transformação num “jogo da
garantia” etc.); o segundo plano – digamos, “sociológico” –
está incorporado no recurso a Huntington, e todo o substrato
sociológico implicitamente presente em seu argumento sobre
as raízes da fragilidade institucional de países submetidos a
processos acelerados de modernização. Em sua forma original,
o projeto conferia clara ênfase à composição do plano
“econômico” do argumento, e o recurso a Huntington servia
apenas para fornecer – um tanto “impressionisticamente” –
certas características básicas do contexto nacional dentro do
qual a inflação havia prosperado, e que tornava sua remoção
particularmente penosa.
INTRODUÇÃO 38 //
residia sobretudo nos aspectos econômicos, apoiando-se
no recurso à teoria econômica; e foi inevitável a sensação
de que nossas principais lacunas estão a demandar reflexão
em teoria política.
INTRODUÇÃO 40 //
Pareceu-me claro que a questão decisiva era
compreender as razões porque alguns estados conseguiam
reunir a autoridade necessária para governar e outros
não. Compreender a lógica que prendia alguns países no
interior do ciclo perverso de instabilidade institucional
crônica, violência cotidiana e espasmos periódicos de franco
autoritarismo, sob estados que pareciam ser simultaneamente
hiperdimensionados e débeis, centralizadores e ineficazes.
Identificar condições favoráveis à operação eficaz de normas
democráticas impessoalmente formuladas. Compreender
os mecanismos pelos quais as mesmas instituições podem
funcionar melhor em alguns lugares que em outros. Em
suma, compreender alguns mecanismos condicionantes da
carência de governance – a que se referiu Leila Frischtak – tão
frequente nos países periféricos, para em seguida identificar
algumas consequências econômicas presumíveis dessa falta.
Traduzindo para o jargão de trinta anos atrás, perseguir as
consequências econômicas do “pretorianismo de massas”
definido por Huntington.
INTRODUÇÃO 42 //
Com efeito, talvez algumas das principais dificuldades da
ciência política contemporânea derivem, em certa medida,
da ambição um tanto exagerada de prover respostas e
“soluções” imediatas à agenda dos políticos, mediante uma
teorização ad hoc que acaba fazendo com que, após termos
passado a década de setenta debruçados sobre o colapso
das democracias e a emergência de regimes autoritários,
passemos a década seguinte escrevendo livros e mais livros
sobre a transição para a democracia – em ambos os casos
deixando de situar na devida perspectiva o fenômeno
geral da instabilidade política de determinadas sociedades
(tão claramente relacionado a nossas preocupações
contemporâneas com a “capacidade de governo”), que faz
com que pareçam se alternar indefinidamente regimes
autoritários com interregnos democráticos.9
INTRODUÇÃO 44 //
sistemas políticos tipicamente engendrados ao longo
do processo produzem sobre a operação da economia.
O Brasil aparece, ao final, caracterizado como um caso
que ilustra algumas vicissitudes a que estão sujeitos
países precariamente institucionalizados, em processo de
modernização acelerada.
INTRODUÇÃO 46 //
observada no Brasil ao longo do século e os desafios que
ela nos lega.
Wolfgang Schluchter,
The Rise of Western Rationalism (1979), p. 176.
CAPÍTULO 1
PARA UM CONCEITO
DE “MODERNIZAÇÃO”
CAPÍTULO 1 52 //
feitas contra o abuso deste conceito nos anos 60 e, ao mesmo
tempo, nos ajudar a diagnosticar o macroprocesso em curso
na constituição de nossa unidade de análise, que ainda é o
estado-nação “moderno”.
CAPÍTULO 1 54 //
nunca poderá ser caracterizado teoricamente senão como um
“instantâneo”, num ponto qualquer do tempo, dos resultados
concretos de um processo que lhe é subjacente, de uma
dinâmica social específica engendrada a partir da confluência
de um determinado conjunto de circunstâncias, séculos atrás.
Assistimos ainda ao desenrolar deste processo – contraditório,
tenso, muitas vezes extremamente violento, e ainda presa de
oscilações esporádicas que fazem com que tudo pareça reverter,
que valores supostamente enterrados para sempre ressurjam
com força inaudita logo adiante, adiando e, com frequência,
frustrando os sonhos otimistas dos modernizadores mais
utópicos. Concebendo, portanto, as peculiaridades da história
dos últimos séculos como as vicissitudes de um processo (de
cuja “conclusão” podemos efetivamente estar muito mais
distantes do que a ciência social do século XX tendeu a
acreditar – do leninismo a Fukuyama, passando pela sociologia
política americana dos anos 60), podemos legitimamente nos
perguntar sobre as suas características básicas. Poderei dizer
que vejo, assim, um mundo em “modernização”, se puder
estabelecer as linhas básicas deste processo, seus elementos
deflagradores, suas linhas de mudança, sua direção geral. A
“modernidade” se caracterizará sobretudo pela extrapolação
na direção do futuro das linhas básicas de continuidade do
processo em curso. Numa palavra, a modernidade se constitui
sobretudo como utopia. Não é por acaso que Habermas a
ela se refere como “projeto inacabado”. Isto é apenas outra
maneira de dizer “processo em curso”, buscando ao mesmo
tempo desvencilhar-se de certa “teleologia objetiva”.12
12 Jurgen Habermas, “La Modernidad”. Para uma crítica do recurso
à “teleologia objetiva”, ver Jon Elster, “Marxism, Functionalism, and Game
Theory”, pp. 454-5.
CAPÍTULO 1 56 //
de que as diversas “orientações estruturalmente possíveis”
da ação (“para valores” ou “para o sucesso”) pudessem ser
sujeitas a desenvolvimento. Naturalmente, afirmar que
Weber tenha produzido uma abordagem “desenvolvimental”
(developmental)16 da história não implica afirmar que sua
teoria possa ser reduzida a uma série linear de estádios
históricos sucessivos e inevitáveis. Segundo Schluchter, ao
contrário, “Weber’s developmental history contrasts one
cultural tradition with others for the sake of identifying its
distinctiveness and its specific historical course”.17
CAPÍTULO 1 58 //
crescente divisão do trabalho e na emergência de estruturas
sociais sempre mais especializadas funcionalmente, bem como
a interação complexa entre essa diferenciação (potencialmente
desintegradora) e a emergência de novas formas de integração.
Bendix observa, por exemplo, que na economia tradicional
há elevada integração dentro das unidades domésticas e
das comunidades, e baixa integração entre elas – e durante
a modernização observa-se uma tendência à inversão desse
padrão, com crescente interdependência entre unidades
produtivas diversas, entre a família e o mercado etc.21
Brian Barry,
Sociologists, Economists and Democracy (1970), p. 181.
CAPÍTULO 1 60 //
ideal em pauta. Entendo, portanto, que seria útil proceder
uma breve discussão de alguns pontos salientes relacionados
a este tópico, com o intuito de explicitar determinados
aspectos relevantes – e substantivos – do uso que aqui se
fará do conceito de modernização.
CAPÍTULO 1 62 //
transformações ocorridas no bojo de um mesmo sistema e, do
outro lado, seu colapso e completa substituição por outro. Por
exemplo, em que bases podemos afirmar que tenha havido
colapso de um sistema social e sua substituição por outro
sistema, digamos, na França de 1789? Ou na Rússia de 1917?
Ou, alternativamente, terá havido apenas transformações
mais ou menos profundas no interior de um mesmo sistema
social, que sobrevive na medida em que sobrevivem costumes e
tradições diversas do sistema anterior? Em suma, será de todo
possível falar no colapso de um sistema em teoria social? Salta
aos olhos aqui a impropriedade da analogia entre sociedade
e sistema, já que a própria “sociedade” é uma construção
conceitual ad hoc, frequentemente associada de maneira mais
ou menos arbitrária a estados nacionais de modo a atribuir a
cada estado a representação de uma “sociedade” que lhe seria
subjacente.25
CAPÍTULO 1 64 //
“funções”. É falar num todo funcionalmente articulado cujas
“estruturas” componentes cumprem determinadas funções
tidas como necessárias e/ou suficientes à preservação daquele
todo, o sistema.29 A noção de “função”, por sua vez, somente
incorpora um tipo peculiar de explicação sociológica
(“funcionalista”) se implica a assimilação da estrutura em
pauta por um tipo de mecanismo coordenado – sistêmico
– que estabeleça algum tipo de causalidade objetiva que
produza continuadamente o desempenho dessa função.
Caso contrário, o desempenho de uma função incorporará
necessariamente um modo de explicação de tipo teleológico,
ou intencional. Ou seja, há uma dependência recíproca entre a
busca da interpretação do funcionamento das sociedades como
sistemas compostos por estruturas mutuamente dependentes
e o modo de explicação funcionalista. O problema é que a
estrutura lógica da explicação funcionalista é razoavelmente
complexa e, portanto, os requisitos do recurso válido a uma
explicação funcionalista são relativamente exigentes.30 Não
CAPÍTULO 1 66 //
ênfase, da análise da estrutura normativa que caracteriza as
instituições políticas para a observação das funções que elas
desempenham. Esta mudança talvez seja particularmente
evidente em boa parte da produção teórica dos anos 60
(particularmente no trabalho de autores ligados ao meio
universitário norte-americano, tais como Almond e Powell,
Deutsch, Easton etc.),33 mas – como atentamente sublinha
Bobbio – está presente com bastante nitidez também nos
trabalhos pioneiros dos “fundadores” da ciência política
contemporânea no final do século XIX e início do século
XX, como Gumplowicz, Mosca, Pareto, Michels, Schmitt
etc., sendo claramente este conteúdo “sociológico” o que
distanciará a ciência política produzida dali em diante da
matriz jurídica observada até então.34 Naturalmente, deve-
se reconhecer que a abordagem “cibernética” (usualmente
associada sobretudo com os nomes de Karl Deutsch e David
Easton) constitui uma exacerbação muito particular da ênfase
numa ramificação sociológica específica, que – tributária das
elaborações de Talcott Parsons em torno do “sistema social”
– se apoiará pesadamente na teoria dos sistemas, tendo
levado sua utilização a um nível talvez despropositado. Com
ênfase na análise da resposta a estímulos (input-output), a
abordagem procurava valer-se do aparato mais técnico da
teoria cibernética apostando na sua presumível utilidade em
comparações complexas, em que as diversas peculiaridades
dos diferentes sistemas políticos em questão pudessem ser
33 Aqui ocorrem-me particularmente Almond e Powell, Comparative
Politics; Easton, A Framework for Political Analysis; e Deutsch, The Nerves
of Government e Politics and Government.
34 Ver N. Bobbio, “Ciência Política”, p. 165, para as referências a Mos-
ca e Gumplowicz.
CAPÍTULO 1 68 //
comportamento de um indivíduo racional calculador (sequer
é possível caracterizar um comportamento como sendo ou
não racional na ausência do contexto da ação propiciado
pelo ambiente em que o indivíduo se encontra, ou seja, na
ausência de alguma configuração da sociedade),36 por outro
lado podemos compartilhar com Parsons a determinação
do “foco” do sistema social: “the social-system focus is on
the conditions involved in the interaction of actual human
individuals who constitute concrete collectivities with
determinate membership”.37 Uma afirmação como esta
seguramente atribui lugar crucial na construção do sistema
a modelos que busquem estabelecer de maneira formal os
nexos porventura existentes entre determinados padrões
de interação entre indivíduos dotados de estruturas de
preferências (ou normas internalizadas) tomadas como
dadas, de um lado, e certas consequências socialmente
presumíveis destes padrões de interação, do outro.38 E
isto é precisamente o que fazem (ou procuram fazer) os
diversos modelos de interação derivados da abordagem
da “escolha racional”, que nada mais faz que oferecer a
CAPÍTULO 1 70 //
de um arcabouço teórico “macro” funcionalmente
articulado com o instrumental analítico formal (“micro”)
da teoria dos jogos. E a teoria da modernização aqui pode
ser bastante valiosa, pois já traz em si mesma – e nisso se
distingue da teoria dos sistemas estritamente considerada
– a compreensão de um processo de mudança, de um
processo de mudança sistêmica, e secular, macro-histórico.
Não se ocupa, todavia, de atores e conjunturas específicos
– pois é óbvio que atores específicos não agem ao longo
de séculos, nem conjunturas específicas duram séculos –,
o que pode tornar precária sua utilização para o estudo de
determinados eventos e casos empíricos concretos. Daí a
elevada contribuição, repito, que um esforço de integração
desse material poderia significar para as ciências sociais
em geral.40
CAPÍTULO 1 72 //
a propósito, precisamente a situação que configura o “estado
natural” desenhado por Rousseau no Discurso sobre a Origem
e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens: um estado
primitivo (entendido o “primitivo” aqui como a ausência de
normas; não como “primeiro”, “original”, ou “inicial”) sem a
hipótese da escassez. Donde o “bom selvagem”, o relativo
torpor da vida natural. Mas onde quer que haja coexistência,
há escassez – e o “estado de natureza” de Hobbes nada mais
é que um estado primitivo com a hipótese da escassez. Da
conjunção entre escassez e ausência de normas (portanto,
da conjunção entre coexistência e ausência de normas), nada
CAPÍTULO 1 74 //
Assim, Lockwood, que desconsidera qualquer
especulação marxiana em torno da superação da escassez (e,
assim, do estado – ver discussão abaixo, subseção 2.1.1), pôde
acompanhar Parsons em considerar que “Marx’s fundamental
insight into the dynamics of social systems” foi demonstrar
o fato de que “interests of a non-normative kind are not
random in the social system, but systematically generated
through the social relations of the productive process”.
Assim, sublinha Lockwood, “Marx agrees with Hobbes that
conflict is endemic to social interaction”, mas pode dar um
passo adiante com a introdução da divisão social do trabalho
na análise, e transformar a “guerra de todos contra todos” na
“guerra de uma classe contra outra”, que (mesmo que a ela
não se possam reduzir todas as disputas, como eventualmente
sugere a escatologia marxista) certamente conforma clivagens
sociais decisivas que não podem ser ignoradas num esboço
apropriado do sistema social45 – ou tampouco na configuração
do contexto em que se moverão os atores individuais de um
modelo apoiado na “escolha racional”.
David Lockwood,
“Some Remarks on ‘The Social System’” (1956), p. 141.
CAPÍTULO 1 76 //
tem sublinhado Robert Nisbet.47 Meramente afirmar,
por exemplo, que não apenas Marx, mas também Weber
era “desenvolvimentalista”, ou mesmo que toda a ciência
social contemporânea é “desenvolvimentalista”, não chega
a constituir um argumento em favor de uma abordagem
“desenvolvimentalista”. É necessário, antes, demonstrar a
plausibilidade de uma interpretação “desenvolvimentalista”
da história – bem como a fecundidade das interpretações e
explicações que possam dali ser extraídas – perante as fortes
críticas que a linearidade histórica ingênua muitas vezes
inferida a partir das teorias da modernização merecidamente
atraiu para si. É necessário delinear um conjunto de hipóteses
explicativas sobre o processo de modernização que possa
responder às críticas feitas ou, pelo menos, incorporá-las numa
nova interpretação dos acontecimentos dos últimos séculos.
CAPÍTULO 1 78 //
generalização. Assim, mesmo a afirmação estrita de que
o fenômeno específico “b” foi provocado pelo fenômeno
específico “a” envolve necessariamente a presunção de que
fenômenos do tipo “A” provocam fenômenos do tipo “B”.
CAPÍTULO 1 80 //
referidos quando se trata de caracterizar a modernização.
A relação precisa desses diversos traços com o próprio
fenômeno geral, porém, permanece controvertida. Muitas
vezes é difícil especificar se desempenham um papel
causal importante no processo geral da modernização,
ou se, ao contrário, são sintomas relativamente inócuos e
momentâneos. Assim, por exemplo, Boudon e Bourricaud
partem da identificação de um “processo de mobilização,
diferenciação e laicização”, cuja difusão presidiria o processo
geral de modernização.53 A ideia de “mobilização social”
é tomada de Karl Deutsch, interessado nas implicações
sociopolíticas de diferentes graus de facilidade e rapidez
com que os bens, as pessoas e as informações circulam
no interior de uma mesma sociedade. A presunção de
Deutsch é que o aumento dessa “mobilização”, que
tipicamente acompanha o processo de modernização, não
pode deixar de produzir efeitos de ruptura com velhos
padrões associativos, hábitos e lealdades pessoais.54 A
“diferenciação”, por sua vez, relaciona a modernização
com os critérios peculiares de divisão social do trabalho
que caracterizam a sociedade moderna, e está no cerne de
toda a reflexão canônica da moderna sociologia. Assim,
por exemplo, tanto Weber quanto Durkheim situavam
o processo de crescente “especialização” no centro da
emergência da sociedade moderna, ainda que o estilo
53 Boudon e Bourricaud, Dicionário Crítico de Sociologia (verbete
“Modernização”), p. 362. Preliminarmente, eles descartam a restrição do
emprego do termo “modernização” aos países em desenvolvimento, por en-
tenderem – corretamente, a meu juízo – que desta maneira restariam ex-
cluídos da análise os desdobramentos ainda em curso “no centro”.
54 Deutsch, “Social Mobilization and Political Development”, pp. 205-7.
CAPÍTULO 1 82 //
São sobretudo sintomas, talvez sim os mais importantes e
generalizáveis, mas é certo que não podemos nos satisfazer
com a mera detecção dos traços mais salientes do processo,
e temos que perseguir o próprio mecanismo causal que
deflagra esses sintomas se quisermos persuadir os mais
céticos de que temos aqui algo mais que uma imputação
puramente arbitrária de um destino para a história que nos
preencha as fantasias.
CAPÍTULO 1 84 //
apliquem igualmente a todos. E assim por diante. A força
com que se impõe o reconhecimento da existência de um
impressionante grau de consenso no plano normativo acerca
dessas distinções parsonianas no mundo contemporâneo (ou
seja, não necessariamente um consenso quanto ao que é o
mundo moderno, mas sim quanto ao que deveria ser o mundo
moderno) nos dá um claro parâmetro para avaliação e crítica
do mundo em que vivemos, nos dá uma direção. E, ao diluir
o corte abrupto entre sociedades modernas e tradicionais,
apenas reforça minha preferência por falar em “modernização”
ao invés de “modernidade” para referir-me à história “recente”
da humanidade; de um processo em vez de um estado de coisas.
Dessa perspectiva, somente poderíamos falar da modernidade
como um “norte” remoto, um tipo ideal, para o qual o processo
de modernização tenderia.57
CAPÍTULO 1 86 //
pois esta caracterização perde de vista que o Ocidente foi ele
próprio drasticamente modificado ao longo do processo, desde
que começaram a prosperar os principais burgos comerciais
na Idade Média, e o foco da economia começou lentamente
a se deslocar dos domínios feudais em direção às cidades. O
que seguramente se pode afirmar é que, tendo sua origem na
Europa Ocidental, o processo de modernização permitiu a
esta parte do globo estender seu domínio sobre todo o planeta.
O problema é, portanto, perseguir uma especificação da
lógica situacional60 subjacente ao processo de modernização
60 A expressão “lógica situacional” é definida por Karl Popper na 25.ª
tese de “A Lógica das Ciências Sociais”, pp. 31-2:
“A investigação lógica da Economia culmina com um resultado que pode
ser aplicado a todas as ciências sociais. Este resultado mostra que existe um método
puramente objetivo nas ciências sociais, que bem pode ser chamado de método de
compreensão objetiva, ou de lógica situacional. Uma ciência orientada para a com-
preensão objetiva ou lógica situacional pode ser desenvolvida independentemente
de todas as idéias subjetivas ou psicológicas. Este método consiste em analisar sufi-
cientemente a situação social dos homens ativos para explicar a ação com a ajuda da
situação, sem outra ajuda maior da psicologia. A compreensão objetiva consiste em
considerar que a ação foi objetivamente apropriada à situação. Em outras palavras,
a situação é analisada o bastante para que os elementos que parecem, inicialmente,
ser psicológicos (como desejos, motivos, lembranças e associações), sejam transfor-
mados em elementos da situação. O homem com determinados desejos, portanto,
torna-se um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo fato de que persegue
certos alvos objetivos; e um homem com determinadas lembranças ou associações
torna-se um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo fato de que é equipa-
do, objetivamente, com outras teorias ou com certas informações.
“Isto nos permite compreender, então, ações em um sentido objetivo, a
ponto de podermos dizer: reconhecidamente, possuo diferentes alvos e sustento dif-
erentes teorias (de, por exemplo, Carlos Magno), mas se tivesse sido colocado nesta
situação, logo, analisado – onde a situação inclui metas e conhecimento – então eu,
e presumidamente vocês também, teria agido de uma forma semelhante à dele. O
método da análise situacional é, certamente, um método individualista e, contudo,
não é, certamente, um método psicológico, pois exclui, em princípio, todos os ele-
mentos psicológicos e os substitui por elementos objetivos situacionais. Eu chamo
isto, usualmente, de ‘lógica da situação’ ou ‘lógica situacional’.”
CAPÍTULO 1 88 //
e, em sua dimensão científico-tecnológica, não encontra
paralelo na história da humanidade.61
CAPÍTULO 1 90 //
sugere que a própria “revolução científica” teria de encontrar
por trás de si, como sua condição de possibilidade, um
processo já em curso de transformação social que solapasse
a rígida hierarquização (e portanto o escolasticismo)
da sociedade medieval. Procurando evitar, todavia, um
argumento circular segundo o qual se poderia afirmar
tanto que a “sociedade científica” decorre da “sociedade
democrática” quanto a recíproca, prefiro partir da premissa
de que ambas são impulsionadas por uma terceira causa:
a “sociedade comercial” (em que as unidades domésticas
deixam de ser autárquicas e sua reprodução passa a depender
da troca – ou do “mercado”, se se preferir).65
“Todas as questões de interesse geral que o Soberano tinha por função regu-
larizar e que definem o campo da arché são agora submetidas à arte oratória e deverão
resolver-se na conclusão de um debate; é preciso, pois, que possam ser formuladas
em discursos, amoldadas às demonstrações antitéticas e às argumentações opostas.
Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vínculo recíproco. A arte política
é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de
si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, através de sua função política. Historica-
mente, são a retórica e a sofística que, pela análise que empreendem das formas do
discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembléia e do tribunal, abrem
caminho às pesquisas de Aristóteles ao definir, ao lado de uma técnica da persuasão,
regras da demonstração e ao pôr uma lógica do verdadeiro, própria do saber teórico,
em face da lógica do verossímil ou do provável, que preside aos debates arriscados na
prática.”
Também D. Apter, The Politics of Modernization, pp. 9-11, dá certo
corpo filosófico à relação postulada por Black entre modernização e dissemi-
nação de conhecimentos. Ele coloca a escolha no centro do processo, e cha-
ma atenção para o vínculo entre escolha e racionalidade, e para a dimensão
moral da escolha, aproximando-se do racionalismo crítico popperiano e da
teoria weberiana da modernização como racionalização.
65 A dependência face ao comércio também é mencionada por Black,
The Dynamics of Modernization, p. 18, como um traço tipicamente moder-
CAPÍTULO 1 92 //
– em suma, a mesma dinâmica que impõe a necessidade
de proteção social pelo estado em economias modernas –
abre também a possibilidade do sucesso, da ascensão social
para todo aquele que se aventurar no mundo dos negócios.
Assim, o sucesso comercial, financeiro – o enriquecimento,
isto é, a acumulação de poder econômico – não se encontra
inexoravelmente condicionado pelas circunstâncias do
nascimento (mesmo que não seja indiferente a elas). Quanto
maior, portanto, a importância econômica do comércio em
uma sociedade, maiores as possibilidades de ascensão (e
declínio) social, e maiores as possibilidades de conflito entre
detentores de status social e detentores de poder econômico.
Maior a imprevisibilidade intrínseca da vida social, e maior
a possibilidade de que outsiders venham a angariar poder de
facto de influir em questões que em princípio estariam sujeitas
apenas a decisões tomadas por determinados estamentos
sociais politicamente dominantes. Simplificando: a expansão
das relações comerciais produz sociedades comparativamente
mais urbanas e competitivas; sua retração, ao contrário,
produz sociedades rurais e hierárquicas.67
67 Este, a meu ver, é o principal motivo da incompatibilidade histo-
ricamente observada entre sociedades agrárias e democracia. A este ponto
se referem rapidamente D. Rueschemeyer, E. H. Stephens e J. D. Stephens,
Capitalist Development and Democracy, p. 2. Deve-se admitir que esta pro-
posição teórica geral acerca da afinidade entre centralidade do comércio e
“fluidez” social não se pode, naturalmente, pretender aplicar exclusivamen-
te aos acontecimentos que levaram à conformação do mundo moderno a
partir da Baixa Idade Média européia. Não é difícil, porém, encontrar na
literatura sobre a Grécia Antiga abundante corroboração dessa afinidade.
Quando estudamos a história somente a partir da construção do mundo
moderno efetivamente somos induzidos a identificar uma “evolução” linear
que desaparece sob uma perspectiva temporal mais ampla. Assim, podemos
observar processos similares em outros momentos da história, cuja “linha”
CAPÍTULO 1 94 //
individual racionalmente perseguido levaria à generalização
da produção especializada para a troca no âmbito do mercado.
Esta especialização, naturalmente, produziria o efeito crucial
de provocar a dependência dos produtores individuais frente
ao mercado – pois, com a produção especializada, eles já não
produzem tudo de que precisam. Assim, a sobrevivência dos
produtores passa a depender da venda de seus produtos no
mercado, e, para tanto, é necessário ser capaz de oferecer sua
mercadoria a um preço competitivo, mas que ao mesmo tempo
lhe garanta um lucro com o qual ele comprará as demais
mercadorias necessárias à sua sobrevivência e à manutenção
da sua produção: ele deve, portanto, maximizar a relação
preço/custo, o que lhe imporá a permanente pressão por
reduzir custos, por inovar. E pelo efeito contínuo dessa pressão
inovadora sobre cada produtor isolado, há uma motivação
constante para a incorporação de novas técnicas derivadas de
novos conhecimentos científicos, e a economia se desenvolve
e se diversifica permanentemente.69 Assim, segundo esta
explicação, “what distinguishes modern economic growth [...]
is the presence in the economy of a systematic and continuous
tendency or drive to transform production in the direction
of greater efficiency.”70 E esta tendência teria como premissa
única o comportamento racional dos indivíduos.
CAPÍTULO 1 96 //
importante, supõe-se que todos os atores – sobretudo
os mais fortes – prefiram competir legalmente, em
vez de simplesmente espoliarem os demais quando a
oportunidade se lhes apresentar. É importante que todos
os atores se comportem assim, ou mesmo aqueles que não
se encontrarem em condições de espoliar quem quer que
seja deixarão de ter segurança sobre o retorno de suas
atividades – uma vez que poderão ser espoliados pelos
mais fortes – e não poderão trabalhar voltados para um
ganho futuro a ser obtido no mercado.
CAPÍTULO 1 98 //
À configuração dessa passagem Brenner dedicará o
restante do texto. Os traços característicos das relações de
propriedade pré-capitalistas, segundo Brenner, são basicamente
dois. Em primeiro lugar, “the direct producers held direct (i.e.
non-market) access to their full means of subsistence, that is
the tools and land needed to maintain themselves” – e, muito
importante, eles não eram expropriáveis. Em segundo lugar, em
decorrência do primeiro traço, os membros da classe exploradora
eram obrigados a se reproduzir através de coerção extraeconômica
– o que tornava de vital importância a manutenção de forças
coercitivas (militares) privadas. O poderio militar era o critério
fundamental que distinguia a classe dos exploradores.72 Feito isto,
Brenner se dedica a mostrar porque as relações de propriedade
pré-capitalistas embaraçavam o desenvolvimento econômico.
Fundamentalmente, seu argumento apóia-se no fato de que
tanto os produtores diretos quanto os seus exploradores tinham
assegurado o acesso direto a seus meios de reprodução. Logo,
um propósito consciente de pelo menos uma parcela importante dos atores
econômicos numa sociedade qualquer. De maneira bastante fiel à ortodo-
xia marxiana sob este aspecto, Brenner afirma que as instituições políticas
resultarão precisamente desse propósito. Ver Brenner, “The Social Basis of
Economic Development”, p. 48.
72 Brenner, “The Social Basis of Economic Development”, p. 27. Daí a
fatal necessidade do progresso sistemático dos meios de coerção mesmo sob
relações de propriedade pré-capitalistas. Pois nesse campo há competição
em qualquer circunstância (p. 32). Para uma concepção similar da diferença
central entre exploração capitalista e exploração pré-capitalista, apresenta-
da de maneira mais precisa e formalmente rigorosa, ver John Roemer, “New
Directions in the Marxian Theory of Exploitation and Class”, esp. pp. 81-2.
Para Roemer, o desafio que Marx enfrentou quando elaborou sua teoria da
exploração sob o capitalismo foi precisamente o de tentar explicar a persis-
tência e a reprodução eventualmente ampliada da desigualdade econômica
sob condições não mais estritamente coercitivas, mas sobretudo competitit-
vas – donde a necessidade do recurso a uma “lei do valor”.
CAPÍTULO 1 100 //
coloca-se em posição de nos informar sobre os detalhes, os
“acidentes” específicos da história europeia que podem nos
ajudar a compreender a evolução peculiar que teve lugar
naquele contexto a partir da expansão comercial que se
observa desde a Baixa Idade Média. Pois, por motivos que
o próprio Brenner mostra,75 a expansão comercial não pode
ser tomada por condição suficiente do capitalismo, ainda
que se possa admiti-la como condição necessária. Como é
óbvio, nem toda expansão comercial observada na história
seguiu-se do advento e da difusão generalizada de relações
de produção capitalistas.
CAPÍTULO 1 102 //
patrimônio herdado de antepassados e armazenado nos
pergaminhos dos mosteiros, e passa a constituir-se também
ele em algo “móvel” por excelência, em princípio acessível a (e
a ser construído por) qualquer pessoa dotada da curiosidade
e do rigor necessários para levar a cabo um experimento
científico. A laicização tem lugar, paulatinamente, no
bojo desse processo de desconstrução da autoridade das
fontes tradicionais do conhecimento, e de sua consequente
transformação – de dogmas em hipóteses.
CAPÍTULO 1 104 //
historicismo é a falta de fundamentação “microssociológica”
(derivada do plano do comportamento individual dos
atores) de suas teses – e, apoiado nos microfundamentos que
Brenner sugere, não pretendo ignorar no meu argumento o
plano das ações individuais. Por outro lado, advertido pelo
ceticismo weberiano, não preciso ver apenas emancipação
humana e fluidez social no rastro do avanço tecnológico.
Veremos no próximo capítulo as implicações políticas do
processo de burocratização que acompanha forçosamente
a racionalização e a diferenciação das estruturas sociais
verificadas no Ocidente. Assim, a rejeição do historicismo
pode conviver, em princípio, com a identificação empírica
de certos “mecanismos-chave” que induzam determinados
desdobramentos e não outros. E por que seria necessária aqui,
a meu ver, essa identificação de mecanismos-chave? Para
se poder admitir uma compreensão sintética de uma visão
“desenvolvimental” da história mundial nos últimos séculos,
de modo a permitir uma análise de desafios contemporâneos
conformada por problemas que possam ser analiticamente
compreendidos e valorativamente definidos pela remissão
a um contexto e a um processo externo – que comumente
chamamos de “modernização”.
CAPÍTULO 1 106 //
CAPÍTULO 2
A POLÍTICA MODERNA
Alexis de Tocqueville,
De la Démocratie en Amérique, vol. 1 (1835), p. 256.81
81 Apud Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, p. 209.
CAPÍTULO 2 108 //
Na presente seção serão abordados alguns temas clássicos
da teoria política, sempre com a atenção voltada para a forma
como se manifestam (e as eventuais mutações que sofrem)
esses problemas especificamente ao longo do processo de
modernização descrito no capítulo anterior. Na subseção
2.1.1, será discutido o erro cometido pelas duas principais
utopias da época moderna (o marxismo e o liberalismo) ao
atribuir à política uma importância decrescente em suas visões
do futuro, visão constantemente desmentida pelo irresistível
crescimento da área de atuação do poder público, bem como
de seus mecanismos de controle e vigilância dos atos da
população. Os mecanismos pelos quais se dá essa expansão da
organização burocrática do estado são discutidos na subseção
2.1.2, onde se alega que a sociedade moderna exigirá crescente
previsibilidade do poder público, em nome da imperiosa
“coordenação de expectativas” que a coexistência no interior de
uma sociedade crescentemente complexa requererá. Por fim, a
subseção 2.1.3 tratará de problemas associados à constituição
da autoridade pública junto à população em uma sociedade
complexa, mediante processos de institucionalização que
enfrentam o dilema de ter de incorporar valores socialmente
compartilhados em sociedades crescentemente ciosas da
irredutibilidade dos valores a um critério único de julgamento.
CAPÍTULO 2 110 //
dos atores”, na formulação habermasiana), suficiente para a
reprodução da sociedade independentemente da existência
de qualquer “integração social” (“consenso normativamente
assegurado entre os indivíduos”) – donde decorre a moral
da “Fábula das Abelhas”, de Mandeville: “vícios privados,
virtudes públicas”.83
83 As expressões “integração social” e “integração sistêmica” encon-
tram sua formulação clássica em David Lockwood, “Social Integration and
System Integration”, p. 245, onde se distinguem:
“Whereas the problem of social integration focuses attention upon the or-
derly or conflictful relationships between the actors, the problem of system integra-
tion focuses on the orderly or conflictful relationships between the parts, of a social
system.”
Mais recentemente, Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2,
p. 117 (apud McCarthy, “Complexity and Democracy”, p. 120), recorreu a essas cate-
gorias estabelecendo analogia entre elas e os conceitos durkheimianos de “solidarie-
dade mecânica” (análoga à “integração social”, por constituírem ambas mecanismos
de coordenação da ação “que harmonizam as orientações dos participantes”) e “soli-
dariedade orgânica” (análoga à “integração sistêmica”, por constituírem mecanismos
de coordenação “que estabilizam interdependências não intencionais da ação pela
interconexão funcional das suas consequências”). Segundo McCarthy, “Complexity
and Democracy”, p. 121, o problema da “integração” deslocou-se para o centro da
teoria sociológica precisamente com as discussões empreendidas por Durkheim
sobre “solidariedade mecânica” e “solidariedade orgânica” (McCarthy expõe breve-
mente as características básicas da solidariedade mecânica – “rooted in collective
consciousness, in shared values and norms, beliefs and sentiments, in individuals’
agreement with and acceptance of the group’s basic goals, ideals, practices” – e da
solidariedade orgânica – “based on the interdependence of specialized roles, such
that the diverse activities of different individuals complemented one another and fit
together into a harmonious whole”). Contraposta ao otimismo de Herbert Spencer
quanto à capacidade integradora do mercado, a posição de Durkheim parte da cons-
tatação da corrosão inevitável da solidariedade mecânica na sociedade moderna, mas
– diferentemente da fé liberal no mercado – para ele a solidariedade orgânica não
seria capaz de prover sozinha uma integração totalmente espontânea dos interesses
individuais. Mecanismos impessoais como o mercado não bastam. Não podem ser
os únicos mecanismos de integração, ou melhor, não se pode pretender que a inte-
CAPÍTULO 2 112 //
inclusive a necessidade do estado.84 Fim da escassez, fim
do conflito; logo, fim da norma e da garantia coercitiva da
norma – o estado. Ao contrário da fábula de Mandeville,
aposta-se aqui numa forte coesão valorativa – ou normativa
– da sociedade, que deveria ser, em princípio, suficiente
para mantê-la coesa e funcionando independentemente
da existência de mecanismos evidentes de “integração
sistêmica”. Donde se compreende o forte conteúdo moralista
do lema da sociedade comunista: “De cada um segundo a
sua capacidade; a cada um segundo a sua necessidade.”85
84 A profecia da juventude de Marx e Engels acerca da extinção do
estado na sociedade comunista envolve sem dúvida a extinção da escassez,
que é claramente o que está implicado naquele trecho célebre da Ideologia
Alemã que afirma:
“[...] na sociedade comunista [...] a sociedade regula a produção geral, dan-
do-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã,
pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo,
sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico.” (Marx e Engels, A Ideo-
logia Alemã, p. 47.)
85 É curioso observar, a propósito, que Marx, tão arguto em observar
os problemas de integração sistêmica presentes nas sociedades capitalistas
(materializados sobretudo nas periódicas “crises de superprodução” e no
processo de pauperização das massas a longo prazo) que passavam desaper-
cebidos para os liberais mais otimistas, tenha podido negligenciar esta mes-
ma dimensão em seu esboço da sociedade comunista. É comum observar-se
o marcante contraste que a obra de Marx sugere entre a natureza do homem
pré-revolucionário (o habitante da sociedade de classes) e o pós-revolucio-
nário (comunista). (Ver, por exemplo, Jon Elster, Making Sense of Marx,
esp. seção 2.2, “Human nature”, pp. 61-92; ou, para uma formulação mais
direta, Carl Friedrich, An Introduction to Political Theory, pp. 46-7.) De
fato, esta lacuna só pode ser preenchida pela presunção de uma conversão
moral permanente de todos os homens à promoção do “bem comum” atra-
vés da obediência estrita a um imperativo categórico de inspiração kantiana.
Como podemos aprender nos Evangelhos, se todos fossem bons cristãos não
haveria necessidade de governo. Mas foi este raciocínio que provocou em
CAPÍTULO 2 114 //
que, do ponto de vista relevante para a presente discussão,
a superação da escassez significa não que haverá recursos
suficientes para a sobrevivência tranquila de todos, como
parece ser a suposição de Marx (pois é mesmo bem possível
que eles existam hoje, e a experiência socialista – ou mesmo
social-democrata – mostra que o estado é imprescindível
no comando de uma distribuição equânime dos recursos).
Postular a superação do estado de escassez a um ponto
tal que (nas palavras do próprio Marx) “seja possível a
satisfação normal de todos os desejos, isto é, uma satisfação
limitada apenas pelos próprios desejos”,86 de maneira a
poder dispensar qualquer normatização externa da conduta
humana (e, assim, dispensar o estado ao dispensar a coerção)
significa postular uma situação em que seja impossível a
existência de desejos humanos mutuamente excludentes – o
que é claramente implausível e, se concebível, provavelmente
indesejável. O fato de imaginar essa superação da escassez
numa sociedade presumivelmente complexa do ponto
de vista organizacional faz com que Marx não se possa
furtar aos problemas de gestão desse processo de satisfação
generalizada dos desejos. Esta dimensão está contemplada
na sentença – dita de passagem, quase escondida – “a
sociedade regula a produção geral”. Mas, a sociedade quem?
Mediante quais procedimentos? Essa “sociedade” (seja lá
quem for que fale em nome dela) terá o direito de impor
sua “regulação” contra eventuais discordâncias? Se alguém
simplesmente não quiser cumprir seu dever tal como
estipulado por aquela regulação social, poderá ser punido?
Afinal, em que essa “sociedade” se distingue, em princípio,
86 Apud D. McLellan, As Idéias de Marx, p. 79.
CAPÍTULO 2 116 //
ou não conseguiremos distinguir essa utopia da outra,
representada pela colmeia de Mandeville. Em suma, a
abolição do estado só é concebível na hipótese de se abolir
também a própria possibilidade da discordância, na medida
em que, na ausência de escassez, todos poderão fazer
tudo o que quiserem em qualquer momento; todos serão
completamente independentes uns dos outros. A própria
sociedade terá deixado de existir – porque, efetivamente, a
simples coexistência implica escassez.88
CAPÍTULO 2 118 //
espera-se do estado que ele não apenas seja capaz de punir
todas as violações do direito, mas que seja igualmente capaz
de agir preventivamente e, na medida do possível, impedir
essas violações. O resultado, paradoxal, é que dificilmente
encontraremos na história indivíduo mais constrangido
em sua rotina cotidiana por imposições legais do poder
público (e – talvez sobretudo – por normas internalizadas
de controle interior dos próprios impulsos) do que o cidadão
portador de direitos individuais universais das democracias
liberais contemporâneas: vide a compulsão corrente do
“politicamente correto” nos campi universitários norte-
americanos. É a concretização da visão kantiana: a máxima
liberdade é a máxima disciplina – fácil de se constatar no
contraste experimentado por qualquer pessoa que já tenha
feito viagens internacionais entre as democracias centrais e os
países do “Terceiro Mundo”, ou mesmo no claríssimo esforço
de disciplinamento de condutas por que passa qualquer país
ao longo de um processo de democratização.90 A grande
90 De fato, esta constatação ocupa lugar proeminente no pensamento
moderno. É mesmo o ponto focal da crítica nietzscheana à filosofia ociden-
tal, e o seu reconhecimento é compartilhado por autores tão variados como
Sigmund Freud (“O Mal-Estar na Civilização”) ou Émile Durkheim (cf. A.
Giddens, Capitalismo e Moderna Teoria Social, pp. 171-2). Norbert Elias, O
Processo Civilizador, esp. vol. 2, parte II, “Sinopse”, pp. 193-207 e 263-74,
formulou o mesmo argumento com grande clareza e minúcia, descrevendo
o processo civilizador com forte ênfase na intensificação da interdependên-
cia entre pessoas e no consequentemente crescente autocontrole individual
– estabilizado, por sua vez, pela monopolização do uso legítimo da força
física pelo estado. Bem mais recentemente, Peter Wagner, A Sociology of
Modernity (talvez o melhor trabalho recente de diagnóstico do que se vem
convencionando chamar de “crise da modernidade”), recorreu exatamente
a “liberdade e disciplina” para o subtítulo do livro, para apontar as caracte-
rísticas fundamentais e o dilema central da modernidade. É claro que isso
CAPÍTULO 2 120 //
tal como no argumento de Hobbes, mas também como
condição necessária “de qualquer esforço de coordenação
das ações ou de organização que vise à realização de fins
coletivos”93 –, impõe-se à reflexão sobre a política não apenas
o esforço de conter o exercício desse poder de maneira a
impedir a sujeição arbitrária de certos homens a outros
(“conter ou distribuir o poder”), mas também assegurar que
ele seja capaz de agir com eficácia, seja na garantia da paz
coletiva, seja na promoção dos fins de qualquer natureza que
a coletividade venha a perseguir (“produzir ou incrementar
[...] o poder”). Trata-se, portanto, da busca de um delicado
equilíbrio entre imperativos contraditórios e simultâneos
de contenção e eficácia – principalmente se se trata de ser
eficaz na garantia de direitos individuais, pois o estado
tem de ser a um só tempo atento a direitos individuais e
eficaz na repressão (e mesmo na prevenção) da violação de
direitos individuais.94 E um complicador adicional aparece à
medida que aumenta o grau de complexidade da sociedade
com que lidamos (tal como ocorre por exemplo ao longo do
processo de modernização), pois mais problemática se torna
também a própria atribuição de “interesse público” a um fim
qualquer, e consequentemente a definição de fins a serem
perseguidos coletivamente. A preservação da autoridade
estatal passa, então, a requerer mecanismos crescentemente
complexos de tomada de decisão, à medida que se impõe ao
93 F. W. Reis, Política e Racionalidade, p. 13.
94 Também Durkheim, em A Divisão do Trabalho Social (apud An-
thony Giddens, Capitalismo e Moderna Teoria Social, p. 152), afirma que
a emancipação progressiva do indivíduo em relação à consciência coletiva
implica uma expansão das atividades do estado, pois este é o guardião dos
direitos individuais.
CAPÍTULO 2 122 //
Mas será na obra de Max Weber que ela encontrará
sua melhor expressão – e a tensa convivência entre
liberdade e disciplina acima apontada ganhará contornos
verdadeiramente trágicos.
CAPÍTULO 2 124 //
Não é difícil mostrar a presença desse problema em
autores clássicos situados na aurora da modernidade. Na
obra de Maquiavel, o individualismo reside sobretudo na
capacidade de ação que ele atribui ao líder “virtuoso” em O
Príncipe. O estado, suprema “obra de arte”, torna-se fruto
do artifício humano, resultado da ação inteligente de um
indivíduo em favor dos demais, e não uma entidade coletiva
com existência anterior e independente em relação às pessoas
– o que levou Hannah Arendt a considerar Maquiavel
o “fundador da tradição revolucionária moderna”.99 Já
em Hobbes o individualismo se desdobra em múltiplos
aspectos e implicações, alcançando mesmo seu método, pois
a dedução de seu “estado de natureza” inclui a agregação
de comportamentos individuais atribuíveis a todos os seres
humanos indistintamente.100 Assim, seu “individualismo
metodológico” supõe seu igualitarismo, sua afirmação de que
somos todos iguais, a começar por nossa igual capacidade de
nos matarmos uns aos outros.Pois este igualitarismo é condição
99 Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 183.
100 Isso talvez ajude a explicar o “prestígio” contemporâneo de Hobbes,
expresso nas inúmeras controvérsias relevantes que o tomam como foco no
século XX – fato bem mais raramente verificado anteriormente (a respeito
do status menor atribuído a Hobbes no século XIX, ver Norberto Bobbio,
“Breve História da Historiografia Hobbesiana”, p. 185). Obras recentes sobre
Hobbes incluem orientações bastante díspares – tais como Jean Hampton,
Hobbes and the Social Contract Tradition, e Michael Taylor, The Possibility
of Cooperation (exemplos de obras de autores diretamente associáveis ao
individualismo metodológico), e o último livro de Quentin Skinner, Reason
and Rhetoric in the Philosophy of Hobbes –, mas o tema da racionalidade e
do método invariavelmente ocupa lugar central nas discussões recentes de
sua obra. Também no Brasil se pode constatar uma manifestação da ênfase
metodológica presente neste interesse recente por Hobbes na tese de douto-
ramento de Luiz Eduardo Soares, A Invenção do Sujeito Universal.
CAPÍTULO 2 126 //
levar às últimas consequências a reflexividade fatalmente
envolvida num exercício de racionalização voltado para a
coordenação de expectativas recíprocas (passo que seria dado
por Locke logo depois).
CAPÍTULO 2 128 //
Conformava-se, portanto, ao poder absoluto do estado como
um mal menor, frente àquela que ele considerava sua única
alternativa – a “guerra de todos contra todos”. Ainda, porém,
que este argumento esteja correto de um ponto de vista
estritamente lógico, é importante levar em conta que menos
de dez anos após a morte de Hobbes a Inglaterra já havia
encaminhado uma “solução” para o seu conflito institucional
oposta àquela por ele prescrita. A razão porque Hobbes
pôde ser tão melhor no diagnóstico que na terapia reside
fundamentalmente no fato, apontado por Carl Friedrich,
de que embora tenha angariado com justiça a reputação de
grande filósofo do poder, Hobbes ignorava o problema da
autoridade.106 Se o poder pode se materializar no controle de
meios físicos de coerção, seu exercício estável é condicionado
pela autoridade daquele que o exerce. E o detentor do
poder terá autoridade sobre os demais se encontrar nestes
uma disposição prévia à obediência, independentemente
de coerção. Hannah Arendt nos lembrava que a autoridade
exclui tanto a violência como a persuasão.107 Pois, como
sublinha Friedrich, ela se funda na presunção, por aqueles
sobre os quais o poder é exercido, de que aquele que o
exerce tenha “boas razões” para evocar se for chamado
a justificar seus atos. Note-se que não é necessário que
essas “boas razões” existam de fato, mas apenas que se
acredite na sua existência.108 A autoridade é indispensável
instituição”, pp. 107-13.
106 C. Friedrich, An Introduction to Political Theory, pp. 145-6. Já me
reportei antes a este problema em B. P. W. Reis, “Kant, Burke e os ‘Efeitos
Perversos’”, esp. pp. 79-81.
107 Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 129.
108 Friedrich, An Introduction to Political Theory, pp. 128-30. Tam-
CAPÍTULO 2 130 //
Mas talvez Hobbes tivesse razão contra Locke em dizer
que isto implica um arranjo de poder inerentemente instável,
pelo fato de não se poder apontar uma fonte inequívoca de
poder, claramente soberana no estrito sentido da palavra. Porém,
a reflexividade requerida para se preservar a possibilidade de
validação universal do argumento hobbesiano – crucial para
a sua sustentação numa sociedade complexa – nos impõe este
dilema, legado pelo processo de racionalização da autoridade.
O estado tem de ser tão previsível (e portanto tão controlável)
como qualquer um de nós. O que faz com que a democracia
moderna seja inevitavelmente uma espécie de “acordo de
cavalheiros”, em que todos dão sua palavra de que observarão
as regras publicamente estabelecidas.110 Desgraçadamente,
isto faz com que a democracia seja um arranjo delicado, tão
frágil como qualquer acordo de cavalheiros. Vulnerável tanto
às variáveis materiais (econômicas), já que ninguém pode se
dar ao luxo de ser um perfeito cavalheiro quando começa a
faltar comida em casa (Aristóteles já havia percebido isso
quando falava da anterioridade do problema da reprodução
material do oikos em relação à participação na vida da polis),111
quanto a “ataques carismáticos” que substituam a rotinização
que a democracia implica e que pode se tornar indesejada pela
maioria em contextos de crise.
field em The Moral Basis of a Backward Society, citado por Putnam e re-
centemente retomado por Elisa Reis, “Desigualdade e Solidariedade”, para
discutir o caso brasileiro (voltaremos a Putnam abaixo, subseção 2.2.3).
110 Corrobora este ponto a demonstração da fragilidade dos funda-
mentos lógicos do modelo madisoniano da democracia por Robert Dahl, A
Preface to Democratic Theory, cap. 1. Dahl ali demonstra que o esforço de
James Madison em forjar uma teoria democrática que atenda simultanea-
mente aos princípios de soberania popular e proteção de minorias fracassa
em seus fundamentos lógicos, ainda que tenha vindo a ser bem-sucedido na
produção de uma ideologia que vem atravessando os séculos.
111 F. W. Reis, “Para Pensar Transições”, p. 77-8.
CAPÍTULO 2 132 //
levar a cabo com êxito a pretensão ao monopólio do uso
legítimo da força física no interior de seu território, o detentor
do poder precisa controlar certos bens materiais, “just as with
an economic organization” – e, no caso do estado moderno,
dado o processo de centralização do poder e consequente
expropriação do quadro administrativo de suas próprias fontes
de poder, impõe-se uma organização hierárquica centralizada
onde os agentes do estado são servidores assalariados, cuja
autoridade decorre de uma delegação do chefe.114 Daí que,
como observou Reinhard Bendix, o desenvolvimento de uma
autoridade pública de abrangência nacional, e que obedeça
a um padrão administrativo não patrimonial, deflagra
inevitavelmente um processo de burocratização.115 Produz-
se assim um crescimento do estado burocrático que está,
todavia, ao contrário do que parece indicar o senso comum,
intimamente relacionado com o progresso da democracia
política. Em linhas gerais, o fenômeno que Weber detecta
situa-se em que o processo de racionalização da vida social,
ao impor a “impessoalização” das decisões políticas a serem
tomadas, requer o estabelecimento de regras universalmente
aceitáveis que venham substituir com sucesso o arbítrio
pessoal e as prerrogativas particulares de potentados locais. A
burocratização é apenas o corolário inevitável deste processo.
Assim, a racionalização da autoridade – imprescindível à
coordenação de expectativas em uma coletividade cada vez
menos “comunitária” – implicará crescente burocratização.
Foi sobretudo a percepção deste problema que impediu
Weber de compartilhar o otimismo de Marx acerca das
perspectivas de “emancipação” humana a partir do avanço das
114 Weber, “Politics as a Vocation”, pp. 81-2.
115 Bendix, Nation-Building and Citizenship, p. 3.
CAPÍTULO 2 134 //
2.1.3. Instituições e carisma;
institucionalização e autoridade
CAPÍTULO 2 136 //
muito importante –, o desafio básico que se impõe ao líder
carismático é o problema da institucionalização dos mesmos
valores de que se constituiu em porta-voz, e que foram a
fonte última de seu próprio carisma. Pois a mera existência
de um sistema simbólico não é suficiente para canalizar a
dinâmica dos interesses (materiais ou ideais), pelo menos
numa sociedade complexa.121 É a esfera institucional que faz
essa mediação entre as idéias e os interesses, o que torna
necessária a institucionalização de uma visão de mundo, para
que se possam especificar os meios através dos quais os bens
materiais e ideais selecionados por uma dada coletividade
– ou personificados por um líder carismático, o que em
termos práticos dá no mesmo – podem ser legitimamente
atingidos.122 É necessário,portanto,evitar uma contraposição
radical entre as dimensões ordinária e extraordinária da vida
social (às quais podemos fazer corresponder as instituições
e o carisma pessoal, respectivamente). O próprio Weber
fala de “carisma institucional”, e Schluchter nos remete aos
trabalhos pioneiros de Edward Shils e S. N. Eisenstadt,
que alertavam para o fato de que o carisma é ele próprio
que é particularmente clara a respeito: “O verdadeiro profeta, tal como o
verdadeiro chefe militar ou todo o verdadeiro chefe nesta acepção da pala-
vra, prega, cria ou impõe novas obrigações…” (apud Giddens, Capitalismo
e Moderna Teoria Social, p. 224).
121 Para uma rápida distinção entre interesses materiais e interesses
ideais, na forma como a eles se referia Max Weber, pode-se recorrer a Wolf-
gang Schluchter, The Rise of Western Rationalism, p. 25: “The material
interests concern the ‘happiness’ of human beings, their well-being, health
and longevity. Ideal interests concern their search for meaning, primarily
for ‘salvation’.”
122 W. Schluchter, The Rise of Western Rationalism, pp. 25-7. Neste
tema o trabalho de Schluchter é um guia extraordinário para o pensamento
de Weber.
CAPÍTULO 2 138 //
motivo a população entende estarem ali incorporados valores
que lhe sejam caros. A força peculiar do carisma resulta de que
ele é não apenas um tipo especial de dominação mas também
um elemento constitutivo de toda sociedade, cumprindo na
obra de Weber um papel análogo ao “caráter sagrado de uma
realidade moral coletiva” encontrado na obra de Durkheim.125
Como assinala Schluchter, na medida em que ideais de justiça
estão ligados a essa dimensão “extraordinária” da vida social,
então toda sociedade se atribui uma “missão”.126 O que faz com
que todo sistema institucional seja, em maior ou menor medida,
vulnerável a um eventual “ataque” carismático, conforme se
avalie momentaneamente o seu desempenho no cumprimento
dessa “missão” – ou, mais precisamente, na realização de valores
socialmente predominantes. Nas palavras de Eisenstadt:
CAPÍTULO 2 140 //
cada vez mais aos procedimentos e a determinados princípios
de convivência. Sob um certo prisma, as instituições parecem
cada vez mais vulneráveis à medida que temos de abandonar
qualquer compromisso com feitos específicos para atermo-
nos ao respeito a procedimentos e regras de convivência.
Abandonar o compromisso com fins substantivos para
prendermo-nos a determinados meios considerados aceitáveis
– que, embora necessariamente incorporem um dado conjunto
de valores, nem sempre estarão a promover realizações
substantivas, pela incerteza mesma dos resultados a serem
obtidos no processo democrático.129 Porém, esse contraste
entre fins e meios é certamente mais complexo do que sugere
a passagem acima. Basta lembrar que esta ênfase nos “meios”,
se bem entendida, deve redundar na aceitação do imperativo
kantiano de se tomar a cada ser humano como um fim em
si mesmo.130 Concretamente, este aparente deslocamento
apenas representa o fato de que progressivamente ganha
centralidade política a questão dos procedimentos a serem
seguidos, precisamente em virtude da crescente relevância
moral adquirida pelos direitos e desejos de cada indivíduo
em relação à coletividade tomada como um todo, o que
faz com que a “missão” que uma sociedade plenamente
racionalizada pode se propor diga respeito sobretudo à
realização e à universalização de determinadas formas de
tratamento entre as pessoas.131
129 Este tema será retomado no próximo capítulo, no início da seção 3.3.
130 “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
como meio.” (Immanuel Kant, “Fundamentação da Metafísica dos Costu-
mes”, p. 135.)
131 Os dilemas morais centrais da modernidade são analisados de ma-
CAPÍTULO 2 142 //
2.2. A política nas sociedades
modernas: desenvolvimento político?
CAPÍTULO 2 144 //
e da polícia, a instalação de mecanismos de administração
da arrecadação e de sua fiscalização, a unificação do padrão
monetário e a monopolização de sua emissão, além de certas
realizações infraestruturais, como a edificação de uma rede de
comunicações, de transportes etc. Já as crises de identidade e
de legitimidade dizem respeito sobretudo a certos desafios,
por assim dizer, “culturais” comumente associados à tarefa de
“construção da nação” (nation-building). Em sua dimensão
“horizontal”, trata-se de forjar uma “identidade nacional” pelo
recurso a símbolos comuns (heróis, mitos, hinos, bandeiras),
assim como pelo estabelecimento de certos critérios de
tratamento de diferentes grupos sociais que possam vir a ser
aceitos como “justos” ou “naturais” por toda a população. Em
sua dimensão “vertical”, trata-se de obter “legitimidade” para
o conjunto de instituições políticas adotado, de maneira a
fazer reconhecer pela população a autoridade do poder central
constituído, ou seja, produzir nos habitantes a disposição
à obediência: a presunção de que o governo constituído
tem o direito de governar. A crise de participação, por sua
vez, diz respeito ao problema da incorporação política dos
diversos grupos sociais que venham a se formar no interior da
comunidade política.Trata-se basicamente do reconhecimento
oficial dos direitos políticos, tais como o de votar e ser votado,
ou vocalizar preferências e encaminhar demandas junto ao
estado; o de associar-se livremente, o direito de organizar
oposição ao governo etc. Finalmente, a crise de distribuição
resulta da busca da implementação do princípio da igualdade
de oportunidades, e concretiza-se no reconhecimento legal de
uma série de “direitos sociais” (direitos trabalhistas, tributação
progressiva etc.) assegurados, em princípio, pela intervenção
do governo no conflito distributivo.
CAPÍTULO 2 146 //
específicos), e que qualquer tentativa de se colocarem esses
problemas ou processos numa sequência-padrão enfrentará
fatalmente graves dificuldades empíricas.136 Minha
impressão é a de que, embora em princípio pareça existir
uma sequência aproximada provável (é razoável esperar
que um país se depare com questões relativas às crises de
penetração e integração antes de se ocupar com a maioria
dos temas típicos da crise de distribuição, por exemplo),
certamente não se podem descartar possíveis “anomalias”,
especialmente nos casos de modernização retardatária,
nos quais o efeito de imitação dos países centrais produz
fatalmente um certo “embaralhamento” da agenda política
que pode muito bem colocar no centro da arena política
local a crise de distribuição sem que sequer tenham sido
encaminhadas satisfatoriamente as crises de penetração, de
integração, ou de legitimidade (ou então ao mesmo tempo
em que estas são “reabertas”, por efeito mesmo da tentativa
de encaminhamento da pauta redistributiva). Veremos que,
em boa medida, é este um problema crucial em que está
metido o Brasil hoje, juntamente com a maioria dos países
“periféricos” (ver adiante, esp. seção 4.3).
CAPÍTULO 2 148 //
componentes analíticos do sistema, livres de considerações
muito detalhadas – necessariamente em alguma medida
arbitrárias – sobre “crises” ou “sequências” históricas
efetivamente ocorridas aqui ou ali (ainda que Almond
pretenda, sim, estabelecer uma sequência de desenvolvimento
típica). Assim, a sequência das crises que se encontra
idealmente – ainda que um tanto forçadamente – esboçada
nos trabalhos da série do SSRC sobre desenvolvimento
político pode encontrar nos trabalhos de Almond uma
correspondência mais fundamentada em considerações
sobre a maneira como a capacidade do sistema político de
desempenhar determinadas funções condiciona ou não sua
capacidade de cumprir outras funções. Assim, por exemplo,
Almond pode substituir a sequência das “crises” pela
postulação da anterioridade lógica da capacidade extrativa
frente às demais (ou, melhor dizendo, pela postulação da
dependência de todas as demais capacidades em relação à
extrativa), bem como condicionar a capacidade distributiva
à capacidade reguladora.
CAPÍTULO 2 150 //
Para Almond, a análise das “capacidades” do sistema
político poderia ajudar a preencher o hiato existente entre os
estudos “científicos” e os normativos do sistema político, ao
acrescentar o “what” ao “who” e ao “how” típicos da ciência
política do século XX – ou seja, ao acrescentar “substância” às
discussões de procedimento que ocuparam o núcleo da ciência
política contemporânea. Ao fazer isso, o sistema de Almond
incorpora uma inequívoca dimensão normativa à análise, sem
renunciar à investigação empírica das condições práticas de
funcionamento do sistema político. E aqui Almond parece
tocar rapidamente num ponto que pode ter implicações
importantes para o presente trabalho. A especificação de
um elenco de tarefas a serem desempenhadas pelo sistema
político a partir de uma definição, mais abrangente, da
própria “função política” coloca-nos diante da necessidade
de reconhecer que alguns sistemas desempenharão suas
funções de maneira mais eficaz que outros. E isto nos
permitirá, em princípio, estabelecer uma conceituação
universalmente válida de “desenvolvimento político”, que
possa funcionar como referência normativa, sem estar atada
à presunção de que este desenvolvimento necessariamente se
dê. Persistiria o risco de fracasso do sistema, de incapacidade
de desempenhar suas funções, de decadência política –
enfim, da sucessão relativamente imprevisível de eventos
históricos. Mas disporíamos de um critério teoricamente
informado para a análise (e, inevitavelmente, avaliação)
comparativa de diferentes casos empíricos. Voltaremos a este
tópico no final do capítulo. Antes, porém, devemos discutir
um pouco mais detalhadamente os problemas associados ao
processo de institucionalização política em sociedades sob
modernização acelerada.
CAPÍTULO 2 152 //
Diante da massificação social que acompanha esse processo,
o encaminhamento do problema da produção de fontes
estáveis de autoridade passa a depender do estabelecimento
de regras impessoais de tomada de decisão. Em outras
palavras, de instituições políticas estáveis que contemplem
a igualdade jurídica de todos os cidadãos. Temos, assim, a
paradoxal afirmação paulatina de uma forma de sociedade
que, à medida mesma que se torna sempre mais igualitária
(pela erosão progressiva de barreiras “adscritivas”, de
natureza estamental, à mobilidade social), torna-se,
potencialmente, cada vez mais violenta. E esse é o preço
da equalização de status: a diluição dos estamentos expõe
a todos à insegurança econômica resultante da competição
mercantil, e esta – na ausência de disposição unânime de se
acatarem as normas da disputa – pode sempre degenerar em
conflito. Não terá sido por mero acaso que Hobbes, situado
na aurora da sociedade moderna, caracterizou os homens
como fundamentalmente iguais, e divisou a coexistência
não regulada como a “guerra de todos contra todos”. E o
estado de escassez – hipótese implícita desse quadro – não
se pode esperar superar tecnologicamente, pelo simples fato
de que, em princípio, um homem pode querer qualquer coisa,
a qualquer momento, em qualquer circunstância (o “super-
homem” de Nietzsche, que não obedece senão à sua própria
vontade, é sempre uma possibilidade).
CAPÍTULO 2 154 //
disponibilidade das não-elites para eventual manipulação
como recurso de poder (quadro 2.1), a primeira crítica –
aristocrática – se concentraria, segundo Kornhauser, na alta
acessibilidade das posições de elite para explicar a natureza
conflituosa e instável da sociedade de massas, deixando de
fazer distinção entre esta e a “sociedade pluralista”, que se
caracterizaria por alta acessibilidade das elites, mas com baixa
disponibilidade das não-elites. A crítica democrática, por
sua vez, preocupa-se sobretudo com os efeitos nefastos que a
eventual fragilidade dos laços associativos intermediários –
típica da sociedade de massas – venha a produzir no que tange
à disponibilidade das não-elites. Aqui, para Kornhauser,
deixa-se de distinguir a sociedade de massas da “sociedade
totalitária”, caracterizada por alta disponibilidade das não-
elites, mas baixa acessibilidade das elites.
Quadro 2.1
Baixa Alta
Disponibilidade Disponibilidade
das Não-Elites das Não-Elites
Baixa
Sociedade Sociedade
Acessibilidade
comunal totalitária
das Elites
Alta
Sociedade Sociedade de
Acessibilidade
pluralista massas
das Elites
CAPÍTULO 2 156 //
no processo de “institucionalização” lhe conferiria marca
distintiva e tem mesmo propiciado uma “redescoberta”
de sua obra nos últimos anos, estimulada pelos estudos
contemporâneos sobre a transição democrática na América
Latina e no Leste Europeu.
CAPÍTULO 2 158 //
a novas circunstâncias. Huntington recorre a Aristóteles
para lembrar que todas as tiranias têm vida curta: o
sistema político mais simples (aquele que depende de um
único indivíduo) será também o menos estável.153
CAPÍTULO 2 160 //
Diante da dificuldade de se estabelecer alguma correlação
universalmente válida entre a taxa de crescimento econômico e
a instabilidade política, e tendo constatado que “a mobilização
social é muito mais desestabilizadora que o desenvolvimento
econômico”, Huntington irá propor aquilo que chamou
de “hipótese do hiato” (“the gap hypothesis”), que medirá o
impacto da modernização sobre a instabilidade política pelo
hiato existente entre mobilização e desenvolvimento. A
presunção subjacente é que nas “sociedades em transição”,
o desenvolvimento econômico se dará mais lentamente que
a mobilização social, resultando em relativa incapacidade
de satisfazer as novas aspirações despertadas pelo processo
de mobilização social – e, logo, em frustração social. Esta
frustração, se não se fizer acompanhar pela existência de
oportunidades não políticas de mobilidade social, estimulará
a participação política – que gerará instabilidade se não
houver o devido grau de institucionalização política.159 É
dustrial and industrial situation”, p. 54) favorece o extremismo.
159 Huntington, Political Order in Changing Societies, pp. 53-5. Não
obstante sua plausibilidade lógica, é evidente que essas relações de Hun-
tington são bastante esquemáticas, e seu próprio autor tende a fazer delas
um uso um tanto “livre”. Logo na p. 56, por exemplo, Huntington confunde
“participação política” com “mobilização social” ao declarar que “sharp in-
creases in participation produce instability unless they are accompanied by
corresponding shifts in the level of economic well-being”, numa flagrante
violação das relações estabelecidas apenas uma página antes, já que ali se
afirmava que a instabilidade seria função do hiato entre participação e ins-
titucionalização, e não desenvolvimento ou bem-estar. Este seria relevan-
te na determinação do grau de frustração social, que por sua vez ajudaria
a determinar o nível de participação política. Desta maneira, se tomarmos
rigorosamente a “hipótese do hiato” de Huntington, o nível de bem-estar
social teria efeito positivo sobre a estabilidade política não por um impacto
favorável direto, mas por produzir ele mesmo – ceteris paribus – uma redu-
CAPÍTULO 2 162 //
para o estado”.161 Sem querer me alongar demasiadamente
neste ponto, é necessário constatar que nem sempre
temos tido a devida cautela ao analisar as perspectivas
“democratizantes” de tais iniciativas. Naturalmente, novas
circunstâncias colocam sempre novos problemas que podem
eventualmente ser mais adequadamente respondidos por
novos instrumentos e estratégias de ação política que não
haviam sido acionados anteriormente. Todavia, como
lembra Renato Boschi, embora muitos pensem nos novos
movimentos sociais como um desafio à “política tradicional”,
eles não só podem perfeitamente atuar como reforço (e não
concorrentes) dos partidos existentes,162 como tampouco
se pode esquecer que também sobre eles pesa a “lei de
ferro da oligarquia”, a partir do imperativo organizacional
que, inevitavelmente, a partir de determinado momento se
impõe. Afinal de contas, os movimentos sociais, como canal
alternativo de participação política, existiram regularmente
na Inglaterra desde o século XVIII, e vê-los como “um corte
radical com a esfera das instituições democráticas liberais” é
esquecer que “o impacto dos movimentos sociais, sobretudo
a longo prazo, só se concretizará se houver algum tipo de
mediação institucional” – o que se torna particularmente
relevante no caso dos países periféricos, quando o que
está em jogo é quase sempre a incorporação ao sistema
político de núcleos de interesses até então excluídos. Assim,
161 Evers, “De Costas para o Estado, Longe do Parlamento”.
162 Boschi, A Arte da Associação, pp. 28-9, observa que tanto a ex-
periência do movimento ecológico europeu quanto a do caso específico do
Brasil ilustram a tendência de partidarização dos movimentos: no Brasil,
houve enorme superposição entre a participação nos movimentos sociais e a
militância partidária.
CAPÍTULO 2 164 //
de interesses, mas podemos também ter uma sociedade em
moldes autoritários, mobilizada na base, mas com os canais
oficiais de representação suspensos.166
CAPÍTULO 2 166 //
copiados em alguma medida), essa “adaptação institucional”
tem de ser feita de maneira bastante mais abrupta – com
pesados ônus tanto no que diz respeito à violência física
do processo quanto (e sobretudo) no que concerne às
próprias perspectivas de consolidação e durabilidade do
novo conjunto de instituições. Apresentam-se nesses casos
com particular complexidade os “dois problemas da ordem
social”, tais como definidos por Jon Elster: a coordenação de
expectativas e a produção de cooperação.168 As mudanças
são rápidas demais para que se possa estabelecer consenso
quanto a regras ou procedimentos impessoais de decisão
política; e, em virtude da incerteza do cenário de longo
prazo, os agentes não podem se dar ao luxo de abrir mão
de vantagens imediatas, e a cooperação é dificultada.
CAPÍTULO 2 168 //
uma e a edificação da outra. Esta é apenas a ilustração mais
notória da dificuldade com que se deparam explicações
“culturalistas” quando se observam mudanças drásticas no
contexto político.172 Para Barry, um dos problemas lógicos
envolvidos naquela literatura é o de se inferir um nexo causal a
partir da constatação de uma relação entre dois fenômenos.
Assim, tanto pode ser verdade que o parlamento britânico
funciona adequadamente devido à sua correspondência
com alguns costumes tipicamente ingleses (como quereria
Eckstein), quanto se pode afirmar que alguns costumes
típicos da vida pública inglesa derivam sua disseminação
do prestígio do parlamento como instituição.173 Já Lipset
afirma que a crença na legitimidade e a crença na eficiência
de um regime político seriam as suas duas fontes básicas de
apoio, e logo de estabilidade, mas não procura especificar
se são condições necessárias ou suficientes da estabilidade
política, além de não enfrentar em detalhe o fato de que
as duas condições são logicamente independentes uma da
outra. Segundo a interpretação de Barry, Lipset parece supor
que as duas condições tendem a andar juntas, e que cada
uma delas seria uma condição suficiente da estabilidade
e, logo, nenhuma delas necessária, isoladamente. Como a
eficiência tende inevitavelmente a oscilar no tempo, ao sabor
dos ciclos econômicos, a variável crucial para a explicação
172 Elisa Reis, “Elites Agrárias, State-Building e Autoritarismo”, p.
333, já observou que
“explicações de tipo cultural tendem a tomar como ‘dados’ aspectos da re-
alidade que merecem eles próprios explicação cuidadosa. Tais explicações frequen-
temente negligenciam o fato de que a própria persistência de traços culturais é con-
stantemente recriada e que, nesse sentido, a continuidade de valores, atitudes etc.
merece tanto esforço de explicação quanto a mudança dos mesmos.”
173 Barry, Sociologists, Economists and Democracy, pp. 62-3.
CAPÍTULO 2 170 //
1965, de The Logic of Collective Action, de Mancur Olson,
mas com impulso redobrado a partir dos anos 80, o tema
da cooperação e da ação coletiva passou a ser objeto de uma
vasta e fecunda literatura apoiada sobre as premissas da
“escolha racional”. Nesta literatura, sobretudo a redescrição
do “problema hobbesiano” como um “problema olsoniano”
de ação coletiva começou a ganhar ares de matéria canônica,
tornando-se um lugar comum mencionado muitas vezes en
passant por autores bastante variados.177 Contudo, durante a
maior parte deste tempo, o recurso à rational choice foi visto
frequentemente com muita desconfiança pelos adeptos de
uma abordagem mais convencionalmente “sociológica” da
política – e, naturalmente, a recíproca também tendeu a ser
verdadeira. Apenas a partir de meados dos anos 80 é que
posições mais ecléticas começam a se generalizar.
CAPÍTULO 2 172 //
do desempenho institucional com alguns indicadores
do grau de “comunidade cívica” é consistentemente mais
elevada que com os indicadores de desenvolvimento
econômico. Ademais, além de nem sempre o Norte ter sido
o mais rico, os dados não corroboram sequer a hipótese de
que o desempenho econômico num tempo t1 qualquer seja
relevante na determinação do nível de envolvimento cívico
da população num momento posterior t2: pelo contrário, é
o grau de civicness no passado que parece relacionar-se mais
fortemente com o desempenho econômico posterior.178
CAPÍTULO 2 174 //
Evolution of Cooperation, de 1984. Nesse caso, os atores
seriam induzidos à cooperação por medo da retaliação de
seu adversário: se cada “jogador” tem motivos para esperar
que seu oponente se comporte da mesma maneira que ele
próprio, então pode ser racional cooperar, se cada um valorizar
suficientemente seus resultados futuros. Se, todavia, se parte
da situação descrita pela teoria dos jogos como “egoísmo
universal”, ou seja, uma situação em que todos adotam a
estratégia inicial de não cooperar, então a cooperação não
emergirá espontaneamente, exceto sob a condição – bastante
restritiva – de que uma população em equilíbrio não-
cooperativo se veja “invadida” por um cluster internamente
cooperativo, que mantenha pouco contato com a população
majoritária (não-cooperativa), e que nestes poucos contatos
se disponha a adotar uma política de retaliação (“tit-for-tat”)
em relação aos não-cooperativos.180 Além disso, se os atores
encontram-se imersos num ambiente onde as regras não
costumam ser estáveis, tornando plausível a possibilidade
de que o “jogo” seja interrompido a qualquer momento,
então – mesmo que se parta da cooperação universal – todos
serão induzidos a abandonar a estratégia cooperativa antes
que seu oponente o faça, já que existe a possibilidade de
a retaliação ser impossibilitada pela interrupção abrupta
do “jogo”, pela suspensão das regras vigentes e imposição
arbitrária de novas regras. É por isso que Putnam afirma que
a “solução hobbesiana” – isto é, o círculo vicioso autoritário
– é não só um equilíbrio estável (ou não seria um “círculo
vicioso”), mas também mais estável que a solução cooperativa
180 Para uma exposição sucinta dos resultados de Axelrod, assim como
outros, bastante semelhantes, obtidos por Michael Taylor em Anarchy and
Cooperation, pode-se recorrer a Frank Zagare, Game Theory, pp. 58-62.
CAPÍTULO 2 176 //
cooperação, a ordem se impõe por uma organização
hierárquica vertical da autoridade e – onerosamente – pela
força. As instituições, subordinadas à vontade dos poderosos
do momento, funcionam precariamente (quando não
mudam constantemente), submergindo os atores em um
elevado grau de incerteza quanto ao futuro, e inviabilizando
qualquer disposição de se abrir mão de ganhos imediatos
com apoio em uma presunção de reciprocidade futura. O
mau desempenho institucional reafirma e reforça, assim,
os traços de desconfiança mútua disseminados entre a
população, completando a lógica do chamado “círculo
vicioso autoritário”.183
183 A aproximação aqui efetuada entre Putnam e Axelrod é compatível
com a importância atribuída por Margaret Levi, “A Logic of Institutional
Change”, pp. 407-10, à vigência do que ela chama de “consentimento con-
tingente” (contingent consent) na estabilidade de uma instituição qualquer.
Ali, Levi ajunta à coerção, aos “pagamentos paralelos” (side payments) e
às normas um quarto mecanismo de indução à obediência: a obtenção de
um consentimento apoiado numa norma de fairness (acompanho aqui as
razões apontadas pelo tradutor do trabalho quando de sua publicação na
revista Dados, Prof. Fabiano G. M. Santos, para manter a expressão no ori-
ginal – ver Levi, “Uma Lógica da Mudança Institucional”, p. 85, N.T.). Se-
gundo a exposição de Levi, “A Logic of Institutional Change”, pp. 409-10,
“[...] part of contingent consent is conditional cooperation [...] in which
low discount rates, repeated interactions, knowledge of others and reciprocity over
time permit the emergence of rational decisions to comply. In the case of formal
institutions, an individual’s cooperation or compliance is conditional upon the pro-
vision of promised benefits by institutional managers and personnel and upon the
continued compliance of others. No one wants to be a sucker. Thus, any particular
individual’s decision to comply is based on confidence that others are doing their
share.”
Estas condições são praticamente as mesmas exigidas em Axelrod para a
cooperação espontânea. Não é por mera coincidência que Levi remete esta funda-
mentação a Michael Taylor, The Possibility of Cooperation, onde se produz uma solu-
ção cooperativa do dilema do prisioneiro sob muitos aspectos idêntica à de Axelrod.
CAPÍTULO 2 178 //
na produção da coordenação de expectativas necessária para
se assegurar alguma previsibilidade no comportamento alheio
– numa palavra, criam-se as organizações, que Huntington
julgou mais importantes que a realização de eleições.185 A
propósito, convém lembrar que também em Kornhauser
(que igualmente se ocupou da problemática legada por
Tocqueville) era a baixa disponibilidade das não-elites que
distinguia a sociedade pluralista da sociedade de massa, ou
seja, a sociedade verdadeiramente democrática daquela que,
embora mobilizada, se queda à mercê da condução do seu
líder (ver quadro 2.1, acima).
CAPÍTULO 2 180 //
Claramente Almond esperava ter proporcionado,
a partir do seu esquema conceitual, uma base empírico-
analítica para se manejar o sempre escorregadio conceito de
“cultura política”. E Putnam é certamente um passo relevante
nessa direção. Infelizmente (se Putnam estiver correto),
talvez a magnitude dessa “reserva” seja mais rígida no tempo
do que se esperaria nos anos 60. De qualquer modo, tendo
em vista o marcante conteúdo simultaneamente empírico e
normativo do trabalho de Putnam (e independentemente
da avaliação que se faça quanto às perspectivas da
pesquisa futura em torno do tema da cultura política), as
afinidades aqui esboçadas entre Putnam e Almond tornam
particularmente persuasiva a rápida menção feita por Almond
às possibilidades de preenchimento do hiato entre estudos
normativos e “científicos” da política a partir do estudo das
capabilities – tema que produz alguns desdobramentos que
pretendo abordar na próxima subseção, particularmente em
suas conexões com a ideia de “desenvolvimento político”.
CAPÍTULO 2 182 //
apropriação, aí sim, etnocêntrica – a transformar-se no tema
da “política nos países em desenvolvimento”. Implícita nessa
apropriação está, obviamente, a ideia de que a política nos países
avançados é “desenvolvida” (e não apenas mais desenvolvida
do que nos países periféricos, note-se bem), e por isso não se
aplicariam a ela problemas de “desenvolvimento político”. É
bastante evidente o forte etnocentrismo dessa posição, que
imediatamente exclui a ideia de que as democracias centrais
contemporâneas tenham qualquer problema político-
institucional por resolver. Essa apropriação do tema exclui
também qualquer possibilidade de universalização do conceito,
privando-o de seu interesse teórico, independentemente da
indiscutível relevância do estudo das características específicas
da política nos países periféricos.
CAPÍTULO 2 184 //
da escassez, tem a ver com a interferência dos objetivos
(ou preferências, ou interesses) de uma pluralidade de
indivíduos ou grupos entre si. Assim, enquanto podemos
com propriedade falar de um aspecto econômico do
comportamento do solitário Robinson Crusoé em sua
ilha, somente temos um problema político quando Sexta-
Feira entra em cena, e na medida em que os interesses ou
objetivos de cada qual têm agora, de alguma forma, que
levar em conta os do outro.”190
CAPÍTULO 2 186 //
aparentemente irremediável entre duas metáforas polares:
sob um certo prisma, o reino da política confunde-se com
a guerra, o jogo do poder, a realpolitik, a “atividade de
associar e defender os amigos e de desagregar e combater os
inimigos”193 – em suma com a afirmação míope e imediata
do puro “interesse”; do outro lado, seguindo a tradição
aristotélica recentemente retomada por Hannah Arendt,
encontraremos o reino da política identificado com uma
idealização da ágora ateniense, com a fala e a comunicação,
a interação de idéias livre de pressões e constrangimentos
externos, a pura “solidariedade” na busca do bem
comum.194 Essa tensão, constitutiva da política, entre
solidariedade e interesse se deixava entrever já em Platão,
que – preocupado, segundo a interpretação de Popper,
com o desmantelamento da ordem tribal tradicional e a
emergência do individualismo moral expresso, ainda que
incipientemente, nas instituições democráticas da Atenas
de seu tempo – propôs a primeira síntese: o Rei-Filósofo,
que, conhecedor do que é justo, neutralizaria o faccionalismo
resultante do livre jogo de interesses parciais em nome da
promoção da justiça, identificada com o melhor interesse
da pólis tomada como um todo.195 Trata-se, contudo, de uma
193 Norberto Bobbio, “Política”, p. 959, referindo-se à célebre fórmula
adotada por Carl Schmitt em O Conceito do Político.
194 F. W. Reis, “Para Pensar Transições”, p. 76-9.
195 A justiça é o tema geral do diálogo platônico A República. A leitura
que faz Popper da filosofia platônica encontra-se no primeiro tomo de A So-
ciedade Aberta e Seus Inimigos. A tese de Popper segundo a qual a solução
platônica se mostrava deslocada já na Atenas de seu tempo é corroborada
por Jean-Pierre Vernant, As Origens do Pensamento Grego, esp. cap. V,
“A Crise da Cidade. Os Primeiros Sábios”, pp. 48-57, quando este afirma
que, cada vez mais “urbana”, a sociedade ateniense do século V a.C. torna-se
CAPÍTULO 2 188 //
de marcos de solidariedade tão sólidos e abrangentes quanto
possível.196 Apoiando-se na apreensão weberiana do conceito
de “mercado”, identifica ali a forma de socialização por
excelência que é simultaneamente interessada (“societal”) e
solidária (“comunal”): no mercado, há um reconhecimento
evidente de que todos podem legitimamente perseguir o seu
próprio interesse individual, e a forma de interação típica –
a troca – pode perfeitamente se dar sem que nenhum dos
participantes se preocupe por um instante sequer com o
bem-estar do outro; não obstante, não menos importante
na configuração da relação de mercado é o reconhecimento
universal de que cada um é um portador de direitos que não
podem em hipótese alguma ser violados – caso contrário,
não há a troca, mas a rapina, a predação, o roubo, o crime.
É por isso que Weber afirmou que o mercado é a forma de
socialização possível entre inimigos (ou entre estranhos).197
Reconhece-se, de saída, que os dois participantes de uma troca
não precisam se importar minimamente um com o outro,
mas ainda assim é uma forma de socialização, porque todos
os dois reconhecem tacitamente que são, ambos, portadores
de um determinado elenco de direitos comuns, e esperam
do outro a observância desses direitos – pertencendo ambos,
portanto, a alguma forma de comunidade. Diz Weber:
CAPÍTULO 2 190 //
Fábio W. Reis, eu dizia, apropria-se daquela
interpretação weberiana e, transpondo-a integralmente
para a política entendida como “economia da coexistência”,
forja no conceito de “mercado político” o critério decisivo do
desenvolvimento político: um sistema político será tanto mais
desenvolvido quanto mais plenamente se afirmar a operação
de um “mercado” na política – ou seja, quanto mais livremente
puderem ser vocalizados e perseguidos os múltiplos interesses
existentes, e (num segundo requisito que mantém uma
relação de dependência recíproca com o primeiro) quanto
mais universalmente se afirmarem e se reconhecerem,
solidariamente, direitos iguais para todos.201 Isto nos defronta
com o corolário paradoxal – mas logicamente irrecusável –
segundo o qual a maximização do “puro”confronto de interesses
201 F. W. Reis, “Para Pensar Transições”, pp. 79-80. Para a exposição
original do argumento, bastante mais detalhada, ver F. W. Reis, “Solida-
riedade, Interesses e Desenvolvimento Político”, esp. pp. 16-26. Antes de
prosseguir com qualquer consideração adicional, é extremamente impor-
tante para a clareza do argumento distinguir enfaticamente este emprego da
expressão “mercado político” do seu sentido metafórico mais banal, iden-
tificado frouxamente à “arena política”, e em certa medida inspirado pelo
importante trabalho de Anthony Downs, An Economic Theory of Democra-
cy, onde se descreve o funcionamento da democracia contemporânea por
analogia com os conceitos fundamentais da microeconomia neoclássica: os
partidos desempenham o papel das firmas; os chefes políticos, o dos em-
presários; o eleitor é o consumidor; a ideologia desempenha a função da
publicidade etc. Contrariamente a Downs, que com o recurso ao aparato
analítico da microeconomia pretendia ter em mãos uma ferramenta isenta
de maiores contaminações normativas para a análise da democracia con-
temporânea, aplicando a analogia do mercado a qualquer regime compe-
titivo contemporâneo, aqui o “mercado político” funciona, na expressão do
próprio F. W. Reis, como “utopia realista” (“Para Pensar Transições”, p. 79),
idéia normativa apenas idealmente alcançável, critério final de uma noção
pretensamente universal de desenvolvimento político.
CAPÍTULO 2 192 //
No processo de desenvolvimento político assim
descrito, são identificados três grandes estádios: a política
pré-ideológica, a política ideológica e a política pós-
ideológica. A “política pré-ideológica” caracteriza-se
basicamente pela centralidade dos problemas de integração
territorial e state-building; os canais de solidariedade são
estreitos, de curto alcance, e tendem a constituir-se através
de relações hierárquicas de dependência entre patrões e
clientes, semelhantes ao “coronelismo” brasileiro, ou às
do Mezzogiorno italiano tal como o descreve Putnam, ou
várias outras formas semelhantes de subordinação pessoal.
A “política ideológica” encontra ainda presentes marcadas
desigualdades sociais, mas já vê avançados os processos
de mobilização social e integração territorial; laços de
natureza universalística (relativos sobretudo às posições
de classe na maior parte dos casos) já preponderam na
determinação dos focos de solidariedade relevantes no
processo político; doutrinas relativamente abrangentes
(ideologias) tendem a definir as linhas de antagonismo,
e o poder é institucionalizado. Finalmente, a “política
pós-ideológica” descreve uma situação de solidariedade
territorial plena, com a igualdade e a “intercambiabilidade”
dos atores elevadas a um grau máximo; plena operação do
“mercado político” e do livre jogo de interesses; completa
institucionalização da autoridade.204 Sua plena vigência
supõe a inexistência não só de compartimentalização
social de natureza estamental, mas também a extinção
mesmo das classes sociais, em virtude da desigualdade das
“chances vitais” de cada indivíduo que a existência delas
204 F. W. Reis, “Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento Político”,
pp. 42-4.
CAPÍTULO 2 194 //
A ideia mestra que preside a distinção dos estádios,
portanto, é o grau da expansão do mercado político,
facilitada ou entravada pelas formas de solidariedade
prevalecentes: “desenvolvimento político é a eliminação
das barreiras de qualquer tipo ao estrito jogo de interesses,
o que implica expansão da solidariedade”.207 Esse critério
normativo teórico, abstratamente definido, permite que se
situem os países avançados num estádio intermediário de
desenvolvimento político (a “política ideológica”) – ficando
os países periféricos no primeiro estádio, ou então na
transição do primeiro para o segundo. Independentemente
da acuidade da avaliação que façamos deste ou daquele
caso num momento específico da história, a classificação
tem o mérito de evitar aquela contaminação etnocentrista
da compreensão mais usual de desenvolvimento político,
sem perder a possibilidade de se avaliar o funcionamento
de diferentes sistemas políticos: qualquer pessoa sensata
há de reconhecer, por exemplo, que o sistema político
tem funcionado melhor (e não apenas diferentemente),
por exemplo, na Suécia que, digamos, em Ruanda – o
que não deve contudo implicar a conclusão de que a
Suécia não tem mais qualquer desafio a enfrentar no que
concerne ao seu próprio desenvolvimento político. O tema
do desenvolvimento político deixa de referir-se apenas aos
problemas da política nos países em desenvolvimento no
momento em que se formula uma noção de desenvolvimento
político que parte de uma definição da própria “função
política”, genericamente formulada, e – ao oferecer aos
próprios países desenvolvidos um parâmetro em que se
207 F. W. Reis, “Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento Po-
lítico”, p. 47.
CAPÍTULO 2 196 //
autoritariamente – de modo bem-sucedido a longo prazo
– uma sociedade moderna, inserida numa economia
internacional em acelerado processo de “globalização”, na
qual agentes econômicos relevantes desfrutam de certas
“liberdades” comerciais tecnologicamente dadas, e que
portanto escapam necessariamente ao controle dos governos
– vide o problema da volatilidade do capital financeiro
especulativo, que tanta preocupação tem causado a diversos
governos. Tenho a impressão de que, embora seja inegável a
existência de uma tensão entre a “produção” e a “distribuição”
de poder (e a história da América Latina no século XX é
uma corroboração dramática da tese), muitas vezes a ênfase
no trade-off entre democracia e eficiência negligencia
o problema da eficácia da implementação (talvez mais
importante que a eficiência decisória) – e esse foi um erro
comum nos primeiros trabalhos da literatura da public choice,
por exemplo. Numa sociedade complexa, a implementação
escapa, em grande medida, à mera capacidade de decisão
rápida e de enforcement violento de que governos autoritários
(ou “insulados”) presumivelmente dispõem em maior
medida que os democráticos. Nas sociedades modernas
é decisiva uma disposição prévia à obediência associada à
presunção geral de que o governo tem o direito de governar,
e o faz razoavelmente. Em outras palavras, é decisivo o
reconhecimento da autoridade, da legitimidade do governo
junto à população, para que se instale alguma confiança
de que é possível cooperar, já que outros também estarão
volvida” politicamente, observe-se, porém, como tudo se passou de forma
pacífica. Enquanto a URSS existiu, todas as mudanças se deram de manei-
ra estritamente institucional. Este ponto foi observado por Fábio W. Reis,
“Para Pensar Transições”, pp. 95-6.
CAPÍTULO 2 198 //
PARTE II
ECONOMIA E
POLÍTICA:
INSTITUIÇÕES
E DESEMPENHO
ECONÔMICO
“Basta um conflito das Malvinas e logo se vê onde está o
autêntico estado forte [...].”
O MERCADO E A NORMA:
O ESTADO MODERNO E A
INTERVENÇÃO PÚBLICA
NA ECONOMIA
CAPÍTULO 3 202 //
sociedade complexa tipificada na parte I deste trabalho. Na
seção 3.2, discutem-se os efeitos produzidos pela operação
e progressiva afirmação e preeminência do mercado na
sociedade moderna sobre o funcionamento do estado
moderno e sua progressiva expansão sobre diversas esferas
da vida social. Finalmente, na seção 3.3, são discutidas as
consequências dessa expansão sobre a dinâmica econômica,
em especial o tópico dos efeitos da democracia moderna
sobre a economia.
Max Weber,
Economía y Sociedad (1922), p. 496.
CAPÍTULO 3 204 //
comprometidos com a posição de somente reconhecermos
a existência do mercado em sociedades onde houver ou
“conflito sobre a distribuição das contingências sociais”,
ou “conflito sobre as regras de distribuição”, ou ambos. De
maneira consistente, Santos irá sustentar a clássica proposição
de Karl Polanyi (contra uma relativa “naturalização” da
operação do mercado, comum entre autores liberais) segundo
a qual a regulação da vida social pelo mercado depende da
vigência de valores e instituições específicos e, portanto, não
pode ser considerada, em nenhum sentido, “natural”. Para
Polanyi, nenhuma economia havia sido, até o nosso tempo,
controlada por mercados.211 Sem querer entrar no árduo
problema de se definir de maneira empiricamente referida
o que podemos entender por uma economia “controlada”
ou não pelo mercado (tenho a impressão de que Hayek ou
Friedman, por exemplo, assim como os “libertários” norte-
americanos dos dias de hoje, estariam prontos a duvidar
de que mesmo a economia do século XX fosse controlada
pelo mercado), eu gostaria de observar que, ao descrever
minuciosamente o processo de construção institucional
que acompanhou a afirmação da economia de mercado na
Europa moderna, Polanyi não se dirige ao problema teórico
fundamental, que nos ocupa aqui: ele parece não se perguntar
por que, afinal, esta estrutura – para ele tão peculiar – emerge
naquele contexto específico. Já que nunca existira antes, seria
natural indagar qual a peculiaridade da nossa época que faz
versais como a propriedade privada, competição entre agentes econômicos
e preços relativamente livres etc., de maneira a configurarem um sistema
competitivo, comparativamente mais atomizado e imprevisível de alocação
de recursos.
211 K. Polanyi, The Great Transformation, p. 43.
CAPÍTULO 3 206 //
constatação de um claro trade-off histórico entre adscrição e
mercado, mecanismo por excelência de estratificação social
competitiva. Observe-se que em todas as sociedades agrícolas
anteriores ao Ocidente moderno o componente “adscritivo”
da estratificação social foi maior que neste último (por mais
que estejamos longe da completa extinção de qualquer traço
“adscritivo” na estratificação social no Ocidente, ou mesmo
da completa instauração de uma economia plenamente
mercantil).213 Não precisamos, portanto, abandonar a tese (de
resto, pelo menos tão antiga quanto Karl Marx) que Polanyi
chama de “the outstanding discovery of recent historical and
anthropological research [...] that man’s economy, as a rule,
is submerged in his social relationships”214 para constatar
Na introdução ao primeiro volume de Civilização Material, Economia e Cap-
italismo (p. 12), Braudel completa:
“[...] uma zona de opacidade, muitas vezes difícil de observar por falta
de documentação histórica suficiente, se estende sob o mercado: é a atividade
elementar de base que se encontra por toda a parte e cujo volume é simples-
mente fantástico. À falta de termo melhor, designei essa zona espessa, rente
ao chão, de vida material ou civilização material.”
213 Digo sociedades agrícolas porque, de acordo com o trabalho etno-
lógico de Stanley Udy, The Organization of Work (apud F. W. Reis, “Brasil:
‘Estado e Sociedade’ em Perspectiva”, pp. 44-5), a adscrição vem junto com
o sedentarismo acarretado pela agricultura – diferentemente do que se dá
em sociedades tribais de caçadores, usualmente nômades, nas quais “o pro-
blema da utilização ótima dos recursos materiais e humanos se coloca com
agudeza”, o que faz com que prevaleçam formas de organização do trabalho
que “tendem a caracterizar-se por traços tais como especificidade quanto à
divisão do trabalho [e] ênfase no desempenho ao invés de em qualidades
‘adscritivas’”. Ao contrário, a sociedade camponesa de agricultura sedentá-
ria poderia arcar com um declínio da eficiência que presumivelmente resul-
ta do predomínio de formas “adscritivas” de organização do trabalho, em
virtude da relativa segurança econômica propiciada pela atividade agrícola
sedentária.
214 Polanyi, The Great Transformation, p. 46.
CAPÍTULO 3 208 //
resultar na própria incapacidade de sobrevivência.216 É
seguro afirmar que jamais virá a existir sociedade alguma
que reproduza fielmente qualquer destes extremos. A esta
altura da exposição, porém, uma questão crucial se impõe:
diante da constatação do advento de formas extremamente
complexas de sociedade no bojo da modernização, seria
razoável esperar construir uma sociedade platônica, de
“lugares marcados”? Numa sociedade complexa, como
já observou Douglass North (ver acima, subseção 2.1.2),
multiplicam-se exponencialmente situações como as
descritas por Olson em The Logic of Collective Action, em que
cada indivíduo – virtualmente anônimo em diversas arenas
– vê-se estimulado a comportar-se como “carona”, tornando
fortemente implausível a presunção de que todos poderão
introjetar as noções de dever implicadas por papéis sociais
fortemente personalizados (que supõem intensa interação
face a face), negligenciando oportunidades de recompensas
tópicas individuais. E o corolário lógico de uma sociedade
cada vez mais complexa acaba sendo a admissão de que a
sociedade será crescentemente competitiva. Como ressaltou
Weber, o mercado é originariamente a forma de socialização
possível entre estranhos, entre “inimigos”, e um traço saliente
que a moderna sociedade complexa possui a distingui-la das
demais reside precisamente no fato de que se trata de uma
sociedade entre “estranhos”.217 Assim, pode-se prever que,
216 Era seguramente com base numa contraposição análoga a essa que
Hayek costumava qualificar o socialismo como “uma nostalgia da sociedade
arcaica, da solidariedade tribal” (ver Guy Sorman, Os Verdadeiros Pensado-
res de Nosso Tempo, p. 192).
217 Weber, Economía y Sociedad, p. 496. Na mesma linha, Popper, A
Sociedade Aberta e Seus Inimigos, tomo 1, pp. 189-91, qualifica a sociedade
contemporânea como crescentemente “abstrata”.
CAPÍTULO 3 210 //
modo rotineiro os relativamente imprevisíveis deslocamentos
das fontes de poder em uma economia de mercado. Este
igualitarismo poderá se manifestar ou – na melhor hipótese
– pelo estabelecimento de normas constitucionais em
alguma medida “democráticas”, ou então – precariamente
– pela violência intermitente, típica do pretorianismo
militar, que de todo modo tende a ser antitradicionalista
e antiaristocrático. Mas o fato é que com as oscilações da
fortuna a que todos os atores estão idealmente submetidos
numa economia de mercado, torna-se impossível – a longo
prazo – acomodar os interesses relevantes num sistema
de atribuição exclusivamente “adscritiva” e aristocrática
de status político. Se se quiser preservar um sistema como
esse, será imprescindível impor severos limites à área
que se mantém aberta à competição mercantil.218 E, na
eventualidade de expansão continuada da operação do
mercado, se se quiser evitar a instabilidade institucional
recorrente, provavelmente violenta, será imperiosa a
configuração de um análogo político-institucional – ainda
que precário – da imprevisibilidade, da competição e da
agregação atomizada de preferências que se observa no
mercado. Na ausência da aceitação pacífica de uma rígida
218 O caso da América Latina me parece ilustrar perfeitamente o pon-
to. Do México à Argentina, o continente atravessou a maior parte do sécu-
lo submetido a regimes políticos que combinavam autoritarismo e exclu-
são social com retórica demagógica anti-mercado, exercitada em nome da
proteção social. Dados os resultados obtidos, é difícil crer que essa postura
oficial tenha sido motivada por genuína preocupação com os efeitos da ope-
ração do mercado sobre as massas. Antes, parece mais plausível a hipótese
de sistemas políticos precários que não conseguem se autonomizar institu-
cionalmente frente aos interesses privados mais poderosos, e procuram ao
mesmo tempo capitalizar politicamente sua irremediável capitulação sob o
pretexto da sensibilidade social.
CAPÍTULO 3 212 //
Apoiados, portanto, em abundante evidência histórica
de coexistência entre uma organização capitalista da
economia e regimes politicamente repressivos, muitos
autores contestarão a relação entre democracia e mercado.
Um exemplo recente dessa postura pode ser encontrado
em Rueschemeyer, Stephens e Stephens, que atribuem o
avanço da causa democrática não ao mercado, mas antes
às próprias “contradições” do capitalismo, expressas no
fortalecimento gradativo das classes operárias e médias,
que tem lugar concomitantemente a um enfraquecimento
da classe proprietária de terras à medida que avança o
capitalismo.220 Não pretendo negar que esta aproximação do
problema tenha, de fato, sua relevância empírica, servindo
para descrever com maior proximidade histórica o drama dos
acontecimentos efetivamente verificados em alguns (vários)
casos importantes de afirmação de regimes democráticos.
Dadas todas as inúmeras ditaduras capitalistas que já
existiram e que continuarão a existir num futuro visível,
bem como a evidente resistência à democracia movida pelas
classes dominantes, a movimentação dos atores na ribalta
das disputas políticas acaba fazendo com que a “afinidade
eletiva” entre democracia e mercado pareça se dar tão “em
última instância” que perderia qualquer acuidade prospectiva.
Por outro lado, este ponto de vista desconsidera o fato de
que as classes dominantes nos países periféricos costumam
resistir não apenas à democracia, mas igualmente à operação
do próprio mercado. Tendo isto em vista, o argumento
de Rueschemeyer, Stephens e Stephens parece-me antes
contornar a afinidade entre democracia e mercado, mais do
220 Rueschemeyer, Stephens e Stephens, Capitalist Development and
Democracy, p. 7
CAPÍTULO 3 214 //
e outro. Sob este prisma, pode-se perguntar até que ponto
tem vigência o princípio do mercado numa sociedade em
que uma oligarquia se apodera dos recursos repressivos do
estado em proveito próprio. Por definição, não tem vigência
na esfera da política, e portanto não opera o “mercado
político” tal como concebido por F. W. Reis. E dificilmente
operará na esfera econômica um princípio competitivo de
alocação de recursos, já que o poder coercitivo do estado será
empregado para assegurar uma posição monopolística aos
membros da oligarquia (e, como diz Braudel, o monopólio é
o “contramercado”, e é usualmente desfrutado pelos “amigos
do príncipe, aliados ou exploradores do estado”).222
CAPÍTULO 3 216 //
simultaneamente “societal” e comunal, e como esta
dimensão comunal se expressa no reconhecimento mútuo
de direitos compartilhados, para além do qual cessa toda
confraternização entre os participantes na troca. Se é assim, a
proteção a direitos individuais é condição indispensável para
a simples existência da troca – e, como vimos na primeira
metade do capítulo anterior (seção 2.1), só haverá proteção
adequada dos direitos individuais numa sociedade complexa
onde houver estado em condições de impor de maneira
eficaz a vigência das normas envolvidas na troca. É certo
que a garantia da atuação dessas normas não pode se dar
de maneira estritamente coercitiva, e tanto Putnam, num
plano mais empírico, quanto Axelrod, num plano analítico-
dedutivo, argumentaram de maneira persuasiva em favor da
importância de um ambiente onde recompensas e punições
recíprocas sejam exercidas de modo rotineiro e disseminado,
de maneira a induzir comportamentos cooperativos
“espontâneos” a partir da expectativa da retaliação dos demais
ao comportamento desviante. Evidentemente, semelhante
ambiente favorece o desempenho eficaz das instituições, pois
simplesmente desonera o estado de parcela importante do
“custo de fiscalização” (e repressão) em que necessariamente
incorre. Se o estado pode contar com a adesão da população
às normas vigentes, de maneira não só a cumpri-las
rotineiramente, mas também a punir os recalcitrantes – ou
ao menos denunciá-los às autoridades competentes – então
é claro que se pode esperar um desempenho mais eficiente
das instituições políticas. Mas o estado permanece sendo o
fiador em última instância de qualquer norma legal, escrita
ou consuetudinária, vigente numa coletividade política – e
tem não apenas a faculdade, mas mesmo o dever de, quando
CAPÍTULO 3 218 //
em função de seus interesses e tentam construir – usando
em proveito próprio os diferenciais de poder que o
resultado mesmo da competição no mercado lhes confere
– monopólios ou oligopólios que lhes garantam vantagens
estratégicas em sua competição com os demais agentes no
mercado. Segue-se a conclusão de que, excluída uma ação
normatizadora externa, um mercado em concorrência
perfeita é logicamente incompatível, no longo prazo, com a
suposição de agentes maximizadores. Enfim, somente existe
a operação plena do mercado onde há livre perseguição de
interesses particulares sob a égide de normas e costumes muito
específicos, e onde o estado – pelo adequado funcionamento
de suas instituições – é capaz de comparecer como fiador
eficaz dessas normas junto ao público.
CAPÍTULO 3 220 //
relativamente limitado – ou então o conflito puro e simples
e a prevalência violenta dos mais poderosos.227
227 Esse dilema é diretamente rejeitado por Jurgen Habermas, que
apóia sua “teoria da ação comunicativa” na distinção aristotélica – retoma-
da e reelaborada por Hannah Arendt em The Human Condition – entre os
planos “técnico” (“contexto do trabalho”, na terminologia habermasiana) e
“prático” (“contexto da interação”) da ação humana, aos quais Habermas faz
corresponder, respectivamente, a ação racional-intencional e a ação comu-
nicativa. Em Habermas, o plano “prático” da vita activa (“contexto da in-
teração” para Habermas, que corresponde ao plano da “ação” para Arendt,
oposto ao “labor” e ao “trabalho”), sendo a esfera da ação e da fala, constitui
o locus por excelência do homem enquanto zoon politikon e do exercício da
ação comunicativa, uma vez que esse plano, por definição, envolve a inte-
ração entre sujeitos. Diferentemente, na esfera da “técnica” (“contexto do
trabalho”), tratar-se-ia, segundo Habermas, da relação do homem com o
seu meio, transformado em objeto de sua ação, e, portanto, reino da ação ra-
cional-intencional (“purposive-rational action”), da qual Habermas ainda
distingue duas submodalidades: a “ação instrumental” e a “ação estratégica”
(ver Fábio W. Reis, Política e Racionalidade, pp. 30-2, onde se encontra
longa citação de uma apresentação que faz o próprio Habermas dessas dis-
tinções, em Toward a Rational Society, pp. 91-2). Sobre estas distinções
é que Habermas formulará – como o apresenta Thomas McCarthy, “Com-
plexity and Democracy”, pp. 119-20 – uma teoria crítica da sociedade mo-
derna a partir de uma reelaboração do conceito de “reificação” como uma
“colonização do mundo-da-vida” (contexto da interação) por forças emana-
das dos subsistemas econômico e político, subordinando-o crescentemente
a “imperativos sistêmicos de reprodução material”. O problema da buro-
cratização tal como compreendido por Weber derivaria precisamente dessa
“colonização”. Para além do fato de que a percepção dessa colonização do
“mundo da vida” por si só não nos ensina a “descolonizá-lo” (nem mesmo
nos assegura de que esta descolonização seja possível), gostaria de observar
aqui que a visão de Habermas, ao tentar contrapor radicalmente o “contexto
do trabalho” ao “contexto da interação” (este último tomado como a base
consensual da ordem social), acaba por em certa medida incorporar – ainda
que talvez inadvertidamente – uma muito comum associação automática
entre, de um lado, conflito e substrato material, e, do outro, solidariedade e
ordem normativa. Mas, como tenta mostrar David Lockwood em sua crítica
a Parsons (Lockwood, “Some Remarks on ‘The Social System’”, pp. 138-40),
// 221 MODERNIZAÇÃO, MERCADO E DEMOCRACIA
3.2. Explicitando o dilema: o mercado
como Dr. Frankenstein (ou, de como o
estado vem a agir)
Douglass C. North,
Structure and Change in Economic History (1981), p. 20.
esta associação é improcedente. Para ele, em suas manifestações histórica
e sociologicamente relevantes, tanto o conflito quanto a ordem são antes
resultados de diferentes formas de interação entre a norma e o substrato
material. A crítica do argumento habermasiano empreendida por Fábio W.
Reis reafirma o argumento de Lockwood ao explicitar os enormes obstácu-
los analíticos com que nos deparamos na busca de uma distinção cabal entre
o “contexto da interação” e o “contexto do trabalho” – e podemos encontrar
em McCarthy um ponto de vista análogo, elaborado num plano mais em-
pírico. Um exemplo importante das dificuldades envolvidas nesse corte é a
classificação, por Habermas, da ação estratégica como mera submodalidade
da ação racional-intencional (“técnica”). Se é sem dúvida verdade que a ação
estratégica compartilha com a ação instrumental a consideração do seu con-
texto – no caso, os demais participantes – como objeto da ação, por outro
lado o traço definidor da ação estratégica é a sua característica de “ação ins-
trumental enquanto exercida no contexto social como tal”, sendo, “portanto,
simultaneamente também interação” (F. W. Reis, Política e Racionalidade,
p. 78). Se na ação estratégica opera-se a síntese dos “contextos” instrumental
(“interessado”) e comunicacional (“solidário”) da ação humana (F. W. Reis,
Política e Racionalidade, p. 146), então ela é a ação política por excelência
(se estabelecemos que o pleno desenvolvimento político redunda na plena
afirmação de interesses no interior de marcos universais de solidariedade),
e se explicita claramente sua analogia com o mercado – locus arquetípico da
interação estratégica não violenta, simultaneamente “societal” e comunal,
como apontou Weber. (A crítica de F. W. Reis encontra-se integralmente
desenvolvida em Política e Racionalidade, esp. pp. 23-101, particularmente
pp. 77-101, dedicadas à discussão da ação estratégica. Ver também T. Mc-
Carthy, “Complexity and Democracy”, esp. pp. 122-4.)
CAPÍTULO 3 222 //
Já qualifiquei aqui (subseção 2.1.1) como
“esquizofrênica”a aspiração liberal de conter dentro de limites
mínimos o mesmo aparato administrativo encarregado de
zelar pela observância do mais extenso leque de direitos
individuais jamais proposto na história da humanidade.
Dada a formidável dimensão mesmo de sua tarefa “mínima”,
a capacidade mínima de intervenção sobre a vida social que
o estado moderno pode adotar necessariamente superará,
em muito, a de qualquer outra formação política que o tenha
antecedido. De fato, tendo admitido – desde a “adaptação
liberal” que Locke faz do argumento de Hobbes – o estado
como um mal, ainda que um mal necessário, o liberalismo
vê-se diante da tarefa irrecusável de conter dentro de limites
“mínimos” este mesmo Leviatã cuja existência legitima.
Mas isto não nos pode autorizar a imaginar que o estado
liberal possa estar menos presente na vida dos cidadãos que
qualquer estado despótico pré-moderno. Pelo contrário,
como vimos (subseção 2.1.1), a natureza mesma das tarefas
que os próprios princípios liberais lhe outorgam obriga o
estado liberal a exercer maior controle e maior vigilância que
seus antecessores sobre os atos de seus cidadãos – ainda que
o governante esteja, simultaneamente, mais constrangido
por normas legais que em outras formações políticas.228
CAPÍTULO 3 224 //
Não fosse pelo livro de Abram De Swaan, In Care
of the State, de 1988, e talvez a formulação mais instrutiva
da evolução histórica desse problema se encontrasse ainda,
sem paralelo, nas conferências proferidas em 1949 por T.
H. Marshall em Cambridge, posteriormente reunidas sob o
título “Citizenship and Social Class”. Ali Marshall explora
determinadas ambiguidades contidas na ideia de cidadania
que acabam por abrir na formulação estritamente liberal da
questão algumas “fendas” por onde se pode depreender certa
mente mais precisos, e é o que fazem Adam Przeworski e Fernando Limongi,
“Regimes Políticos e Crescimento Econômico”, pp. 176-7:
“O mercado é um sistema no qual recursos limitados são alocados para
usos alternativos por meio de decisões descentralizadas. No entanto, no capitalismo,
a propriedade é institucionalmente separada da autoridade: os indivíduos são ao
mesmo tempo agentes no mercado e cidadãos. Portanto, existem dois mecanismos
pelos quais os recursos podem ser alocados e distribuídos entre os agentes econômi-
cos: o mercado e o estado. O mercado é o mecanismo pelo qual os indivíduos votam
a favor de uma alocação com os recursos que possuem, e esses recursos são sempre
distribuídos desigualmente; o estado é um sistema que aloca recursos que não possui,
sendo os direitos distribuídos diferentemente do mercado. Segue-se que a alocação
de recursos que os indivíduos preferem enquanto cidadãos, em geral, não coincide
com a que eles obtêm via mercado.” (Este mesmo argumento aparece também em
Adam Przeworski e Michael Wallerstein, “O Capitalismo Democrático na Encruz-
ilhada”, p. 256.)
Ao final, apoiados em Zhiyuan Cui, “Incomplete Markets and Consti-
tutional Democracy”, Przeworski e Limongi, “Regimes Políticos e Crescimento
Econômico”, p. 189, completam:
“[...] se os mercados são incompletos e a informação imperfeita, a econo-
mia só pode funcionar se o estado proteger os investidores (responsabilidade limita-
da dos acionistas), as empresas (lei das falências) e os depositantes (sistema bancário
com dois tipos de bancos, um deles obrigado a fazer seguro dos depósitos). Mas
esse tipo de envolvimento do estado inevitavelmente introduz uma restrição orça-
mentária leve [soft budget constraint]. O estado não pode simultaneamente proteger
os agentes privados e não atender às suas reivindicações, mesmo quando estas decor-
rem de risco moral [moral hazard].”
CAPÍTULO 3 226 //
trabalhista, por exemplo, evidentemente interfere na liberdade
de agentes privados acertarem como queiram um contrato
de trabalho. Como lembra o próprio Marshall, a decadência
do controle dos salários pelo governo no século XVIII está
relacionada, entre outras coisas, à aplicação dos direitos civis na
esfera econômica.232 Trata-se da liberdade de se trabalhar onde
se queira, segundo um contrato livremente firmado pelas partes
diretamente envolvidas. Ao final do século XVIII, a ideia que
hoje temos da cidadania estava dividida: o que hoje chamamos
direitos sociais – associados com a regulamentação, a proteção
de determinados grupos no interior da sociedade – eram o
“velho”, um resquício de costumes herdados das corporações
de ofícios e das guildas medievais; os direitos civis, por sua vez
– a livre afirmação de interesses individuais de cidadãos livres
–, eram o “novo”. Ao longo de todo o século XIX, a existência
de proteção social, em vez de ser um requisito da cidadania, era,
ao contrário, incompatível com ela. Aquele que necessitava de
proteção não poderia ser considerado um cidadão, e até 1918 os
eventuais beneficiários da Poor Law britânica perdiam qualquer
direito político que porventura possuíssem. Os Factory Acts, por
sua vez, embora tenham melhorado as condições de trabalho
dos operários, somente se aplicavam a mulheres e crianças,
em respeito à condição de cidadãos dos homens adultos, que
não poderiam sofrer uma violência contra sua liberdade de
estabelecer e cumprir um contrato de trabalho. Tanto que,
lembra Marshall, “champions of women’s rights were quick to
detect the implied insult. Women were protected because they
were not citizens.”233
232 Marshall, “Citizenship and Social Class”, pp. 86-7.
233 Marshall, “Citizenship and Social Class”, p. 89.
CAPÍTULO 3 228 //
precisa do eleitorado passa a ser uma pergunta aberta em
princípio a inúmeras respostas, e – o que é mais importante
– a resposta eventualmente dada a esta pergunta pode
interferir decisivamente no resultado da disputa.236 Com
isto os governos passavam a ter um forte incentivo a tomar a
iniciativa e expandir por conta própria o sufrágio, buscando
beneficiar-se eleitoralmente disso – e antes que a oposição,
uma vez no poder, o fizesse. O sufrágio não-universal é um
arranjo inerentemente instável, transitório, principalmente
num contexto em que se afirma concomitantemente a
universalização dos direitos civis. Daí explicar-se a relativa
rapidez com que se passou da instauração regular do sufrágio
no Ocidente para a generalização do sufrágio universal.237
CAPÍTULO 3 230 //
arcar com os deveres da cidadania.239 E aquele estado burguês
que então se instalava em toda a Europa vinha tendo sua
autoridade fortemente contestada – sobretudo no continente,
é verdade – desde meados do século XIX, principalmente
a partir da conclamação revolucionária contra ele dirigida
pelo movimento operário.
CAPÍTULO 3 232 //
“a sociedade civil não é um jogo privado [...] à parte das
instituições do governo, muito menos contra elas”. Ao
contrário, as prerrogativas da cidadania são efetivas “somente
se há estruturas de poder que as sustentem”. A cidadania,
prossegue ele, acaba sendo “o único status legalmente
impositivo que restou”.241 Mas este status impositivo é
ao mesmo tempo irrecusável, pois se a livre operação do
mercado reproduz continuamente desigualdades, a operação
estável da democracia terá consequentemente de requerer
– como nos lembram Rueschemeyer, Stephens e Stephens –
“a fairly strong institutional separation – the technical term
is differentiation – of the realm of politics from the overall
system of inequality in society”.242 O que significa dizer que
requererá, em alguma medida, contínua ação oficial voltada
para a permanente reafirmação institucional da igualdade
de status necessária tanto à operação democrática do regime
político quanto à operação eficiente do mercado econômico.
CAPÍTULO 3 234 //
recrutas, consumidores e eleitores).245 A consequência
imediata desse fenômeno é que, se de um lado o senhor
medieval podia (aliás, tinha de) lidar individualmente com as
ameaças e oportunidades representadas pelos “seus” pobres
– seja assegurando contra eles sua própria proteção pessoal,
seja conquistando-lhes a lealdade pessoal –, do outro lado
a proteção contra os perigos oferecidos pelos deserdados
de hoje, assim como a possibilidade de se beneficiar deles,
se apresentam ao moderno burguês como um problema de
ação coletiva tal como concebido por Olson. Ou seja, se ao
aristocrata medieval não era deixada escolha senão lidar
ele mesmo, privadamente, com os riscos e oportunidades
oferecidos, ao burguês moderno é, em princípio, possível
comportar-se como um free-rider no que toca a este
problema. Se outros se encarregarem de treinar e disciplinar
a força de trabalho, cooptar politicamente as massas etc.,
ele se beneficiará do resultado independentemente de
seu próprio esforço. Se, por exemplo, esforços coletivos
organizados se encarregam das condições sanitárias em
que vivem os pobres num centro urbano, toda a população
estará livre de uma possível epidemia mortal, tendo ou
não contribuído para a tarefa; igualmente, se uma máfia
privada impõe a ordem, todos desfrutarão da “segurança”
proporcionada, independentemente de terem contribuído
ou não para o “policiamento”. O resultado previsível é
245 Wanderley Guilherme dos Santos, Razões da Desordem, pp. 22-3,
também se refere à imposição compulsória do consumo de um “mal públi-
co” aos empresários pela crescente organização operária. A peculiaridade do
argumento de De Swaan decorre, porém, do fato de que ali a dinâmica da
interdependência entre ricos e pobres na sociedade moderna configura um
problema de ação coletiva independentemente da organização dos atores
diretamente envolvidos.
CAPÍTULO 3 236 //
decisivo a tornar inevitável a contribuição compulsória é
a multiplicação das externalidades enfrentadas a partir da
intensificação dos laços de interdependência no interior da
sociedade moderna, urbana.246
CAPÍTULO 3 238 //
internacionais – com os riscos envolvidos no recente
processo de “desregulamentação” econômica, que tem
resultado frequentemente em certo desmantelamento do
conjunto de normas que compõem os direitos sociais. De
um ponto de vista como o de De Swaan, este movimento
só pode significar uma “oscilação” temporária na tendência
geral de coletivização de assuntos que hoje nos pareceriam
de interesse estritamente privado; pois, dado o processo
inexorável de intensificação da interdependência humana
(que certamente é reafirmado pela “globalização” em voga),
diversas externalidades não tardariam a se fazer sentir, tais
como crescente pressão migratória internacional, aumento
da turbulência política doméstica nos países centrais etc.,
impondo novas soluções coletivas de natureza compulsória
– mais regulamentação, portanto.248 O problema é que
“oscilações” como esta podem colher gerações inteiras, e sua
“profundidade” é imprevisível ex-ante. Até onde as chamadas
“externalidades” podem ir antes de se encontrar uma solução
consensual para elas (ou melhor, antes que se torne racional
para cada ator relevante aderir a uma solução institucional
para elas) é uma questão em aberto, e, assim, longos períodos
de grave turbulência política são sempre uma possibilidade.
248 Menciono aqui a turbulência política nos países centrais não por
entender que ela não se daria nos países periféricos (muito pelo contrário),
mas sim porque a eventual turbulência política nestes só produziria efei-
tos na direção de uma coletivização compulsória do problema (ou seja, uma
regulamentação internacional qualquer destinada a lidar com ele) na me-
dida em que produzisse externalidades patentes sobre os países centrais –
de maneira idêntica, no plano doméstico a questão social só começou a se
tornar um problema coletivo quando a miséria dos pobres passou a criar
transtornos para a vida dos ricos.
CAPÍTULO 3 240 //
desempenhado pelos direitos sociais – conforme se pode
inferir da interpretação de Marshall – na universalização do
pleno exercício dos direitos civis em sociedades marcadas
(hoje como ontem) por importantes desigualdades internas,
parece imprevisível o efeito desse desmantelamento da
legislação social sobre a legitimidade futura do arcabouço
institucional das democracias contemporâneas. Pois, se
(como vimos ao final da subseção 2.1.3) a institucionalização
democrática baseia-se num compromisso um tanto frágil,
apoiado na crença de que a observância de determinados
procedimentos políticos universalistas resultará de algum
modo no benefício de todos, então a questão da sobrevivência
material dos pactuantes deve estar encaminhada (e, depois
da experiência do welfare state, esperar-se-á certamente
uma sobrevivência material não menos que “confortável”).
Se se dissemina a percepção de que o sistema político
simplesmente se torna injusto, deixando de promover alguns
valores socialmente compartilhados, então todo o aparato
institucional democrático se tornará particularmente
vulnerável a eventuais “ataques carismáticos”. E o problema
contemporâneo revela-se muito mais grave do que aquele
de séculos passados, descrito por Marshall e De Swaan, a
partir do momento em que se constata que os indispensáveis
mecanismos institucionais de normatização de condutas
num plano internacional se encontram num estádio
de desenvolvimento muito inferior àquele em que se
resultante da quase completa integração mundial dos mercados de investi-
mento levada a cabo desde os anos 70, ver Fritz Scharpf, Crisis and Choice
in European Social-Democracy, cap. 12, “Hopes at the End of the Eighties”,
pp. 256-75. Para agravar o quadro, Scharpf ainda manifesta forte ceticismo
quanto às possibilidades de instauração, num futuro visível, de mecanismos
internacionais de controle institucional de processos econômicos.
Adam Przeworski,
“A Reforma do Estado” (1995), p. 22.
CAPÍTULO 3 242 //
como “um fim em si mesmo”. Todavia, temos claramente um
problema aqui quando constatamos que desses procedimentos,
dessas “formas de tratamento”, as pessoas evidentemente
esperam resultados específicos para as suas vidas, nem sempre
compatíveis uns com os outros. Pois, na sociedade moderna,
liberal, o fim a ser coletivamente perseguido (a “missão” da
sociedade a que se refere Schluchter) não mais pode consistir
em um feito coletivo, mas sim numa certa liberdade –
individualmente desfrutada – para se perseguir aquele fim que
pessoalmente nos aprouver, contanto que ele não inclua o uso
direto de violência sobre terceiros. O problema reside em que
– como nos diria De Swaan – não há maneira de o sistema
se assegurar a priori contra as “externalidades” que a livre
busca da felicidade por cada um necessariamente produzirá
sobre as chances de realização da felicidade de outros. Donde
resulta a sensação, compartilhada por tantos em nosso tempo,
de viver no interior de uma imensa e insensível engrenagem,
um imenso “moedor de carne”. É evidente que, na ausência
de algum controle externo (e talvez mesmo na presença
dele), a pura operação dessa engrenagem impessoal reproduz
inevitavelmente desigualdades de todo tipo, que impedem
mesmo a genuína competição por não permitir concretamente
a necessária “igualdade de oportunidades” para todos. A
disseminação da percepção de viver em uma sociedade que
“não se importa com as pessoas” subverte o desafio inicial
básico do iluminismo que inspira toda a modernidade (tomar
a cada um como um fim em si mesmo), e pode provocar graves
crises de legitimidade e autoridade do sistema, pondo em
permanente risco a própria sobrevivência da democracia.251
251 Com efeito, apesar de inúmeros exemplos em contrário frequen-
temente expostos na imprensa, não há motivo para crer que as pessoas na
CAPÍTULO 3 244 //
A sociedade moderna tem permanentemente diante
de si o desafio complexo de equilibrar-se perante esse
problema. Ela tem de permitir a cada um buscar a própria
felicidade segundo uma compreensão pessoal do que seja
essa felicidade, impondo, de um lado, uma feroz competição
entre as pessoas (na medida em que contesta a legitimidade de
pealing in this context. Each person is thinking: perhaps I should call the police; but
maybe someone else will... Each reaches some conclusion of this process, generally
at a random stopping point.
“So suppose P is the probability that any one person will NOT act. If one
particular person is willing to mix strategies, he must be indifferent between the two
pure strategies of acting and not acting. Acting gets him (B-C) for sure. Not acting
will get him 0 with probability Pn-1, namely the probability that no one of the other
(n-1) people acts, and B with probability (1-Pn-1), namely the probability that at least
one of the others acts. Therefore the condition of indifference is
B – C = (1 – P n-1) B
This gives us the equilibrium value of P as
P = (C/B)1/(n-1)
“Remember that C/B < 1. As n increases from 1 to ¥, the power 1/(n-1)
decreases from ¥ to 0. Therefore P, the probability of inaction by any one person,
increases from 0 to 1, that is, the probability of action by any one person falls from
1 to 0. This is of course intuitive.
“But it requires action by only one member to secure the good. As there are
more and more people each of whom is less and less likely to act, what happens to
the probability that at least one of them acts?
“Since the members are randomizing individually (independently) in Nash
equilibrium, the probability Q of non-provision by the whole group is
Q = P n = (C/B)n/(n-1)
As n increases from 1 to infinity, n/(n-1) falls from ¥ to 1. Therefore Q, the
probability that no one in the group acts, increases from 0 to C/B. That is, (1-Q),
the probability that some one will act and the good will get provided, falls from 1 to
(B-C)/B.
“In other words, the larger the group, the less likely is the good to be pro-
vided [...]. The probability of provision does not, however, go down to zero even in
very large groups; instead it asymptotes to a positive level which depends on the
individual benefit and cost of providing the good.”
CAPÍTULO 3 246 //
Sob este prisma, o crescimento econômico aparece
como um imperativo dramático para sociedades modernas
competitivamente organizadas (assim como, e talvez
principalmente, para aquelas que se modernizam, e que
apenas começam a incorporar padrões competitivos de
alocação de recursos e status em sua estrutura social). Elas não
podem parar. Só o crescimento econômico, ao transformar
o conflito distributivo num jogo de soma positiva, permite
que se acomodem mais facilmente os interesses daqueles
ocasionalmente mal-sucedidos na competição. Com o
crescimento, eventuais perdas relativas podem coexistir
com melhorias absolutas no padrão de vida. Sem ele,
todo “mau passo” econômico reflete-se necessariamente
numa deterioração talvez irrecuperável da qualidade de
vida do cidadão. Felizmente, parece existir abundante
corroboração histórica para a tese de que a competição
produz desenvolvimento econômico. Todavia, isto se dá
sobretudo a longo prazo, e grandes turbulências políticas
mais frequentemente parecem associar-se a oscilações
negativas observadas no interior de processos acelerados
de desenvolvimento e mudança do que a longos períodos
de estagnação continuada.253 Portanto, se nos preocupamos
com as perspectivas de institucionalização política estável
em sociedades competitivas (inevitavelmente democrática
a longo prazo, se o argumento apresentado na subseção
3.1.2 estiver correto), torna-se igualmente importante
sua legitimidade e perspectivas de estabilidade a longo prazo comprome-
tidas se o mesmo não se verificasse com eventuais vantagens econômicas
obtidas.
253 Esta visão deve seu enunciado original a Tocqueville, L’Ancien Ré-
gime et la Révolution, cap. 4, livro III (ver abaixo, n. 94).
CAPÍTULO 3 248 //
é sugerido em diversas passagens do presente trabalho
– que o desenvolvimento acabe por produzir condições
favoráveis à operação de regimes políticos democráticos.
Em termos analiticamente um pouco mais precisos, certo
nível de desenvolvimento econômico (ou, antes, certo
nível de modernização social) parece de fato ser condição
praticamente suficiente para a vigência de sistemas políticos
democráticos;257 mas não parece possível afirmar que este
nível de modernização seja também condição necessária da
democracia. Pelo menos, o nível “necessário”de modernização
é muito inferior ao nível “suficiente” para a democracia, o
que nos deixaria diante de três estádios: um certo grau de
modernização (ou de falta dela) até o qual a democracia é
impossível, um nível intermediário em que ela passa a ser
possível, e finalmente um ponto a partir do qual ela passa a ser
inevitável. É irresistível associar esses três estádios aos três
momentos do desenvolvimento político estabelecidos por
Fábio W. Reis: pré-ideológico, ideológico e pós-ideológico
(ver acima, subseção 2.2.4).
CAPÍTULO 3 250 //
últimas décadas, é a que ficou conhecida como a literatura
da “escolha pública” (“public choice”).
CAPÍTULO 3 252 //
e o ciclo recomeça.263 Alessandro Pizzorno denuncia na
abordagem a presença de certo simplismo formalista, e
chama atenção para o fato de que as preferências eleitorais
deveriam ser muito mais voláteis do que efetivamente se
observa se se fosse tomá-lo rigorosamente. Tende a haver
no comportamento eleitoral certa fidelidade partidária que
permanece inexplicada pelo modelo.264
CAPÍTULO 3 254 //
“Mosca’s view of the political class as an autonomous
subject; Kautsky, Lenin, and Gramsci elaborations on
professional revolutionaries and intellectuals; Michels’
description of party and union functionaries; and Weber’s
analysis of professional or charismatic politicians were all
tentative theories meant to explain why there is no one-
to-one correspondence between civil society and the state,
between class and party, and between the represented and
the representatives.
CAPÍTULO 3 256 //
tem de continuar existindo – até para a garantia do processo
de trocas sob a égide do mercado – e sua mera existência
estimula a formação de lobbies. E quanto mais lobbies houver,
mais grupos serão obrigados a formar o seu próprio lobby, para
não se tornarem as principais vítimas do processo. Usando
a terminologia da teoria dos jogos, trata-se de um “dilema
do prisioneiro”, onde todos estariam melhor sem lobbies,
mas ao mesmo tempo todos são obrigados a se defender
dos lobbies dos outros com o seu próprio lobby.268 Portanto,
a meta da cooperação universal em assuntos distributivos é
individualmente inatingível e individualmente instável: se
todas as organizações estiverem atuando predatoriamente,
pretender atuar isoladamente de maneira cooperativa seria
suicídio; se, por outro lado, todas estiverem cooperando, a
organização que resolver ser agressiva poderá auferir lucros
extraordinários.269 A presença de grupos de pressão deve ser
268 Este argumento aparece também em meu trabalho anterior, “O
Conflito Distributivo em Sociedades Pretorianas”, p. 115.
269 No que pode à primeira vista ser tomado como um contra-argu-
mento, Ronald Coase, “The Problem of Social Cost”, mostrou que, na ausên-
cia de custos de transação, negociações diretas entre os interessados lidarão
com deseconomias externas de maneira mais eficiente que a regulação go-
vernamental. A rigor, ele mostra que, na ausência de custos de transação,
as externalidades tal como definidas por Pigou simplesmente não existem.
Mesmo sem contestar o mérito do achado de Coase, admite-se comumente
que os custos de transação crescem com a complexidade da economia (ver
Douglass North, Custos de Transação, Instituições e Desempenho Econô-
mico, p. 10), o que faz com que no problema em pauta eles sejam positivos,
e elevados. Para uma apresentação um tanto anedótica, mas bastante cla-
ra e simpática, do “Teorema de Coase”, ver George Stigler, Memórias de
um Economista de Chicago, pp. 79-85. Num ataque mais frontal à tese de
Coase, porém, Avinash Dixit e Mancur Olson mostram que o teorema de
Coase frequentemente leva a conclusões absurdamente otimistas (“panglos-
sianas”), por não levar em conta problemas de ação coletiva, crescentemen-
CAPÍTULO 3 258 //
quanto se revelou na economia, é claro que cada aplicação
encontrará uma configuração mais adequada, própria
ao contexto em que se opera. Assim, se na competição
econômica num mercado em concorrência perfeita pode-
se dizer que os indivíduos são forçados à maximização
(pois, de outra maneira, a concorrência os expele, e a
sua sobrevivência material estará subordinada a isso), na
competição político-eleitoral a situação certamente se
apresenta de maneira mais complexa.
CAPÍTULO 3 260 //
hoje a colocar em risco suas chances futuras.274 De modo
análogo, o burocrata – embora possa ser eventualmente
descrito “psicologicamente” como um rent-seeker – também
está, diferentemente do indivíduo produtor-consumidor
atuante num mercado em concorrência, inserido numa
estrutura hierárquica orientada, em princípio, para outros fins
que não a locupletação de seus funcionários. Esta cadeia de
comando, ainda que precariamente exercida, constrange sem
dúvida a liberdade de ação do funcionário público na busca
de seus eventuais fins particulares, impondo dificuldades à
sua tipificação como um rent-seeker puro e simples.275
274 Barry, “Does Democracy Cause Inflation?”, p. 301, destaca a forte
preocupação existente entre políticos com a sua reputação, inclusive na pos-
teridade. Para um estudo sofisticado sobre o problema da orientação – ideo-
lógica ou não – do comportamento dos políticos, e os méritos e deméritos
de cada uma, apoiado em survey conduzido entre políticos da Grã-Bretanha
e da Itália, ver Robert Putnam, “Studying Elite Political Culture”.
275 Entendo que esta afirmação se mantém, mesmo admitindo que
Barbara Geddes, Politician’s Dilemma, p. 182, pode estar correta quando
escreve:
“States are not analogous to organisms made up of cooperating interde-
pendent cells, but rather to agglomerations of single-celled animals who may or may
not cooperate, depending on the costs and benefits they as individuals face.”
Em vez de optar entre uma ou outra alegoria, eu prefiro afirmar que os es-
tados se aproximarão de uma ou outra conforme vigirem ou não determinadas con-
dições – principalmente a “autonomia institucional” como compreendida por Hun-
tington (ver acima, seção 2.2.2, e discussão dos próximos parágrafos). De qualquer
maneira, o fato é que a estrutura de custos e benefícios enfrentada pelos burocratas
é conformada pelas instituições vigentes (como afirma a própria Barbara Geddes), e
estas são fruto de desígnio político cuja justificação pública não pode em princípio
se apoiar em considerações sobre os interesses particulares dos servidores do estado.
Embora concretamente muitas normas da administração pública em diversos países
obedeçam de fato a esse desígnio (os interesses do funcionalismo), parece-me claro
que a questão da justificação pública dessas normas impõe efetivamente um cons-
trangimento sobre os formatos que elas podem adotar – pelo menos em contextos
CAPÍTULO 3 262 //
organização coletiva que pode se propor objetivos próprios
independentes daqueles partilhados por seus funcionários,
na medida em que é chefiado por um indivíduo que,
bem ou mal, presta contas de seus atos ao público e pode
perfeitamente perseguir objetivos diferentes dos de seus
funcionários. Mesmo que isto não implique a postulação
de uma harmonia interna inexistente na operação do
estado, o resultado dos eventuais conflitos resultantes da
divergência entre os objetivos oficialmente perseguidos pelo
chefe de estado e aqueles perseguidos privadamente por
seus funcionários dependerá da eficácia das instituições no
desempenho de sua tarefa de “impessoalizar” as decisões a
serem tomadas no âmbito do estado, ou seja, dependerá do
grau de autonomia desfrutado pelas organizações políticas
em suas relações com os diversos interesses existentes na
sociedade (inclusive, naturalmente, os dos seus funcionários).
Vimos com Huntington (subseção 2.2.2) como a corrupção
é o sintoma por excelência de insuficiente autonomia
institucional. Quanto menor essa autonomia, maior será
a liberdade desfrutada pelo burocrata para perseguir
desembaraçadamente um comportamento rent-seeker –
o que conduz Evans a associar o pleno estabelecimento e
generalização desse comportamento (e, consequentemente,
a plena vigência do modelo “neoutilitarista”) a estados por
ele caracterizados como “predatórios”. Nestes, a completa
ausência de autonomia institucional transformaria o estado
em nada mais que uma agência destinada a promover os
interesses privados do grupo de indivíduos que o controla.
O Zaire de Mobutu constituiu-se no caso paradigmático
escolhido por Evans como ilustração de um “estado
predatório”: enormes fortunas pessoais acumuladas pelos
CAPÍTULO 3 264 //
uma pressão paradoxal mas irresistível para que exerça maior
vigilância e controle mais eficaz sobre múltiplos aspectos
da vida social. E, como observou O’Donnell em conhecido
ensaio sobre o corporativismo, a expansão dos tentáculos do
estado em direção à sociedade traz – como contrapartida
inevitável – maior porosidade desse mesmo estado às
demandas provenientes da sociedade.279 Além disso, Evans
aponta a necessidade de o estado preservar e cultivar essas
conexões com variadas formas de representação de interesses
oriundos da sociedade, até como fonte insubstituível de
informações que poderão subsidiar o processo de tomada
de decisões no interior do sistema político. O desafio que se
impõe, portanto, ao estado moderno, é tornar-se tão poroso
quanto possível a, no limite, todos os interesses porventura
existentes na sociedade, preservando, todavia, sua autonomia,
ou seja, sem se deixar aprisionar por qualquer um deles
isoladamente. É deste raciocínio que Evans irá cunhar a
expressão “autonomia inserida” (“embedded autonomy”) para
designar a feliz combinação que caracterizaria os estados
capazes de estimular positivamente o desenvolvimento
econômico: são estados que exercem forte interação social
com o setor privado, com o qual se mostram capazes de
estabelecer laços de confiança recíproca e obter informação
fidedigna (favorecendo assim as perspectivas de uma eficaz
implementação das políticas adotadas), ao mesmo tempo
que – dotados de uma burocracia tecnicamente qualificada,
suficientemente organizada e remunerada (conforme a
ênfase de Evans), ou então democraticamente constituídos
de modo a assegurar a operação de mecanismos eficazes
de prestação de contas à população (conforme a ênfase de
279 O’Donnell, “Sobre o ‘Corporativismo’ e a Questão do Estado”, p. 3.
CAPÍTULO 3 266 //
Latina deveria implicar que, havendo um ciclo econômico-
eleitoral, ele funcionasse de maneira inversa àquela descrita
pelos modelos conhecidos – ou seja, a eleição deveria
favorecer maior austeridade. Sendo o controle da inflação, e
não a manutenção do crescimento ou do nível de emprego,
a variável de política econômica com maior apelo eleitoral,
seria de se esperar a ocorrência de um ciclo em que a inflação
caísse antes das eleições e voltasse a subir depois delas.283
Todavia, a evidência empírica obtida não chega a corroborar
essa previsão. Observam-se, ao contrário, resultados
bastante variados, podendo ser identificados tanto alguns
– poucos – casos de comportamento cíclico (notadamente
para as eleições legislativas realizadas no Brasil, sobretudo
a de 1986, e na Argentina) quanto a ausência de qualquer
correlação significativa entre a ocorrência de eleições e as
variáveis macroeconômicas selecionadas (casos de Uruguai
e Colômbia, bem como, em menor medida, Bolívia e Chile)
e – sobretudo – a ocorrência de um padrão anticíclico, que
de fato prevaleceu na maioria dos casos analisados, sendo
um exemplo particularmente claro o da eleição presidencial
brasileira de 1989.284 Esses resultados conduzem a autora
a ponderar, de maneira consistente com a posição aqui
sustentada, que o impacto das eleições sobre o desempenho
econômico sofre forte influência da estrutura institucional
vigente, que conforma o contexto em que se dão as escolhas
políticas feitas pelos atores relevantes. Sobre este aspecto
da questão, a propósito, ela não deixa de observar que a
fragilidade institucional vigente nos países latino-americanos
na década passada deveria torná-los particularmente
283 Remmer, “The Political Economy of Elections in Latin America”, p. 396.
284 Remmer, “The Political Economy of Elections in Latin America”, p. 402.
CAPÍTULO 3 268 //
pelo enfraquecimento do outro.285 Para Putnam, ao
contrário, o aumento do “capital social” (lembremo-nos do
“capital político” a que se refere Karen Remmer) produzido
pela proliferação de laços horizontais de reciprocidade no
interior da sociedade fortalece as instituições políticas e,
consequentemente, favorece a boa operação do estado – com
desdobramentos favoráveis inclusive sobre a economia, ao
contrário do que afirma Olson em The Rise and Decline of
Nations.286 “Strong society, strong state”, afirma Putnam. A
CAPÍTULO 3 270 //
corretamente entendido como critério valorativo de
avaliação de qualquer conjunto de instituições políticas
no desempenho de suas funções universais. E é patente
como a plena operação da embedded autonomy de Evans
possui requisitos idênticos. O estado ali é permeável aos
múltiplos interesses existentes, mas não se deixa aprisionar
por nenhum deles isoladamente, ou tampouco por qualquer
subconjunto específico de interesses, e exerce integralmente
sua autonomia frente a seus interlocutores. O requisito
evidente dessa autonomia inserida é um extraordinário
desempenho das instituições, o que – se Putnam estiver
correto – requererá elevado grau de comunidade cívica, com
proliferação máxima de formas horizontais de associação e
plena vigência de normas de reciprocidade (tit-for-tat). Numa
palavra, a máxima expansão dos marcos de solidariedade,
como condição mesma da operação equilibrada do jogo de
interesses, que só se tornará possível em toda a sua plenitude
quando existir considerável igualdade material, ou melhor,
uma dispersão dos recursos econômicos a um ponto tal
que nenhum desses interesses isoladamente possa se tornar
poderoso o bastante para capturar em proveito próprio, seja
as agências burocráticas governamentais, seja os próprios
mecanismos de accountability política disponíveis para o
controle do governo pelos cidadãos.288
CAPÍTULO 3 272 //
num plano mais fundamental, a própria ideia neoclássica
walrasiana de que mercados propiciam alocações de recursos
first-best no sentido de Pareto depende de premissas fortes e
não observáveis empiricamente, como informação perfeita,
mercados completos e custos de transação inexistentes.
CAPÍTULO 3 274 //
eficiência na economia não se resolvem, em princípio,
pela simples “expulsão” do estado – ainda que a solução
adequada de problemas de principal-agent possam ser
eles mesmos bastante mais complexos do que o seu mero
enunciado pode dar a entender.
CAPÍTULO 3 276 //
iniciada “em qualquer nível de desenvolvimento” (dados os
padrões observáveis na segunda metade do século XX, eu
acrescentaria), e que, uma vez estabelecida, suas chances de
sobrevivência aumentam com a riqueza do país, e mais ainda
com o seu ritmo de crescimento.
CAPÍTULO 3 278 //
desenvolvimento prejudica a democracia, tanto no que toca
aos efeitos da taxa de crescimento299 quanto no que concerne
ao nível da renda per capita.300 No curto prazo, prejudica
também os regimes autoritários, mas já aqui apenas no que
diz respeito ao ritmo de crescimento;301 quanto ao nível
absoluto de desenvolvimento num dado ponto do tempo,
quanto menor a renda per capita, maior a possibilidade de
sobrevivência de um regime autoritário.302 Isto implica um
claro paradoxo, já que um ritmo acelerado de crescimento
econômico favorece a perpetuação de regimes autoritários,
mas, por outro lado, esse mesmo crescimento, elevando o
nível de desenvolvimento econômico (expresso por exemplo
na renda per capita), termina por comprometer, a longo
prazo, as possibilidades de sobrevivência daqueles mesmos
regimes. Talvez este paradoxo possa encontrar reconciliação
na hipótese de Tocqueville acerca das revoluções, segundo
a qual a grande mudança política revolucionária se segue
não a períodos de estagnação, mas sim àquele período de
299 Przeworski e Limongi, “Democracia e Desenvolvimento na América
do Sul”, p. 45, n. 7.
300 Przeworski e Limongi, “Modernization”, pp. 10-2.
301 Segundo Przeworski e Limongi, “Democracia e Desenvolvimento
na América do Sul”, p. 45, n. 7, crises econômicas comprometem as possibi-
lidades de sobrevivência dos regimes autoritários ainda mais do que as das
democracias. Contudo, em “Modernization”, p. 12, no qual se tomam dados
de 139 países entre 1950 e 1990, Przeworski e Limongi afirmam o contrário:
“[...] democracies are more vulnerable to bad economic performance: all the
coefficients are significant for democracies but not for dictatorships.” Em
princípio, esta discrepância entre os resultados dos dois trabalhos poderia
ser atribuída à influência favorável que os níveis intermediários da renda
per capita dos países sul-americanos exerceriam sobre a estabilidade da de-
mocracia no continente – mas esta é ainda apenas uma hipótese.
302 Przeworski e Limongi, “Modernization”, p. 11.
CAPÍTULO 3 280 //
democracias (ou, mais genericamente, a estruturas sociais
mais competitivamente organizadas em suas múltiplas
esferas), teoricamente um ritmo veloz de desenvolvimento
só deveria produzir benefício, pela maior facilidade de
acomodação de interesses, já aludida no início desta seção.304
304 Sob este ponto de vista, é bastante surpreendente a descoberta de
Przeworski e Limongi, “Democracia e Desenvolvimento na América do Sul”,
pp. 45-6, n. 7, de que um ritmo de crescimento da renda per capita acima
de 5% ao ano aumenta o risco a que estão expostos os regimes políticos,
comparativamente a o que se observa para taxas mais modestas de cresci-
mento (pelo menos para o caso da América do Sul entre 1946 e 1988). No
caso dos regimes democráticos, então, o risco de um golpe de estado em
ano de crescimento acima de 5% era ainda maior que nos casos de queda da
renda per capita (12,8 contra 9,5%). E aqui, alertam os autores, não valem
os argumentos típicos da teoria da modernização, sobre mobilização social,
desenraizamento, tendência ao extremismo etc., pois o efeito aqui obser-
vado é imediato, enquanto esses processos são de longo prazo. Esta é uma
constatação relevante, que certamente desafia qualquer reelaboração teóri-
ca que eu possa produzir aqui, mas seriam importantes algumas informa-
ções adicionais. Quantos foram os casos de crescimento da renda per capita
superior a 5% ao ano, e quais, exatamente, foram os golpes de estado que se
verificaram sob essa circunstância? Desconfio que os casos sejam relativa-
mente poucos, e isso aumentaria a possibilidade de uma correlação espúria.
Se for este o caso, seria fundamental descobrir o que nos diz a respeito a
experiência de outras partes do mundo, ou de outras épocas. Enquanto isto
não acontece, reservo-me – autorizado por seus próprios autores – o direito
de manter-me cético quanto à validade teórica geral do intrigante achado.
De fato, os mesmos Przeworski e Limongi, em “Modernization”, p. 12, che-
gam à conclusão oposta:
“Rapid growth is not destabilizing for democracy (and neither for dictator-
ship). [...] At no level [of development] do growth rates above 5 percent destabilize
democracy: at every level the probability of transition to authoritarianism is lower
when growth is rapid than when countries stagnate. [...] When growth is already
rapid, at 8.13 percent (mean + standard deviation), an acceleration by one percent
still makes democracies more likely to survive by 0.60 percent. And even at the
spectacular rate of 14.15 percent, a further acceleration increases the chances that a
CAPÍTULO 3 282 //
é correto, temos a resposta para a pergunta que presidiu
toda esta seção: a democracia sim favorece, pelo menos
sob uma perspectiva temporal suficientemente ampla, o
desenvolvimento. O grande problema que permanece é que,
para que esta afirmativa seja verdadeira, a palavra “democracia”
não significa mais apenas (como no trabalho de Przeworski
e Limongi) a vigência de uma constituição democrática,
eleições periódicas com incerteza ex-ante, irreversibilidade
ex-post e ausência de dominação permanente resultante
de vantagens temporárias.307 Mas, sobretudo, costumes
democráticos, civicness, “capital social”, respeito disseminado
a direitos e observância difusa de normas “horizontais” de
reciprocidade. Pois são essas as características que – de acordo
com Putnam – favorecem o desempenho institucional,
de modo a permitir ao estado o exercício da “autonomia
inserida” preconizada por Peter Evans, e, por intermédio de
uma democracia de “boa qualidade”, propiciar aos cidadãos
a operação eficaz dos mecanismos de accountability política
prescritos por Przeworski para uma intervenção positiva do
estado na economia.308
Políticos e Crescimento Econômico”, p. 176. Przeworski e Limongi acusam
Olson, assim como os diversos trabalhos de Douglass North sobre o tema, de
não conseguirem explicar de maneira precisa “como as instituições demo-
cráticas poderiam gerar um compromisso confiável”. Embora não me sinta
em condições de desenvolvê-la plenamente aqui, talvez a resposta esteja na
solução de Axelrod para o dilema do prisioneiro, tal como foi incorporada
por Putnam no esboço de seu “círculo virtuoso democrático”, e exposta no
capítulo anterior (subseção 2.2.3).
307 Przeworski e Limongi, “Democracia e Desenvolvimento na América
do Sul”, pp. 31-2.
308 Przeworski, “A Reforma do Estado”, p. 34, onde se afirma que “a
qualidade da intervenção do estado na economia depende da qualidade da
democracia”.
CAPÍTULO 3 284 //
a democracia, por assim dizer, inevitável, sob o marco da
política “pós-ideológica”. Contudo, em termos práticos,
Lipset não tem razão. Pois dentro da “zona cinzenta” da
política ideológica em que mesmo os países mais avançados
se debateram durante o século XX (para não falar da maioria
deles, que ainda hoje se vê às voltas com as dificuldades
envolvidas na superação do estádio pré-ideológico),
naquela situação de “fio da navalha” em que a democracia
já é possível mas ainda é também evitável, aí essas variações
institucionais podem se constituir nas alavancas decisivas
nas mãos dos atores políticos (de fato, as únicas disponíveis),
capazes de determinar no futuro imediato a sobrevivência
ou não de um regime democrático – e, consequentemente,
as perspectivas de melhoria do desempenho institucional
(ou seja, de desenvolvimento político) a médio prazo. Sobre as
condições de manipulação de algumas dessas alavancas no
caso brasileiro – particularmente no contexto recente, em
que se vêm operando mudanças simultaneamente políticas
e econômicas – estarei discorrendo no próximo capítulo.
CAPÍTULO 4 286 //
desdobramentos empíricos.Assim,após uma rápida exposição
sobre certos componentes básicos da formação do estado
brasileiro na seção 4.1, serão discutidas, sucessivamente,
contribuições recentes à literatura sobre o estado e a
burocracia estatal brasileira, particularmente naquilo que
concerne à sua capacidade de intervenção na operação da
economia e no padrão de modernização verificado (seção
4.2); sobre o padrão adotado de intermediação de interesses
e os desafios e impasses que se deixam entrever para os
próximos anos no que tange à incorporação crescente de
uma pauta diversificada de interesses à agenda do estado
(4.3); e, finalmente, sobre a lógica que preside o atual ímpeto
de reformas do padrão de atuação do estado no Brasil e em
alguns outros países periféricos (4.4).
CAPÍTULO 4 288 //
possível afirmar que naquele momento os portugueses
é que tentavam fundar um novo estado, enquanto os
governantes do antigo buscavam se assegurar da posse de
sua ex-colônia como uma eventual “válvula de escape”. O
processo de construção do estado brasileiro não começa,
portanto, da “estaca zero”, e se beneficia significativamente
do aparato burocrático herdado de Portugal. É claro que os
fundadores do novo império iriam se deparar com agudos
desafios relacionados ao processo de requ-building, dada
a incipientíssima integração do grande território (que
perduraria por todo o século), mas é sobretudo nas tarefas
identificadas com o processo de nation-building (crises de
“identidade” e de “legitimidade”, subseção 2.2.1) que eles
teriam de partir praticamente do zero. Para expressar o
problema em termos claros, tratava-se de agir para que o
“país real”, ou, na expressão de Alencastro, “os proprietários
rurais das diferentes regiões americanas onde se falava o
português”, se dispusessem a obedecer a um poder central
sediado no Rio de Janeiro, agora desvinculado da metrópole.
E aqui a continuidade do aparato burocrático (e, sobretudo,
diplomático) herdado de Portugal e corporificado na presença
de um Orleans e Bragança ocupando o trono no novo centro
se revelaria decisiva na manutenção da integridade territorial
do império brasileiro, pelas razões expostas a seguir.
CAPÍTULO 4 290 //
Em todo caso, a sobrevivência de relações sociais
não contratuais (e em boa medida, portanto, “adscritivas”)
acabou efetivamente por se tornar uma das principais
características da sociedade brasileira – como é natural
acontecer com sociedades fortemente marcadas por uma
herança simultaneamente latifundiária e escravista. Nas
palavras de Alain Rouquié, são “sociedades hierárquicas em
que a familiaridade protetora dos poderosos fundamenta as
expectativas clientelistas dos humildes”:315 a rarefação (ou a
omissão complacente) do aparato do poder público estimula
a organização de redes de favores em torno dos poderosos
privados.Nessa “política da escassez”,como significativamente
a chama Rouquié, cada favorecido é eterno devedor de seu
benfeitor – e isto tende, naturalmente, a reproduzir-se nas
cidades, pelo menos durante as primeiras gerações urbanas,
pela própria estabilidade intrínseca da lógica do “círculo
vicioso autoritário” a que se referiu Putnam (subseção 2.2.3).
Não deve surpreender, portanto, a constatação de que as
sociedades latino-americanas contemporâneas são “sistemas
sociais em que a neutralidade das relações contratuais está
longe de estar totalmente estabelecida”.316
CAPÍTULO 4 292 //
pode-se afirmar que, se o “enfraquecimento oportuno da
classe proprietária rural” acontece, temos uma sociedade
comparativamente mais competitiva e liberal-democrática;
se não, temos uma sociedade onde os interesses dos membros
do “patriciado” estarão relativamente protegidos, mas que
permanece – como é óbvio – oligárquica e autoritária.
CAPÍTULO 4 294 //
de participação e distribuição.320 A monarquia desapareceu
menos de dois anos depois de abolida a escravidão, e a
república se viu diante do desafio incontornável de lidar com
a grande massa de indivíduos que – abandonando a condição
de propriedade de terceiros – acabavam de adquirir o status
de cidadãos. Ainda que muito relutantemente, o sistema
político foi compelido a deflagrar um lento processo de
incorporação política de segmentos antes excluídos –
o que, naturalmente, não se dá de modo requente. A
incorporação sucessiva de camadas sempre maiores da
população à vida política do país esteve no centro de todas
as grandes turbulências observadas ao longo do século
XX e foi pelo menos parcialmente responsável por elas.
Sob este aspecto, o caso brasileiro pode constituir uma
ilustração admirável do argumento de Huntington sobre a
provável instabilidade política decorrente da irremediável
ruptura – por um processo de transformação econômica
particularmente acelerado, e requenteme modernização
relativa da estrutura social – de instituições políticas
outrora eficazes para processar o jogo político.
CAPÍTULO 4 296 //
acima se preste a mal-entendidos graves, cumpre esclarecer
que muito dificilmente uma “crise de autoridade” comporta
soluções autoritárias (particularmente em pleno contexto
de modernização social, se estiver correta a argumentação
desenvolvida nos três capítulos anteriores) – pelo contrário,
a requentem do recurso ao autoritarismo é um dos sintomas
mais evidentes da crise. Tampouco o problema que se coloca
é o de se conter o poder do estado: ao contrário, trata-se antes
de desempenhar a tarefa delicada de abri-lo à consideração de
interesses aos quais sempre foi alheio, com o consentimento
– ainda que contrafeito – daqueles incorporados desde
sempre.325 Se bem-sucedida, esta tarefa não pode resultar
em outra coisa senão uma enorme expansão do poder do
estado – inclusive em sua dimensão coercitiva.326
CAPÍTULO 4 298 //
A analogia entre essa situação e o “círculo vicioso
autoritário” aludido por Putnam (subseção 2.2.3) é bastante
óbvia.Wanderley Guilherme dos Santos, em trabalho recente,
alerta para o fato de que aproximadamente dois terços das
pessoas vítimas de violência no Brasil não recorrem à justiça;
e, dentre estas, a esmagadora maioria não o faz por puro (e
justificado) ceticismo.329 A lógica subjacente à interpretação
que Santos adota para a corrosão das estruturas normativas
no Brasil desdobra-se em traços bastante análogos àqueles
aqui explorados nos capítulos anteriores: submetida a
intenso processo de deslocamento social, tanto horizontal
quanto vertical, a população brasileira testemunharia uma
drástica suspensão de padrões de conduta tradicionalmente
esperados, sem que nenhum ordenamento normativo
preenchesse este vazio com eficácia.330 Daí se difundiria
a percepção de que as retribuições sociais se encontram
simplesmente desvinculadas da contribuição de cada um.
Com a falta de sinais consistentes a respeito do padrão de
conduta a ser adotado, cresce enormemente a incerteza,
ou – em termos formais – eleva-se excepcionalmente a
taxa de desconto temporal das preferências individuais,
329 Dados do IBGE para o período entre outubro de 1987 e setembro
de 1988. W. G. dos Santos, Razões da Desordem, pp. 100-4 (esp. tabelas 19
e 20, p. 103).
330 Nélson do Valle Silva, “A Sociedade”, pp. 79-80, observa que em
1973, “devido apenas a mudanças na estrutura ocupacional”, 30,4% dos ho-
mens adultos no Brasil já haviam experimentado mudanças entre ocupações
rurais, urbanas manuais e urbanas não-manuais. Este índice de “mobilidade
estrutural” ou “forçada” é superior ao de todos os outros oito países por ele
tomados para efeito de comparação (Alemanha Ocidental, Estados Unidos,
Filipinas, França, Hungria, Japão, Polônia e Tchecoslováquia).
CAPÍTULO 4 300 //
inevitável.333 Daí que Fábio W. Reis venha insistindo
recentemente em que a propalada “governabilidade”, sendo
o atributo de ser “governável”, refere-se à sociedade, mais
do que à capacidade estatal de governar.334 A inversão
do sentido – comum em seu uso corriqueiro recente –
tende a reduzir o problema a uma questão “técnica”, de
adequada configuração das instituições políticas ou do
aparato burocrático estatal, em busca de maior eficiência ou
capacidade gerencial, perdendo de vista o delicado problema
do acoplamento eficaz entre eficiência e democracia.335
Como é óbvio, a eficiência refere-se à adoção de meios
adequados à consecução, com custo mínimo, de fins dados. O
problema é que na política os fins não são dados, e os “custos
de transação” para a tomada de decisão serão tanto maiores
quanto maior for o leque de interesses ouvidos e ponderados
333 W. G. dos Santos, Regresso, pp. 69-72.
334 De fato, mesmo Bresser Pereira, Crise Econômica e Reforma do
Estado no Brasil, pp. 198-9, após defender uma ampla pauta de reformas
políticas (que inclui “um sistema eleitoral no estilo alemão”, “a correção da
desproporção na representação dos estados na Câmara dos Deputados”, li-
mitações no número de partidos e a restrição da “participação do governo
federal nas despesas locais”), admite que
“essas mudanças não serão decisivas. Não são uma panacéia; não resolverão
o problema da legitimidade do governo brasileiro porque a base dessa falta de legiti-
midade não é institucional mas social. Deriva do caráter radicalmente heterogêneo da
sociedade brasileira.” (Grifo meu.)
335 F. W. Reis, “Governabilidade, Instituições e Partidos”, pp. 40-2.
Eli Diniz, Crise, Reforma do Estado e Governabilidade, p. 176, também
propõe tratar a reforma do estado “em estreita conexão com o tema da
consolidação democrática”. Pois, tratada isoladamente, “ou exclusivamen-
te em função de seus aspectos administrativos, a reforma do estado tende
a ser conduzida de modo a acentuar as tensões com os requisitos da insti-
tucionalização da democracia”.
CAPÍTULO 4 302 //
foi a generalização de expectativas crescentes de ascensão
econômica e mobilidade, pois as inchadas metrópoles
brasileiras fizeram conviver, às vezes separadas por poucos
metros, famílias miseráveis com uma classe média com
padrão consumo de bens de luxo superior ao de muitos países
de renda per capita mais elevada. A sensação de privação
relativa derivada desses fortes contrastes (e muitas vezes
agravada pela incongruência habitual entre a contribuição
individual e a retribuição social apontada por Wanderley
Guilherme dos Santos, derivada em grande medida da
incapacidade do estado de fazer valer efetivamente as normas
e direitos legalmente vigentes) adquire especial virulência,
naturalmente, durante as crises econômicas, o que ajuda a
explicar a sensação particularmente forte de decomposição
social que se experimentou no Brasil a partir dos anos 80.
CAPÍTULO 4 304 //
supõe a participação mais efetiva da representação setorial
dos segmentos trabalhistas e empresariais naquelas decisões
das diferentes jurisdições do estado, que afetam seus
interesses”, e não seu insulamento.338
CAPÍTULO 4 306 //
importam na proporção inversa da força das instituições,
do sucesso no processo de “impessoalização” das decisões.
Não surpreende constatar, portanto, que, com a suspensão
de outros canais de competição política, as nomeações se
tornam ainda mais importantes depois de 1964. “Ao castrar
o Congresso e o Judiciário, os militares forçaram a entrada
da política no executivo”, pois tanto “os altos burocratas
tornaram-se legisladores” quanto “as nomeações para a
burocracia se tornaram um meio primário de recrutamento
e representação das elites”.343 Assim, o regime militar
chega ao seu final com requente mil nomeações políticas
pessoais a cargo do Presidente, o que deveria levar o leitor
a imaginar que não havia burocracia alguma no Brasil.
Mas não é bem assim. Claro, Schneider reconhece que
essas nomeações “abrem caminho para um número igual
de oportunidades de nepotismo, clientelismo, corrupção
e simples incompetência”. Mas, paralelamente, a “carreira”
cumpre a função de estruturar as preferências dos burocratas,
segundo alguns tipos de resultados conducentes à ascensão
profissional, e a alta rotatividade na burocracia evita mesmo
a identificação excessiva com organizações específicas,
diluindo – pelo menos no interior da alta burocracia – a
constituição de bolsões rígidos de interesses organizacionais
aquilo que Rueschemeyer e Evans, “The State and Economic Transforma-
tion”, p. 59, identificaram como “the non-bureaucratic foundations of bu-
reaucratic functioning”.
343 Schneider, Burocracia Pública e Política Industrial no Brasil, p.
116. Para Schneider (p. 328), “o autoritarismo não era necessário nem ine-
rentemente superior” para a produção de políticas industriais, pois “a for-
mulação de políticas apresenta continuidades ao longo de todo o período do
pós-guerra”. Por outro lado, tampouco os fracassos do período podem ser
“atribuídos primariamente a peculiaridades do regime militar”.
CAPÍTULO 4 308 //
importante da capacidade governamental de coordenação
e controle.347 Aparentemente, a prevalência do sistema
de nomeações certamente produz o efeito de distanciar o
burocrata do público, da prestação de serviço; ele é orientado
por nomeações, o que faz voltar sua atenção para as prioridades
estratégicas do sistema político. Schneider lembra, a propósito,
que, décadas atrás, S. N. Eisenstadt havia analisado “as
consequências políticas da expansão burocrática ‘precoce’ nos
países em desenvolvimento”: isto exacerbaria o envolvimento
da burocracia com o processo político e atribuiria a ela um
papel predominante na política nacional.348 Embora seja
curioso falar em “expansão burocrática precoce” onde não
chega a se completar a instalação de uma genuína burocracia
(no sentido weberiano do termo), faz sentido supor que a
expansão do corpo administrativo burocrático se processe
mais aceleradamente que a institucionalização do resto do
sistema político nos países periféricos, com as consequências
apontadas por Eisenstadt.E isto seria verdade particularmente
no caso do Brasil, dadas as peculiares circunstâncias de sua
independência e a razoável continuidade mantida com as
instituições burocráticas herdadas de Portugal.
347 Para Barbara Geddes, Politician’s Dilemma, p. 14, a capacidade de
implementação de decisões dependerá da habilidade do estado para taxar,
coagir, conformar os incentivos dos atores privados e tomar decisões buro-
cráticas eficazes durante o processo de implementação. “All of these abilities
depend in turn on the existence of effective bureaucratic organizations.” Se
estiver correta a interpretação aqui empreendida (subseção 2.2.3), a “exis-
tência de organizações burocráticas efetivas” é um fenômeno bastante aná-
logo à “institucionalização” segundo Huntington.
348 Eisenstadt, “Bureaucracy and Political Development”, p. 112, apud
Schneider, Burocracia Pública e Política Industrial no Brasil, p. 330, n.
244.
CAPÍTULO 4 310 //
máquina do estado avançou, menores tornaram-se os graus
de liberdade do governo para promover a racionalização do
gasto público.350 Diante “da crise da burocracia pública e
dos impulsos da microfisiologia do poder [...], a burocracia
autonomizada tornou-se progressivamente responsável por
uma considerável parcela do gasto público”, mas isto teria
criado “uma poderosa inércia orçamentária, pois as dotações
para as fundações e empresas públicas são mais imunes
aos cortes e os gastos menos passíveis de controle”. Com
a deterioração do controle sobre a burocracia pública, há
uma queda na capacidade de planejamento e programação.
Chega-se a um ponto em que os gastos são mal
programados, “e não se cuida nem da implementação, nem
da avaliação. Portanto, gasta-se mal, independentemente
das influências distorcivas da microfisiologia do poder sobre o
processo de alocação de recursos públicos.”351 Pois deteriora-
se até mesmo a disponibilidade de informação necessária
para a implementação de políticas eficazes.
CAPÍTULO 4 312 //
problemas de principal-agent se tornam decisivos aqui:
trata-se acima de tudo de assegurar que burocratas sejam
condicionados, por uma estrutura de incentivos adequada,
a seguir as ordens de escalões superiores, assim como
os líderes sejam induzidos por mecanismos eficazes de
accountability política a se orientar por interesses coletivos
representativos de parcelas expressivas da população.
Adquire crucial importância nesse contexto, todavia,
o problema que Harold Demsetz chamou de internal
constituency (“cabos eleitorais” e similares),354 em contraste
com a external constituency (eleitores) – que, infelizmente,
Adam Przeworski não menciona em sua discussão sobre
mecanismos de accountability (ver acima, seção 3.3).
CAPÍTULO 4 314 //
Este “predomínio de um padrão fragmentado de demandas”,
somado ao “estilo desagregado de processo decisório” a
que se refere a autora logo em seguida, só pode resultar –
se estiver correta a especificação, levada a cabo por Robert
Salisbury, dos contextos favoráveis à adoção das diversas
políticas tipificadas por Lowi – a um marcado predomínio
de políticas distributivas, em que pequenas demandas tópicas
tendem a ser satisfeitas pouco criteriosamente, sem a devida
preocupação, seja com a sua compatibilidade mútua, seja
com seu efeito agregado sobre as contas públicas.358
CAPÍTULO 4 316 //
sido o caso no Brasil. Aqui, na ausência de qualquer dinâmica
espontânea virtuosa, o papel antidesagregador teria sido
exercido, tal como igualmente apontado por Alencastro,
pelas esferas administrativa e militar, de maneira coercitiva e
excludente.362 Para Santos, o elemento crucial a determinar a
natureza do processo é o timing da emergência do problema
distributivo em relação aos outros dois (as crises de
integração e participação, superpostas por Santos aos vetores
de “liberalização” e “participação” do modelo bidimensional
de Robert Dahl para a “poliarquia”).363 Posterior no Norte,
sua emergência precoce teria transformado a política social
em instrumento de barganha nos países periféricos.364
CAPÍTULO 4 318 //
identificação do indicador empírico do “deslocamento” sobre
este novo eixo. Se basta que existam leis que disponham
sobre direitos sociais, ou se é necessário mais – ou seja,
se é necessário que estas leis se mostrem minimamente
eficazes em seus efeitos redistributivos. A julgar pelo critério
que temos forçosamente de adotar no que toca ao eixo da
liberalização, inclino-me pela segunda resposta. Pois normas
disciplinando o processo político encontraremos em todos
os países, sendo o traço decisivo da “liberalização” a sua
institucionalização (como afirma o próprio Santos)366 – e
creio que seria razoável adotar algum critério análogo para o
deslocamento ao longo do eixo “social”. Assim, poderemos
tratar de modo equivalente o simples aceno distributivo com
políticas sociais? Pois foi isso o que se fez no Brasil, e não
o efetivo encaminhamento da pauta redistributiva, já que as
políticas sociais nunca se mostraram muito eficazes, e o padrão
de desenvolvimento econômico adotado no Brasil manteve-
se concentrador de renda durante todo o século XX. Talvez,
porém, a mera instituição de direitos sociais já produza um
alívio para a crise de participação ao produzir um “discurso”
incorporador, mesmo que estritamente demagógico.
CAPÍTULO 4 320 //
Mesmo o característico aviltamento da instituição
parlamentar, pela sua marginalização sistemática no
processo de tomada das decisões governamentais relevantes,
é igualmente partilhada por ambas as experiências.368
CAPÍTULO 4 322 //
governamental errático, dado a intervenções tópicas,
perdulário, agregadamente inconsistente e – como resultado
mais grave – miseravelmente ineficaz em seus efeitos sobre
o quadro social.
CAPÍTULO 4 324 //
próprio da Escandinávia e da Europa ocidental, de um certo ‘corporativismo de estado’,
característico da Europa ibérica e meridional e, é claro, da América Latina.” (W. G. dos
Santos, Razões da Desordem, p. 9.)
“Dada a ressonância alcançada pela distinção de Schmitter, é curioso observar
que ele não estabelece uma diferença real entre os dois casos de corporativismo enquanto
tal, isto é, enquanto casos de corporativismo. Se se toma a passagem em que a distinção
é diretamente confrontada e elaborada [Schmitter, “Still the Century of Corporatism?”,
pp. 102-6], vê-se que Schmitter se refere insistentemente seja: 1) ao processo pelo qual
se atinge um ou outro tipo, chegando à formulação sintética de que ‘as origens do cor-
porativismo social (societal) se encontram na decadência lenta e quase imperceptível do
pluralismo avançado [países de maior tradição liberal-democrática], enquanto as origens
do corporativismo estatal se encontram na morte rápida e altamente visível do plural-
ismo nascente [casos como Portugal, Brasil, Grécia, Itália fascista]’ (p. 106); seja 2) às
características mais ou menos autoritárias do sistema político como um todo em que cada
tipo estaria ‘embebido’ ou ao qual estaria ‘associado’ (p. 105) – apesar de que o próprio
Schmitter denuncie na literatura a tendência de fazer ‘submergir’ o corporativismo em
‘alguma configuração política mais ampla tal como o «estado orgânico» ou o «regime
autoritário»’ (p. 91). Estruturalmente, ou seja, enquanto sistema de representação de in-
teresses em que o estado se articula com unidades de representação que são limitadas em
número, compulsórias, não-competitivas, hierarquicamente ordenadas, funcionalmente
diferenciadas e monopolizadoras (de acordo com a definição geral de corporativismo, p.
93), não se indicam diferenças entre os dois tipos, de sorte que os rótulos correspondentes
se mostram, ao cabo, apenas designações alternativas para algo como um corporativismo
que anda em boas companhias e outro que anda em más companhias, o que afeta a
respeitabilidade de cada um.” (F. W. Reis, “Consolidação Democrática e Construção do
Estado”, p. 39.)
Fora do Brasil, uma outra crítica à tipologia de Schmitter pode ser en-
contrada em Youssef Cohen e Franco Pavoncello, “Corporatism and Pluralism”,
que mostram como a noção de “corporativismo social” contradiz a própria de-
finição geral de corporativismo apresentada por Schmitter. Pois, se o corpora-
tivismo é por Schmitter definido como um sistema em que o estado controla os
grupos de interesse, então – perguntam-se Cohen e Pavoncello (p. 119) – como
pode o corporativismo social ser um subtipo do corporativismo? Para Cohen e
Pavoncello, o fator crucial que determinará o controle ou não dos grupos pelo
estado será o controle, por este último, dos recursos necessários à manutenção
daqueles – o que ajuda a explicar o maior controle comumente exercido sobre
organizações de trabalhadores quando comparado àquele exercido sobre asso-
ciações patronais. Sendo assim, eles procuram manter “institutional descrip-
tions of systems of interest intermediation analitically separate from questions
of power” (p. 118, n. 1).
CAPÍTULO 4 326 //
nunca houve no Brasil, e mesmo Eli Diniz (que aceita a
distinção de Schmitter e caracteriza o Brasil como um
caso de corporativismo estatal) deixa isso bastante claro.
No máximo, um “mesocorporativismo”, e precariamente
institucionalizado.376 Glauco Arbix, por sua vez, igualmente
apoiado em Cawson, caracteriza o relacionamento do setor
automobilístico brasileiro com o estado, vigente desde
os anos 50, como um caso de arranjo microcorporativo
bipartite.377 O que torna o mesocorporativismo das recentes
e efêmeras câmaras setoriais (provavelmente o primeiro
experimento institucional inequivocamente corporativista
376 “O desenho institucional prevalecente circunscreveu o caso bra-
sileiro às modalidades de corporativismo de níveis micro e intermediário
(mesocorporativismo), dados o caráter limitado dos interesses envolvidos e
o alcance restrito das negociações possíveis.” (Diniz, Crise, Reforma do Es-
tado e Governabilidade, p. 168.) “Macro”, “meso”, e “microcorporativismo”,
formulados em Alan Cawson, “Varieties of Corporatism”, esp. pp. 10-21, são
conceitos que derivam da constatação de que o corporativismo é mais disse-
minado do que permitiria supor a atenção exclusiva à existência de padrões
de intermediação de interesses em escala nacional, abrangendo a economia
como um todo (arranjos “macrocorporativos”). Há situações em que essa
intermediação não existiria em escala nacional, mas sim em escala regional
ou, principalmente, setorial (“mesocorporativismo”). Na formulação e im-
plementação de uma política industrial, por exemplo, é bastante provável
o recurso a arranjos mesocorporativos, nos quais se fariam representar os
diversos setores envolvidos. Já “microcorporativismo” se reportaria à inte-
ração de agências governamentais e grandes empresas monopolistas, com
capacidade para determinarem sozinhas o destino de um setor. Distinguir-
-se-ia do clientelismo tout court pelo fato de que aqui o estado manteria
sua autonomia na relação, não havendo “aprisionamento” da agência pela
empresa. Uma rápida distinção entre os três conceitos pode ser encontrada
também em Ângela Araújo e Jorge Tapia, “Corporativismo e Neocorporati-
vismo”, pp. 19-21.
377 Arbix, Uma Aposta no Futuro, p. 115, onde é citado Cawson, Cor-
poratism and Political Theory, p. 111.
CAPÍTULO 4 328 //
vigente supere determinado limite.381 O que talvez nos
ajude a compreender porque sistemas corporativos tendem a
funcionar em países pequenos e relativamente homogêneos
economicamente.382 E traça perspectivas desfavoráveis
para a operação eficiente de semelhante sistema entre
nós. Poderemos, porém, renunciar a ele sem produzir
um mal ainda maior, por excluir simplesmente qualquer
representação trabalhista do processo de negociação e
barganha sobre decisões de políticas?
CAPÍTULO 4 330 //
ruidosas nas ruas.384 Esse problema “temporal” aparece como
um primeiro obstáculo para a mudança de tática: dado o
lastimável quadro social do país – que compreensivelmente
produz a exigência de providências urgentes – e a já aludida
falta de confiança mútua entre os atores sociais estratégicos,
um dirigente sindical moderado tende a ver rapidamente
corroída a sua legitimidade e autoridade no interior do
movimento. Vide a visível erosão que a autoridade de
Vicentinho no interior da CUT sofre a cada vez que ele
tenta se apresentar como interlocutor do governo, seja
negociando a reforma da previdência, seja acenando para o
diálogo em torno de privatizações.385 Um segundo obstáculo,
talvez menos importante, mas real, é que – em parte como
decorrência da própria estrutura social “fraturada” do país,
e do padrão de desenvolvimento adotado até aqui – parte
expressiva da maior central sindical é hoje composta por
servidores públicos, e o comando da central parece ter
seus movimentos bastante tolhidos por setores que não
se têm mostrado dispostos a propor qualquer forma que
seja de reestruturação do setor público – item central na
agenda de qualquer governo que se forme no Brasil nos
próximos anos, especialmente se se mantiver a estabilização
monetária.386 Numa palavra, parcela importante do
384 Esta aparente domesticação se deu em toda parte em decorrência
do processo de centralização sindical. Ver argumento apresentado acima
(n. 70) por Przeworski e Wallerstein, “Structural Dependence of the State
on Capital”.
385 Ver declarações de Vicentinho à Agência Estado, em 24 de
julho de 1997.
386 Para utilizar a célebre metáfora da “Belíndia”, cunhada por Edmar
Bacha já há mais de duas décadas num pequeno ensaio intitulado “O Rei
da Belíndia”, eu diria que a esquerda e o sindicalismo no Brasil de hoje são
CAPÍTULO 4 332 //
processo nos países centrais (ver acima, seção 3.2). Assim,
o desmantelamento puro e simples de qualquer instituição
estatal de intermediação de interesses, longe de favorecer
os objetivos das organizações representativas dos setores
populares, na verdade reduz drasticamente suas condições
de perseguir com sucesso a realização de seus interesses.387
Não porque o estado seja, idealisticamente, a encarnação dos
interesses mais elevados da pátria ou qualquer outra balela
deste tipo, mas simplesmente porque, realisticamente, a
extinção de instâncias formais de intermediação de interesses
no interior do estado conseguirá apenas vedar qualquer
acesso de grupos menos privilegiados aos centros relevantes
de decisões políticas. Certamente o estado, por meio da
Justiça do Trabalho, não tem de ser o árbitro “de tudo”, e
assuntos privados entre assalariados e seus empregadores
na maioria das vezes deveriam poder ser resolvidos entre
eles. Mas também é inegável que muitas vezes essas disputas
redundam em demandas de natureza política que serão
dirigidas ao governo, e é bom que existam instituições
adequadas à tarefa de processá-las à vista do público – caso
contrário, as barganhas serão feitas clandestinamente.
CAPÍTULO 4 334 //
impostos específicos sobre gastos de setores, daí para o simples
reinvestimento de lucros de estatais. Quando estas fontes
finalmente faltaram ou se tornaram insuficientes, passou-
se ao endividamento externo. Com a posterior retração
desses emprestadores externos, a partir da disseminação
crescente da avaliação de que o risco associado a novos
empréstimos começava a se tornar excessivamente elevado,
passou-se ao imposto inflacionário. Ao contrário dos países
centrais, nunca se estabeleceu uma estrutura de tributação
adequada sobre a renda, e o resultado é que – como diz
Przeworski – o estado acaba por sobreviver no dia-a-dia
tomando dinheiro emprestado daqueles que poderiam
estar pagando impostos.388 Sob este ponto de vista, a
expansão desmedida do estado, ao invés de fortalecê-lo,
gerou distorções graves, pois – na ausência de autonomia
institucional e de autoridade para implementar e fazer
valer suas próprias decisões – o estado hiperdimensionado
teve como principal consequência a oferta de maiores
oportunidades de captura por rent-seekers.389
388 Luiz Carlos Bresser Pereira, Crise Econômica e Reforma do Estado
no Brasil, pp. 46-8. Ver, a respeito, Adam Przeworski, Democracy and the
Market, p. 143.
389 Bresser Pereira, Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil,
p. 55. Na p. 82, a propósito, Bresser Pereira vê as atividades de rent-seeking
(ou de “privatização do estado”) como a forma contemporânea típica de
“acumulação primitiva”, a ser posteriormente coibida no devido tempo. Esta
visão delineia mesmo um padrão cíclico do crescimento do estado, a que
Bresser Pereira se refere na p. 68 – e onde se pode querer identificar algu-
ma incompatibilidade com a visão de De Swaan, de regulamentação estatal
sempre crescente de externalidades produzidas pelo estreitamento contínuo
dos laços de interdependência humana (ver acima, seção 3.2). Talvez se pos-
sam conciliar as proposições através do argumento segundo o qual, no inte-
rior de uma tendência de longo prazo de expansão do aparato estatal (à qual
CAPÍTULO 4 336 //
contemporâneo em torno do ajuste fiscal no país. No
Brasil, a questão fiscal se torna dramática sobretudo a
partir de 1979, quando a poupança pública – definida
pela diferença entre a receita corrente e os gastos correntes
do setor público, incluindo juros, mas excluindo os
investimentos públicos – cai bruscamente pela metade
(de 7,6% do PIB em 1978 para 3,8% no ano seguinte,
segundo o Banco Central), para se tornar negativa entre
1987 e 1989.393 Uma poupança negativa tende a tornar o
déficit público (definido, aí sim, pela diferença entre os
investimentos públicos, incluindo os gastos com estatais,
e a poupança pública) simplesmente imanejável, uma vez
que cada centavo gasto em cada iniciativa governamental
provém não da arrecadação de impostos (“receita
corrente”), mas de dinheiro tomado emprestado (sobre o
qual se pagam juros, engordando os gastos correntes num
período subsequente e aumentando ainda mais a pressão
sobre a poupança pública), ou então da emissão monetária
sem contrapartida real (que, inflacionária, opera – numa
economia indexada, protegida e oligopolizada como a
brasileira se manteve durante todo o período aqui referido
– como um imposto incidente sobre a parcela mais pobre
da população). A compressão dos gastos correntes,
num quadro como este, é obviamente uma necessidade
premente. Mas é particularmente significativo, no
contexto brasileiro atual, que o debate praticamente ignore
a necessidade – igualmente urgente – de expansão da
393 Bresser Pereira, Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil,
p. 44, para as definições das contas nacionais aqui utilizadas. Para as taxas
de crescimento, poupança e investimento da economia brasileira entre 1970
e 1990, ver p. 83, tabela 4.1.
CAPÍTULO 4 338 //
4.4.2. A funcionalidade da inflação e as
dificuldades do ajuste
CAPÍTULO 4 340 //
essa falta de crédito do estado tem sua expressão numa elevada
taxa de desconto, pelos agentes econômicos, dos seus payoffs
futuros (donde os juros altos e os prazos reduzidos). Mas
não há porque restringir essa característica da estrutura de
preferências dos atores a seus desdobramentos econômicos.
Se o mau estado das finanças públicas projeta incertezas para
o futuro, essas incertezas muito provavelmente se estendem
sobre a política, na forma de insegurança quanto à vigência das
instituições num ponto qualquer do futuro. E a consequente
prioridade atribuída pelos atores a ganhos imediatos dificulta
a instauração de qualquer “círculo virtuoso” cooperativo no
interior da sociedade. Nesse contexto, eventuais “custos de
transição” produzidos por uma política de estabilização
podem ter seus efeitos significativamente ampliados,
gerando novos obstáculos não apenas à própria estabilização,
mas também à institucionalização democrática.399 Não é
399 É também numa elevada taxa de desconto de payoffs futuros que se
apóia o “dilema do político” a que se refere Barbara Geddes, The Politician’s
Dilemma, p. 18, entre a sobrevivência política a curto prazo e o benefício na-
cional a longo prazo. Mergulhado num contexto de forte incerteza, o político
simplesmente não pode orientar sua ação exclusivamente para benefícios
coletivos de longo prazo, pois ele não pode ter certeza de que as condições
necessárias para a produção desse benefício futuro se manterão – e é gran-
de, portanto, o risco de que o abandono de prioridades políticas imediatas
se revele, ao cabo, inútil. Mas é interessante observar que, colocado sim-
plesmente como um conflito entre o benefício nacional a longo prazo e a
sobrevivência política no curto prazo, o dilema pode se apresentar – ainda
que com intensidade reduzida – mesmo sob condições estáveis e para políti-
cos fortemente orientados por um ideal específico de transformação social.
Pois o político honesto e idealista deve acreditar que a manutenção do seu
partido no poder é que irá, ao fim e ao cabo, permitir a promoção do melhor
destino para os habitantes do país. Ele não poderá, portanto, estar disposto
a sacrificar o interesse partidário imediato, pois não há maneira pela qual
ele possa se assegurar de que seus adversários fariam o mesmo. Com efeito,
CAPÍTULO 4 342 //
extrativas anteriores, é de se prever que dificuldades políticas
apareçam a partir delas quando nada porque, como lembrou
William Ricardo de Sá,
CAPÍTULO 4 344 //
várias intervenções, sempre súbitas, do governo na economia
com vistas a controlar a inflação – incluindo os sucessivos
congelamentos de preços efetuados a partir de 1986 –, ao
contribuírem significativamente para o aumento da incerteza
na economia, acabaram colaborando de maneira importante
para a explosão inflacionária que se observou na segunda
metade dos anos 80.406
CAPÍTULO 4 346 //
autoridade, com resultados regulatórios ou auto-regulatórios
provenientes do estabelecimento de regras ou de estruturas
de autoridade destinadas a pautar alocações futuras.407
Durante os primeiros anos do regime democrático, o
ambiente de incerteza vigente induziu os atores políticos a
traçarem estratégias de sobrevivência política a curto prazo
cada vez menos institucionalmente comprometidas, levando
o quadro político-partidário nacional a enfrentar um
processo de fragmentação crescente, elevando para níveis
comparativamente bastante elevados o custo da formação
das maiorias necessárias à tomada de qualquer decisão.
Se Salisbury e Heinz estiverem corretos, este simples fato
já ajudaria a explicar a referida tendência da Assembléia
Nacional Constituinte de 1987/88 por decisões regulatórias,
e sua dificuldade para tomar decisões com implicações
407 Salisbury e Heinz, “A Theory of Policy Analysis and Some Prelim-
inary Applications”, p. 49. Também aqui temos a formulação de uma ma-
triz 2x2, estruturada da seguinte maneira: quando o padrão de demanda é
fragmentado, teremos decisões distributivas se o custo da decisão for baixo,
e regulação se o custo da decisão for elevado; complementarmente, com pa-
drão de demanda integrado, teremos políticas redistributivas se o custo da
decisão for baixo, e auto-regulatórias se o custo da decisão for elevado. Ape-
sar da simplicidade do argumento, não deixa de parecer estranho que políti-
cas distributivas requeiram baixo custo de tomada de decisão. Posto assim,
o argumento dá a entender que seria mais fácil adotar políticas regulatórias
que distributivas – o que, convenhamos, é bastante contra-intuitivo.
Quadro 4.2
Alto Custo da Baixo Custo da
Tomada de Decisão Tomada de Decisão
Padrão de Deman- regulação distribuição
das Fragmentado
Padrão de Demandas Integrado redistribuição auto-regulação
Fonte: Salisbury e Heinz, “A Theory of Policy Analy-
sis and Some Preliminary Applications”, p. 49.
CAPÍTULO 4 348 //
forçar atores sociais relevantes (a começar por setores
da própria administração estatal) a reduzir demandas
e conformar-se a um nível de renda real inferior àquele
obtido durante a vigência da inflação. A consolidação
de um ajuste de expectativas dessa natureza com certeza
não poderá ser assegurada senão ao final de um processo
demorado e turbulento de negociação e barganha entre
virtualmente todos os interesses relevantes na economia
– que inevitavelmente incorporará um elevado grau de
improvisação e risco frente a problemas e obstáculos que
não podem ser inteiramente previsíveis ao se deflagrar o
processo. E esse conjunto de operações terá inapelavelmente
de incluir uma reformulação do modo de inserção e atuação
do estado na economia, tanto em virtude da necessidade
de recomposição das finanças públicas quanto pelo
estabelecimento – igualmente indispensável – de novas
formas de regulação do conflito distributivo pelo estado:
mais impessoais e burocráticas, e menos paternalistas e
clientelísticas, de modo a fornecer um ambiente mais
propício a investimentos num contexto global de crescente
interdependência econômica transnacional e inédita
mobilidade de capitais.409
409 É claro que normas menos paternalistas não têm de excluir, em
princípio, toda e qualquer modalidade de política industrial e incentivo à
iniciativa privada nacional. Muito pelo contrário, nada impede que programas
de incentivo a setores considerados prioritários se pautem por normas e
critérios objetivos e impessoais de financiamento, a partir da estipulação
de metas e prazos, e que sejam eles próprios competitivamente alocados.
Além do mais, o acirramento da competição externa provavelmente tornará
a existência de mecanismos inteligentes de estímulo mais importante que
nunca, sobretudo para a geração local de empregos – o grande desafio do
capitalismo nas próximas décadas.
CAPÍTULO 4 350 //
regime, uma vez que a terapia liberal elege-as novamente
como “inimigas” do governo.411
CAPÍTULO 4 352 //
subordinação do plano constitucional ao operacional introduz
“um elemento de transitoriedade na Constituição do país”
que é, em princípio, indesejável.415 Assim, se numa situação
ideal-típica o legislativo deve, em princípio, se “antepor” ao
executivo ao exercer com exclusividade a iniciativa legislativa
e, com isso, ditar os limites “constitucionais” dentro dos
quais o executivo terá de operar a política econômica,
durante um processo de reforma o executivo tende –
paradoxalmente, é verdade, dado que durante esse período se
deverá estar legislando intensamente – a tomar as rédeas dos
acontecimentos em virtude da maior agilidade estratégica
derivada de sua maior coesão interna e presumível unidade
programática – que lhe permite contornar o problema de ação
coletiva que se apresenta a um corpo colegiado como o poder
legislativo.416 Assim, quando reformas profundas ganham
legitimidade (ou passam por qualquer motivo a ocupar o
centro da agenda política), ações mais contundentes passam
a ser aceitas – quando não são simplesmente exigidas por
muitos. Como a coerção é responsabilidade exclusiva do
executivo, este ganha preeminência e tende invariavelmente
a “atropelar” o legislativo com “fatos consumados” ou
mobilização da opinião pública – ou ambos. No Brasil de
415 Monteiro, Estratégia Macroeconômica, p. 159, n. 16, observa a na-
tureza perfeitamente “anti-rawlsiana” desta situação: enquanto John Rawls,
A Theory of Justice, esp. pp. 17-22, estipula a condição do “véu de ignorân-
cia” como parte necessariamente integrante da “posição original” de onde
se pode escolher uma ordem constitucional “justa”, aqui, “primeiro, identi-
fica-se muito claramente a incidência de perdas e ganhos, para, depois, se
[tentar] estabelecer o consenso constitucional”.
416 Para uma rápida exposição deste argumento, pode-se recorrer a
Stephan Haggard e Robert Kaufman, “O Estado no Início e na Consolidação
da Reforma Orientada para o Mercado”, pp. 394-5.
CAPÍTULO 4 354 //
aumento da intervenção governamental, sobretudo através
da regulação econômica”.417
CAPÍTULO 4 356 //
reconhecimento de sua autoridade se generaliza a um ponto
tal que sua manutenção se torna inviável. Nesse momento,
sua capacidade de governo é mínima, e a reintrodução do
regime democrático se dá – entre outros motivos – com o
objetivo de produzir mais poder. Não há motivo algum, em
princípio, para se supor que um regime democrático significa
“menos governo”, ou mesmo “menos comando”, que um
regime autoritário – significa, meramente, menos comando
arbitrário. Mas pode perfeitamente significar um aumento da
capacidade de comando do governo, desde que seja possível
obter a adesão consensual dos atores sociais em seu conjunto a
um corpo de regras impessoais destinadas a dirimir quaisquer
conflitos no interior da sociedade (em outras palavras,
desde que se consiga um conjunto de instituições políticas
cuja autoridade seja reconhecida pelos cidadãos). E esse é
justamente o nó górdio da questão com que nos defrontamos
todos. Como observou Malloy, os principais atores políticos na
América Latina sempre apoiaram regimes autoritários desde
que servissem a seus propósitos; nunca existiu uma adesão
primordial à democracia.422 E o problema da construção da
autoridade de um regime político (ver acima, subseção 2.1.3)
sempre envolve uma “sacralização” de uma fonte de poder, uma
atitude reverente frente a um valor, seja este o “direito divino
dos reis”, a “vontade popular”, ou o “melhor argumento”.
CAPÍTULO 4 358 //
que, infelizmente, este raramente será o caso na América
Latina: em sociedades fortemente segmentadas como as
nossas, normalmente nem todos os setores da sociedade
têm de arcar com perdas pela persistência de uma crise
constitucional, ou mesmo uma crise econômica. Além
disso, em termos mais analíticos, se não há horizonte
futuro estável, a retaliação a comportamentos não-
cooperativos se torna incerta, e a cooperação passa a
requerer – como lembra Torre – a consideração, pelos
atores, dos interesses dos diversos atores do sistema
tomado em seu conjunto. Todavia, prossegue, o processo
de transição prima pela afirmação de identidades, em
que cada grupo luta por seu “espaço”.425 Compromissos,
ao contrário, tendem a produzir um “congelamento das
relações de força”, incompatível com as expectativas de
diversos atores durante a transição. Juan C. Portantiero
resume de forma particularmente feliz o problema:
para ele, a razão da dificuldade de implementação das
estratégias de cooperação é que – nas palavras de Torre –
“elas assumem como um dado o que, a rigor, é o problema:
a existência de um centro de poder capaz de assumir a
tarefa de organizar a concertação; em outras palavras,
425 Torre, “América Latina”, pp. 136-7. Vem a calhar, a propósito, a
clássica descrição que faz Huntington, Political Order in Changing Socie-
ties, p. 196, da atuação dos grupos numa sociedade “pretoriana”:
“In a praetorian society [...] each group employ means which reflect its pe-
culiar nature and capabilities. The wealthy bribe; students riot; workers strike; mobs
demonstrate; and the military coup. In the absence of accepted procedures, all these
forms of direct action are found on the political scene. The techniques of military
intervention are simply more dramatic and effective than the others because, as
Hobbes put it, ‘When nothing else is turned up, clubs are trumps’.”
CAPÍTULO 4 360 //
O “autogolpe” de Fujimori no Peru é o exemplo
evidente do recurso a esta possibilidade em todas as suas
implicações, mas o final abrupto do governo voluntarista
de Collor no Brasil demonstra os riscos presentes também
nesta estratégia, mesmo numa versão mitigada. Com efeito,
mesmo os sucessos parciais obtidos por Fujimori – tanto na
arena econômica quanto no combate ao terrorismo – não
isentam o Peru, absolutamente, da forte probabilidade de
que problemas análogos se recoloquem num futuro próximo.
Pois, em última análise, “a instabilidade institucional e
a instabilidade da própria política econômica acabam
fortemente interligadas”,430 de modo que o recurso a
instrumentos discricionários de deliberação da política
econômica acaba por expor os objetivos da política a novos
riscos. Vianna Monteiro ilustra com o caso brasileiro:
CAPÍTULO 4 362 //
ativos etc., então estaremos diante do desastre, pois isto
induzirá necessariamente um comportamento igualmente
agressivo dos atores. Como observa Eli Diniz (e – diga-se – de
maneira perfeitamente consistente com as teses de Putnam
sobre a importância do “capital social”, da “confiança”, para
o bom desempenho das instituições), a discricionariedade
do executivo acaba por prejudicar a credibilidade dos seus
próprios atos e, portanto, sua eficácia – e ainda aumenta a
incerteza.432 Contrariamente à intuição apressada de que
a existência de organizações fortes na sociedade civil cria
dificuldades para os governos, a experiência do leste europeu
aponta no sentido contrário, ou seja, para a necessidade
dramática de que os governos encontrem “parceiros” para
dialogar: as reformas foram mais bem-sucedidas onde houve
maior tolerância aos seus custos, e o caso da Polônia mostrou
que a tolerância aos custos foi maior onde havia maior
organização política – precisamente pela confiança que a
população depositava nos seus governantes, tornada possível
pela existência de uma sociedade fortemente organizada.433
No Brasil, Eli Diniz observa como foi paulatinamente se
tornando predominante uma reprodução superficial da tese
do “excesso de demandas”, de Huntington, conducente à
defesa de soluções tecnicistas destinadas à “contenção de
demandas” que, todavia, a longo prazo, podem apenas agravar
432 Diniz, Crise, Reforma do Estado e Governabilidade, pp. 183-4. A
análise da importância da existência de “capital social” e laços de confiança
entre os indivíduos para o desempenho das instituições encontra-se em Ro-
bert Putnam, Making Democracy Work, cap. 6, “Social Capital and Institu-
tional Success”, pp. 163-85 (ver discussão do argumento de Putnam acima,
subseção 2.2.3).
433 László Bruszt, “A Política de Transformação no Leste Europeu”,
pp. 376-83.
CAPÍTULO 4 364 //
desprezível para a explicação do fracasso de todas as
iniciativas de estabilização econômica na fase “heróica” da
redemocratização da América Latina em meados da década
de 80 (como o Austral na Argentina, o Cruzado no Brasil, e
a política do governo de Alan García no Peru).
Governos “tecnocráticos semi-autônomos e não-
partidários” são, portanto, na melhor das hipóteses, soluções
temporárias para situações absolutamente emergenciais – e
que muito provavelmente farão surgir novas dificuldades a
longo prazo.436 Logo, no que concerne a reformas econômicas,
é crucial que a inevitável liderança do executivo – com
um grau considerável de neutralização da oposição – no
momento de se deflagrarem as reformas seja oportunamente
substituída por uma atmosfera de cooperação política que
possibilite sua consolidação. Se a deflagração de reformas
tende a se tornar possível apenas com algum grau de arbítrio,
sua consolidação exigirá a minimização desse arbítrio a
partir da institucionalização das novas regras.437 Para Joan
Nelson, três passos complexos de “engenharia política”
serão decisivos aqui: (1) dar credibilidade às reformas, (2)
converter essa credibilidade em interesses constituídos, e (3)
converter esses interesses constituídos em atores políticos
relevantes.438 O problema que hoje ocupa muitos estudiosos
é saber como exatamente fazer isto. De fato, a questão mais
ampla enfrentada pelos países que enfrentam “transições
simultâneas” é claramente explicitada por Joan Nelson:
CAPÍTULO 4 366 //
Notas finais
(à guisa de conclusão):
desenvolvimentismo,
esquerda, direita, mercado
Ao aproximarmo-nos do final deste longo percurso,
cumpre realizar uma breve recapitulação do que se encontra
exposto no presente trabalho, que permita ao eventual leitor
que tenha chegado a este ponto uma apreensão sintética
dos principais argumentos aqui apresentados. Partindo,
no capítulo 1, do entendimento de que o recurso a uma
interpretação também “direcional” da história se impõe à
análise sociológica, buscou-se ali não uma reinterpretação
cabal do processo de modernização, mas sim delimitar o
terreno de uma utilização metodologicamente defensável
do conceito, tantas vezes justificadamente atacado. Tendo
ali procurado defender a possibilidade de utilização de
teorias macro-históricas de perspectiva “desenvolvimental”
lado a lado com elementos da “teoria da escolha racional”,
Como leigo (já que não sou mais economista), não tenho
pretensão de competência para diagnóstico autônomo, na ponta
do lápis. O que me sugere fortemente que ainda temos, sim, um
problema fiscal pra resolver são duas coisas:
Capitalismo e Democracia
A
Abranches, Sérgio H. H. 298, 304, 305, 310, 311, 339, 340, 382
Alencastro, Luiz Felipe de 288, 290, 294, 317
Alexander, Jeffrey C. 71
Almeida, Maria Hermínia Tavares de 38, 345, 370, 377
Almond, Gabriel A. 67, 68, 143, 147, 148, 149,
150, 151, 168, 180, 181, 184, 336
Alvarez, Michael 249
Amadeo, Edward J. 37
Amorim Neto, Octávio 274
Anderson, Perry 94
Apter, David E. 91
Araújo, Ângela M. C. 327
Arbix, Glauco 327
Arendt, Hannah 125, 129, 140, 154, 187, 221, 296
Aristóteles 91, 131, 159
Armijo, Leslie Elliott 38
Aronovich, Selmo 345
Aron, Raymond 108, 280
Axelrod, Robert 36, 143, 174, 175, 176, 177, 217, 270, 283
C
Café Filho, João 371
Camargo, José Márcio 345
Cardoso, Fernando Henrique 314, 338, 348
Carlos Magno 87
Castelo Branco, Humberto de Alencar 371
Cawson, Alan 326, 327
Cheibub, José Antônio 249
Coase, Ronald H. 244, 257, 258
Cohen, G. A. 66, 67, 70, 117
Cohen, Youssef 325
Collier, David 250
Collor de Melo, Fernando 361
Colombo, Cristóvão 86
D
Dahl, Robert A. 131, 164, 168, 212, 317, 318
Dahrendorf, Ralf 232, 233
Demsetz, Harold 313
De Swaan, Abram 59, 110, 218, 225, 233, 234, 235,
236, 237, 238, 239, 240, 241, 243, 335, 336
Deutsch, Karl W. 67, 68, 81, 102, 248
Diniz, Eli 296, 301, 310, 314, 316, 322, 324, 327, 328, 363, 364
Dixit, Avinash 244, 257, 258
Dobb, Maurice H. 94
Downs, Anthony 191
D. Pedro I 114
Durkheim, Émile 56, 82, 88, 111, 119,
121, 122, 139, 154, 210, 234
Dutra, Eurico Gaspar 371
E
Easton, David 67, 68
Eckstein, Harry 140, 168, 169
Eisenstadt, S. N. 137, 138, 139, 309
Elias, Norbert 59, 80, 81, 85, 119, 234
Elster, Jon 35, 55, 66, 67, 70, 113, 117, 134, 167, 218, 276
Engels, Friedrich 113, 218
Erickson, Kenneth Paul 323
Esping-Andersen, Gosta 240
Esping-Andersen, Gøsta 373
Evans, Peter B. 220, 262, 263, 264, 265,
266, 271, 275, 282, 283, 307
Evers, Tilman 162, 163, 165
G
García, Alan 365
Geddes, Barbara 176, 261, 306, 309, 311, 312, 313, 341
Geisel, Ernesto 371
Giddens, Anthony 119, 121, 122, 132, 134, 137
Goldthorpe, John H. 78, 104, 105
Goulart, João 371
Gouldner, Alvin 68
Gourevitch, Peter 320
Gramsci, Antonio 255
Gumplowicz, Ludwig 67, 68
H
Habermas, Jürgen 42, 55, 82, 111, 221, 222
Haggard, Stephan 353, 365
Hampton, Jean 125
Hayek, Friedrich A. 189, 205, 209
Heinz, John P. 346, 347, 348
Hempel, Carl G. 66
Hilton, Rodney 94
K
Kant, Immanuel 129, 141, 376
Katzenstein, Peter J. 329
Kaufman, Robert 353, 365
Kautsky, Karl 255
Kelly, George Armstrong 118, 231
Keynes, John Maynard 374
Kornhauser, William 143, 154, 155, 156, 179
Kubitschek de Oliveira, Juscelino 57, 371
L
Lange, Peter 373
Lara Resende, André 342
Lehner, F. 310
Lenin, Vladimir Ilich 255, 280
Lerner, Daniel 248
Lessa, Renato 40, 164
Levi, Margaret 136, 177
Lima, Maria Regina Soares de 35, 373
Limongi, Fernando 212, 225, 246, 248, 249, 275,
276, 277, 278, 279, 281, 282, 283, 284, 362
Linz, Juan J. 344
Lipset, Seymour Martin 160, 167, 168, 169, 170, 284, 285
Locke, John 75, 128, 131, 223
Lockwood, David 72, 74, 75, 76, 111, 112, 152, 221, 222
Lowi, Theodore J. 303, 304, 315, 339
Luís XVI 280
O
O’Donnell, Guillermo 127, 168, 250, 265
Offe, Claus 194, 196, 218
Olson Jr., Mancur 34, 35, 76, 123, 171, 173, 209,
P
Pareto, Vilfredo 67, 70, 273
Parsons, Talcott 68, 69, 70, 72, 75, 83,
127, 135, 138, 139, 221, 276
Pasquino, Gianfranco 84, 86, 144, 146
Paulani, Leda M. 41
Pavoncello, Franco 325
Pedro II 290
Pereira, Luiz Carlos Bresser 300, 301, 334, 335, 336,
337, 338, 340, 342, 344, 371, 372, 375, 376, 377
Pirenne, Henri 92
Pizzorno, Alessandro 192, 253, 254, 255
Platão 187, 208
Poggi, Gianfranco 139
Polanyi, Karl 205, 206, 207, 208, 210, 214, 216
Popper, Karl R. 6, 34, 78, 87, 90, 104, 106, 187, 190, 209, 230
Portantiero, Juan C. 359
Powell, G. Bingham 67, 148
Przeworski, Adam 168, 225, 237, 242, 246, 248, 249, 262, 264,
266, 271, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 279, 281,
282, 283, 284, 298, 329, 331, 335, 336, 362, 373, 374
Putnam, Robert D. 36, 123, 130, 131, 143, 156, 171,
172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 180, 181,
217, 261, 268, 269, 270, 271, 272, 275, 276,
277, 282, 283, 284, 300, 363, 364, 368, 380
Pye, Lucian 106, 144, 148
R
Rawls, John 353
Reis, Bruno Pinheiro Wanderley 35, 129, 323, 324, 344, 376
Reis, Elisa M. P. 131, 169, 292
Reis, Fábio Wanderley 43, 62, 63, 69, 74, 85, 106,
118, 120, 121, 122, 128, 131, 184, 185, 186, 187,
S
Saint-Simon 6, 88
Salisbury, Robert H. 315, 346, 347, 348
Santos, Fabiano Guilherme Mendes 47, 177
Santos, Wanderley Guilherme dos 43, 117, 147,
174, 204, 205, 235, 252, 259, 299, 300, 301,
304, 315, 316, 317, 318, 319, 321, 325
Sargent, Thomas J. 260
Sarney, José 311
Sá, William Ricardo de 38, 343, 373
Scharpf, Fritz W. 241
Schattschneider, E. E. 229
Schluchter, Wolfgang 50, 56, 57, 80, 137,
138, 139, 154, 194, 243
Schmitt, Carl 67, 187
Schmitter, Philippe C. 127, 168, 325
Schneider, Ben Ross 305, 306, 307, 308, 309, 310, 371, 381
Schubert, K. 310
Schultz, Kenneth A. 260
Sese Seko, Mobutu 263, 264
Shils, Edward 137, 138
Silva, Nélson do Valle 299, 308, 311
T
Tapia, Jorge R. B. 327
Taylor, Michael 36, 125, 175, 177
Tenbruck, Friedrich 56
Thatcher, Margaret 375
Tilly, Charles 56, 63, 78, 146, 147, 215
Tiryakian, Edward A. 165, 166, 190
Tocqueville, Alexis de 88, 108, 154, 178,
179, 212, 247, 279, 280, 282
Torre, Juan Carlos 356, 358, 359, 360
Toynbee, Arnold J. 94
Tullock, Gordon 352
U
Udy, Stanley H. 207, 214
Urbani, Giuliano 62, 63
W
Wagner, Peter 119, 381
Wallace, Neil 260
Wallerstein, Michael 225, 330, 331
Walzer, Michael 142
Watanuki, Joji 250
Weber, Max 56, 57, 58, 70, 77, 82, 88, 122, 124, 127, 132, 133,
134, 135, 136, 137, 138, 139, 142, 154, 157, 189, 190,
192, 194, 204, 209, 220, 221, 222, 234, 255, 321, 369
Weiner, Myron 86, 182
Winckelmann, Johannes 56
Z
Zagare, Frank C. 175
OOCentro
CentrodedeEstudos
EstudosInternacionais
InternacionaissobresobreGoverno
Governo(CEGOV)
(CEGOV)dadaUniversidade
Universidade
Federal
FederaldodoRioRioGrande
GrandedodoSulSul(UFRGS)
(UFRGS)busca
buscarealizar
realizarpesquisas
pesquisase eestudos
estudosaplicados
aplicados
sobre
sobre a a articulação
articulação e e o o fortalecimento
fortalecimento dada relação
relação entre
entre capacidade
capacidade estatal
estatal e e
democracia.
democracia.Nesse
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posicionamentodadauniversidade
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