Como Controlar A Língua - Sinais e Orientações

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Traduzido do inglês: A Christian Directory, Part 1: Christian Ethics.

Directions for the


government of the tongue, by Richard Baxter.

© Dort Publicações
1ª edição em português: 2023

Todas as citações bíblicas neste livro são da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA), exceto
quando especificado o uso da versão Almeida Corrigida e Fiel (ACF).

PRODUÇÃO EDITORIAL:

Capa: Caio Duarte


Diagramação: Adriane Sady
Edição: Giovanna Paiva
Tradução: Beatriz Monteiro
Revisão: Wendell Xavier

Todos os direitos desta tradução reservados pela:

PROIBIDA A REPRODUÇÃO DESTE LIVRO POR QUAISQUER MEIOS SEM A


PERMISSÃO ESCRITA DOS EDITORES, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM
INDICAÇÃO DA FONTE.
PIRATARIA É PECADO E TAMBÉM UM CRIME.
COLEÇÃO TEOLOGIA APLICADA

É com muita alegria que apresentamos esta coleção para os nossos leitores. Criada
especialmente para publicar os escritos práticos do autor Richard Baxter contidos em sua obra: A
Christian Directory (O Diretório Cristão). Este grande tratado é de surpreendente profundidade e
engloba os mais variados temas. Além disso, apresenta alguns pecados contra os quais o crente
precisa lutar ao longo de sua vida.
Dividiremos a obra em vários livros, e cada livro apresentará um tratado específico sobre
determinado assunto. Essa divisão visa facilitar a vida do leitor, tornar o assunto mais
compreensível, estimular a leitura e ampliar a difusão da obra.
A tradução desses tratados é um grande presente para a igreja brasileira, uma vez que são
escritos valiosos para o aconselhamento cristão. Abrangem tudo o que você pode pensar em
relação à fé cristã e oferecem percepções perspicazes para a vida do crente, a partir de uma
teologia prática. Nenhuma obra puritana sobre teologia aplicada chegou perto da popularidade,
do escopo ou da profundidade dessa grande obra.
Com extenso interesse pelo viver cristão, pelo aconselhamento e prática piedosa, esta
obra deveria ser um acréscimo bem-vindo em todas as bibliotecas de nossas igrejas e para todo
aquele que deseja obter sólidas respostas bíblicas às perguntas mais importantes do homem.
Joel Beeke, uma das maiores autoridades sobre os puritanos, disse o seguinte acerca
dessa grande obra de Baxter: “Seus escritos práticos são orientados principalmente para
encorajar a santificação. O Diretório Cristão oferece uma visão acurada sobre a vida do crente,
expondo a teologia prática em mais de um milhão de palavras. Ele lida com centenas dos que os
puritanos chamavam de casos de consciência e dá orientações práticas. É aí que Baxter está no
seu melhor”.
Por isso, siga este conselho: leia esta coleção de forma proveitosa, e bem mastigada, pois,
cada orientação apresentada é útil para as nossas vidas e está regada de fundamentação bíblica
sólida e exemplo prático. Separe um tempo em oração, medite em todos os conselhos e examine
sua vida para que as verdades de Deus inundem o seu coração. Nossa oração é para que o Senhor
utilize esta série para edificar a igreja brasileira e cada irmão, e que essas obras possam guiar os
mais variados aspectos da vida cristã de cada crente. Que esta série ajude a norteá-los a como
crescer na graça e perseverar até o fim.

A editora
ÍNDICE

Prefácio do autor
Capítulo 1: Orientações Gerais
Capítulo 2 | O valor da prudência antes de falar
Capítulo 3 | Instruções contra juramentos profanos e contra o uso do nome de Deus de modo
irreverent
Capítulo 4 | Orientações contra a mentira e o fingimento
Capítulo 5 | Orientações contra a conversa vã e a tagarelice
Capítulo 6 | Orientações contra conversas torpes, caluniosas e obscenas.
Capítulo 7 | Orientações contra a zombaria profana, o desprezo ou a oposição à misericórdia
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PREFÁCIO DO AUTOR

O Deus eterno, ao criar o homem como um agente intelectual e livre, capaz de


compreender e escolher o bem e rejeitar o mal; de conhecer, amar e servir o seu Criador, e de se
dedicar a ele nesta vida de provação, a fim de alcançar a visão abençoada e o gozo de sua glória
na vida vindoura, não esperava lhe conceder tantas necessidades, sem as quais tais fins não
poderiam ser buscados com sucesso. Quando perdemos a capacidade moral de agradá-lo, o
Senhor nos restaura pela maravilhosa obra de nossa redenção para que possamos desfrutar dele.
Em Cristo, ele reconciliou consigo o mundo; e deu-lhes um ato geral de anistia, contido no pacto
da graça, do qual nada pode privá-los, a não ser a obstinação dos homens e a relutância
definitiva. A fim de obter o consentimento deles para esta aliança graciosa, ele “confiou” a seus
ministros a “palavra da reconciliação”; ordenando-nos a “não imputar aos homens os seus
pecados; como se Deus por nós rogasse” (2Co 5.18-20 – ACF); e a mostrar-lhes primeiro seu
pecado e miséria, e a proclamar e oferecer a verdadeira solução, e fazê-los saber que todas as
coisas já estão preparadas, e a pleitear o dever, a necessidade e a comodidade deles,
constrangendo-os a entrar (Mt 22.4; Lc 11.17,23).
A cegueira e a obstinação dos homens, porém, são tão grandes, que a maioria se recusa a
concordar; são enganados pelos prazeres, benefícios e honras do mundo presente; e fazem das
alegadas necessidades ou negócios o motivo de suas desculpas, e as razões irracionais de sua
recusa, negligência e procrastinação, até que a morte os surpreenda e a porta se feche; e eles
batam e clamem por misericórdia e acesso, quando já será tarde demais (cf. Mt 25.10-12).
Contra essa negligência e presunção intencionais, que são a causa principal da
condenação do mundo ímpio, já escrevi vários livros. Contudo, há muitos que confessam
sinceramente que desejam não só ser salvos, mas também se tornar discípulos de Cristo;
aprender sobre ele, imitá-lo, submeter-se a ele e fazer a vontade de Deus, se tão somente
puderem conhecê-la. Então decidi, com a ajuda de Deus, escrever este livro[1] para auxiliar essas
pessoas, e dar-lhes as instruções claras da Palavra de Deus que são apropriadas para as várias
obrigações da vida, e que podem guiá-las com segurança em sua caminhada com Deus em
direção à vida eterna. Não espere deste livro exortações abundantes, pois já fiz este trabalho; e
agora a responsabilidade é deles, uma vez que dizem estar dispostos e desejar ajuda contra sua
ignorância, e a habilidade e a vontade podem concorrer para sua salvação. Vou me esforçar para
falar com a maior clareza possível, porque pretendo falar especialmente a quem não tem
conhecimento; e também para ser competentemente exato nas orientações, a fim de que esses
leitores não percam o benefício por equívocos. E devo falar de muitas questões, pois falo para
famílias às quais nem todos estão na mesma condição, cujas pessoas não são idênticas. Portanto,
se eu não fosse sucinto nos detalhes, poderia me alongar demais no todo; e o enfado pode privar
alguns leitores do benefício.
Nas famílias, alguns são (geralmente) ímpios, e estão em um estado carnal e não
regenerado; e outros são piedosos, em estado de graça. Estes são considerados apenas cristãos no
que tange a Deus ou a seus relacionamentos uns com os outros: essas relações são eclesiásticas,
civis ou domésticas (laços familiares).
Portanto, o método que pretendo utilizar é:
1. Orientar mentes ímpias e carnais a como alcançar uma condição de graça;
2. Orientar os que possuem a graça salvadora a como usá-la, tanto nas áreas
contemplativas quanto nas ativas de sua vida; nos deveres religiosos, tanto privados quanto
públicos; nos compromissos para com os homens, tanto nas relações eclesiásticas quanto nas
civis e familiares. E, a propósito, orientar aqueles que têm a graça a como discerni-la e obter
conforto nela; e norteá-los a como crescer na graça e perseverar até o fim.
E se algum leitor se sentir desencorajado com o número de deveres e instruções que lhe
são apresentadas, peço-lhe que considere:
1.Que é Deus, e não eu, quem lhe impõe todos esses deveres: e quem questionará sua
sabedoria, bondade ou poder de estabelecer leis para nós e para o mundo inteiro?
2. Que todo dever e orientação são uma bênção; e, portanto, não devem ser uma questão
de pesar, porém de gratidão. São exatamente como os mandamentos dos pais para os filhos,
quando os mandam comer carne, vestir suas roupas, ir para a cama, não ingerir veneno e não
rolar na sujeira; não cortar os dedos, e a ter cuidado com o fogo e a água etc. Deixar de fora
qualquer lei ou dever seria somente privá-lo de uma excelente graça; você não cortará ou
descartará qualquer membro de seu corpo, qualquer veia, tendão ou artéria, sob o pretexto de que
a quantidade os torna incômodos, uma vez que a diminuição desse número o mataria ou
mutilaria. Um estudante não se ofende por ter muitos livros em sua biblioteca; nem um
comerciante por ter estoque de ferramentas; nem o rico pelo número de fazendas ou rebanhos
que possui. Creia, leitor, se você não tiver uma mente maligna e conflituosa, perceberá que Deus
não o sobrecarregou, mas o abençoou com seus santos preceitos, e que ele não lhe designou um
dever desnecessário ou inútil, mas somente os que contribuem para o seu contentamento, alegria
e felicidade.
Que a nossa oração diária e sincera seja que o nosso coração não se mostre enganoso e
relutante em seguir as instruções que nos são dadas, para que não nos condenemos nas coisas que
permitimos. Sua prática então mostrará, seja por falta de vontade ou habilidade, se daqui em
diante você negligenciar infielmente seu dever. Se estiver disposto, então obedeça ao que lhe é
ensinado abertamente, e mostre com sua diligência que está desejoso de que isso aconteça.
Richard Baxter
CAPÍTULO 1: ORIENTAÇÕES GERAIS

Orientação I. Compreender, de um modo geral, o quanto é urgente e importante que a


língua seja dominada e bem utilizada. Os que acham que as palavras são insignificantes vão usá-
las sem refletir. A ideia de que as palavras pouco importam (da mesma forma que alguns dizem
que os pensamentos são espontâneos) faz com que os homens usem a língua como se fossem
livres: “São nossos os lábios; quem é senhor sobre nós?” (Sl 12.4).

A MAGNITUDE DOS PECADOS E OS HÁBITOS DA LÍNGUA

1. A língua do homem é a sua reputação. Por meio dela, o homem se destaca


expressivamente em relação aos animais irracionais; e é uma obra maravilhosa de Deus que a
língua de um homem seja capaz de articular uma quantidade tão exuberante de palavras. O
Senhor não concedeu ao homem uma capacidade tão admirável para ser usada para a vaidade e o
pecado; quanto mais nobre e excelente ela for, mais deve ser considerada, e maior será o pecado
dos que a usam de maneira inadequada. Certo autor compara-os a um barbeiro ruim que fere o
rosto de um homem e, então, deforma-o, enquanto seu trabalho deveria ser deixá-lo mais
arrumado e atraente. Portanto, é função da língua ser perfeitamente útil para o bem dos outros, e
ser a glória da humanidade. Assim, a vergonha de seus defeitos é ainda mais inescusável.
2. A língua foi criada para ser o padrão ou a expressão da mente; sendo assim, se a
mente é admirável, a língua é admirável. E se a mente não é respeitável, o homem não é
respeitável. Pois nosso Senhor nos afirma que a árvore é conhecida por seus frutos; uma árvore
má produz frutos maus; e “do que há em abundância no coração, disso fala a boca” (Mt 12.34b).
Aristóteles disse que “tal como um homem é, assim são os seus discursos, as suas obras e a sua
vida”. Desse modo, vocês expressam aos homens a vaidade e a corrupção de sua mente pelas
palavras vãs ou pecaminosas.
3. As obras dos homens dependem muito de suas palavras; sendo assim, se as ações são
valorosas, as palavras são valorosas. As ações são estimuladas ou provocadas pelas palavras. A
experiência cotidiana nos mostra o poder da fala. Um discurso salva um reino, e também derrota
um reino. As grandes ações e os maiores resultados dependem delas.
4. Se os homens com os quais falamos são respeitáveis, as palavras são respeitáveis,
uma vez que elas são instrumentos poderosos para o bem ou para o mal. Por intermédio de seus
ministros, Deus as usa para a conversão e salvação dos homens; e Satanás as utiliza, por seus
representantes, para rebelião e condenação dos homens. Quantos milhares de almas são feridas
todos os dias pelas palavras de outros! Algumas enganadas, outras envaidecidas; algumas
calejadas, e outras provocadas a paixões pecaminosas! E quão grande número delas é edificado
por palavras todos os dias! Instruído, admoestado, vivificado ou confortado. Paulo diz, em 2
Coríntios 10.4: “Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim poderosas em Deus
para destruição das fortalezas”. E Pitágoras[2] disse que “as línguas cortam mais fundo do que as
espadas, porque elas penetram até a alma”. Os pecados e hábitos da língua, portanto, não devem
ser negligenciados.
5. Nossa língua é instrumento de louvor ao nosso Criador, e ela nos foi dada com um
propósito: “bendizermos o seu nome” e “declararmos as suas obras com alegria”.[3] O que Deus
espera do homem não é uma pequena porção desse serviço desempenhado pela língua; nem uma
parte ínfima do propósito pelo qual fomos criados: o uso de todas as nossas capacidades,
atribuições e graças mais elevadas acontece expressamente pela língua; nossa sabedoria e
conhecimento, nosso amor e santidade, são muito desperdiçados no que diz respeito à honra de
Deus e ao bem dos outros se não forem manifestos. A língua é o farol ou a janela pela qual a
alma olha para fora e resplandece sobre outros. Portanto, o pecado ou o dever desse instrumento
tão nobre não pode ser menosprezado por ninguém que considere a honra de nosso criador.
6. Nossas palavras têm um grande reflexo e influência em nosso próprio coração. Assim
como elas procedem dele, também ele se volta para elas, como observamos diariamente na
oração e nos ajuntamentos. Portanto, para o nosso próprio bem ou mal, nossas palavras não
devem ser ignoradas.
7. A lei e o juízo de Deus lhe ensinarão muito bem a atenção que deve dar às palavras.
Cristo afirma que “pelas tuas palavras serás justificado, e pelas tuas palavras serás condenado”
(Mt 12.37). E as palavras de blasfêmia contra o Espírito Santo consistem no pecado imperdoável.
Tiago 3.2 diz: “Se alguém não tropeça em palavra, o tal é perfeito, e poderoso para também
refrear todo o corpo”; e no verso 6: “A língua também é um fogo; como mundo de iniquidade, a
língua está posta entre os nossos membros, e contamina todo o corpo, e inflama o curso da
natureza, e é inflamada pelo inferno”. Tiago 1.26 afirma: “Se alguém entre vós cuida ser
religioso e não refreia a sua língua, antes engana o seu coração, a religião desse é vã”. 1 Pedro
3.10: “Porque quem quer amar a vida, e ver os dias bons, refreie a sua língua do mal, e os seus
lábios não falem engano”. Mateus 12.36: “Mas eu vos digo que de toda a palavra ociosa que os
homens disserem hão de dar conta no dia do juízo”. O terceiro mandamento nos fala que “Deus
não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão”. Salmos 15.1-3 declara que “o que
anda sinceramente, e pratica a justiça, e fala a verdade no seu coração” – essa é a marca daquele
que permanecerá no “tabernáculo de Deus, e habitará no seu santo monte”. E a própria obra do
céu é chamada de o perpétuo “louvor a Deus” (cf. Ap 14.11). Imagine, então, como Deus julga
as suas palavras.
8. E certa suposição pode ser feita pelo julgamento de todo o mundo. Vocês não ligam
para o que os homens lhe dizem e para o que falam a seu respeito? Não se importa com o
linguajar de seus filhos, servos ou vizinhos? As palavras contra o rei não são tão traiçoeiras e
importantes quanto às ações? A “roda dos acontecimentos, ou o curso da natureza, é incendiada
pelas palavras” (Tg 3.6). Assim, posso concluir com Provérbios 18.21 que “A morte e a vida
estão no poder da língua”, e com Provérbios 21.23: “O que guarda a sua boca e a sua língua
guarda das angústias a sua alma”.

AS FUNÇÕES DA LÍNGUA
Orientação II. Entenda bem e lembre-se dos compromissos particulares da língua, uma
vez que a mera limitação do mal não é suficiente. São eles:
a. Glorificar a Deus pela exaltação de seu nome; proclamar os louvores de seus atributos e
obras.
b. Cantar-lhe salmos de louvor e regalar a nossa alma na doce celebração de sua
majestade.
c. Dar-lhe graças pelas misericórdias já recebidas e declarar a outras pessoas o que ele fez
por nossa alma e corpo, por sua igreja e pelo mundo.
d. Orar a ele pelo que desejamos, por nossos irmãos, pela igreja e pela conversão de seus e
nossos inimigos.
e. Suplicar a ele e prometer solenemente por seu nome quando para isso formos
legalmente chamados.
f. Estabelecer nossas alianças e votos essenciais; dar profissão clara de nossa fé, sujeição e
obediência a ele diante dos homens.
g. Pregar sua Palavra, ou proclamá-la em nosso falar; ensinar aqueles que estão sob nossos
cuidados, e instruir os néscios e equivocados quando tivermos oportunidade.
h. Defender a verdade de Deus em assembleia ou debate, e rejeitar a falsa doutrina dos
charlatães.
i. Exortar os homens a suas responsabilidades pessoais e reprovar seus pecados
particulares; e nos esforçarmos para fazer-lhes o bem como pudermos.
j. Confessar nossos próprios pecados a Deus e ao homem sempre que tivermos chance.
k. Almejar o conselho e a ajuda de outros para nossa alma, e buscar a vontade de Deus e o
caminho para a salvação.
l. Elogiar o que é bom nos outros e falar bem de todos os homens – superiores,
semelhantes e subordinados –, desde que haja base e motivo legítimos.
m. Dar testemunho da verdade quando para isso formos chamados.
n. Defender a causa do justo e do inocente, e clamar por eles diante de falsos acusadores;
perdoar as razões e pessoas que têm direito ao perdão.
o. Falar e transmitir aos outros as mesmas boas impressões e afeições da mente com que
Deus opera em nós, e não apenas as verdades explícitas que recebemos.
p. Por fim, sermos instrumentos do diálogo mútuo, da manifestação de nossas afeições e
respeito comum, e cumprirmos todas as nossas ocupações seculares: ensino, artes,
produções etc.
Estes são os empregos e funções da língua.

OS PECADOS DA LÍNGUA

Orientação III. Compreenda e recorde-se de quais pecados da língua devem ser evitados.
Eles são inúmeros, e muitos deles enormes. Os mais visíveis são os seguintes:
(Sem citar mais nada dos pecados por omissão, pois é fácil identificá-los, uma vez que já
nomeei os deveres, sejam estes realizados ou negligenciados).
1. Entre os pecados de comissão, o primeiro que citarei é a blasfêmia, por ser o maior.
Trata-se da reprovação a Deus: falar desdenhosamente de Deus, difamá-lo, ou desonrá-lo,
negando sua perfeição, e aviltá-lo com falsos nomes, doutrinas, imagens, semelhanças,
comparando-o com o homem em qualquer uma das imperfeições humanas – qualquer coisa que
seja uma censura a Deus é blasfêmia. Tal como Rabsaqué agiu ao ameaçar Ezequias (cf. Is 37.8-
13), e como os infiéis e hereges procedem ao negar sua onipresença, onisciência, governo,
justiça, providência peculiar ou bondade. É afirmar qualquer maldade a respeito do Senhor,
como se fosse o autor do pecado, ou desleal em sua Palavra, ou que governa o mundo por mero
equívoco, ou algo semelhante.
2. A falsa doutrina, ou o ensino de coisas enganosas e perigosas como se procedessem
de Deus. Se alguém afirmar falsamente que recebeu isso ou aquilo por inspiração, visão ou
revelação divina, isso faz dele um falso profeta. Contudo, se ele apenas disser erroneamente que
esta ou aquela doutrina está contida na Escritura, ou que foi transmitida à Igreja por tradição, isso
apenas faz dele um falso mestre, o que é um pecado maior ou menor a depender dos agravantes
mencionados a seguir.
3. A oposição indireta à piedade pela falsa aplicabilidade da verdadeira doutrina, a
resistência às pessoas piedosas em nome da santidade e a crítica às verdades e aos deveres
singulares da fé. Ou contrariar indiretamente a verdade ou o dever sob o pretexto de insurgir-se
apenas contra algum modo controverso ou imperfeição naquele que o expressa ou pratica. Um
tipo de defesa dos aspectos e práticas que poderiam subverter ou minar a religião – um esforço
oculto para fazer com que toda piedade séria pareça algo desnecessário. Há muitos que parecem
ortodoxos, todavia são opositores ímpios e maldosos da prática da verdade que eles próprios
sustentam teoricamente e professam categoricamente.
4. A zombaria profana da piedade honesta – o escárnio, a brincadeira e o desprezo
pelas pessoas piedosas como tais. Ou ainda o menosprezo a alguns de seus verdadeiros ou
pretensos defeitos por causa de sua piedade, a fim de torná-las detestáveis, de modo que, por
meio delas, a piedade torne-se odiosa. Quando os homens falam assim, o objetivo e a tendência
de seu discurso são o de levar os demais homens a uma antipatia pela verdade ou santidade; e
seus sarcasmos ou desprezos acerca de alguma opinião, prática ou método particular conduzem
ao desdém pelo exercício sério da fé. É quando zombam de um pregador do Evangelho por
algumas expressões ou falhas, ou por causa da própria verdade, a fim de levar o ministro e sua
doutrina ao desprezo; ou das orações e discursos de pessoas religiosas, no intuito de insultar a
religião.
5. Proibir injustamente os ministros de Cristo de pregar o Evangelho ou de falar em
seu nome; ou levantar-se contra eles em contradição e resistência, impedindo-os de anunciar a
verdade. Como Gamaliel cita, é “combater contra Deus” (At 5.39). No entanto, assim fizeram
aos apóstolos (v.40): “E, chamando os apóstolos, e tendo-os açoitado, mandaram que não
falassem no nome de Jesus, e os deixaram ir”.

E, chamando-os, disseram-lhes que absolutamente não falassem, nem ensinassem no


nome de Jesus. Respondendo, porém, Pedro e João, disseram-lhes: Julgai vós se é
justo, diante de Deus, ouvir-vos antes a vós do que a Deus. Porque não podemos deixar
de falar do que temos visto e ouvido.
Atos 4.18-20

Os quais também mataram o Senhor Jesus e os seus próprios profetas, e nos têm
perseguido; e não agradam a Deus, e são contrários a todos os homens, e nos impedem
de pregar aos gentios as palavras da salvação, a fim de encherem sempre a medida de
seus pecados; mas a ira de Deus caiu sobre eles até ao fim.
1 Tessalonicenses 2.15-16

Como parafraseia o Dr. Hammond,[4] “E esta geralmente é a razão de sua desavença


conosco: a despeito de sua proibição, nós pregamos aos gentios”.
6. O juramento profano, seja por Deus ou pelas criaturas, assim como todo uso frívolo
e irreverente do nome e dos atributos de Deus, sobre os quais falaremos mais adiante.
7. Pecado muito mais hediondo é o perjúrio, ou o juramento falso, por se tratar de um
apelo a Deus, autor e defensor da verdade, para testemunhar de uma mentira e julgar o ofensor. É
também um desejo de vingança da parte de Deus.
8. A mentira também é um pecado grande e comum da língua, o qual abordaremos
depois.
9. A dissimulação hipócrita, mais grave do que a simples mentira, quando a fala dos
homens não está de acordo com o coração, mas articula belas palavras em oração a Deus, ou em
reunião com os homens, a fim de encobrirem más intenções ou sentimentos e mostrarem-se aos
ouvintes melhores do que são.
10. A exibição jactanciosa ou orgulhosa tanto da inteligência quanto do saber humanos,
bem como da grandeza, das riquezas, da honra, da força, da beleza, dos papéis, da santidade, ou
de qualquer coisa das quais os homens se orgulhem. Como os fiéis “se gloriam no Senhor” (Sl
34.2; 44.8), e na “cruz de Cristo”, pela qual “eles estão crucificados para o mundo” (Gl 6.14),
assim os ambiciosos “se gloriam na multidão de suas riquezas” (Sl 49.6), e “os ímpios saltam de
prazer, e todos os que praticam a iniquidade falam coisas duras, e se gloriam.” (Sl 94.2-4). Eles
se engrandecem “até contra o Senhor”, pelo orgulho contra o seu povo (Ez 35.13). À medida que
o orgulho assenhoreia-se dos homens, maior a propensão de “gabarem-se de ser alguém” (At
5.36), o que pode ocorrer declaradamente, como fazem os mais tolos, ou astuciosamente,
auxiliados por pretextos justos, como agem os orgulhosos hábeis.
11. Conversa inoportuna sobre assuntos vulgares, quando deveriam preferir os temas
santos. Por exemplo, no dia do Senhor, ou na hora do culto coletivo; ou quando a companhia,
ensejo ou oportunidade exigem conversas santas. Tal qual Saul, os carnais falam de seus
jumentos, quando deveriam falar de um reino (1Sm 9.10). Falar de suas vocações e de assuntos
comuns é lícito, desde que seja com moderação e em tempo oportuno. No entanto, quando só
fala do mundo e de vaidades (e o assunto nunca tem fim), e é raro que haja qualquer outro
assunto em sua boca, e até no dia do Senhor “falam as suas próprias palavras” (Is 58.13), isso é
linguajar profano e pecaminoso.
12. Tentar e persuadir outros a pecar, induzindo-os à gula, à embriaguez, à
devassidão, à fornicação ou a qualquer outro pecado, como homens que continuam a praticar tais
coisas. E, o que é pior, incentivam outros a também fazê-lo (cf. Rm 1.32). Isso significa ser
instrumento e servo do diabo e, para ser mais direto, fazer a obra dele no mundo. O mesmo posso
dizer do desculpar, atenuar ou defender injustamente os pecados de outros, ou dominar, atrair,
amedrontar ou encorajá-los a tais coisas.
13. A maneira carnal de lidar com as coisas sagradas de Deus, como, por exemplo,
realizá-las com leviandade, ou com uma curiosidade inadequada de palavras; ou de um jeito
caricato e brincalhão, sobretudo pelos próprios pregadores do evangelho, e não com um estilo
profundo e sério, conveniente à importância e glória da verdade.
14. O tratamento imprudente, precipitado e desleixado com as coisas sagradas,
quando são transmitidas de forma tão inculta, inábil, desordenada ou impetuosa que acaba por
desonrá-las e frustrar o adequado triunfo almejado.
15. A ofensa ou desonra dos superiores, quando os filhos se dirigem aos pais ou falam
deles de maneira irreverente e desonrosa; ou os súditos de seus governadores; ou os servos de
seus senhores, seja na presença deles ou pelas costas, “Não receando blasfemar das dignidades”
(2Pe 2.10; Jd 1.8).
16. O desprezo autoritário dos subordinados, insultando-os, provocando-os e
desencorajando-os. “E vós, pais, não provoqueis à ira os vossos filhos” [Ef 6.4].
17. A conversa fiada e a enxurrada de palavras inúteis: a retórica balbuciante. Trata-
se de falatório que não leva à edificação, nem tem utilidade alguma para a mente, o corpo ou os
relacionamentos.
18. A conversa tola, ou brincadeira leviana e insensata, que costuma chamar a atenção
dos ouvintes por uma inclinação para a insensatez e a tolice, como a dos oradores. Não usem
palavras indecentes, nem digam coisas tolas ou sujas, pois isso não convém a vocês (cf. Ef 5.4).
A alegria sincera é legítima – e quanto mais santificada, melhor ela é, pois se origina de um
princípio santo, trata de um assunto santo ou tem um objetivo puro. “Regozijai-vos sempre no
Senhor” (Fp 4.4). “Está alguém contente? Cante louvores” (Tg 5.13). Contudo, uma brincadeira
boba e superficial, como nada mais é do que a vazão da banalidade habitual por meio de palavras
ociosas, não é admissível. Sobretudo, porém, as pessoas que abusam da língua e do bom senso de
maneira mais repulsiva são as que fingem ser idiotas ou tolas, e usam de sua inteligência para
encobrir suas piadas com uma suposta tolice, a fim de torná-las mais ridículas. Fazem disso o seu
próprio ofício: são os bobos da corte de homens importantes. Tornam o pecado detestável em
negócio.
19. Falar coisas obscenas (cf. Ef 5.4). É o linguajar irreverente e vulgar que o apóstolo
chama de “palavra torpe” (Ef 4.29) – quando mentes indecentes e imundas se divertem com
conversas indecentes e imundas. Essa é a prévia do diabo para a prostituição e toda impureza
abominável. Quando a língua aprende a brincar com esses pecados impuros pela primeira vez, e
os ouvidos a se deliciarem com eles, ou a serem-lhes indiferentes, um pequeno passo apenas
resta para a depravação de fato.
20. A maldição. Ela acontece quando os homens desejam algum mal a outros sem
motivo ou justificativa. Se você apenas fala na hora da cólera, ou por brincadeira, e em seu
coração não lhes deseja o dano que menciona, não obstante é um pecado da língua. É a mesma
coisa de falar blasfêmia ou traição no calor do momento ou na brincadeira. A língua deve ser tão
governada quanto o coração. Todavia, se você anseia realmente o mal que lhes deseja, é muito
pior. O pior de tudo, porém, é quando homens impetuosos e facciosos transformam as próprias
orações em maldições, e clamam por fogo do céu e oram pela destruição ou prejuízo de outros
homens. Como pretexto, valem-se de exemplos das Escrituras para isso, como se pudessem fazer
injustificadamente o que, em outras situações, outros fizeram de maneira justificada.
21. A calúnia é outro pecado da língua. Ela acontece toda vez que, por malícia e
ressentimento, os homens falam mal de seus semelhantes para torná-los desagradáveis ou causar-
lhes dano. Ou então, por ingenuidade impiedosa, acreditam facilmente numa informação falsa e,
em seguida, contam-na a outras pessoas. Ou ainda, por precipitação e indisciplina da língua,
espalham uma notícia antes de prová-la, de receberem uma confirmação ou qualquer permissão
para falar dela.
22. Caluniar e espalhar notícias prejudiciais pelas costas das pessoas, sem qualquer
critério. Seja a questão verdadeira ou falsa, a partir do momento em que você sabe que é uma
mentira – ou uma verdade –, e ainda assim a propaga para tornar a pessoa menos respeitada, ou
no mínimo sem argumento suficiente, comete um pecado contra Deus e uma injustiça contra os
homens.
23. A acusação precipitada, ou seja: falar mal de uma pessoa de quem se tem somente
uma desconfiança injusta. É adotar como crível algo que é apenas possível, ou como certo o que
é apenas plausível contra outrem.
24. As palavras insultantes, injuriantes, impetuosas ou inflamadas, as quais conduzem à
redução da generosidade, à violação da paz, ao acirramento da discórdia e à retribuição de
palavras rancorosas da parte de outros, contrárias ao amor, à paciência, à mansidão e à
benignidade dos que se tornam santos.
25. As palavras trapaceiras, enganadoras, exageradas. Quando os homens usam a
língua para defraudar o próximo, barganhando para proveito próprio.
26. Dar falso testemunho e acusar ilegitimamente: um pecado que clama a Deus por
vingança, a ele que é o justificador dos inocentes.
27. Proferir sentença injusta em juízo. É quando governantes absolvem o culpado ou
condenam o justo; chamam o mal de bem e o bem de mal (cf. Is 5.22), e dizem ao justo: tu és
perverso.
28. A bajulação, a qual é a mais hedionda, visto que muito mais dolorosa. E ela é muito
dolorosa:
a. Quando tende a iludir os homens nas coisas mais importantes, até no estado de sua
alma. A adulação de um pregador que engana os homens como em nome de Cristo é, de
todas as outras lisonjas, a mais perniciosa. Ela faz os não regenerados acreditarem que
são regenerados, os ímpios crerem que são piedosos, os não justificados acreditarem que
são justos; faz os filhos de Satanás acreditarem que, sem conversão, podem ser salvos.
Faz com que um mundano, um blasfemo, um glutão, um beberrão, um devasso, um
hipócrita convencional, ou um inimigo da santidade, acredite que alguém como ele pode
ir para o céu sem a obra de santificação e restauração do Espírito Santo. Eis o serviço
diabólico mais exímio que a língua de qualquer homem pode exercer em favor do diabo,
exceto se forem os próprios opositores declarados da fé. À medida que o diabo faz uso de
mais bajulação para levar os homens para o inferno do que para espantá-los de lá, assim
agem os seus ministros e agentes. E todas as doutrinas de libertinagem e desleixo, que
autorizam os homens a praticar o mal e a negligenciar uma vida santa, são ambas as
formas mais perigosas de lisonja do que a que consiste apenas em prática incorreta. Do
mesmo modo, os amigos carnais costumam paparicar um pecador com presunção e falsas
esperanças, quando percebem que ele está convencido de seu pecado e miséria, e dizem:
“Não se preocupe! Deus é misericordioso, e você teve uma vida boa, foi um bom
vizinho, e não fez mal a ninguém. Se alguém como você não for salvo, Deus ajude a um
tanto de gente”. Logo, quando um pecador convicto está lutando para escapar das
armadilhas do diabo, os servos de Satanás o fazem dormir novamente, recorrendo a
discursos e erros falsos e lisonjeiros.
b. A lisonja é perniciosa porque tem a tendência de prejudicar a muitos. Um exemplo é
quando os governantes são enganados e pervertidos por ela para destruição do povo e
deles mesmos. Provérbios 26.28 diz: “A língua falsa odeia aos que ela fere, e a boca
lisonjeira provoca a ruína” (Veja 1Ts 2.5; Ez 12.24; Sl 12.2-3).
29. Zombar, escarnecer, ridicularizar ou fazer pouco caso dos outros, quer por causa de
enfermidades do corpo ou da mente, quer pelas virtudes; tanto por inveja e malícia, quanto por
orgulho; ou por costume de falar de jeito zombeteiro e desdenhoso. “Até quando [...] vós,
escarnecedores, desejareis o escárnio?” (Pv 1.22). Confira Sl 22.7; 44.13; 79.4. Sobretudo
quando os pecadores desprezam as repreensões e conselhos dos santos, e os lançam em rosto de
volta com desprezo; pois “quem repreende o ímpio mancha o próprio nome” (Pv 9.7-8). “O
zombador não gosta de quem o corrige, nem procura a ajuda do sábio” (Pv 15.12).
30. A idolatria ou adoração falsa, o louvor a ídolos, ou a oração a eles; ou fazer
canções, discursos, ou contendas por eles. Também diz respeito à falsa adoração ao Deus
verdadeiro. Dentre outros, esses são os pecados da língua a serem evitados. Não é de se admirar
que ainda haja outros, pois a “língua é ὁ κοσμος της αδικιας [um mundo de iniquidade]” (Tg
3.6).

A IMPORTÂNCIA DE CULTIVAR O CORAÇÃO PARA CONTROLAR A LÍNGUA

Orientação IV. Uma vez que tenha entendido, então, as funções e os pecados da língua, e
a magnitude deles, a próxima coisa com a qual você deve ser muito cuidadoso e diligente é em
guardar no coração todas as coisas que deveriam dizer respeito à língua, e conservar o coração
limpo de tudo que a língua precisa estar purificada. A obra principal deve ser sobre o coração,
“pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca” (Mt 12.34).
● 1. A língua não será efetivamente governada de outra forma: se o coração estiver no
mundo, é mais comum que a língua esteja no mundo. Você pode forçá-la um pouco a
contrariar o coração, mas será uma obediência muito inconstante – se soltar um pouco
as rédeas, pronto. Se o coração for orgulhoso, a língua falará com orgulho; se for
lascivo, vaidoso ou malicioso, as palavras normalmente também o serão.
● 2. Ou, se puder obrigar a língua a contradizer o coração, será apenas uma mudança
hipócrita. Um coração vaidoso, orgulhoso, mundano, devasso, malicioso ou ímpio irá
condená-lo, embora a língua tenha sido forçada a falar de forma humilde, pura, paciente
ou piedosa. Portanto, se deseja superar a vaidade, o mundanismo, a libertinagem, ou
qualquer outro pecado de seu discurso, primeiro prepare-se para vencer o mesmo
pecado no coração, e para revivificar e estimular as graças que lhe são opostas. E se
quiser usar a língua para honrar a Deus e edificar os homens, dê corda ao manancial das
santas afeições que serão como águas para o moinho. É o uso da língua que manifesta a
mente, e o uso do linguajar santo é a expressão de uma mente santa. Você, contudo,
cogita externar algo que não tem? Fará da mentira um dever? Se desejar falar de Cristo
ou do céu com seriedade, avalie se seu coração está voltado para Cristo e o céu. Quando
entrar em qualquer grupo em que queira falar em nome de Deus e para o bem dos
ouvintes, empenhe-se de antemão para causar uma marca profunda em seu coração dos
atributos ou verdades de Deus que pretende expressar, assim como para reavivar em si
mesmo o sentido daquilo que espera que os outros compreendam. Desperte dentro de si
mesmo o amor a Deus, e o amor pela santidade e pela verdade, e um amor pelas almas
daqueles com quem você fala. Então, assim como uma torneira que, quando aberta
libera água, você será como um canal de quem fluirá verdades.
CAPÍTULO 2 | O VALOR DA PRUDÊNCIA ANTES DE
FALAR

Orientação I. Esforce-se para entender os assuntos sobre os quais você quer falar. A
ignorância impede a preparação para o discurso, ou o abastece apenas de coisas inúteis e
vaidade, e então faz você falar de maneira que seria melhor ter ficado calado. O conhecimento e
a sabedoria são depósitos contínuos de agradável e proveitosa conversa: “Todo mestre da lei
instruído quanto ao reino dos céus é como o dono de uma casa que tira do seu tesouro coisas
novas e coisas velhas” (Mt 13.52). Quando um homem domina o assunto sobre o qual falará, ele
está preparado para falar naturalmente a outros sobre esse assunto, e para defendê-lo contra os
opositores. Salmos 37.30-31 diz que “A boca do justo profere a sabedoria, e a sua língua fala o
que é justo. No coração, tem ele a lei do seu Deus; os seus passos não vacilarão”. Provérbios
10.31-32 afirma que “A boca do justo produz sabedoria, mas a língua da perversidade será
desarraigada. Os lábios do justo sabem o que agrada, mas a boca dos perversos, somente o mal”.
Os homens sábios nunca têm falta de palavras sábias, porém a boca dos tolos denuncia a sua
loucura. De acordo com Provérbios 15.2, “A língua dos sábios adorna o conhecimento, mas a
boca dos insensatos derrama a estultícia”. Provérbios 14.3 afirma: “Está na boca do insensato a
vara para a sua própria soberba, mas os lábios do prudente o preservarão”. “Os lábios do tolo
entram na contenda, e a sua boca brada por açoites. A boca do tolo é a sua própria destruição, e
os seus lábios um laço para a sua alma” (Pv 18.6-7). Você pode argumentar: “Dizer que se deve
alcançar sabedoria é algo fácil de falar, mas não é fácil ou rápido de conseguir”. Isso é verdade.
Portanto, é igualmente verdadeiro que a língua não é usada e governada com facilidade, uma vez
que os homens não podem expressar sabedoria que não possuem, a menos que seja de forma
mecânica. Sendo assim, você deve seguir o conselho de Salomão em Provérbios 2.1-6:

Filho meu, se aceitares as minhas palavras, e esconderes contigo os meus


mandamentos, para fazeres o teu ouvido atento à sabedoria; e inclinares o teu coração
ao entendimento; se clamares por conhecimento, e por inteligência alçares a tua voz, se
como a prata a buscares e como a tesouros escondidos a procurares, então entenderás o
temor do Senhor, e acharás o conhecimento de Deus. Porque o Senhor dá a sabedoria;
da sua boca é que vem o conhecimento e o entendimento.
Orientação II. Enquanto isso, aprenda a ficar em silêncio até que tenha aprendido a falar.
Não permita que sua língua seja mais rápida que sua inteligência; não fale do que você não
domina, a não ser como aluno, para receber instrução. É preferível falar pouco a falar demais. Os
que querem falar de assuntos que não entendem costumam falar mal deles (cf. Jd 1.10) quando
são bons, ou a falar mal, não importando se são bons ou ruins. Aquele que não consegue
controlar bem a língua não é capaz de falar bem. Eclesiastes 3.7b diz que “há tempo de estar
calado, e tempo de falar”. Amós 5.13 afirma: “Portanto, o que for prudente guardará silêncio
naquele tempo, porque o tempo será mau”. Nesse momento, diz Sêneca:[5] “Nada lhe fará tão
bem quanto falar o mínimo com os outros e o máximo com você mesmo”.
Você tem dois ouvidos e uma boca, por isso ouça o dobro do que fala. Quase sempre nos
arrependemos mais de falar do que de ficar calado. Poucas palavras são proferidas num instante.
Ser cauteloso e poupar a conversa não só evita a abundância de discórdia, risco e
arrependimento, mas também lhe concede uma reputação de sabedoria. Plutarco disse bem que
“Poucas leis são necessárias àqueles que proferem poucas palavras”. Certa vez, alguém disse ao
sarcástico, visto que estava muito calado: “Se você é um homem sábio, comporta-se tolamente;
se é um tolo, então age sabiamente”. Ao que ele respondeu: “Nenhum tolo consegue segurar a
língua”, e alguém que não é capaz de dominar a língua não consegue ficar quieto. O conselho de
Pitágoras está de acordo com o de Cristo: “Permaneça em silêncio, a não ser que o que tenha a
dizer seja melhor que o silêncio”. Ao ser questionado a quem os proprietários e os advogados
ambiciosos mais odiavam, Pitágoras deu uma sábia resposta: quanto aos primeiros, os que
comem pouco e suam muito (pois geralmente vivem bastante, logo, seus aluguéis não acabam
depressa); e quanto ao segundo grupo, os que falam pouco e amam muito, uma vez que esses
raramente dão algum trabalho para os advogados. Duas coisas são indispensáveis no que tange
ao seu discurso: que, de alguma forma, seja necessário ser dito, e que seja um assunto que você
domine. Até lá, fique quieto.
Orientação III. Fique atento à precipitação em seu discurso e reflita, especialmente em
questões importantes ou controversas. Pense antes de falar: é melhor medir as palavras antes de
declará-las do que depois. Um exame preventivo é melhor do que experimentar o
arrependimento; mas se ambos forem negligenciados, Deus as provará a um custo mais elevado.
Eu sei que, em assuntos perfeitamente compreensíveis, um homem erudito pode falar sem
qualquer meditação aprofundada, e a representação imediata do seu conhecimento se manifesta.
No entanto, quando há qualquer temor de mal-entendido, ou a incapacidade de falar de forma
adequada e segura sem preparação, deve-se evitar falar apressadamente e sem cautela (sobretudo
a respeito de temas importantes). “Tens visto um homem precipitado no falar? Maior esperança
há para um tolo do que para ele.” (Pv 29.20). Preste atenção especialmente ao falar com Deus em
oração, ou em nome dele, ou como da parte de Deus na pregação ou exortação, ou sobre os
assuntos sagrados do Senhor em qualquer um de seus discursos. Eclesiastes 5.1 diz: “Guarda o
teu pé, quando entrares na casa de Deus; porque chegar-se para ouvir é melhor do que oferecer
sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal”. Ou seja, vigie a si mesmo no culto coletivo,
e esteja determinado a aprender de Deus e obedecer a ele, mais sensível à sua ignorância e
sujeito à vontade dele do que a oferecer-lhe o seu sacrifício (como se ele precisasse disso)
enquanto negligencia ou rejeita os mandamentos divinos.
Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra
alguma diante de Deus; porque Deus está nos céus, e tu estás sobre a terra; assim sejam
poucas as tuas palavras. Porque, da muita ocupação vêm os sonhos, e a voz do tolo da
multidão das palavras.
Eclesiastes 5.2-3

Em outros termos, achegue-se a Deus como um discípulo obediente e um ouvinte, e não


como um concessor. Desse modo, esteja mais disposto a ouvir o que ele tem a lhe ordenar do que
a despejar inúmeras palavras diante dele, como se o Senhor o aceitasse e ouvisse por sua
tagarelice. Se o falatório e a pressa em proferir diversas palavras não ordenadas são sinais de
tolice entre os homens, quanto mais quando alguém conversa com Deus que está no céu!
Orientação IV. Mantenha um controle santo sobre todas as suas paixões (como citado
acima) e, em especial, avalie com desconfiança todas as palavras que qualquer paixão insista em
que você libere; pois a paixão é tão propensa a ofuscar o julgamento que até as paixões santas em
si devem ser gerenciadas com cuidado e temor, como se você estivesse carregando fogo entre
palha ou outro material inflamável. Como “a palavra dura suscita a ira” (Pv 15.1), também a
raiva provoca palavras dolorosas. “Não te apresses no teu espírito a irar-te, porque a ira repousa
no íntimo dos tolos.” (Ec 7.9). Governar a língua quando envolvido em qualquer paixão (amor,
medo, tristeza ou raiva) é como controlar um navio em tormentas e tempestades, ou como
dominar um cavalo feroz e arredio. Provérbios 14.16-17 afirma que “O sábio teme, e desvia-se
do mal, mas o tolo se encoleriza, e dá-se por seguro. O que se indigna à toa fará doidices, e o
homem de maus intentos será odiado”. Provérbios 21.19 diz que “É melhor morar numa terra
deserta do que com a mulher rixosa e irritadiça”; e “O homem irascível levanta contendas; e o
furioso multiplica as transgressões” (Pv 29.22). Não há como controlar a língua se você não
puder governar as paixões. Por essa razão, Provérbios 22.24 traz um ótimo conselho: “Não sejas
companheiro do homem briguento nem andes com o colérico, para que não aprendas as suas
veredas, e tomes um laço para a tua alma.” (Pv. 22.24-25).
Orientação V. Preveja as oportunidades de conversa proveitosa e as tentações para
diálogos maus, pois é raro que estejamos totalmente preparados para acontecimentos repentinos
e inesperados. Considere quando seguir adiante, a companhia de quem está prestes a dividir, e
qual a utilidade daquilo a que está sendo chamado, ou a qual pecado é mais provável que seja
tentado. Acima de tudo, avalie as obrigações e tentações comuns evidenciadas em sua
companhia e conversas diárias.
Orientação VI. Por conseguinte (além dos preparativos gerais acima mencionados),
esteja pronto para estes deveres e tentações em particular: leve consigo também algumas defesas
especiais contra aqueles pecados específicos da língua que mais lhe ameaçam, bem como alguns
provimentos e apoios especiais para as funções da língua às quais possa ser convocado – como
um cirurgião carrega consigo os instrumentos e remédios que serão úteis para as pessoas das
quais cuidará. E como um viajante leva o kit de sobrevivência em suas viagens, uma vez que lhe
será indispensável. Se conversar com homens irados, esteja ainda munido de paciência e
decisões firmes para “dar lugar à ira” (Rm 12.19). Se dialogar com homens néscios e descrentes,
vá preparado com fundamentações poderosas e convincentes, para que se humilhem e mudem de
opinião. Se estiver rodeado dos astutos ou escarnecedores inimigos da santidade, vá dotado de
argumentos bem-assimilados, para contestar aquilo a que são mais propensos a se opor, de forma
que você seja capaz de envergonhar e calar a boca de tais adversários. Faça isso pela “espada do
Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef 6.17). À vista disso, esteja bem familiarizado com as
Escrituras e com textos claros para cada fim específico: por eles, “o homem de Deus é perfeito, e
perfeitamente instruído para toda a boa obra.” (2Tm 3.17).
Orientação VII. Ande continuamente na presença de Deus, e debaixo de seu governo e
lei, como os que estão seguindo o caminho para o juízo. Pergunte-se, seja lá o que disser:
1. Será que é adequado que Deus ouça?
2. Está de acordo com sua santa lei?
3. É o tipo de linguagem que se ouviria no dia do juízo?
Se for uma fala imprópria para um homem sério e respeitável ouvir, você a usará diante
de Deus? Falará de modo promíscuo, ou impuro, ou tolo, ou malicioso, quando Deus proíbe tal
coisa, e se ele está presente e ouve cada palavra, e você, sem dúvida, prestará contas de tudo a
ele?
Orientação VIII. Ore todas as manhãs para que Deus o livre dos pecados da língua a que
está sujeito a cometer naquele dia. Entregue a ele a tutela de sua língua, não só para se considerar
isento, mas também para implorar e confiar na graça dele. Ore como Davi: “Põe, ó Senhor, um
freio à minha boca; guarda a porta dos meus lábios. Não inclines o meu coração a coisas más, a
praticar obras más, com aqueles que praticam a iniquidade” (Sl 141.3-4); e “Sejam agradáveis as
palavras da minha boca e a meditação do meu coração perante a tua face, Senhor, Rocha minha e
Redentor meu!” (Sl 19.14).
Orientação IX. Que seu trabalho contínuo inclua vigiar a sua língua. O descuido e a
negligência não ajudarão a concluir uma obra de controle tão complicada. Tiago diz que domar e
controlar a língua são mais difíceis do que domar e controlar animais selvagens, pássaros e
serpentes. É como comandar um cavalo pelas rédeas, e um navio que é arrastado por ventos
impetuosos. A “língua é um mal que não se pode refrear. Se alguém não tropeça em palavra, o
tal é perfeito, e poderoso para também refrear todo o corpo.” (Tg 3.2,8). Portanto, faça disso seu
estudo e tarefa, e examine-a continuamente.
Orientação X. Convoque sua língua a prestar contas todos os dias, e questione-se
diariamente que maldade você falou, e que bem omitiu. Humilhe-se diante de Deus em confissão
arrependida pelo pecado que identificar, e renove sua decisão por uma vigilância mais rigorosa
no futuro. Se seu empregado falhar todos os dias e nunca ouvir falar a respeito do assunto, ele
não se sentirá culpado, e não fará a menor questão de se corrigir. Ou melhor, você é quem se
lembrará das falhas dele quando seu boi precisar ser corrigido com uma aguilhoada ou golpe ao
arar a terra, para que volte ao lugar certo; e seu cavalo precisar de correção com esporão ou vara
quando não se comportar. E você acha que, caso se permita falhar todos os dias, assim como a
sua língua, e nunca abordar a questão, ou chamá-los a prestar contas, algum dia eles vão querer
ser corrigidos, e não se tornarão descuidados e habituados ao pecado? Sua primeira precaução
deve ser evitar o pecado e cumprir a responsabilidade. Faça como Davi, em Salmos 39.1-3:
Eu disse: Guardarei os meus caminhos para não pecar com a minha língua; guardarei a
boca com um freio, enquanto o ímpio estiver diante de mim. Com o silêncio fiquei
mudo; calava-me mesmo acerca do bem, e a minha dor se agravou. Esquentou-se-me o
coração dentro de mim; enquanto eu meditava se acendeu um fogo; então falei com a
minha língua.

“E assim a minha língua falará da tua justiça e do teu louvor todo o dia.” (Sl 35.28). “A
minha língua falará da tua justiça todo o dia; pois estão confundidos e envergonhados aqueles
que procuram o meu mal.” (Sl 71.24). “A minha língua falará da tua palavra, pois todos os teus
mandamentos são justiça.” (Sl 119.172). “Seja a minha língua como a pena de um hábil
escritor.” (Sl 45.1).
No entanto, seu próximo cuidado deve ser arrepender-se das falhas que comete, julgar-se
por elas e mudar: lembrando que “não havendo ainda palavra alguma na minha língua, eis que
logo, ó Senhor, tudo conheces.” (Sl 139.4).
Orientação XI. Faça uso de um conselheiro ou crítico leal. Somos propensos, por causa
do costume e da parcialidade, a ignorar os erros de nossa própria língua. Um amigo é
extremamente útil neste ponto. Permita, portanto, que seu amigo supervisione-o nesta questão e
corrija o que ele lhe disser. E não seja tolo a ponto de se voltar contra um amigo por causa do seu
erro.
CAPÍTULO 3 | INSTRUÇÕES CONTRA JURAMENTOS
PROFANOS E CONTRA O USO DO NOME DE DEUS DE
MODO IRREVERENTE E VÃO

O QUE É UM JURAMENTO?

I. Jurar é a afirmação ou a negação de algo por apelo a alguma outra coisa ou pessoa –
como testemunha da verdade ou vingador da mentira – que não pode ser acatada como
testemunho ou juiz em tribunais humanos. Uma afirmação ou negação é a essência de um
juramento: o recurso especial é a forma. Não é qualquer apelo ou prova que constitui um
juramento. Apelar para certa testemunha como confiável e capaz de se apresentar em tribunal a
partir de uma testemunha parcial e inconcebível não é juramento. Partir do apelo a um juiz
incompetente, ou a um tribunal inferior, para um juiz competente, ou tribunal superior, não é
juramento. Dizer que tomo o rei por testemunha, ou que recorro ao rei, não é jurar pelo rei.
Contudo, afirmar que tomo Deus por testemunha, ou apelo a Deus como Juiz da verdade acerca
do que digo, é jurar por Deus. Por outro lado, recorrer a Deus como Justo Juiz contra a injustiça
ou crueldade dos homens, sem relação alguma com o seu julgamento ou juízo de qualquer
afirmação ou negação nossa, não é jurar por ele, porque falta a matéria de juramento. O
juramento é um apelo a algum poder sobrenatural ou superior mais terrível do que o do tribunal
ou da pessoa a quem juramos, no intuito de tornar o nosso testemunho mais crível quando faltam
outras evidências de certeza ou credibilidade. Sendo assim, um testemunho ou apelação legítima
não é juramento.

O QUE É UM JURAMENTO LEGÍTIMO?

Jurar pode ser tanto justo e lícito quanto pecaminoso e ofensivo. Para um juramento justo
e lícito, é necessário:
1. Que juremos somente por Deus, uma vez que não há qualquer testemunha e juiz
vingativo acima dos tribunais humanos a quem possamos apelar, a não ser a Deus. Por
consequência, jurar por qualquer criatura devidamente, e no sentido pelo qual juramos
por Deus, é idolatrá-la e atribuir-lhe as características de Deus.
2. Um juramento justo requer que a questão seja verdadeira, seja ela afirmativa ou
negativa. E ainda, se for promissória, a matéria deve ser:
a. Honesta e legal;
b. Possível: aquela em que faltar qualquer desses requisitos, é ilegal.
c. É indispensável que haja um objetivo honesto, por ser um componente essencial
em todo o bem e mal morais.
d. É necessário que esteja baseada em apelo suficiente e motivos honestos, e não à
toa ou sem razão justa.
e. A matéria e as circunstâncias devem ser lícitas.
A palavra juramento é uma expressão ambígua, por vezes tomada como aquilo que
significa oficialmente, como descrito antes; em outras ocasiões, confundida com aquilo que é
apenas a matéria e o modo de falar, sem qualquer intenção real de jurar. Ele também pode ser
considerado como toda ação humana na íntegra, incluindo os significantes das palavras e o
propósito conceitual, ou então somente pelo sinal visível ou pelas palavras isoladas. (Assim
como a palavra oração denota, em algumas situações, a forma simples das palavras e, em outras,
as palavras e a intenção que elas carregam. E a palavra sacramento, às vezes, também é
confundida com os sinais externos apenas; e em outras, com os sinais de compromisso mútuo e
condutas que representa). Aqui, pode-se questionar:
Pergunta. Se for juramento ou não o que as pessoas desinformadas e desatentas fazem
com frequência, empregando palavras ou exemplos de um juramento por mero costume, sem
saber o que ele significa, nem ter qualquer ideia ou propósito de apelar para Deus ou para a
criatura pela qual juram. A razão da dúvida é porque se trata apenas da questão ou da parte
aparente de um juramento; e é a forma que o especifica e denomina. Aquele que, por ignorância,
proferir as palavras de um juramento em latim ou grego, como não entende a língua e não tem tal
intenção, não jura.

ATÉ QUE PONTO A INTENÇÃO DE QUEM JURA (COMO A DE QUEM BATIZA OU


É BATIZADO) É NECESSÁRIA PARA A EXISTÊNCIA DE UM JURAMENTO?

Resposta. 1. No sentido pleno e correto da palavra, não há juramento diante de Deus se


não houver intenção de confirmar o discurso por meio de um apelo a Deus ou àquilo por que se
jura. Assim como uma lavagem absurda, e o uso das palavras do batismo não é o verdadeiro
batismo, e do mesmo modo que um cadáver não é um homem. (Neste sentido, o que os papistas
dizem é verdade: a intenção de quem batiza é primordial para a existência do batismo; isto é,
para a natureza da ministração sacramental, é importante que a própria pessoa que batiza
pretenda, diante de Deus, batizar realmente. E se requer, para a essência do batismo de alguém
diante de Deus, que o próprio – se for maior de idade –, ou aqueles que têm autoridade para
consagrá-lo a Deus, se for uma criança, desejem isso de verdade. Também é fundamental à
existência da ordenança externa, perante a Igreja, que tanto quem batiza quanto aquele que é
batizado professem ou demonstrem pretender fazê-lo).
Resposta 2. Se alguém, contudo, usar de palavras que caracterizam um juramento
comum, numa linguagem que compreenda, de modo que os ouvintes possam crer com
propriedade que a pessoa entende o que está fazendo, é um juramento – diante dos homens, e no
sentido último e mais restrito da palavra. E será exigível e contestável contra ela, em qualquer
tribunal de justiça, por aqueles por intermédio de quem jurou. Sim, e o próprio Deus também
considera que ela está sujeita aos homens: e se for um juramento profano e sem motivo, os
homens podem chamá-lo de blasfêmia, pois não veem o coração. Tal como se deve levar para ser
batizado quem professa ter essa intenção, e in foro humano, de fato é assim: o próprio Deus
considerará um pecador até mesmo quem usa o modelo aparente de um juramento, e algo que é
um juramento diante dos homens, para desonra de seu nome e honra e escândalo de outros. E a
pessoa não poderá dar a desculpa de não saber que era um juramento; ou de não conhecer a sua
natureza; ou de usá-lo precipitadamente, sem levar em conta que era um juramento. Existe a
obrigação de conhecer e de refletir: é um dever fazê-lo, e poderia ter feito, se o quisesse.
Todavia, se forem palavras em cujas formas ou expressões não seja possível identificar um
juramento, e os ouvintes notarem que ela não quis dizer aquilo, mas outra coisa, então ela é
desculpável, se teve motivo honesto para usá-las.

ATÉ QUE PONTO JURAR PELAS CRIATURAS É PECADO?

No que diz respeito a jurar pelas criaturas, até que ponto é pecado? É exatamente o
mesmo caso de adorar imagens, ou de usá-las para essa finalidade. Aquele que adora uma
imagem ou qualquer criatura como Deus, e cuja adoração se encerra basicamente nela, comete
idolatria direta e total, o que é um pecado muito maior, uma vez que o objeto que se idolatra é
mais ignóbil. Se fizer, porém, da imagem ou criatura meramente um meio de prestar culto a Deus
– a quem a adoração se restringe na essência e deve ser prestada sem intermediários – logo não é
idolatria grosseira, embora seja uma adoração falsa e proibida ao Deus verdadeiro. Se a criatura,
contudo, for utilizada tão-somente como instrumento por meio do qual a adoração fosse
oferecida a Deus, então seria lícito tanto usá-la quanto adorá-la (para honrar e reverenciar a Deus
como se manifesta em suas obras; para dar honra a nossos pais e governantes como ministros do
Senhor, o que, no fim das contas, culmina em Deus).[1] O mesmo acontece com o juramento,
visto que faz parte do culto a Deus. Aquele que jura por qualquer criatura como um deus, ou
como o vingador dos que escapam falsamente do julgamento humano, comete idolatria. Foi o
que Juliano fez ao jurar pelo Sol (a quem reverenciava com suas orações e adorava como Deus).
No entanto, quem jura dessa maneira por uma criatura, a ponto de, em última instância, esperar
que Deus lhe sirva de testemunha e vingador – ainda mais quando a criatura for nomeada, ou
então identificada como tendo aparência de idolatria –, acaba por afastar a mente de Deus, ou por
ofuscar escandalosamente a sua honra; ou, de qualquer outra forma proibida, por jurar pelo Deus
verdadeiro intencionalmente, mas de um jeito pecaminoso.
Todavia, aquele que jura francamente por Deus (por um apelo legítimo) e pela criatura
(ou, antes, menciona a criatura), mas em subordinação justa, clara e inofensiva a Deus, é
desculpável. Por isso costumamos pôr as mãos sobre a Bíblia e então jurar: “Que Deus me ajude,
e também o conteúdo deste livro”. Assim, em ocasiões importantes, muitos homens justos, a fim
de ilibarem a si próprios de alguma calúnia, disseram em seus escritos: “Convoco Deus, os anjos
e os homens por testemunhas”. Vários deles, ao citarem as criaturas, antes esperam uma
maldição do que um juramento da parte delas. Por exemplo: Se não for assim, que Deus me
destrua com este fogo, ou com esta água etc.
Pergunta: É lícito colocar as mãos sobre a Bíblia e beijá-la em juramento, como se faz na
Inglaterra?
Resposta: Prestar juramento como estabelecido na Inglaterra, colocando as mãos sobre a
Bíblia e beijando-a, não é ilícito.
Evidência. 1. Aquilo que não é proibido por Deus é lícito (perante ele). Portanto, fazer
um juramento não é condenado por Deus. O menor deles será suficientemente provado ao refutar
todas as intenções de proibição. O maior não precisará de provas.
Evidência 2. Se for proibido, também o será: a. Uma ação de adoração não ordenada,
logo, adoração voluntária; b. Ou uma cerimônia significativa de adoração não ordenada; c. Ou
uma solenidade não ordenada que encerra em si mesma alguma questão ou modelo proibido. Se,
porém, não há impeditivo em nenhum desses aspectos, por conseguinte, não há em nenhum
outro.
a. Uma ação não ordenada na adoração. Na medida em que a consequência se aplica a
tudo, todos os ritos de adoração não ordenados seriam ilegais, portanto, o que é falso.
● As solenidades usadas no juramento (Gn 24.2; 14.22; Ap 10.5) não foram ordenadas e,
mesmo assim, foram lícitas (assunto do qual trataremos mais a frente).
● Deus não ordenou em qual melodia se deve cantar um salmo; em quais capítulos e
versículos dividir a Bíblia; se a Palavra deveria ser usada escrita à mão ou impressa;
quais palavras, método, texto particular escolher; que versão utilizar, e várias outras
coisas semelhantes.
b. Uma cerimônia significativa não ordenada, uma vez que, então, tudo isso deveria ser
proibido, o que não é verdade. 1. O juramento de Abraão ao erguer a mão (e também dos anjos,
em Ap 10); e o do servo de Abraão, ao colocar a mão sob a coxa, foram cerimônias notórias. E
quem afirmar que foram ordenadas deve provar isso. Nós podemos muito bem imaginar o
contrário:
● Já que nenhuma lei semelhante é informada na Escritura, e aqui não aparecer e não ser
dão no mesmo, por causa da perfeição das leis de Deus.
● Porque é mencionado como algum rito costumeiro, como Pareus e outros comentaristas
observam; portanto, não depende de qualquer preceito especial, restrito a Abraão como
profeta, pois não é citado somente um, e sim vários tipos de ritos de juramento erguendo
a mão e colocando-a debaixo da coxa.
3. Quase todos os cristãos realizam alguma cerimônia significativa não ordenada a qual
juram ser legítima. As notas inglesas informam que os costumes dos países são muito variados
neste ponto, mas que a maioria concorda em acrescentar alguma evidência externa às palavras,
por ato ou gesto, ao fazer um juramento, a fim de que seja mais reconhecido e bem lembrado do
que meras palavras de afirmação, promessa ou imprecação. E Josefo (citado por Grotius) nos diz
que, naquela época, era costume entre os judeus jurar recorrendo a essa cerimônia de pôr a mão
sob a coxa (fosse como sinal de sujeição; ou porque era o lugar da espada, o instrumento de
vingança, segundo Grotius e outros; ou na expectativa da descendência prometida, como
pensavam os patriarcas). E o caso da súplica de Abraão mostra isso (Gn 14.24).
4. Uma ação de nenhuma outra parte do corpo é mais censurada por manifestar a mente
do que a língua. Deus nunca disse que você não deve, de forma alguma, expressar sua mente em
assuntos sagrados ou civis, senão pela língua. Uma alteração na expressão do rosto pode
expressá-la; uma cara fechada ou um olhar agradável. O semblante é o indicador da alma. Paulo
levantou a mão para os judeus quando falou por si mesmo. Cristo agiu como se pretendesse ir
mais longe (cf. Lc 24.28). As palavras não são sinais naturais, mas inventados e arbitrários nos
detalhes, embora o poder de expressar palavras criadas e aprendidas assim seja natural. Se for
lícito usar palavras significativas e não ordenadas no culto, é lícito valer-se de atos relevantes
(sob a devida regulação). Portanto, todas as igrejas primitivas utilizaram muitos desses recursos,
e jamais li acerca de um único opositor. Levantar-se durante o credo é uma expressão substancial
de consentimento da qual todas as outras igrejas nunca tiveram escrúpulos. Não só elas, como
também não conformistas antigos e os atuais, até onde sei. Sentar-se, ficar de pé ou ajoelhar-se
enquanto canta os salmos fica a critério de cada um. Tirar o chapéu é uma formalidade ou atitude
séria no culto, não uma ordenança, nem é usada hoje com a mesma relevância de antigamente. E
onde cobrir a cabeça significa reverência, é melhor não deixá-la à mostra. Por essa razão, a
prática no serviço a Deus deve ser adequada: em um país, costuma ser sinal de reverência o ficar
de pé; em outro, sentar-se e curvar a cabeça; em outro, ajoelhar-se; em outro, prostrar-se. Quando
as alianças entre Deus e o povo são renovadas, a concordância pode ser expressa de modo
legítimo, quer colocando-se em pé, quer levantando a mão (por meio do que se costumava
aprovar as coisas sagradas), por subscrição ou por voz, pois Deus nos ordenou a manifestar
consentimento, reverência etc., contudo deixou livres a palavra, o gesto ou o sinal de expressão.
Quem afirma que Deus não permite nenhum outro alcance da mente para as coisas sagradas por
livre vontade, mas nos deixou presos somente às palavras, deve provar o que diz (e terá de fazê-
lo contrariando as Escrituras, a natureza e todo o discernimento e costume de todas as igrejas de
Cristo e do mundo).

DE QUE MANEIRA O NOME DE DEUS É TOMADO EM VÃO?

III. Quanto ao caso de tomar o nome de Deus em vão, o que, para ser breve, associei ao
juramento, isso acontece: 1. Da forma mais grosseira e hedionda; 2. Ou de um jeito pior.
1. A forma mais grosseira de tomar o nome de Deus em vão é por perjúrio; ou por
recorrer a ele para testemunhar uma mentira. Entre os judeus, vaidade e mentira eram palavras
quase sempre consideradas sinônimas.
2. A prática mais vil de tomar o nome de Deus em vão, contudo, é usá-lo levianamente,
sem reverência, com desprezo, em tom de brincadeira, ou sem motivo justo. Nisso também há
profanação e um pecado enorme, agravado de acordo com o grau de desprezo ou injúria. Numa
conversa banal, é um pecado imenso usá-lo desrespeitosamente, como um adágio: Ó, Senhor; ou
Ó, Deus; ou Ó, Jesus; ou Deus nos ajude; ou Senhor, tenha piedade de nós; ou Deus, envie isto
ou aquilo; ou, de qualquer modo, tomar o nome de Deus em vão. Todavia, usá-lo em zombarias
e desprezo contra a religião, ou fazer cartilhas ou peças teatrais com tais zombarias profanas e
desdenhosas, é uma das maiores vilanias de que a língua do homem pode ser acusada contra seu
criador (tratarei disso mais adiante).
Orientação I. Para evitar toda essa profanação de jurar e tomar o nome de Deus em vão,
a primeira diretriz geral deve ser a seguinte: observar quão grande evidência este pecado é de
uma alma perdida, ímpia e miserável. Por ser considerado um pecado comum ou frequente,
portanto, não há qualquer princípio eficaz no coração que se lhe oponha. À vista disso, tem a
primazia na vontade; e, deste modo, não se arrepende (no que diz respeito a qualquer
arrependimento salvador e restaurador): se tivesse alguma virtude genuína, esta lhe ensinaria a
temer e honrar mais a Deus. Menosprezar a Deus é incompatível com a santidade, caso esta
esteja em nível predominante, uma vez que são atitudes diretamente opostas.
Orientação II. Torne seu coração prevenido contra o mal intrínseco a seu pecado. Você
não cometeria um pecado com tanta facilidade e tão à vontade se não o considerasse
insignificante. Para que tenha consciência disso, considere os agravantes a seguir:
1. Medite em quem é esse Deus a quem você ofende. Não é ele o grande e temível
soberano que criou, sustenta e ordena o mundo segundo a sua vontade? O comandante e juiz de
toda a terra, infinitamente superior ao sol em glória? O Deus santíssimo, que deve ser
mencionado em santidade? E você fará de seu temível nome um provérbio, que passa de boca em
boca? Jurará por este santo nome impiamente? Tomará o nome de seu Deus como dificilmente
faria com o nome de seu pai, ou de seu rei? Vai dispará-lo com irreverência e desprezo, como se
faz com uma bola de futebol? Não sabe mais a diferença entre Deus e o homem? Conheça ao
Senhor, e em breve tremerá diante de seu nome, em vez de insultá-lo por falta de reverência.
2. Avalie quem é você, que se atreve a profanar o santo nome de Deus. Não é você
criatura e súdito dele, sujeito a honrá-lo? Não é um verme, incapaz de resisti-lo? Ele não pode
enterrá-lo no inferno, ou arruinar e se vingar de você com uma palavra, ou menos que isso? Ele
não precisa dizer nada além de “Que seja assim” para executar vingança sobre o maior dos seus
inimigos. Se ele o desejar, assim será feito. Logo, você é uma pessoa apropriada para desprezar
esse Deus e ofender o seu nome? Não é uma complacência maravilhosa da parte dele permitir
que vermes como nós orem, louvem e adorem a ele, e que aceite isso de nossas mãos? Mesmo
assim, você se atreve a insultá-lo e a menosprezá-lo? Por várias vezes tenho ouvido as mesmas
línguas ímpias reprovarem as orações dos santos, como se eles fossem ousados e íntimos demais
de Deus; e pleitearem contra a oração longa ou constante, pois o homem não deve ser tão
audacioso com Deus; e convencerem outros de que Deus não as aceita, e que essas mesmas
orações também ousam jurar pelo nome do Senhor sem constrangimento, e fazem isso sem
cerimônia, em conversas corriqueiras. De fato, os servos de Deus devem estar atentos à ousadia
rude e irreverente, mesmo na oração. Quanto mais, então, deve-se condenar a ousadia de
profanar o santo nome de Deus? Eles devem cuidar da forma como usam o nome do Senhor em
oração e louvor, e você se arrisca a fazer mau uso dele com juramentos, maldições e
conversações vãs?
3. De vez em quando você não ora por esse nome pelo qual jura profanamente? Caso
contrário, parece que renunciou totalmente a Deus, e de fato é um miserável infeliz. Contudo, se
é isso que acontece, que hipócrita você se revela em todas as suas orações, pois se compromete a
reverenciar o mesmo nome de Deus, o qual é capaz de proferir sem reverência, e jurar e
amaldiçoar por ele quando está de joelhos. Faz parte do caráter hipócrita de um homem que ele
se curve ao nome de Jesus, e jure pelo nome de Deus, e ore a Deus na igreja, de quem ele se
esquece ou por quem jura pelo resto da semana. A consciência não lhe aflige por essa hipocrisia,
quando reflete nesse insulto a Deus em suas orações?
4. Medite, homem, na sua angústia, que utilidade terá esse santo nome, que ora você
ofende? Quando a doença e a morte chegarem, então clamarás: “Senhor, Senhor!”. Assim o
nome de Deus será invocado com mais reverência. E você se atreve a fazer dele uma bola de
futebol hoje? Logo, não tem medo de que seja o seu pavor lembrar, no leito de morte, quando
estiver invocando a Deus: “Ah, este é o nome pelo qual eu costumava jurar, ou tomar em vão”?
5. Lembre-se de que milhões de anjos gloriosos enaltecem esse poderoso e santo nome
que você profana e toma em vão. E o fato de que alguns deles não se tornem os executores da
vingança de Deus contra você não o admira? E que a terra não se abra e o engula? Deveria um
verme na terra lançar ao ar, ou jurar profanamente por esse nome, a quem uma legião de anjos
gloriosos engrandece?
6. Suponha que você é mais ímpio do que aqueles que profanam coisas santificadas e
consagradas a Deus. Será que Belsazar foi castigado com a perda do reino e da vida por utilizar
os utensílios do santuário em sua farra?[6] Você consideraria um profano aquele que fizesse da
igreja um estábulo e alimentasse seus porcos com o cálice da comunhão? E não entende que o
nome de Deus tem um nível mais elevado de santidade do que qualquer lugar ou utensílios de
adoração a ele? E, por conta disso, violar o seu nome é profanação maior do que violar qualquer
um deles? A sua língua não o condena de hipocrisia, então, quando você clama em alta voz
contra qualquer pessoa que profana a igreja, ou a pia batismal, ou o cálice da comunhão, ou a
mesa, e, no entanto, você mesmo profana normalmente o santíssimo nome de Deus, e faz uso
dele como um nome comum?
7. Considere quão indignamente você retribui a Deus por ter lhe dado a língua e a
linguagem. Ele lhe concedeu essa nobre capacidade para honrá-lo. E o seu agradecimento é este,
usá-las para desonrá-lo, jurando e tomando o nome dele em vão?
8. Seu sussurro contagioso corrompe os outros. Você costuma fazer com que Deus seja
levado à desonra comum entre suas próprias criaturas, quando ouvem pronunciar seu nome com
desprezo?
9. Esqueceu-se de quão terno e zeloso Deus se mostrou, da honra de seu santo nome; e
de que profetizou terríveis ameaças contra seus profanadores, e de quais julgamentos exerceu
sobre eles? “Nem jurareis falso pelo meu nome, pois profanarás o nome do teu Deus. Eu sou o
Senhor.” (Lv 19.12). Veja também Levítico 18.21. E, em Levítico 21.6, é dito dos sacerdotes:
“Santos serão a seu Deus, e não profanarão o nome do seu Deus”. Do mesmo modo:

Por isso guardareis os meus mandamentos, e os cumprireis. Eu sou o Senhor. E não


profanareis o meu santo nome, para que eu seja santificado no meio dos filhos de
Israel. Eu sou o Senhor que vos santifico.
Levítico 22.31-32

Se não tiveres cuidado de guardar todas as palavras desta lei, que estão escritas neste
livro, para temeres este nome glorioso e temível, o Senhor teu Deus, então o Senhor
fará espantosas as tuas pragas, e as pragas de tua descendência, grandes e permanentes
pragas, e enfermidades malignas e duradouras.
Deuteronômio 28.58-59

Adorar a Deus e confiar nele é chamado de “andar em seu nome” e “invocar o seu
nome”. Veja Miqueias 4.5; Salmos 99.6. O lugar de sua adoração pública é chamado “o lugar,
onde eu fizer celebrar a memória do meu nome” (Êx 20.24; Dt 12.5, 11, 21). “[Eles] santificarão
o meu nome; sim, santificarão ao Santo de Jacó, e temerão ao Deus de Israel.” (Is 29.23). “Por
amor de mim, por amor de mim o farei, porque, como seria profanado o meu nome? E a minha
glória não a darei a outrem.” (Is 48.11). Deus falou a Moisés, e Moisés a Arão quando seus filhos
foram assassinados: “Serei santificado naqueles que se chegarem a mim, e serei glorificado
diante de todo o povo.” (Lv 10.3). E também em Levítico 24.10-14, um homem que blasfemou e
amaldiçoou, ao lutar com outro, foi apedrejado até a morte. E é bem terrível o que Deus diz no
terceiro mandamento: “O Senhor não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão”
[Êx 20.7].
10. Você não costuma fazer a oração do Pai Nosso, que diz: “Santificado seja o teu
nome” (Mt 6.9; Lc 11.2), e, ainda assim, profanará o nome que ora para que seja santificado?
Jurar e pronunciar esse nome sem reverência e em vão em suas conversas banais é santificá-lo?
Ou Deus suportará tamanha hipocrisia, ou levará em conta orações hipócritas como essas?
11. O hábito frequente de fazer juramentos é uma acusação injusta aos ouvintes, como se
fossem tão descrentes a ponto de não confiarem em alguém sem juramentos, e tão ímpios, a
ponto de se deleitarem na profanação do nome de Deus. Isso é motivo de consternação para todo
ouvinte honesto.
12. Você está acusando a si mesmo como alguém suspeito de mentir, de quem não se
pode acreditar, pois entre pessoas honestas, uma palavra é digna de crédito sem a necessidade de
juramentos. Portanto, se você fosse considerado uma pessoa honesta, sua palavra pura seria
acreditada. E ao fazer juramentos, você está dizendo a todos que o ouvem que supõe que sua
palavra não é digna de confiança. Por que, então, você precisaria revelar isso tão abertamente aos
outros, se assim fosse?
13. E ao jurar, revela que a suspeita é verdadeira e que, de fato, não se deve acreditar em
você. Desse jeito, está longe demais de tornar suas palavras mais dignas de confiança, pois quem
tem tão pouco escrúpulo e temor a Deus a ponto de jurar profanamente, é difícil que seja
considerada uma pessoa que tenha qualquer senso de uma mentira. O mesmo Deus se ofende
tanto por uma coisa quanto por outra. A pessoa que vive jurando justifica a suspeita de que ela
seja uma mentirosa.
14. Tanto jurar quanto tomar o nome de Deus em vão são dos pecados mais graves,
porque não existe uma tentação mais forte para eles. Geralmente eles não trazem honra, mas
vergonha; não produzem prazer sensual aos sentidos, como a gula, a embriaguez e a impureza; e
quase sempre são cometidos sem benefício algum que atraia os homens para eles. Não se ganha
um centavo sequer com o pecado, motivo pelo qual é complicado descobrir o que nos atrai, ou
por que o cometemos, a menos que seja para mostrar a Deus que não o tememos, ou que
pretendemos desafiá-lo, ou fazer o que achamos que o ofenderá, por mero despeito. De sorte que
se poderia achar que uma graça ínfima serviria para curar um pecado tão improdutivo. Por essa
razão, é um sinal de ingratidão.
15. Quão terrivelmente você atrai a vingança de Deus sobre si mesmo! Amaldiçoar a si
próprio é um pedido de vingança; jurar profanamente é um apelo ímpio e desprezível para o
julgamento de Deus. E você se atreve, mesmo em seus pecados, a apelar para o juízo do eterno?
Não tem mais temor? Então, este julgamento você terá! Contudo, logo lhe será suficiente, e
descobrirá o que significa a palha apelar para o “fogo consumidor.” (Hb 12.29).
Orientação III. Lembre-se da presença de Deus e mantenha o temor no coração, e
lembre-se do julgamento do eterno para o qual você se apressa, e conserve uma consciência terna
e vigilância sobre a sua língua, e assim escapará com facilidade de um pecado como esse. Ousa
injuriar o nome de Deus perante a sua face?
Orientação IV. Escreva o terceiro mandamento, ou alguma daquelas passagens
tremendas das Sagradas Escrituras sobre suas portas ou cama, onde possa lê-los com frequência.

Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de
Deus; nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a
cidade do grande Rei; nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo
branco ou preto. Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa
disto é de procedência maligna.
Mateus 5.34-37

Mas, sobretudo, meus irmãos, não jureis, nem pelo céu, nem pela terra, nem façais
qualquer outro juramento; mas que a vossa palavra seja sim, sim, e não, não; para que
não caiais em condenação (ou hipocrisia, como o Dr. Hammond acha que deve ser
interpretado).
Tiago 5.12

“Como também qualquer que jurar falsamente será desarraigado.” (Zc 5.3). “Porque a
terra está cheia de adúlteros, e a terra chora por causa da maldição.” (Jr 23.10). “Só permanecem
o perjurar, o mentir, o matar, o furtar e o adulterar; fazem violência, um ato sanguinário segue
imediatamente a outro.” (Os 4.2). Medite bem em textos como esses.
Orientação V. Ame a Deus e honre-o como Deus, e não conseguirá desprezar e insultar o
nome dele. Você reverenciará e honrará o nome da pessoa a quem ama, reverencia e honra. O
ateísmo e a falta de amor a Deus são as razões que o fazem profanar tanto o nome do Senhor.
Orientação VI. Discipline-se após cada transgressão com alguma pena voluntária ou
castigo que possa ajudá-lo a despertar sua reflexão e memória. Se ninguém aplicar a lei sobre
você, imponha mais sobre si mesmo e dê aos pobres. Embora não seja obrigado a fazer justiça a
si mesmo, é possível ajudar medicinalmente a curar-se por intermédio de alguém que tenha
aptidão sensata para isso.
CAPÍTULO 4 | ORIENTAÇÕES CONTRA A MENTIRA E O
FINGIMENTO

O QUE É A VERDADE?

Para compreender o que é a mentira, devemos, em primeiro lugar, entender o que é a


verdade e qual é a utilidade da fala. A verdade tem sua importância em três dimensões:
1. Na forma como se encontra nas coisas conhecidas e das quais falamos.
2. No modo como existe no conceito ou entendimento da mente.
3. Na maneira como se expressa pela língua.
1. A verdade nas coisas conhecidas se resume simplesmente em sua realidade; ou seja,
que elas são exatamente o que seus nomes sugerem, ou o que a mente apreende que sejam. Isso é
conhecido como verdade física e metafísica.
2. A verdade no conceito ou conhecimento da mente nada mais é do que a concordância
ou conformidade do conhecimento com a coisa conhecida; concebê-la verdadeiramente significa
concebê-la como ela é. O erro ou equívoco está em oposição a essa verdade.
3. A verdade, tal como se manifesta nas expressões, possui uma relação dupla.
a. A relação primária é entre nossas palavras ou escritos e o conteúdo expresso. Assim,
a verdade na fala é, em essência, a correspondência de nossas palavras com as coisas
mencionadas, quando as descrevemos como elas são.
b. A relação secundária de nossas palavras é com a mente do falante, uma vez que o uso
natural da língua é expressar tanto o pensamento quanto o conteúdo.
Portanto, a verdade na fala é a concordância de nossas palavras com nossos pensamentos
ou julgamentos. A verdade, quando considerada como a concordância de pensamentos ou
palavras com a matéria, pode ser chamada de verdade lógica. Isso constitui o elemento comum
da verdade moral ou ética e pode ser encontrado em certa medida em objetos como um relógio,
um barômetro, um cata-vento ou um mapa de um marinheiro. A concordância de nossas palavras
com nossas mentes é a matéria mais específica da verdade moral, e sua forma como virtude
moral reside em sua conformidade com a lei do Deus da verdade.
Assim como o fim desempenha um papel na definição das relações, nossas palavras têm
relação com a mente do ouvinte ou leitor como seu fim apropriado. O propósito delas é informá-
lo devidamente: a) sobre o conteúdo expresso e b) sobre nossas concepções a respeito desse
conteúdo. Portanto, a verdade lógica da fala exige que ela tenha a capacidade de informar
corretamente o ouvinte, e a verdade ética exige que o falante realmente pretenda informá-lo e
não enganá-lo, pressupondo que estamos falando com outra pessoa.
Consequentemente, para que a verdade moral esteja completa, todos esses elementos são
essenciais:

1. A correspondência das palavras com o conteúdo expresso (na medida em que


somos obrigados a conhecê-lo).
2. A concordância das palavras com a mente ou julgamento do falante.
3. A habilidade das expressões para informar adequadamente o ouvinte sobre
ambas as verdades anteriores.
4. A intenção sincera do falante de informar o ouvinte sobre a verdade, na medida
em que a expressamos.
5. A conformidade com a lei de Deus, que é a norma do dever e o revelador do
pecado.
Em alguns discursos, a verdade de nossas palavras coincidirem com o assunto e com a
mente dá no mesmo, ou seja: o nosso conceito ou julgamento de um assunto é tudo o que
afirmamos, como quando dizemos eu penso, ou eu creio, ou eu julgo que tal coisa é assim. Neste
ponto, não há a mínima necessidade de que a questão seja exatamente da forma como imagino
que ela seja para autenticidade de minhas palavras (pois afirmo que não é assim), mas que de
fato penso como afirmo que penso. Contudo, que nossas palavras e mentes estejam de acordo é
sempre e indissociavelmente primordial a toda verdade moral.

ATÉ QUE PONTO SOMOS OBRIGADOS A FALAR A VERDADE?

Não somos obrigados a revelar toda a verdade (porque, nesse caso, ninguém guardaria
um segredo), muito menos a qualquer homem que nos questionar. Portanto, não somos obrigados
a nos esforçar para remediar o erro ou a ignorância de cada homem em todos os assuntos, uma
vez que não temos a obrigação de falar coisa alguma para quem quer que seja. E se não sou
forçado a anunciar verdade alguma, ou sequer a minha mente, não sou obrigado a tornar
conhecida toda a verdade, ou tudo o que se passa na minha mente – não, nem a todos aqueles a
quem devo dar a conhecer parte de ambos. Se nos depararmos com alguém em ignorância ou
erro que não estamos obrigados a corrigir (e, às vezes, seria até um pecado fazê-lo, como revelar
segredos dos conselhos ou exércitos do rei a seus inimigos etc.), devemos ajustar nossa fala a
essa pessoa, mesmo em relação a esses assuntos, de modo a não lhe revelar o que não deveria
saber, nem sobre o assunto nem sobre nossa mente. Podemos optar por permanecer em silêncio,
falar de forma obscura ou usar palavras que a pessoa não compreenderá (devido a sua própria
limitação) ou que sabemos que sua incapacidade de entendimento distorcerá. Contudo, não
devemos contar mentiras. Há também uma grande diferença entre falar sem remediar a
ignorância ou o erro do ouvinte em que o encontramos e falar de forma a levá-lo a algum novo
erro. Podemos agir da primeira maneira em muitos casos, nos quais não podemos agir da
segunda. Além disso, há uma grande diferença entre falar palavras que, no uso comum das
pessoas, costumam informar os ouvintes da verdade, embora saibamos que, devido a alguma
fraqueza deles, eles as entenderão mal e se enganarão, e falar palavras que, no uso comum das
pessoas, têm significados diferentes dos quais as usamos. Na primeira maneira, por vezes o
ouvinte é o enganador de si mesmo, e não o falante, uma vez que o falante não é obrigado a lhe
revelar mais nada. No entanto, neste último caso, o orador é o enganador. Além disso, é
fundamental distinguir entre falar com alguém a quem é nosso dever revelar a verdade e falar
com alguém a quem não estamos obrigados a revelá-la, especialmente se nosso dever para com
Deus, nosso rei ou nosso país nos obriga a mantê-la em sigilo. Com base nesses princípios e
distinções, é possível compreender o que constitui uma mentira e esclarecer as dúvidas comuns
que surgem quanto à veracidade ou falsidade de nosso discurso. Por exemplo:
Questão I. Sou obrigado a falar a verdade a cada pessoa que me questionar?
Resposta. Você não está obrigado, de forma alguma, a falar a todos que lhe perguntarem,
em todas as ocasiões; e aquele que se cala não revela a verdade.
Questão II. Sou obrigado a falar a verdade a todos a quem respondo?
Resposta. Às vezes, sua resposta pode ser uma negação de resposta ou recusa em revelar
o que lhe é pedido.
Questão III. Sou obrigado a falar toda a verdade sempre que declaro parte dela?
Resposta. Não, a palavra de Deus é que lhe dirá quando e quanto você deve revelar aos
outros. E se for até onde Deus lhe permitir, não significa, portanto, que deva ir mais longe. Um
soldado capturado pelo inimigo deve dizer a verdade quando for questionado sobre coisas que
não prejudicarão o seu rei e o seu país; porém, deve ocultar todo o restante que possa beneficiar
o inimigo contra eles.
Questão IV. Sempre é pecado falar uma mentira óbvia, ou seja, falar de forma que não
condiz com aquilo que estou comunicando?
Resposta. Nem sempre: às vezes, é possível acreditar em uma inverdade sem pecar, uma
vez que acreditamos nas coisas de acordo com a evidência e aparência delas. Desse modo, se o
engano for inevitavelmente causado por falsa aparência ou prova, sem qualquer culpa de sua
parte, logo estar confuso não será culpa sua. Entretanto, suas afirmações não devem demonstrar
uma certeza além da que você possui, nem mais confiança do que a evidência possa garantir.
Quando disser tal coisa é assim, o significado deve ser somente estou convencido de que é assim,
pois se você disser tenho certeza de que é assim quando não tiver certeza, cometerá afronta.
Questão V. Sempre é pecado falar falsamente ou de forma incompatível com o assunto
quando sei que é falso? Ou seja, é sempre transgressão falar de maneira contrária ao meu
julgamento ou consciência?
Resposta. Sim, pois Deus proibiu tal coisa por razões importantes e graves, como ouvirá
em breve.
Questão VI. É pecado quando não conto uma mentira de que tenho ciência, mesmo que
não contrarie a minha opinião, e nem tenha o propósito de enganar?
Resposta. Sim, e é pecado também quando não nada disso ocorre. É seu dever saber o
que fala e ponderar antes de falar; e sua obrigação estar familiarizado com a verdade ou a
falsidade que você desconhece; e seu dever tomar o cuidado de não enganar outra pessoa
negligentemente. Ora, se ainda assim, negligencia todos esses deveres e, por ignorância e
negligência culpáveis, engana a si mesmo e aos outros, então é um pecado, bem como se você os
ilude conscientemente.
Questão VII. Embora seja um pecado, permanece incerto se é uma mentira?
Resposta. Isso não passa de disputa de nomes, uma controvérsia acerca do nome, e não
da matéria. Desde que concordemos que é um pecado contra Deus e que deve ser evitado, não
importa se chama isso de mentira ou de outro nome. Acho, porém, que deva ser chamado de
mentira: mesmo sabendo que a maioria das definições segue Cícero[7] e afirma que uma mentira é
uma falsidade contada com o propósito de enganar. Contudo, penso que, quando a vontade é
culpavelmente negligente em não enganar, uma inverdade dita de forma negligente merece o
nome de mentira.
Questão VIII. Para livrar minhas palavras da falsidade, elas devem ser sempre
verdadeiras no sentido característico e literal?
Resposta. Não. Neste caso, a determinação de Agostinho[8] é a verdade clara, o que é dito
figuradamente não é mentira (isto é, por esse nome). Falar com ironia, metonímia, metáfora etc.,
não é, portanto, mentir, pois a verdade das palavras reside na capacidade de expressar o objeto e
a ideia, que estão adequadas à compreensão dos ouvintes. São palavras verdadeiras que os
expressam, seja própria ou figuradamente – no entanto, se as palavras forem usadas
figurativamente, em contradição com os ouvintes e o bom senso deles, com o propósito de
enganar, então são uma mentira, a despeito de você usar um símbolo como pretexto para
comprová-las.
Questão IX. Devo empregar minhas palavras de acordo com o senso comum, ou com a
concepção do ouvinte?
Resposta. Sem dúvida, na medida em que pretende informar o ouvinte, você deve falar-
lhe no sentido específico dele. Se ele considera alguma palavra com um significado peculiar,
diferente do senso comum, e você sabe disso, fale no sentido particular dele. Se, todavia, for uma
situação em que você é obrigado a esconder dele, a questão é muito mais complicada. Alguns
acreditam que é mentira e pecado se comunicar com alguém usando termos que você sabe que
ele usará para o seu próprio engano. Outros acreditam que você não é obrigado a se adaptar à
fraqueza do outro e usar uma linguagem contrária ao senso comum, e que não é culpa sua se ele
a interpreta de forma errônea, mesmo que você preveja que não será benéfico que ele a
compreenda, e que você não está obrigado a fazer com que ele a compreenda, mas o contrário. O
próximo item abordará essa questão.
Questão X. É lícito, por meio da fala, enganar outrem, sim, e tê-lo como intenção, desde
que seja feito pela verdade?
Resposta. Não é pecado, em todas as ocasiões, contribuir para o erro ou engano de outro
homem, pois:
1. Existem muitas situações em que não é pecaminoso que alguém cometa um erro, e
esse erro não lhe causa nenhum dano. Portanto, contribuir para algo que não seja
pecaminoso ou prejudicial por si só não é um pecado. Além disso, existem casos em que
um erro, embora não seja pecado em si, pode ser considerado um dever, como pensar
com caridade e benevolência a respeito de um hipócrita, desde que ele pareça sincero.
Nesse caso, contribuir para o erro dele por meio de relatos benevolentes parece ser um
dever, uma vez que tanto ele quanto eu somos obrigados a acreditar no melhor enquanto
for provável.
2. Em muitas situações, a ignorância ou o erro de alguém pode ser altamente benéfico
para ele, e sua vida ou propriedade podem depender disso. Posso saber que, se ele
compreendesse determinadas informações, ele as utilizaria de maneira prejudicial para
si mesmo.
3. Há muitos casos em que o erro inocente de um homem é necessário para a segurança
de outros ou da comunidade.
4. É lícito, em tais casos, enganar esses homens por meio de ações, por exemplo, o
inimigo por estratagemas militares, ou o traidor por sinais que o confundirão. E as
palavras da verdade que de antemão sabemos que ele irá confundir, não por nossa culpa,
mas pela deles próprios, parecem ser menos questionáveis do que ações que têm a
inclinação intrínseca para ludibriar.
5. O próprio Deus escreveu e proferiu palavras que Ele sabia que pessoas ímpias
interpretariam erroneamente e se enganariam. Ele também realizou obras e concedeu
misericórdias que Ele sabia que seriam utilizadas como armadilhas contra elas mesmas.
Se for considerado profano, a prerrogativa ou domínio divinos não podem ser usados
como desculpa. E neste sentido (quanto a permitir e provocar) é dito: “E se o profeta for
enganado, e falar alguma coisa, eu, o Senhor, terei enganado esse profeta.” (Ez 14.9).
Contudo, não devemos pensar como Platão, que é lícito mentir a um inimigo para
enganá-lo, pois
a. Todo engano que contrarie a santidade ou a justiça é pecaminoso.
b. Qualquer engano que envolva uma mentira é pecaminoso. Como diz Agostinho:[9] Há
mentiras que são ditas para a segurança ou comodidade de outrem, não por malícia, mas
por misericórdia, como fizeram as parteiras de Faraó – essas mentiras não são elogiáveis
em si mesmas, a não ser pelo artifício (ou benignidade) delas. Os que mentem assim
merecerão (quero dizer, estarão no caminho), enfim, de serem libertos de toda mentira.
Há também a mentira por brincadeira, que não engana, visto que aquele com quem se
fala sabe que aquilo foi dito em tom de brincadeira. E esses dois tipos não são
irrepreensíveis, porém a culpa não é grande. Um homem perfeito não deve mentir para
salvar a vida – mas é lícito silenciar a verdade, embora não o falar falsamente. Alguns
acreditam que um médico pode mentir para persuadir o paciente a tomar um remédio
para salvar sua vida. Ele pode enganá-lo legalmente, escondendo um medicamento e
usando discursos verdadeiros e obscuros, que ele acredita que o paciente não
compreenderá corretamente, mas não por meio de uma mentira.
Questão XI. Onde reside o vício característico de mentir? No enganar? Ou no falar
falsamente? Ou no falar de modo oposto aos pensamentos?
Resposta. A circunstância agravante de uma mentira é que ela seja um engano
prejudicial. A malignidade do pecado, contudo, não consiste no mero engano do intelecto de
outro homem, pois, como foi dito, pode ser um grande benefício para muitos homens serem
enganados. Por exemplo, a vida de um paciente pode ser salva por isso, quando seu médico
descobre ser necessário que ele tome um remédio que, se não for pelo engano, ele não tomará. E
isso também pode acontecer às crianças e pessoas de cabeça fraca. Portanto, um engano caridoso
como esse não pode ser considerado um pecado. A natureza comum da mentira não se baseia
apenas na intenção de enganar, mas também no ato de proferir falsidades contrárias ao próprio
pensamento. Caso contrário, chegaríamos à conclusão de que todo tipo de engano é pecaminoso
ou que é lícito proferir mentiras ou falsidades sempre que o engano a outra pessoa seja caridoso
ou legítimo, o que não pode ser aceito.
No entanto, nem toda inverdade é uma mentira. Alguns estudiosos fazem distinção entre
mentiri (com o sentido de contrariar a mente) e mendacium dicere [contar uma mentira], como
se contar uma mentira não significasse sempre mentir, por não ser contrário à mente. Então, por
mendacium [uma mentira] eles querem dizer nada mais do que falsum [falso, falsidade].

O QUE É UMA MENTIRA?

Logo, concluo que uma mentira é a afirmação voluntária de uma falsidade. E quanto
mais tende a prejudicar o outro, mais é agravada. Uma coisa, porém, é ser prejudicial; outra, ser
mentira. Quando nomeio “falsidade”, quero dizer aquilo que pode enganar o ouvinte. Para que
algo seja considerado uma mentira, é essencial que seja enganador, embora a intenção de
enganar seja encontrada apenas nos tipos mais explícitos de mentiras. Chamá-la de “falsidade”
não seria inadequado, pois não seria falsa se não fosse enganadora ou capaz de enganar. Uma
expressão inadequada ou figurativa que possui um significado correto quando utilizada pelo
falante e ouvinte não é considerada uma falsidade. Em uma língua, uma dupla negação pode ser
uma afirmação, enquanto em outra, pode ser uma forma mais enfática de negação. No entanto,
nenhuma delas deve ser chamada de inverdade pelos outros.
Quando menciono “afirmação”, estou me referindo a qualquer expressão que torne a
falsidade nossa, em contraste com uma narrativa histórica. Repetir uma mentira não é
considerado mentir, pois você está simplesmente relatando o que outra pessoa disse. Com
relação ao termo “voluntário”, ele não abrange apenas ações realizadas conscientemente, com
vontade genuína, escolha deliberada ou consentimento. Ele engloba também aquelas ações que
são realizadas por culpa da vontade, e que podem ser atribuídas a ela. É essencial compreender
essa distinção em relação a todos os pecados. Embora seja verdade que todo pecado seja
voluntário e que não haja pecado sem voluntariedade, a palavra “voluntário” não se refere apenas
ao que é desejado de fato, mas a todas as ações pelas quais a vontade é culpada. Agostinho
afirmava corretamente: “Não é a língua que se torna culpada, a não ser por uma mente culpada”.
É importante ressaltar que a mente ou vontade também pode ser culpada por omissões proibidas,
além das ações. Portanto, uma mentira ou inverdade voluntária ocorre quando a mente e a
vontade não restringem a língua quando deveriam fazê-lo. Exemplos:
Quando um homem erra ou é ignorante por preguiça ou negligência intencional, e fala
falsamente quando pensa que é verdade, há uma falsidade culposa e, por conseguinte,
uma mentira. Ele poderia tê-la evitado e não o fez, e este é o caso da maioria dos falsos
mestres e hereges. Do mesmo modo, se um homem – por paixão, costume ou descuido –
deixar a língua rolar solta antes de seu entendimento, e falar falsamente por não
considerar ou prestar atenção ao que diz, isso é uma inverdade culpável e uma mentira,
e é voluntária. Porque a determinação deveria ter evitado tal coisa e não o fez, embora
ainda não houvesse o propósito de enganar. Veja, então, que existem dois graus de
mentira: a. o mais grosseiro é falar de uma falsidade conhecida, com o propósito de
enganar; b. o outro é falar falsamente por ignorância, erro ou falta de consideração
culpáveis.
Orientação I. Esteja bem informado sobre o mal do pecado da mentira, pois sua causa
comum é os homens pensarem que não há grande dano nele, a menos que alguém seja muito
prejudicado, mas esse pecado não é proibido por Deus apenas por prejudicar os outros, e sim por
carregar nele todo esse mal.

A PROFUNDIDADE DO PECADO DA MENTIRA


1. Mentir é perverter as faculdades nobres do homem e usá-las de forma totalmente
contrária à sua natureza. Deus deu a língua ao homem para manifestar a mente e revelar a
verdade dele; e a mentira transforma-a grotescamente num obstáculo à mente e à verdade, sim,
num escape do contrário a ambas. Tal como o mal da embriaguez é ser a loucura voluntária ou a
corrupção de uma faculdade tão nobre como a razão, assim é a culpa da mentira corromper,
perverter e deformar tanto a mente quanto a língua. E, por confusão, causar uma destruição da
obra e da criatura de Deus quanto ao seu uso adequado.
2. A mentira é inimiga e destruidora da verdade, e a verdade é algo divino, de excelência
e utilidade indescritíveis. É o instrumento de Deus pelo qual ele torna os homens sábios, bons e
felizes. Portanto, se ele não criasse leis rígidas para a preservação de algo tão excelente como a
verdade, não asseguraria a felicidade do mundo. Quanto à preservação da vida dos homens, não é
suficiente criar uma lei que proíba matar sem justa causa (embora esse seja o único objetivo da
lei); pois nesse caso, cada homem deixado para julgar por si mesmo pensaria que existe uma
justa causa sempre que suas paixões ou interesses assim o indicassem. No entanto, a lei
estabelece: “Você não deve matar de forma alguma, exceto mediante o julgamento do
magistrado”. Portanto, se a lei contra a mentira tivesse a intenção de proteger apenas contra os
danos do erro e do engano, ainda assim não seria suficiente dizer apenas: “Você não deve
prejudicar os outros mentindo”, porque, nesse caso, as pessoas julgariam o dano com base em
seus próprios interesses e paixões. No entanto, é ainda mais necessário ter uma lei mais rígida,
visto que Deus pretende garantir não apenas os interesses dos homens, mas a própria verdade.
Aos olhos de cristãos, pagãos e de toda a humanidade que não se desmoralizou, a
verdade se revela como algo de singular beleza e excelência. Aristóteles afirmaria que “A
natureza do homem foi criada para a verdade”. Cícero diria que “Aquilo que é verdadeiro,
simples e sincero é o que melhor se adéqua à natureza humana”. A verdade e a virtude sempre
foram consideradas perfeições inseparáveis do homem. Pitágoras sustentaria que amar a verdade
e praticar o bem são as duas coisas que tornam o homem mais semelhante a Deus, sendo,
portanto, seus dons mais excelentes. Platão argumentaria que a verdade é a retórica mais sublime
e a oratória mais doce. Epicteto enfatizaria que a verdade é algo imortal, eterno e entre as coisas
mais preciosas, superior à amizade, pois não está sujeita a afetos cegos. Jâmblico declararia que,
assim como a luz naturalmente e constantemente acompanha o sol, a verdade acompanha Deus e
todos que o seguem. Epaminondas seria elogiado por nunca mentir, nem mesmo por brincadeira.
Pompônio Ático odiava tanto a mentira que todos os seus amigos desejavam confiar-lhe seus
negócios e tê-lo como conselheiro. Aquele que não compreende para que foram feitas a
inteligência e a língua do homem não percebe a excelência da verdade. Deixe somente um
Pilatos desconhecido perguntar, como um estranho, “O que é a verdade?” (Jo 18.38), assim como
Faraó questionou: “Quem é o Senhor?”. “Para isso eu nasci e para isso vim ao mundo, a fim de
dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18.37). “Ele é a
verdade” (Jo 14.6), e “cheio de graça e verdade” (Jo 1.14). “A graça e a verdade vieram por meio
dele” (Jo 1.17). Seu Espírito é enviado para “guiar Seus servos à plena verdade” (Jo 16.13), e
para “santificá-los através da verdade” (Jo 17.19). “Conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará” (Jo 8.32). “Pois o fruto do Espírito consiste em bondade, justiça e verdade” (Ef 5.9).
Seus ministros não podem “agir contra a verdade, senão a favor da verdade” (2Co 13.8). A
“verdade” é o “cinturão” que deve “cingir nossos lombos” (Ef 6.14). A “igreja” é a “coluna” e o
“fundamento da verdade” (1Tm 3.15). Os fiéis são “aqueles que creem e conhecem a verdade”
(1Tm 4.3). “Falar a verdade em amor” é o caminho para o crescimento e edificação das igrejas
(Ef 4.15). O “arrependimento” é dado aos homens “para que reconheçam a verdade, se
desprendendo das ciladas do diabo” (2Tm 2.25-26). Os tolos são aqueles que “nunca podem
chegar ao conhecimento da verdade” (2Tm 3.7). “São homens de mente perversa que resistem à
verdade, sendo réprobos na fé” (2Tm 3.8). “Pois não receberam o amor da verdade, a fim de
serem salvos” (2Ts 2.10). “E todos os que não creram na verdade serão condenados” (2Ts 2.12).
Note o que a verdade representa no julgamento de Deus e de todo o mundo sensato. Portanto, a
mentira, contrária à verdade como as trevas à luz, deve ser tão odiosa quanto a verdade é amável:
não é de admirar, assim, que seja absolutamente proibida por Deus.
3. Pode-se perceber isso com mais facilidade considerando que outros pecados da língua,
como conversa fiada, xingamentos e coisas do gênero, são proibidos não apenas porque
prejudicam os outros, mas pelo mal intrínseco à própria coisa: grande razão, então, pela qual
deveria ser assim neste caso.
4. Mentir é um vício que nos torna muito diferentes de Deus, pois ele é chamado de
“Deus da verdade” (Sl 21.5). Todos os seus caminhos são “misericórdia e verdade” (Dt 32.4).
Seu “julgamento é segundo a verdade” (Sl 25.10). “É impossível que Deus minta” (Rm 2.2; Hb
6.18; Tt 1.2). Sua palavra é a “palavra da verdade” (Sl 99.43; Cl 1.5; 2Tm 2.15; Tg 1.15; 2Cr.
6.7). E quem “habitará em seu tabernáculo”, senão o que “fala a verdade em seu coração” (Sl
15.2). Portanto, a falta de conformidade da alma com Deus, nas áreas em que deveria estar em
conformidade com ele, torna evidente que a mentira é um pecado repugnante. E isso pode
parecer mais fácil se considerar em que situação o mundo estaria se Deus mentisse, e não fosse
de fato indubitável. Assim, não teríamos certeza de nada; por conseguinte, não haveria
informação alguma assegurada por sua palavra, nenhuma direção e orientação certas por seus
preceitos, e nenhum consolo seguro em qualquer uma de suas promessas. Ora, aquilo que nos
torna tão diferentes do Deus verdadeiro deve ser necessariamente odioso.
5. A mentira é a imagem ou obra do diabo, e os mentirosos são seus filhos de uma forma
especial. Cristo nos diz que ele “não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando
ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira” (Jo 8.44). Os
orgulhosos, maldosos e mentirosos são uma sorte especial de filhos do diabo, uma vez que os
três são, nas Escrituras, considerados pecados peculiares do diabo.[504] Desse modo, por certo há
um mal e um caráter odioso intrínsecos à mentira. Foi Satanás quem encheu o coração de
Ananias e Safira para mentirem ao Espírito Santo (At 5.3). Transformar a “verdade de Deus em
mentira” e “fazer de Deus um mentiroso” são, por essa razão, os pecados mais detestáveis (Rm
1.25; 1Jo 5.10), pois é aparentar que Deus é como o diabo. Deveríamos, então, tornar-nos como
o diabo pelo mesmo vício? Se você não ama o pecado e a figura do diabo, não ame a mentira.
6. A mentira é a corrupção do discurso humano e gera uma confusão extremamente
prejudicial nos assuntos da humanidade. Se a verdade for excluída, as pessoas não podem
realizar transações, negócios e viver em comunidade. Mesmo se não tivéssemos línguas, seria
prejudicial o suficiente para nossa comunicação racional, mas se há línguas falsas, o problema se
agrava. O silêncio não revela a mente de modo algum, e a mentira, quando pretende fazê-lo, a
representa falsamente. Portanto, mesmo que argumentem que suas mentiras não causam tanto
dano, considerando que essa é a natureza e a tendência inerente à mentira, é justo e
misericordioso, da parte do Deus justo, proibir todas as formas de mentira por meio das leis mais
rígidas. Da mesma forma que a natureza das serpentes é intrinsecamente contrária à natureza
humana, de modo que as detestamos e as matamos, embora nunca tenham nos feito mal, porque
é da natureza delas nos prejudicar, Deus justa e misericordiosamente condenou todas as
mentiras, pois sua natureza tende à desolação e confusão do mundo. E se fosse concedida alguma
tolerância à mentira, a iniquidade e a injustiça nos sobrecarregariam como uma torrente.
7. Mentir conduz diretamente ao perjúrio. É o mesmo Deus que proíbe os dois, e uma vez
que o coração se endureça em um, restará apenas um passo adiante em direção ao outro. Cícero
pôde observar que quem está acostumado a mentir cairá em falsa acusação sem qualquer
dificuldade. Uma consciência cauterizada que tolera um será facilmente levada a suportar o
outro.
8. Há uma parcialidade no mentiroso que o condena e um pecado em outro que ele
justifica em si mesmo, pois não há homem que queira ser enganado por outro. Como Agostinho
disse: “Conheci muitos dispostos a enganar, mas nunca alguém que quisesse ser enganado”. Se
mentir é algo bom, por que todos os outros não deveriam mentir para você? Se for ruim, por que
você mentiria para os outros? Sua língua não está sujeita à mesma lei que a deles? Você acha
isso aceitável em seus filhos e servos? Se não, deveria parecer-lhe ainda pior em si mesmo, pois
está mais diretamente envolvido em suas próprias ações.
9. Julgue o que é mentir pelo próprio desejo e expectativa de ter crédito. Não gostaria
que os homens acreditassem em você, quer fale a verdade ou não? Eu sei que sim, pois o
mentiroso perde o seu objetivo se for conhecido por mentir e não ser confiável. E há um
desejo ou expectativa razoável em fazer com que os homens acreditem em uma mentira? Se
desejar que acreditem em você, fale o que terá credibilidade.
10. Mentir faz com que você seja sempre não confiável, portanto, inútil ou perigoso para
os outros. Quem mente faz com que os homens duvidem se alguma vez falará a verdade, a
menos que haja melhor evidência dela do que de sua credibilidade. Como diz Aristóteles: O
mentiroso consegue as coisas pela mentira, até que ninguém acreditará nele quando falar a
verdade. Como saber se alguém que mentia ontem falará a verdade hoje? Salvo se o
arrependimento evidente regenerar sua credibilidade. A verdade se defenderá e, enfim, dará
crédito àquele que a possui; mas a falsidade é indefensável e envergonhará os seus financiadores.
Petrarca diz com excelência: Assim como a verdade é imortal, a ficção e a mentira não duram
muito, assuntos dissimulados são rapidamente expostos, tal qual o cabelo penteado e arrumado
com grande diligência é despenteado por uma breve lufada de vento, e a maquiagem no rosto,
feita com muito trabalho, é lavada com um pouco de suor. A mentira mais astuta não pode
resistir à verdade; contudo, é transparente para aquele que a examina de perto. Tudo o que está
escondido logo é revelado, as sombras passam, e a cor nativa das coisas permanece, dá trabalho
demais manter-se escondido por longo período. Nenhum homem mantém-se vivo por muito
tempo debaixo d’água, ele terá de vir à tona e mostrar o rosto que escondia. Quando muito, Deus
revelará tudo no Dia do Juízo.

ORIENTAÇÕES PARA COMBATER A MENTIRA

Orientação II. Se quiser evitar a mentira, tome cuidado com a culpa. Corpos impuros
precisam de um véu, e têm muita vergonha de serem vistos. A imperfeição causa a mentira, e
esta aumenta a imperfeição. Quando os homens realizam ações que temem ou se envergonham
de revelar, acreditam ser necessário recorrer à habilidade para ocultá-las. A engenhosidade e a
astúcia, porém, não são bons substitutos da honestidade; em vez disso, agravam a situação, pois
o coração corrompido do ser humano naturalmente busca artimanhas enganosas e desvios, assim,
previna a causa e a oportunidade da sua mentira. Não cometa o erro que demande uma mentira.
Evitar o erro é preferível a ocultá-lo, mesmo que você tenha certeza de mantê-lo muito bem
guardado, o que, na verdade, não é comum, pois a verdade normalmente se revela. Eis a melhor
forma do mundo para evitar a mentira: permanecer inocente. E não faça nada que tema a luz,
pois a verdade e a honestidade não envergonham, nem desejam ser escondidas. Os homens são
muito viciados neste crime: quando a tolice, ou devassidão, ou apetites, ou negligência, ou
preguiça, ou descuido fazem com que falhem, eles logo buscam uma mentira para escondê-la.
Isso equivale a pedir ao diabo que defenda ou cubra suas próprias obras. Homens sábios,
obedientes, cuidadosos, diligentes e conscienciosos, contudo, não precisam de tais artimanhas
miseráveis.
Orientação III. Tema a Deus mais do que aos homens. O medo excessivo do homem é
uma causa comum de mentira. O medo faz com que as crianças mintam com tanta facilidade para
escapar da punição, e a maioria das pessoas que estão sujeitas a sofrer muito com os outros corre
o risco de mentir para evitar o seu desagrado. Por que não temer mais a Deus, cujo
descontentamento é indescritivelmente mais terrível? Seus pais ou mestres ficarão zangados e
ameaçarão corrigi-lo. Deus, todavia, ameaça amaldiçoá-lo, e sua ira é um fogo consumidor. A
desaprovação de ninguém pode atingir sua alma e se estender pela eternidade; correrá para o
inferno a fim de escapar do castigo na terra? Lembre-se: sempre que for tentado a escapar de
qualquer perigo por meio de uma mentira, você se deparará com um perigo mil vezes maior; e
nenhuma dor da qual escape por meio da mentira poderá causar metade da dor que ela causa. É
uma atitude tão tola quanto curar a dor de dente cortando a cabeça.
Orientação IV. Engula o seu orgulho e rebaixe sua excessiva consideração pelos
pensamentos dos homens. O orgulho torna os homens muito desejosos de reputação e
impacientes demais com a opinião dura dos outros, de modo que todos os esforços honestos dos
orgulhosos são insuficientes para conquistar a reputação desejada, deixando a mentira como a
única alternativa. A vergonha é um sofrimento tão intolerável para eles que fazem da mentira o
disfarce familiar de sua nudez. Aqueles desprovidos de riquezas encontram orgulho em mentir
para se fazerem parecer importantes, enquanto os que não têm nobreza de nascimento fabricam
uma linhagem nobre por meio da mentira, e aqueles que são desprezados em seus ambientes
familiares constroem uma reputação respeitável entre estranhos com enganos. O que carece de
instrução, de títulos, ou de qualquer coisa de que se orgulhe, tentará suprir as suas necessidades
por meio de uma mentira. Aqueles que cometem crimes vergonhosos, se arrogantes, preferem a
mentira ao invés da vergonha.
No entanto, se o orgulho for curado, a tentação de mentir se desvanecerá. Você será tão
indiferente a questões de honra ou reputação que não arriscará que sua alma desagrade a Deus
por isso. Não que alguém deva ser insolente, ou totalmente indiferente à reputação, porém
ninguém deve supervalorizá-la, nem antes preferi-la à sua alma, nem procurá-la por meios
ilegais. Evite a vergonha fazendo o bem, sem se conter (apenas certifique-se de ter um propósito
superior). Sêneca disse: “Há mais pessoas que evitam o pecado por vergonha do que por virtude
ou boa vontade”. É bom quando a virtude é tão respeitada e o vício tão desaprovado que aqueles
que não possuem virtude desejam ao menos a reputação, enquanto aqueles que não abandonam o
vício buscam escapar da vergonha. É benéfico que existam motivos humanos para conter aqueles
que não se preocupam com os divinos. No entanto, assim como os motivos humanos não
concedem virtude salvadora, os meios diabólicos e perversos estão longe de evitar qualquer dano
pernicioso e, na verdade, são meios certos de causá-lo.
Orientação V. Fuja da ambição e da dependência humana desnecessária. Os ambiciosos
entregam-se aos homens, e, portanto, lisonjeiro deve ser o seu ofício. E o quanto de mentira é
necessário para compor a bajulação, nem preciso lhe dizer. Raramente a verdade é considerada o
instrumento mais apropriado para a bajulação. Pelo contrário, a verdade costuma ser o caminho
que leva ao desprezo. “Aqueles que pregam a verdade livremente e sem lisonjas, e reprovam
veementemente as más ações, não têm o favor dos homens”, diz Ambrósio.[10] “Eles sempre
buscam a verdade com inimizade”.[511] O ódio é a consequência natural da verdade, da mesma
forma que a inveja é da felicidade. Quando perguntaram a Aristipo por que Dionísio falava tão
mal dele, ele respondeu: “Pelo mesmo motivo que todos os outros homens o fazem”, insinuando
que não era surpreendente que o tirano tivesse pouca paciência para a verdade e a franqueza,
assim como acontece com a maioria das pessoas. Elas são tão suscetíveis à culpa que todos,
exceto os aduladores, parecem tratá-las com demasiada severidade e agravar suas feridas. Aqui
reside grande parte da desgraça dos indivíduos de grande poder, pois poucos ou ninguém lida
honestamente com eles, e acabam sendo adulados até a ruína. Como Sêneca bem observou: “Aos
ricos, quando têm tudo, falta-lhes uma coisa: aquele que diz a verdade. Pois, se você se tornar
dependente ou cliente de pessoas prósperas e poderosas, precisará renunciar à verdade ou à
amizade”. Hierom achava que, por essa razão, Cristo não tinha uma casa onde repousar a cabeça,
porque não bajulava ninguém e, portanto, ninguém o recebia na cidade. E o pior de tudo é: onde
reina a bajulação, esta é considerada um dever, e sua negligência, um vício. Como Hieron diz:
“O que é mais lamentável, é que, por ser considerada um sinal de humildade e bondade, pode
acontecer que alguém que não sabe bajular seja tido como invejoso ou orgulhoso”.
No entanto, chegará o tempo em que o bajulador será odiado até por quem se agradava
de seus elogios falaciosos. O engano e as mentiras satisfazem à pessoa lisonjeada apenas por um
tempo, até que ela mesma descubra o amargor dos efeitos, e os frutos lhe digam que era apenas
um tipo adocicado de inimizade. Logo, não se sentirá satisfeita por muito tempo com o próprio
bajulador. A lisonja acaba sempre por ser doçura perniciosa, como Agostinho a chama. Existem
dois tipos de perseguidores: o opositor (ou depreciador) e o bajulador. Contudo, a língua do
bajulador fere mais do que a mão do opositor. E não pense que a grandeza ou o favor de qualquer
homem irá escusá-lo ou salvá-lo de suas mentiras, porque o Deus que os vinga é soberano. Diz
Agostinho: “Mas quem acha que existe algum tipo de mentira que não é pecado, enreda
vergonhosamente a si mesmo, enquanto se considera um honesto enganador dos outros”. Se
quiser ser honesto, “Não sejais servos de homens” (1Co 7.23).
Orientação VI. Não ame a cobiça. Para um homem cobiçoso, a mentira parecerá um jeito
fácil de alcançar o seu lucro, de fechar um bom negócio, ou de vender uma mercadoria quebrada
por mais do que vale. Aquele que ama o dinheiro mais do que a Deus e a consciência,
desagradará a Deus e à consciência por dinheiro, por este ou qualquer outro pecado.
Orientação VII. Aprenda a confiar em Deus. A mentira é a prática de quem pensa que
pode prover a si mesmo e mudar sozinho. Até mesmo os erros de Abraão e Isaque[11] (ao dizerem
que as esposas eram suas irmãs), e o de Davi ao se fingir de louco,[12] procederam de alguma
desconfiança em Deus. Eles não teriam achado que isso seria necessário para solucionar seus
problemas se tivessem confiado a vida plenamente a Deus. Tanto a ganância quanto a mentira de
Geazi[13] resultaram da falta de confiança em Deus. Se um homem estiver seguro quanto à
proteção do Senhor, e que é melhor seguir a vontade de Deus em todas as coisas do que a própria
vontade, que proveito ele acha que teria em mentir, ou em qualquer recurso pecaminoso?
Orientação VIII. Não dê muita credibilidade às notícias ruins. A malícia é um pecado tão
louco e tão inconcebível, e as línguas dos homens geralmente tão descuidadas do que dizem, que,
se você facilmente acredita em histórias maliciosas, está, na verdade, aceitando as palavras do
diabo e se tornando seu servo ao espalhar mentiras maliciosas. Acha que por elas serem contadas
por muitos, e ditas com confiança, pode acreditar legitimamente ou relatar o que ouve? No
entanto, isso é apenas achar que a vulgaridade, a maldade e o atrevimento dos mentirosos lhe
darão razão para ir atrás deles, até por conta de serem tão maus. Vai latir e morder porque os cães
fazem tais coisas? Se alguém é ferido por uma serpente, você deveria ajudar a curá-lo, não
desejar feri-lo também. É tão comum que pessoas egoístas, gananciosas, maliciosas, parciais e
facciosas contem mentiras e sejam ousadas em suas falsidades que é essencial que você, se
deseja não se tornar um mentiroso, seja cauteloso ao relatar qualquer coisa que ouça deles. Essas
pessoas criam histórias a partir do nada, inventando mentiras sem fundamento ou base (cf. Pv
17.4; Os 7.3; Na 3.1).
Orientação IX. Não se precipite em falar as coisas antes de prová-las. Avalie o que você
diz e se informe antes de falar. Após ter contado uma mentira, não é uma vergonha precisar sair
por aí dizendo que achava que fosse verdade? Logo, por que falar de algo que cogita, e não
esperar até entender melhor do que se trata? Se falar do assunto era assim tão urgente, você
deveria ter se limitado a dizer eu acho que é isso. Prove todas as coisas, e então retenha o que é
bom (cf. 1Ts 5.21), e declare o que é verdadeiro. Diz Cícero: “Não há nada mais vergonhoso do
que a imprudência, nem nada tão indigno da gravidade ou da constância de um homem sábio do
que sustentar uma falsidade; ou, sem qualquer hesitação, defender o que não foi suficientemente
investigado, constatado e conhecido”.
Orientação X. Preveja o que pode enlaçá-lo em uma mentira, a fim de conseguir evitá-lo.
Não deixe que a oportunidade e a tentação peguem-no desprevenido. A prevenção tornará mais
fácil vencer a tentação, a qual lhe será forte demais se inesperada.
Orientação XI. Adquira uma consciência sensível e ande como diante dos olhos e
ouvidos de Deus, e como alguém que está avançando para o julgamento divino (cf. At 5.4; Is
59.13; Ez 13.9-19). Uma consciência cauterizada ousa se aventurar em mentiras ou qualquer
coisa; mas o temor a Deus é o preservador da alma. O que faz as pessoas mentirem, e acharem
que não precisam lidar com ninguém além dos homens? Imaginam que confundem o homem
com uma mentira, e escondem a verdade. Contudo, caso se lembrassem de que têm de dar contas
a Deus, e de que ele está sempre presente e não pode ser enganado; e de que o seu julgamento
trará à luz todas as coisas ocultas, e denunciará todas as suas mentiras diante do mundo inteiro,
não aceitariam pagar tão caro por um manto rasgado e sujo, por um tempo tão curto. Não é de
espantar que os homens que não temem a Deus sejam mentirosos e não acreditem no dia do
julgamento.
Orientação XII. Para salvar os outros da mentira, bem como a si mesmo, certifique-se de
vigiar seus filhos contra ela e ajudá-los com sabedoria a entender o mal que ela provoca. Pois as
crianças são muito propensas a ela, e a correção insensata as assusta e faz com que mintam para
se livrarem, assim como a tolerância e a conivência as encorajam para o engano. Faça-os ler
sempre textos como estes: “Não furtareis, nem mentireis, nem usareis de falsidade cada um com
o seu próximo.” (Lv 19.11). “Aquele que fala a verdade no seu coração” e etc. (Sl 15.2). (Ver
também Pv 17.7; Os 4.8). “Porque dizia: Certamente eles são meu povo, filhos que não mentirão;
assim ele se fez o seu Salvador.” (Is 63.8). “Quando ele profere mentira, fala do que lhe é
próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira.” (Jo 8.44). “E não entrará nela coisa alguma que
contamine, e cometa abominação e mentira.” (Ap 21.27). “Mas, ficarão de fora os cães – e
qualquer que ama e comete a mentira.” (Ap 22.15). “Porque se taparão as bocas dos que falam a
mentira.” (Sl 63.11). “O que usa de engano não ficará dentro da minha casa; o que fala mentiras
não estará firme perante os meus olhos.” (Sl 101.7). “A falsa testemunha não ficará impune e o
que respira mentiras não escapará (perecerá).” (Pv 19.5). “O governador que dá atenção às
palavras mentirosas, achará que todos os seus servos são ímpios.” (Pv 29.12). E também Salmos
31.18; 52.3. “Abomino e odeio a mentira; mas amo a tua lei.” (Sl 119.163). “O justo odeia a
palavra de mentira.” (Pv 13.5). “Por isso deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu
próximo; porque somos membros uns dos outros.” (Ef 4.25). Assim como um homem não
mentiria para enganar seus próprios membros, também não deveríamos enganar uns aos outros.
Resumindo, onde prevalece o amor a Deus e ao próximo, a verdade prevalece; mas onde
prevalecem o amor-próprio, a parcialidade e o interesse carnal, a mentira se torna uma serva
familiar e um meio considerado necessário para esses fins.
A mentira é um pecado tão comum e tão grande, e são muitos os casos sobre ela que
ocorrem todos os dias, que, embora eu ache que o que foi dito ofereça matéria suficiente para
respondê-los, citarei mais alguns deles claramente, a fim de ajudar na satisfação dos que não
podem receber respostas gerais para todos os seus casos particulares.

SITUAÇÕES COMPLEXAS ENVOLVENDO MENTIRAS E MORALIDADE

Questão I. A mentira frequente e conhecida é um sinal certo de um estado sem graça, ou


seja, um pecado mortal, que prova que o pecador está em um estado de condenação?
Resposta. A dificuldade deste caso não diz mais respeito à mentira do que a qualquer
outro pecado de igual malignidade. Por esse motivo, devo remetê-lo àquelas partes em que
revelei a diferença entre pecados mortais, pecados predominantes e enfermidades. Por ora, fique
com esta breve resposta:
1. É extremamente difícil determinar quantos atos de um grande pecado podem ser
compatíveis com um estado atual de graça (isto é, de direito por aliança com o céu).
2. Todo pecado conciliado com um amor habitual e predominante por Deus e pela
santidade consiste em uma condição de vida, e nada mais.
3. Aquele que raramente ou nunca comete tais pecados exteriores, e ainda assim não
ama a Deus, e ao céu, e à santidade acima de todos os prazeres e interesses da carne,
está em estado de morte.
4. É certo que esse amor a Deus e à santidade não é predominante quando o interesse
carnal e a luxúria têm, habitualmente no curso e no teor de sua vida, mais poder para
levá-lo voluntariamente a cometer pecados conhecidos do que o amor a Deus, ao céu e à
santidade têm para mantê-lo afastado, pois somos servos daqueles a quem obedecemos,
seja pecado para a morte ou obediência para a justiça (Rm 6.16).
5. Portanto, eis a maneira de saber se o pecado está mortificado ou é mortal: a.
verificando a verdadeira inclinação da vontade, se a amamos ou odiamos, e b.
observando a real tendência e curso da nossa vida, se o interesse em Deus é o que
predomina em nós quando estamos sozinhos e somos tentados a tais pecados, ou o
contrário.
6. Aquele que peca, então, tantas vezes quantas resiste à graça salvadora, nunca terá a
certeza de sua sinceridade, ou a paz ou o conforto de um crente saudável, até que se
arrependa e leve uma vida melhor.
7. Aquele que, em pecado, preserva o espírito de adoção, ou a imagem de Deus, ou o
amor divino habitual, também mantém arrependimento regular e potencial por esse
mesmo pecado antes de se arrepender realmente. Por ter aquele ódio habitual, o pecado
lhe causará arrependimento real quando estiver disposto a agir de acordo com seus
hábitos predominantes.
8. Nesse meio tempo, o estado desse pecador nem é o de alguém não regenerado, carnal,
profano, como era antes da conversão, e prestes a perder todo o direito à vida; tampouco
tem o pleno direito, como se não tivesse pecado. No entanto, uma barreira é posta contra
seu clamor, a qual precisa ser removida antes que seu direito seja total, e desde que
esteja pronto para a posse presente.
9. Há certos pecados que todos os homens cometem enquanto estão vivos. Como
deficiência nos níveis de fé, esperança, amor; pensamentos vãos, palavras, distúrbios,
paixões etc. E esses pecados não são totalmente involuntários; caso contrário, não
seriam pecados. Sim, o mal prevalece na luta da vontade contra o bem a ponto de
cometer esses pecados, embora não a ponto de corromper a inclinação do coração ou da
vida.
10. Na terra, há alguns pecados dos quais ninguém se arrepende de verdade, a saber: os
que eles não reconhecem como pecados, os que esquecem por completo, e aquelas faltas
das quais se culpam apenas na hora da morte.
11. Nesses casos, o arrependimento imaginário, implícito ou habitual é suficiente para
evitar a condenação. Como também o desejo de ter vivido perfeitamente é o bastante no
caso de falhas contínuas (cf. Rm 7.20-23).
12. No que diz respeito à vontade, as coisas não funcionam como são, mas como são
compreendidas pela consciência: e aquilo que é percebido como um mal duvidoso, ou
apenas como um pecadinho quase inofensivo, sofrerá muito menos resistência, e será
cometido com mais regularidade do que os pecados percebidos nitidamente como mais
graves. Logo, qualquer tipo de mentira apreendida assim, como se fosse um mal ínfimo
ou duvidoso, será cometida com mais frequência.
13. Se esta compreensão errônea surgir devido à predominância de um coração carnal
ou ímpio, que não permitirá que o entendimento cumpra seu papel, ou que não
considerará pecado aquilo que ele não quer abandonar, então tanto o julgamento quanto
a mentira são pecados mortais e não mortificados, perdoados.
14. No entanto, se essa má compreensão do entendimento resultar de uma incapacidade
natural, da falta de uma informação melhor ou do erro de uma inclinação viciosa, ainda
que não predominante, mas um resquício de um vício que foi predominantemente
mortificado, então nem o erro nem a mentira frequente são pecados mortais, mas sim
pecados mortificados. Por exemplo: se falsos mestres (como os jesuítas) persuadirem
uma pessoa justificada de que uma mentira que não prejudica ninguém, mas é
prestativa, é apenas um pecado perdoável, é possível que essa pessoa a cometa com
frequência, embora não esteja completamente isenta de culpa.
15. Embora seja verdade que todos os bons cristãos não devem tolerar o menor pecado e
que a verdadeira graça fará um homem disposto a abandonar o menor deles, a
experiência nos mostra que alguns pecados constantes (já mencionados) são compatíveis
com a graça em todos aqueles que a possuem na Terra. Portanto, pecados menores,
como pensamentos e paixões, não são resistidos tanto quanto os pecados maiores, e,
portanto, são mais tolerados e favorecidos, caso contrário, não seriam cometidos.
Nenhum homem bom se levanta com tanta vigilância constante contra um pensamento
ocioso ou uma palavra vã, ou contra uma falta de ordem na oração etc., como faz contra
um pecado grave.
Aqueles que desejam que este e todos os casos semelhantes sejam resolvidos de forma
concisa, em vez de serem instados a explorar o assunto com todas essas distinções,
devem buscar outro casuísta, ou, melhor ainda, um enganador em vez de um
solucionador, pois não posso oferecer outra forma de resolução.
Questão II. Não é contrário à luz da natureza, por exemplo, permitir o sofrimento de um
pai, de um rei, de si mesmo, de sua pátria, em vez de salvá-los por meio de uma mentira
inofensiva?
Resposta. Não. Porque:
1. O bem particular deve ceder lugar ao bem comum. Se permitirmos que uma mentira
seja considerada lícita nos casos em que parece benéfica, isso minaria o convívio
humano e corromperia a natureza do homem e do mundo.
2. Se um mal puder ser transformado em um meio para o bem, isso implicaria que
outros também poderiam ser, confundindo assim o bem e o mal, e permitindo que o
homem vicioso aceite como bom tudo o que ele acredita ser benéfico. Isso não pode ser
chamado de mentira inofensiva, pois é simplesmente mal, indo contra a lei de Deus, a
ordem da natureza, o uso das faculdades humanas e o interesse e convívio do mundo
sociável.
3. O erro dos opositores consiste, sobretudo, em pensar que nada é mais prejudicial e
moralmente mau do que o que causa danos aos homens no corpo. No entanto, o que é
mal vai contra a regra universal de retidão, contra a vontade de Deus e contra a natureza
e perfeição do agente, e ainda mais se tende a prejudicar as almas de outros homens,
dando-lhes um exemplo de pecado.
4. E ainda que, vez ou outra, possa haver alguma probabilidade humana de tal coisa,
mesmo assim não há certeza de que acontecerá de uma mentira salvar a vida do rei, dos
pais ou a sua própria. Pois Deus pode abrir os olhos do inimigo a quem você pensa que
cegou com uma mentira, e fazer com que ele desvende toda a verdade, e então tirar
aquela vida que você achava ter salvado.
5. Existem meios legais suficientes para salvar-lhe a vida quando for melhor para você
que isso aconteça, quais sejam: obedeça a Deus e confie sua vida a ele, e ele poderá
salvá-la sem mentiras, se for o melhor. E se não for, não deve ser desejado.
6. Se os homens não supervalorizassem a vida de forma errada, não julgariam necessária
uma mentira para isso. Quando não é imprescindível viver, não é necessário mentir pela
vida. Um pecado, porém, arrasta outro assim: quando os homens carnais superestimam a
própria vida, e se dedicam mais a ela do que ao desfrutar de Deus na glória do céu, eles
dão valor demais a quaisquer recursos que pareçam necessários para preservá-la. Veja
Jó 13.7-10; Pv 13.17; Rm 6.15; 3.7-9; Sl 5.7; Os 4.2; Jo 8.44; Ap 21.27; 22.15; Cl 3.9;
1Jo 2.21.
7. No entanto, quanto ao grau de maldade do pecado, concordo sem hesitar com
Agostinho,[14] que “Faz muita diferença com que intenção e em relação a quem alguém
mente: pois quem dá conselhos não peca tanto quanto aquele que mente com a intenção
de prejudicar; nem causa tanto dano aquele que envia um viajante em sua companhia e,
no decorrer do caminho, mente contra ele, como aquele que deturpa o caminho com
mentiras enganosas”.
Objeção. Não são as parteiras[15] recompensadas por Deus por terem salvado as crianças
israelitas usando de uma mentira?
Resposta. Aqui não concordo com Agostinho, que disse: “O fato foi recompensado, e a
mentira, perdoada”, pois não se encontra qualquer mentira nelas. Quem ousaria duvidar de que
Deus teria o poder de fortalecer as mulheres israelitas para darem à luz sem a assistência das
parteiras? E quem questionaria que, assim que as parteiras informaram o decreto assassino do rei,
as mulheres atrasariam em chamar as parteiras, até que, com a ajuda mútua, as crianças
estivessem seguras? O que, no entanto, é imputado às parteiras, porque elas conspiraram com
elas e atrasaram com esse propósito. Portanto, aqui, há uma dissimulação e ocultação de parte da
verdade, mas não existe mentira que possa ser comprovada.
Objeção. Em Hebreus 11.31 e Tiago 2.25 é dito que Raabe foi justificada pela fé e pelas
obras ao salvar os espias com uma mentira.
Resposta. Não se sabe ao certo se foi uma mentira, ou apenas um equívoco, e nem se as
palavras dela não foram verídicas com relação a alguns outros homens que eram seus hóspedes.
Suponha, porém, que tenham sido mentiras (o que é mais provável), a Escritura não justifica
mais a mentira dela do que o fato de ela ter sido uma prostituta. Ela é elogiada por sua fé no
Deus de Israel, cujas obras mencionara, bem como por ter arriscado a própria vida para salvar os
espiões. E não é de estranhar que uma mulher em Jericó, nessas circunstâncias, ainda não tivesse
aprendido a pecaminosidade de uma mentira desse tipo.
Objeção. Ao menos não devia ser um pecado mortal, uma vez que Hebreus 11.31 e Tiago
2.25 afirmam que ela foi justificada.
Resposta. Não houve pecado mortal nela (ou seja, um pecado que prova alguém em
condição de morte), porque não havia os males que tornam o pecado mortal. Porém a mentira de
alguém que a comete conscientemente, por falta desse predomínio da autoridade e do amor de
Deus na alma, como deve prevalecer contra as motivações contrárias habitualmente, é um pecado
mortal, quando cometido por uma pessoa ímpia. A falsidade nefasta e a ilusão da alma desses
mestres fazem os pobres pecadores acharem que somente a mesquinhez do ato exterior, ou a dor
do pecado, é que provará, como eles o chamam, se é venal ou mortificado, e não mortal.
Questão III. É lícito usar da dissimulação por meio de ações que possam parecer uma
mentira prática? Como devemos interpretar a situação em que Cristo agiu como se fosse seguir
adiante, conforme descrito em Lucas 24.28? E, por fim, as estratégias comuns em tempos de
guerra, bem como realizar ações com o propósito de enganar outra pessoa?
Resposta 1. Já provei anteriormente que nem todo engano a outrem é pecado, e alguns
podem ser um dever: da mesma maneira que um médico pode enganar um paciente para que
tome um remédio e salvar-lhe a vida, logo, ele não faz isso mentindo.
Resposta 2. A ocasião na qual Cristo deu a entender que iria adiante nada mais foi do que
uma omissão ou dissimulação legal de seu propósito, para que eles insistissem: ora, nem toda
dissimulação é má, embora a mentira o seja. E a mesma coisa pode ser dita de estratagemas
legais como os citados.
Questão IV. É lícito provocar uma criança ou um servo a mentir, apenas para prová-los?
Resposta. Não é lícito fazê-lo sem um motivo suficiente, nem em circunstância alguma
que os estimule a mentir ou que dê qualquer apoio ao pecado, da mesma forma como Satanás e
pessoas más costumam tentar os outros a pecar, elogiando o pecado ou minimizando-o. No
entanto, apresentar-lhes uma situação apenas para testá-los (como colocar dinheiro, vinho ou
outros itens em seu caminho para descobrir se são ladrões ou propensos ao vício da bebida, com
o propósito de ajudá-los a superar esses problemas e, assim, testar sua veracidade) não é ilegal,
pois:
1. O pecado é consumado realmente quando há vontade de cometê-lo, embora possa não
haver tentação ou oportunidade.
2. Não fazemos nada que seja um elogio ao pecado, ou uma persuasão a ele, ou qualquer
outra causa verdadeira, seja física ou moral; mas apenas um ensejo.
3. Dessa forma, o próprio Deus, mais contrário ao pecado do que qualquer outra
criatura, aplica certas situações de pecado aos homens que são brutalmente inclinados
por meio de provação, pois sabe que eles vão ceder; e essas ocasiões são suas
misericórdias comuns.
4. Deus não nos proibiu tal coisa em lugar algum: não podemos praticar o mal para que
o bem venha por meio dele; contudo, podemos fazer o bem quando sabemos que o mal
resultará pelo vício dos homens.
5. Pode ser um instrumento necessário para a cura daquele pecado de que não temos
ciência, até que seja detectado.
Questão V. Todas as ambiguidades são ilegais?
Resposta. Há uma ambiguidade que é de fato mentirosa. Por exemplo: quando
abandonamos o sentido usual ou preciso de uma palavra e a usamos num sentido estranho e
incomum, cientes de que não será compreendida, e isso para enganar aqueles com quem temos o
compromisso de não enganar.
Há, todavia, um uso de palavras ambíguas que é lícito e necessário: (na linguagem
humana, há poucas palavras que não tenham significados diferentes). Como:
1. Quando nosso sentido ambíguo é bem compreendido pelos ouvintes e não costuma
enganá-los, mas porque o uso tornou essas palavras adequadas, como é o caso de
metáforas, que são equívocas, mas podem ser usadas.
2. Quando o sentido ambíguo é o mais utilizado ou óbvio, e, se não for compreendido,
será por culpa do ouvinte ou por estupidez fora do normal.
3. Quando um ladrão, ou um tirano usurpador, ou qualquer inimigo cruel, os quais não
têm qualquer autoridade para fazê-lo, tentar enlaçar a minha vida com questionamentos,
posso responder-lhe de modo legítimo com palavras igualmente duvidosas, destinadas a
enganá-lo de propósito, ou a deixá-lo sem entender nada do que quero dizer, desde que
tais palavras não sejam mentirosas ou falsas em seu uso frequente.
4. E posso responder dessa forma duvidosa a tal pessoa quando for evidente que se trata
de uma resposta duvidosa, e que o faço como uma profissão de que não vou responder
de forma mais específica ou clara, mas vou ocultar o restante.
Questão VI. Toda reserva mental é ilegal?
Resposta. Este assunto não precisa de outra resposta além da primeira. Se as palavras
expressas forem uma mentira, a reserva mental não as tornará justificáveis como verdade. Se as
palavras ditas, contudo, forem verdadeiras por si mesmas, então a reserva mental pode ser
legítima, desde que não seja nada além de uma ocultação de parte da verdade, em um caso em
que não somos obrigados a revelá-la.
Questão VII. Caso estejam em perigo, crianças, servos ou súditos podem usar palavras
que tendem a esconder suas falhas?
Resposta. 1. Quando são obrigados a não encobrir o erro, eles não podem: ou seja,
a. Quando devem obediência, ou,
b. o bem maior que se seguirá exigir que a revelem.
Resposta 2. Quando não são obrigados a declará-lo, podem escondê-lo por meios justos,
mas não por mentiras ou qualquer mal. Quanto aos casos em que possam esconder uma falta por
meios justos, nada mais direi aqui.
Questão VIII. Posso falar o que acho que é verdade, porém não tenho certeza?
Resposta. Se receber um apelo legítimo, poderá dizer que acha que é verdade; mas não
que seja categoricamente assim.
Questão IX. Devo crer e falar de outra pessoa com base em notícias, conversas ou
atributos que ouço pessoas piedosas e confiáveis, ou muitas pessoas, relatarem?
Resposta.
1. A principal dúvida é quando você é convocado a falar.
2. Você não deve acreditar e denunciar o mal de outra pessoa tão facilmente quanto o
bem.
3. Não deve acreditar no mal de outrem mais do que as evidências o limitam. Mesmo
assim, deve acreditar de acordo com o grau de evidência ou credibilidade, e fazer uso do
relato apenas por cautela ou para o bem, e não para difamar outra pessoa, baseado em
incerteza ou sem ser chamado.
4. O pecado de ouvir e espalhar informações falsas de outros mediante boatos é tão
comum hoje entre os que professam sobriedade e conversão, que todos os homens
devem estar atentos a ele, não importando na companhia de quem estejam, como fariam
com uma epidemia em tempos de contágio. Ora, é tão óbvio que notícias falsas e
calúnias de outros são muito comuns, que nem as palavras dos homens justos, nem a
honra comum, admitirão que você (ou o perdoarão) acredite ou conte qualquer maldade
de outro, até que seja capaz de provar que é seu dever. Ao contrário, todos os cristãos
devem se unir para lamentar e reprovar esse pecado popular e cruel.
CAPÍTULO 5 | ORIENTAÇÕES CONTRA A CONVERSA
VÃ E A TAGARELICE

Orientação I. Entenda bem o que é conversa vã, pois muitos consideram vão o que não é,
e muitos não consideram vão o que de fato é. Portanto, abrirei essa questão antes de prosseguir.

O QUE NÃO É CONVERSA VÃ?

A opinião de infiéis e homens ímpios, neste assunto, pouco importa.


1. Alguns deles acham que a oração não passa de palavras vãs, porque Deus conhece
nossos desejos e corações (Jó 22.2-3), e nosso culto não é proveitoso para ele, como se ele nos
tivesse ordenado “buscá-lo em vão” (Is 45.19; Jó 21.15; Ml 3.14). Já os contestei em outra
oportunidade.
2. Outros pensam que a pregação constante é vã e afirmam o que os infiéis disseram de
Paulo em Atos 17.18: “O que está tentando dizer esse tagarela?”; e como Faraó, em Êxodo 5.9:
“não deem ouvidos a palavras mentirosas”. Deus, porém, afirma em Deuteronômio 32.46-47:
“Aplicai o coração a todas as palavras que, hoje, testifico entre vós – Porque esta palavra não é
para vós outros coisa vã; antes, é a vossa vida”.
3. Alguns infelizes carnais consideram todas as coisas inúteis no serviço de Deus, que é
espiritual – e eles não entendem, ou está acima do alcance de uma mente carnal (Jó 24.9; Hb
13.15).
4. E outros julgam vã toda a pregação, conferência, escrita ou oração que é longa.
Contudo Cristo não disse palavras vãs quando “orou a noite toda” (Lc 6.12). Nem somos
convidados a orar em vão, quando nos é proposto “orar contínua, incessante e insistentemente”
(1Ts 5.17; At 6.4; Lc 18.1-2). Nem Paulo falou de maneira inútil quando pregou até a meia-noite
(At 20). A piedade para tudo é proveitosa, e não vã (1Tm 4.8). Na verdade, no que se refere à sua
própria salvação, os ímpios podem tornar a nossa pregação vã; contudo, a palavra de Deus não
volta vazia. As ofertas dos desobedientes são infrutíferas (Is 1.13), e “O sacrifício dos ímpios é
abominável ao Senhor, mas a oração dos retos é o seu contentamento.” (Pv 15.8).
5. Alguns consideram toda pregação como fútil, especialmente quando se trata de
assuntos que já conhecem, embora tenham uma necessidade urgente de ouvir sobre esses temas
para evitar condenação ao pecar contra o que já sabem (2Pe 1.12-13; Rm 14.22).
6. Alguns acham inútil que as mesmas coisas sejam reiteradamente pregadas ou repetidas
(veja Fp 3.1), embora nunca as tenham aceitado e obedecido; ou que as mesmas palavras sejam
repetidas em oração com frequência, mesmo que não seja por inutilidade ou vaidade, mas por
fervor (Mc 14.39; Sl 136; 119.7).
7. Os incrédulos julgam a nossa glorificação a Deus como vã (2Rs 18.20; Is 49.4-5).
8. E alguns adversários maliciosos acusam os ministros de pregar inutilmente, sempre
que os ouvintes não se convertem. (Veja Hb 4.2; Gl 5.2; 3.4; 4.11; Is 53.1).
Por outro lado, muitos dos religiosos erram ao pensar:
1. Que toda conversa que não seja de absoluta necessidade, para alguma grande utilidade
e objetivo, é vã (1Rs 18.27; Pv 29.9).
2. E que toda a alegria e discurso agradável são fúteis. Ao passo que o Espírito Santo diz,
em Provérbios 17.22, que “O coração alegre é como o bom remédio, mas o espírito abatido seca
até os ossos”; “O coração alegre aformoseia o rosto, mas pela dor do coração o espírito se abate.”
(Pv 15.13). Em Gênesis 26.8, o rei Abimeleque viu Isaque brincando com Rebeca, sua mulher:
rindo (no hebraico), ou brincando (no aramaico e na Septuaginta), ou gracejando (no árabe e no
latim vulgar).

DIRETRIZES PARA UMA CONVERSA AGRADÁVEL E EDIFICANTE

Observe essas qualificações, e sua alegria e conversa descontraída não serão inúteis:
1. Que sejam assim e tanto quanto úteis para manter a alegria e vivacidade de espírito,
que são benéficas para a saúde e o dever; pois se as recreações para o corpo são lícitas, então os
divertimentos para a língua são lícitos, desde que sejam adequados ao seu propósito.
2. Que sua linguagem seja agradável, temperada com sal, e não uma comunicação
corrompida e imunda, não faça piadas com imoralidade ou pecado.
3. Que sejam inofensivas para os outros, não se divirta com os pecados ou fraquezas de
outros homens. Não faça piadas com o erro alheio.
4. Que sejam oportunas, e não quando outro estado de espírito for mais conveniente, nem
quando um discurso mais sério ou mais importante deveria acontecer.
5. Que sejam moderadas e não excessivas, não desperdiçando tempo em vão, nem
acostumando a mente dos falantes ou ouvintes à leviandade, ou os afastando das coisas que
deveriam ser preferidas.
6. Que tenham o cuidado de que toda a alegria e conversa sejam santificadas por um
propósito santo: em tudo, que a intenção seja animar os espíritos e se preparar para o serviço a
Deus, como faz ao comer e beber, e em todas as outras coisas.
7. E misturem (com reverência cuidadosa) algumas questões sérias, para que o propósito
e a aplicação não sejam esquecidos, e sua alegria não seja tão vazia e infrutífera quanto a dos
ímpios. Conversas esportivas, agradáveis e recreativas não são vãs, mas lícitas sob essas
condições.
8. Lembrem-se, ainda, de que a conversa mais santa e proveitosa deve ser a mais
agradável para nós, e não devemos, por meio do enfado, desviar-nos para a alegria carnal como
mais desejável, a não ser somente para a alegria natural e honesta, como companheira necessária
para alegrar os ânimos (Tg 5.13).

O QUE SIGNIFICA CONVERSA VÃ? E QUAIS OS SEUS TIPOS?


Palavras frívolas ou vãs são, portanto, aquelas que não são proveitosas e costumam não
fazer o bem. Abstenho-me de falar aqui das palavras frívolas, que são ainda piores do que as vãs,
como mencionado anteriormente entre os pecados da língua. Palavras vãs são:
1. Simplesmente as que costumam não servir para nada;
2. Ou as relativamente semelhantes, que se referem a algum bem minúsculo ou
insignificante, quando se deveria falar de coisas mais elevadas, o primeiro tipo é sempre
frívolo e, em razão disso, sempre profano; o último, algumas vezes, é lícito em si
mesmo, ou seja, quando não se podem discutir assuntos mais relevantes. No momento
oportuno, é lícito falar sobre poupar um centavo, ou um interesse, ou um alfinete; mas
fora de hora, quando assuntos significativos estão em curso, não passa de conversa
frívola e pecaminosa.
Também há uma grande diferença entre uma palavra vã de vez em quando e o costume
de tagarelar e falar futilidades, o que se torna a prática diária de algumas pessoas de língua solta,
de modo que a maior parte das palavras de toda a vida delas é basicamente inútil.
Os tipos específicos de conversa vã são difíceis de enumerar. Alguns deles são:
1. Quando a língua é como um andarilho pedinte ou um cão sem dono, que nunca está no
caminho e nem fora dele, e é deixada à vontade para falar de qualquer assunto improdutivo que
apareça diante dela. Para essas, jamais faltará assunto de que falar, tudo o que veem ou ouvem é
alvo da sua conversa, e uma palavra gera oportunidade e assunto para outra, e isso não tem fim.
2. Os discursos inúteis (falados ou escritos) de alguns homens eruditos, nos quais
proferem uma quantidade excessiva de palavras sobre alguma coisinha inoportuna – não para
edificar, mas para mostrar sua sabedoria (1Co 3.20; Rm 1.21), o que Sêneca repreende
amplamente.
3. As disputas infundadas e desmedidas sobre as circunstâncias menos relevantes da
religião, ou as discussões frequentes sobre questões nada edificantes quando deveriam estar
falando de assuntos mais sérios. “Mas não entres em questões loucas, genealogias e contendas, e
nos debates acerca da lei; porque são coisas inúteis e vãs.” (Tt 3.9).

Ora, o fim do mandamento é o amor de um coração puro, e de uma boa consciência, e


de uma fé não fingida. Do que, desviando-se alguns, se entregaram a vãs contendas;
querendo ser mestres da lei, e não entendendo nem o que dizem nem o que afirmam.
1Timóteo 1.5-7

Ó Timóteo, guarda o depósito que te foi confiado, tendo horror aos clamores vãos e
profanos e às oposições da falsamente chamada ciência, a qual professando-a alguns, se
desviaram da fé. A graça seja contigo. Amém.
1Timóteo 6.20-21
“Evite as conversas inúteis e profanas, pois os que se dão a isso prosseguem cada vez
mais para a impiedade.”
2Timóteo 2.16

Porque existem muitos insubordinados, palradores frívolos e enganadores,


especialmente os da circuncisão. É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo
casas inteiras, ensinando o que não devem, por torpe ganância.
Tito 1.10-11

4. O uso de uma infinidade desnecessária de palavras, até sobre aquilo que é bom e
necessário por si só, e que seria mais bem explicado de maneira mais breve (Jó 35.16). Mesmo
na pregação ou na oração, as palavras podem ser vãs, isto é, se não forem adequadas ao assunto e
aos ouvintes. É preciso perceber que as mesmas palavras são necessárias para um tipo de
ouvintes, no entanto são vãs para outro. Por essa razão, assim como os ministros devem ter o
cuidado de adequar a oratória aos ouvintes, assim também os ouvintes devem estar atentos para
não chamarem de vão, de modo crítico e precipitado, o que é dispensável para eles, ou para
semelhantes a eles. Pode ser que estejam presentes várias pessoas incultas, que o pregador
conhece melhor do que você; e os néscios esquecem o que é dito de forma concisa, eles precisam
receber tudo, em muitas palavras e repetidas vezes, do contrário não entendem, ou não se
lembram do que aprenderam. Contudo, ainda assim, o excesso efetivo de palavras, mesmo sobre
as coisas sagradas, deve ser evitado.

Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra
alguma diante de Deus; porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam
poucas as tuas palavras. Porque dos muitos trabalhos vêm os sonhos, e do muito falar,
palavras néscias.
Eclesiastes 5.2-3

Devemos evitar duas causas de palavras vãs na oração:


1. Superficialidade e precipitação.
2. Presunção, que significa:
a. Dar ênfase às palavras, como se você devesse ser ouvido por dizer tantas palavras
vez após outra (como os católicos romanos, em seu terço católico, dizem o nome de
Cristo nove vezes consecutivas, e outras nove vezes, e quinze vezes mais, além de
todas as repetições nas próprias orações entre elas). Os hipócritas de todas as eras e
religiões têm o mesmo jeito banal de devoção, conforme Cristo revela aos próprios
pagãos que agiam dessa maneira: “E, orando, não useis de vãs repetições, como os
gentios, que pensam que por muito falarem serão ouvidos.” (Mt 6.7);
b. Há um pedantismo na extensão da oração que gera palavras vãs na oração; quando
as pessoas pensam que é para a glória de suas habilidades gastar tanto tempo e falar
por tanto tempo, ou quando suas consciências supersticiosas, em segredo, as obrigam
a continuar por tanto tempo, e não têm matéria ou afeto correspondente para
preencher o tempo, não é de surpreender que ele seja preenchido com palavras que
são demasiadamente culpadas de vaidade.
5. Outro tipo de fala vã é aquela que é propositadamente elaborada para satisfazer
fantasias fúteis, entreter mentes viciosas e desperdiçar o precioso tempo das pessoas: tais são os
inúmeros livros de amor, romances, peças teatrais e roteiros; volumes de vaidade e horas repletas
de vaidade estudada (e pior): e tal é grande parte da conversa de tolos fingidos e piadistas, vícios
que dificilmente consigo expressar o quão odiosos os considero.
6. Outro tipo é o hábito de piadas excessivas: essa veia ou disposição é tão forte em
alguns que, quando têm vontade de soltar uma piada, não conseguem se conter, e ela deve sair,
custe o que custar, mesmo que seja frívola e vã (Ef 5.4).
7. Outro tipo é a fala tola, que não tem inteligência suficiente para torná-la edificante. E
entre os tagarelas, quão grande parte dela é tola! Quão cansativo seria para alguém ouvir a
conversa de muitos faladores! Quão insípida! Quão estúpida! Semelhante à fala de um louco, ou
de um bêbado, ou de alguém que está dormindo: seria muito mais agradável ouvir não apenas um
pássaro piar, mas até mesmo um porco grunhir, do que ouvir muito de seu discurso (Veja Pv
10.14; 12.11; 28.19; 1Pe 2.15; Pv 15.2, 14).

OS AGRAVANTES DAS CONVERSAS VÃS

Orientação II. Entenda também os agravantes das palavras vãs e quais delas são pecados
mais graves, a fim de que possam ser evitadas com mais cuidado. Embora todas as palavras vãs
sejam pecado, nem todas são igualmente pecaminosas, as piores são as que se seguem:
1. Quando as palavras vãs são constantes, multiplicam-se e se tornam a conversa e o
costume comuns, o que é o caso de alguns homens, porém abundantes em mulheres faladeiras,
cuja disposição natural inclina-as a tais coisas. Aquele que tem, portanto, menos sagacidade e
muita presunção e paixão, terá uma enxurrada de palavras para uma gota de senso. Caso se reúna
com uma pessoa muito paciente e ociosa a ponto de dar-lhe ouvidos, ficará sentado com ela por
uma hora inteira, sim, por muitas horas, para contar-lhe primeiro como vai o relacionamento dele
com o cônjuge, ou com os filhos, ou com os empregados. Em seguida, falará do gado, da casa ou
das terras; e depois, contará as novidades e começará uma longa conversa sobre os assuntos de
outras pessoas, que ele não conhece e com as quais não têm nenhuma relação. Logo depois,
falará sobre o tempo; e então, do mercado – do que está barato ou caro; contará o que fulano lhe
disse, e o beltrano lhe contou; uma história dos velhos tempos, e como o mundo mudou e os
tempos antigos eram melhores do que os de agora. Sem demora, ele lhe relatará o que tal pessoa
fez de errado, e o que ele disse dela; e quão mau é este ou aquele homem, e o que disse ou fez de
errado; e qual é a notícia do país quanto a este e aquele temas. Ato contínuo, irão narrar que
roupas sicrano usa, e quão fino e elegante é certo alguém; quem conserva bem uma casa, e quem
é mesquinho e avarento. Se estiver à mesa, terá algo a dizer sobre cada prato, e cada tipo de
carne ou bebida – as novidades, principalmente, ocupam grande parte de sua conversa (cf. Ez
33.30). E será ótimo se, em tudo isso, o sermão, ou a oração, ou a vida do pregador não forem
introduzidos para preencher as lacunas do discurso; e pode ser que o conselho, e as leis e os
feitos do rei sejam contaminados por tagarelices irreverentes desses papagaios, bem como
aspectos e pessoas mais mesquinhas. Como disse Teofrasto,[16] aquele que não quiser cair em
confusão fuja deles com toda a pressa que puder. Se o tédio for um sintoma tão grande disso
como se diz, eu preferia achar que isso lançaria alguém na miséria. Quem não tem nada a fazer
neste mundo, nem nada pelo mundo vindouro; e não usa o tempo, nem a inteligência, nem a
língua, nem as mãos, mas acorda como se estivesse dormindo, e vive como se precisasse fingir,
já que está morto; que não tem patrão, nem trabalho, nem salário, porém acha que nasceu para
ver o farfalhar das folhas, ou ouvir o zunido das moscas; deixe-o escolher uma companhia assim,
sentar e ouvir essas pessoas conversarem.
Quanto a mim, posso suportar com mais facilidade que me chamem de rabugento,
orgulhoso, descortês ou de qualquer coisa. Mais que isso, eu preferiria cavar, arar ou limpar
canis a suportar o tédio de seus discursos. Dionísio condenou um homem à morte por criticar sua
poesia, entretanto, mandou que o trouxessem para prová-lo mais uma vez. O homem levantou-se
no meio da recitação e disse: “Vamos lá, deixe-me ir para a forca; prefiro morrer a ficar tão
exausto”. Não sou tão impaciente; contudo, ficaria feliz se pudesse dormir bastante enquanto
preso a uma companhia dessas. E se tivesse de mandar para a escola uma pessoa que estivesse
doente do mal do falatório, o distúrbio da fala, eu pagaria (como Isócrates[17] ordenava) de bom
grado o dobro ao professor: a metade para ensiná-lo a segurar a língua, e a outra para ensiná-lo a
falar. Penso que muitos desses homens e mulheres estariam praticamente curados se estivessem
tão cansados de falar quanto eu fico de ouvi-los. Quem permite a tais andorinhas tagarelas
acumularem-se em sua chaminé parece querer que sua sopa tenha o sabor das fezes delas. Ou
ainda, mesmo que tenham algum conhecimento e bondade para abrandar o discurso, o palratório
excessivo revirará o estômago; e o excesso pode fazer com que alguns estômagos enjoados
tenham aversão até mesmo aos alimentos mais saudáveis. Pompeu estava tão farto dos falatórios
de Tully, que desejou estar ao lado de César, só assim ele me temeria (afirmou ele), considerando
que o convívio com ele, agora, me cansa.
2. Se for feita com uma arrogância orgulhosa e presunçosa da própria perspicácia, num
desprezo grosseiro pelos outros. É o que acontece com o excesso, quando não se tem educação
ou paciência para esperar até que outra pessoa termine de falar. É considerar os outros tão
prolixos que sua lista não mais vigorará quando chegarem ao fim. Sim, muitos supostos eruditos
e opinantes sofrem deste mal, sem vergonha alguma, ou respeito pela ordem, ou pela própria
reputação, têm tanta pressa de responder, e de eles próprios falarem, que interrompem a fala dos
outros pela metade, como se dissessem: Cale a boca e deixe que eu, o mais sábio, fale. E a
desculpa deles é: você demora tanto que terei esquecido a metade do que pretendo falar antes que
você chegue ao fim. Se, porém, for uma disputa, ou sobre assuntos importantes, é quase sempre
muito mais vantajoso para a verdade e para os ouvintes falar tudo o que deve ser necessariamente
considerado em conjunto, num discurso ininterrupto, pois as peças da verdade têm certa
dependência umas das outras, como os membros de um corpo, ou as rodas de um relógio, que
não são discernidas separadamente – metade da razão deles é se adequarem às outras partes. Isso
posto, a apresentação (nesses casos) por meio de fragmentos, palavras cortadas e interrupções
frequentes e mútuas é bater papo ou discutir, e não revelar a verdade com a clareza e a seriedade
que ela exige. Aqueles, pois, que acusam os outros de falar por muito tempo no intuito de
desculpar seus cortes grosseiros podem aproveitar a solução de Agostinho: “Longe de mim
considerar a loquacidade como um defeito quando as palavras são necessárias, mesmo que a arte
seja dita com prolixidade”. Os vastos volumes de Agostinho, Crisóstomo, Suarez, Calvino, sim,
do próprio Tostatus, raramente são acusados de palavras vãs. Se atribuir a cada um o mesmo
intervalo de tempo, um discurso sereno é mais adequado e poupa melhor o tempo do que
desentendimentos e trocas de palavras entrecortadas. E se sua memória não consegue reter tudo o
que foi dito, faça anotações, ou peça ajuda, solicitando que se repita, ou responda a parte que
você lembra.
3. A conversa vã é pior quando envolve assuntos sagrados e tende a profaná-los. Isso
ocorre quando as pessoas falam irreverentemente sobre as Escrituras ou controvérsias religiosas,
ou planejam, por meio de linguagem fluente, o fomento de alguma divisão, ou a propagação de
algum erro, ou a exposição de suas capacidades. Hieron afirma: “Usar palavras de forma
rebuscada e causar admiração no povo ignorante é coisa de pessoas incultas, nada é tão fácil
quanto enganar a plebe vulgar e inculta com a volubilidade da língua, que admira mais tudo o
que não entende”. A eloquência profana é o pior tipo de tagarelice.
4. As palavras vãs se tornam um pecado ainda mais grave quando são exaltadas,
justificadas e consideradas lícitas, como se fossem algo excelente. Isso é evidente em alguns
estudiosos infelizes que dedicam dias e meses a estudos triviais e desnecessários, enquanto
Cristo, a sabedoria de Deus (ou o tema da filosofia divina), é negligenciado (Cl 2.8). Aqueles que
ouvem suas supostas curiosidades críticas poderiam, como Paulo, proclamar: “O Senhor conhece
os pensamentos dos sábios, que são vãos” (1Co 3.20). Se compararmos suas vidas com seus
estudos, talvez nos recordemos de que “tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus,
nem lhe deram graças; antes, em seus discursos, se desvaneceram, e o seu coração insensato se
obscureceu” (Rm 1.21).
5. Palavras vãs tornam-se um pecado agravado quando são estudadas e pomposamente
apresentadas com grande esforço e custo, como algo para se gloriar, como em peças de teatro e
romances. Isso é pior do que estabelecimentos de tabaco, onde os homens vendem drogas. O
prazer, o amor, o trabalho, a despesa, o tempo, o engano, a tentação, a impenitência são grandes
agravantes desse pecado.

A INIQUIDADE DA CONVERSA VÃ DESMEDIDA

Orientação III. Entenda e considere a maldade do pecado da fofoca e da conversa vã,


pois a razão comum para isso é que as pessoas consideram ser um pecado tão pequeno que não
percebem perigo nele; e, portanto, não o temem mais do que um arranhão no dedo.
1. Considere que muitas palavras vãs representam uma multiplicidade de pecados.
Mesmo que uma palavra ociosa seja um pecado pequeno, quando se trata de centenas e milhares,
e é seu costume diário e horário, todas juntas não podem ser consideradas pequenas. Muitos
milhares de centavos são mais do que um xelim.[18] E seu costume cotidiano de conversar fiado
pode ser um pecado maior do que a embriaguez de Noé, ou o adultério de Davi, ou a negação de
Pedro a Cristo. Se alguém que jura o fizer com a mesma regularidade, ou um mentiroso mentir
com frequência, ou um ladrão roubar tanto quanto muitas mulheres (e homens também) falam
tolices, que monstros acharíamos que eles são!
2. A conversa sem propósito exclui todo o bom discurso e a conversa edificante que
deveria ser usada em todo o tempo (Cl 3.16-17; Ef 4.29; Sl 108.1). Podemos usar nossa língua
para coisas muito mais importantes, você tem seu negócio, e seu Deus, e sua alma, e seus
deveres, e seus pecados, e a vida por vir como exemplos de assuntos a falar! Oh, quantos temas
excelentes e necessários! E você vai deixar de fora todo esse discurso edificante com sua
conversa inútil? Servirá de obstáculo para os outros e para si mesmo?
3. A conversa vã é um consumidor pecaminoso de tempo, há questões mais excelentes
com que gastar as suas horas, se vislumbrasse o mundo para o qual está prestes a ir, e o quão
perto está dele, julgaria que possui assuntos mais sérios com os quais gastar o tempo. Tem noção
do que você perde ao desperdiçar todas essas horas?
4. A fofoca corrompe a mente dos ouvintes e costuma torná-los fracos, vaidosos e vazios,
ao contrário do bom discurso, que busca torná-los melhores. Afinal, por que se comunica com os
outros, se não para compartilhar seu pensamento e afetos por meio das palavras? E apesar de
muitos considerarem tal coisa um pecadinho, estou certo de que ele não causa um estrago
pequeno. Se as pessoas não estivessem tão acostumadas a serem entretidas com conversas vãs,
teriam mais facilidade em manter pensamentos e palavras mais nobres; seus pensamentos não
seriam tão propensos à futilidade, nem dariam tantas respostas com palavras ociosas. Em
contrapartida, uma fofoca dá origem à outra, sendo um pecado multiplicador e altamente
contagioso.
5. Assim como a língua é mal-empregada, a inteligência e a mente são depreciadas por
conversas frívolas. Até as boas palavras se tornarão desprezíveis quando forem muito reles e
comuns. Um violinista à porta será tido como um trapaceiro, mesmo que a música e os músicos
sejam honrados, quem consideraria um tagarela falador como um homem sábio? Aquele que é
logophilus (amante da palavra) raramente é philologus (amante da linguagem), muito menos
philosophus (filósofo). (Ec 5.3,7; 10.12-14; Sl 37.30; Pv 17.27-28; 10.20; 12.18; 10.19; 18.4-6;
21.23). Como Demóstenes disse a um falador: “Se soubesses mais, então falarias menos”.
Raramente são considerados homens de ação e virtude aqueles que falam muito; aqueles que
falam muito geralmente fazem pouco: mulheres, crianças e idosos são geralmente os maiores
faladores. Tito Lívio mencionou que os soldados que falam e se gabam muito raramente lutam
bem. Erasmo observou que as crianças que aprendem a falar muito depressa demoram a começar
a andar. Cão que late não morde. Que falar demais seja uma honra para um papagaio; para um
homem, contudo, o falar com sabedoria. A mobilidade da língua (honra comum a uma folha de
álamo) é toda a honra que eles possuem – poder dizer pouco com muitas palavras. Porém, dizer
muito com poucas palavras é a marca dos sábios, a não ser que a qualidade dos ouvintes o
proíba; e os que são mais concisos no falar, se os ouvintes condescenderem com eles, serão
considerados os melhores oradores. Não sou da mesma opinião de quem disse: “Várias vezes se
arrependeu de falar, mas nunca de calar”. No entanto, a menos que sejam ministros, poucos
homens têm motivo para se arrepender do silêncio tanto quanto da fala. Não tanto, mas muito
bem deve ser o cuidado do cristão. Como se diz da filosofia, muito mais posso afirmar da
religião, embora a excelência de um orador se manifeste apenas ao falar, entretanto a do filósofo
(e a do cristão) aparece mesmo no silêncio.
6. Onde há muita conversa vã, haverá muita conversa pecaminosa. Provérbios 10.19 diz:
“na multidão de palavras não falta pecado, mas o que modera os seus lábios é sábio”. Mentiras,
difamações, intromissões nos assuntos alheios, piadas grosseiras e muitos outros pecados
costumam estar associados a um hábito de conversa vã. É o meio pelo qual o diabo oferece suas
poções mais venenosas. Diz Lipsius: Aos faladores, está destinado não só o falar demais, como
também o falar mal.
7. Palavras vãs atrapalham sua própria edificação. Quem sabe se segurasse a língua,
permitindo que alguém falasse com mais sabedoria, isso poderia beneficiar você? (cf. Pv 23.8-9).
8. E você cansa os ouvintes (a não ser que eles sejam absurdamente pacientes) enquanto
pretende agradá-los (ou então, melhor conversar sozinho sobre tudo isso). É falta de educação
dizer a alguém que está cansado de ouvi-lo e mandar que se cale, a menos que seja muito
superior a eles. Você nem imagina quantas vezes eles pensam assim (julgo os outros por mim
mesmo): Eu fujo de uma pessoa que fala demais como de uma cama com pulgas ou piolhos –
fecharia as portas para ela como fecho as janelas contra o vento e o frio no inverno. Fico tão
satisfeito quando ela para de falar... E mais feliz ainda quando vai embora! Não se torne um peso
para seus companheiros ou amigos por conta do barulho incômodo de uma língua incansável.
9. O muito falar é a causa comum de contenda. Uma palavra ou outra acabará ofendendo
os que a ouvem; ou então, serão levadas aos que estão ausentes e serão motivo de angústias,
relatos, brigas ou processos judiciais. Não há como manter a tranquilidade, a paz e o amor na
presença de faladores tagarelas; pelo menos, não por muito tempo.
10. Entendam que, na conversa excessiva, quando vocês se colocam como os mais
dignos de falar, há clara manifestação de orgulho e impudência. É como se estivessem
proclamando: “Vocês são todos como crianças diante de mim; calem-se e ouçam-me falar!”. Se
cultivassem a humildade cristã e a modéstia (cf. Rm 12), honrariam os outros acima de si
mesmos, reconhecendo-se como os menos dignos de falar (a menos que o contrário seja
evidentemente verdadeiro), e demonstrariam um desejo de ouvir e aprender. Heráclito, ao ser
questionado por que permanecia em silêncio na companhia, respondeu: “Para que vocês possam
falar”. Portanto, quando vocês falam acima de suas capacidades, é como se estivessem dizendo
ao grupo: “Eu falo para que todos vocês fiquem em silêncio”.
11. É um pecado voluntário e do qual não se arrepende. Você é capaz de evitá-lo sem
problemas, caso queira. No entanto, escolhe continuar pecando; portanto, a falta de
arrependimento é o seu perigo iminente.
12. Por fim, veja quão inútil é esse pecado, e que cometê-lo não lhe traz benefício algum.
O que ganha com isso? Pecará diariamente contra Deus por nada?

INSTRUÇÕES PARA EVITAR A TAGARELICE VÃ

Orientação IV. Se não deseja ser um falador inútil, cuide para que seu coração se ocupe
de algo útil; e sua língua familiarize-se e acostume-se com sua função e trabalho apropriados.[19]
A mente e o coração desocupados são os motivos do discurso inócuo, fútil e vão. A consciência
pode alertá-lo quando sua língua se entrega à futilidade, indicando que, naquele momento, não
há sensação de pecado, dever ou a presença de Deus em seu coração. Não há amor santo nem
zelo por Deus; você está adormecido para Deus e para tudo o que é bom. Nesse estado de
letargia, você se incomoda e fala levianamente sobre qualquer coisa que venha à mente. Além
disso, não considera como uma questão de consciência falar sobre o que é bom, quando, na
verdade, isso o protegeria da vaidade e do mal. Lembre-se da infinidade de assuntos mais
importantes que existem para falar:
● O mal do pecado, a multidão e a sutileza das tentações, e a maneira de resisti-los;
● As falhas a lamentar, as evidências a investigar, as misericórdias a manifestar com
gratidão;
● A grandeza, a bondade e todos os atributos de Deus para louvar;
● Todas as obras de Deus para admirar, assim como todas as criaturas do mundo para
contemplar, e todas as admiráveis providências e governo de Deus para observar;
● O mistério da redenção, a pessoa, o ministério, a vida, os milagres, os sofrimentos, a
glória, a intercessão e o reino de Cristo;
● Todas as secretas ações santificadoras do Espírito Santo;
● Todas as ordenanças de Deus, todos os meios de graça, todos os nossos deveres para
com Deus e o homem, e toda a Sagrada Escritura;
● Além da morte e julgamento, céu e inferno, as inquietudes da Igreja de Deus, e a causa
das pessoas com quem você conversa e podem precisar de sua instrução, exortação,
admoestação, repreensão ou conforto.
Não há trabalho suficiente nisso para ocupar sua língua e mantê-la longe da conversa vã?
(cf. Pv 23.16; Sl 145.6,11-13,21). Conscientize-se dos deveres ordenados em Efésios 4.29: “Não
saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para
que dê graça aos que a ouvem”.

E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito;
falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais; cantando e salmodiando ao
Senhor no vosso coração.
Efésios 5.18-19

“Se alguém falar, fale segundo as palavras de Deus” (1Pe 4.11).[20] A omissão
pecaminosa de um discurso bom é a causa da prática pecaminosa da vaidade. Sobretudo quando
o próprio coração é vaidoso; pois tal qual o homem é, assim está pronto a falar. “Do mundo são,
por isso falam do mundo, e o mundo os ouve” (1Jo 4.5). Isaías 32.6 diz: “Porque o vil fala
obscenidade, e o seu coração pratica a iniquidade, para usar hipocrisia, e para proferir mentiras
contra o Senhor”.
Orientação V. Caminhe sempre com Deus, em sua presença, e no temor de suas leis e
julgamento, para que a consciência seja mantida desperta e sensível (cf. Jr 8.6; Pv 6.22; Sl 77.12;
149.11). Se entender que Deus o ouve, e se lembrar de que sua língua está submetida a uma lei, e
que “de toda a palavra ociosa que os homens disserem hão de dar conta no dia do juízo” (Mt
12.36), você se policiará de falar sem necessidade. Se a lei de Deus estivesse dentro do seu
coração (Sl 11.8), e escondida nele (Sl 119.11), seu coração estaria preparado (Sl 57.7). A
Palavra de Deus, então, seria o gozo do seu coração (Sl 119.111), e sua língua, então, falaria do
juízo (Sl 37.30). Uma consciência sensível sofrerá mais por uma palavra fútil do que uma
consciência cauterizada e insensata por um juramento, uma mentira ou uma calúnia, pois “o
temor do Senhor é limpo” (Sl 19.9), e “pelo temor do Senhor, os homens se desviam do pecado”
(Pv 16.6). “Antes permanecem no temor do Senhor todo dia.” (Pv 23.17).
Orientação VI. Esquive-se do ócio (cf. 1Tm 6.13; 1Pe 4.15). Os inativos da comunidade,
que não têm mais nada a fazer a não ser conferir, elogiar e fofocar acerca dos assuntos alheios, e
que têm tempo de ficar sentado por horas a fio juntos, sem propósito algum, são os mais
responsáveis por conversa fiada. Cavalheiros ociosos, mendigos, mulheres bisbilhoteiras que não
têm o que fazer, velhos sem temor a Deus e crianças desocupadas são os que podem ficar
sentados, falando pelos cotovelos de coisas que pouco interessam, como se dormissem o tempo
todo. Todas as pessoas que não têm o que fazer estão repletas de pragas de pensamentos e
palavras inúteis.
Orientação VII. Afaste-se de amigos que falam demais e não têm do que se ocupar: ou,
se não puder evitá-los, não lhes responda – deixe que falem sozinhos, a menos que seja para
repreendê-los ou levá-los a uma conversa mais proveitosa. Pois quando alguém ouve vaidade,
inclinar-se-á a falar vaidade. E esses ímpios falam com falsidade cada um com o seu próximo,
como se a língua lhes pertencesse tanto, que nenhum senhor pudesse controlá-las (cf. Sl 12.1-6).
O filósofo afirmaria: Aquilo que você não ouviria, não fale; e o que não falaria, não ouça. A
maioria é como papagaios – sempre repetem as palavras que ouvem. Quão difícil é evitar
conversa fiada entre os que falam inutilmente! Uma palavra vã recorre a outra, e isso não acaba.
Orientação VIII. Evite obras vãs, se quiser evitar palavras vãs. Pois o homem que se
ocupa em ocupações fúteis, todas as palavras que usa para realizá-lo são igualmente vãs. Que
vida levam, então, os que têm uma vocação ilícita! Quando os próprios negócios e transações são
pecaminosos, os complementos, as palavras acerca deles, serão pecaminosos e, portanto, toda a
vida será pecado contínuo. Em razão disso, prefiro ser o mais vil serviçal a ser um desses
homens. Especialmente os atores de teatro deveriam pensar nisso, assim como os que passam
horas inteiras, sim, a metade do dia, quando não noites, em jogos, ou em esportes vãos e
pecaminosos, que variedade de palavras ociosas é utilizada no meio deles! Cada lançamento de
dados e cada carta que jogam contém uma palavra torpe; de maneira que um homem sóbrio
ficaria fatigado e envergonhado ao ouvi-los.
Orientação IX. Não se lancem em excesso de negócios mundanos, como alguns fazem,
assumindo mais tarefas do que podem cumprir, sem necessidade. Isso só leva a uma variedade
excessiva de pensamentos e palavras desnecessárias. E tudo o que é gasto em servi-los em suas
ocupações vãs é vão, mesmo que a tarefa em si não seja vã.
Orientação X. Não permita que uma mente viciosa faça parecer indispensável ou
conveniente algo que é vão. Corações carnais, alheios a realidades mais nobres, não veem como
frívolas tudo o que satisfaz suas inclinações sensuais ou o que seu interesse carnal requer. Um
homem que busca agradar a todos acha que a civilidade o obriga a fazer visitas e elogios
desnecessários, a responder a pessoas que só estão conversando fiado, e a não ficar sentado em
silêncio ao lado delas, e não contradizê-las. Ele acha mais importante ser educado do que
obedecer a lei de Deus. Do mesmo modo, acha falta de educação não brindar com todos os que
estão bebendo, e também não responder a cada fofoqueiro.
Orientação XI. Tome cuidado com a mente orgulhosa e presunçosa, que julga o próprio
discurso excelente. Apenas seja humilde, e você preferirá ouvir a falar. Quando, porém, todos os
seus caprichos e imprudências lhe parecem assuntos maravilhosos, logo será como uma criança,
até que se livre deles, todos devem reverenciar e atender ao seu orgulho e loucura sem
questionar, ou serão considerados distraídos por que o ignoraram.
Orientação XII. Evite a paixão e companheiros passionais. A paixão é loquaz e não pode
ser controlada, porém resiste ao refrear da razão e reproduz palavras piores do que vãs (cf. Pv
14.17; 15.18; Ec 7.8-9).
Orientação XIII. Esteja alerta a um estilo brincalhão desordenado (cf. Ec 2.2; 7.6; Ef
5.4), ele habitua a mente à leviandade tola, não sabe o que é limite, e gera palavras vãs tão
numerosas quanto a carne podre gera vermes. E é um pecado grandioso, pois é habitual e, com
certo prazer e orgulho, gloria-se na presunção, na leviandade pecaminosa e na loucura.
Orientação XIV. Em especial, entenda que serviço tem de prestar a Deus ou aos homens,
não importa na companhia de quem esteja, e adeque suas palavras ao serviço e à companhia (cf.
Pv 22.17; 12.18; 13.20; 15.2,7,31). Há palavras que são inúteis e inconvenientes quando estamos
com uma pessoa; contudo, necessárias ou apropriadas com outra. Se pretender conversar com os
néscios e ímpios, transforme o discurso em uma forma compassiva de instrução ou exortação. Se
com homens mais sábios e superiores a você, questione e aprenda com eles, e extraia deles o que
pode edificá-lo.
Orientação XV. Evite cair na armadilha de uma curiosidade desnecessária na fala, mas
escolha as palavras que sejam mais adequadas ao tema, aos ouvintes e ao coração deles. Caso
contrário, seu discurso será avaliado como incomodamente vão; e você se orgulhará dele como
sofisticado, o que será sua vergonha. Palavras hipócritas, que não procedem do coração, estão
mortas e corrompidas, não passam de sombras da linguagem verdadeira, como se lhes faltasse a
veracidade e o valor da mente que lhe são vitais. As palavras são como leis – valorizadas pela
autoridade, importância e finalidade mais do que pela curiosidade e estilo; ou como o dinheiro –
avaliado pelo domínio, metal e peso, e não pela raridade da gravura, imagem ou material. Tudo o
que é falso, ainda que intrinsecamente refinado, é destituído de valor.
Orientação XVI. Imagine que você tenha registrado as palavras ociosas de um dia (as
suas ou as de qualquer outro tagarela) e as leia durante toda a noite! Não se envergonharia de
tamanha quantidade de vaidade e confusão? Ah, que livro daria, caso alguém escrevesse o que
sai da boca de faladores ociosos! Que desonra seria para a natureza humana! Alguns poderiam
ser levados a questionar se o homem é, de fato, uma criatura sensata, ou se todos são, no mínimo,
assim? Lembre-se então de que tudo está registrado por Deus e pela consciência, e de que toda
essa miscelânea de vaidades será revista, e delas daremos conta.
Em suma (pois não devo cometer a falta que reprovo), não considere o comportamento
da conversa fiada um pecado insignificante. Nunca permita que um membro tão negligente e
traiçoeiro como a língua fique desprotegido; e nunca fale de algo que não ousaria afirmar como o
que diz o Salmo 19.14: “Sejam agradáveis as palavras da minha boca e a meditação do meu
coração perante a tua face, Senhor, rocha minha e redentor meu!”.

QUAIS PESSOAS DEVERIAM SER MAIS DILIGENTES?

Sobretudo, no entanto, mais do que os outros, as seguintes pessoas devem vigiar contra
palavras vãs:
1. Os pregadores, que são pessoas duplamente santificadas, e cuja língua, por ser
consagrada a Deus, não deve ser alienada à vaidade por sacrilégio. Isso é pior do que a
alienação desrespeitosa dos lugares, utensílios ou receitas da igreja. Portanto, detestem
isso mais do que esses casos.
2. Os anciãos, cujas palavras deveriam ser solenes e sábias, e cheias de instruções para
reprimir a leviandade da juventude; a infância e a juventude são vaidade, contudo a
velhice não deveria ser assim (cf. 1Tm 4.12; Jó 12.12; Ec 11.10).
3. Pais e mestres, que devem ser exemplos de seriedade e serenidade para suas famílias,
e reprimir tais falhas nos que estão sob sua autoridade por meio de repreensões e
correções.
4. Os que são mais bem qualificados do que outros, com conhecimento e eloquência,
usando a língua para edificação. A conversa vã é um pecado duplo para eles.
5. Os que são conhecidos como pessoas santas e religiosas, pois se supõe que orem e
falem muito contra a conversa fiada e, portanto, eles próprios não devem ser culpados
dela. “Se alguém entre vós cuida ser religioso, e não refreia a sua língua, antes engana o
seu coração, a religião desse é vã.” (Tg 1.26).
6. Os que são ignorantes e precisam muito do discurso edificante dos outros.
7. Os que vivem entre pessoas sábias e santas, por intermédio das quais podem ser
muito edificados.
8. Os que estão cercados de gente que fala demais, e sabem que necessitam cuidar mais
da língua na companhia deles do que da carteira entre os malfeitores.
9. Aqueles (em especial as mulheres) que, por natureza, são viciados em falar demais, e,
por essa razão, devem ser mais vigilantes, conhecedores que são do mal e perigo dessa
atitude.
10. Pessoas vazias e raivosas, que carregam uma tentação contínua sobre si. Todas elas
devem ser particularmente vigilantes contra a conversa vã.
E por ora,
1. Especialmente quando estão entre aqueles que podem ser mais prejudicados por isso.
2. E quando estiverem indo para o culto, ou acabado de chegar dele, ou realizando os
deveres sagrados etc.
CAPÍTULO 6 | ORIENTAÇÕES CONTRA CONVERSAS
TORPES, CALUNIOSAS E OBSCENAS.

Orientação I. A principal orientação contra esse pecado imundo é geral: sair de um


estado destituído da graça e receber um coração que teme a Deus, e então não se arriscará ser
culpado de tal insolência, Deus não é desprezado assim por aqueles que o temem.
Orientação II. Não interrompa a sua santa comunhão com Deus na adoração, muito
menos em secreto, e não seja alheio a ele, nem se afaste dele. E então, não correrá o risco de
poluir tanto os lábios que costumam falar a sério com Deus. O quê?! Falar de luxúria e de
imundície com a mesma língua que ainda pouco se dirigia ao Deus santíssimo?! O nome e a
presença de Deus irão purificá-lo e deixá-lo estarrecido. Farão com que você entenda que o
templo do Senhor não deveria ser tão contaminado, e que ele não o chamou para a impureza, mas
para a santidade; e que uma língua torpe é inadequada para o santo louvor a Deus. Contudo,
enquanto o resto de sua vida não for nada além de um serviço ao diabo e à carne, não é de
admirar que a libertinagem pareça-lhe uma linguagem adequada.
Orientação III. Purifiquem o coração da vaidade e da imoralidade, e, então, a língua será
purificada. Um coração vaidoso ou impuro é o que torna a língua torpe.
Orientação IV. Lembre-se da vergonha que é revelar e proclamar a sujeira do coração
que você poderia ter ocultado. Cristo nos ensinou como interpretar as palavras, pois a boca fala
do que o coração está cheio (cf. Lc 6.45). E qual a necessidade de dizer às pessoas que você está
como um animal no cio? E que a luxúria e a impureza são os habitantes de sua mente? Se não é
tão desavergonhado a ponto de cometer fornicação em vias públicas, por que falaria disso?
Orientação V. Não se esqueça de que a conversa impura nada mais é do que um convite a
ações imundas. Basta perder a vergonha para satisfazer os desejos que o levarão ao
arrependimento mais tarde. É o que costuma ocorrer, quer haja a intenção ou não. Sentir-se-ia
ofendido com quem acredita que você pratica às escondidas a infâmia da qual fala aos quatro
cantos? Ou que está se preparando para encontrar-se com uma prostituta? Se o ato é ruim, fazer
dele uma piada não pode ser coisa boa.
Orientação VI. Lembre-se de que você desafia a piedade e a honestidade, a “palavra
torpe” entristece o Espírito de Deus (Ef 4.29-30). Espera que o Espírito Santo habite e trabalhe
em um ambiente tão impuro, e na companhia de tanta gente obscena? Atreve-se a orar, ou a ler
as Escrituras, ou a falar de qualquer coisa sagrada com esses lábios que proferem piadas
depravadas e imundas? Acha-se digno de orar depois de uma conversa assim? Ou melhor, não dá
motivos a todos que o ouvem de acharem que você renega a Deus e à piedade, e nunca prestou
qualquer adoração séria a Deus? E se pretende adorá-lo com essa língua torpe, o que espera em
resposta às suas orações, a não ser uma vingança pior do que a de Nadabe e Abiú? (cf. Lv 10.1-
3). “Acaso, pode a fonte jorrar do mesmo lugar o que é doce e o que é amargoso?” (Tg 3.11).
Você louva a Deus e usa a mesma língua para falar obscenamente? E acha que ele não se vingará
da sua hipocrisia?
Orientação VII. Pondere como você também desafia a civilidade comum. Comete coisas de
que os pagãos civilizados se envergonhariam; como se tivesse a intenção de reduzir a
Inglaterra aos costumes dos canibais e dos selvagens da América, que andam nus e não se
envergonham.
Orientação VIII. Observe que serviço você presta ao diabo ao corromper os outros (cf.
1Co 15.33); como se ele tivesse te contratado para ser um instrutor em sua academia, ou um de
seus pregadores, para desviar as mentes dos ouvintes da modéstia e prepará-los para a
depravação. As pessoas dificilmente correrão o perigo de ter suas fantasias tão incendiadas por
um fogo selvagem do que ao ouvirem conversas podres e imundas. E você será um dos
sacerdotes de Satanás?
Orientação IX. Lembre-se de que você não precisa se empenhar nem um pouquinho. A
luxúria e a imundície são tão naturais, e as mentes de todos os não santificados e impuros tão
propensas a isso, que não carecem de tutor, instigador, e nem de coisa alguma que favoreça as
suas concupiscências? Este fogo é ateado com facilidade. Os foles de sua indecência são
supérfluos para fazer tal pólvora queimar.
Orientação X. Lamente diante de Deus e dos homens a imundície da qual sua língua tem
sido culpada, e lave o coração e a língua no sangue de Cristo. Fuja da companhia e da conversa
acerca de coisas obscenas como agiria com relação a uma casa empesteada ou a qualquer
ambiente infeccioso e pestilento. E se ouvir uma conversa tão nojenta, repreenda-a ou vá embora,
e deixe-os perceber que você a odeia e teme a Deus.
Objeção. Ora, diz a boca suja, creio que não haja mal algum nisso. Não podemos nos
divertir e alegrar?
Resposta. Como?! Você não tem nada com que se divertir, exceto esterco, sujeira,
pecado, e a contaminação das almas e a ofensa a Deus? Você seria impuro diante do rei, ou
jogaria esterco na cara dos homens, e diria: Que mal há nisso, estou só brincando?
Objeção. No entanto, diz ele, aqueles que são recatados demais são tão ruins e até piores
do que nós em segredo.
Resposta. O quê?! Uma língua casta é sinal de uma vida impura? Então, você tanto
considera uma língua mansa e quieta como uma evidência de um homem irado, quanto uma
língua mentirosa como prova de um homem verdadeiro. Acredita que o rei aceitaria sua desculpa
se você falasse abertamente sobre traição e dissesse: “Aqueles que não a praticam abertamente
são tão ruins quanto eu em segredo”? Duvido que ele aceitaria tal justificativa.
CAPÍTULO 7 | ORIENTAÇÕES CONTRA A ZOMBARIA
PROFANA, O DESPREZO OU A OPOSIÇÃO À
MISERICÓRDIA

A EXPLANAÇÃO
Para prevenir as respostas ou desculpas do zombador, devo aqui esclarecer:
1. Por piedade, não quero dizer nada além de uma devoção plena a Deus e do viver para
ele, a doutrina e a prática que estão de acordo com as Sagradas Escrituras. Não me refiro a
fantasias de homens enganados, nem às opiniões particulares de qualquer seita, e sim à prática do
próprio cristianismo.
2. No entanto, devo informar-lhe que é prática comum desses escarnecedores
concentrarem-se mais no concreto do que no abstrato; na pessoa em vez da doutrina pura; e
oporem-se aos crentes piedosos dessa maneira, mesmo alegando não se opor à piedade. Os
motivos são os seguintes:
a. Porque se atrevem a ser mais ousados com a pessoa do que com a regra e a doutrina
do próprio Deus. Se desprezassem a Bíblia, ou a piedade diretamente, portanto, eles
vilipendiariam tão declaradamente o próprio Deus, que o mundo clamaria de vergonha
contra eles, e a consciência os inquietaria. No entanto, quando a piedade está em tal
vizinho, ou nesse pregador, ou naquele homem, eles acreditam que podem tratá-la com
menos reverência, alegando que o que fazem é contra a pessoa e não contra o cerne da
questão;
b. Quanto aos homens, eles têm algo mais para alegar como motivo para seus
zombamentos. Na humanidade, a piedade é latente, invisível, difícil de ser comprovada
em termos de sinceridade e obscura no que diz respeito à prática. Se alguém que zomba
de um homem piedoso disser: ‘Ele não é piedoso, mas um hipócrita’, neste mundo não
há uma justificativa perfeita que possa refutar tal calúnia. Contudo, a evidência provável
de uma confissão e de uma vida piedosa é tudo o que podemos apresentar. Entretanto, a
piedade, conforme apresentada nas Escrituras, se expõe diante de todos e não pode ser
negada, a menos que se negue a própria palavra de Deus.
c. A piedade, como rege a Sagrada Escritura, é perfeita, sem mácula alguma capaz de
dar qualquer pretexto ao escarnecedor. A piedade nos homens, entretanto, é muito
imperfeita, e combinada com pecados, com falhas que o mundo quase sempre é capaz
de discernir, e os próprios piedosos são levados a confessar. Por essa razão, um
escarnecedor pode encontrar algum argumento plausível neles. E ao ridicularizar os que
professam a piedade como se todos fossem hipócritas, ele não exemplificará as virtudes
dessas pessoas, mas as faltas: como na embriaguez de Noé, e no incesto de Ló, e no
adultério e assassinato de Davi, e na negação de Cristo por Pedro. Ainda assim, o dardo
será lançado contra a própria piedade, e a conclusão não será a de afastar os homens da
embriaguez, do adultério ou de qualquer pecado, mas da própria piedade valorosa;
d. A piedade, como prescrita na regra, é para eles algo mais adormecido e
imperceptível, não causando tanto incômodo, pois conseguem simplesmente fechar suas
Bíblias ou ignorá-las como meras palavras positivas. No entanto, a piedade manifesta
nos crentes, nos seus mestres e vizinhos, é mais clara para eles: mais atuante, mais
problemática e, portanto, mais odiada. Em uma carta inanimada ou em um santo
falecido, que não os incomoda, eles até conseguem elogiar. No entanto, nos vivos, a
piedade os perturba, os molesta. E quanto mais próxima está deles, mais se exasperam
contra ela. A palavra de Deus é a semente da piedade, que os ofende menos, até que
germine e produza o fruto que condena a vida perversa que levam.
3. E do mesmo modo que os opositores e escarnecedores costumam atingir a piedade
através da pessoa e de seus defeitos, também atacam determinadas partes do culto a Deus por
intermédio de algumas formas ou circunstâncias, ou das imperfeições dos homens na sua
condução. Não é a pregação ou a oração que eles desprezam, caso você acredite neles, porém
este ou aquele estilo, ou imperfeição, na pregação e na oração. O objetivo de tudo isso, porém,
não é ajudar qualquer homem a ter um desempenho melhor, e sim tornar odiosos os que são mais
sérios ao fazê-lo, e então, persuadir os homens de que é uma coisa desnecessária.
4. Observe ainda que não é a representação ou a parte morta da religião que mais ofende
esses homens e a que eles mais se opõem, mas a vida, o zelo e a diligência dos crentes. Assim,
ainda que os piedosos não se distingam desses indivíduos na profissão de qualquer doutrina ou
cerimônia, mesmo assim os odeiam e desprezam por praticarem com sinceridade aquilo que eles
próprios professam hipocritamente.
5. Por fim, observe também que esta não é uma discordância entre seitas, grupos ou
igrejas com base em opiniões divergentes, mas sim algo que ocorre dentro de qualquer grupo
quando o assunto envolve algum aspecto sério da religião. Mesmo entre os papistas, existem
indivíduos espirituais, sérios e santos, que são alvo de zombaria e oposição por parte dos
profanos que fazem parte de sua própria igreja. Sêneca e outros nos relatam que, entre os pagãos,
a rigorosidade na virtude moral era alvo de desprezo por parte dos rudes e sensuais. Contudo,
mesmo que a disputa remonte ao início entre a semente da mulher e a da serpente, em todos os
lugares onde as diferenças eclesiásticas geram controvérsias, essa inimizade sorrateira se insinua
com astúcia, tirando vantagem delas. Os cristãos discordantes, por sua vez, utilizam apelidos ou
armas mais afiadas uns contra os outros, atingindo assim o cerne do próprio cristianismo.

CUIDADO COM O QUE VOCÊ RIDICULARIZA

Orientação I. Para a cura dos que já estão contaminados com um pecado tão hediondo, a
principal instrução é entender a grandeza dele e suas consequências miseráveis:
Avalie o que você ridiculariza. Sabe contra o que abre a boca? Você achincalha ou se opõe aos
homens:
1. Ao amarem a Deus de todo o coração, alma e força, não confessa que esse é o dever de
todos os seres viventes? E que não é digno de ser chamado cristão aquele que não ama a Deus
acima de todas as coisas? Você não pode negar essas verdades. No entanto, deseja se opor a
elas? Não as negue, pois são exatamente aquilo a que você se opõe, seja aos homens que amam a
Deus, seja aos que demonstram seu amor a ele. Se amasse o Senhor com a mesma intensidade
que eles, o buscaria e o serviria com a mesma diligência. Não reconhece que, se o amasse de
todo o coração, alma e força, o buscaria, serviria e obedeceria de todo o coração, alma e força?
Se os crentes zelosos ultrapassam isso, zombe deles sem piedade. Se amam a Deus e o servem
com mais do que todo o coração, alma e poder, então os chame de excessivamente justos. Se
encontrar alguém que ame a Deus ou o sirva melhor do que ele merece, critique e se oponha a
esse homem sem piedade. Você sabe que, quando amamos algo intensamente, é isso que
buscamos e lembramos com mais frequência. Você trabalha pelo dinheiro porque o ama; e eles
trabalham para buscar e servir a Deus porque o amam. Somente um demônio contrariaria ou
zombaria das pessoas por amarem a Deus ou por demonstrarem seu amor por ele.
2. Ao se deleitarem naquilo que é mais prazeroso, como o conhecimento elevado e
celestial, e um estado santo de alma e vida; ao se regozijarem na lei do Senhor e meditarem nela
dia e noite (cf. Sl 1.2); ao se deleitarem na oração sagrada e nos louvores ao seu Criador; e ao se
deliciarem nas reflexões e menções das alegrias eternas, garantindo assim sua vocação e eleição.
O que, senão o exercício desses desejos e deleites sagrados, você ridiculariza? E não levaria a fé
e a santidade tão a sério quanto eles, se também desfrutasse de tantas dessas delícias? Passas
horas incontáveis junto às tuas panelas, ou engajado em jogos e esportes, ou discutindo vaidades,
simplesmente porque te deleitas nelas? E ainda assim zomba dos que se demoram orando ou
ouvindo a Palavra de Deus, já que é o seu deleite? Ah, alma desafortunada! Deus, em breve,
revelará quais delícias, as deles ou as tuas, são mais racionais e justas! E qual obra, a deles ou a
tua, é mais digna de ser ridicularizada!
3. Por entregarem somente o que devem ao Deus que os criou e redimiu. Eles não
pertencem ao Senhor? E ele não lhes deu todas as suas propriedades e poderes? E todas as suas
habilidades e posses não são dele? O que não receberam dele? E essa é sua justiça e honestidade,
ridicularizar os homens por se oferecerem para pagar suas dívidas e dar a Deus o que lhe
pertence? Se encontrar alguém que devolve mais ao Eterno do que lhe deve, desdenhe desse
homem intransigente e excessivamente justo, e não pegue leve. Entretanto, se os homens não
devem ser ridicularizados por pagarem as dívidas que têm com você, não escarneça dos homens
por pagarem os seus débitos para com Deus e entregarem o que é dele. Assim como devemos dar
a César o que é de César, também a Deus o que é de Deus.
4. Por obedecerem com esmero ao seu supremo mestre; por realizarem com diligência a
obra maior, melhor e mais essencial em todo o mundo. E acha que isso é um bom exemplo para
seus próprios servos? Certamente, se um homem deve ser ridicularizado por servir a Deus, ainda
mais deve sê-lo por servir a alguém como você. Sabe onde podemos encontrar um mestre
melhor, a quem sirvamos com motivação mais nobre do que a Deus? Ele nos fez seus mordomos,
confiou-nos seus bens, e você nos menospreza por sermos fiéis em nossa mordomia?
Ridiculariza seus súditos por obedecerem ao rei de todo o mundo, e acha que isso é um bom
exemplo para os súditos do rei? Obedecer ao rei deveria ser motivo de escárnio? Ou acredita que
a autoridade de Deus é inferior? Ou que a obediência a ele é menos louvável?
5. Não, você ridiculariza os homens por fazerem apenas parte de seu dever e cumprirem
apenas uma parte ínfima de sua dívida. Pois o homem tão santo, a quem você ridiculariza por
fazer muito, faz menos do que deveria. Você sabe que os melhores homens amam a Deus e o
servem menos do que ele merece; e que os mais cuidadosos ficam aquém da perfeita observância
de suas leis. E mesmo assim desprezará os homens por fazerem tanto, quando eles sabem, e você
confessa, que fazem muito pouco? Se fizessem tudo, somente cumpririam o seu dever (cf. Lc
17.10).
6. Porque eles não se posicionam, com sua inteligência e vontade, contra seu Criador.
Deus ordenou-lhes: “procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição” (2Pe 1.10); e
“entrai pela porta estreita” (Mt 7.13); e “na sua lei medite de dia e de noite” (Sl 1.2); e amá-lo de
todo o coração e força; e “orar sem cessar” (1Ts 5.17). E você ironiza os homens por
obedecerem a esses mandamentos! Ora, o que espera que façamos, homem? Diremos a Deus que
somos mais sábios do que ele? E que não faremos a sua vontade, mas a nossa? E que
conhecemos um caminho melhor do que o determinado por ele? E que ele está equivocado, e
quer nos enganar com suas leis? Gostaria que os homens fossem espontaneamente loucos e
rebeldes declarados contra Deus?
7. Porque eles confiam nele, que é a própria verdade e bondade. Para nós, é inconcebível
que ele possa nos enganar por sua palavra, ou que nos imponha qualquer lei que não seja justa,
ou exija de nós qualquer missão que nos cause dano, ou pela qual saiamos perdedores. Por essa
razão, resolvemos obedecê-lo o mais cuidadosamente possível, porque confiamos que a própria
bondade não nos maltratará, e a própria verdade não nos enganará: esta é uma questão a ser
desprezada? Os filhos não confiariam em seu pai?
8. Por não pecarem contra o conhecimento e a experiência que consideram certos. Eles
reconhecem que uma vida santa é a melhor, embora você não. Eles conhecem a razoabilidade, a
doçura e a necessidade de uma vida de santidade. E deveriam renunciar a seus próprios
entendimentos? Ser ignorantes porque você é ignorante? E arrancar os próprios olhos porque
você é cego? Os homens serem mais sábios do que você é um crime? E isso no que diz respeito a
Deus e a sua salvação? Eles têm experimentado o que é uma vida santa, e você não. Provaram do
que significa uma vida de fé e obediência: e abdicariam da própria experiência? Os que provaram
o mel devem afirmar que ele é amargo porque você, que nunca o provou, diz isso? Ai, homens
irracionais com os quais temos de lidar!
9. Por se amarem; sim, por amarem sua alma e cuidarem de sua saúde e bem-estar. Como
pode um homem amar de fato a si mesmo, e não amar a sua alma, que é ele mesmo? E como é
possível um homem amar a sua alma e não preferi-la às preocupações insignificantes da carne? E
não tomar o maior cuidado com sua máxima felicidade eterna? Pode um homem amar de verdade
a si mesmo e, ainda assim, condenar a si mesmo, ou desperdiçar o pouco tempo em que deveria,
se é que alguma vez o fez, desenvolver a sua salvação? Você desprezará quem cuida de seus
filhos ou de seu próprio gado? Você os ama e, portanto, cuida deles com zelo. E aquele que ama
sua alma não deve cuidar dela? Amar a si mesmo é natural para os humanos: e como alguém
pode amar o próximo, se não ama a si mesmo?
10. Porque amam o céu mais do que a terra, e porque desejam viver para sempre com
Deus e com todos os santos anjos celestes. Pois o que esses homens fazem com tanta devoção, a
não ser serem salvos? O que fazem senão “buscar em primeiro lugar o reino de Deus e sua
justiça?”, e “trabalhar não pela comida que perece” (Jo 6.27); e acumular “tesouro no céu” (Mt
6.20); e depositar o “coração lá” (v.21); e “buscar as coisas que são de cima, e pensar nas coisas
que são do alto” (Cl 3.1-3 – Veja Fp 3.19-20). E se é uma questão tão desprezível buscar o céu,
sem dúvida você nunca pensa em ir para lá; a menos que pense em chegar até lá desprezando os
que o buscam.
11. Porque não estão dispostos a ser condenados e nem a fazer alguma coisa que sabem
que os condenaria; ou a negligenciar algo sem o qual não há esperança de escapar do inferno.
Eles acreditam nas ameaças de Deus e, por conseguinte, acham que nenhum sofrimento é grande
demais para escapar de sua ira. Creem que uma vida santa é uma maneira necessária e fácil de
evitar o tormento eterno, porém se você pensa o contrário, mantenha sua opinião até que a graça
ou o inferno o tornem mais sábio. E não zombe de um homem que não brinca com a própria
condenação e se joga no inferno tão desesperadamente quanto você.
12. Porque eles não destruirão a si mesmos deliberadamente. Não foi suficiente você
denunciá-los a outros? Ou você mesmo matar algum de seus vizinhos? Deseja que eles façam
isso com as próprias mãos, e escarnece deles se não quiserem? Ah, monstro cruel! Que deseja
que um homem habite no fogo do inferno para sempre! E que para lá fosse por sua livre e
espontânea vontade! Isso é dez mil vezes pior do que desejar que ele corte a própria garganta.
Você diz: Deus me livre! Não desejo nada disso! Por que, homem, você faz o que não sabe?
Aquele que tenta induzir um homem a se enforcar, não é o mesmo que o tenta a matar e roubar?
Se o Deus justo determinou imutavelmente em sua lei que “sem santidade ninguém verá o
Senhor, e que Cristo virá em fogo ardente para se vingar dos que não obedecem ao seu
evangelho, e que serão condenados todos os que não creram na verdade, mas tiveram prazer na
injustiça” (Hb 12.14; 2Ts 1.8-10; 2.12) e uma vez que o Senhor estabeleceu que o inferno será o
preço da impiedade, você não espera que amaldiçoem a eles próprios, já que deseja que sejam
ímpios? Se você acredita que exista inferno, então me diga o que um homem pode fazer para
assassinar sua alma e se condenar, a não ser tornar-se um ímpio? Se este caminho não leva ao
inferno, então não há perigo em nenhum outro. Você acha que o diabo merece ser chamado de
assassino de almas? Caso contrário, parece que você assumirá às claras o papel do diabo; mas se
ele merece, então o raciocínio de todo o mundo julgue se esse homem não merece muito mais,
ou fará muito mais contra si mesmo do que o diabo jamais fez ou fará? O diabo não pode nada
além de tentar, mas você gostaria que os homens cometessem aquilo a que ele os tenta, e de fato
pecassem e negligenciassem uma vida santa.
E qual é o pior: quem pratica o mal ou quem apenas os seduz a ele? Se o diabo foi
chamado de “vosso adversário, anda em derredor, bramando como leão, buscando a quem possa
tragar” (1Pe 5.8), como deve ser chamado o homem que faz muito mais contra si mesmo do que
todos os demônios no inferno o fazem? Claro que ele é um devorador ou destruidor de si mesmo.
Diga-me, seu escarnecedor desleixado! Você considera o trabalho do diabo bom ou ruim? Se for
bom, receba o seu quinhão e se orgulhe dele quando chegar o fim. Se for ruim (enganar as almas
e atraí-las para o pecado e o inferno), por que quer que os homens causem ainda mais mal a si
mesmos? Quem peca é pior do que o que tenta. Responda-me, de que jeito o diabo leva os
homens a ferirem a si mesmos e amaldiçoarem sua alma, a não ser atraindo-os para o pecado?
Ele não tem outra maneira de destruir qualquer homem no mundo, exceto tentando-o ao que você
incita os homens a fazerem; até mesmo a pecar contra Deus e descuidar de uma vida santa.
Portanto, está claro que você zomba e se opõe aos homens porque eles não querem ser piores do
que demônios para si próprios.
13. Além do mais, opõe-se aos homens por não abandonarem a Deus! O que é renunciar
a Deus, senão recusar-se a amá-lo, honrá-lo e obedecê-lo como Deus? Ele mesmo nos disse que
“é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe, e que é galardoador dos
que o buscam.” (Hb 11.6). E não é essa busca diligente que você despreza? É óbvio, então, que
deseja afastar os homens de Deus e fazer com que o abandonem, como você fez.
14. Porque não são hipócritas; e por serem aquilo que você hipocritamente se
autodenomina e gostaria de ser. Você diz de si mesmo que é um cristão; e não é exatamente por
serem cristãos sérios que os ridiculariza? Afirma que crê em Deus; contudo não é por obediência
e serviço a Deus que você menospreza os outros? Reconhece que a Escritura é a palavra de Deus,
mas é por seguirem as Sagradas Escrituras que achincalha outras pessoas? Diz que crê na
comunhão dos santos; e zomba dos que mantêm a comunhão dos santos na prática. Diz crer que
Cristo julgará o mundo, e mesmo assim despreza aqueles que levam a sério a preparação para
seu julgamento. Ora para que o nome de Deus seja santificado, e seu reino venha, e sua vontade
seja feita na terra como no céu; e não obstante, ridiculariza os que santificam seu nome, e são
súditos de seu reino, e se esforçam para fazer sua vontade. Ó, fariseu miserável! E, no entanto,
essa sua língua finge que é pela hipocrisia deles que os odeia e ridiculariza, quando na verdade é
porque eles não são dissimulados e tão cegos e insensatos como você! Pode haver maior
hipocrisia no mundo do que odiar e desprezar a prática séria do que professa? E a vida diligente
que condiz com o que a própria língua confessa crer? Se você disser que é por trabalharem
demais e serem muito rigorosos, eu lhe respondo, se não é a vontade de Deus que ajam dessa
forma, ainda que eu não risse deles, procuraria torná-los tão justos quanto você! Se, porém, for a
vontade de Deus, então me diga, você acha que eles fazem mais do que os que estão no céu? Ou
que vivem com mais rigor do que os que vivem no céu? Se sim, oponha-se a eles e não
economize. Se não, por que orar para que a vontade de Deus seja feita na terra como é no céu?
15. Por desempenharem aquilo para que foram criados, e para quê a razão, vontade e
todas as suas faculdades existem. Retire isso deles, e não servem para nada, um animal é bom
para servir o homem, e as plantas para alimentá-lo; no entanto de que serve o homem, ou para
que foi feito, senão para servir ao seu criador? E você o despreza por aquilo pelo qual ele veio ao
mundo? Também pode odiar uma faca porque ela corta, ou uma foice por desbastar, ou um
relógio por contar as horas do dia, já que não foram feitos para outra coisa?
16. Por serem salvos por Cristo e por seguirem o seu exemplo. Para que Cristo veio ao
mundo a não ser para “destruir as obras do diabo” (1Jo 3.8); e para “salvar o seu povo dos seus
pecados” (Mt 1.21); e para “nos remir de toda a iniquidade, e purificar para si um povo seu
especial, zeloso de boas obras.” (Tt 2.14). E Cristo, para assombro de homens e anjos, fez-se
carne e habitou entre os homens, e deu-lhes sua santa doutrina e exemplo, e sofreu a morte no
lugar deles – tudo isso para levar os homens à pureza zelosa. E você ousa desprezá-lo? O que é
isso senão desprezar seu salvador e fazer pouco caso de toda a obra da redenção, pisar no Filho
de Deus e aviltar seu sangue, sua vida e seus preceitos?
17. Por serem renovados e santificados pelo Espírito Santo. Qual é a obra do Espírito
Santo em nós, senão nos santificar? E o que significa nos santificar, afora nos lavar do pecado e
nos levar à dedicação completa de nossa alma e vida a Deus? Você acredita no Espírito Santo ou
não? Se sim, o que isso quer dizer senão crer nele como o santificador dos eleitos de Deus? E o
que você entende por santificação, que não essa pureza e santidade de coração e vida? E mesmo
assim se atreve a desonrá-lo?
18. Por imitarem os santos antigos cujos nomes você parece honrar, e em honra de quem
celebra festas. Você se compromete a honrar o nome de Pedro, Paulo, Estevão e João; de
Agostinho, Jerônimo, Crisóstomo e de outros santos de Deus. No entanto, desprezará aqueles
que se esforçam para imitá-los? Pesquise e veja se algum desses homens, após se converter,
viveu no luxo, jogando cartas e dados; ou em profanação; e se algum deles era contra uma vida
santa, muita oração, ouvir e ler as Escrituras, meditação e obediência cabal a Deus. Logo, que a
vergonha não seja sua, mas minha. Aqueles que mais diferem deles são os que mais merecem
desprezo.
19. Por se arrependerem de seus pecados pregressos e por aceitarem a misericórdia que
Cristo comprou, e Deus lhes ofereceu, e enviou seus mensageiros para suplicar-lhes que
aceitassem. É possível que se arrependam da antiga impiedade e não se apartem dela e se
corrijam? Se soubesse o que eles sabem, você se arrependeria e não zombaria dos homens por se
arrependerem. Caso conhecesse o dom de Deus, você imploraria por ele e o aceitaria de bom
grado, e não escarneceria dos que o aceitam.
20. Por manterem a aliança que você também fez com Deus no batismo. Você zomba dos
que guardam a aliança que fizeram no batismo. Que monstro de contradições é um ímpio
hipócrita! No batismo, você não renunciou à carne, ao mundo e ao diabo, e abriu mão de si
mesmo em aliança com Deus Pai, Filho e Espírito Santo? E ainda não entende o que fez? E
despreza os que o fazem? O que significa entregar-se a Deus no batismo, a não ser recebê-lo
como seu Deus, seu Salvador e santificador, a quem deve amar, buscar e obedecer em santidade,
de todo o coração, alma e força? Quem odeia guardar a aliança não passa de um violador da
aliança.
Até aqui, tenho lhe mostrado a que você se opõe e o quê ridiculariza: agora, direi mais do
que você faz, mostrando-lhe os agravantes do pecado e sua relevância.

A GRAVIDADE DO PECADO DA ZOMBARIA CONTRA A SANTIDADE

1. Reflita, em todas essas coisas, que inimigo declarado de Deus é você, e que soldado
manifesto do diabo, o que mais pode fazer contra Deus, e dar o seu pior, do que escarnecer de
todo o seu trabalho e de seus servos? Ele não teme seu poder ou raiva; você não pode atingi-lo.
Quantos milhões de vermes como você ele é capaz de lançar no inferno, ou destruir em um
instante! É em seus servos e na obra deles que o Senhor é honrado ou contrariado aqui, e os
mortais demonstram seu amor ou ódio por ele. E como podes planejar, se quiseres dar o teu pior,
servir ao diabo de forma mais notória do que se opondo e ridicularizando a obra de Deus? Se
esses não são os servos de Satanás, ele não tem mais nenhum.
2. Considere que terrível insígnia de miséria carrega sobre si! Você carrega a marca de
Satanás, a morte e o inferno em sua testa, por assim dizer. Ainda que houvesse alguma dúvida se
um devasso, ou bêbado, ou fornicador pode estar em estado de graça, mesmo assim é
inquestionável que um escarnecedor da piedade não está, na verdade, seria estranho que alguém
que zomba da santidade pudesse ser santo. É difícil que haja algum tipo de homem no mundo
que esteja mais indubitavelmente em estado de condenação do que você. É um mistério para nós
o que Deus fará com os infiéis e pagãos que nunca receberam os meios para a salvação; porém, o
que ele fará com todos os incrédulos e ímpios que os receberam, sem sombra de dúvida, nós
sabemos. Ainda mais o que ele fará com os que não só são vazios de santidade, mas a desonram.
Não nego: ainda há tempo de você se converter e ser salvo. Ah, que Deus “lhe dê
arrependimento para conhecer a verdade”, a fim de que “torne a despertar, desprendendo-se dos
laços do diabo, em cuja vontade está preso.” (2Tm 2.25-26). A respeito de Basílio, está escrito
que, por meio de suas orações, ele fez com que o diabo devolvesse um escrito pelo qual um
homem miserável lhe vendera a alma, para que pudesse desfrutar da filha de seu senhor; e que o
homem se arrependeu e foi liberto. Se você puder ser regenerado, será um dia feliz. Até agora,
porém, tão certo quanto a Escritura é verdadeira, você é uma criatura miserável e um homem
arruinado se morrer na condição em que está. Oh, com que medo deveria se levantar e deitar, se
você tivesse juízo, receoso de morrer antes de se converter.
3. Desprezar a santidade é um desafio à graça, como se renunciasse à misericórdia de
Deus, você faz o pior que pode para afastar toda a esperança e tornar seu caso incurável e sem
esperança. Pois, se algum dia você for salvo, será por esta graça e vida santa que você despreza,
por acaso escarnecer da graça é o caminho para alcançá-la? E é possível que o Espírito Santo
venha habitar no homem que despreza suas obras santificadoras?
4. Fazer pouco caso da piedade é desafiar a Deus e abrir mão de sua paciência e, em
breve, executar a vingança dele contra você! Pode se surpreender caso ele faça de você um
monumento de sua justiça e colocá-lo para que todos os outros sejam alertados? Quem é mais
adequado para isso do que os opositores desdenhosos de sua graça e obra? Não apresse a
vingança, homem; chegará a hora certa. Pode um verme desafiar o Deus do céu?
5. Quão pouco você compreende de tudo a que você se opõe! Alguma vez já
experimentou uma vida santa? Se o tivesse feito, não falaria contra ela; se não o fez, não se
vergonha de falar mal daquilo que não conhece? É uma coisa que ninguém pode entender
completamente sem viver, experimente-a um pouco, e depois diga o que acha.
6. Já pensou em quantos julgamentos há contra você e em quem você contradiz e
despreza?
● Se você despreza a fé genuína, a pregação, a leitura, a oração, a meditação e a prevenção
estrita do pecado, você contradiz o próprio Deus; pois ninguém em todo o mundo é tão
santo, ou tão a favor da santidade, quanto ele. Portanto, em última análise, é contra ele
que toda a sua malícia é dirigida; ao próprio Deus, o Pai, e o redentor, e o santificador.
● Você se coloca contra todas as evidências das Escrituras;
● E contra todas as obras de Deus, pois todos conspiram para chamar o mundo à santidade
e obediência rigorosa a Deus.
● E você contradiz todos os profetas e apóstolos, e todos os antigos pais da igreja; e todos
os mártires e santos de Deus que já existiram no mundo; e todos os ministros e pastores
fiéis e instruídos da igreja que existem ou já existiram; e todos os piedosos em todo o
mundo; e todos os que já tiveram a experiência de uma vida santa, e quem é você para
desprezar todos eles? Porventura é mais sábio do que todos os ministros e pessoas
piedosas do mundo? Ou todos os apóstolos e santos mártires de Cristo que já existiram?
Sim, e do que o próprio Deus?
7. Você já notou como o discurso de Cristo e de seus apóstolos eram diferentes do seu?
Eles zombavam dos homens por serem muito diligentes, por agradarem a Deus e salvarem a sua
alma? Leia apenas os seguintes trechos e julgue: Mateus 5.8,11,20; 6.21-33; 7.13-14; 1Pedro 18;
2Pedro 3.11; 1.10; Hebreus 11.6; Mateus 5; Romanos 8.1,5-9,13; Filipenses 3.18-19; Hebreus
12.28-29.
8. A sua atuação para com o mundo não é tão significativa quanto a daqueles a quem
você se opõe em prol do céu? Sente-se ofendido por eles pregarem e orarem por tanto tempo?
Acaso você não passa mais tempo nos seus afazeres mundanos? E os amantes de festas não
prolongam suas horas em banquetes, visitas, jogos e recreações? E você está incomodado por
eles falarem tanto do céu? E você não fala ainda mais da terra? E, na sua cabeça, qual dessas
coisas merece mais que a busquemos e falemos dela? No final, qual delas provará ser a melhor?
E qual trabalho será mais digno de chacota?
9. O que ganharia se a sua vontade se realizasse, e a oração, a pregação e a santidade
fossem banidas do mundo como você gostaria? E se os homens, a fim de agradá-lo,
desagradassem a Deus e rejeitassem a própria alma para sempre? Sentir-se-ia bem se a terra fosse
tão parecida com o inferno? Já é uma tristeza para os homens piedosos pensar em quão pouca
santidade há no mundo, é difícil que já tenha surgido uma ideia mais triste em meu coração do
que a de examinar todas as nações da terra, e refletir em como a ignorância e a impiedade
sobejam, e em como são raros os que são verdadeiramente santos; e que criatura desumana é essa
que ainda desejaria que eles fossem menos, e rejeita a pouca sabedoria e misericórdia que resta
no mundo! (Rm 11.1-2).
E haveria algum gozo para você no inferno, caso os homens o seguissem até lá para
agradá-lo? Não, seria o seu tormento eterno ver lá tantos destruídos para sempre por darem
ouvidos a seus conselhos perversos. Não diga que você não é tão cruel, e que não deseja a
condenação deles, também não deseja a sua própria. No final, o efeito é o mesmo, se for o
caminho para lá que deseja. Você também pode dar veneno a um homem e zombar de outro por
comer e beber, e ainda assim dizer, não é a sua morte que eu desejo. Mas eles morrerão se forem
guiados por ti.
10. O homem que não faz tanto pela salvação da alma de seus vizinhos não é tão cruel
quanto você, que os ridiculariza por tentarem salvar as próprias almas? Se você estivesse doente,
eu me recusaria a orar por sua vida? Ou se eu soubesse que isso poderia salvar a alma de outra
pessoa, consideraria quaisquer meios ou esforços grandes demais? Se não, acredito que posso
fazer por mim mesmo o que a misericórdia me ordena fazer por outra pessoa.
11. Estamos em uma época propícia para menosprezar a santidade, quando, ao mesmo
tempo, há incontáveis almas no céu, e elas alcançaram esse estado através do caminho da
santidade? E há inúmeros seres no inferno, todos lá por não terem seguido a vereda da santidade?
Enquanto você desdenha dela em suas palavras, eles clamam em desespero pela insensatez de tê-
la negligenciado. Uma alma no céu daria atenção às suas zombarias se voltasse a viver na terra?
Ou uma alma no inferno seria ridicularizada lá, caso fosse testada com outra existência? Se neste
exato momento você pudesse contemplar o sofrimento das almas ímpias no inferno e as alegrias
das almas santas no céu, você ousaria zombar novamente da santidade? Por favor, reveja suas
ações com vergonha e, pela fé, vislumbre aquilo que os olhos mortais não conseguem enxergar.
12. E se os homens se renderem às suas chacotas e abandonarem uma vida santa para
agradá-lo? Você se comprometeria a justificá-los ou seria responsável por eles diante daquele
Deus, que exigiu santidade e condenará todos os ímpios? Você os livraria e os salvaria da
condenação? Ah! pobre alma, não será capaz de salvar a si mesma! E você os considerará sábios,
se desagradarem ao Senhor e forem para o inferno para agradar a alguém como você?
13. Você não largará a sua casa, ou terra, ou direito; nem comida, ou bebida, ou
descanso por causa de escárnio, acaso os lançaria fora se outro zombasse de você por usufruir
dessas coisas? Creio que não faria isso. E você espera que os sábios abram mão da salvação
porque sofrem sarcasmos?
14. Acharia aceitável se escarnecessem de seus filhos ou servos por lhe amarem ou
obedecerem? Ou que seu próprio cavalo fosse desprezado por servi-lo? E eles devem mais a
você do que todos nós devemos a Deus?
15. Deus os honra e ama muito, por isso mesmo você os odeia e ridiculariza. João 16.27
e 14.21: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que
me ama será amado por meu pai; e eu o amarei e me manifestarei a ele”. Salmos 11.7 diz: “
Porque o Senhor é justo, e ama a justiça; o seu rosto olha para os retos”. Salmos 146.8: “O
Senhor ama os justos.”

E que consenso tem o templo de Deus com os ídolos? Porque vós sois o templo do
Deus vivente, como Deus disse: Neles habitarei, e entre eles andarei; e eu serei o seu
Deus e eles serão o meu povo. Por isso saí do meio deles, e apartai-vos, diz o Senhor; e
não toqueis nada imundo, e eu vos receberei; e eu serei para vós pai, e vós sereis para
mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-poderoso.
2Coríntios 6.16-18

E ousas desprezar os filhos e filhas do altíssimo? Até por algo pelo qual ele prometeu
recebê-los e ser um pai para eles? Quão oposto, então, você é a Deus!

Então aqueles que temeram ao Senhor falaram frequentemente um ao outro; e o Senhor


atentou e ouviu; e um memorial foi escrito diante dele, para os que temeram o Senhor,
e para os que se lembraram do seu nome. E eles serão meus, diz o Senhor dos
Exércitos; naquele dia serão para mim joias; poupá-los-ei, como um homem poupa a
seu filho, que o serve. Então voltareis e vereis a diferença entre o justo e o ímpio; entre
o que serve a Deus, e o que não o serve.
Malaquias 3.16-18

Portanto, diz o Senhor Deus de Israel: Na verdade tinha falado eu que a tua casa e a
casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém agora diz o Senhor:
Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram honrarei, porém os que me
desprezam serão desprezados.
1Samuel 2.30
E você será um de seus desprezadores, opondo-se àquilo pelo que Deus mesmo prometeu
honrar a outros?
16. Odiar e desprezar a santidade significa odiar e desprezar a própria imagem de Deus,
e a representação mais evidente de Deus que há debaixo do céu – inclusive aquela pela qual
Cristo desceu do céu para nos dar a primeira porção; e o exemplo da vida santa de Cristo,
gravada no coração pelo Espírito de Deus (Lc 19.27). E quem despreza essa imagem de Deus,
despreza o Espírito Santo que a criou; e menospreza a Cristo, que nos deu o primeiro modelo; e
desdenha do próprio Deus, de quem é a imagem. Crisóstomo diz, “Deus é amado e odiado em
seus servos tal qual um rei é honrado ou desprezado à sua imagem.” E quem se atreve a
desprezar a Deus, a Jesus Cristo, ao Espírito Santo e à imagem de Deus sobre seus filhos, creio
que nunca deveria ter o descaramento de esperar ser salvo pelo Deus que ele despreza.
17. Você é o opróbrio da natureza humana, e faz com que o homem se pareça tanto com
um demônio que fica difícil provar que os demônios são capazes de ser muito piores. Pode haver
pecado maior do que uma criatura desprezar e ridicularizar a imagem e as leis de seu criador? E
odiar, e se opor, ou perseguir os homens por obedecê-lo e buscarem agradá-lo e salvarem sua
alma? O que poderia fazer de pior caso se empenhasse para ser tão mau quanto possível? Que
vergonha o seu intelecto ser tão cego! E o teu coração tão perverso! Desprezar o sol por brilhar,
ou a terra por dar frutos, não chegaria aos pés de uma vergonha tão grande, pois embora sejam
criaturas de Deus, eles não carregam a imagem da santidade do Senhor como os seus filhos o
fazem. No fim, quando ele condenar os homens, será por essa razão. Mateus 25.40 diz: “E,
respondendo o rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes (ou não o fizestes) a um
destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes (ou não).” Ah, que espanto que a natureza
humana possa chegar ao ponto de odiar, opor-se e desprezar a imagem do seu criador, a
obediência a ele, e zombar da santidade de Deus! É uma grande questão se levar os homens a
cometerem tais pecados não é o maior pecado do diabo, e se cometê-lo é pior do que tentar
alguém a cometê-lo. E quanto ao homem que tem um salvador que se entregou por ele, desprezar
a graça de seu salvador e zombar de seus servos dessa maneira deve ser muito pior do que o
diabo agir assim, já que não possui salvador, perdão e esperança alguma lhe foram ofertados,
mas está encerrado debaixo de desespero eterno. Da mesma forma, é pior que uma criança
amaldiçoe seu pai, ou o despreze, do que um inimigo o faça. Reflita e estremeça: esse zombar ou
insurgir-se à obra do Espírito Santo muito se aproxima da blasfêmia imperdoável contra ele (cf.
Mt 12).
18. Que maldade não se pode esperar de você, que é capaz de cometer tamanho pecado?
O seu próximo não deveria esperar que os interesses carnais o levassem a cometer qualquer dano
contra ele? É errado ele pensar que você seria um ladrão, um assassino, um promíscuo, um
enganador, a menos que não seja tentado a cometê-los? Ou que trairia o seu rei e seu país? Ou
seria infiel ao seu amigo mais verdadeiro, caso se sentisse tentado a isso, já que menospreza os
homens por obedecerem ao próprio Deus? (cf. Sl 123.4). Aquele que ousa ignorar o seu criador,
redentor e santificador, e cuspir ignomínia sobre a própria santidade, a imagem do seu juiz,
hesitaria diante de qualquer maldade a que fosse igualmente tentado? Quanto a mim, se alguma
vez confiar a você, ou a qualquer homem semelhante, a vida ou a liberdade, ou o valor de um
tostão, confiarei no seu interesse, e não na sua honestidade e consciência. Confiarei em você
pouco mais do que confiaria no próprio diabo que o governa.
19. Por fim, considere o que achará de si mesmo quando a morte e o julgamento
chegarem (leia também Jd 14-15; Sl 1). Quando estiver prestes a ser julgado por Deus, será que
se sentirá confortável ao pensar que então estará diante da presença do Deus a quem você
desprezava? Quando vir Cristo voltar com milhares de seus santos anjos para julgar o mundo,
sentirá algum consolo ao pensar: eis aquele de cuja vida santa, preceitos e servos eu zombei ou
persegui na terra? Agora, serei julgado por aquele de quem escarneci. Ah, que situação terrível!
Um escarnecedor ou perseguidor da santidade ser julgado pelo Deus santo, cujos caminhos
renegou e perseguiu! (cf. Pv 9.12; 29.8; Is 28.14). Se você disser: “Não foi a Cristo, mas a uma
pessoa que ridicularizei”, observe Mateus 25.40,45; Lucas 19.27; Atos 9.4: “Saulo, Saulo, por
que me persegues?”. Se desprezar um filho por aquilo em que ele se parece, imita ou obedece ao
seu pai, no dia do julgamento de sua desgraça, descobrirá que o maior e principal alvo de seu
desapreço foi o próprio pai. Logo, eu preferiria ser o sapo mais vil a ser um homem assim. E
então, vai manter o que disse? Sustentará suas calúnias e reprovações? Condenará ou desprezará
os piedosos ao vê-los justificados à direita de Cristo, ou glorificados com ele no céu? Não! Como
em Malaquias 3.18, quando Deus separa suas joias, “voltareis e vereis a diferença entre o justo e
o ímpio; entre o que serve a Deus, e o que não o serve”. Assim, você engoliria com prazer todas
as palavras de reprovação e desprezo que já falou contra um santo, e gostaria que nunca as
tivesse proferido! Afirmo-lhe que é indecoroso o fato de que o mesmo homem que hoje despreza
a piedade tremerá tão depressa diante do Deus justo ao lembrar-se delas!
Considero essas revelações da terrível natureza deste pecado como as melhores
orientações contra ele; pois do mesmo modo que é um pecado que não lhe acrescenta nada,
também é um pecado que pode abandonar sem dificuldades, se estiver disposto. Todavia para os
que ainda estão apenas sob ameaça dele ou a ponto de cometê-lo, acrescentarei estas outras
orientações para mantê-los afastados de uma maldade tão violenta.

ORIENTAÇÕES PARA EVITAR O ESCÁRNIO IRREVERENTE

Orientação I. Evite a companhia dos homens perturbados, que ousam insultar os servos e
os caminhos de Deus. Há algo na natureza corrompida deles que o inclinará a imitar as mais
horríveis blasfêmias, se ouvi-las com frequência. Em nossos dias, testemunhamos que, ao
imitarem outros, homens têm sucumbido a pecados inomináveis, brindando ao diabo e
transformando “Deus me condene” em uma expressão corriqueira. Portanto, não se torne
companheiro deles.
Orientação II. Esteja atento para não se perder em pecados que levem à cegueira da
mente e à insensibilidade do coração. Não abandone Deus, para que Ele não o abandone. São
geralmente aqueles que foram abandonados por Deus que chegam a esse estado desesperador de
pecado, a ponto de o Livro de Homilias[21] descrevê-los da seguinte maneira: “A terceira
categoria ele chama de escarnecedores, ou seja, homens cujos corações estão tão saturados de
malícia que não se contentam em permanecer no pecado e conduzir suas vidas em toda sorte de
maldade; mas também condenam e desprezam a misericórdia, a verdadeira fé, a honestidade e a
virtude nos outros. Quanto aos dois primeiros tipos de homens, não direi que não possam se
arrepender e se converter a Deus; quanto ao terceiro, creio que posso afirmar, sem temor do
julgamento divino, que nenhum deles jamais se converteu a Deus pelo arrependimento, mas
persistiu em sua abominável maldade, acumulando condenação para o dia do inevitável
julgamento de Deus”. Embora considere isso excessivamente severo, ainda representa o
julgamento da Igreja da Inglaterra e é terrível para aqueles que escarnecem e professam
concordância com tal perspectiva.
Orientação III. Tenha cautela ao menosprezar as circunstâncias ou formas de adoração
que não lhe agradam, pois esses menosprezos chegam tão perto da própria adoração que as
mentes dos ouvintes podem facilmente ser levadas a desonrar a essência em detrimento da forma
ou conjuntura ridicularizadas. Isso claramente exala uma profanação audaciosa, algo que cristãos
sérios e sóbrios repudiam. No caso de idolatria, ou quando o próprio conteúdo da adoração é
ímpio e proibido, não nego que Elias, que ridicularizou os sacerdotes de Baal, possa ser imitado,
às vezes, e com cautela (cf. 1Rs 18). No entanto, fazê-lo com base em diferenças insignificantes
na forma ou contextos de adoração é o caminho para ensinar os homens a transformarem toda
religião em motivo de escárnio e desprezo.
Se, ao redor do rei, você perceber alguma característica de vestimenta, ornamento ou
participação de seus seguidores que não lhe agrade ou que julgue ridícula, se olhar para ele com
um riso zombeteiro, não poderá se desculpar dizendo: “Não ri do rei, mas dessa ou daquela coisa
acerca dele”, uma vez que a presença do soberano deveria tê-lo impedido de agir como se
estivesse escarnecendo dele. Agora, sei que você dirá: “Não é a adoração a Deus, mas a tais
palavras ou gestos do ministro que eu desprezo”. Fique atento ao lidar com as coisas sagradas;
não brinque tão perto do fogo consumidor; não dê motivos para outros ridicularizarem a coisa
em si porque você menospreza os detalhes, mesmo que sejam inadequados.
Não vimos que, enquanto os cristãos facciosos fazem piadas, alcunhas e escárnios uns
contra os outros, os inimigos profanos e comuns da fé se aproveitam deles e os retomam contra
toda a piedade séria, para perturbação dos outros e a sua própria condenação? E, nestes tempos
conturbados, nossa experiência tem mostrado que os religiosos e os profanos são os que estão
prontos a usar de escárnios e desprezos contra as coisas e pessoas que não lhes agradam; e que
homens sóbrios, pacíficos e sensatos de qualquer lugar abominam tais coisas. Por exemplo: todos
os homens sóbrios acharam desagradável e profano ouvir alguns jovens e pessoas impetuosas
zombarem da oração coletiva, chamando-a de “guisado”, e a vestimenta eclesiástica de “o
vestido da prostituta da Babilônia”. E a partir daí, o mesmo espírito os levou a zombar com tanta
arrogância e amargura de ministros, universidades, erudição, templos, dízimos e de todos os
elementos de adoração; sim, do dia do Senhor, e do canto dos salmos, e da pregação, e de quase
todos os deveres da religião. Quando os homens pretendem lutar em nome de Deus com o
espírito e as armas de Satanás, o mundo e a carne, não há limites de onde podem chegar à
impiedade, e fazerem a obra de Satanás do jeito de Satanás. Por outro lado, enquanto alguns
escarneciam com demasiada reprovação dos que divergiam deles a respeito da forma de governo
e cerimônias da igreja, como os Preciosistas e Puritanos, a multidão de profanos logo se
aproveitou disso e transformou essas palavras em reprovações tão comuns e amargas do povo
piedoso, sóbrio e pacífico da terra, que o Sr. Robert Bolton[22] diz: “Estou convencido de que,
desde que a malícia contra Deus se apoderou pela primeira vez dos anjos condenados, e as graças
do céu habitavam no coração do homem, jamais uma palavra pobre e perseguida passara com
mais contrariedade e ranger de dentes pela boca de todos os tipos de homens não regenerados do
que o nome de puritano faz até hoje – o qual, não obstante, como agora é comumente
compreendido, e quase sempre resulta do mau humor e do espírito de ofensa e bom convívio, é
uma alcunha honrosa, posso dizer assim, de cristianismo e graça”.
Orientação IV. Tenha muito temor de tornar as pessoas piedosas desprezíveis, apesar de
suas falhas reais, para que os ímpios não avancem sem obstáculos para o desprezo da própria
piedade, pois é fácil observar com que aptidão o vulgar julga a doutrina e a fé pela pessoa que a
professa. Se um católico romano ou sectário vive uma vida santa, tome o cuidado de não
menosprezar essa pessoa, mesmo que o seu escárnio se fundamente nos erros deles, visto que até
um santo equivocado é honrado por Deus. E onde quer que haja santidade, ela é a coisa mais
grandiosa, resplandecente e predominante naquele que a possui. Portanto, confere-lhe maior
honra do que qualquer erro ou fragilidade possa infamá-la. Tal como a pessoa de um rei não
pode ser desonrada por uma menção reprovável de suas debilidades, a fim de que não se reflita
em seu cargo, também a pessoa de um homem santo não deve ser desabonada, para que não se
reflita em sua fé.
Não que a pessoa de qualquer homem deva atestar ou assegurar seus defeitos, ou que
devamos julgar os defeitos ou comportamentos pelos homens, em vez de julgar os homens por
suas atitudes: você deve julgá-los pelo que é predominante. Desse modo, critique seus erros de
maneira a preservar a honra de suas virtudes e religião, e de suas pessoas em virtude de suas
virtudes. Portanto, critique as quedas de Noé, Ló, Davi e Pedro de modo a tornar o pecado mais
odioso, mas não de modo a tornar suas pessoas desprezíveis, para que a fé desses homens não
seja lançada ao desprezo. Observe aqui a diferença entre a menção das quedas de homens bons
feita pelos piedosos e pelos ímpios. Os piedosos as mencionam para fazer com que o pecado
pareça algo mais a ser temido e vigiado, e para que a santidade pareça mais excelente e
necessária. Já os ímpios as mencionam (e as leem nas Escrituras) para se convencerem de que o
pecado não é tão ruim e perigoso quanto os pregadores afirmam, e que a santidade difere pouco
de uma vida carnal.
Orientação V. Não julgue os servos de Deus apenas pelo que lhe relatam, sem um
conhecimento considerável deles. Dentre uma multidão de inimigos – escarnecedores e
perseguidores da piedade, grandes ou pequenos, importantes ou comuns – não consigo me
lembrar de um sequer que não seja alguém que nunca tiveram a felicidade de conhecer melhor,
seja por alguma familiaridade, seja pela constatação das fases desconhecidas de sua vida; ao
contrário, quase sempre são aqueles que conhecem apenas de ouvir falar, ou de vista, ou por não
terem qualquer intimidade. E se vivessem com eles nas mesmas casas, ou tivessem familiaridade
com eles, essa seria a maneira mais provável de mudar sua ideia e discursos; a menos que sua
convivência fosse apenas com alguns dos cristãos mais ignorantes, impetuosos ou
destemperados.
Orientação VI. Previna-se contra a falta de empatia e malícia com qualquer pessoa,
sobretudo com os servos de Cristo. Pois isso cega o julgamento, e enlouquece os homens com
uma paixão venenosa, e fará com que desprezem e se enfureçam contra os servos santíssimos do
Senhor. O mínimo de amor verdadeiro para um cristão, como cristão, contribuiria muito para a
cura de todo esse pecado.
Orientação VII. Desconfie para não se envolver em uma seita ou facção, e fique atento
ao zelo carnal da dissidência e ao espírito de divisão, que normalmente fazem com que os
homens considerem lícito, quando não necessário, desprezar as pessoas que julgam seus
opositores, e dessa forma consigam impedi-las de atrapalhar o interesse de sua causa ou grupo.
Assim, católicos e, por extensão, os facciosos de todos os grupos, justificam suas difamações
como um desarmamento necessário dos inimigos de Deus (pois todos que diferem deles devem
parecer assim); e um despojamento da honra que poderia causar dano. Assim, o mal mais odioso
disfarça-se de bem, e Deus é apresentado como opositor do amor que é o cumprimento de sua
lei, e como patrono dos escarnecedores de seus filhos; porém, com certeza, ele despreza os
escarnecedores (cf. Pv 3.34).
Orientação VIII. Previna-se do pecado e da infidelidade, porque, uma vez que o
entendimento é iludido, e considera a religião em si somente um engano ou fantasia, e a piedade
apenas presunção e hipocrisia, não espanta que faça disso uma chacota. E esses escarnecedores
se justificarão nessas coisas, e acharão que não fazem mal. Uma mente cega é uma grande praga.
Concluo com estes sinceros pedidos aos crentes:
1. Não dê aos homens motivo de escárnio por sua imprudência, escândalo, egoísmo ou
paixões, enquanto se ocupa com a honra a Deus e com a salvação dos homens. Como diz
Crisóstomo: “Assim como aquele que carrega o estandarte do rei precisa ser bem protegido na
batalha, do mesmo modo o que carrega o nome e a obra de Deus e da santidade”.
2. Não desanime por causa dos escarnecedores, eles são até brandos se comparados com
o que Cristo sofreu por você e com o que os próprios escarnecedores sofrerão.

[1]
Este prefácio está contido na obra A Christian Directory. Publicaremos esta obra em diversos livros, separando cada livro por temáticas diferentes.
[2]
Pitágoras foi um importante matemático e filósofo grego [N. do E.].
[3]
Cf. Sl 16.2; Sl 96.2; Sl 135.3; Sl 148.13; Sl 29.2.
[4]
Não foi possível identificar a quem o autor se refere [N. do E.].
[5]
Sêneca foi um filósofo estoico e um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano [N. do E.].
[6]
Daniel 6.1-5
[7]
Provavelmente Baxter está se referindo a Marco Túlio Cícero que foi o maior orador de Roma e um prolífico autor de vasta correspondência e textos de
filosofia e política [N. do E.].
[8]
Agostinho de Hipona. De Mendacio.
[9]
Agostinho de Hipona. De Mendacio.
[10]
Aurélio Ambrósio, mais conhecido como Ambrósio, foi um arcebispo de Mediolano que se tornou um dos mais influentes membros do clero no século IV.
Ambrósio era um fervoroso adversário do arianismo [N. do E.].
[11]
Cf. Gn 20.2; Gn 12.10-20; Gn 26.7
[12]
Cf. 1Sm 21.10-15
[13]
2Rs 5.15-27
[14]
AUGUSTINE, Saint. The Enchiridion, Manual.
[15]
Cf. Êx 1.15-21
[16]
Teofrasto (72 a.C. – 287 a.C.) foi um filósofo da Grécia Antiga. Era oriundo de Eressos, em Lesbos, seu nome original era Tirtamo, mas ficou conhecido pela
alcunha de ‘Teofrasto’, que lhe foi dada por Aristóteles, segundo se diz, para indicar as qualidades de orador.
[17]
Isócrates (436 a.C. – 338 a.C.) foi um orador e retórico ateniense. Chamado de o pai da oratória, pois foi o primeiro a escrever discursos que serviam de
modelo a seus discípulos. Foi ele quem implantou a retórica no currículo escolar de Atenas.

[18]
Moeda que representou a vigésima parte da libra esterlina até 1971.
[19]
Cf. Is 32.4-6; Mt 12.34,36; 2Co 4.13; Jo 3.11; 1Jo 4.5; Pv 16.23; Sl 40.5; Ct 7.9.
[20]
Ver também Salmos 119.172; 49.3; 35.28.
[21]
O “Livro de Homilias” refere-se a uma coleção de sermões oficiais da Igreja da Inglaterra. Esses sermões foram compilados durante o reinado de Eduardo VI
(1547-1553) e, posteriormente, durante o reinado de Isabel I (1558-1603). O objetivo do Livro de Homilias era fornecer diretrizes e instruções padronizadas para
a pregação nas igrejas anglicanas. Os sermões abordavam uma variedade de temas, incluindo doutrina, moralidade, ética e práticas religiosas. O trecho
mencionado é uma referência a um desses sermões [N. do E.]..

[22]
Robert Bolton (1572–1631) formou-se em Oxford, foi professor universitário e tornou-se ministro do evangelho em Broughton, Northamptonshire.

[1]Talvez valesse a pena uma nota a respeito desse aspecto de adoração de imagens.
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Teologia Reformada para abençoar e fortalecer a igreja brasileira.
Acreditamos que a igreja brasileira carece de reforma e que, apesar de haver muitos bons
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